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Heródoto - História (Livro IV - Melpômene)

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Autor: Herodoto

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LIVRO IV

MELPÔMENEA CÍTIA — HÉRCULES — OS GRIFÃOS — OS

HIPERBÓREOS — DESCRIÇÃO DA TERRA — O POVO DECÍLAX — COSTUMES DOS CITAS — ANACÁRSIS — A

EXPEDIÇÃO DE DARIO — O PONTO EUXINO — ASAMAZONAS — OS TRÁCIOS — OS GETAS — A LÍBIA — O

CULTO DO SOL, ETC.

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I — Depois da tomada de Babilônia, Dario marchoucontra os Citas. A Ásia era, então, rica e muito povoada,encontrando-se em situação florescente. O soberano desejavavingar-se dos Citas, que, tendo invadido a Média, bateram astropas que a eles se opuseram e entraram a violar a justiça. Essepovo, como já relatei, tinha dominado na Ásia Superior durantevinte e oito anos. Havia ali penetrado perseguindo os Cimérios,e tinha arrebatado o império aos Medos. Depois de umaausência de vinte e oito anos, os conquistadores citas quiseramretornar à pátria; mas para voltar à Cítia não encontrarammenores dificuldades do que as que tinham tido para dominar osMedos. Um exército numeroso erguera-se diante deles,impedindo-lhes a entrada; pois enquanto estiveram ausentes,suas mulheres, entediadas pela longa espera, entregaram-se aosescravos, daí resultando toda uma nova população.

II — Os Citas têm por hábito furar os olhos dos seusescravos, para utilizá-los na ordenha de animais, cujo leiteconsomem diariamente. Para a extração do leite adotam unscanudos de osso semelhantes a flautas, que introduzem naspartes naturais das jumentas, e os escravos neles sopram,enquanto outros tiram o leite. Dizem eles que empregam esseprocesso para que o sopro intumesça as veias das jumentas efaça baixar as mamas.

Extraído o leite, despejam-no em recipientes de madeira,que os escravos sacodem e agitam. É a nata que eles maisapreciam, considerando-a saborosíssima e nutriente. É para essatarefa que eles vazam os olhos dos que submetem à escravidão.Os Citas não cultivam a terra e são nômades.

III — Desses escravos e de mulheres citas nascerammuitos jovens, que, tendo conhecimento da sua origem,marcharam ao encontro dos Citas que regressavam da Média.Começaram por dividir o país em duas partes, cavando um largo

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fosso que ia dos montes Táuricos ao Palos-Meótis, abrangendovasta extensão. Foram, em seguida, acampar diante dos Citasque procuravam penetrar no país, aos quais ofereceramcombate. Houve entre eles várias escaramuças, sem que osCitas pudessem conseguir a menor vantagem. “Companheiros,que estamos fazendo? — gritou um dos Citas no meio da peleja— se esses homens matam um dos nossos, diminuímos denúmero; se matamos um deles, diminuímos o número de nossosescravos. Abandonemos os arcos e dardos e marchemos contraeles armados do chicote com que fustigamos nossos cavalos.Enquanto nos virem de armas na mão considerar-se-ão nossosiguais; mas se em lugar de armas nos virem de chicote,lembrar-se-ão de que são nossos escravos, e apercebendo-se dasua baixa origem, não mais ousarão resistir-nos”.

IV — A sugestão foi aceita por todos. Os escravos,atemorizados, puseram-se logo em fuga, sem mais pensar emcombater. Assim regressaram os Citas à pátria, depois dehaverem dominado a Ásia e terem sido dali expulsos pelosMedos. Foi para vingar-se dessa invasão, que Dario levoucontra eles poderoso exército.

V — Os Citas consideram a sua pátria a mais nova detodas as nações, e explicam a sua origem da maneira que vourelatar.

A Cítia era outrora um país deserto. O primeiro homemque ali nasceu chamava-se Targitaus, que os Citas pretendemser filho de Júpiter e de uma filha de Boristénis, o que não meparece crível. Targitaus, dizem eles, teve três filhos: Lipoxais,Arpoxais e Colaxais, o mais jovem. No seu reinado, caiu docéu, na Cítia, uma charrua, uma canga, um machado e um piresde ouro. O primogênito de Targitaus foi o primeiro a vê-los, edeles se aproximou com o desejo de apanhá-los; mas o ouro seinflamou. Tendo Lipoxais se retirado, veio então o segundoirmão, e o ouro tornou a inflamar-se. Compareceu finalmente o

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irmão mais novo, e como o ouro não mais se inflamasse,apoderou-se dos objetos e levou-os para sua casa. Diante dessefato, os dois irmãos mais velhos resignaram a seus direitos aotrono em favor de Colaxais.

VI — Aqueles, entre os Citas, conhecidos peladesignação de Aucates, são, ao que dizem, descendentes deLipoxais; os chamados Catiares e Tráspios, de Arpoxais; e osParalates, de Colaxais. Dá-se a todos esses povos a designaçãogeral de Escolotes, do nome de um dos seus governantes, masaprouve aos Gregos dar-lhes o nome de Citas.

VII — Assim relatam os Citas a origem de sua nação.Acrescentam que desde Targitaus, seu primeiro rei, até a épocaem que Dario passou pelo seu país, não decorreram, ao todo,mais de mil anos. Quanto ao ouro sagrado, os reis o guardamcom o maior carinho e veneração. Transportam-no todos osanos para seus respectivos estados e lhe oferecem grandessacrifícios, a fim de que ele lhes seja propício. Se o que se achaencarregado da guarda desse ouro adormece no dia da festa aoar livre, morre nesse ano, segundo afirmam os Citas. Paracompensá-lo de tal desgraça dão-lhe toda a extensão de terraque puder percorrer a cavalo num só dia. Sendo a superfície dopaís dos Citas muito extensa, Colaxais dividiu-o em três reinos,entregando-os aos seus três filhos. O ouro caído do céu eraguardado no maior desses reinos. Quanto às regiões situadas aonorte, além das últimas terras povoadas, dizem os Citas nãoserem elas nem visíveis nem abordáveis, por causa das plumasque ali caem continuamente. O ar está sempre cheio e a terracoberta dessas plumas, motivo por que a visão ali não penetra.

VIII — É isso o que dizem os Citas com relação a sipróprios e ao seu país. Todavia, os Gregos que habitam o litoraldo Ponto Euxino dizem que Hércules, conduzindo as boiadas deGérion chegou ao país hoje ocupado pelos Citas e então deserto.Gérion morava além do Ponto Euxino, numa ilha denominada

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Erítia pelos Gregos e situada perto de Gades, no oceano, adiantedas colunas de Hércules. Acreditam esses Gregos que o oceanocomeça a leste e envolve a terra com as suas águas; masnenhuma prova apresentam em apoio a tal crença.

Chegando ao país hoje conhecido por Cítia, Hércules,continuam eles, surpreendido pelo Inverno e sentindo os rigoresdo frio, estendeu sua pele de leão, nela se enrolou e adormeceu.Enquanto dormia, as mulas que ele havia desatrelado do carropara fazê-las pastar desapareceram misteriosamente.

IX — Ao despertar, Hércules pôs-se a procurá-las portoda parte, e assim chegou ao cantão chamado Hiléia, ondeencontrou, numa caverna, um monstro híbrido — mulher dacabeça até abaixo da cintura, e serpente no resto do corpo — aque davam o nome de Equidna. Embora tomado de espanto anteaquela criatura singular, perguntou-lhe se não vira passar por alios seus animais. “Tenho-os em meu poder, — respondeu ela —mas não tos devolverei enquanto não estiveres comigo”.Hércules cedeu, por tal preço, aos seus desejos, mas, passado omomento, a estranha começou a protelar a entrega dos animais,para retê-lo por mais tempo junto a si. Hércules, por seu lado,desejava apenas recuperar seus animais e partir imediatamente.Finalmente, ela entregou-lhos, fazendo-lhe, porém, estadeclaração: “Teus animais vieram ter aqui; eu os guardei erecebi a recompensa. Concebi três filhos teus. Que devo fazerdeles quando crescerem? Queres que os deixe aqui nesterecanto da terra onde sou soberana, ou preferes que eu os enviepara a tua companhia?” “Quando as crianças atingirem a idadeviril, — respondeu Hércules, segundo afirmam os Gregos —faze o que te vou dizer, e terás agido com prudência e acerto.Aquele que vires dobrar este arco como eu e cingir-se com estetalabarte, como faço, retém junto a ti; mas o que não puderexecutar nem uma coisa nem outra, envia-o para longe daqui.Se assim procederes não te arrependerás, e ter-me-ásobedecido”.

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X — Dizendo essas palavras, Hércules tirou um dosseus arcos — pois tinha consigo dois — e deu-o à mulher.Mostrando-lhe também o talabarte, de onde pendia umapequena taça de ouro, entregou-lho igualmente, afastando-se emseguida.

Quando os filhos que concebera de Hércules atingiram aidade viril, Equidna deu ao primeiro o nome de Agatirso; aosegundo, o de Génolo, e ao mais jovem, o de Cíntio.Lembrou-se, então, das ordens de Hércules e cumpriu-as. Osdois mais velhos, não tendo forças para dobrar o arco, forambanidos do lugar, indo estabelecer-se em outro país. Cíntio, omais moço, fez o que o pai havia determinado e permaneceu nasua pátria. É, pois, de Cíntio, filho de Hércules, que descendemtodos os reis dos Citas, e até hoje esse povo traz presa aotalabarte uma taça como reminiscência da que Hércules traziapendente do seu, por ocasião da sua aventura naquele país. Éassim que os Gregos habitantes do litoral do Ponto Euxinorelatam esse fato.

XI — Há ainda sobre o mesmo assunto outra versão, quede muito boa vontade passo a relatar. Os Citas nômadeshabitantes da Ásia, batidos pelos Masságetas, com os quaisentraram em guerra, atravessaram o Araxo e foram ter àCiméria — pois o país hoje ocupado pelos Citas pertenceuoutrora, ao que dizem, aos Cimérios. Estes, vendo-os invadirsuas terras, discutiram a medida a tomar ante tão gravecontingência. As opiniões se dividiram em extremos opostos,sendo as dos reis aceitas como as melhores. O povo achava quedeviam retirar-se para não se exporem aos azares de umcombate contra tão numeroso grupo de invasores, opinando osreis que se desse batalha aos que vinham atacá-los. O povo nãoqueria ceder ante o parecer dos reis, nem estes ante o dos seussúditos. Estes últimos preferiam a desonra à eventualidade de severem massacrados; aqueles achavam preferível morrer napátria do que fugir com a população. Por um lado,

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consideravam as vantagens que haviam desfrutado até ali; poroutro lado, previam os males que lhes adviriam fatalmente seabandonassem a pátria.

Como ambos os lados se mantivessem irredutíveis emsuas opiniões, a discórdia agravou-se entre eles. Sendo ospartidários de uns e de outros equivalentes em número, nãotardaram a decidir a questão pela força. Os que pereceram nessaocasião foram enterrados, pelos partidários do povo, perto dorio Tiras, onde ainda hoje vemos suas sepulturas. Essessobreviventes da contenda, depois de haverem prestado essaúltima homenagem aos mortos, abandonaram o país, e os Citas,encontrando-o deserto, dele se apoderaram.

XII — Encontramos ainda hoje na Cítia a cidade deCimério e a de Portmias Cimérios. Existe também ali umaregião denominada Ciméria e um estreito chamado Cimeriano.Parece certo que os Cimérios, fugindo dos Citas, se retirarampara a Ásia, estabelecendo-se numa pequena ilha onde hoje seencontra a cidade grega de Sínope. Não parece menos certo quese tenham extraviado ao persegui-los, penetrando na Média. OsCimérios, na sua fuga, iam contornando o litoral; os Citas, aocontrário, seguiam sempre mantendo o Cáucaso à sua direita,até que, perdendo a orientação, foram ter ao coração da Média.

XIII — Esta outra versão nos vem igualmente dosGregos e dos bárbaros; mas Aristeu de Preconésia, filho deCaistróbio, escreve em seu poema épico que, inspirado porFebo, foi até o país dos Issédons, ao sul do qual se encontram osArimaspes, povo de um só olho; que mais além ficam osGrifãos, que guardam o ouro, e mais longe ainda vivem osHiperbóreos, cujas terras se estendem para o mar; que todosesses povos, com exceção dos Hiperbóreos, vivemcontinuamente em guerra com seus vizinhos, a começar pelosArimaspes; que os Issédons foram expulsos do seu país deorigem pelos Arimaspes; os Citas, pelos Issédons, e os Cimérios

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— habitantes do litoral banhado pelo mar do sul — pelos Citas.Assim, Aristeu não concorda nem mesmo com os Citas no quese refere a essa região.

XIV — Já vimos de que país era o poeta Aristeu; masnão posso deixar de relatar o que ouvi a seu respeito emPreconésia e em Cizico.

Aristeu pertencia a uma das melhores famílias do seupaís. Diz-se ter ele morrido em Preconésia, na loja de umpisoeiro, onde entrara por acaso. O pisoeiro, fechando o seuestabelecimento, foi imediatamente avisar a família do morto. Anotícia espalhou-se logo por toda a cidade; mas um habitante deCizico, vindo de Artacéia, assegurou ter encontrado Aristeu acaminho de Cizico e falado com ele. Enquanto o forasteiro faziaessas afirmações, a família de Aristeu dirigia-se à loja dopisoeiro, com todo o necessário para o enterro; mas quandoabriram o estabelecimento não o encontraram, nem morto nemvivo. Conta-se ainda que, sete anos depois, ele reapareceu emPreconésia, onde compôs o poema épico que os Gregosdenominam Arimáspios, desaparecendo logo depois pelasegunda vez. É essa a lenda que corre nas cidades de Preconésiae Cizico.

XV — Vejamos agora o que aconteceu aosMetapontinos, na Itália, trezentos e quarenta anos depois deAristeu haver desaparecido pela segunda vez. Contam osMetapontinos que o poeta, ali surgindo, ordenou-lhes queerguessem um altar a Apolo, e erigissem, perto desse altar, umaestátua a que dariam o nome de Aristeu de Preconésia,dizendo-lhes serem eles os únicos, entre os Italiotas, a receber avisita de Apolo. Contam ainda que o próprio Aristeuacompanhava o deus sob a forma de um corvo, e que depois dehaver dado essa ordem desapareceu mais uma vez. Acrescentamos Metapontinos que, tendo mandado perguntar ao deus, emDelfos, o significado daquela aparição, a pitonisa concitara-os a

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cumprir as determinações do poeta, não tendo eles outrocaminho senão obedecer. Vê-se ainda hoje, na praça pública deMetaponto, perto da estátua de Apolo, outra estátua com onome de Aristeu, estando ambas cercadas de louros.

XVI — Nada se sabe de positivo sobre o que existe alémdo país de que falámos. Não encontrei ninguém que lá houvesseestado. Aristeu, de quem fizemos menção, não esteve adiante daterra dos Issédons, como ele diz no seu poema épico. Confessaele ter sabido dos Issédons o que contava dos países maisafastados. De qualquer maneira, levamos nossas investigaçõesaté onde era possível, e vamos dizer o que soubemos de exatopelas fontes a que recorremos.

XVII — Depois do porto dos Boristênidas, que se achabem no centro do litoral da Cítia, os primeiros povos queencontramos são os Calípides, de origem greco-cita. Um poucoacima ficam os Alazões. Estes e os Calípides seguem osmesmos costumes dos Citas. Cultivam o trigo e comem cebola,alho, lentilhas e favas. Ao norte do território ocupado pelosAlazões vivem os Citas lavradores, que semeiam o trigo, nãopara se utilizarem dele como alimento, mas para vendê-lo.Acima do país dos Citas encontram-se os Neuros. Pelo quepudemos saber, a parte setentrional do país dos Neuros não éhabitada. Todas essas nações estão situadas ao longo do rioHípanis, a oeste do território dos Boristênidas.

XVIII — Transpondo-se esse rio, encontra-seprimeiramente a Hiléia, na direção do litoral. Acima ficam osCitas agricultores. Os Gregos que vivem às margens do Hípanischamam-nos Boristênidas, mas denominam a si própriosOlbiopólitos. O país desses Citas agricultores, que fica a trêsdias de viagem do lado do levante, estende-se até o rioPantícapes. Atravessando-se essa região chega-se a vastosdesertos, além dos quais vivem os Andrófagos, que nada têm decomum com os Citas. Ao norte do território por eles habitado

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existem apenas desertos — pelo menos não se sabe daexistência de nenhum povo ali.

XIX — A leste da região ocupada pelos Citasagricultores e para lá do Pantícapes vivem os Citas nômades,que não lavram a terra. Toda a região, com exceção da Hiléia, édesprovida de árvores. Os Citas nômades ocupam, a leste, umaextensão correspondente a quatorze dias de jornada até o rioGerro.

XX — Além do rio Gerro fica o país dos Citas reais, osmais bravos e mais numerosos entre todos os de sua raça, econsiderando os demais como seus escravos. Estendem-se parao sul até a Táurida, e para leste até o fosso cavado pelos filhosdos escravos cegos, e Cremnes, cidade comercial sobre oPalos-Meótis. Uma das partes dessa nação estende-se até oTánais. Ao norte do território dos Citas reais encontram-se osMelanclenes, que não pertencem à mesma raça. Mais acima, aoque soubemos, não existem mais do que pântanos e terrasdesabitadas.

XXI — O território situado adiante do Tánais nãopertence à Cítia, mas aos Saurómatas, cujas terras podemosatravessar em quinze dias de marcha, durante os quais nãovemos nem árvores frutíferas, nem selvagens. A segunda regiãoao norte dessa nação é habitada pelos Budinos e possui, emabundância, toda espécie de árvores. Ao norte dessa região háum vasto deserto, cuja travessia pode ser feita em sete dias demarcha.

XXII — Atravessando-se esse deserto, para leste,entra-se no território dos Tisságetas, povo indígena e numeroso,que vive exclusivamente da caça. Suas terras confinam com ados Iircos, também caçadores e que procedem da seguintemaneira para apanhar a presa: Como há bosques por toda parte,sobem nas árvores para pesquisar o mato e localizar a caça.Levam, cada um, seu cavalo, que fazem deitar com o ventre em

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terra, a fim de parecer menor. Acompanham-nos, também, cãespara farejar e perseguir a caça. Logo que o caçador, do alto daárvore, percebe a presa e tem-na ao seu alcance, procuraatingi-la com uma flechada; depois, monta a cavalo epersegue-a, auxiliado pelo cão, apresando-a por fim.

Para além dos Iircos, avançando para leste, encontramosos Citas, que, tendo sacudido o jugo dos Citas reais, vieramestabelecer-se nessa região.

XXIII — Toda a extensa zona de que acabo de falar, atéo país dos Citas, é plana e muito fértil; mas, para diante, oterreno é estéril e pedregoso. Depois de se ter percorrido grandeparte dele entra-se em contato com povos que vivem ao sopé degrandes montanhas e que, segundo contam, são calvos denascença, tanto os homens como as mulheres, tendo o narizachatado e o mento alongado. Possuem idioma próprio, masvestem-se à maneira dos Citas. Alimentam-se do fruto de umaárvore denominada “pontica”, que atinge o tamanho de umafigueira e cujo fruto tem um caroço mais ou menos da grossurade uma fava. Quando o fruto está maduro, colhem-no eespremem-no num pedaço de tecido, extraindo um licor negro eespesso, a que dão o nome de “asqui”. Tomam esse licormisturado com leite. O bagaço é transformado numa massa, quetambém lhes serve de alimento. É diminuta a quantidade degado que criam por faltarem bons pastos.

Cada um tem a sua árvore, onde passam o ano inteiro.No Inverno cobrem-na de lã branca, retirando-a à chegada doVerão. Ninguém os molesta, pois são considerados criaturassagradas. Não possuem arma alguma. Os vizinhos tomam-noscomo árbitros em demandas e disputas, e quem se refugia entreeles encontra ali asilo inviolável. Chamam-nos Argipenses.

XXIV — Tem-se um conhecimento exato de toda aregião até as terras ocupadas por esses homens calvos, e detodas as nações que ficam do lado de cá, não sendo difícil obter

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notícias delas por intermédio dos Citas que vão constantementeaté lá; pelos Gregos da cidade comercial situada no Borístenes,e pelos habitantes de outras cidades situadas no Ponto Euxino.Esses povos falam sete línguas diferentes. Assim, os Citas queviajam têm necessidade de sete intérpretes.

XXV — Embora essa região seja bem conhecida pelasrazões que acabamos de expor, nada se pode dizer comsegurança sobre as terras ao norte; montanhas elevadas einacessíveis interditam a passagem. Os Argipenses afirmam,todavia, serem essas terras habitadas pelos Egípodes, ouhomens de pés de cabra, o que, entretanto, não me parece dignode crédito. Acrescentam também que, se avançarmos mais paradiante encontraremos outros povos que dormem seis meses doano, no que também não creio muito. Sabe-se ser o território aleste do país dos Argipenses ocupado pelos Issédons; mas o quefica para baixo não é conhecido nem dos Argipenses nem dosIssédons, que não sabem dele senão o que me contaram.

XXVI — Eis alguns dos costumes observados pelosIssédons, de acordo com o que me contaram: Quando um delesperde o pai, os parentes levam-lhe gado, que abatem e cortamem pedaços, fazendo o mesmo com o cadáver, e misturandotodas as carnes realizam um festim. Arrancam os cabelos dacabeça do morto e, depois de haverem limpado o crânio,douram-no, servindo-se dele como de um vaso precioso nossacrifícios solenes que oferecem todos os anos. Os filhoscumprem esses deveres para com os pais, da mesma maneiraque os Gregos celebram o aniversário da morte dos genitores.Os Issédons têm grande amor à justiça, e, entre eles, a mulhertem tanta autoridade quanto o homem.

XXVII — É isso o que se conhece sobre esses povos.Quanto à região que fica mais acima, sabe-se, pelo testemunhodos Issédons, ser habitada por homens de um só olho, e pelosGrifãos, que guardam o ouro. Os Citas colheram essas

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informações com os Issédons, e nós com os Citas. Nós oschamamos Arimaspes em língua cita. Nessa língua arimasignifica um e spu olho.

XXVIII — Em toda a região de que acabo de falar, oInverno é tão rude, e o frio tão intenso pelo espaço de oitomeses, que espalhando-se água pela terra não se faz lama, senãoquando se acende fogo. O próprio mar gela, assim como oBósforo Cimeriano; e os Citas da Quersonésia passam com seusexércitos sobre o gelo, conduzindo carroças, para irem ao paísdos Sindas. O Inverno mantém-se intenso durante oito meses,sendo que os outros quatro últimos meses também são frios. OInverno nessas paragens é, aliás, muito diverso do dos outrospaíses. Chove tão pouco durante a estação, que se pode dizer serela de completa seca; e no Verão não cessa de chover. Nãotroveja na época em que costuma trovejar em outros lugares;mas as trovoadas são muito freqüentes no Verão; e se as ouvemno Inverno, encaram o fato como algo fenomenal. O mesmo sedá com os tremores de terra. Quando verificados na Cítia, noVerão ou no Inverno, passam por verdadeiros fenômenos. Oscavalos, na referida região, suportam bem o frio; mas as mulas eos jumentos com ele se ressentem, embora o contrário se dê emoutros lugares: os cavalos a ele expostos definham, e as mulas eos jumentos nada sofrem.

XXIX — Penso que é o rigor do frio que impede os boisde terem ali chifres. Homero mostra-se de acordo comigoquando, na “Odisséia”, fala nestes termos: “E a Líbia, onde oscornos vêm prontamente aos cordeiros”; o que é exato, pois nospaíses quentes os cornos crescem cedo nos animais, e onde ofrio é violento, nem chegam a nascer, e se nascem, não crescemmuito.

XXX — Nessa região, é o frio a causa disso; mas,observando de passagem, como gosto de fazer e como venhofazendo desde o início desta história, espantou-me saber que em

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toda a Élida é raro encontrar-se mulas, embora o clima ali nãoseja frio e não se possa alegar nenhuma causa sensível. OsEletos dizem ser a conseqüência de alguma maldição. Quandose aproxima a época do cio, os Eletos levam as éguas para ospaíses vizinhos, trazendo-as de volta quanto estão pejadas.

XXXI — Quanto às plumas de que os Citas dizem estaro ar cheio a ponto de perturbar a visão e não permitir apermanência de ninguém ali, eis a minha opinião a respeito:Neva sempre nas regiões situadas ao norte da Cítia, mas,evidentemente, menos no Verão do que no Inverno. Quem tenhavisto a neve cair em grossos flocos compreende perfeitamente oque quero dizer. Essa se assemelha, na realidade, a plumas.Penso, pois, que essa parte do continente é inabitável devido aofrio excessivo, e que, quando os Citas e seus vizinhos falam deplumas, referem-se ao que a neve sugere.

XXXII — Nem os Citas, nem qualquer outro povodessas regiões falam dos Hiperbóreos a não ser os Issédons osquais, a meu ver, também nada dizem. Pois do contrário osCitas (que por informações deles nos falaram sobre osArimaspes) dir-nos-iam também qualquer coisa. Entretanto,Hesíodo a eles alude, o mesmo fazendo Homero nosEpígonos(1) — a acreditar-se seja ele o verdadeiro autor dessepoema.

XXXIII — Os Délios falam mais detalhadamente sobreo referido povo. Contam que as oferendas dos Hiperbóreos lhesvinham envoltas em palha de trigo. Passando pelas mãos dosCitas e transmitidas de povo a povo, essas oferendasalcançavam terras distantes, chegando até o Adriático, aocidente, de onde eram enviadas para o sul. Os Dodoneus eramos primeiros Gregos a recebê-las. Dali desciam até o golfoMalíaco, de onde passavam para a Eubéia, e, seguindo de umacidade para outra, iam ter a Cariste. Dali, sem tocar em Andros,os Caristeus levavam-nas para Tenos, de onde os Teneus as

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transportavam para Delos. A dar crédito aos Délios, era assimque essas oferendas chegavam à sua ilha. Acrescentam eles que,nos primeiros tempos, os Hiperbóreos enviavam as oferendaspor intermédio de duas virgens — Hiperoquéia e Laodicéia;que, para segurança dessas jovens, os Hiperbóreos faziam-nasacompanhar por cinco cidadãos, a que atualmente se rendemgrandes homenagens em Delos sob o nome de Pérferos; masque, os Hiperbóreos, não os vendo regressar e ante adesagradável possibilidade de virem a perder muitos outros deseus delegados nessa missão, resolveram, depois de certotempo, levar as oferendas até as fronteiras, envoltas em palha detrigo, de onde eram enviadas aos vizinhos mais próximos, aquem solicitavam remetê-las a outra nação. Dessa maneira, asoferendas iam passando, segundo os Délios, de país a país, atéchegarem ao seu ponto de destino.

Notei, entre as mulheres da Trácia e da Peônia, umcurioso costume com relação às coisas sagradas. Elas jamaissacrificam a Diana real sem fazerem uso da palha de trigo. Eiscomo, segundo dizem, elas procedem:

XXXIV — Os jovens délios de ambos os sexos cortam ocabelo em honra das virgens hiperbóreas que morreram emDelos. As moças cumprem esse dever antes do casamento.Tomando de um cacho dos cabelos, enrolam-no num fuso ecolocam-no no túmulo das virgens, no recinto consagrado aDiana, à esquerda de quem entra, à sombra de uma oliveira. Osjovens délios encrespam os cabelos com o auxílio de gravetos ecolocam-nos no mesmo local.

XXXV — Os Délios dizem também que, no mesmoséculo em que os referidos delegados vieram a Delos cumprindoa missão que lhes fora confiada, duas outras virgenshiperbóreas, uma das quais se chamava Argéia e a outra Ópis, jáali tinham estado, muito antes de Hiperoquéia e Laodicéia.Traziam elas oferendas que haviam prometido para terem partos

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fáceis, e ali chegaram em companhia dos próprios deuses. Porisso os Délios lhes rendem grandes homenagens e suasmulheres lhes celebram os nomes num hino que Ólen de Líciacompôs em seu louvor. Os Délios dizem ainda que aprenderamcom os insulares e os Iônios a celebrar nos hinos Ópis e Argéiae a fazer óbolos em intenção delas. Foi esse Ólen que, vindo daLícia para Delos, compôs os antigos hinos cantados na ilha. OsDélios acrescentam que, depois de queimar no altar as coxasdas vítimas, espalham as cinzas sobre o túmulo de Ópis eArgéia. Esse túmulo fica atrás do templo de Diana, a leste, pertodo refeitório dos Cenos.

XXXVI — Acho que já disse o bastante sobre osHiperbóreos, e, por conseguinte, passarei em silêncio sobre oque se conta de Abáris, que era, ao que dizem, hiperbóreo, eque, sem comer, viajou por toda a terra levado por uma flecha.De resto, se há Hiperbóreos deve haver também Hipernoteus.De minha parte, não posso deixar de rir quando vejo os quedescreveram a circunferência da terra pretenderem, sem atenderà razão, ser a terra redonda, envolvida pelo oceano por todos oslados, e a Ásia igual à Europa. Tentarei mostrar as proporçõesde cada uma dessas partes do mundo e descrever suaconfiguração.

XXXVII — O país ocupado pelos Persas se estende atéo mar Austral, também chamado mar da Eritréia. Acima, aonorte, habitam os Medos; mais acima os Sápiros, e para alémdos Sápiros, os Colquidianos, junto ao mar do Norte, próximo àdesembocadura do Faso. Essas quatro nações se estendem deum mar a outro.

XXXVIII — Dali, seguindo na direção do ocidenteencontramos duas penínsulas opostas, que avançam mar adentro. Uma delas começa, do lado do norte, no Faso,estendendo-se ao longo do Ponto Euxino e do Helesponto, até opromontório de Sigéia, na Tróada. Do lado do sul, essa mesma

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península começa no golfo Meriândrico, adjacente à Fenícia,estendendo-se ao longo do mar até o promontório Triópio. Essapenínsula é habitada por trinta nações diferentes.

XXXIX — A outra península começa no país dos Persase estende-se até o mar da Eritréia(2). Compreende a Pérsia, aAssíria e a Arábia, e termina, segundo se diz, no golfo Arábico,onde Dario fez chegar um canal partindo do Nilo. Da Pérsia àFenícia encontram-se grandes vastidões de terras. Da Feníciaem diante a península estende-se ao longo do referido mar, pelaSíria da Palestina e Egito, onde termina. Compreende apenastrês nações.

XL — Os países a leste, além dos territórios dos Persas,dos Medos, dos Sápiros e dos Colquidianos, são limitados,desse lado, pelo mar da Eritréia, e ao norte, pelo mar Cáspio epelo Araxo, que segue na direção do nascente. A Ásia éhabitada até a Índia. Daí em diante, seguindo para leste,encontramos imensos desertos desconhecidos, sobre os quaisnada podemos dizer com segurança.

XLI — A Líbia vem logo depois do Egito e faz parte dasegunda península, apresentando-se bastante estreita nos seuslimites com aquele país. Com efeito, do litoral, ao norte, até omar da Eritréia não há mais que cem mil braças, ou sejam milestádios. Todavia, desse ponto em diante vai-se alargando, etoma então o nome de Líbia.

XLII — Os que descreveram a Líbia, a Ásia e a Europae lhes determinaram os limites, mostraram-se entendidos noassunto, indicando-lhes as justas proporções. Realmente, aEuropa quase iguala em comprimento as outras duas; mas nãome parece que lhes possa ser comparada em largura. A Líbiamostra ser envolvida pelo mar, exceto do lado em que confinacom a Ásia. Necao, rei do Egito, foi o primeiro, ao quesabemos, a provar isso. Quando renunciou à idéia de abrir ocanal que deveria conduzir as águas do Nilo ao golfo Arábico,

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escolheu experimentados navegadores fenícios e,embarcando-os em seus navios, deu-lhes instruções para que, navolta da viagem que iam fazer, passassem pelas colunas deHércules, no mar setentrional, regressando dessa maneira aoEgito. Os Fenícios, embarcando no mar da Eritréia, navegarampelo mar Austral. No Outono, desembarcaram na Líbia, noponto onde se achavam, e semearam o trigo. Chegada a épocada messe, colheram o trigo e fizeram-se novamente ao mar.Depois de dois anos de navegação dobraram as colunas deHércules e regressaram ao Egito. Contaram, ao chegar, quenavegando em torno da Líbia tinham o sol à sua direita, o quenão me parece crível(3), embora a muitos possa parecer. Foiassim, pois, que a Líbia tornou-se conhecida pela primeira vez.

XLIII — Contam os Cartagineses que, algum tempoantes dessa aventura, Sataspes, filho de Teáspis, da raça dosAquemênidas, recebera ordem de fazer a circunavegação daLíbia, não conseguindo, porém, levar a bom termo oempreendimento. Desanimado pela extensão do percurso eaterrorizado com os desertos encontrados pela costa, regressoupelo mesmo itinerário, sem haver completado a tarefa impostapela mãe.

Sataspes havia violado uma jovem, filha de Zópiro, queera, por sua vez, filho de Megabizo. Estando em vias de sercrucificado por esse crime, por ordem de Xerxes, sua mãe, irmãde Dario, implorou o perdão para ele, prometendo puni-lo demaneira ainda mais rigorosa do que a pena imposta, isto é,forçando-o a realizar a circunavegação da Líbia até o golfoArábico. Xerxes concedeu o indulto com essa condição.Sataspes dirigiu-se ao Egito, obteve um navio e marinheiros dopaís, e embarcando, rumou para as colunas de Hércules.Atravessando-as, dobrou o promontório Soloeis e velejou para osul; mas, depois de haver consumido vários meses na travessiade vasta extensão oceânica, vendo que ainda lhe restava umpercurso maior a vencer, tratou de regressar, ganhando o Egito

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novamente, de onde se dirigiu para a corte de Xerxes. Alichegando, contou ter visto, à beira dos mares longínquos quepercorrera, homenzinhos vestidos com folhas de palmeira, queabandonaram suas aldeias para se refugiarem nas montanhaslogo que perceberam o navio; e que desembarcando nessasaldeias nenhum mal haviam feito, contentando-se em lançarmão do gado que teve ao seu alcance. Acrescentou que nãocompletara a circunavegação da Líbia porque seu navio nãopudera avançar mais. Xerxes, persuadido de não estar eledizendo a verdade, manteve sua sentença por não haver elerealizado até o fim a prova imposta, mandando crucificá-lo. Umeunuco de Sataspes, logo que soube da morte do amorefugiou-se em Samos com grandes riquezas, das quais seapoderou um habitante dessa ilha. Não ignoro o seu nome, masnão desejo revelá-lo.

XLIV — A maior parte da Ásia foi descoberta porDario. Esse soberano, querendo saber em que ponto do mardesembocava o Indo, depois do Nilo o único rio onde seencontram crocodilos, equipou alguns navios, tendo portripulantes homens adestrados, entre os quais figuravam Cílax eCariando. Embarcando em Caspatiro, esses homens desceram orio, a leste, até o mar, de onde navegaram para ocidente,chegando finalmente, depois de trinta meses de viagem, aomesmo porto em que os Fenícios a que me referi há poucotinham embarcado para fazer a circunavegação da Líbia.Terminado o périplo, Dario subjugou os Indianos e passou aservir-se do mar que banhava o país. Foi assim que secomprovou que a Ásia, excetuando a parte oriental, seassemelha em tudo à Líbia.

XLV — Quanto à Europa, não me parece que alguémhaja, até aqui, descoberto ser ela cercada de mar a leste e aonorte. Sabe-se, todavia, em que extensão ela se liga às outrasduas partes da terra(4). Não compreendo por que, sendo a terrauma só, lhe dão três nomes diferentes, e, aliás, nomes de

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mulheres, e por que se dá à Ásia, por limites, o Nilo, rio doEgito, e o Fásis, rio da Cólquida; ou, segundo outros, o Tánais,o Palos-Meótis e o estreito Cimeriano. Não consegui saber osnomes dos que assim dividiram a terra, nem onde foram buscaresses nomes que lhe atribuíram. A maioria dos Gregos diz que onome Líbia provém de uma mulher originária do país, e o daÁsia, da mulher de Prometeu; mas os Lídios reivindicam para sia aplicação deste último nome, sustentando vir ele de Ásias,filho de Cótis e neto de Manes, de onde os Asíadas, tribo deSardes, tiraram também o seu nome.

Quanto à Europa, ninguém sabe, como já disse, se ela écercada de mar. Também não me parece que se saiba de ondelhe veio esse nome, nem quem lho aplicou pela primeira vez. Anão ser que o tenham tirado do de Europa de Tiro; pois outrora,da mesma maneira que as outras partes do mundo, ela nãopossuía nome. É certo que Europa era asiática, nunca veio aessa imensa extensão de terra a que os Gregos hoje denominamEuropa. Esteve somente na Fenícia, de onde passou para Creta edali para Lícia.

XLVI — O Ponto Euxino, que Dario atacou, é, de todasas regiões da terra, a que possui povos mais ignorantes, comexceção dos Citas. Entre os que vivem para cá do Ponto Euxinonão podemos, na verdade, citar um único que tenha dado provasde prudência e habilidade, ou mesmo fornecido um homem quese tenha distinguido pelos seus conhecimentos, excetuando osCitas, como povo, e Anacársis, como homem. Os Citas são, detodos os povos que conhecemos, os que encontraram meiosmais seguros para viver e manter as vantagens que alcançaramsobre seus vizinhos, embora nada apresentem digno deadmiração. Suas vantagens consistem em não deixarem escaparos que vêm atacá-los e em não se agruparem quando isso nãolhes convém, pois não possuem nem cidades nem fortalezas.Transportam, para onde vão, suas respectivas habitações, e sãoexímios no manejo do arco quando a cavalo. Não vivem do

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cultivo da terra, mas do gado. Pode-se dizer que, em geral, nãopossuem moradias outras que não suas próprias carroças. Vê-se,pois, que um povo que adota tal modo de vida não pode serfacilmente subjugado, sendo até mesmo difícil abordá-los.

XLVII — Esse gênero de vida que adotam decorre,principalmente, do fato de ser a Cítia um país favorecido pelanatureza, possuindo grande número de rios que lhe servem dedefesas naturais contra qualquer agressão. O país é plano,abundante de pastagens e bem regado, sendo quase tão cortadode rios quanto o Egito de canais. Entre os seus rios maisimportantes e facilmente navegáveis figuram o Íster, rio decinco embocaduras; o Tiras, o Hípanis, o Borístenes, oPantícapes, o Hipacíris, o Gerro e o Tánais, cujos cursostentarei descrever.

XLVIII — O Íster, o maior de todos os rios queconhecemos, é sempre o mesmo, no Verão ou no Inverno.Vamos encontrá-lo primeiramente na Cítia, a oeste dos outros, edurante o seu curso recebe as águas de vários outros rios eriachos, razão por que se torna o maior de todos eles. Cincograndes rios figuram entre os que contribuem para aumentar-lheo caudal. Esses rios, que atravessam a Cítia, são: o Porata, queos Gregos denominam Piretos, o Tiarante, o Arárus, o Náparis eo Ordessos. O primeiro tem um volume d’água considerável ecorre para leste, indo confundir-se com o Íster. O segundo, istoé, o Tiarante, é menor e corre mais a ocidente. Os três últimos— o Arárus, o Náparis e o Ordessos — correm entre os doisoutros e lançam-se também no Íster.

XLIX — O Máris vem do país dos Agatirsos e deságuano Íster. Do alto do monte Hemo saem três outros grandes rios:o Atlas, o Auras e o Tibísis, que se dirigem para o norte e seperdem no mesmo rio. Da Trácia correm outros três, que vêmlançar-se no Íster: o Átris, o Noes e o Ártanes. O Cios vem daPeônia e do monte Ródope; divide pelo meio no monte Hemo e

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deságua no mesmo rio. O Ãngrus corre da Ilíria para o norte,atravessa a planície Tribálica e desemboca no Brôngus, que, porsua vez, deságua no Íster; de sorte que o Íster recebe, ao mesmotempo, as águas de dois grandes rios. O Cárpis e o Ápis saem dopaís acima dos Úmbrios, correndo para o norte e perdendo-se nomesmo rio. Não devemos, de resto, nos espantar ante o fato de oÍster receber tantos rios, porquanto ele atravessa toda a Europa.Nasce no país dos Celtas (a última nação da Europa a oeste, seexcetuarmos os Cinetas), e depois de haver atravessado aEuropa inteira penetra na Cítia por um dos seus pontosextremos.

L — A reunião de todos os rios de que acabo de falar ede muitos outros torna o Íster a maior das correntes d’águaconhecidas; mas se o compararmos, ele somente, com o Nilo, orio egípcio terá a primazia, porquanto não possui afluentes paraavolumá-lo(5). A razão de ser o Íster, como já disse, sempre omesmo, quer no Verão, quer no Inverno, parece ser a seguinte:No Inverno ele não se torna mais volumoso porque, nessaestação, chove muito pouco nos países que atravessa,mantendo-se a terra ali coberta de neve. A neve, que cai emabundância durante o Inverno, dissolve-se no Verão e corre parao Íster. Essa neve dissolvida e as grandes chuvas desta últimaestação contribuem para engrossá-lo. Assim, se no Verão o solproduz maior evaporação do que no Inverno, as águas queconfluem para o rio nessa época são também mais abundantesdo que no Inverno. Desse fato resulta uma compensação, graçasà qual o rio mantém sempre o mesmo volume.

LI — O Íster é, como já dissemos, o primeiro dos riosque banham a Cítia. Encontramos, em seguida, o Tiras, quecorre do norte, de um grande lago que separa a Cítia daNêurida. Os Gregos denominados Tíritas habitam as imediaçõesda sua embocadura.

LII — O Hípanis é o terceiro desses rios. Vem da Cítia,

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de um grande lago em cujas margens pastam cavalos brancos eao qual deram o nome de Mãe de Hípanis. É um rio pequeno,cuja água é doce até certo trecho, tornando-se salobra quandoatinge a quatro dias de distância do mar. Esse amargor provémde uma fonte cujas águas correm para o rio e são tão amargasque, embora seja pequena sua quantidade em comparação comas que se misturam, bastam para lhes dar tão pronunciado sabor.A fonte está situada nas fronteiras do país dos Citas lavradores edos Alazões, e tem o mesmo nome do lugar onde se encontra:Exampéia, em linguagem cita, e que em grego significa: viasagrada. O Tiras e o Hípanis aproximarn-se um do outro no paísdos Alazões, mas logo se afastam, deixando entre si um grandeespaço.

LIII — O Borístenes é o quarto rio e o maior da Cítiadepois do Íster. É também, a meu ver, o mais fecundo de todosos rios, não só da Cítia, mas de todo o mundo, se excetuarmos oNilo, com o qual não há um só que se possa comparar. OBorístenes fornece ao gado boas e abundantes pastagens, e nelese pesca toda espécie de peixes. A água é agradável de beber,mantendo-se clara e límpida, embora os rios vizinhos sejamlimosos. Fazem-se, nas margens, excelentes colheitas, e noslugares não cultivados a erva cresce em abundância. O salcristaliza-se na embocadura, em grande quantidade. O rioproduz grandes peixes sem espinhas denominados “antacés”,que os habitantes salgam antes de comer.

Até o país chamado Gerro há uma distância equivalentea quarenta dias de navegação, e sabe-se que o rio Borístenesvem do norte; mas não se conhece nem a região que eleatravessa mais acima, nem os povos que a habitam. Há, porém,indícios de que ele corre através de um país deserto para atingiras terras dos Citas agricultores. Este povo vive em suasmargens, numa extensão correspondente a dez dias de viagem.Esse rio e o Nilo são os únicos dos quais não posso indicar asnascentes, e não creio que algum grego esteja mais informado

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sobre isso. Quando o Borístenes está prestes a lançar-se no mar,o Hípanis vem unir-se a ele, confluindo no mesmo pantanal. Afaixa de terra que fica entre esses dois rios chama-sepromontório de Hipolaus. Ali ergueram um templo a Ceres.Adiante desse templo, às margens do Hípanis, vivem osBoristênidas.

LIV — O Pantícapes é o quinto rio que encontramos naCítia. Vem também do norte, tendo suas nascentes num lago.Entra na Hiléia, e depois de atravessá-la mistura suas águas comas do Borístenes. Os Citas agricultores ocupam a regiãocompreendida entre esses dois rios.

LV — O sexto rio é o Hipacíris. Sai igualmente de umlago e corre pelo meio das terras dos Citas nômades,lançando-se no mar, perto da cidade de Carnicítis, circundando,à direita, o país da Hiléia e o que se denomina Rota de Aquiles.

LVI — O Gerro é o sétimo desses rios. Ao deixar o paísque lhe deu esse nome, afasta-se do Borístenes, correndo emdireção ao mar, mas lançando-se no Hipacíris, separando, noseu curso, os Citas nômades dos Citas reais.

LVII — Temos, por último, o Tánais, que vem de umpaís longínquo, tendo suas nascentes num grande lago, do qualsai para lançar-se num outro maior ainda: o Meótis, que separaos Citas reais dos Saurómatas. Entre os seus afluentesencontra-se o Hirges.

LVIII — São esses os principais rios que banham aCítia. A relva desse país é a melhor para o gado e a maissuculenta que conhecemos, como se pode verificar abrindo-se abarriga dos animais que dela se alimentam. Os Citas têm, assim,em abundância, as coisas mais necessárias à existência.

LIX — Quanto aos seus costumes, eis aqui alguns poreles cuidadosamente observados: procuram manter-se sob a

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proteção de Vesta, em primeiro lugar, de Júpiter e da Terra, queacreditam ser mulher de Júpiter. Depois dessas três divindades,que reputam as maiores, cultuam Apolo, Vênus-Urânia,Hércules e Marte. Todos os Citas reconhecem e veneram essasdivindades; mas os Citas reais sacrificam também a Netuno. Nalíngua dos Citas, Vênus chama-se Tabítis; Júpiter, Papéus,nome que, a meu ver, lhe é bem adequado; a Terra, Ápis;Apolo, Etósiros; Vênus-Urânia, Artimpasa, e Netuno,Tamimasadas. Erguem estátuas, altares e templos a Marte, esomente a este.

LX — Os Citas sacrificam em todos os lugaressagrados, procedendo da seguinte maneira: a vítima fica de pé,com os pés dianteiros amarrados. O que deve sacrificá-lacoloca-se atrás dela e puxa a corda que lhe prende os pés,fazendo-a tombar, enquanto invoca o deus ao qual vai imolá-la.Em seguida, amarra uma corda em torno do pescoço do animal,apertando-a com auxílio de um bastão até estrangulá-lo. Não seacende fogo e nem fazem libações. Estrangulada a vítima, ooficiante esfola-a, esquarteja-a e prepara-se para cozinhá-la.

LXI — Como não há lenha na Cítia, procedem daseguinte maneira para cozinhar a vítima: depois deesquartejá-la, retiram toda a carne que envolve os ossos ecolocam-na em caldeiras, se as possuem. Essas caldeiras seassemelham muito às crateras de Lesbos, com a diferença deserem bem maiores. Debaixo delas acendem o fogo com osossos da vítima. Se, porém, não possuem caldeiras, colocamtoda a carne, com água, no ventre do animal, e queimam osossos por baixo(6). Os ossos fornecem um bom lume, e o ventremantém muito bem a carne. Assim, os animais sacrificadosservem para cozinhar a si próprios. Quando tudo está cozido, osacrificador faz o oferecimento dos primeiros bocados de carnee de vísceras atirando-os para a frente. Os Citas sacrificamvárias espécies de animais, principalmente cavalos.

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LXII — Com relação a Marte, os Citas observam oseguinte culto: num campo destinado às assembléias da naçãoerguem-lhe uma espécie de templo, que é preparado destamaneira: amontoam feixes de gravetos, formando com eles umapilha de três estádios de comprimento e outros tantos de largura,mas de menor altura. Sobre essa pilha constroem uma espéciede plataforma quadrada, com três lados inacessíveis, e o quartoinclinado de maneira a poder-se por ele subir. Ali sãoamontoados todos os anos cento e cinqüenta carros de pequenospedaços de madeira, para manter na mesma altura a pilha quetende a baixar sob a ação das intempéries. No alto, cada naçãocita planta uma velha cimitarra de ferro, como símbolo deMarte(7), à qual fazem, todos os anos, sacrifícios, imolando-lhecavalos e outros animais, em número maior do que aos outrosdeuses. Sacrificam-lhe também a centésima parte de todos osprisioneiros feitos entre os inimigos, mas a cerimônia édiferente da que procedem com relação aos animais. Fazemprimeiramente libações com vinho sobre a cabeça da vítimahumana, degolam-na, em seguida, sobre um vaso, e levam-nopara o alto da pilha, despejando o sangue sobre a cimitarra.Enquanto o sangue é conduzido para cima, os que se achamembaixo cortam o braço direito, juntamente com o ombro, dosque já foram sacrificados, e atiram-nos para o ar. Terminado osacrifício, todos se retiram, deixando os braços das vítimas ondeforam lançados, enquanto que os corpos ficam estendidos emoutro lugar.

LXIII — É assim que esses povos sacrificam animais ecriaturas humanas às divindades de sua predileção. Nunca,porém, imolam porcos e nem deles se alimentam.

LXIV — Quanto aos costumes que observam na guerra,vale mencionar os seguintes: o guerreiro cita bebe o sangue doprimeiro homem que consegue abater, corta a cabeça a todos osque mata em combate e leva-as ao seu soberano. Quandoapresenta a este a cabeça de um inimigo, pode compartilhar dos

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despojos da luta; em caso contrário, lhe é negado esse direito.Para esfolar a cabeça do inimigo abatido, o Cita fazprimeiramente uma incisão em torno da mesma, na direção dasorelhas, e, segurando-a pelo alto, puxa a pele, arrancando-a. Emseguida, limpa a pele tirando-lhe toda a carne, depois do quefricciona-a nas mãos para amaciá-la. Tendo-a assim preparado,dela se serve como guardanapo e amarra-a no bridão do cavalo.Isso constitui um título de honra. O Cita que possui taisguardanapos é considerado valente e destemido, e quanto maioro número desses troféus, maior é a consideração de que gozaentre os seus. Muitos cosem os fragmentos de pele humana,como as capas dos pastores, e fazem delas vestuários. Outrostambém esfolam até as unhas a mão direita do inimigo, fazendoda pele bainha para as aljavas. A pele humana é, realmente,espessa e brilhante, e de todas a mais notável pela brancura.Outros há, ainda, que esfolam homens inteiros, e depois deespichar a pele em pedaços de madeira, colocam-na sobre seuscavalos.

LXV — As cabeças, não de todos os inimigos, mas dosmais famosos, são tratadas da seguinte maneira: serram o crânioacima das sobrancelhas e limpam-no. Os pobres contentam-seem revesti-lo de um pedaço de couro, sem ornato algum; osricos não só o recobrem com pele de boi, como o douram pordentro, dele servindo-se, à semelhança de uma taça, para beber.Fazem o mesmo com a cabeça dos parentes próximos se, depoisde alguma disputa com eles, levam a melhor. A decisão dacontenda tem de ser feita perante o rei. Se um estrangeiro decategoria visita o país apresentam-lhe esses crânios,relatando-lhe como venceram aqueles a que eles pertenceram,ainda que se trate de parentes, constituindo isso motivo devaidade e classificando tal procedimento como ações de mérito.

LXVI — Cada governador cita dá anualmente um festimem seu distrito ou província, no qual é servido vinho misturadocom água, numa cratera. Todos os que se podem vangloriar de

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haverem matado inimigos em combate bebem desse vinho; osque nada fizeram de semelhante estão privados desse direito, epermanecem à parte, em situação sumamente humilhante. Osresponsáveis pela morte de grande número de inimigos bebemem duas taças ao mesmo tempo.

LXVII — Os adivinhos pululam entre os Citas, eservem-se de varinhas de salgueiro para exercer seu mister.Trazem sempre consigo feixes dessas varinhas, e quando sãochamados a predizer o futuro, depositam-nos em terra,desamarram-nos e vão separando as varinhas, uma a uma.Enquanto fazem a predição vão retomando as varinhas, tambémuma a uma, e enfeixando-as novamente. Aprenderam com seusantepassados essa forma de predição. Os Enareus, homensefeminados, dizem ter recebido de Vênus esse dom. Servem-se,para exercer a arte, da casca da tília: cortam-na em três pedaços,que enrolam nos dedos e depois desenrolam, predizendo, emseguida, o futuro.

LXVIII — Se o rei dos Citas cai doente, manda buscartrês dos mais famosos adivinhos que praticam a arte da maneiraque acabo de expor. Convidados a explicar, servindo-se dosseus dons, a razão do mal e o meio de combatê-lo, elesgeralmente declaram que a razão está em haver tal ou qualindivíduo, cujo nome declinam, feito um juramento falso,invocando os Lares do palácio. Os Citas, com efeito, juram comfreqüência pelos Lares do palácio real quando querem fazer umprotesto solene. Apontado o acusado, é este levado preso pelosbraços à presença do rei. Os adivinhos, então, dizem-lhe quepela sua arte divinatória estão certos de haver ele jurado emfalso pelos Lares do palácio, tornando-se, assim, a causa daenfermidade do soberano. Se o acusado nega o crime emostra-se indignado com a imputação, o soberano chama outrostantos adivinhos, e se estes convencem do perjúrio pelasmesmas regras divinatórias, manda cortar incontinênti a cabeçado acusado, confiscando-lhe os bens em proveito dos adivinhos.

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Se os adivinhos chamados em segundo lugar declaram inocentea pessoa indigitada, o soberano faz vir outros, depois maisoutros, e se o réu for inocentado pela maioria, a sentença que oabsolve traz a condenação à morte dos primeiros adivinhos.

LXIX — Vejamos como é executada a sentença impostaa esses adivinhos: os executores enchem de pedacinhos demadeira uma carroça puxada por bois e sobre eles colocam osadivinhos, com as mãos amarradas atrás das costas,amordaçados e com os pés amarrados. Em seguida, ateiam fogoà madeira e espantam os bois. Muitos desses animais morremcom os adivinhos; outros se salvam, embora chamuscados. Éassim que os Citas procedem nas sentenças de morte contra osadivinhos que não tiveram seu parecer aprovado no julgamentode casos dessa e de outra natureza, sendo, por conseguinte,considerados falsos adivinhos.

LXX — O rei da Cítia manda matar os filhos doscondenados à morte, poupando, porém, as filhas. Quando osCitas estabelecem um pacto, eis como procedem: despejamvinho numa grande taça de barro, e os contratantes, fazendopequenas incisões no corpo com uma faca ou espada, vertem alium pouco do seu próprio sangue, depois do que mergulham nataça uma cimitarra, flechas, um machado e um dardo.Terminada a cerimônia, fazem longas preces e bebem parte doconteúdo da taça, e depois deles, as pessoas presentes de maisalta categoria, uma a uma(8).

LXXI — Os túmulos dos reis citas acham-se no país deGerro, no ponto em que o Borístenes começa a tornar-senavegável. Quando morre um soberano cita, abrem ali umgrande fosso quadrado para receber o cadáver. O corpo dofalecido é untado com cera, e o ventre, depois de aberto elimpo, enchem-no de pedra esmigalhada, de essências e desementes de aipo e de anis, recosendo-o em seguida. Feito issoconduzem o corpo num carro para outra província, onde os

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habitantes, à maneira dos Citas reais, cortam uma parte daorelha, raspam o cabelo em torno da cabeça, fazem incisões nosbraços, fendem a fronte e o nariz e passam flechas através damão esquerda. Dali, o corpo é levado, ainda de carro, para outraprovíncia, acompanhado pelos habitantes daquela por ondepassou em primeiro lugar. O soberano percorre assim, depois demorto, todas as nações submetidas ao seu domínio, até chegarao país dos Gerroneus, na parte extrema da Cítia, onde ocolocam na sepultura já preparada, sobre um leito de verdura.Lanças à guisa de estacas são fincadas em torno do corpo, sobreas quais são colocadas peças de madeira coberta com galhos desalgueiro. No espaço vazio deixado no fosso acomodam oscorpos estrangulados de uma das concubinas do rei, de umescudeiro, de um cozinheiro, de um pajem, de um dos ministrosreais, de um dos servidores, de cavalos, enfim, as premissas detodas as riquezas do soberano, inclusive taças de ouro — osCitas não conhecem nem a prata nem o cobre. Isso feito,enchem de terra o fosso e erguem, trabalhando por turnos, umcômoro elevado sobre a sepultura.

LXXII — Um ano depois da morte do soberano,escolhem entre o restante dos seus servidores os que lhe erammais úteis.

Esses servidores, diga-se de passagem, são todos denacionalidade cita, pois o rei da Cítia não tem escravoscomprados a dinheiro, fazendo-se servir pelos súditosdesignados para essa função. Estrangulam uns cinqüenta dessesservidores e um número equivalente dos seus mais beloscavalos(9), retiram-lhes as entranhas, limpam-lhes o ventre, edepois de o encherem de palha, cosem-no. Adaptando a duaspeças de madeira a metade de uma roda apoiada em terra, efazendo o mesmo com outras peças, depositam sobre essessemicírculos os cavalos, depois de lhes passarem estacas portoda a extensão do corpo até o pescoço. Os primeirossemicírculos sustentam os ombros dos animais, e os segundos,

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os flancos e as ancas, de modo que as pernas, sem apoio, ficamsuspensas. Adaptam-lhes, em seguida, uma espécie de rédea,que amarram a uma estaca, e tomando dos cinqüenta jovensestrangulados, colocam cada um deles sobre um cavalo, depoisde lhes atravessarem a espinha com uma vara, cuja extremidadeinferior se encaixa na estaca que passa através do corpo doanimal. Chegando ao local onde repousam os restos mortais dosoberano, dispõem os cinqüenta cavaleiros em torno do túmulo,retirando-se em seguida.

LXXIII — Tais as honras fúnebres que os Citas prestamaos seus soberanos. Quanto ao comum dos Citas, quando morre,seus parentes mais próximos colocam-no em uma carroça econduzem-no às casas dos que foram seus amigos em vida.Estes recebem-no, oferecendo, cada qual, um festim aos queacompanham o morto, servindo também a este as iguarias queservem aos vivos. O corpo é assim conduzido de um lado paraoutro durante quarenta dias, após o que o enterram. Quando osCitas dão sepultura a um morto, purificam-se da seguintemaneira: depois de haverem lavado e enxugado a cabeça,observam, com relação ao resto do corpo, as praxes seguintes:dobram três varas, uma de frente para a outra, e sobre elasestendem panos de lã, no meio dos quais colocam um vaso, emque depositam pedras aquecidas ao rubro.

LXXIV — Na Cítia cresce o cânhamo, que se assemelhamuito ao linho, sendo, porém, mais espesso e maior, sendo nistosuperior a este último. Essa planta se origina de si própria e dasemente que produz. Os Trácios fazem com ela vestimentas,que se confundem com as de linho, sendo necessário conhecerbem uma e outra para distingui-las.

LXXV — Os Citas tomam das sementes do cânhamo elançam-nas sobre as pedras aquecidas ao fogo. Quandocomeçam a queimar, desprendem grande quantidade de vapor,não havendo na Grécia estufa que o faça de tal forma. Os Citas

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expõem-se a esses vapores e, sentindo-se atordoados, soltamgritos e fazem imensa algazarra. Esse vapor lhes serve debanho, pois nunca se banham. Quanto às mulheres, trituramsobre uma pedra galhos de cipreste, de cedro ou da árvore doincenso, e esfregam-nos no rosto e no corpo. A espécie de pastaque assim obtêm lhes dá um cheiro agradável, e no dia seguinte,ao removê-la, sentem-se limpas e frescas.

LXXVI — Os Citas manifestam absoluta indiferençapelos costumes estrangeiros. Não adotam os de nenhum povo,sendo maior ainda sua aversão pelos dos Gregos. Anacársis, edepois dele Cílis, exemplificam bem tal ojeriza. Anacársis,tendo percorrido diversos países e mostrado por toda partegrande sabedoria, embarcou no Helesponto para retornar àpátria. Aportando em Cizico, na ocasião em que os habitantesestavam celebrando, com grandes solenidades, a festa da mãedos deuses, fez promessa de, se voltasse são e salvo à pátria,oferecer à deusa sacrifícios com o mesmo rito e cerimonial quehavia presenciado em Cizico, e instituir, em louvor à mesma, avigília da festa. Ao chegar à Hiléia, região da Cítia,inteiramente coberta de árvores de toda espécie e situada nasproximidades da Passagem de Aquiles, celebrou a festa emhonra à deusa, com pequenas imagens ligadas ao corpo e tendonas mãos um tamboril. Um cita, vendo-o naquelas condições,foi logo denunciá-lo ao rei Sáulio. O soberano foi, ele próprio,certificar-se do fato, e encontrando Anacársis ainda entregue àcelebração da festa, matou-o com uma flechada. Ainda hoje, sefalarmos de Anacársis aos Citas, eles fingem não conhecê-lo,somente por ter ele viajado pela Grécia e adotado costumesestrangeiros. Ouvi Timneu, tutor de Ariapito, dizer queAnacársis era tio de Idantirso, rei dos Citas, por parte de pai, efilho de Gniro, neto de Lico e bisneto de Espargapito. Se, pois,Anacársis pertencia a essa estirpe, deduz-se ter sido ele mortopelo próprio irmão. Idantirso era, com efeito, filho de Sáulio,responsável pela morte de Anacársis.

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LXXVII — Entretanto, os habitantes do Peloponeso sereferem ao fato de outra maneira. Dizem que Anacársis, tendosido enviado pelo rei dos Citas a países estrangeiros, tornou-sediscípulo dos Gregos; e de volta à pátria, disse ao soberano quetodos os povos se aplicavam às artes, exceto os Lacedemônios,mas que só estes cultivavam a arte de falar e de responder commoderação e prudência. Considero esta história pura invençãodos Gregos. Anacársis foi realmente morto da maneira a quenos referimos, e teve esse triste fim por haver praticadocostumes estrangeiros e mantido relações com os Gregos.

LXXVIII — Muitos anos depois, Cílis, filho deAriapito, rei dos Citas, teve a mesma sorte. Ariapito possuíavários filhos, mas tivera Cílis de uma mulher estrangeira, dacidade de Ístria, que lhe ensinou a língua e as letras gregas.Algum tempo depois, foi ele morto à traição por Espargapito,rei dos Agatirsos. Cílis, subindo ao trono, desposou Ópia, denacionalidade cita, viúva de seu pai e da qual o falecido reitivera um filho de nome Órico.

Embora Cílis se tornasse rei dos Citas, os costumes daCítia não lhe agradavam absolutamente, inclinando-se ele paraos dos Gregos, tanto mais que havia sido educado no meiodestes desde tenra idade. Por isso, todas as vezes que conduziao exército cita à cidade dos Boristênidas, cujos habitantes sediziam originários de Mileto, deixava-o diante da cidade, e logoque nela entrava, mandava fechar as portas. Trocava, então, otraje cita por um grego e, assim vestido, passeava pela praçapública, sem ninguém a acompanhá-lo. Enquanto isso,revezavam-se as sentinelas nas portas, para que nenhum cita opercebesse em tais vestes. Além de outros costumes gregos, queele adotava nessa ocasião, reproduzia-lhes as cerimônias nossacrifícios aos deuses. Depois de haver permanecido na cidadeum mês ou mais, retornava aos trajes citas e ia reunir-se aoexército. Procedia, freqüentemente, dessa forma. Mandoutambém construir um palácio em Borístenis e desposou uma

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filha do país.

LXXIX — Os fados, tendo decidido a perda de Cílis, eiso que aconteceu: O soberano desejou fazer-se iniciar nosmistérios de Baco. Quando tinha início a cerimônia e iamcolocar-lhe nas mãos os objetos sagrados, deu-se um fatoverdadeiramente prodigioso. Havia em Borístenis um palácio,que o próprio soberano mandara erigir. Era um vasto e soberboedifício, em torno do qual viam-se esfinges e grifos de mármorebranco. O deus fulminou-o em sua cólera, reduzindo-o a cinzas.Cílis nem por isso interrompeu a cerimônia iniciada. Os Citasreprovam aos Gregos a celebração de bacanais, e julgamcontrária à razão a idéia de um deus que leva os homens a taisextravagâncias. Logo que Cílis se iniciou nos mistérios deBaco, um habitante de Borístenis dirigiu-se secretamente aoexército cita, dizendo aos soldados: “Zombais de nós porque,celebrando bacanais, o deus de nós se apodera. Esse deusapossou-se também do vosso rei; Cílis rende culto a Baco, e odeus lhe perturba a razão. Se não acreditais no que digo,segui-me, que eu vo-lo mostrarei”. As figuras maisrepresentativas da nação seguiram-no. O delator levou-assecretamente a uma torre, de onde elas viram passar Cílis e seugrupo, celebrando as bacanais. Considerando essa condutapouco digna e perigosa para a nação, os Citas levaram o fato aoconhecimento de todo o exército.

LXXX — Quando Cílis voltou para o palácio, seussúditos revoltaram-se e proclamaram em seu lugar Octamasada,seu irmão e filho da filha de Teres. Sabendo da revolta e domotivo que a determinara, o soberano procurou refúgio naTrácia; mas Octamasada, à frente de um exército, foi em suaperseguição. Ao chegar às margens do Íster, os Tráciosvieram-lhe ao encontro; e quando estava prestes a travar-se abatalha, Sitalces enviou um arauto a Octamasada, paradizer-lhe: “Por que precisaremos nós ambos expor-nos à sortedas armas? És filho de minha irmã e tens meu irmão em teu

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poder. Se mo entregares, eu te entregarei Cílis, sem que teexponhas aos riscos de uma batalha”. O irmão de Sitalcesestava, realmente, refugiado junto a Octamasada.

O príncipe aceitou a proposta; entregou o tio por partede mãe a Sitalces e recebeu, em troca, o irmão, Cílis. Realizadaa transação, Sitalces retirou-se com suas tropas, enquanto onovo rei dos Citas mandava cortar a cabeça de Cílis, ali mesmoonde se encontravam.

Tal a intransigência com que agem os Citas naobservância de seus próprios costumes e o rigor com que punemos que seguem, nesse terreno, os estrangeiros.

LXXXI — Quanto à população da Cítia, jamais pudesaber ao certo o seu número. Dizem uns que o país é muitopovoado; outros que, se considerarmos apenas os verdadeirosCitas, seu número é bastante reduzido. Vejamos, porém, o queme foi dado observar pessoalmente.

Entre o Borístenes e o Hípanis existe um cantãodenominado Exampeu, do qual fiz menção um pouco atrás, aoreferir-me a uma fonte cujas águas muito amargas alteramcompletamente as do rio Hípanis, tornando-as imprestáveis parabeber. Há ali um vaso de bronze seis vezes maior que a crateraexistente na embocadura do Ponto Euxino, dádiva feita porPausânias, filho de Cleômbroto. Esse vaso de bronze comportao volume de seiscentas ânforas e tem seis dedos de espessura.Os habitantes da região dizem ter sido ele fabricado com pontasde flechas. Ariantas, seu soberano, desejando saber o númeroexato de seus súditos, ordenou a todos os Citas que trouxessem,cada um, uma ponta de flecha, sob pena de morte; e foi daimensa quantidade de pontas de flechas reunida que foifabricado o vaso de bronze, mandado colocar pelo soberano nolugar chamado Exampeu, como um monumento por ele legadoà posteridade.

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LXXXII — Na Cítia nada existe de maravilhoso senãoos rios que a banham. Esses rios são de considerável volume eem grande número. Todavia, além dessas soberbas correntesd’água e de suas imensas planícies, a Cítia possui algo curioso eque atrai a atenção daqueles que a visitam. Trata-se da marca dopé de Hércules, num rochedo perto de Tiras. Essa marcaassemelha-se à do pé de um homem, medindo, porém, doiscôvados de comprimento. Retornemos agora ao assunto de queme propus tratar no começo deste livro.

LXXXIII — Dario fez grandes preparativos para aguerra contra os Citas; despachou emissários para todos osrecantos do país, ordenando, a uns, a organização de umexército de terra; a outros, o equipamento de uma frota; aoutros, enfim, a construção de uma ponte sobre o Bósforo daTrácia. Entretanto, Artábano, filho de Histaspes e irmão deDario, não aprovava a idéia do soberano de atacar a Cítia.Chamou-lhe a atenção para a pobreza daquele povo e para aspoucas vantagens que lhe adviriam de uma tal guerra; masquando viu que suas advertências, embora sensatas, nenhumefeito produziam no espírito de Dario, não insistiu mais.Concluídos os preparativos, o soberano, à frente do seuexército, partiu de Susa.

LXXXIV — Quando as tropas se punham em marcha,um persa, de nome Ébaso, suplicou a Dario que deixasse ficarconsigo um dos seus três filhos que tomavam parte naexpedição. O soberano respondeu-lhe que, em vista de umpedido tão moderado e por tratar-se de um amigo, deixar-lhe-ia,não apenas um, mas os três. O persa ficou encantado com aresposta e satisfeitíssimo por terem os seus filhos sidodispensados; mas o soberano mandou matar os jovens,abandonando-os no local onde foram executados.

LXXXV — Dario dirigiu-se de Susa a Calcedônia, noBósforo, onde havia sido construída a ponte. Ali embarcou,

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rumando para as ilhas Ciâneas, que eram outrora errantes, adarmos crédito aos Gregos. Dirigindo-se ao templo, alisentou-se, pondo-se a tecer considerações em torno do PontoEuxino. Esse mar é de todos o mais digno de nossa admiração.Mede onze mil e cem estádios de extensão, por três mil etrezentos na sua maior largura. Mede a embocadura desse marquatro estádios de largura por, mais ou menos, vinte e seis decomprimento. É o estreito de Bósforo. Foi ali que construíram aponte. O Bósforo estende-se até o Propôntide, que medequinhentos estádios de largura, por mil e quatrocentos decomprimento, desembocando no Helesponto, que, no seu pontomais estreito, não mede mais de sete estádios de largura porquatrocentos de comprimento. O Helesponto comunica-se comum vasto mar chamado Egeu.

LXXXVI — As dimensões desses mares foram obtidasda seguinte maneira: nos dias longos um navio cobre, digamos,cerca de setenta mil braças por dia e sessenta mil por noite. Ora,da confluência do Ponto Euxino ao Fásis, onde apresenta a suamaior extensão, há nove dias e oito noites de navegação, o queperfaz um total de um milhão e cento e dez mil braças, ou sejamonze mil e cem estádios. De Síndica a Temiscira, noTermodonte, onde o Ponto Euxino é mais largo, contam-se trêsdias e duas noites de navegação, perfazendo trezentas e trintamil braças ou três mil e trezentos estádios. Foi baseando-menesses cálculos que obtive as dimensões do Ponto Euxino, doBósforo e do Helesponto. O Palos-Meótis vai ter ao PontoEuxino e não é muito maior do que esse mar. Chamam-no mardo Ponto.

LXXXVII — Depois de haver feito um reconhecimentodo Ponto Euxino, Dario retornou por mar à ponte de batéisconstruída por Mândrocles de Samos. Examinou também oBósforo, à margem do qual mandou levantar duas colunas depedra branca, fazendo gravar numa, em caracteres assírios, e naoutra, em caracteres gregos, o nome de todas as nações que

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figuravam na expedição. Ora, no exército que reunira estavamrepresentados todos os povos submetidos ao seu domínio, numtotal de setecentos mil homens, inclusive a cavalaria, mas semcontar a frota de seiscentos veleiros.

Depois da expedição dos Persas à Cítia, os Bizantinostransportaram as duas colunas para sua cidade e colocaram-nasno templo de Diana Ortosiana, com exceção de uma pedra poreles deixada junto ao templo de Baco, em Bizâncio, coberta decaracteres assírios. De resto, o ponto do Bósforo onde Dariomandou construir a ponte é, ao que me parece, a metade dadistância entre Bizâncio e o templo, situado na confluência doPonto Euxino.

LXXXVIII — Satisfeito com a ponte, Dario cumulouMândrocles de Samos, seu construtor, de ricos presentes. Com oproduto de alguns desses presentes Mândrocles mandou fazerum quadro representando a ponte do Bósforo e onde apareciaDario sentado no trono, vendo desfilar suas tropas. Ofereceuesse quadro ao templo de Juno(10), com a seguinte inscrição:“Mândrocles consagrou a Juno esta obra em memória da pontede batéis que construiu para unir as duas margens do Bósforo.Assim, realizando o desejo do rei Dario, adquiriu para si mesmouma coroa, e para Samos, a glória”.

LXXXIX — Dario, tendo recompensado Mândroclespelo seu notável trabalho, passou para a Europa. Tinhaordenado aos Iônios que velejassem para o Ponto Euxino, até oÍster, e lançassem uma ponte sobre esse rio quando alichegassem, aguardando a sua chegada. Os Iônios, os Eólios e oshabitantes do Helesponto conduziam as forças navais. A frotadobrou as Ciâneas, rumando diretamente para o Íster; e depoisde subir esse rio durante dois dias, do mar até o ponto onde elese divide em diversos braços formando outras tantasembocaduras, puseram-se os marinheiros a construir a ponte.Dario, atravessando o Bósforo pela ponte de batéis, continuou

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em direção à Trácia, e ao chegar às nascentes do Tearos aliacampou durante três dias.

XC — Os povos que habitam as margens desse riopretendem serem suas águas, umas quentes e outras frias, degrande eficiência contra várias moléstias, curando,principalmente, os homens e os cavalos da sarna. Suasnascentes acham-se no mesmo rochedo, de onde o rio sai emtrinta e oito braços, e estão situadas a igual distância da cidadede Hereo, — localizada perto de Perinto e de Apolônia —cidade situada no Ponto Euxino, a dois dias de viagem dessasduas localidades. O Tearos desemboca no Contadesdo, oContadesdo no Agrianes, o Agrianes no Ebro, e o Ebro no mar,perto da cidade de Enos.

XCI — Chegando às nascentes do Tearos, Dario, comojá dissemos, ali ergueu acampamento. Tão encantado ficou coma beleza e majestade desse rio, que mandou erigir no local umacoluna com esta inscrição: “As nascentes do Tearos fornecem asmelhores e as mais belas águas do mundo; Dario, filho deHistaspes, o melhor e o mais belo de todos os homens, rei daPérsia e de toda a terra firme, marchando contra os Citas,chegou às suas margens”.

XCII — Partindo dali, foi ter às margens de um outro riochamado Artisco, que atravessa o país dos Odrísios. Indicandoàs tropas um determinado local, ordenou a cada soldado quelançasse uma pedra ali ao passar. A ordem foi executada, e oexército, deixando no local um grande monte de pedras,continuou a marcha.

XCIII — Os Getas, que se dizem imortais, foram oprimeiro povo a ser subjugado pelo rei persa, antes de haveratingido o Íster, seguindo-se os Trácios de Salmidéssia e os quehabitam ao norte de Apolônia e da Mesâmbria, que se renderamsem opor a mínima resistência. Os Getas, por uma estúpidateimosia, colocaram-se na defensiva, mas foram batidos ali

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mesmo e reduzidos à escravidão. É esse povo o mais bravo e omais justo entre os Trácios.

XCIV — Os Getas julgam-se imortais e pensam que osque morrem vão para junto do deus Zálmoxis, que algunsacreditam ser o mesmo que Gebelêizis. De cinco em cinco anossorteiam um dentre eles para levar notícias ao deus, e dizer-lhedas suas necessidades. Eis como fazem a deputação: três dentreeles são encarregados de manter a respectiva azagaia de pontapara cima, enquanto outros, tomando pelos pés e pelas mãos oque deve ser enviado a Zálmoxis, jogam-no para cima, demaneira a cair sobre as aguçadas pontas. Se ele morre dosferimentos recebidos, acreditam que o deus lhe foi favorável; senão morre, acusam-no de mau. Depois de lançarem sobre ele asmaiores acusações e injúrias, escolhem outro, repetindo omesmo processo. Esses Trácios têm o costume de lançar flechascontra o céu quando troveja ou relampeja, como para ameaçar odeus que assim se manifesta, pois estão persuadidos de que nãoexiste outro deus senão o que eles adoram.

XCV — Ouvi, entretanto, os Gregos que habitam oHelesponto dizerem que Zálmoxis era um homem, tendo vividoem Samos como escravo de Pitágoras, filho de Mnesarco.Tendo obtido a liberdade, acumulara grandes riquezas, com asquais voltara ao seu país. Observando a vida infeliz e grosseirados Trácios, ele, que tinha sido educado segundo os costumesdos Iônios e contraído com os Gregos, e particularmente comPitágoras, um dos mais célebres filósofos da Grécia, o hábito depensar mais profundamente do que seus compatriotas, mandouconstruir um soberbo recinto, onde oferecia festas aos grandesda nação. Em meio ao banquete falava-lhes, persuadindo-os deque nem ele, nem os seus convivas, nem os seus descendentesjamais morreriam, mas que iriam para um lugar ondedesfrutariam, eternamente, toda sorte de bens. Enquanto assimprocedia perante seus compatriotas, entretendo-os com essesdiscursos, construía em sigilo um subterrâneo. Concluído este,

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esquivou-se da vista dos Trácios e desceu ao mesmo, ondepermaneceu cerca de três anos. Foi lamentado e chorado comomorto. Finalmente, passado esse período reapareceu aos olhosde todos, convencendo-os, com esse artifício, de tudo que lheshavia dito.

XCVI — Não rejeito nem admito o que se conta deZálmoxis e do esconderijo subterrâneo, mas penso ter ele vividomuito antes de Pitágoras. Em todo caso, trate-se de um homemou de um deus, eis o que concerne a Zálmoxis. Quanto aosGetas que o cultuavam da maneira a que me referi, subjugadospelos guerreiros persas, acompanharam a expedição.

XCVII — Chegando às margens do Íster com suasforças de terra, Dario fê-las passar para o outro lado do rio,ordenando aos Iônios que destruíssem a ponte e osacompanhassem com todos os componentes da frota. Quando osIônios se preparavam para executar essas ordens, Coes, filho deErxandro, que comandava os Mitilenos, pedindo permissão aDario para externar seu modo de ver, falou-lhe nestes termos:“Senhor, já que ides levar a guerra a um país onde não há nemterras cultivadas nem cidades, deixai permanecer a ponte talcomo se encontra; ordenai apenas aos que a construíram, queaqui fiquem montando guarda. Dessa forma, quer encontremosos Citas e os vençamos, como é nossa esperança, quer nãoconsigamos encontrá-los, poderemos retirar-nos com segurança.Não é que eu receie sejamos batidos pelos Citas, mas por temerque, não podendo encontrá-los, fiquemos expostos a perigoserrando pelos desertos. Dir-se-á, talvez, que falo por mim, como desejo de ficar aqui; mas, senhor, satisfeito por vos terproposto este alvitre, declaro-me disposto a acompanhar-vos, ea graça que vos peço é a de não me deixardes aqui”.

Dario, encantado com essas palavras, respondeu-lhe:“Filho de Lesbos, quando eu estiver de regresso, são e salvo,aos meus Estados, depois desta expedição, apresenta-te a mim,

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a fim de que eu te recompense dignamente pelo bom conselhoque acabas de dar-me”.

XCVIII — Assim falando, o soberano fez sessenta nósnuma correia(11), mandou chamar os tiranos da Iônia e fez-lheseste discurso: “Iônios, mudei de opinião no que se refere àponte. Tomai esta correia e atentai bem para o que vou dizer:logo que eu partir para a Cítia, começai a desfazer, cada dia, umdestes nós. Se eu não estiver de regresso quando já houverdesdesatado todos, podeis voltar para a vossa pátria. Quanto àponte, não será destruída, e espero que tudo façais paradefendê-la e conservá-la durante o período estabelecido.Prestar-me-eis, com isso, um grande serviço”. Dito isso, Dariopôs-se em marcha com o exército.

XCIX — A Trácia tem à sua frente a parte da Cítia quese estende para o mar. No ponto em que termina o golfo daTrácia começa a Cítia. O Íster atravessa uma certa extensão dopaís, para lançar-se no mar, a sudeste.

A antiga Cítia está situada ao sul, prolongando-se até acidade de Carcinítis. A região para além da cidade, na direçãodo mar, é montanhosa, sendo ocupada pela nação táurica, que seestende até a cidade do Quersoneso-Traquéia, à beira-mar, aleste. Os confins da Cítia limitam-se com a Ática em doispontos; um pelo mar que fica ao sul, e o outro pelo que fica aleste. Os Tauriscos estão, com relação a essa parte da Cítia, namesma posição em que estaria com relação aos Atenienses umoutro povo que habitasse o extremo do promontório Súnio, quese estende do burgo de Tórico ao de Anaflisto, avançando mar adentro. Tal a situação da Táuride; mas para melhor informar osque nunca costearam aquela parte da Ática vou explicar isso deoutra maneira: basta que se suponha que uma outra nação, semser a dos lapígios, esteja situada no promontório de Lapígia, acomeçar do porto de Brentésio, dividindo esse promontório emduas partes, dali até Tarento. De resto, falando desses dois

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promontórios é como se eu falasse de vários outros aos quais aTáuride se assemelha.

C — Além da Táuride vivem os Citas que ocupam aregião ao norte daquele país e a que se estende para o mar quefica a leste, bem como para as costas ocidentais do BósforoCimério e do Palos-Meótis, até o Tánais, rio que desembocanuma enseada do Palos. Seguindo depois o Íster e remontandopelo meio das terras, a Cítia aparece limitada primeiramentepelo país dos Agatirsos, em seguida pelo dos Nêuridas, depoispelo dos Andrófagos, e, finalmente, pelo dos Melanclenos.

CI — A Cítia, tendo a forma tetragonal, dois dos seuslados estendendo-se ao longo do mar, o espaço que ocupa nomeio das terras é perfeitamente igual ao que fica ao longo dacosta. Com efeito, do Íster ao Borístenes há uma distânciaequivalente a dez dias de viagem; do Borístenes aoPalos-Meótis, a mesma distância; e do mar, subindo pelo meiodas terras até o país dos Melanclenos, ao norte da Cítia, adistância equivale a vinte dias de marcha. Calculando-se emduzentos estádios a distância vencida num dia de jornada,tem-se que a Cítia mede quatro mil estádios de través, ao longoda costa, e outros quatro mil numa reta pelo meio das terras.

CII — Considerando que não poderiam, com as forçasde que dispunham, vencer em batalha campal um exército tãonumeroso como o de Dario, os Citas enviaram embaixadoresaos seus vizinhos, solicitando-lhes auxílio. Os reis dessasnações reuniram-se para deliberar sobre as medidas a tomarcontra o exército que vinha invadir a Cítia. Eram os seguintesesses soberanos: o dos Tauriscos, o dos Agatirsos, o dosNêuridas, o dos Andrófagos, o dos Melanclenos, o dos Gelões,o dos Budinos e o dos Saurómatas.

CIII — Os Tauriscos têm costumes bem peculiares.Entre eles vale citar a imolação, à virgem, dos estrangeiros quevão ter às costas do seu país e de todos os Gregos que ali

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chegam e que lhes caem nas mãos. Depois das cerimôniaspreliminares habituais, deitam a vítima por terra com umapancada na cabeça. Há quem diga que eles degolam-na emseguida, pregando a cabeça numa cruz e precipitando o corpodo alto do rochedo onde se ergue o templo. Outros concordamcom essa versão no que se refere à cabeça, mas asseguram queeles enterram o corpo da vítima, em vez de lançá-lo do alto dorochedo. Os próprios Tauriscos afirmam que a deusa a quemdedicam esse sacrifício é Efigênia, filha de Agamémnon.Quanto à maneira de tratar os inimigos, se um Tauriscoaprisiona um adversário em combate, corta-lhe a cabeça eleva-a para casa. Coloca-a, depois, na ponta de uma vara maisalta do que o teto e mesmo do que a chaminé. Erguem dessaforma a cabeça do prisioneiro, para que — dizem eles — lhesguarde a casa.

CIV — Os Agatirsos trazem quase sempre ornamentosde ouro e são os mais efeminados de todos os homens.Servem-se em comum das mulheres, a fim de ficarem todossempre unidos por laços de consangüinidade, e para que,formando todos, por assim dizer, uma só família, não fiquemsujeitos nem ao ódio, nem ao ciúme. Quanto aos seus outroscostumes, estão muito de conformidade com os dos Trácios.

CV — Os Nêuridas observam os mesmos costumes queos Citas. A geração anterior à expedição de Dario foi forçada adeixar o país por causa de uma multidão de serpentes que alisurgiu, vinda, em grande parte, dos desertos situados ao norte.A região ficou de tal maneira infestada de tais répteis, que oshabitantes se expatriaram, indo para o país dos Budinos. Dizemque os Nêuridas dão-se à prática da feitiçaria. A dar crédito aosCitas e aos Gregos estabelecidos na Cítia, cada Nêurida setransforma, uma vez por ano e durante alguns dias, em lobo,voltando depois à forma humana. Por mais que os Citas oafirmem, não posso crer em tal coisa, que, a meu ver, não passade fantasia, embora eles cheguem mesmo a jurar sobre a sua

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veracidade.

CVI — Não há homens que possuam hábitos maisselvagens do que os Andrófagos. Não conhecem nem a lei, nema justiça, e são nômades. Seus costumes assemelham-se muitoaos dos Citas, mas falam um idioma próprio. De todos os povosde que acabo de falar são os únicos a comerem carne humana.

CVII — Os Melanclenos se trajam de preto, de onde onome que possuem. Seguem os costumes dos Citas.

CVIII — Os Budinos formam uma grande e numerosanação. Têm os olhos extraordinariamente azuis e a pelevermelha. Há no país uma cidade toda construída de madeira;chamam-na Gelono. Suas muralhas são também de madeira emuito altas, medindo cada face três estádios de comprimento.As casas e os templos são igualmente de madeira. Entre ostemplos, contam-se alguns consagrados aos deuses gregos. Sãoconstruídos à maneira dos Gregos e ornados de estátuas, altarese capelas de madeira. De três em três anos celebram-se ali festasem louvor a Baco.

Também os Gelos são gregos de origem. Expulsos dascidades de comércio, estabeleceram-se no país dos Budinos.Seu idioma é uma mistura de grego e de cita.

CIX — Os Budinos não adotam a mesma maneira deviver e não falam a mesma língua dos Gelos. São autóctones,nômades e os únicos da região a comerem vermes. Os Gelos, aocontrário, cultivam a terra, alimentam-se de trigo, possuemjardins e não se assemelham aos Budinos, nem pela fisionomia,nem pela cor. Os Gregos se equivocam quando chamam osBudinos de Gelos.

O país inteiro é coberto de árvores de toda espécie, e nocantão onde elas existem em maior número encontram-se umvasto lago e um pântano marginado de caniços. Os habitantes

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caçam nesse lago lontras, castores e uns animais de focinhoquadrado, cuja pele serve para fazer mantas, e os testículosproduzem excelente efeito no tratamento das doenças do útero.

CX — Quanto aos Saurómatas, eis o que se diz sobreeles: Quando os Gregos combateram contra as Amazonas, queos Citas chamam Aiórpatas, nome que os Gregos traduzem paraAndróctones (que matam homens), pois aior em cita significa“homem”, e pata quer dizer “matar” — quando os Gregos, diziaeu, deram combate às Amazonas, derrotando-as às margens doTermodonte, conta-se que levaram consigo, em três navios,todas as que puderam aprisionar. Ao chegarem em alto mar, asprisioneiras atacaram seus vencedores, reduzindo-os a pedaços.Como, porém, nada entendiam de navegação e não sabiam fazeruso do leme, das velas e dos remos, abandonaram-se ao sabordas vagas, indo ter, finalmente, a Cremnes, no Palos-Meótis.Cremnes faz parte do território dos Citas livres. As Amazonasdesembarcaram ali e avançaram pelo meio das terras habitadas.Apoderando-se do primeiro haras que encontraram no caminho,montaram nos cavalos e puseram-se a saquear as terras dosCitas.

CXI — Os Citas mostraram-se admirados ante aquelesinimigos, cujas vestes lhes eram desconhecidas, bem como alíngua que falavam. Ignoravam também a que naçãopertenciam, e na sua surpresa não podiam imaginar de ondeteriam vindo. Enganados pela uniformidade da estatura e portedos invasores, supuseram, a princípio, tratar-se de homens, enessa convicção lhes deram combate; mas descobrindo, pelosmortos que ficaram em seu poder depois da luta, tratar-se demulheres, resolveram, em conselho reunido especialmente paraesse fim, não matar mais nenhuma e, em lugar disso, enviar osmais jovens dentre eles, em número correspondente ao dasestranhas guerreiras, com ordens para estabelecer acampamentoperto delas e imitá-las em todas as suas ações, fugindo, em vezde aceitar o combate, quando elas os atacassem, e retornando

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prontamente ao acampamento quando cessassem depersegui-los. Essa resolução dos Citas foi ditada pelo desejo depossuírem filhos de tão belicosas mulheres.

CXII — Os jovens citas seguiram à risca as instruçõesrecebidas; e as Amazonas, reconhecendo que eles não tinhamvindo com a intenção de hostilizá-las, deixaram-nos tranqüilos.Entretanto, os dois acampamentos se iam aproximando cada vezmais, dia a dia. Os jovens citas não tinham, como as Amazonas,senão suas armas e seus cavalos, e viviam, como elas, da caça eda pilhagem.

CXIII — Percebendo que, perto do meio-dia, asAmazonas se afastavam do acampamento, sozinhas ou de duasem duas, para satisfazerem suas necessidades naturais, os Citaspuseram-se a imitá-las. Um deles teve oportunidade deaproximar-se de uma delas, isolada das companheiras, e ajovem, longe de repeli-lo, concedeu-lhe seus favores. Como nãopodia falar-lhe, pois que não se entendiam nos respectivosidiomas, a jovem disse-lhe por sinais para retornar no diaseguinte ao mesmo lugar, com um de seus companheiros, queela traria, também, uma companheira. Regressando aoacampamento, o jovem cita relatou sua aventura; e no diaseguinte voltou com um companheiro ao local, onde encontroua amazona a esperá-lo com uma de suas companheiras.

CXIV — Informados do que se passava, os outrosjovens procuraram aproximar-se das outras Amazonas, e, feita afusão dos dois acampamentos, cada um tomou por esposaaquela de quem havia recebido favores. Os Citas encontrarammaior dificuldade em aprender a língua de suas companheiras,do que estas a deles; mas quando, finalmente, começaram aentender-se verbalmente, os jovens assim lhes falaram: “Temospais, possuímos bens, levamos outra vida; reunamo-nos ao restodos Citas e vivamos com eles. Prometemos jamais tomar outrapor esposa”.

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“Não poderíamos — responderam as Amazonas — viverem boa harmonia com as mulheres do vosso país. Seuscostumes são diferentes dos nossos: atiramos com o arco,lançamos o dardo, montamos a cavalo e não aprendemos osmisteres próprios do nosso sexo. Vossas mulheres nada dissofazem e não se ocupam senão de trabalhos femininos. Nãoabandonam suas carretas, não vão à caça e nem se afastam dolar. Por conseguinte, nossa maneira de viver jamais secoadunaria. Se quiserdes que continuemos como vossasesposas; se quiserdes agir com justiça, ide procurar vossos pais,pedi a parte dos bens que vos pertence e voltai para o nossolado, para vivermos a nossa vida”.

CXV — Aceitando as razões que lhes expunham suasjovens esposas, os Citas fizeram o que elas lhes aconselhavam,e, recolhendo a parte do patrimônio que lhes cabia, vieram aelas juntar-se novamente. “Julgamos não ser conveniente —disseram então as Amazonas — permanecermos aqui por maistempo, depois de vos havermos privado de vossos pais esaqueado vossas terras. Já que escolhestes manter-vos em nossacompanhia, nada nos impede de deixar estes lugares para irmosestabelecer-nos para além do Tánais.”

CXVI — Tendo concordado com a sugestão de suasesposas, os Citas atravessaram o Tánais, e depois de haveremjornadeado três dias para leste e outros tantos para o norte apartir do Palos-Meótis, chegaram ao país que ainda hojehabitam e onde fixaram residência. Daí o fato de as mulheresdos Saurómatas terem conservado seus antigos costumes:montam a cavalo, vão à caça, ora sozinhas, ora com os maridos.Acompanham-nos também na guerra, trajando as mesmas vestesque eles.

CXVII — Os Saurómatas adotam a língua cita, masnunca a falaram com pureza, porque as Amazonas não aconheciam senão imperfeitamente. Com relação ao casamento,

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estabeleceram uma lei segundo a qual uma mulher não poderiacontrair matrimônio enquanto não matasse um inimigo. Porisso, muitas delas, não conseguindo cumprir as disposições dalei, morrem de velhice, ainda solteiras.

CXVIII — Os embaixadores dos Citas, admitidos àassembléia dos soberanos das nações a que recorreram ante aiminência da invasão de seu país pelo exército persa,fizeram-nos conhecedores de que Dario, depois de haversubjugado totalmente os povos do outro continente, se passarapara aquele por uma ponte de batéis, construída no ponto maisestreito do Bósforo, e que tendo submetido a Trácia, transpuserao Íster com o propósito de tornar-se senhor da Cítia. “Não serájusto, — acrescentaram eles — que, conservando-vos neutros,nos deixeis perecer pelo vosso descaso em tão graveemergência. Marchemos juntos ao encontro do inimigo que estáprestes a invadir nossa pátria. Se nos negardes o vosso auxílio eformos batidos pelo inimigo, ver-nos-emos obrigados, ou adeixar nosso país, ou nele permanecer sob as condiçõesimpostas pelos invasores. Não penseis que a vossa sorte serámelhor do que a nossa e que, satisfeitos por nos teremsubmetido ao seu domínio, os Persas vos deixem tranqüilos. Suaexpedição não visa menos a vós do que a nós. Eis aqui umaprova à qual nada podereis opor: se os Persas não tivessemoutra intenção senão a de vingar-se da sujeição que lhesopusemos outrora, ter-se-iam contentado em marchar contranós, sem atacar outros povos; e com isso fariam ver ao mundoque visavam apenas os Citas. Entretanto, assim que pisaram ocontinente, foram atacando todos os povos que encontravam emseu caminho, já tendo submetido os Trácios e os Getas, nossosvizinhos”.

CXIX — Depois de ouvirem atentamente as razões dosembaixadores citas, os soberanos entraram a deliberar sobre ocaso, dividindo-se as opiniões. Os reis dos Gelos, dos Budinos edos Saurómatas prontificaram-se a auxiliar os Citas, mas os dos

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Agatirsos, dos Nêuridas, dos Melanclenos e dos Tauriscosresponderam assim à proposta: “Se não tivésseis vós, emprimeiro lugar, movido uma guerra injusta contra os Persas,vosso pedido nos pareceria razoável, e de boa vontade vosauxiliaríamos. Invadistes, porém, seu país sem nos participar,mantendo-o sob o vosso jugo enquanto assim aprouve aosdeuses. Hoje, quando os deuses impelem os Persas contra vós,nada mais fazem do que pagar-vos na mesma moeda. Quanto anós, não os ofendemos então, e não seremos hoje os primeiros aagredi-los. Se, entretanto, vierem atacar-nos, saberemosrepeli-los. Enquanto tal não se der, permaneceremos tranqüilos,pois, ao que nos parece, os Persas não visam senão os quetomaram a iniciativa de atacá-los”.

CXX — Informados dessa resposta, os Citas decidiramnão desafiar abertamente os Persas, nem oferecer-lhes batalhaem campo aberto, mas ceder terreno pouco a pouco,retirando-se sempre para diante, obstruindo as fontes queencontrassem no caminho e destruindo as plantações,dividindo-se, com esse propósito, em dois grupos. Decidiramtambém que os Saurómatas deveriam dirigir-se para os Estadosde Escopásis, e que se os Persas se voltassem para esse lado,retirar-se-iam, pouco a pouco, para o Tánais, ao longo doPalos-Meótis, e quando o inimigo se afastasse, começariam,então, a persegui-lo.

Tal o plano de defesa que essa parte dos Citas reaisdeveria seguir.

Quanto às outras duas partes, ficou combinado que amaior, sobre a qual reinava Idantirso, reunir-se-ia à terceira,governada por Taxácis, e as duas, unidas aos Gelos e aosBudinos, ficariam com um dia de avanço sobre os invasores. Deacordo com as resoluções tomadas em conselho, deveriamtambém retirar-se sempre em ordem, sem precipitações,procurando, sobretudo, atrair o inimigo para as terras dos que

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lhes haviam negado aliança, a fim de forçá-los também à guerracontra os Persas, embora contra a vontade. Deveriam, emseguida, regressar ao seu país, e até mesmo atacar o inimigo seisso lhes parecesse vantajoso.

CXXI — Tomadas essas deliberações e traçados osplanos, os guerreiros citas marcharam ao encontro de Dario,fazendo-se preceder pela elite da cavalaria. Tinham mandadoadiante as carroças que serviam de moradia às suas mulheres efilhos, aos quais haviam ordenado avançar sempre para o norte.As carroças eram acompanhadas pelos rebanhos, pois oscombatentes só levavam consigo o necessário para suasubsistência.

CXXII — Enquanto as carroças avançavam para o norte,os batedores citas descobriram os Persas a cerca de três dias dejornada do Íster. Como se achavam à distância de apenas um diade viagem daquele ponto, acamparam ali e destruíram tudoquanto brotava da terra. Logo que os perceberam, os Persassaíram em sua perseguição, procurando cortar-lhes a retirada, emarchando diretamente contra um dos três grupos de Citasreais, perseguiram-no até o Tánais. Os Citas atravessaram o rio,e os Persas, fazendo o mesmo, continuaram sua perseguição,que só cessou quando, depois de haverem percorrido o país dosSaurómatas, chegaram ao dos Budinos.

CXXIII — Na sua passagem pela Cítia e pelo país dosSaurómatas, os Persas nenhum dano causaram, porquanto oshabitantes haviam destruído de antemão tudo que existia noscampos; mas, penetrando no país dos Budinos e encontrando acidade de madeira, já inteiramente deserta, pois seus habitantesa haviam abandonado, levando tudo que puderam, atearam fogoàs casas, deixando-as em chamas. Continuando a marcha para afrente, nas pegadas do inimigo, foram ter, depois de haverematravessado as terras dos Budinos, a um deserto totalmentedespovoado. Esse deserto tem uma extensão equivalente a sete

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dias de caminhada de um extremo a outro, e está situado aonorte do país dos Tisságetas, de onde correm quatro grandesrios: o Licos, o Oaro, o Tánais e o Sírgis, que se lançam noPalos-Meótis, depois de haverem banhado as terras dos Meótis.

CXXIV — Chegando a esse deserto, Dario parou àsmargens do Oaro, onde acampou com seu exército. Mandou, emseguida, construir oito grandes fortes, distantes sessentaestádios um do outro, cujas ruínas ainda hoje subsistem.Enquanto se ocupava com esses trabalhos, os Citas que elehavia perseguido contornaram o país pelo norte e regressaram àCítia. Como o inimigo havia desaparecido totalmente, nãosendo mais assinalado em parte alguma, Dario, deixando osfortes inacabados, dirigiu-se para oeste, persuadido de que osCitas se haviam constituído numa só nação e se tinham retiradodaquele lado. Seguindo em marcha forçada, atingiu rapidamentea Cítia, onde encontrou os dois outros corpos de exército dosCitas. Lançou-se imediatamente em sua perseguição,procurando os fugitivos manterem-se sempre a um dia dedistância de seus perseguidores.

CXXV — Seguindo a tática combinada, os Citas iamatraindo Dario e seu exército para as terras daqueles que lhestinham negado auxílio. Assim foi que lançaram-seprimeiramente em direção ao país dos Melanclenos, pondo-osem sobressalto, com os Persas sempre em sua perseguição. Daliatraíram o inimigo para as terras dos Andrófagos, fazendo-osalvoroçar-se, e em seguida para as dos Nêuridas, deixando-osigualmente sobressaltados. Finalmente, desviaram-se para oterritório dos Agatirsos; mas estes, vendo seus vizinhosalarmados porem-se em fuga, enviaram aos Citas um arauto,antes que eles penetrassem em seu país, a fim de interditar-lhe aentrada, ameaçando-os de dar-lhes combate, caso insistissemem perturbá-los. Fazendo essa ameaça, os Agatirsos enviaramforças para as fronteiras, prontos a lutar pela integridade de seuterritório.

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Os Melanclenos, os Andrófagos e os Nêuridas, vendo osCitas se lançarem com os Persas sobre suas terras, tomados depânico nem sequer pensaram em defendê-las, fugindo para osdesertos, em direção ao norte. Quanto aos Citas, ante a ameaçados Agatirsos desistiram do seu intento de invadir-lhes as terras,e, deixando a Nêurida, retornaram ao seu país, onde os Persascontinuaram a persegui-los.

CXXVI — Observando a tática seguida pelos Citas, quese negavam sempre a dar-lhe combate, Dario enviou umemissário a Idantirso, soberano desse povo, com a seguintemensagem: “Ó miserável, entre os mais miseráveis dos homens!Por que foges sempre, quando está em tuas mãos oferecer-mecombate, se te julgas bastante forte para resistir? Se, aocontrário, achas que não estás em condições de te opor a mim,deixa de fugir à minha frente; entra em acordo com o teusenhor, e traz-lhe terra e água como sinal de submissão”.

CXXVII — “Rei dos Persas, — respondeu Idantirso —não é o medo que me faz fugir diante de ti, como nunca o fez nopassado diante de qualquer outro. Se não te dei combateimediatamente, foi porque, como não tememos que te apossesde nossas cidades, pois não as possuímos, e nem que causesdanos às nossas terras, já que não são cultivadas, não vemosrazão para apressarmos a batalha. Se, entretanto, queres dequalquer maneira forçar-nos a isso, aí tens os túmulos de nossospais; experimenta pô-los abaixo, e verás se combateremos ounão para defendê-los. A não ser por isso, podes estar certo deque não aceitaremos a luta. Quanto aos meus senhores, nãoreconheço outros senão Júpiter, um dos meus ancestrais, eVesta, a rainha dos Citas. Em lugar de terra e de água,enviar-te-ei os presentes que mereces. Se te orgulhas de ser meusenhor, é o caso de chorares por isso”(12). Tal a resposta dosoberano cita, transmitida pelo arauto a Dario.

CXXVIII — Ante a palavra servidão, os reis citas,

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irritados, fizeram partir os Citas sobre os quais reinavaEscopásis, em companhia dos Sauromatas que serviam comeles, para conferenciar com os Iônios que ficaram encarregadosda guarda da ponte do Íster. Quanto aos Citas quepermaneceram no país, resolveram não forçar mais os Persas acorrer de um lado para outro, mas atacá-los sempre queestivessem entregues ao repasto; e depois de terem precisadoesse momento, puseram em prática sua nova tática. Nessesataques, a cavalaria dos Citas punha sempre em fuga a dosPersas; mas esta, fugindo, retraía-se sobre a infantaria, quenunca deixava de apoiá-la. Assim, quando os Citas faziamrecuar a cavalaria inimiga, o temor aos infantes forçava-os logoa retirar-se, não deixando, todavia, de recomeçar seus ataquesdurante a noite.

CXXIX — Uma coisa surpreendente favorecia osPersas, ao mesmo tempo que prejudicava os Citas, quando estesatacavam o acampamento inimigo: era o zurrar dos jumentos eo aspecto das mulas. Como já tive ocasião de dizer, não nascemna Cítia nem jumentos nem mulas, e não se vê mesmo um sódesses animais no país, sendo a razão disso o frio que ali reina.Daí sentirem-se os cavaleiros citas tomados de pavor ante ozurrar estridente dos jumentos dos Persas. Todas as vezes quecarregavam sobre estes, se os cavalos ouviam os jumentos,enristavam as orelhas e recuavam espavoridos, pois nãoestavam acostumados nem com os gritos nem com o tipodaqueles animais. Todavia, a vantagem que de tal fato advinhapara os Persas era mínima.

CXXX — Os Citas, percebendo que os Persascomeçavam a inquietar-se por não obterem uma decisão na luta,recorreram a um artifício para fazê-los permanecer na Cítia pelomaior espaço de tempo possível e atormentá-los pela falta devíveres. Deixaram-lhes alguns rebanhos, juntamente com os queos guardavam, e retiraram-se para outro cantão, onde ficaram àespera dos acontecimentos. Os Persas precipitaram-se sobre

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esses rebanhos e deles se apoderaram.

CXXXI — Embora tal fato se repetisse várias vezes,Dario acabou por encontrar-se em extrema penúria com relaçãoao abastecimento de víveres. Sabedores disso, os soberanoscitas enviaram-lhe um arauto com presentes, que consistiamnum pássaro, um rato, uma rã e cinco flechas. Interrogado sobreo significado daqueles presentes, o emissário respondeu queapenas recebera ordens de trazê-los e regressar em seguida,cabendo a eles, Persas, descobrir-lhes o sentido, se é que tinhamsagacidade para tanto.

CXXXII — Reunindo as tropas e deliberando sobre oassunto, Dario chegou à conclusão que os Citas lhe haviamoferecido, com aqueles estranhos presentes, terra e água comosinal de submissão. Assim imaginara porque o rato nasce naterra e se alimenta de trigo, da mesma maneira que o homem; arã nasce na água; o pássaro apresenta algumas semelhanças como cavalo, e, enfim, os Citas, oferecendo-lhe as flechas, era comose estivessem rendendo-se a ele com as suas tropas. Tal asuposição do soberano persa; mas Góbrias, um dos sete quehaviam destronado o mago, chegou a uma outra conclusão, quese apressou em transmitir às tropas: “Persas, — assim falou ele— estes presentes significam que, se não voais pelos ares, comoos pássaros; se não vos escondeis debaixo da terra, como osratos; se não saltais nos pântanos, como as rãs, não tomareis aver vossa pátria, pois morrereis trespassados por estas flechas”.

CXXXIII — O grupo de Citas a que fora confiada aguarda das cercanias do Palos-Meótis e que acabava de receberordens de ir para as margens do Íster, a fim de entender-se comos Iônios, logo ao chegar à ponte por estes construída sobre orio a eles se dirigiu nestes termos: “Iônios, vimos trazer-vos aliberdade, se quiserdes ouvir-nos. Soubemos que Dario vosencarregou de guardar esta ponte durante sessenta dias, apenas,e que se não estivesse de volta nesse espaço de tempo, podíeis

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retirar-vos para a vossa pátria. Se executardes agora essa ordem,ele não terá nenhum motivo de queixa contra vós, e nem nós tãopouco. Os sessenta dias já se passaram. Por que não retornais aovosso país?” Os Iônios disseram que assim o fariam, e os Citasretiraram-se imediatamente.

CXXXIV — Tendo enviado os presentes a Dario, oresto dos Citas se pôs em ordem de batalha, frente aos Persas,numa atitude decisiva de luta. Quando tomavam posição, umalebre passou correndo velozmente entre os dois exércitos.Assim que a viram, as tropas citas puseram-se a persegui-la,fazendo grande alarido. Dario perguntou qual a causa daqueletumulto, e como lhe respondessem que eram soldados citasperseguindo uma lebre, dirigiu-se aos Persas com que mantinhamaior intimidade: “Esses homens nutrem por nós o maiordesprezo. A interpretação dada por Góbrias aos presentes quenos enviaram parece-me agora bastante lógica e justa. Parasairmos desta perigosa situação necessitamos, mais do quenunca, de um bom conselho”. “Senhor, — respondeu Góbrias— eu nada sabia com relação a este povo, a não ser o que delecontavam; mas desde que aqui chegamos passei a conhecê-lomelhor, observando a maneira com que nos tratam, zombandode nós e menosprezando nossa força. Encontramo-nos,realmente, em situação delicada. Sou, portanto, de opinião quedevemos partir antes que os Citas se lembrem de destruir aponte sobre o Íster e os Iônios tomem uma resolução fatal paranós. Logo ao cair da noite mandaremos, como de costume,acender fogos no acampamento, e depois de convencermos, portodas as maneiras, aqueles dos nossos que não estejam emcondições de efetuar longas jornadas, a permanecer aqui,deixando também presos todos os jumentos, abandonaremoseste local sem sermos pressentidos”.

CXXXV — Aceitando o conselho de Góbrias, Dario,logo que chegou a noite mandou prender os jumentos, para queseus zurros fossem ouvidos pelos Citas; ordenou que deixassem

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ficar no acampamento os doentes com aqueles cuja perda menoslhe importava; incumbiu parte de seus homens de guardar oacampamento, dizendo ir com a elite das tropas atacar oinimigo, e, mandando acender os fogos, encaminhou-seaceleradamente para o Íster. Os jumentos, sentindo-se sozinhos,puseram-se a zurrar mais forte que de costume, e os Citas,ouvindo-os, não duvidaram de que Persas ainda se encontravamno acampamento.

CXXXVI — Ao nascer do dia, os soldados abandonadospor Dario, vendo-se traídos, aliaram-se aos Citas, expondo-lhesa situação e indicando-lhes o caminho presumivelmente tomadopor Dario. Os dois grupos de Citas, reunindo-se prontamente aoterceiro, foram em perseguição dos Persas, na direção do Íster,juntamente com os Saurómatas, os Budinos e os Gelos. Como oexército persa era constituído, em sua maior parte, de tropas deinfantaria, e estas não conheciam os caminhos, enquanto que osCitas estavam a cavalo e conheciam todas as veredas e atalhos,estes últimos alcançaram a ponte muito antes dos guerreiros deDario, e sabendo que eles ainda não haviam aparecido,dirigiram-se nestes termos aos Iônios, que já se achavam emseus navios: “Iônios, o prazo que vos foi prescrito para ficaraqui já se esgotou, não havendo mais razão para permanecerdesaqui por mais tempo. Podeis destruir, sem receio, a ponte erendei graças aos deuses e aos Citas por haverdes recuperado aliberdade. Quanto àquele que era até há pouco vosso senhor,vamos tratá-lo de uma maneira que jamais pensará em fazerguerra a quem quer que seja”.

CXXXVII — Os Iônios reuniram-se para deliberar sobreo assunto. Milcíades de Atenas, o comandante e tirano doQuersoneso do Helesponto, foi de opinião que deviam seguir oconselho dos Citas e reconquistar a liberdade da Iônia, masHisteu, tirano de Mileto a isso se opôs, fazendo sentir que se elee seus companheiros reinavam nas suas cidades, era porinfluência de Dario, e que se o poderio deste fosse destruído,

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perderiam também a autoridade e seriam destituídos do poder,pois as cidades em que governavam preferiam a democracia àtirania. Os que se sentiam inclinados a aceitar a sugestão deMilcíades passaram logo, ante a exposição de Histeu, a apoiar oparecer deste.

CXXXVIII — Os que formaram ao lado de Histeugozavam da estima do soberano. Entre os tiranos do Helespontofiguravam Dáfnis de Abido, Hipoclos de Lampsaco, Herofantede Pário, Metrodoro de Preconésia, Aristágoras de Cizico eAristo de Bizâncio; entre os da Iônia: Estrátis de Quios, Eces deSamos, Leodamas da Focéia e Histeu de Mileto, que semanifestou contrário ao parecer de Milcíades. Aristágoras deCime foi o único homem ilustre a representar os Eólios noconselho.

CXXXIX — Aprovado o parecer de Histeu, ficouresolvido que seria destruída apenas uma das extremidades daponte, justamente a que ficava do lado da Cítia, e isso paramostrar aos Citas o desejo de servi-los de qualquer forma e peloreceio de que eles quisessem transpor o Íster pela ponte. Depoisde haverem combinado entre si mandar dizer aos Citas quedemolindo a ponte do lado do seu país pretendiam com issodar-lhes inteira satisfação, escolheram Histeu para falar-lhes emnome de todos. Aceitando a incumbência, Histeu assim sedirigiu aos Citas: “Citas, vosso conselho é salutar e vem muito apropósito; e como nos mostrastes o verdadeiro caminho aseguir, agimos de modo a mostrar-vos nossa disposição de vosservir como mereceis: destruímos a ponte, como podeis ver, eagora nos empenharemos com o maior ardor na reconquista denossa liberdade. Quanto a vós, enquanto concluímos ademolição da ponte, achamos conveniente que sigaisimediatamente em busca dos Persas, e encontrando-os,vingar-nos, vingando-vos também, como é justo”.

CXL — Os Citas, confiando pela segunda vez nos

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Iônios, voltaram pelo mesmo caminho em busca dos Persas,sem todavia encontrá-los. Viram, então, o grande erro quehaviam cometido destruindo as culturas e obstruindo as fontes,a fim de que o inimigo delas não se aproveitasse. Não fora isso,ter-lhes-ia sido fácil localizá-los. Desnorteados, puseram-se aprocurá-los por todos os cantões da Cítia onde havia água eforragem em abundância para os cavalos, persuadidos de queeles tinham seguido por esse lado. Os Persas, porém, haviamseguido a rota de que se tinham servido para penetrar no país,atingindo, depois de muitas dificuldades, o ponto onde tinhamatravessado o rio. Como ali chegassem já noite alta, ao verem aponte demolida julgaram que os Iônios os haviam abandonado.

CXLI — Havia no exército de Dario um egípcio de vozmuito sonora. O soberano mandou-o postar-se à margem do rioe chamar por Histeu de Mileto. Aos primeiros gritos do egípcio,Histeu atendeu prontamente ao chamado, aprestando os naviospara a passagem do exército e restabelecendo a ponte.

CXLII — Foi assim que os Persas conseguiram escaparà vingança dos Citas, enquanto estes continuavam a procurá-losinutilmente. Desde aí, passaram eles a considerar os Iônios osmais vis e os mais cobardes dos homens, dizendo que, quandoescravos, são os cativos mais fiéis ao seu senhor e incapazes defugir.

CXLIII — Dario atravessou a Trácia e chegou a Sestos,no Quersoneso, onde embarcou para passar-se para a Ásia.Antes porém, nomeou Megabizo, persa de nascimento,comandante das tropas que deixava na Europa. Certa ocasião, àmesa, em presença de seus íntimos, o soberano fez umareferência altamente honrosa a esse general. Quando sedispunha a comer romãs, logo ao abrir a primeira seu irmãoArtábano perguntou-lhe que coisa desejaria possuir em tãogrande quantidade quanto os grãos daquela fruta. Dariorespondeu que gostaria mais de possuir um número igual de

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Megabizos do que ter a Grécia sob o seu domínio. Tal foi otributo honroso que o soberano prestou às altas qualidades deMegabizo, e maior prova de confiança lhe deu ao entregar-lhe ocomando dos oitenta mil homens que deixava na Europa.

CXLIV — Uma simples frase de Megabizo tornou-lhe onome imortal entre os habitantes do Helesponto.Encontrando-se, certa vez, em Bizâncio, soube que osCalcedônios tinham construído sua cidade dezessete anos antesde os Bizantinos haverem fundado a deles. Disse-lhes, então,que deviam ser cegos, pois de outro modo não teriam escolhidopara a cidade um local tão desagradável, quando se apresentavaum outro mais belo.

Com as tropas deixadas por Dario, esse generalsubjugou todos os povos do Helesponto que não eram amigosdos Medos.

CXLV — Quase ao mesmo tempo, realizava ele umagrande expedição na Líbia. Para melhor compreensão domotivo que o levou a assim proceder mencionarei alguns fatosimportantes ligados ao acontecimento.

Os descendentes dos Argonautas, expulsos da ilha deLemnos pelos Pelasgos, que haviam arrebatado de Bráuron asmulheres dos Atenienses, abriram velas em direção àLacedemônia. Acamparam no monte Taígeto, onde acenderamfogo para aquecer-se e preparar alimentos. Os Lacedemônios,percebendo-os, mandaram perguntar-lhes quem eram e de ondevinham. Responderam serem Mineus e descendentes daquelesheróis que haviam embarcado no navio Argos e aportado aLemnos. Ante essa declaração, os Lacedemônios desejaramsaber com que propósito ali tinham vindo e por que razãoacendiam o fogo, respondendo eles que, expulsos pelosPelasgos, vinham para a terra de seus pais, como era justo, epediam aos Lacedemônios para acolhê-los e deixá-loscompartilhar não somente de suas terras, como também das

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honras e das dignidades do Estado. Os Lacedemôniosconcordaram em acolhê-los, impondo-lhes, porém, algumascondições. Tal concessão provinha, principalmente, do fato deterem os Tindáridas figurado na expedição dos Argonautas.Receberam os Mineus e deram-lhes terras, que eles distribuíramentre si. Os homens casaram-se logo, e deram a outros asmulheres que haviam trazido de Lemnos.

CXLVI — Pouco tempo depois, os Mineus começarama praticar toda sorte de insolências, querendo participar darealeza e agindo de modo contrário à lei. Os Lacedemônios,revoltados com tal procedimento, resolveram eliminá-los,mandando, para isso, prendê-los a todos. Na Lacedemônia, asexecuções são realizadas à noite, e nunca de dia. Quando osMineus estavam prestes a serem executados, suas esposas, queeram espartanas e filhas de figuras proeminentes da cidade,solicitaram permissão para entrar na prisão, a fim de vê-los efalar-lhes pela última vez. Os responsáveis pela guarda dosprisioneiros, não desconfiando de nenhum ardil, concederam alicença solicitada. Logo que se viram a sós com os maridos, asmulheres trocaram de trajes com eles, e os Mineus, assimdisfarçados, puderam escapar, retornando ao monte Taígeto.

CXLVII — Por esse tempo, Teras partia daLacedemônia para ir fundar uma colônia. Teras era filho deAutésio, que, por sua vez, era filho de Tisâmeno, neto deTersandres e bisneto de Polinice. Pertencia à raça de Cadmo eera tio, por parte de mãe, de Eurístenes e de Procles, ambosfilhos de Aristodemo. Como estes eram ainda muito criançasquando lhes morreu o pai, Teras ficou como regente durante amenoridade dos mesmos, mas, atingida a idade adulta,assumiram eles as rédeas do governo. Teras, desesperado por terde prestar-lhes obediência depois de haver experimentado asdoçuras do mando, dispôs-se a abandonar a Lacedemônia e aembarcar para ir juntar-se aos seus parentes.

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Os descendentes de Membliares, filho de Pécilo, fenício,residiam na ilha hoje denominada Teras e conhecida outrora porCalisto. Cadmo, filho de Agenor, havia aportado a essa ilhaquando ia em demanda da Europa, e, ou porque a terra lhetivesse agradado, ou por qualquer outra razão, deixou ali váriosFenícios com Membliares, um dos seus parentes. Esses Fenícioshabitaram a ilha, então denominada Calisto, durante oitogerações, antes da vinda de Teras, procedente da Lacedemônia.

CXLVIII — Teras partiu de Esparta para a ilha com umgrande número de Lacedemônios. Sua intenção não era expulsardali os antigos habitantes, mas viver com eles na mais estreitaunião. Os Lacedemônios persistiam no propósito de matar osMineus, que, como dissemos, depois de terem escapado daprisão, haviam acampado novamente no monte Taígeto. Terassolicitou o perdão para eles, comprometendo-se a fazê-losdeixar o país. O perdão foi concedido, e Teras, fazendo-se àvela em três navios de trinta remos, dirigiu-se para onde seachavam os descendentes de Membliares, levando consigoapenas uma pequena parte dos Mineus; os outros, tendoexpulsado os Paroreatas e os Caúcos de suas terras,dividiram-se em seis grupos e ali construíram seis cidades:Lepreo, Macisto, Frixes, Pirgos, Épio e Núdio, a maior partedestruída no meu tempo pelos Eólios. Quanto à ilha Calisto,passou a chamar-se Teras, do nome de seu fundador.

CXLIX — Como o filho se recusasse a embarcar em suacompanhia, Teras disse que o deixava como uma ovelha entrelobos. Essa frase fez com que se desse ao jovem o nome deOiólico(13), por que passou a ser chamado daí por diante.Oiólico teve um filho de nome Egeu, de onde os Égidas,importante tribo de Esparta, tiraram o seu. Os componentesdessa tribo, vendo que não podiam conservar com vida osfilhos, ergueram, ante a resposta do oráculo, um templo àsFúrias de Laio e de Édipo, e, desde então, não perderam mais osfilhos. Coisa semelhante aconteceu na ilha de Teras com os

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descendentes dos que ali habitavam.

CL — Até aqui os Lacedemônios concordam com oshabitantes de Teras; mas estes são os únicos a relatar osseguintes fatos da maneira que passo a narrar.

Grino, filho de Esânio, descendente de Teras e soberanoda ilha de Teras, foi a Delfos para ali oferecer uma hecatombe.Estava acompanhado de vários habitantes da ilha, entre os quaisfigurava Bato, filho de Polinesta, descendente de Eufemo, umdos Mineus a que fiz referência. Tendo o soberano consultado ooráculo sobre determinadas coisas, a pitonisa concitou-o afundar uma cidade na Líbia. “Rei Apolo, — replicou Grino —já estou velho e curvado pelo peso dos anos; encarrega antesdesta empresa um desses jovens que vieram comigo”. E dizendoisso apontava Bato. Os Tereus, de volta à ilha, não levaram emconsideração a resposta do oráculo, não sabendo absolutamenteonde ficava a Líbia e não ousando realizar uma expediçãocolonizadora ante tal incerteza.

CLI — Passaram-se, então, sete anos sem chover uma sóvez na ilha, e todas as árvores foram consumidas pela seca, comexceção de uma única. Indo os Tereus consultar o oráculo sobreo fenômeno, a pitonisa censurou-os por não terem ido fundar acolônia na Líbia, como lhes ordenara. Como não viam remédiopara seus males, enviaram emissários a Creta para saber sehavia ali algum cretense ou qualquer outro estrangeiro quetivesse viajado para a Líbia. Os emissários percorreram a ilha e,chegando à cidade de Itano, travaram conhecimento com umtintureiro de púrpura, de nome Coróbio, que lhes disse haversido impelido por um forte vento para a ilha de Plateia, naLíbia. A promessa de uma recompensa levou-o aacompanhá-los a Teras. Organizada a expedição, os Tereusfizeram partir primeiramente um pequeno grupo para tomarconhecimento do local indicado por Coróbio, tendo este porguia. Chegando à ilha de Plateia, o grupo cumpriu a missão que

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lhe fora confiada, e deixando ali Coróbio com víveressuficientes para alguns meses, regressou a Teras, para expor aosTereus as observações que havia feito.

CLII — Como seus companheiros ficassem ausentesmais tempo do que o combinado, Coróbio viu-se a braços com afalta de víveres. Por um feliz acaso, um navio de Samos, queseguia com destino ao Egito, e cujo comandante se chamavaCóleo, escalou na ilha. Coróbio expôs aos tripulantes a suasituação, e estes, condoídos, forneceram-lhe víveres para umano, abrindo novamente velas em direção ao Egito,aproveitando um vento de leste. Sempre ao sabor do vento,esses homens passaram as colunas de Hércules e chegaram aTartesso, como guiados por algum deus. Como esse porto aindanão tinha sido visitado por um navio mercante estrangeiro,obtiveram grande lucro com a venda de suas mercadorias.Satisfeitos com o negócio, reservaram seis talentos, a décimaparte dos lucros obtidos, e mandaram fazer um vaso de bronzedo formato de uma cratera, com cabeças de abutres em torno,oferecendo-o ao templo de Juno, onde ainda hoje se mantémsustentado por três colossos de bronze de sete côvados dealtura.

A atitude de Cóleo foi o início da grande amizade que osCireneus e os Tereus contraíram com os habitantes de Samos.

CLIII — Os Tereus, deixando Coróbio na ilha, voltarama Teras, onde expuseram as observações feitas no local, queacreditavam inabitado. Diante disso, ficou resolvido que todosos cantões de Teras, em número de sete, enviariam umdeterminado número de homens, escolhidos por sorteio, paraocupar a ilha, tendo Bato por soberano. Feitos os preparativos,partiram com destino a Plateia dois navios com quinhentoshomens cada um. Tal a maneira pela qual os Tereus contamessa história.

CLIV — Os Cireneus concordam com ela em tudo,

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exceto no que concerne a Bato, sobre o qual dizem o seguinte:Etearco, rei de Áxon, em Creta, tendo perdido a esposa, da qualpossuía uma filha de nome Frónima, desposou outra mulher,que logo se tornou para Frónima verdadeira madrasta,maltratando-a, injuriando-a por qualquer motivo e chegando atéa acusá-la de impudicícia, levando o esposo a acreditar nisso.

Dando crédito à mulher, Etearco procedeu contra a filhade maneira odiosa. Havia, então, em Áxon, um negociante deTeras, chamado Temíson. O soberano mandou chamá-lo,fazendo-o prometer, sob juramento, que o serviria em tudoquanto dele necessitasse. Obtido o juramento de obediência,Etearco entregou-lhe a filha, dizendo-lhe que a lançasse ao mar.Temíson, revoltado com tal procedimento, renunciou à amizadede Etearco e, pondo a princesa num barco, rumou para o altomar. Ali chegando, amarrou-a com uma corda e, paradesobrigar-se do juramento, fê-la descer até as águas, masretirando-a logo em seguida e conduzindo-a para a ilha deTeras.

CLV — Chegando a Teras, Polineto, homem de altaposição, tomou a jovem como concubina, e o casal teve, no fimde certo tempo, um filho que gaguejava e sibilava. Essa criança,segundo os Tereus e os Cireneus, recebeu o nome de Bato; maspenso que era outro o seu nome e que passou a ser assimchamado depois que chegou à Líbia, tanto devido à resposta querecebeu do oráculo de Delfos, como pela sua alta dignidade,pois batus significa rei na língua dos Líbios, e foi esse o nomeque a pitonisa lhe deu respondendo à sua consulta, sabendo queele haveria de reinar na Líbia. Com efeito, ao chegar à idadeviril foi a Delfos consultar o oráculo sobre o defeito que tinhana língua, que o fazia gaguejar, dizendo-lhe a pitonisa: “Bato,aqui vens a respeito da tua voz, mas Apolo te ordena aestabelecer uma colônia na Líbia, fecunda em animaislanígeros.” Foi como se ela lhe tivesse dito em grego: “Ó rei!Aqui vindes por causa da vossa voz...” Bato respondeu-lhe:

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“Rei, vim consultar-vos sobre o defeito que tenho na língua, evós me ordenais a realizar coisas impossíveis, dizendo-me parafundar uma colônia na Líbia. Com que tropas, com que forçaspoderei executar semelhante tarefa?” Apesar das razõesinvocadas, a pitonisa manteve a resposta que lhe dera. Vendoque o oráculo mantinha-se irredutível, deixou Delfos,regressando a Teras.

CLVI — Logo a seguir, tanto ele como todos oshabitantes da ilha viram-se perseguidos por desgraças semconta. Como não pudessem atinar com a causa daquilo,enviaram delegados a Delfos para consultar o oráculo sobre osmales que de pronto começaram a afligi-los, tendo a pitonisarespondido que todos eles voltariam a ser felizes se fundassem,com Bato, a cidade de Cirenes, na Líbia. Diante disso, osTereus fizeram partir Bato com dois navios de cinqüenta remos.Bato e seus companheiros abriram velas em direção à Líbia,mas, forçados pelas circunstâncias, voltaram ao ponto departida. Quando iam desembarcar, os Tereus atacaram-nos,ordenando-lhes que executassem a tarefa que lhes tinhamconfiado. Constrangidos a obedecer, retomaram a rota, indoestabelecer-se numa ilha nas proximidades da Líbia. Essa ilhachama-se, como dissemos atrás, Plateia. Assegura-se ser ela dotamanho da atual cidade dos Cireneus.

CLVII — Os Tereus ali permaneceram pelo espaço dedois anos, findos os quais, vendo que não conseguiamprosperar, embarcaram para Delfos, deixando um dos seuscompanheiros na ilha. Chegando a Delfos, disseram à pitonisaque se haviam estabelecido na Líbia, mas que nem por issoestavam sendo mais felizes. A pitonisa respondeu-lhesdirigindo-se a Bato: “Admiro a tua habilidade; nunca estivestena Líbia e pretendes conhecer o país melhor do que eu, que alijá estive”. Ante a resposta, Bato embarcou novamente com osseus companheiros, convencido de que o deus só se daria porsatisfeito quando eles se estabelecessem na própria Líbia.

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Chegando a Plateia, apanharam o companheiro que lá haviamdeixado e foram instalar-se na Líbia, defronte da ilha, emAzires, local encantador, cercado por belas colinas e banhadopor um rio.

CLVIII — Permaneceram seis anos em Azires, mas, aocabo desse tempo, decidiram-se a sair dali às vivas instânciasdos Líbios e ante a promessa que eles lhes fizeram deconduzi-los a um território melhor ainda. Fazendo-os deixaraquele lugar, os Líbios conduziram-nos na direção de oeste, ecom receio de que os Gregos, passando pela parte mais bela dopaís, disso se apercebessem, regularam a marcha de modo afazê-los atravessá-la durante a noite. Essa região chama-seIrasa. Conduzindo-os para junto de uma fonte que dizem tersido consagrada a Apolo, os Líbios assim lhes falaram:“Gregos, este local, com as suas belezas e vantagens, vosconvida a fixar aqui vossa moradia; o céu é sempre limpo e azulnestas paragens”.

CLIX — Sob o governo de Bato, o fundador, cujoreinado se estendeu por quarenta anos, e de Arcesilas, seu filho,que reinou durante dezesseis, os Cireneus não se tornaram emnúmero muito maior do que no início da colônia; mas nogoverno de Bato, o terceiro rei, cognominado o Feliz, apitonisa, pelos seus oráculos, concitou os Gregos a embarcarempara a Líbia, onde habitariam com os Cireneus, que osconvidavam a morar em suas terras e delas compartilhar. Diziaum desses oráculos: “Quem não for para a fértil Líbia senãodepois da partilha das terras terá, um dia, motivo para dissoarrepender-se”. Os Gregos dirigiram-se a Cirenes em grandenúmero, apoderando-se de um cantão considerável. Os Líbios,seus vizinhos, e Adícran, seu rei, vendo-se insultados edespojados de suas terras pelos Cireneus, recorreram a Ápries,soberano do Egito, colocando-se sob a sua proteção. Ápriesenviou contra Cirenes forças consideráveis, e os Cireneus,formados em ordem de batalha em Irasa e perto da fonte de

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Teste, enfrentaram-nos com galhardia. Os Egípcios, que comeles ainda não haviam medido forças, subestimaram suacapacidade de luta, sendo de tal maneira batidos, que para oEgito só regressou um pequeno número de soldados. O povoficou tão indignado com Ápries, que contra ele se revoltou.

CLX — Arcesilas, filho de Bato, foi o seu sucessor.Logo que subiu ao trono, teve ele algumas questões com seusirmãos, mas estes acabaram abandonando o país, indo paraoutra parte da Líbia, fundando ali a cidade de Barcéia, nomeque ainda hoje subsiste. Enquanto a construíam, sublevaram osLíbios contra os Cireneus. Arcesilas marchou contra osrevoltosos, e os Líbios, que o temiam, fugiram para junto dosLíbios orientais. Arcesilas perseguiu-os e alcançou-os emLêucon, na Líbia, onde travaram combate. A sorte das armas foifavorável aos Líbios, ficando estendidos no campo mais de setemil Cireneus muito bem armados. Depois desse revés, Arcesilascaiu doente, e quando se tratava foi estrangulado pelo seu irmãoLearco. Erixas, usando de um ardil, fez perecer o assassino deseu esposo.

CLXI — Bato, seu filho, sucedeu-o no trono. Bato eracoxo e não podia manter-se de pé. Os Cireneus, atribulados comseus fracassos, enviaram delegados a Delfos, a fim de saberemque forma de governo deviam adotar para viverem felizes. Apitonisa aconselhou-os a fazerem vir da Mantinéia, na Arcádia,alguém que pudesse restabelecer entre eles a concórdia.Seguindo o conselho, eles se dirigiram aos Mantineus, que lhescederam um homem, dos mais estimados na cidade, de nomeDemónax. Demónax concordou em ir para Cirenes, e informadodos negócios públicos, dividiu os Cireneus em três tribos, umadas quais compreendia os Tereus e seus vizinhos; a outra, osPeloponésios e os Cretenses, e a terceira, todos os insulares.Finalmente, reservou para Bato certas porções de terra, com asdignidades de sacrificador, e devolveu ao povo todas as outrasprerrogativas de que os reis cireneus haviam gozado até então.

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CLXII — Tais normas subsistiram durante o reinado deBato, mas no de seu filho surgiram, por causa das mesmas,grandes perturbações. Com efeito, Arcesilas, filho de Bato, oCoxo, e de Ferétima, declarou não tolerar mais que as leis deDemónax prevalecessem e exigiu as prerrogativas desfrutadaspelos seus ancestrais. Arcesilas provocou distúrbios e contendascom essa decisão, mas tendo os seus partidários ficado emsituação desvantajosa, teve de refugiar-se em Samos, enquantoque Ferétima, sua mãe, procurou asilo em Salamina, na ilha deChipre. Salamina era, naquele tempo, governada por Evélton,que consagrou a Delfos um belo turíbulo, que ainda hoje podeser apreciado como parte do tesouro dos Coríntios. Chegando àcorte de Evélton, Ferétima pediu tropas para restabelecer opoder do filho em Cirenes, mas o soberano preferiu dar-lheoutras coisas ao invés de tropas. Ferétima aceitou os presentes,achando-os magníficos, dizendo-lhe, porém, que mais satisfeitaficaria se lhe fossem concedidas tropas; e como repetissesempre a mesma resposta a cada presente que recebia, Evéltondeu-lhe, por fim, um fuso de ouro e uma roca, dizendo-lhe queàs mulheres se davam tais mimos e nunca um exército.

CLXIII — Enquanto isso, Arcesilas, aguardando apartilha das terras, reuniu em Samos, onde se encontrava, umexército numeroso, indo, em seguida, a Delfos, consultar ooráculo sobre a possibilidade de sua volta ao poder. A pitonisarespondeu-lhe: “Apolo concede à tua família o domínio deCirenes por quatro Batos e quatro Arcesilas, isto é, por oitogerações; mas te exorta a não tentares mais nada e a ficarestranqüilo quando regressares à pátria. Se encontrares um fornocheio de vasos de barro, evita levá-los ao fogo; retira-os dali ecoloca-os ao ar livre; e se aqueceres o forno, não o faças emlocal cercado de água, pois, se o fizeres, perecerás, juntamentecom o mais belo dos touros”.

CLXIV — Arcesilas voltou a Cirenes com o exércitoque conseguira reunir em Samos, e, recuperando o poder,

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mandou processar, sem atenção alguma ao oráculo, os que otinham combatido e o haviam obrigado a fugir. Uns tiveram dedeixar a pátria, condenados a exílio perpétuo; outros, presos,foram enviados a Chipre, para ali serem executados; mas osCnídios os libertaram, encaminhando-os para a ilha de Teras.Outros, enfim, refugiaram-se numa grande torre pertencente aum particular de nome Aglómaco. Arcesilas mandou colocarlenha em torno da torre e incendiá-la. Só então apreendeu ele osignificado das palavras da pitonisa de Delfos, quando lhe disseque não devia levar ao fogo os vasos de barro encontrados noforno. Com receio de ser morto, segundo a predição do oráculo,abandonou voluntariamente a Cirenes, imaginando ser essacidade o local cercado de água a que a pitonisa se referira.Havia desposado uma de suas parentas, filha de Alazir, rei dosBarceus, e foi junto a esse soberano que procurou refúgio; masos Barceus e alguns fugitivos da Cirenaica, descobrindo seuparadeiro, mataram-no, assim como ao seu sogro Alazir, que lhedera guarida. Assim, Arcesilas cumpriu seu destino, perecendopor haver desobedecido ao oráculo, voluntária ouinvoluntariamente.

CLXV — Enquanto Arcesilas forjava sua própria ruínaem Barcéia, Ferétima, sua mãe, desfrutava em Cirenes as honrasdevidas ao filho; e entre outras prerrogativas, a de tomar partenas deliberações do Senado; mas ao ter conhecimento da mortedo filho refugiou-se no Egito, por haver o filho prestado outroraalguns serviços a Cambises, entregando-lhe Cirenes epagando-lhe tributo. Chegando ao referido país, suplicou aAriando que a vingasse, alegando ter sido o filho assassinadopor haver favorecido o partido dos Medos.

CLXVI — Ariando havia sido nomeado governador doEgito por Cambises, sendo mais tarde condenado à morte porter pretendido igualar-se a Dario. Realmente, tendo sabido queesse soberano desejava deixar como monumento a perpetuar-lhea memória algo ainda não executado por qualquer outro,

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procurou imitá-lo. Dario havia mandado cunhar moedas do maispuro ouro(14). Ariando, governador do Egito, mandou, por suavez, cunhar moedas de prata, chamadas ariândicas, ainda hojetidas como feitas da mais fina prata. Dario, informado arespeito, acusou-o de rebeldia, mandando matá-lo sob essepretexto.

CLXVII — Tocado pelas súplicas de Ferétima, Ariandopôs à sua disposição um exército composto de todas as forçasdo Egito, tanto de terra como de mar. As tropas de terra eramcomandadas por Amásis, e as de mar, por Bares. Antes, porém,de dar-lhes a ordem de partida, Ariando enviou um emissário aBarcéia, a fim de informar-se sobre a autoria da morte deArcesilas. Os Barceus assumiram toda a responsabilidade doassassinato, pois o soberano lhes havia causado grandes males.Ante a resposta, Ariando fez partir o exército, juntamente comFerétima.

CLXVIII — Ariando encontrara aí o pretexto quebuscava para justificar sua expedição contra os Líbios, aos quaisdesejava, a meu ver, subjugar. A Líbia compreende diferentespovos, poucos dos quais se haviam submetido a Dario, sendoque a maior parte deles continuava a não lhe dar a mínimaimportância. Esses povos acham-se estabelecidos na Líbia naseguinte ordem, a partir do Egito(15): Em primeiro lugar, vêmos Adirmáquidas, que seguem quase os mesmos costumes dosEgípcios, trajando-se, porém, como o resto dos Líbios. Asmulheres trazem em cada perna um anel de cobre e deixamcrescer os cabelos. Se picadas por um piolho, apanham-no,mordem-no também, e atiram-no fora. É este o único povo líbioa manter semelhante costume, e o único também a apresentar asfilhas ao seu soberano, quando vão casá-las. A que cai nasgraças do rei, não volta ao lar senão depois de lhe haverconcedido seus favores. Essa nação se estende do Egito a umporto chamado Plinos.

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CLXIX — Os Giligames confinam com osAdirmáquidas, e habitam o território que se estende paraocidente até a ilha Afrodísias. Nesse ponto está situada a ilha dePlateia, onde os Cireneus estabeleceram uma colônia. Azires,onde também se estabeleceram, fica no continente, bem como oporto de Menelais. Ali se começa a encontrar o silfium. O paísonde cresce esta planta estende-se da ilha de Plateia até aembocadura do Sirta. Esses povos seguem os mesmos costumesdos outros.

CLXX — Em seguida aos Giligames, encontramos osAsbistas, para leste, além de Cirenes, estendendo-se até o mar,sendo suas costas marítimas ocupadas pelos Cireneus. Os carrospuxados por quatro cavalos estão mais em uso entre eles do queentre os outros povos líbios. Os Asbistas procuram imitar amaior parte dos costumes dos Cireneus.

CLXXI — Os Ausquises ficam a oeste dos Asbistas,com os quais confinam. Habitam a região além de Barcéia e seestendem até o mar, nas imediações das Hispéridas. Os Cábaloshabitam o centro dessa mesma região. É uma nação pouconumerosa, alongando-se pelas costas da Tauquira, cidade daBarcéia. Adotam os mesmos costumes dos que habitam a regiãosituada além de Cirenes.

CLXXII — O país dos Ausquises é limitado a oeste pelodos Nasamões, povo bastante numeroso. No Verão, osNasamões deixam seus rebanhos à beira-mar e dirigem-se a umcerto cantão denominado Augilas, para colher os saborososfrutos das palmeiras que ali crescem em abundância. OsNasamões dão-se ao hábito de caçar gafanhotos, que fazemsecar ao sol, e depois de reduzi-los a pó misturam-no no leiteque bebem. Adotam o costume de possuir, cada qual, váriasmulheres e de ter relações com elas publicamente, mais oumenos como os Masságetas. Da primeira vez que um nasamãose casa, na noite de núpcias, a mulher concede favores a todos

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os convivas, recebendo de cada um deles um presente trazido decasa. Eis como esse povo presta juramento e exerce a arte daadivinhação. Para o primeiro, colocam a mão sobre o túmulo deum dos homens mais famosos e mais justos da nação e jurampela sua memória. Na adivinhação, dirigem-se aos túmulos deseus ancestrais e ali, depois de fazerem preces, adormecem. Sedurante o sono tiverem algum sonho, guiam-se por ele namaneira de conduzir-se. Fazem pactos de confiança, bebendo,reciprocamente, um na mão do outro. Se nada têm para beberno momento, enchem as mãos de terra e lambem-na.

CLXXIII — Os Psilos eram vizinhos dos Nasamões,extinguindo-se de um momento para outro, da maneira que vourelatar, baseando-me nas informações dos Líbios. O vento sultinha, com suas fortes rajadas, secado todas as cisternas, e osPsilos, que habitavam a parte central da Sirta e não dispunhamde fontes, viram-se totalmente privados de água. Indignadoscom a ação do vento resolveram, por decisão unânime,mover-lhe guerra; mas ao chegarem aos desertos arenosos paradar-lhe combate foram envolvidos por seus violentos sopros,ficando sepultados sob montes de areia. Desaparecendo osPsilos, os Nasamões apoderaram-se de suas terras.

CLXXIV — Acima desses povos, numa região cheia deanimais ferozes, vivem os Garamantes, que fogem ao contatocom outros homens.

Os Garamantes, povo extraordinariamente atrasado, nãousam armas e nem sequer sabem defender-se.

CLXXV — Esse povo tem por vizinhos os Maces, quehabitam a oeste, ao longo do litoral. Os Maces raspam a cabeça,deixando apenas um pequeno tufo no alto da mesma. Quandovão à guerra, levam consigo, como arma defensiva, peles deavestruz. Suas terras são banhadas pelo rio Cinips, que,descendo da colina das Graças, atravessa o país e lança-se nomar. A colina está inteiramente coberta por espessa floresta,

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embora o resto da Líbia, como já tive ocasião de dizer, sejadesprovido de árvores. Dessa colina ao mar há uma distância deduzentos estádios.

CLXXVI — Os Gindanes confinam com os Maces.Dizem que suas mulheres trazem no tornozelo tantos anéis depele quanto os homens com os quais já tiveram relações, e a queostenta maior número de anéis é a mais estimada, por ter-sefeito amar por um maior número de homens.

CLXXVII — Os Lotófagos habitam o trecho do litoralvizinho aos Gindanes. Alimentam-se exclusivamente dos frutosdo loto. Esses frutos são mais ou menos da grossura do lentiscoe doces como a tâmara, e deles os Lotófagos extraem tambémuma espécie de vinho.

CLXXVIII — Esse povo confina, ao longo do mar, comos Máclies, que também se servem do loto como alimento,embora em menor escala. Os Máclies estendem-se até o Tritão,rio considerável que se lança num grande lago, o Tritónis, ondese encontra a ilha Fia. Dizem haver sido predito pelos oráculosque os Lacedemônios estabeleceriam uma colônia nessa ilha,sendo esse fato relatado da seguinte maneira:

CLXXIX — Depois de ter Jasão mandado construir, aopé do monte Pélion, o navio Argos, colocou nele um tripé debronze e, embarcando com sua comitiva, fez-se ao mar,dobrando o Peloponeso, tendo em mira atingir Delfos. Aoaproximar-se do promontório Maléia, ergueu-se um forte ventodo norte, que o impeliu para a Líbia, vendo-se ele perdido nomeio do lago Tritónis, sem saber onde aportar. Não sabia comosair dessa perigosa situação, quando, dizem, um tritão lheapareceu e lhe pediu o tripé, prometendo-lhe, em troca,indicar-lhe uma rota segura e salvá-lo daquele perigo. Jasãoconcordou, e o tritão, cumprindo com o que prometera,mostrou-lhe o meio de sair dali. Tomando, em seguida, do tripé,colocou-o no seu próprio templo, e, ali sentando-se, predisse a

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Jasão e aos seus tudo o que deveria acontecer-lhes.Anunciou-lhes também que, quando algum dos descendentesdele, tritão, se apoderasse do tripé, era absolutamente necessárioque os Gregos possuíssem cem cidades às margens do lagoTritónis. Dizem que os Líbios das vizinhanças do lago,sabedores disso, esconderam o tripé.

CLXXX — Depois dos Máclies, encontramos osAuseus. Estas duas nações acham-se estabelecidas em torno dolago Tritónis, mas separadas pelo rio Tritão. Os Mácíies deixamcrescer o cabelo atrás da cabeça, e os Auseus na frente. Numafesta que esses povos celebram todos os anos em honra aMinerva, as moças solteiras dividem-se em dois grupos ebatem-se, umas contra as outras, a pauladas e a pedradas.Dizem elas ter sido tal rito instituído por seus pais, em honra àdeusa, nascida no país, e a que chamamos Minerva. As moçasque morrem dos ferimentos recebidos na contenda sãoconsideradas falsas virgens. Antes de empenhar-se no combate,as jovens revestem-se de uma armadura completa, à modagrega, que é, na opinião de todas, a mais bela, e, colocando nacabeça um capacete à coríntia, sobem a um carro e passeiam emtorno do lago. Ignoro de que maneira se aprestavam para ocombate essas moças, antes de os Gregos terem estabelecidocolônias nas imediações. Creio, contudo, que era à maneira dosEgípcios, pois sou de opinião que o escudo e o capacete vieramdos Egípcios para os Gregos. Pretendem elas ser Minerva filhade Netuno e da ninfa do lago Tritónis. Insurgindo-se contra opai por uma razão qualquer, a deusa procurou a proteção deJúpiter, que a adotou como filha. As mulheres, entre essespovos, pertencem em comum aos homens, embora nãocoabitem com estes, e são possuídas à maneira dos animais. Osfilhos são criados pelas mães, e quando crescem, são levados àassembléia realizada pelos homens de três em três meses.Aquele com o qual a criança mais se parece é considerado seupai.

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CLXXXI — Tais os povos nômades que habitam olitoral da Líbia. Mais acima, avançando pelo meio das terras,encontra-se uma região líbia cheia de animais ferozes, além daqual existe um planalto arenoso, que se estende de Tebas, noEgito, às colunas de Hércules. Há, nessa zona, trechos cobertosde sal nas colinas. Do alto dessas colinas jorra, por entre o sal,uma água fresca e doce. Em torno dessas nascentes se agrupamos habitantes da região, os últimos que encontramos desse ladodo deserto e além da Líbia selvagem. Os primeiros povos queencontramos, vindo de Tebas, são os Amônios, a dez dias deviagem dessa cidade. Os Amônios possuem um templo, ondepraticam os ritos inspirados nos de Júpiter Tebano. Existe emTebas, como já disse, uma estátua de Júpiter com cabeça decarneiro.

Entre outras fontes, possuem eles uma cuja água é lépidaao nascer do sol, fresca à hora do mercado e extremamente friaao meio-dia. É a essa hora que eles costumam regar os jardins.À medida que o dia declina, ela se torna menos fria, até o pôrdo sol, quando volta a ser tépida, esquentando depois, pouco apouco, até a meia-noite, quando chega mesmo a ferver. Daí emdiante, passa a esfriar, gradativamente, até o romper da aurora.Chamam-na fonte do Sol.

CLXXXII — A dez dias de marcha a partir do país dosAmônios encontra-se, no mesmo planalto arenoso, outra colinade sal, tendo também uma fonte. O cantão onde ela está situadaé habitado e denomina-se Augilas. É ali que os Nasamões vão,no Outono, colher tâmaras.

CLXXXIII — A outros dez dias de jornada partindodesse cantão encontramos outra colina de sal, tendo,igualmente, fontes de água doce e uma grande quantidade depalmeiras, que dão frutos em abundância. A região é habitadapelos Garamantes, nação bastante numerosa. Os Garamantesutilizam-se do sal para o cultivo, espalhando terra sobre ele e

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semeando em seguida. Dali ao país dos Lotófagos a distâncianão é grande, mas há trinta dias de percurso do território dosLotófagos à região onde se vêem bois de estranha espécie, quepastam e andam para trás, por terem os chifres voltados parabaixo. Se caminhassem para frente, estes se enterrariam nochão. Não diferem dos outros bois senão nisso e em terem ocouro mais espesso e mais flexível. Os Garamantes dão caça aosTrogloditas-Etíopes, servindo-se, para esse fim, de carrospuxados por quatro cavalos, isso porque os Trogloditas-Etíopessão, de todos os povos que conhecemos, o mais veloz.Alimentam-se de serpentes, lagartos e outros répteis; falam umalíngua que nada tem de comum com as das outras nações e sedizem capazes de compreender os gritos dos morcegos.

CLXXXIV — A dez dias de jornada dos Garamantesencontramos outra colina de sal, com uma fonte e homens emtorno. Esses homens, que constituem a nação dos Atarantes, sãoos únicos, que eu saiba, a não possuírem nome próprio.Reunidos em nação, tomam o nome de Atarantes, masconsiderados individualmente, não usam um nome que osdistinga uns dos outros. Têm o hábito de lançar maldiçõescontra o sol quando este se acha no seu zênite, por queimar-lhesa pele e secar-lhes as terras.

Depois de mais dez dias de viagem chega-se a uma outracolina de sal, também com nascentes e habitantes em torno. Omonte Atlas confina com essa colina. É estreito e arredondado,mas tão alto que, segundo dizem, não se consegue ver-lhe ocume, por causa das nuvens que o envolvem, tanto no Verãocomo no Inverno. Os habitantes da região dizem ser ele umacoluna do céu, tendo dele o nome de Atlantes, por que sãoconhecidos. Segundo se afirma, esse povo não come nenhumaespécie de ser vivo e nunca sonha.

CLXXXV — Sei qual o povo que habita esse planaltoaté o território dos Atlantes, mas nada posso dizer sobre os que

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se encontram mais para diante, pois essa elevação se estendealém das colunas de Hércules. De dez em dez dias de jornadaencontramos minas de sal e habitantes, cujas casas sãogeralmente construídas com sal. Como nunca chove nessa parteda Líbia, seus moradores não correm o risco de verem-nasdesmoronar-se sob a ação da água. Extraem-se dessas minasduas espécies de sal: um branco e outro vermelho. Muito alémdesse planalto arenoso, na direção do sul, e mais para o interiorda Líbia, encontra-se um pavoroso deserto, inteiramentedesprovido de água, de árvores e até mesmo de animaisselvagens.

CLXXXVI — Toda a região que se estende do Egito aolago Tritónis é habitada pelos Líbios nômades, que sealimentam exclusivamente de carne e de leite, jamais comendo,como se dá também com os Egípcios, vacas ou porcos. Asmulheres de Cirenes não se julgam, também, com permissãopara comer carne de vaca, por causa da deusa Ísis, adorada noEgito. Chegam a jejuar, e celebram em sua honra. As mulheresde Barcéia também não comem carne de vaca e nem de porco.

CLXXXVII — Os povos que vivem a oeste do lagoTritónis não são nômades; não seguem os mesmos costumes enão tratam seus filhos da maneira como fazem os Líbiosnômades. Quando os filhos destes atingem a idade de quatroanos, queimam-lhes as veias do alto da cabeça, e algumas dastêmporas, com lã bruta. Não posso assegurar se todos os povosnômades da Líbia seguem tal costume, mas vários deles oadotam. Julgam, com isso, que ficam livres dos humores quecorrem do cérebro, preservando a saúde. Realmente, entre todosos povos que conhecemos não existe nenhum mais sadio do queos Líbios. Não julgo, porém, ser isso devido ao referidocostume. Se as crianças têm espasmos enquanto lhes queimamas veias, molham-nas com urina de bode, remédio por elespróprios descoberto e que consideram infalível para o mal. Deresto, estou apenas reproduzindo aqui o que me relataram os

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Líbios.

CLXXXV1II — Os Líbios nômades celebram seussacrifícios da seguinte maneira: começam por cortar a orelha davítima e atirá-la sobre o telhado da casa; depois, torcem-lhe opescoço. Imolam apenas ao Sol e à Lua. Todos os Líbiosoferecem sacrifícios a essas divindades; entretanto, os quevivem às margens do lago Tritónis imolam também a Minerva,a Tritão e a Netuno, mas principalmente a Minerva.

CLXXXIX — Os Gregos copiaram dos Líbios o traje ea égide de Minerva, com a diferença que o traje dos Líbios éfeito de pele, e as franjas de suas égides não são de pele deserpente, mas de tiras de couro muito finas. No restante, porém,em nada diferem. O nome desse traje prova que as vestes dasestátuas de Minerva vêm da Líbia. As mulheres líbias usam,realmente, por cima do traje, peles de cabra, guarnecidas defranjas e pintadas de vermelho, de onde os Gregos tiraram onome de égide. Creio também que os gritos agudos que seouvem no templo da deusa derivam de um costume daquelepaís. Teria vindo também dos Líbios para os Gregos, o hábitode atrelar quatro cavalos a seus carros.

CXC — Os Líbios nômades enterram seus mortos comoos Gregos, com exceção dos Nasamões, que os enterramsentados, tendo, para isso, o cuidado de manter o moribundonessa posição na hora de expirar. Usam habitações portáteis,feitas de asfódelos(16), entrelaçados com junco.

CXCI — Os Líbios lavradores confinam com os Auseusa oeste do rio Tritão. Possuem habitações e denominam a sipróprios Máxias. Deixam crescer o cabelo do lado direito dacabeça, raspando do lado esquerdo, e pintam o corpo devermelho.

Dizem-se descendentes dos Troianos. A região quehabitam é, como o resto da Líbia ocidental, muito mais povoada

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de animais selvagens e mais cheia de bosques do que a habitadapelos nômades, pois esta última é baixa e arenosa até o rioTritão.

Seguindo para o ocidente, após esse rio, encontramos aregião ocupada pelos Líbios lavradores; é montanhosa, cobertade florestas e cheia de animais selvagens. Na região ocupadapelos Líbios lavradores encontram-se serpentes de tamanhodescomunal, leões, elefantes, ursos, áspides, asnos comchifres(17), cinocéfalos e acéfalos, que possuem, segundoafirmam os Líbios, olhos no peito. Vêem-se também ali homense mulheres selvagens, e uma multidão de monstros fabulosos.

CXCII — No país dos nômades não encontramosnenhum desses animais. Existem, todavia, outros, tais comocabritos, búbalos, burros, não de chifres, mas de uma espécieque tem horror à água. Vêem-se também animais estranhos, dotamanho de um boi e de cujos chifres os habitantes se utilizampara fazer o braço de suas cítaras. Há também raposas, hienas,porcos-espinho, panteras, thoés(18), crocodilos terrestres comtrês côvados de comprimento e que se assemelham aos lagartos,avestruzes e pequenas serpentes de um só chifre. Não se vêem,porém, ali, nem veados nem javalis, pois a Líbia não possui taisanimais.

CXCIII — Os Zavecos confinam com os Líbios-Máxias.Quando vão à guerra, são as mulheres que conduzem os carros.

CXCIV — Logo depois dos Zavecos encontramos osGizantes, em cujas terras abundam abelhas, que produzem umaquantidade prodigiosa de mel, que ainda assim não é suficientepara o amplo consumo que dele fazem os habitantes. OsGizantes costumam pintar-se de vermelho e são grandesapreciadores da carne de macaco, animal muito comum nasmontanhas que ali existem.

CXCV — Perto desse país fica, segundo afirmam os

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Cartagineses, uma ilha denominada Cirâunis, muito estreita,mas medindo duzentos estádios de comprimento, inteiramentecoberta de oliveiras e vinhedos. Há nessa ilha um lago, de cujolodo os habitantes extraem palhetas de ouro com o auxílio depenas de pássaros. Se é verdade, não sei; limito-me a repetir oque sobre isso me disseram. É possível, porém, que assim seja,pois já fui testemunha da maneira pela qual se extrai resina deum lago de Zacinto, onde existe uma grande quantidade delagos, o maior dos quais mede setenta pés de extensão em todosos sentidos, com duas braças de profundidade. Os habitantes dolugar mergulham nele uma vara, na extremidade da qualprendem um ramo de mirta, retirando, em seguida, o ramo comresina, que tem cheiro de betume. Essa resina é colocada numfosso cavado perto do lago, e quando já existe uma grandequantidade dela, retiram-na do fosso, colocando-a em ânforas.Tudo que cai naquele lago, passa por debaixo da terra, indo terao mar, embora este diste do lago cerca de quatro estádios.Assim, podem estar com a razão os que dizem que essa ilha estásituada nas proximidades da Líbia.

CXCVI — Dizem os Cartagineses existir, além dascolunas de Hércules, um país habitado, onde costumam ircomerciar. Quando ali chegam, retiram as mercadorias dosnavios e colocam-nas ao longo da praia, voltando, em seguida,para bordo, onde, para atrair a atenção dos habitantes, fazemfumaça em grande quantidade. Os naturais do país, percebendoa fumaça, dirigem-se para a praia e ali depositam umaquantidade de ouro que consideram correspondente ao valor dasmercadorias, afastando-se. Os Cartagineses desembarcamnovamente, examinam a quantidade do precioso metal alideixada e, se a julgam razoável, apanham-na e retiram-se. Se,porém, a julgam insuficiente, retornam aos navios, ondepermanecem tranqüilos, na expectativa. Os nativos voltam aolocal e acrescentam mais alguma coisa, esperando que com issoos Cartagineses se dêem por satisfeitos. As duas partes jamaisprocuram ludibriar uma à outra. Os Cartagineses não tocam no

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ouro senão quando ele corresponde ao valor das mercadorias; eos nativos só se apoderam das mercadorias quando osCartagineses se apoderam do ouro.

CXCVII — Tais os povos da Líbia, cujos nomes possocitar, um por um. A maioria deles não dava, outrora, aos reisdos Medos, maior importância do que lhes dá hoje. Devoacrescentar que o país é habitado por quatro nações: duasindígenas e duas estrangeiras. Os indígenas são os Líbios e osEtíopes; aqueles, habitando a parte norte da Líbia, e estes, aparte sul. As duas nações estrangeiras compõem-se de Feníciose de Gregos.

CXCVIII — Quanto à fertilidade, a Líbia não pode, aoque me parece, ser comparada à Ásia nem à Europa, exceçãofeita ao país dos Cinips, povo que possui o mesmo nome do rioque banha suas terras, que podem ser comparadas às melhorespara o cultivo do trigo. É uma terra negra, regada por váriasnascentes e beneficiada por constantes chuvas, que a fecundamsem lhe causar dano. O país produz tanto trigo quanto aBabilônia. O país dos Hispéridas possui também terrasexcelentes. Nos anos mais propícios à cultura, as sementeslançadas ao solo centuplicam; mas nas terras dos Cinips, decada semente plantada obtém-se trezentas.

CXCIX — A Cirenaica é o país de maior altitude dessaregião da Líbia, e é habitada por povos nômades, beneficiadospor excelentes condições para o cultivo de suas terras, contandocom três estações propícias. A colheita e a vindima começam àbeira-mar, passando em seguida para as terras altas no centro dopaís, a que dão o nome de colinas e onde o trigo e a uva já entãose encontram maduros, à espera da colheita. Enquanto é feita acolheita na zona central, o amadurecimento vai se processandonas outras zonas mais afastadas; e assim, quando os habitantesrealizam a última colheita, há muito já beberam os primeirosvinhos. Os Cireneus se ocupam nessa tarefa durante oito meses

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do ano.

CC — O exército persa(19) que Ariando tinha enviadodo Egito para vingar Ferétima, chegando diante de Barcéiaestabeleceu o cerco, depois de haver intimado os habitantes aentregar-lhe os assassinos de Arcesilas. Os Barceus,considerando-se todos culpados da morte do soberano, nãoatenderam à intimação. O cerco se prolongou por nove meses,durante os quais os Persas minaram as muralhas e atacaramvigorosamente a praça. Um artesão, habituado a trabalhar com ocobre, descobriu as minas(20) por meio de um escudo debronze. Munido do escudo, pôs-se a andar em torno da cidade,ao pé das muralhas, aproximando-o do chão, aqui e ali. Nospontos não minados pelo inimigo, o escudo nenhum somproduzia; mas ao passar por lugares minados, acusava-oemitindo um som bastante audível. Os Barceus, alertados,contraminaram esses pontos, matando os Persas que se achavamentregues a essa delicada tarefa de guerra. Quanto aos assaltosdesfechados pelos sitiantes, os habitantes souberam repeli-loscom bravura.

CCI — O cerco de Barcéia ia-se prolongandoindefinidamente, já se registrando, de um lado e de outro,perdas consideráveis, quando Amásis, que comandava as forçasde terra, vendo a impossibilidade de vencer o inimigo frente afrente, recorreu ao seguinte estratagema: mandou cavar, durantea noite, um largo fosso, no qual colocou pedaços de madeiramuito frágeis, cobrindo-os de terra, de modo a ocultá-los eevitando qualquer diferença de nível de terreno. Ao nascer dodia, convidou os Barceus para um entendimento, convite queeles aceitaram com alegra, pois não desejavam outra coisasenão um acordo. As duas partes firmaram, então, um tratado,jurando, sobre o fosso coberto, observar os termos do mesmo,enquanto aquele terreno se mantivesse tal qual se encontrava nomomento. O tratado estabelecia o pagamento, pelos Barceus, deum tributo módico ao soberano persa, enquanto que os sitiantes

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não empreenderiam nenhum novo movimento contra eles.Prestado o juramento por ambas as partes, os Barceus,confiantes no tratado, abriram todos os portões da cidade,deixando entrar os inimigos de há pouco. As tropas persas,destruindo o fosso oculto, invadiram, em massa, a cidade.Destruindo o fosso e, por conseguinte, afundando o terrenonaquele ponto, não violavam o juramento que haviam feito, poiso tratado deixava de existir.

CCII — Os Persas entregaram a Ferétima os maisculpados entre os Barceus, pela morte de Arcesilas, e elamandou, incontinênti, crucificá-los em torno das muralhas. Àssuas mulheres, mandou cortar-lhes os seios e colocá-losigualmente em volta das muralhas. Quanto ao resto dosBarceus, deixou-os à mercê dos Persas, como despojos deguerra, com exceção dos Batíades e dos que nenhumaparticipação tiveram no assassinato de seu filho. Estes ficaramencarregados da guarda da cidade.

CCIII — Depois de haverem reduzido os Barceus àescravidão, os Persas retornaram à pátria. Ao chegarem aCirenes, os Cireneus, em observância a um oráculo,deixaram-nos passar livremente pela cidade; mas enquanto asforças persas a transpunham, Bares, comandante das tropasnavais, ordenou a pilhagem. Amásis, que se encontrava à frentedas tropas de terra, foi contrário a tal ação, mostrando-lhe quetinham vindo exclusivamente para aniquilar os Barceus.Atravessando a cidade, acamparam na colina de Júpiter Liceu,mas os soldados de Bares, arrependendo-se de não haveremrealizado seu intento, resolveram voltar e penetrar novamentena praça. Os Cireneus, todavia, opuseram-se a essa novaincursão, e os Persas, assombrados ante a firme atitude doshabitantes, retiraram-se precipitadamente, indo acampar a umadistância de sessenta estádios da cidade. Enquanto armavamacampamento, chegou um correio da parte de Ariando,chamando-os de volta à corte. Desprovidos de mantimentos

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para a viagem de regresso, tiveram de recorrer aos Cireneus,pedindo-lhes que lhes fornecessem víveres, e obtidos estes,puseram-se em marcha para o Egito. Ao passarem pelas terrasdos Líbios, estes entraram a perseguir alguns grupos isolados,não deixando de acossá-los durante todo o percurso para oEgito, tirando-lhes as roupas e bagagens, e matando os daretaguarda.

CCIV — Este exército não conseguiu penetrar mais nopaís dos Hispéridas do que nos Líbios, em face da resistênciaque encontravam por toda parte. Quanto aos Barceus, reduzidospelos Persas à servidão, foram enviados do Egito a Dario, quelhes deu terras na Bactriana, juntamente com um burgo queainda hoje subsiste e o denominaram Barcéia, nome de suapátria.

CCV — Ferétima teve um fim trágico. Mal haviachegado à Líbia, de regresso do Egito, depois de ter-se vingadodos Barceus, pereceu miseravelmente, devorada pelos vermesque formigavam no seu corpo, o que prova que os deusesrepelem e castigam os que levam muito longe seusressentimentos.