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1 HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA Sílvio Romero FATORES DA LITERATURA BRASILEIRA CAPÍTULO I TRABALHOS ESTRANGEIROS E NACIONAIS SOBRE A LITERATURA BRASILEIRA – DIVISÃO DESTA – ESPÍRITO GERAL DESTE LIVRO As pátrias letras, entre outras muitas lacunas, mostram bem claramente a grande falha causada pela ausência de trabalhos históricos. Se não existe uma história universal escrita por brasileiro, se a nossa própria história política, social e econômica tem sido apenas esboçada e foi mister que estrangeiros no-la ensinassem a escrever, no terreno da literatura propriamente dita a pobreza nacional ostenta-se ainda maior. O livro de Ferdinand Wolf, Le Brésil Littéraire (1863), tem sido, e continua a ser com razão, o oráculo de todos na matéria; porque é único em seu gênero. O escritor austríaco foi o primeiro a fazer um quadro mais ou menos inteiro de nossa literatura, quadro pálido e incorreto, é certo, mas que se impõe, por estar no singular. E já lá vão bastantes anos que o livro foi publicado, e até bem pouco era o compêndio oficial de nossos cursos! Antes de Ferdinand Wolf ainda a estrangeiros coube a tarefa de traçar as primeiras notícias de nossas letras. Bouterwek, na História da Literatura Portuguesa (1804), Sismondi, nas Literaturas do meio-dia da Europa (1819), e Ferdinand Denis, no Resumo da História da Literatura de Portugal (1825), foram os primeiros que falaram de nossos poetas e escritores. 1 Não é para surpreender, porque todos sabemos que foram eles os organizadores da história da literatura portuguesa, da qual a nossa era considerada um apêndice. Depois é que Almeida Garrett escreveu o seu Bosquejo da História da Poesia e da Língua Portuguesa (1826). 2 A indigência brasileira não é, pois, mais do que um prolongamento do velho pauperismo lusitano. Os escritores portugueses deste século, Costa e Silva, Lopes de Mendonça, Inocêncio da Silva, Latino Coelho, Luciano Cordeiro, Teófilo Braga, Camilo Castelo Branco e outros, nos seus trabalhos sobre a literatura de sua pátria, são portadores de algumas notícias de nossa vida intelectual, tudo ainda como um acessório do pensamento da antiga metrópole. A autores nacionais só devemos alguns pequenos ensaios, parcas monografias, noções destacadas de uma ou outra época de nossa literatura, ou análise por acaso de algum escritor predileto. Os principais dentre eles vêm a ser: Januário da Cunha Barbosa – Parnaso Brasileiro (1831); Abreu e Lima – Bosquejo histórico, político e literário do Brasil (1835); Domingos de Magalhães – Discurso sobre a História da Literatura do Brasil (1836); Norberto e Silva – Bosquejo da História da Literatura Brasileira, nas modulações poéticas (1841), e mais tarde alguns estudos na Minerva Brasiliense (1843), na Revista Popular (1861) e na Brasília Biblioteca de Autores Nacionais (1863); Pe- reira da Silva – Parnaso brasileiro (1843) e Plutarco brasileiro (1847), transformados depois em Varões ilustres do Brasil nos tempos coloniais (1858); Varnhagen – Florilégio da poesia brasileira (1851 e 53); Fernandes Pinheiro – Discurso sobre a poesia em geral e em particular no Brasil, na tradução de Jó por Elói Ottoni (1852), e também no Curso Elementar de Literatura Nacional (1862), e no Resumo de história literária (1872); Antônio Joaquim de Meio – Biografias de alguns poetas e homens ilustres da Província de Pernambuco (1858); Sotero dos Reis – Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira (1866); Antônio Henriques Leal – Panteon maranhense (1873); Joaquim Manuel de Macedo – Ano biográfico brasileiro (1876); José Antônio de Freitas – Lirismo Brasileiro (1877); J. S. – Manual de literatura ou estudos sobre a literatura dos principais povos da América e Europa (1878); Leri dos Santos – Panteon Fluminense (1880); Sacramento Blake – Dicionário bibliográfico brasileiro (1883); Ignotus – Sessenta anos de jornalismo (1883); Melo Morais Filho – Curso de Literatura Nacional (1881) e Parnaso brasileiro (1885); F. A. Pereira da Costa – Dicionário biográfico de pernambucanos célebres (1882). – Contêm também notícias literárias – a Revista do Instituto Histórico, os Anais da Biblioteca Nacional, os Arquivos do Museu Nacional e as Efemérides Nacionais, do Dr. Teixeira de Melo (1881). Juntem-se a 1 Domingos de Magalhães – Opúsculos Históricos e Literários, pág. 245 2 Teóf. Braga. – Manual da História da Literatura Portuguesa, pág. 453. – Antes de Garreti, Barbosa Machado, na Biblioteca Lusitana, trouxe algumas notícias de autores brasileiros.

História Da Literatura Brasileira Silvio Romero

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    HISTRIA DA LITERATURA BRASILEIRA Slvio Romero

    FATORES DA LITERATURA BRASILEIRA

    CAPTULO I

    TRABALHOS ESTRANGEIROS E NACIONAIS SOBRE A LITERATURA BRASILEIRA DIVISO DESTA ESPRITO GERAL DESTE LIVRO

    As ptrias letras, entre outras muitas lacunas, mostram bem claramente a grande falha causada

    pela ausncia de trabalhos histricos. Se no existe uma histria universal escrita por brasileiro, se a nossa prpria histria poltica, social e econmica tem sido apenas esboada e foi mister que estrangeiros no-la ensinassem a escrever, no terreno da literatura propriamente dita a pobreza nacional ostenta-se ainda maior.

    O livro de Ferdinand Wolf, Le Brsil Littraire (1863), tem sido, e continua a ser com razo, o orculo de todos na matria; porque nico em seu gnero. O escritor austraco foi o primeiro a fazer um quadro mais ou menos inteiro de nossa literatura, quadro plido e incorreto, certo, mas que se impe, por estar no singular. E j l vo bastantes anos que o livro foi publicado, e at bem pouco era o compndio oficial de nossos cursos!

    Antes de Ferdinand Wolf ainda a estrangeiros coube a tarefa de traar as primeiras notcias de nossas letras.

    Bouterwek, na Histria da Literatura Portuguesa (1804), Sismondi, nas Literaturas do meio-dia da Europa (1819), e Ferdinand Denis, no Resumo da Histria da Literatura de Portugal (1825), foram os primeiros que falaram de nossos poetas e escritores.1

    No para surpreender, porque todos sabemos que foram eles os organizadores da histria da literatura portuguesa, da qual a nossa era considerada um apndice. Depois que Almeida Garrett escreveu o seu Bosquejo da Histria da Poesia e da Lngua Portuguesa (1826).2

    A indigncia brasileira no , pois, mais do que um prolongamento do velho pauperismo lusitano.

    Os escritores portugueses deste sculo, Costa e Silva, Lopes de Mendona, Inocncio da Silva, Latino Coelho, Luciano Cordeiro, Tefilo Braga, Camilo Castelo Branco e outros, nos seus trabalhos sobre a literatura de sua ptria, so portadores de algumas notcias de nossa vida intelectual, tudo ainda como um acessrio do pensamento da antiga metrpole.

    A autores nacionais s devemos alguns pequenos ensaios, parcas monografias, noes destacadas de uma ou outra poca de nossa literatura, ou anlise por acaso de algum escritor predileto.

    Os principais dentre eles vm a ser: Janurio da Cunha Barbosa Parnaso Brasileiro (1831); Abreu e Lima Bosquejo histrico, poltico e literrio do Brasil (1835); Domingos de Magalhes Discurso sobre a Histria da Literatura do Brasil (1836); Norberto e Silva Bosquejo da Histria da Literatura Brasileira, nas modulaes poticas (1841), e mais tarde alguns estudos na Minerva Brasiliense (1843), na Revista Popular (1861) e na Braslia Biblioteca de Autores Nacionais (1863); Pe-reira da Silva Parnaso brasileiro (1843) e Plutarco brasileiro (1847), transformados depois em Vares ilustres do Brasil nos tempos coloniais (1858); Varnhagen Florilgio da poesia brasileira (1851 e 53); Fernandes Pinheiro Discurso sobre a poesia em geral e em particular no Brasil, na traduo de J por Eli Ottoni (1852), e tambm no Curso Elementar de Literatura Nacional (1862), e no Resumo de histria literria (1872); Antnio Joaquim de Meio Biografias de alguns poetas e homens ilustres da Provncia de Pernambuco (1858); Sotero dos Reis Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira (1866); Antnio Henriques Leal Panteon maranhense (1873); Joaquim Manuel de Macedo Ano biogrfico brasileiro (1876); Jos Antnio de Freitas Lirismo Brasileiro (1877); J. S. Manual de literatura ou estudos sobre a literatura dos principais povos da Amrica e Europa (1878); Leri dos Santos Panteon Fluminense (1880); Sacramento Blake Dicionrio bibliogrfico brasileiro (1883); Ignotus Sessenta anos de jornalismo (1883); Melo Morais Filho Curso de Literatura Nacional (1881) e Parnaso brasileiro (1885); F. A. Pereira da Costa Dicionrio biogrfico de pernambucanos clebres (1882). Contm tambm notcias literrias a Revista do Instituto Histrico, os Anais da Biblioteca Nacional, os Arquivos do Museu Nacional e as Efemrides Nacionais, do Dr. Teixeira de Melo (1881). Juntem-se a 1 Domingos de Magalhes Opsculos Histricos e Literrios, pg. 245 2 Tef. Braga. Manual da Histria da Literatura Portuguesa, pg. 453. Antes de Garreti, Barbosa Machado, na Biblioteca Lusitana, trouxe algumas notcias de autores brasileiros.

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    tudo isto escritos diversos de Jos de Alencar, Quintino Bocaiva, Machado de Assis, Franklin Tvora, Araripe Jnior, Macedo Soares, Eunpio Deir, Jos Verssimo, Clvis Bevilqua, Artur Orlando, Oliveira Lima, Lvio de Castro, Medeiros e Albuquerque, Viveiros de Castro, Augusto Franco e outros.

    O livro de Ferdinand Wolf, feito s pressas, no tem vistas tericas; um produto artificial e diplomtico. O tom geral ditirmbico, e, entre outros, os exageros sobre o merecimento de seu principal inspirador, Gonalves de Magalhes, provocam hoje o riso. As obras de Bouterwek, Sismondi, Ferdinand Denis e Garrett, escritas especialmente sobre a literatura portuguesa, so muito lacunosas no que respeita ao Brasil.

    Os escritores portugueses, atrs citados, acham-se no mesmssimo caso, e os brasileiros, conquanto mais conhecedores do assunto, s quiseram escrever quadros isolados e s trataram de alguns tipos destacados. intil analis-los agora; seus mritos e defeitos sero estudados no correr deste trabalho.

    Exporei desde logo o esprito geral deste livro. Empreendo, declaro-o de princpio, a histria literria nacional com uma idia ministrada por estudos anteriores. Pode ser um mal; mas necessrio; so precisos tentamens destes para explicar o espetculo da vida brasileira.

    A histria do Brasil, como deve hoje ser compreendida, no , conforme se julgava antigamente e era repetido pelos entusiastas lusos, a histria exclusiva dos portugueses na Amrica. No tambm, como quis de passagem supor o romanticismo, a histria dos Tupis, ou, segundo o sonho de alguns representantes do africanismo entre ns, a dos negros em o Novo Mundo.

    antes a histria da formao de um tipo novo pela ao de cinco fatores, formao sextiria em que predomina a mestiagem. Todo brasileiro um mestio, quando no no sangue, nas idias. Os operrios deste fato inicial tm sido: o portugus, o negro, o ndio, o meio fsico e a imitao estrangeira.

    Tudo quanto h contribudo para a diferenciao nacional, deve ser estudado, e a medida do mrito dos escritores este critrio novo.

    Tanto mais um autor ou um poltico tenha trabalhado para a determinao de nosso carter nacional, quanto maior o seu merecimento. Quem tiver sido um mero imitador portugus, no teve ao, foi um tipo negativo.

    Faltam os elementos para fazer um quadro vivaz e palpitante da vida ntima dos autores brasileiros. Os tempos passados so como mortos; falta a nota viva. O hbito das memrias e correspondncias no tem sido at hoje seguido no Brasil. Da uma lacuna. H dois modos, disse muito bem Edmond Scherer, de escrever a histria literria: pode-se pender para as consideraes gerais, referir os efeitos s suas causas, distinguir, classificar. Mas pode-se tambm tomar por alvo reviver este mundo de poetas e escritores no meio que to grandes cousas produziu, procurar surpreender estes homens em sua vida de todo o dia, desenhar-lhes a fisionomia, recolher as picantes anedotas a seu respeito, e foroso declarar que esta segunda maneira de escrever a histria literria encerra muito atrativo. talvez mais realmente instrutiva do que a primeira. Esta faz compreender o encadeamento dos fatos, a segunda faz conhecer os homens. E que h no mundo que nos interesse mais do que nossos caros semelhantes, e entre estes quem mais do que aqueles cujas obras nos encantam ainda, passados duzentos ou trezentos anos? Quanto a mim, daria todas as filosofias da arte e da histria por simples bagatelas e pilhrias literrias ou anedticas, por um volume de Boswell ou de Saint-Simon.3

    Tudo isto certo e eu daria tambm por uma histria la Saint-Simon da literatura brasileira quantos volumes pudesse escrever de vistas gerais sobre ela. H, porm, uma circunstncia que me vem justificar na escolha que fao do primeiro dos dois mtodos descritos por Scherer, e vem a ser: no existem documentos para se fazer a histria ntima, pinturesca, viva e anedtica dos escritores do Brasil.

    Acresce tambm que o encanto que se encontra neste ltimo gnero de histria literria, proveniente de um conhecimento mais familiar do viver dos homens, no consiste especialmente no desvendamento de um ou outro segredo, na prtica de uma ou outra singularidade, na convivncia de uma ou outra anedota. Tudo seria estril, se no deixasse ao leitor meios de elevar-se a vistas mais amplas e concernentes humanidade em geral.

    O conhecimento que se busca, ao surpreender os atos mais ntimos de um escritor, deve sempre visar uma maior compreenso de sua individualidade e das relaes desta com o seu pas e das deste com a humanidade.

    Um conhecimento, que se no generaliza, fica improfcuo e estril, e, assim, a histria pinturesca deve levar histria filosfica e naturalista.

    Neste terreno buscar permanecer este livro, por mais lacunoso que ele possa vir a ser. Seu fito encontrar as leis que presidiram e continuam a determinar a formao do gnio, do esprito, do carter do povo brasileiro.

    Para tanto antes de tudo mister mostrar as relaes de nossa vida intelectual com a histria poltica, social e econmica da nao; ser preciso deixar ver como o descobridor, o colonizador, o implantador da nova ordem de cousas, o portugus em suma, foi-se transformando ao contato do ndio, do 3 Etudes Critiques de Littrature, pg. 275, Paris, 1876.

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    negro, da natureza americana, e como, ajudado por tudo isso e pelo concurso de idias estrangeiras, se foi aparelhando o brasileiro, tal qual ele desde j e ainda mais caracterstico se tornar no futuro.

    Uma dificuldade secundria se me antolha, ao pr o p entrada deste terreno. sabido que muitos escritores brasileiros dos tempos coloniais transportaram-se em moos, ou em crianas, para a metrpole e de l no voltaram mais. Deve ser contemplado na histria da literatura brasileira um Antnio Jos, por exemplo, que do Brasil s teve o nascimento? Por outro lado, portugueses houve que, mudados para a Amrica, aqui ficaram e se desenvolveram. Devem ser contados entre os nossos autores um Jos de Anchieta e um Antnio Gonzaga? No trepido em os incluir no nmero dos nossos; os primeiros porque beberam no bero esse quid indefinvel que imprime o cunho nacional, e porque suas obras, de torna-viagem recebidas com simpatias, vieram aqui influir; os segundos, porque, transformados ao meio americano, viveram dele e para ele.

    Mas no fica a: muitos escritores portugueses, especialmente autores de crnicas, que permaneceram mais ou menos limitadamente entre ns e escreveram obras sobre o Brasil, devero ser contemplados? o caso de Pero Vaz de Caminha, Gandavo, Ferno Cardim, Gabriel Soares, Simo de Vasconcelos, Simo Estcio da Silveira, outros. Assim como no devem ser considerados escritores portugueses alguns brasileiros que no reino residiram temporariamente, como Borges de Barros ou Porto Alegre, tambm no se podem contemplar os portugueses citados em o nmero dos nossos autores. Seria um redondssimo absurdo, que nos levaria a contar tambm como brasileiros Hans-Staden, Thevet, Joo de Lry, Cludio dAbbeville, Ivo dEvreux, Marcgrav, Laet, Piso, Lamartinire e muitos mais. Seriam tambm nossos, por tal mtodo, Spix, Martius, Neuwied, Langsdorff, Saint-Hilaire, Castelneau, Hartt, George-Gardner, Wappaeus, Expilly, Jacques Arago, DAssier, Agassiz e o prprio Darwin.

    S contemplarei, portanto, como nossos os nascidos no Brasil, quer tenham sado, quer no, e os filhos de Portugal, que no Brasil viveram longamente, lutaram e morreram por ns, como Anchieta e Gonzaga nos tempos coloniais, e, como polticos, nos tempos modernos, Clemente Pereira e Limpo de Abreu. Todos estes tiveram do reino s o bero, sua vida foi brasileira e pelos brasileiros.

    Em rpida excurso s me deterei ante os talentos de mrito que saem engrandecidos do aparelho da crtica e justificam-se luz do mtodo indicado.

    No tratar-se- de saber qual foi o primeiro brasileiro que escreveu uma poesia ou um livro, e outras tantas questes impertinentes e ociosas.

    Nada se ter que ver com alguns frades despreocupados ou ociosos que mataram o tempo a escrever versos latinos, ou a publicar sensaborias em Roma. So homens que nunca viveram na conscincia da ptria, no foram foras vivas ao seu servio. Foram indiferentes na vida e se-lo-o sempre na morte e no esquecimento. No merecem uma justificativa e ressurreio histrica.

    Pretendo escrever um trabalho naturalista sobre a histria da literatura brasileira. Munido do critrio popular e tnico para explicar o nosso carter nacional, no esquecerei o critrio positivo e evolucionista da nova filosofia social, quando tratar de notar as relaes do Brasil com a humanidade em geral.

    Ns os brasileiros no pensamos ainda muito, por certo, no todo da evoluo universal do homem; ainda no demos um impulso nosso direo geral das idias; mas um povo que se forma no deve s pedir lies aos outros; deve procurar ser-lhes tambm um exemplo. Ver-se- em que consiste nossa pequenez e o que devramos fazer para ser grandes.

    Esta obra contm duas partes bem distintas; no primeiro livro indicam-se os elementos de uma histria natural de nossas letras; estudam-se as condies de nosso determinismo literrio, as aplicaes da geologia e da biologia s criaes do esprito.

    Nos demais livros faz-se a traos largos o resumo histrico das quatro grandes fases de nossa literatura: perodo de formao (1500-1750), perodo de desenvolvimento autonmico (1750-1830), perodo de transformao romntica (1830-1870) e perodo de reao crtica (de 1870 em diante).

    A primeira poca inicia-se com a descoberta do pas, passa pela invaso holandesa, pelos Palmares, pelos Emboabas e Mascates e chega aos meados do sculo XVIII. A segunda, com a descoberta das minas, mostra certo impulso autonmico do pas dentro dos limites de suas foras e tradies tnicas. A terceira, que principia com o romantismo poltico de Constant no tempo de nossa independncia, acentua-se mais a datar da retirada do primeiro imperador, e, atravs de muita imitao, mxime de franceses, teve o mrito de afastar-nos da esterilidade do lusitanismo literrio. A quarta fase a da reao crtica e naturalista, em que buscamos de novo nossas tradies luz das idias realistas, procurando harmonizar umas com outras.

    Tal a diviso natural da histria literria brasileira. Se certo que as fases de uma literatura no se determinam com a mesma segurana com que os velhos cronistas marcavam o nascimento e a morte dos reis seus protetores, e se verdade que as datas aqui indicadas no tm esse rigor mesquinho, servem bem para indicar os grandes marcos de nossa evoluo mental. Os anos de 1500 e 1750, que encerram o primeiro perodo, justificam-se, aquele, porque da partiu o conhecimento do pais; o outro, porque na ltima metade do sculo XVIII, alterando-se o nosso sistema colonial e econmico, preparou-se a grande escola mineira, talvez o perodo mais brilhante e original de nossa poesia.

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    A data de 1830, se no marca uma poca literria no estreito sentido, designa-a no lato; porque determina a invaso completa do romantismo na poltica e seu trasbordamento na literatura.

    Constant precedeu Lamartine na Europa e aqui; a evoluo literria seguiu-se, como sempre, poltica.

    Quanto a 1870, que abre a quarta e ltima fase, pode determinar-se que o romantismo comeou a receber os primeiros e mais rudes golpes a datar desse tempo.

    O positivismo filosfico francs, o naturalismo literrio da mesma procedncia, a crtica realista alem, o transformismo darwiniano e o evolucionismo de Spencer comearam a espalhar-se em alguns crculos acadmicos, e uma certa mutao foi-se operando na intuio corrente. Todos os anos crescia o nmero dos combatentes; foram eles os primeiros que no Brasil promoveram a reao seguida e forte contra o velho romantismo transcendental e metafsico.

    Cumpre declarar, por ltimo, que a diviso proposta no se guia exclusivamente pelos fatos literrios; porque para mim a expresso literatura tem a amplitude que lhe do os crticos e historiadores alemes. Compreende todas as manifestaes da inteligncia de um povo: poltica, economia, arte, criaes populares, cincias... e no, como era de costume supor-se no Brasil, somente as intituladas belas-letras, que afinal cifravam-se quase exclusivamente na poesia!...

    CAPTULO II TEORIAS DA HISTRIA DO BRASIL

    Todo e qualquer problema histrico e literrio h de ter no Brasil duas faces principais: uma

    geral e outra particular, uma influenciada pelo momento europeu e outra pelo meio nacional, uma que deve atender ao que vai pelo grande mundo e outra que deve verificar o que pode ser aplicado ao nosso pas.

    A literatura no Brasil, a literatura em toda a Amrica, tem sido um processo de adaptao de idias europias s sociedades do continente. Esta adaptao nos tempos coloniais foi mais ou menos inconsciente; hoje tende a tornar-se compreensiva e deliberadamente feita. Da imitao tumulturia, do antigo servilismo mental, queremos passar escolha, seleo literria e cientfica. A darwinizao da crtica uma realidade to grande quanto a da biologia.

    A poderosa lei da concorrncia vital por meio da seleo natural, a saber, da adaptao e da hereditariedade, aplicvel s literaturas, e crtica incumbe comprov-la pela anlise dos fatos.

    A hereditariedade representa os elementos estveis, estticos, as energias das raas, os predicados fundamentais dos povos; o lado nacional das literaturas. A adaptao exprime os elementos mveis, dinmicos, genricos, transmissveis de povo a povo; a face geral, universal das literaturas. So duas foras que se cruzam, ambas indispensveis, ambas produtos naturais do meio fsico e social.

    Tal a razo por que todo poeta, todo romancista, todo dramaturgo, todo crtico, todo escritor brasileiro de nossos dias tem a seu cargo um duplo problema e h de preencher uma dupla funo: deve saber do que vai pelo mundo culto, isto , entre aquelas naes europias que imediatamente influenciam a inteligncia nacional, e incumbe-lhe tambm no perder de mira que escreve para um povo que se forma, que tem suas tendncias prprias, que pode tomar uma feio, um ascendente original. Uma e outra preocupao so justificveis e fundamentais. Se uma cousa ridcula a recluso do pensamento nacional numas pretenses exclusivistas, se lastimvel o espetculo de alguns escritores nossos, atrasados, alheios a tudo quanto vai de mais palpitante no mundo da inteligncia, no menos desprezvel a figura do imitador, do copista servil e ftuo de toda e qualquer bagatela que os paquetes nos tragam de Portugal, ou de Frana, ou de qualquer outra parte...

    Para que a adaptao de doutrinas e escolas europias ao nosso meio social e literrio seja fecunda e progressiva, de instante necessidade conhecer bem o estado do pensamento do Velho Mundo e ter uma idia ntida do passado e da atualidade nacional.

    Eis o grande problema, eis o ponto central de todas as tentativas de reformas entre ns, e eis por onde eu quisera que comeassem todos os portadores de novos ideais para o Brasil, todos os transplantadores de novas filosofias, de novas polticas, de novas escolas literrias.

    E o que no vejo, o que ainda no se fez. No mais do que ter lido por acaso Zola, ou Daudet, ou Rollinat, e atirar com eles face do

    pas, como se tudo estivesse feito!... Deve-se comear por conhecer a fundo as diversas teorias da histria do Brasil, e, pelo estudo

    deste problema, compreender a sucesso das escolas literrias entre ns. Indicarei somente os lados mais salientes do assunto. As principais teorias da histria do Brasil so a de Martius, a de Buckle, a de Tefilo Braga, a de

    Oliveira Martins, a dos discpulos de Comte e a dos sectrios de Spencer. Ficam a enumeradas em sua ordem cronolgica.

    O clebre botanista bvaro Carlos Frederico Filipe de Martius preparou em 1843 uma

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    dissertao sob o ttulo Como se deve escrever a histria do Brasil. Nesse pequeno trabalho, um dos mais interessantes que tenho lido de penas estrangeiras sobre o

    Brasil, Martius abriga-se ao grande princpio moderno das nacionalidades, coloca-se num ponto de vista etnogrfico e indica em traos rpidos os diversos elementos do povo brasileiro.

    Os selvagens americanos e os seus costumes e suas aptides psicolgicas, os negros africanos e seus hbitos, os portugueses e suas vantagens de gente civilizada, tudo isto deve ser interpretado escrupulosamente; porque de tudo isto que saiu o povo brasileiro.

    exato; resta apenas que se diga como que estes elementos atuaram uns sobre os outros e produziram o resultado presente.

    Em uma palavra, a teoria de Martius puramente descritiva; ela indica os elementos; mas falta-lhe o nexo causal e isto seria o principal a esclarecer. uma concepo incompleta.

    E como alguns j tm por vezes exagerado a simplssima indicao de Martius, o mero conselho do notvel bvaro, aqui lhe reproduzo as prprias palavras para que bem claro se veja a distncia entre esse rpido roteiro e a doutrina deste livro sobre o problema etnogrfico brasileiro.

    Escreveu Martius: Qualquer que se encarregar de escrever a histria do Brasil jamais dever perder de vista quais

    os elementos que a concorreram para o desenvolvimento do homem. So, porm, estes elementos de natureza muito diversa, tendo para a formao do homem convergido de um modo particular trs raas, a saber: a de cor de cobre ou americana, a branca ou caucasiana e, enfim, a preta ou etipica. Do encontro, da mescla, das relaes mtuas e mudanas dessas trs raas, formou-se a atual populao, cuja histria por isso mesmo tem um cunho muito particular. Pode-se dizer que a cada uma das raas humanas compete, segundo a sua ndole inata, segundo as circunstncias debaixo das quais ela vive e se desenvolve, um movimento histrico caracterstico e particular. Portanto, vendo ns um povo novo nascer e desenvolver-se da reunio e contato de to diferentes raas humanas, podemos avanar que a sua histria se deve desenvolver segundo uma lei particular das foras diagonais. Cada uma das particularidades fsicas e morais, que distinguem as diversas raas, oferece a este respeito um motor especial; e tanto maior ser a sua influncia para o desenvolvimento comum, quanto maior for a energia, nmero e dignidade da sociedade de cada uma dessas raas. Disso necessariamente se segue que o portugus que, como descobridor, conquistador e senhor, poderosamente influiu naquele desenvolvimento, o portugus, que deu as condies e garantias morais e fsicas para um reino indepen-dente; que o portugus se apresenta como o mais poderoso e essencial motor. Mas tambm decerto seria um grande erro para todos os princpios de historiografia pragmtica, se se desprezassem as foras dos indgenas e dos negros importados, foras estas que igualmente concorreram para o desenvolvimento fsico, moral e civil da totalidade da populao. Tanto os indgenas como os negros reagiram sobre a raa predominante.

    A determinao precisa do que devemos, em nossa vida geral, aos trs fatores principais de nossas populaes, nem por sombra se acha nessas linhas do ilustre autor da Flora Brasiliensis, que tambm e principalmente deixou em completo esquecimento o ponto fundamental do problema: o mestio, sobre o qual peculiarmente se deve insistir, estudando amplamente o especial quinho de cada fator e definindo o carter do resultado.*

    O afamado autor da Histria da civilizao na Inglaterra, aparecida em 1857, ocupou-se do Brasil detidamente.4

    H. T. Buckle, como sabido, divide as civilizaes em primitivas e modernas, predominando naquelas a ao das leis fsicas sobre o homem, e nestas sendo o inverso a verdade.

    As civilizaes antigas desenvolveram-se nos pases onde as condies de vida eram fceis, nas. pennsulas, margem dos grandes rios, onde eram abundantes o calor e a umidade. S o Brasil para o filsofo ingls abre uma exceo regra; por causa dos ventos alsios, das chuvas torrenciais, dos miasmas... que tornam aqui a natureza superior ao homem.

    Da, para o escritor britnico, umas tantas cousas, e, entre outras, a falta de uma civilizao primitiva brasileira e ainda hoje, segundo a sua expresso, o nosso inveterado barbarismo.

    Esta doutrina, alm de ser falsa na descrio geral do clima brasileiro, em demasia exterior; cosmolgica demais. Em sua pretensiosidade de explicar puramente pela fsica do globo as civilizaes primitivas e atuais, incompleta e estril. Ainda quando a determinao das condies mesolgicas do Brasil fosse exata, e absolutamente no , haveria uma distncia e no pequena a preencher: a ao do meio nas raas para aqui imigradas, levando-as a tomarem certa e determinada direo, forosa e fatalmente, e no outra qualquer. um crculo vicioso; explica-se o clima pela civilizao e a civilizao pelo clima. A h lacuna; atiram-nos frases ao rosto, supondo que nos enchem a cabea de fatos. No captulo seguinte a teoria de Buckle ser estudada miudamente.

    Tefilo Braga, o conhecido professor portugus, no teve por alvo consciente escrever uma * Cf. neste tomo os estudos de S. R. sobre o assunto. (Nota de Nelson Romero). 4 Vide History of Civilization in England, vol. I, pg. 101 a 107, edio de Londres de 1872.

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    teoria da histria do Brasil; fez uns reparos sobre a vida literria do pas e nada mais. no prlogo do Parnaso portugus moderno, reproduzido ampliadamente nas Questes de literatura e arte portugusa. Braga acredita que o lirismo da Europa meridional teve uma origem comum. Esta fonte geral foram populaes turanas, descidas da alta sia, divididas em dois grandes grupos, um que fez viagem pelo Norte da Europa e outro que a fez atravs da frica, vindo ambos convergir na Espanha.

    Na Amrica deu-se uma semelhante marcha de povos turanianos. A braquicefalia do basco francs e a dolicocefalia do basco espanhol provam o fato para a Europa. A suposta dolicocefalia das raas da Amrica do Norte e a pretendida braquicefalia geral das da Amrica Meridional demonstram o fenmeno para o Novo Continente.

    Tudo isto muito vago e tambm muito aventuroso; so presunes que nada tm de positivo, nada tm de provado; so divagaes que se acham em desacordo com fatos demonstrados.

    A hiptese de Tefilo Braga, tirada das idias de Retzius, Beloguet, Pruner-Bey e Varnhagen, para ser aceita deveria justificar os seguintes fatos:

    a) O monogenismo das raas humanas e sua origem comum na sia, o que no nada fcil no estado atual da cincia e diante justamente dos trabalhos de Paulo Broca, que o escritor portugus chama sem razo em seu auxlio;5

    b) A veracidade da trada de Max-Mller de que os povos do mundo se dividem em arianos, semitas e turanos, empresa difcil ante a lingstica das raas uralo-altaicas, polinsias, malaias, africanas e americanas;

    c) A emigrao dos turanos para a Amrica; d) A reduo dos povos deste continente a esse ramo nico; e) A ausncia entre as tribos do Brasil daqueles conhecimentos metalrgicos e astronmicos que

    passam pelos caracteres mais notveis da civilizao turana; f) Enfim, demonstrar a identidade do desenvolvimento das raas americanas e asiticas, um

    impossvel a olhos vistos. Antes que se haja feito o que a se indica, tudo o que se disser sobre a velha tese do asiatismo

    dos povos americanos pintar ngua, ou escrever na areia. a mais antiga de todas as teorias sobre a origem dos americanos e ressente-se de influncia bblica.

    A Amrica, diz o homem que melhor conheceu a pr-histria do Brasil o Dr. Lund , a Amrica j era habitada em tempos em que os primeiros raios da histria no tinham ainda apontado no horizonte do Velho Mundo, e os povos que nessa remotssima poca habitavam nela eram da mesma raa daqueles que no tempo do descobrimento a habitavam.

    Estes dois resultados na verdade pouco se harmonizam com as idias geralmente adotadas sobre a origem dos habitantes desta parte do mundo; pois que, quanto mais se vai afastando a poca do seu primeiro povoamento, conservando ao mesmo tempo os seus antigos habitantes os seus caracteres nacionais, tanto mais vai-se desvanecendo a idia de uma origem secundria ou derivada.6

    O sbio Lund prossegue, provando com as suas descobertas arqueolgicas a diferenciao cada vez mais crescente entre os povos brasileiros primitivos e as raas chamadas monglicas, medida que nos afastamos dos tempos modernos. a mesma intuio do grande Morton na Amrica do Norte.

    Desaparecem assim o velho estribilho de uma pretensa cultura dos povos do Brasil, que por imensas catstrofes retrogradaram, segundo se afirma, e a enfadonha tese do mongolismo, ces ridicules robinsonades, como disse um sbio europeu.

    O encontro de um ou outro artefato cermico, mal estudado no vale do Amazonas, um fato isolado, muito diverso do que se devia dar no resto do pas; antes de tudo um fato explicvel pela proximidade da civilizao do Peru, ou da Amrica Central, ou das Antilhas.

    Quanto distava a sobriedade do grande Lund da afoiteza leviana de uns pretensiosos muito conhecidos, que a andam a a dizer que os Tupis eram os crios, ou os normandos, ou os fencios, ou os mongis, ou os turanos, e no sei mais que povos que colonizaram a Amrica.

    possvel uma certa intermitncia na arte entre os povos amazonenses, fenmeno cem vezes repetido no curso da histria de todas as artes. Que prova isto? O turanismo? uma velha civilizao oriunda da sia? Absolutamente no.

    Os estudos cientficos sobre as raas americanas comeam apenas no Brasil. Reduzem-se por ora a pequenos trabalhos sobre craniologia, lingstica e arqueologia artstica e industrial. No existem muitos fatos demonstrados, os materiais so ainda limitadssimos; entretanto, j temos uma dzia de teorias para

    5 Questes de Literatura e Arte Portuguesa O artigo de 1877. 6 Vide nas Memrias de Antropologia de Broca os admirveis trabalhos sobre o monogenismo e poligenismo das raas humanas e sobre a hibridao. Vide especialmente a refutao das teorias de Retzius e Pruner-Bey sobre os primitivos habitantes da Europa e de Max-Mller sobre o turanismo das raas predecessoras dos arianos e semitas. Vide ainda minha Etnografia Brasileira. [Vide tambm a Ptria Portuguesa, Slvio Romero. Nota de N. R.].

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    explicar a origem dos Tupis-Guaranis e dos americanos em geral. No quero contestar os conhecimentos prticos de nossos savants sobre alguns assuntos

    referentes aos selvagens; mas tal a falta de senso crtico, tal a incapacidade filosfica de alguns desses savants, que os seus escritos merecem ir para o fogo. Apelam para os chins, para os japoneses, os trtaros, os crios, os egpcios, os fencios, os normandos, os judeus, os turanos, para filiarem neles os pobres Tupis... Querem uniformizar tudo, buscar para tudo um similar no Velho Mundo. Uma boa interpretao dos fatos lev-los-ia por certo a concluses diversas.

    Acabariam com a mania de reduzir a um tipo nico as raas americanas, e ao mesmo tempo veriam nelas um produto deste solo; compreenderiam melhor a semicultura antiga do vale do Amazonas, sua filiao na cultura idntica dos indgenas das Antilhas, e tantos outros fatos simples em si e obscurecidos por fantasiosos sistemas. Uma das marchas migratrias dos antigos povos americanos que parecem mal esclarecidas atualmente, a de uma corrente de norte a sul, partindo das Antilhas, das costas da Amrica Central e da atual repblica da Venezuela, e chegando ao interior do Brasil, estacionando vastamente no vale do Amazonas. O estudo comparativo das antigidades das Antilhas e da regio amaznica demonstraria definitivamente o fato.

    No valiosssimo escrito de Otis F. Mason, inserto no Annual Report of the Smithsonian Institution, do ano de 1876, sobre as antigidades de Porto Rico, imensos so os pontos de contato entre os produtos ali descritos e aqueles que se encontram no Par.

    Despertam especial meno os amuletos representando animais, figuras humanas, etc., fabricados de matrias diversas, e especialmente de uma pedra verde, semelhante ao jade, of green jadelike material, diz o Dr. Mason. So as muiraquits do Amazonas. Dentro da prpria Amrica acham-se os elementos para a explicao do que se encontra ao Norte do Brasil. Desprezemos de uma vez as teorias que recordam o velho biblicismo que o Sr. Tefilo Braga anda nesta questo a defender erradamente.

    Concedendo porm tudo, admitindo a identidade das origens do lirismo portugus e tupinamb, como quer o escritor portugus, que da se poder inferir para a filosofia da histria brasileira?

    Nada. A tese do autor aoriano puramente literria e no visa a uma explicao cientfica de nosso desenvolvimento social.

    Oliveira Martins em seu livro O Brasil e as colnias portuguesas enxerga todo o interesse dramtico e filosfico da histria nacional na luta entre os jesutas e os ndios de um lado e os colonos portugueses e os negros de outro. Um semelhante dualismo em grande parte de pura fantasia, e, no que tem de real, no passa de um fato isolado, de pouco valor e durao, fenmeno cedo esvaecido, que no pode trazer em seu bojo, como um segredo de fada, toda a latitude da futura evoluo do Brasil. um simples incidente de jornada, alado categoria do princpio geral e dirigente; uma destas snteses fteis com que alguns novelistas da histria gostam de nos presentear de vez em quando.

    A teoria do positivismo religioso sobre a nossa histria mais genrica e compreensiva. Falo em positivismo religioso, porque ele se me antolha o nico equilibrado, lgico e inteiro. O comtismo aquilo, ou no nada.

    O cisma de Littr foi estril, ilgico e anrquico. O digno escritor estava por certo no direito de ir com o mestre at onde quisesse ou pudesse; o

    que no tinha era o direito de limitar-lhe as crenas e as concluses da doutrina. No sou positivista; acho o comtismo um sistema atrasado e compressor, que faz uma figura apoucada ao lado do evolucionismo ingls e do naturalismo alemo. Se de Comte saram Littr e Laffitte, de Darwin destacaram-se Spencer e Haeckel, e no vacilo na escolha; mas julgo que a seita dos ortodoxos superior dos outros.

    Comte no escreveu diretamente sobre o Brasil; seus sectrios nacionais Teixeira Mendes e Anbal Falco desenvolveram o que eles chamam a teoria da ptria brasileira.7

    Meu plano neste rpido esboo no exige a exposio mida das vistas contidas nos escritos citados desses dois autores. Basta-me resumir. A nao brasileira uma ptria colonial, pertencente ao grupo das ptrias ocidentais. Logo ao sair da luta holandesa, o Brasil reunia em si as condies de uma ptria: solo contnuo, governo independente e tradies comuns. O destino brasileiro pode formular-se assim: O prolongamento americano da civilizao ibrica, a que cada vez mais se assimilaro, at unificao total, os ndios e os negros importados, ou os seus descendentes.

    Na guerra holandesa venceu definitivamente o elemento ibrico, representante da civilizao latina; destarte o Brasil escapou ao dissolvente da Reforma, do desmo, e est em melhores condies para adotar a doutrina regeneradora do que os Estados Unidos, por exemplo. isto em essncia.

    O que verdadeiro no novo, e o novo no verdadeiro. Que o Brasil uma ex-colnia, que do grupo das naes filiadas na civilizao ocidental, e que tem as condies indispensveis a uma nacionalidade, ou elas sejam solo contnuo, governo e tradies comuns, como quer Comte, recordaes e esperanas comuns e a vontade decidida de viver debaixo das mesmas leis e compartilhar os mesmos destinos, como ensina Renan, ou comunho de raa, de religio, de lngua e de territrio, como escreve 7 Revista do Instituto Histrico, n. 23, de outubro de 1844.

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    Scherer, que ao Brasil cabe tudo isto, j todos o sabiam antes das demonstraes recentssimas. Que a guerra holandesa foi um fenmeno notabilssimo; que ali triunfou Portugal com a civilizao catlico-latina contra a Holanda e a civilizao germnico-protestante, e que nessa epopia os colonos brasileiros viram-se quase ss, desamparados da me-ptria; que na luta entraram as trs raas; que as duas chamadas inferiores devem ser incorporadas nossa vida social, de tudo isto sabia-se no Brasil, desde que houve algum que se lembrasse de escrever-lhe a histria. Tudo isto velho, velhssimo.

    Mas a necessidade indeclinvel de haver na Amrica representantes da civilizao ibrica e a superioridade indiscutvel desta sobre a civilizao germnica, o que no me parece de todo evidente.

    A indispensabilidade desse dualismo histrico, representante na Europa de duas tendncias opostas, devendo necessariamente reproduzir-se na Amrica, muito simtrica demais para no ser em grande parte de pura fantasia.

    Era necessrio para as ptrias ocidentais que o portugus vencesse no Brasil o holands protestante e que o ingls derrotasse nos Estados Unidos o francs catlico!

    muito cmodo. E afinal, por que se no h de dar o mesmo na Oceania em geral e notadamente na Austrlia, onde o elemento germnico quase no encontra o seu competidor? So terras novas, habitadas por selvagens a desaparecerem a olhos vistos, que esto sendo colonizadas por europeus, representantes da civilizao ocidental. Por que no se h de repetir ali o dualismo salutar?

    A teoria da histria de um povo parece-me que deve ser ampla e compreensiva, a ponto de fornecer uma explicao completa de sua marcha evolutiva. Deve apoderar-se de todos os fatos, firmar-se sobre eles para esclarecer o segredo do passado e abrir largas perspectivas na direo do futuro.

    Seu fim no s mostrar o que esse povo tem de comum com os outros; sua obrigao ao contrrio exibir os motivos das originalidades, das particularidades, das diferenciaes desse povo no meio de todos os outros. No lhe cumpre s dizer, por exemplo, que o Brasil o prolongamento da cultura portuguesa a que se ligaram vermelhos e negros. Isto muito descarnado e seco; resta ainda saber como estes elementos atuaram e atuaro uns sobre os outros e mostrar as causas de seleo histrica que nos vo afastando de nossos antepassados ibricos e de nossos vizinhos tambm filiados na velha cultura ibera. Se a teoria de Buckle em demasia cosmogrfica, a de Martius demasiado etnolgica, a dos discpulos de Comte em extremo social, sem atender a outros elementos indispensveis.

    A filosofia da histria de um povo qualquer o mais temeroso problema que possa ocupar a inteligncia humana. So conhecidas as dificuldades quase insuperveis dos estudos sociolgicos. Uma teoria da evoluo histrica do Brasil deveria elucidar entre ns a ao do meio fsico, por todas as suas faces, com fatos positivos e no por simples frases feitas; estudar as qualidades etnolgicas das raas que nos constituram; consignar as condies biolgicas e econmicas em que se acharam os povos para aqui imigrados nos primeiros tempos da conquista; determinar quais os hbitos antigos que se estiolaram por inteis e irrealizveis, como rgos atrofiados por falta de funo; acompanhar o advento das populaes cruzadas e suas predisposies; descobrir assim as qualidades e tendncias recentes que foram despertando; descrever os novos incentivos de psicologia nacional que se iniciaram no organismo social e determinaram-lhe a marcha futura. De todas as teorias propostas a de Spencer a que mais se aproxima do alvo, por mais lacunosa que ainda seja.8

    CAPTULO III A FILOSOFIA DA HISTRIA DE BUCKLE E O ATRASO DO POVO BRASILEIRO

    Para bem compreender a posio presente do povo brasileiro e o seu desenvolvimento histrico,

    luz das idias cientficas que reinam na atualidade, mister lanar um olhar sobre a moderna concepo da histria, e insistir sobre a de Buckle especialmente. Este autor mais de perto nos toca a ns brasileiros, porquanto dos modernos reformadores da histria , o que mais se ocupa com o Brasil, e terei, por necessidade, de apreciar as palavras duras, porm no fundo exatas, que escreveu a nosso respeito. Tanto mais isto necessrio, quanto embalde se procuraria em nossos historiadores, no tocante filosofia da respectiva cincia, outra coisa alm de declamaes mais ou menos inadmissveis.

    Geralmente se repete que o XIX sculo foi o sculo da histria, como o anterior fora o da filosofia. Este dito que, desde o autor das Cartas sobre a Histria de Frana, tem valido por verdadeiro, no passa talvez de uma dessas snteses caprichosas com que se costumam caracterizar as pocas com perda para a verdade. Outros tm dito que aquele foi o tempo das cincias naturais; alguns que foi o da crtica... Mas o certo em tudo isto que as trs caractersticas se supem e se completam; no mais pos-svel a histria sem a crtica, como no admissvel esta sem as cincias naturais. Eis o grande fato firmado pelo sculo XIX nos seus ltimos anos: estabelecer os outrora ditos estudos morais sobre bases experimentais. O processo tem sido complicado e longo; foi mister passar em revista o mtodo de todas 8 Vide de Teixeira Mendes A Ptria Brasileira, Rio de janeiro, 1881. De Anbal Falco Frmula da Civilizao brasileira, no Dirio de Pernambuco, ns. 46 a 50, de 1883.

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    as cincias e expulsar do seu conselho mais de uma pretendida sem validade em seus ttulos. O desenvolvimento gradativo de todos os fatos observveis, alado altura de princpio dirigente, mostrou a necessidade de melhor estabelecer a genealogia cientfica: a nova classificao, quaisquer que sejam ainda as dissonncias entre os filsofos, tem por base tal princpio.

    Em conseqncia deste novo modo de ver e de julgar que a expulso de algumas supostas organizaes cientficas tornou-se inevitvel. Est muito longe de ser perfeito o acordo neste ponto entre alguns dos maiores pensadores que contriburam para o grande resultado.

    Ao lado da nova classificao das cincias que se desenvolve na ordem crescente da complexidade dos fenmenos e na decrescente de sua generalidade, poderia, a meu ver, inscrever-se outra, no como classificao orgnica das cincias, seno como uma notao histrica de seu desenvolvimento, no que diz respeito ao grau atingido de sua certeza. No seria inexato, por esta forma, dizer que elas tm sido cincias propriamente ditas, quase-cincias e falsas cincias. Quem no colocaria entre as primeiras a matemtica, a astronomia, a fsica...; em o nmero das segundas a psicologia, a histria, a economia poltica...; e no terceiro grupo a metafsica e a teologia clssicas, desconcertadas irms da astrologia e da alquimia? Toda a ordem de estudos, tendo por objetivo o homem e a sociedade, tem ficado por enquanto na segunda classe, por no haver atingido aquele grau de certeza que constitui o brilho prprio das completas cincias. A histria acha-se a; e, por maiores que tenham sido os esforos de Buckle e seus continuadores, ela parece resignada a no deixar por ora o crculo de suas companheiras: as quase-cincias.

    O movimento romntico dos primeiros anos do sculo XIX trouxe a paixo pelo passado, e, desde a grande obra de Hallam sobre a Idade Mdia, apareceu na histria a tendncia pinturesca e representativa, contrabalanada pela que se intitulava filosfica. O certmen das duas escolas rivais j pertence por sua vez histria, que luta por adquirir novos princpios e devassar novos horizontes.

    No padece dvida que os modernos reformadores j deram um notvel passo que parece definitivo. No outro seno o grande resultado de que j falei: a aplicao dos processos experimentais ao estudo dos acontecimentos humanos. a ltima fase a que chegaram os trabalhos histricos; mas isto ainda no lhes garante, quanto a mim, a segurana completa e inabalvel da cincia, por mais que o digam alguns dos pensadores que, como Buckle, lhes querem atribuir este carter.

    Por mais firmes que paream os achados de Draper, Bagehot, Buckle, Lazarus e Marselli; por mais inteirados que se mostrem dos mtodos de Lyell, Wundt, Virchow, a histria em suas mos no ainda uma cincia capaz de verificaes certssimas e indubitveis. Muito menos o tratada pelos pinturistas e filsofos da escola francesa. Ernesto Renan em artigo comemorativo de Aug. Thierry, inserto nos seus Ensaios de moral e crtica publicados em 1859, ainda fala em frases sonoras das cenas pinturescas do insigne historiador e das dissertaes filosficas de Guizot. Nesse tempo no lhe eram conhecidas as aplicaes novas da geologia e da fisiologia aos fatos humanos e ele ignorava as lacunas dos dois notveis mestres.

    Henry Thomas Buckle, morto em 1862, aos trinta e nove anos, depois de haver em 1857 publicado sua Civilizao na Inglaterra, ficou por muito tempo quase totalmente desconhecido no Brasil.

    Quando muito, alguns dele tinham notcia pela crtica de Littr, seno pela superficial e lacunosa Histria da Literatura Inglesa Contempornea de Odysse Barot. Mui raros o teriam lido. Seu esprito foi influenciado pelos trabalhos de Comte adicionados aos de Whewell e Mill. Qutelet com sua transformao matemtica da estatstica foi tambm de um peso decisivo para ele, bem como a geral corrente do tempo que o lanava no encalo das idias de carter demonstrado e cientfico. Sua obra, que no passou da Introduo, geralmente considerada um notvel sucesso no domnio dos estudos histricos. O primeiro volume contm a filosofia do nobre pensador; os outros dois trazem exemplificaes prticas de mximo interesse tomadas aos anais da Frana, Esccia, Espanha e da prpria Inglaterra. naquele que mais se revela o reformador amestrado. Detenhamo-nos ante ele.

    Comeando pelo problema da liberdade, estuda a questo das influncias a que cedem as aes humanas, tais como o influxo das leis fsicas, o da religio, do governo, e da literatura, e acaba por um esboo sobre a origem dos estudos histricos, seu estado na Idade Mdia e uma apreciao sobre a inteligncia inglesa at o sculo XVIII. Em tudo mostra uma erudio variada e um pensamento firme, revestidos por um estilo simples e fluente.

    Buckle rebela-se contra o mtodo dos metafsicos na inquirio das leis do esprito humano e no modo de tratar a histria. Ele exclama um pouco rudemente: As long as the human mind is only studied according to the narrow and contracted method of metaphysicians, we have every reason for thinking that the laws which regulate its movements will remain unknown.1 Estas palavras quando foram proferidas pelo ilustre escritor no revelavam ainda uma to vulgar e comumente aceita verdade entre os mais proeminentes pensadores do mundo, como o manifestam hoje. Ele pois detalhou um pouco a sua demons-trao. Sem desconhecer certa influncia dos processos metafsicos sobre mui poucas das leis da associao e talvez sobre as modernas teorias da viso e do tato, nota-lhes a diametral oposio em que se acham com os mtodos histrico e cientfico. O metafsico estuda um s pensamento, e o historiador muitos; as cincias indutivas devem esmiuar os fatos e isolar cada um para melhor determin-los, e pelo

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    processo da vulgar filosofia impraticvel o isolamento de um fenmeno espiritual, que, por outra parte, no se pode subtrair influncia das circunstncias exteriores. Alm de que as duas grandes classes de metafsicos, os idealistas e os sensualistas, chegam sobre as leis do esprito a contrrias afirmaes, em sua cincia o pensamento o instrumento e ao mesmo tempo a matria sobre que ele se exerce. Isto produz um peculiar embarao. a impossibilidade de formar uma vista compreensiva do todo dos fenmenos mentais, porquanto, por mais extensiva que possa ser tal vista, excluir sempre o estado do pensamento pelo qual ou no qual ela formada. No assim nas cincias fsicas que tm a seu servio uma grande poro de mtodos. Tal defeito radical impede, a seus olhos, a psicologia de ser uma cincia e de chegar a qualquer resultado aproveitvel.

    Buckle exagerou. Imbudo das negativas concluses de Comte sobre o estudo dos fatos subjetivos, era concludente que recusasse-lhe a nota de rigorismo cientfico; mas no que chegasse a desconhecer-lhe qualquer eficcia.

    Como se lhe afigurou que a histria podia ser erigida ao grau de cincia, ela que ainda mais complexa que a psicologia? Como saltar dos estudos biolgicos, que tratam da vida em geral, para a histria, desprezando as leis dos fatos intelectuais, sensveis e morais? No posso compreender que se faa da sociologia uma cincia quando no se admite uma psicofsica. A seriao das cincias fica por tal modo truncada.9

    Desde agora cumpre notar um equvoco de Emlio Littr. Em sua crtica, um pouco animada, contra o historiador ingls, ele declara ocupar-se com a sua obra, porque o escritor cedeu influncia de Comte e dela quis, at certo ponto, separar-se! S por isso? Quando muito il ne fait pas fi du demi-positivisme; ce sont des acheminements...

    E qual seria para Littr o inteiro positivismo? Seria o do prprio Littr, que tambm se separou do mestre em mais de um ponto decisivo? Ser

    o de P. Laffitte, o S. Pedro da escola, segundo Renan?10 Como quer que seja, o velho escritor teve um certo gosto em andar apurando ortodoxias

    positivistas, mxime com os dignos pensadores da escola inglesa. Mill, Spencer, Buckle sofreram os seus golpes, nem sempre com muita razo.

    No h maior cegueira de que esta de supor o positivismo uma doutrina compacta, cujos sectrios se acham acordes, pronunciando a ltima palavra da cincia! A clebre definio de Huxley que a seita comtesca um catolicismo sem o elemento cristo verdadeira. No poucos foram sem dvida os mritos e vantagens do sistema; este porm tem sido ultrapassado. Contribuiu para certos resultados; mas, sacrificando a alguns prejuzos, tem desdenhado, por exemplo, algumas das fecundas verdades anunciadas por Darwin. Admira que alguns escritores brasileiros proclamem a seu pblico que so discpulos de Comte in totum e ao mesmo tempo do sbio ingls ltimo citado, isto , que aceitam em cheio todas as concluses dos dois mestres que totalmente se repelem em mais de um ponto de mximo interesse, como sobre a idia da vida e a da sociedade.

    Cumpre ser completamente despido de senso crtico para destarte fornecer provas de que se no pode entender os sistemas em seus resultados fundamentais.

    Poderiam ser ambos aceitos; mas com redues indispensveis e vastssimas. Continuemos. Declarado por Buckle ineficaz para a histria o processo dos metafsicos, -o tambm o dos

    telogos. Ambos os mtodos desconheceram a lei da normalidade natural dos fatos humanos: o primeiro criando a doutrina do livre arbtrio, e o outro fundando a da predestinao. The theory of predestination is founded on a theological hypothesis: that of free will on a metaphysical hypothesis.

    Destituda de todo o fundamento humano e racional, a predestinao dos acontecimentos no perdurou longamente nas tentativas de filosofia da histria at ao presente feitas. doutrina que no precisa de refutao. Por outro lado o dogma da liberdade completa de nossas aes e dos fatos histricos correspondente doutrina do acaso; no existe mais uma lei para a histria; predomina o capricho dos agentes e a glorificao sobre-humana dos heris, que dirigem o curso dos acontecimentos a seu bel-prazer.

    Buckle insurge-se contra esta apreciao e chega a traar a refutao de seu principal argumento, que se funda na inerrncia da conscincia. Sem muito trabalho foi-lhe fcil mostrar o carter relativo desta faculdade, sempre mudando de crenas e afirmaes no curso evolucional da humanidade. Encarada tambm no indivduo, diz-nos ele com a maior veracidade: Consciousness is infallible as to the fact of its testemony; but fallible as to the truth.11

    Abandonados os dois mtodos insustentveis, o historiador pretende substitu-los pelos processos fundamentais das cincias naturais, dizendo que as aes humanas so determinadas somente por seus prprios antecedentes e tm o carter de uniformidade, produzindo os mesmos resultados sob as 9 Z. Moindron De 1 Anciennet de lHomme, Bain, Lgica. 10 La Science. 11 Z. Moindron, ibid.

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    mesmas circunstncias, podendo ser perturbadas ou dirigidas pela ao dos meios. So estas as suas palavras: Rejecting, then, the metaphysical dogma of free wiil, and the theological dogma of predestined events, we are driven to the conclusion that the actions of men, being determined solely by their antece-dents, must have a character of uniformity, that is to say, must, under precisely the same circumstance, always issue in precisely the sarne results. And as all antecedents are either in the mind or out of it, we clearly see that ali the variations in the results, in other words, all the changes of which history is full, ali the vicissitudes of the human race, their progress or their decay, their happiness or their misery, must be the fruit of a double action; an action of external phenomena upon the mind, and another action of the mind upon the phenornena.

    O autor recorre a Qutelet, que, com a transformao da estatstica pelo clculo das probabilidades, prova, de ano a ano, a repetio gradativa dos mesmos crimes, do emprego das mesmas armas para igual nmero de assassinatos e de suicdios; a repetio da celebrao de igual soma de casamentos!...

    No h como negar os fatos esclarecidos pelo ilustre calculista belga e comprovados pelos mais srios observadores.

    As aes humanas so regidas por um complexo de leis que inconscientemente para ns atiram-nos no caminho da vida corno uns quase atores. Mas a histria, que no uma cadeia de fatos sempre novos e desarmnicos com seus antecedentes, como j se pretendeu, ser certo que se repita? Os dados estatsticos no podem chegar at a; a marcha da histria evolucional, e tanto basta para que no haja repetio, como no existe disparatada incoerncia.

    onde est porm o grande embarao. Esta liberdade, que por alguns motivos a cincia moderna acaba de reduzir a propores pouco

    amplas, no deixa de existir ao menos em uma forma to aparente, que ser sempre impossvel pesar a massa das circunstncias e o conjunto dos mveis infinitos que, a um s tempo, dirigem a trama complicadssima dos acontecimentos humanos.12

    Buckle reconhece que as leis do pensamento reagem sobre a ao das leis fsicas; e no ir a a confisso de elemento autnomo at certo ponto, ainda que obscuro, e capaz de perturbar a uniformidade cientfica das investigaes histricas?

    Parece que esta considerao restringe o carter altamente cientfico da histria, ainda que dirigida por mos como as de Buckle ou Littr.

    Por falar neste ltimo, no fora de lugar o reduzir um pouco as aparncias de verdade de uma sua proposio contra o autor da Civilizao na Inglaterra. Increpa-o por haver confundido as leis do esprito humano com as leis da histria. Diz ele: Rien dans lesprit humain ne montre quil doive y avoir une volution historique. Cette volution est un fait que lon constate exprimentalement comme tous les autres faits; mais ou ne la dduit pas de ltude psychique.13 Eis o resultado a que se chega, quando se admite uma histria-cincia, e se despreza, como de todo intil, uma psicologia cientfica! A distino das duas categorias de leis incompreensvel, e sobretudo para um positivista. Para quem, como E. Littr, no concebe o esprito humano em sua totalidade, seno desenvolvido e representado na histria, que outras so as suas leis alm das desta ltima?

    Certamente E. Littr, com toda a gravidade que o distinguia, no respeitou muito a memria do seu celebrado mestre quando escreveu aquele perodo.

    O sbio ingls divide as leis que dirigem a histria em fsicas e mentais; estas ltimas subdivide-as em intelectuais e morais.

    Agora que se revela o lado mais original de sua obra; so os captulos mais profundos. Comea pela apreciao das leis fsicas.

    As influncias desta ordem, a que a raa humana mais poderosamente cede, podem para ele ser classificadas em quatro categorias: clima, alimentao, solo e aspecto geral da natureza. Este ltimo merece-lhe mxima ateno. Diz-nos: The last of these classes, or what the call the general Aspect of Nature, produces its principal results by exciting the imagination, and by suggesting those innumerable superstitions which are the great obstacles to advancing knowledge. And as in the infancy of a people the power of such superstitions is supreme, it has happened that the various Aspects of Nature have caused corresponding varieties in the popular character, and have imported to the national religion particularities which, under certain circumstances, it is impossible to efface.14

    Firmado especialmente em Mill, nega a distino original das raas explicando-lhes as diferenas posteriores pelas quatro leis que formulou. No parece bem fundamentado o asserto. No h dvida que as diversidades de climas, solos, alimentos... contribuem para que perdurem as separaes das raas; preciso porm ir um pouco adiante e declarar que, sendo os climas e mais agentes fsicos anteriores s raas, a diversidade destas j de si originria e primordial, isto , surgiu com elas mesmas 12 Sobre a questo da liberdade, vejam-se as interessantes obras dos italianos Herzen Ferri. 13 La Sciense. 14 Buckle, ibid.

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    desde o seu primeiro aparecimento. Pela lei darwnica da transformao dos seres, entendida o mais latamente, as raas despontaram

    diferentes em climas diferentes tambm. Os climas depois disto s tm feito conservar e fortalecer as predisposies nativas.

    O escritor britnico divide a civilizao em dois grandes ramos, a da Europa e a de fora dela; na primeira predomina o esforo do homem sobre a natureza; na outra o contrrio que se nota. Esta distino caprichosa. A civilizao s antiga e moderna, oriental e ocidental, da Europa ou extra-europia nos livros medocres de filosofia da histria, que assinalam leis contraditrias para cada uma delas. No vasto e completo conceito ela uma s, que evolucionalmente se tem desenvolvido at ns.

    Podem-se-lhe quando muito, e at necessrio, marcar fases sucessivas, como mais ou menos acertadamente o praticou Comte e outros muitos antes e depois dele.

    Todos os tempos e todos os pases devem ser estudados, porque todos ho contribudo para o geral progresso; a lei da filiao tem seu maior complemento exatamente na histria. Se a civilizao est atualmente na Europa, no ser verdade que lhe veio da sia e que j tem passado para a Amrica? Obcecado pelas contradies dos climas e aspectos da natureza, o notvel pensador chegou a erigir a sua distino infundada em uma lei da cultura humana. Neste ponto excelente a refutao de Littr, que escreve com franqueza: um erro, e no h a base alguma para a filosofia da histria. Para que se pudesse sociologicamente dividir a civilizao em europia e extra-europia fora preciso que a civilizao da Europa fosse autoctnica. Ora, ela no o . Foi nas bordas da sia, nessa Grcia, metade europia e metade asitica, que apareceu a civilizao da Europa destinada a tornar-se a civilizao universal; porm o facho s ali se acendeu pela chama comunicada por nossos antepassados da sia e da frica. A proposio de Buckle s verdadeira quando limitada a um perodo recente; mas ainda assim ela foge e escorrega por outro lado, porquanto a civilizao sada da Europa implanta-se na Amrica, na Austrlia, comea a transformar a ndia, maravilha o Japo, todos os pases onde, segundo o pretendido axioma, a natureza mais poderosa que o homem.15

    Tudo perfeitamente achado, exceto a falsidade do axioma. verdade que os diversos climas, at os mais agros, so adequados s diferentes raas que produziram, sendo exata at certo ponto a increpao feita por. Littr ao princpio que desdenha. Mas, tendo-se em vista a civilizao moderna, que , como ele o reconhece, toda de implantao, no se deve desconhecer a justeza da lei que tacha de presumida. O fato da emigrao de povos originrios de pases diversos para climas totalmente estranhos garante-me nesta afirmao. No deve ser esquecido que os arianos, por exemplo, que se acham hoje espalhados por todas as latitudes do globo, encontraram climas mais favorveis a seu desenvolvimento numas paragens do que noutras. Poder-se- dizer que as colnias europias estabelecidas h quatro sculos na sia, frica, Amrica e Oceania encontraram por toda a parte um clima que fosse igualmente favorvel ao seu florescimento? Ser certo que a natureza de algumas regies no lhes tem constitudo bastantes embaraos, e nalgumas paragens quase insuperveis?

    Buckle, passando a tratar da influncia das leis mentais, d maior quinho s intelectuais do que s morais. Nisto nem sempre vai razo e profundeza.

    Como se v, ele um experimentalista em largo sentido, pelo mtodo e pela essncia das idias. Reforado o seu sistema pelas novas concepes do darwinismo, a exemplo de Bagehot, ele um bom sistema da histria cientfica.

    A explicao das civilizaes antigas, vai busc-la na fsica das regies onde se desenvolveram. Calor e umidade, fertilidade da terra e um vasto sistema fluvial, eis as condies primordiais para o desenvolvimento das civilizaes primitivas. Prova-o com a ndia para a sia, o Egito para a frica, o Mxico e o Peru para a Amrica.

    Mas como que o Brasil, e este ponto a que almejava chegar, como que o Brasil, possuindo em to larga escala os dois fatores, no foi a sede de uma civilizao antiga?

    O escritor britnico recorre, para explicar esta lacuna, a um certo agente destruidor, que impossibilitou a ao dos outros. Ouamo-lo detidamente:

    O agente a que eu aludo o vento geral, vento alsio (trade-wind), admirvel fenmeno pelo qual todas as civilizaes anteriores s da Europa foram grande e perniciosamente influenciadas. Este vento abrange no menos de 560 de latitude: 28 ao norte do equador e 28 ao sul. Nesta larga extenso, que compreende alguns dos mais frteis pases do mundo, o vento geral sopra durante todo o ano, ora do nordeste, ora do sudeste. As causas desta regularidade so agora bem conhecidas e sabe-se que dependem em parte do deslocamento do ar no equador, e em parte do movimento da terra: por isso o ar frio dos plos constantemente impelido para o equador e produz assim os ventos do norte no hemisfrio setentrional e os ventos do sul no meridional. Estes ventos so afastados do seu curso natural pelo movimento da terra quando se volve em seu eixo de oeste para leste. E como a rotao da terra mais rpida no equador do que em qualquer outra parte, acontece que na vizinhana daquele a velocidade to grande que compele os movimentos da atmosfera dos plos, e forando-os noutras direes, d origem a 15 La Science.

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    estas correntes orientais, chamadas ventos gerais, ventos alsios. O que porm agora nos interessa no uma explicao dos ventos gerais, e sim uma

    explanao do modo como este grande fenmeno prende-se histria da Amrica do Sul. O vento geral, soprando na costa oriental da Amrica do Sul e procedendo de leste, atravessa o oceano Atlntico e deixa pois a terra cheia de vapores acumulados em sua passagem. Estes vapores, tocando praia em intervalos peridicos, so condensados em chuva; e como seu progresso para oeste obstado pela cadeia gigantesca dos Andes, que no podem passar, empregam toda sua umidade no Brasil, que por isso muitas vezes alagado pelas mais destruidoras torrentes. Esta abundante cpia de umidade, sendo ajudada pelo vasto sistema fluvial peculiar parte oriental da Amrica, e acompanhada pelo calor, tem estimulado o solo a uma atividade sem igual em qualquer outra parte do mundo. O Brasil, que quase to grande como toda a Europa, coberto de uma vegetao de incrvel profuso. To vioso e luxuriante o seu crescimento que a natureza parece extravasar-se num brinco de vaidosa fora. Uma grande parte desta imensa regio entrelaada por densas e enredadas florestas, cujas magnficas rvores, florescendo com beleza sem rival, e marchetadas de mil cores, despedem seus produtos com inexcedvel prodigalidade. Em suas franas aninham-se pssaros de esplndida plumagem, que pousam em seus altos e escusos recessos. Por baixo, suas bases e troncos so embaraados por matos rasteiros, plantas trepadeiras, inmeras parasitas, tudo borbulhando de vida. Ali existem em demasia miradas de insetos de todas as variedades, reptis de forma estranha e singular, serpentes e lagartos listrados com fatal beleza; todos acham meios de existncia nesta vasta oficina e armazm da natureza. E para que nada falte a esta terra de maravilhas, as florestas so cercadas por enormes prados, que, fumegando de calor e umidade, suprem com alimento manadas inu-merveis de gados silvestres, que pastam e engordam em suas ervas; as plancies prximas, ricas de outras formas de vida, so a morada predileta dos animais mais sutis e ferozes, que preiam uns aos outros, porm que parece nenhum poder humano ter esperanas de extirpar.

    Tal a fora e abundncia de vida por que colocado o Brasil acima de todos os outros pases do mundo.

    Entre esta pompa e esplendor da natureza porm nenhum lugar foi deixado para o homem!... reduzido insignificncia pela majestade que o cerca. As foras que se lhe opem so to formidveis que ele nunca foi apto a lhes fazer frente, nunca foi capaz de resistir sua acumulada presso. O Brasil todo, a despeito de suas inmeras vantagens aparentes, tem permanecido inteiramente inculto, vagando seus habitantes selvagens e imprprios para resistir aos obstculos que a generosidade da natureza ps em seu caminho. Os aborgines, como todo o povo na infncia da sociedade, foram adversos a empresas, e, sendo desconhecedores das artes com que se removem os obstculos fsicos, nunca intentaram opor-se s dificuldades que obstaram ao seu progresso social.

    Estas dificuldades entretanto so to srias que durante cerca de quatro sculos os recursos da cincia europia tm sido em vo empregados no intuito de afugent-las. Ao longo da costa do Brasil h sido introduzida da Europa uma certa cpia de cultura que os naturais por seus prprios esforos nunca teriam alcanado. Tal cultura porm, em si mesma muito imperfeita, nunca penetrou nos recessos do pas, e no interior at agora existe um estado de coisas semelhante ao que dantes existia. O povo ignorante, e alm disto brutal, no praticando nenhuma restrio, e no reconhecendo lei alguma, continua a viver em seu antigo e inveterado barbarismo. Neste pas as causas fsicas so to ativas e produzem seu imprio em uma escala de tal magnitude, que tem sido at hoje impossvel escapar aos efeitos de sua ao combinada. Os progressos da agricultura so paralisados por florestas intransitveis, e as colheitas so estragadas por inumerveis insetos. As montanhas so por demais altas para serem escaladas; os rios por demais largos para serem vadeados ou cobertos com pontes; cada coisa foi a produzida para reprimir o pensamento humano e conter a sua crescente ambio. Destarte as energias da natureza tm encadeado o esprito do homem. Nenhures to penoso o contraste entre a grandeza do mundo externo e a pequenez do interno. O pensamento intimidado por esta luta desigual no s tem sido incapaz de avanar, como sem o auxlio estrangeiro teria indubitavelmente recuado. At ao presente, com todos os proventos, cons-tantemente introduzidos da Europa, no existem sinais de progresso real; no obstante a freqncia de estabelecimentos coloniais, menos de um quinto da terra cultivado.

    Os hbitos do povo so to brbaros como dantes, e, quanto a seu nmero, muito digno de notar-se que o Brasil, a regio onde mais que nas outras os recursos fsicos so mais poderosos, onde os animais e vegetais so mais abundantes, onde o solo regado pelos mais nobres rios e a costa ornada pelos melhores portos, este imenso territrio, que maior que doze vezes o tamanho da Frana, contm uma populao que no excede a seis milhes de almas.16 Estas consideraes suficientemente explicam por que que em todo o Brasil no existem momentos da mais imperfeita civilizao, nenhum sinal de que o povo tenha, em perodo algum, sado por si mesmo do estado em que se achava quando o seu pas foi descoberto. No Brasil o calor do clima foi acompanhado por uma irrigao dupla, proveniente, de um lado, do imenso sistema fluvial prprio da costa oriental, e, de outro, da abundante umidade depositada pelos ventos gerais. Desta combinao resulta que a fertilidade sem igual, to grande quanto podia 16 O autor escrevia em 1857.

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    interessar ao homem, derrocou os clculos deste, paralisando seu progresso por uma exuberncia que, se fosse menos excessiva, o teria ajudado.17

    Esta memorvel passagem, que devia ser meditada por todos os brasileiros, verdadeira em seu sentido geral; mas envolve mais de uma inexatido.

    certo que os primitivos habitantes do pas no ultrapassaram os ltimos degraus da selvageria; exato ainda que a nossa atual civilizao toda impregnada de barbarismo. S os patriotas desajuizados podero contest-lo. Buckle porm pelo menos incompleto quando faz depender as civilizaes antigas do calor e umidade, ou da fertilidade da terra e de um vasto sistema fluvial. A filosofia da histria, sempre que maneja um princpio nico, expe-se a equvocos. O princpio invocado pelo autor ingls no to exato e profundo como lhe pareceu, porquanto civilizaes antigas existiram em regies onde seno encontram tais requisitos. Basta ponderar o caso das civilizaes da Sria, Fencia, Grcia e Etrria, pases to diferentes da ndia, Egito, Mxico e Peru.

    Ainda mais: regies existem, dotadas das qualidades encomiadas, que no foram a sede de civilizaes antigas. A grande pennsula denominada Indochina em sua quase totalidade, a Austrlia e as regies do Nger e do Congo so a prova.

    Pelo que toca ao Brasil, favorecido em larga escala pelas condies exigidas, o agente perturbador, na frase de Buckle, o trade-wind, que faz o pas periodicamente ser devastado pelas mais impetuosas torrentes.

    Creio que vai aqui alguma dose de engano. Se alguma cousa peridica nota-se no clima do Brasil, no so devastadoras enchentes, e sim

    calamitosas e destruidores secas! Toda a enorme regio que se estende das margens do So Francisco s do Parnaba e ainda alm o teatro regular de to desastroso fenmeno. Mais de um tero talvez do pas fica assim flagelado em conseqncia do calor; onde pois as umidades acarretadas pelos ventos gerais?

    O fato tem-se repetido dezenas de vezes nos ltimos quatro sculos, e ainda agora, sob os nossos olhos, tem sido aquela regio devastada pela seca aterradora.

    No quero, nem posso com isto contestar a ao malfica dos ventos gerais; mas torno patente que a sua energia no to poderosa como sups o sbio ingls; e a prova mais cabal que o fenmeno inverso do produzido por tais ventos repete-se constantemente. Temos um mau clima no por excesso de chuvas, sim por excesso de sua falta. Pelo menos em grande parte do pas o que se nota.

    No h dvida que, quando vm as chuvas, so s vezes torrenciais, o que causa verdadeiro desequilbrio: ou completa seca, ou chuvas por demais abundantes. Isto porm no sempre.

    Se pois nosso clima mais poderoso do que o homem, como costume velho dizer-se, mais pela terrvel arma das secas com que joga do que pelas enchentes com que nos castiga.

    Outro equvoco de Buckle quando fala de nossas maravilhas e de nossos empecilhos naturais. Exagera umas para tambm avolumar os outros.

    Os empecilhos so: as grandes matas que se no podem transitar, os rios que se no podem passar, as montanhas que se no podem transpor, e a abundncia dos animais mais ferozes e daninhos, que ou devastam as plantaes ou impedem o ingresso nos recessos do pas!

    O autor, que nunca visitou o Brasil, foi vtima do maravilhoso no inventrio dos obstculos que a natureza nos ope.

    um erro dizer-se que temos as mais soberbas e impenetrveis matas do mundo. Viajantes muito autorizados so acordes em atestar que o interior do pas todo calvo, s existindo florestas na pequena cinta dita das matas ou nas margens dos grandes rios. A maior poro do pas no oferece tal obstculo, se que assim se pode considerar uma floresta.

    O que se nos apresenta agora como um defeito, nossos romnticos, embriagados de prodgios, sempre nos apresentavam como uma excepcional vantagem!

    Os rios mais largos... ainda uma abuso romntica. A maior parte dos que figuram em nossas cartas geogrficas ou no existem realmente ou no merecem tal designao. No passam de leitos secos quase todo o ano, e apenas cheios na poca das chuvas. Quase todos os rios do Norte do Brasil se acham neste caso.18

    Restam o sistema do Amazonas, o do So Francisco e o do Prata. Estes trs so verdadeiramente notveis, e por amor deles que se formou a extravagante idia

    de que todos os rios do Brasil so gigantescos. Olhando-se de perto, desaparece um pouco a miragem. Quanto ao Prata, bvio que nos no pertence, e dos seus principais concorrentes s possumos a parte superior e mais insignificante do curso, as cabeceiras, por assim dizer. o caso do Paran, Paraguai e Uruguai.

    Pelo que toca ao So Francisco, que s o grande rio que podemos chamar exclusivamente nosso, o seu sistema relativamente limitado e abrange poucos confluentes. 17 History of Civilization in England. 18 Vide vrios relatrios enviados ao chefe da comisso para o levantamento da carta geral do pas, o Sr. Beaurepaire Rohan. Sobre todos digno de nota o do finado senador Tomaz Pompeu de S. Brasil.

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    O Amazonas que exatamente colossal, e ainda assim no se pode dizer com Buckle que seja mais um estorvo do que um auxiliar, alm de que s aproveita diretamente a um quinto talvez de nosso territrio e parte mais despovoada.

    a nica regio do Brasil onde aparecem as chuvas destruidoras de que fala o ingls. As montanhas to altas que se no podem galgar..... E esta? O pas pouco montanhoso e

    nossos picos mais altos so de quarta ou quinta ordem em face de seus congneres do Velho e Novo Mundo. Temos poucas serras e que se no distinguem muito por sua altura.

    No sei onde estejam o nosso Himalaia, os nossos Andes e os nossos Alpes, que alis no vedaram, segundo o nosso autor, a civilizao das respectivas regies.

    O filsofo britnico iludiu-se com as narraes fantsticas dos viajantes, sedentos de maravilhas e despropsitos.

    Muitas das cadeias de montanhas que figuram em nossos mapas s existem no papel. E, quando possussemos altssimas montanhas, elas no seriam um estorvo, como o no so por

    a algures. O autor da Histria da Civilizao na Inglaterra, vido por dar os motivos de nosso atraso, os

    no determinou exatos. Em um lugar ele diz que os fenmenos, que mais terrivelmente podem impressionar a

    imaginao dos homens, desanimando-os, so os vulces, os tremores de terra e os furaces. Ora, nosso pas tem sido isento de tais crises medonhas, e por que no o alegou a nosso favor?

    Os animais mais gigantescos e ferozes... Erro ainda. Nossa fauna nem a mais rica, nem a mais terrvel do mundo. Ns no temos o elefante, o camelo, o hipoptamo, o leo, o tigre, o rinoceronte, a zebra, a girafa, o bfalo, o gorila, o chimpanz, o condor e a guia.

    Nossos tipos animais mais temveis, a ona e a anta, no suportam o paralelo com seus rivais do Antigo Continente.

    E mister acabar de uma vez com estes inventos, favorveis ou desfavorveis, com que h sido costume iludir-nos. Temos sido sempre vtimas da exagerao: os nossos rios, montanhas, matas, feras... so sempre os mais gigantescos do mundo, o que uma vantagem, dizem os patriotas; o que um empecilho, diz Buckle; o que um erro, digo eu.

    Referindo-se aos nossos proventos, o historiador apresenta a fertilidade da terra, sem rival em qualquer outra parte, porm que, sendo em demasia exagerada, transforma-se em prejuzo. Ainda aqui vai equvoco.

    Primeiramente, ser a fertilidade, ainda que excessiva, um prejuzo, coisa que se no admite facilmente. Depois, tal uberdade, to extraordinria, no existe.

    Possumos muitas terras ruins e incapazes de cultura; contamos j muitas terras que os lavradores denominam cansadas, isto , j quase imprprias de cultivo. Onde pois a fertilidade assombrosa e sem rival em todo o mundo?

    Aqueles que conhecem a nossa lavoura, que definha no porque as terras sejam frteis demais, sabem perfeitamente que os grandes agricultores de caf e cana vivem a botar matas abaixo a fim de ter terras virgens para novas plantaes, por ficarem depressa as outras cansadas. Eu no contesto a fertilidade do solo brasileiro; fora um paradoxo. Contesto porm que a fertilidade seja um predicado do Brasil, como alguns querem, ou seja maior aqui do que por todo alhures.

    Tudo relativo, e a uberdade de nosso solo tambm. Quem no se lembra da clebre arquigrandeza do Brasil na descrio de Rocha Pita?19 Tudo aquilo foi tomado a srio, e, depois dos conhecidos versos de Gonalves Dias, no

    existiram patrioteiros, terrvel casta de Lovelaces da ptria, que no proclamassem, para desnortear-nos o critrio, que este pas era o paraso da terra.

    Buckle verdadeiro na pintura que faz de nosso atraso, no na determinao dos seus fatores. Estes, a meu ver, so primrios ou naturais, secundrios ou tnicos e tercirios ou morais. Os

    principais daqueles vm a ser o excessivo calor, ajudado pelas secas na maior parte do pas; as chuvas torrenciais no vale do Amazonas, alm do intensssimo calor; a falta de grandes vias fluviais nas provncias entre o So Francisco e o Parnaba; as febres de mau carter reinantes na costa. O mais notvel dos secundrios a incapacidade relativa das trs raas que constituram a populao do pas. Os ltimos os fatores histricos chamados poltica, legislao, usos, costumes, que so efeitos que depois atuam tambm como causas.

    Dado porm que Buckle fosse de todo exato quanto s causas que determinaram o atraso do Brasil primitivo, os motivos por ele apontados no deveriam, ante ele prprio, justificar o nosso abatimento atual, porquanto para esse autor as leis que regem a civilizao de hoje no so as mesmas que presidiram ao desenvolvimento das civilizaes antigas. At certo ponto isto exato, tanto que as vantagens do Mxico e do Peru, que, segundo o escritor, foram a causa de sua grandeza passada, continuam ali a vigorar, o que no impede que um e outro estejam atualmente a par, seno muito abaixo, 19 Histria da Amrica Portuguesa, in principio.

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    do Brasil no tocante civilizao. Ali houve decadncia, apesar das vantagens, e aqui progresso, malgrado os obstculos. Como explicar tal anomalia? E que, quanto ao Brasil, o historiador ingls , em parte, mais fantstico do que profundo; que s pelo clima, bom ou mau, no se explicam as civilizaes hodiernas. So a prova as repblicas do Prata, que possuem excelente clima, doce e ameno, e que nos no excedem em cultura, por mais que alcem a cabea e faam retumbar as frases quixotescas.

    Um pas pode possuir um clima melhor que outro, e ser menos civilizado. Provam o caso a Espanha e a Alemanha. que para explicar o andar e progresso da civilizao de hoje mister pesar as trs categorias de fatores que deixei enumerados.

    CAPTULO IV O MEIO

    FISIOLOGIA DO BRASILEIRO

    Os climas quentes, diz Michel Lvy, estendem-se entre os trpicos, e desde os trpicos at os graus 30 e 35 de latitude austral e boreal.20 Por esta classificao o Brasil fica todo contido na categoria dos climas quentes.

    Entretanto, a configurao topogrfica e geolgica do pas no permite que se o tome como um corpo bruto, confuso, indistinto, marcado por uma s caracterstica mesolgica.

    As palavras do higienista francs abrem aqui margem para uma exceo. O Brasil oferece nada menos de duas zonas climatricas diferentes, a quente, que se estende da sua fronteira norte at o trpico de Capricrnio, e a fresca, que compreende as terras ao sul do trpico, a que se podem ligar os terrenos altos das antigas provncias imediatamente prximas. um erro grosseiro confundir cousas to distintas. certo que a mor parte do pas, o verdadeiro Brasil, est contido na zona trrida, que encerra quase todas as terras baixas do litoral, de um clima quente e mido, e as altas dos sertes do Norte, de clima quente e seco desde a fronteira setentrional at So Paulo. Uma parte desta ltima, e as trs provncias meridionais Paran, Santa Catarina e Rio Grande do Sul ficam alm do trpico e gozam de um clima suave. Sabe-se que a Serra do Mar nestas ltimas regies aproxima-se do litoral, oferecendo para o interior uma vasta lombada de terrenos altos de um clima quase europeu.

    Alm disto as terras elevadas dos plats do Rio de Janeiro, So Paulo e Minas, se no tm a frescura das regies meridionais, no se podem confundir com as terras quentes do Centro e do litoral do Norte. Constituem um clima temperado e ameno.

    Estabelecida esta reduo, que fao s palavras de Lvy, trate-se do Brasil como de um pas tropical. No existem estudos regulares sobre a mesologia brasileira.

    Os trabalhos nacionais e estrangeiros so quase infrutferos neste ponto; desde os idlios de Simo de Vasconcelos e Rocha Pita sobre a pureza e suavidade do cu e do ar deste suposto paraso terreal, at as objurgatrias do ingls Buckle contra este inferno do mundo, quase s se nos deparam declamaes e futilidades, sempre contraditrias. Certos autores europeus, acostumados a tratar dos climas inspitos das colnias que suas naes possuem na zona trrida da frica, sia e Oceania, falando do Brasil, so levados, sem mais exame, a aplicar-lhe o que s verdadeiro daquelas regies. A zona tropical se lhes a figura constantemente o pas dos furaces, dos terremotos medonhos, dos cataclismos impossveis, dos vulces que bombardeiam o ar, do siroco, do simum, do chansim, dos temporais homricos, do caos em suma. Ora, pois; nada disto tenho eu visto no Brasil! A regio tropical na Amrica muito mais suave do que no Velho Mundo.

    Os nossos ventos alsios no nos atiram no despenhadeiro dguas, como a Buckle quis parecer. Os gegrafos de gabinete expem-se a iluses deste gnero. O corpo do Brasil forma uma espcie de vasto tringulo irregular, compreendendo zonas diversas, com duas grandes bacias hidrogrficas: a do Amazonas e a do Paran, com inmeros afluentes, que, com outras bacias secundrias, cortam o pas, de norte a sul, ou de oeste a leste. A zona quente admite uma diviso geral: a) as terras mais ou menos pantanosas das costas, as do grande vale do Amazonas e do Paraguai, onde reinam as molstias hepticas e as febres palustres; b) a regio sertaneja, compreendendo todo o interior norte do pas, o teatro das secas. A regio fresca tambm sofre uma diviso: a) as trs provncias meridionais, onde vagueia o minuano frio e rspido; b) as terras altas das provncias intermdias, So Paulo, Rio de Janeiro e Minas, regio que no tem o calor e a uberdade do Norte, nem a esterilidade relativa dos terrenos do extremo Sul. As notas, todavia, predominantes no clima do pas so, pois, o calor e a umidade, com todo o seu cortejo formado pelo impaludismo. Da um certo abatimento intelectual, uma superficialidade inquieta, uma irritabilidade, um nervosismo, um hepatismo que se revela nas letras, o que tudo no degenera em delrio; porque o exterior do pas risonho, as montanhas reduzidas e poticas e no colossais e fantsticas como as da ndia, por exemplo. Seja dada a palavra a um especialista: Os habitantes dos climas equatoriais experimentam desde o nascer os efeitos do calor. Experimentam-nos sem interrupo 20 Trait dHygine, 1 volume.

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    at a morte; sua organizao, composta de elementos de uma hereditariedade especial, a expresso mais verdadeira e completa do poder desse agente; ela carrega o selo da ao solar como todos os produtos da natureza que a cerca. O calor exalta os rgos da periferia e determina um movimento centrfugo: exagerao habitual das funes exteriores, relaxamento das funes centrais, tal o ritmo dos indgenas da zona trrida. O calor rido contrai, encrespa, irrita seus tecidos cutneos; o calor mido os distende pelo suor e muitas vezes pelas erupes; num caso e noutro, os fluidos so levados para debaixo da pele, que perde a cor e adquire um alto grau de sensibilidade; os rgos que simpatizam diretamente com a pele recebem um igual impulso, especialmente os sentidos e o aparelho genital. A sobreexcitao cutnea tem como conseqncia a depresso vital das mucosas; as foras digestivas languescem; a elaborao do quilo incompleta; o sangue, fornecido alm disso por uma alimentao pouco substancial, fica seroso e pouco estimulante; levado aos pulmes, cuja atividade est diminuda, no se arterializa to completamente como nos climas frios, onde a respirao mais enrgica.

    O Dr. Copeland notou que nos pases quentes escapa-se uma poro menor de cido carbnico pelas vias respiratrias; o carbono predomina, ento, nos fluidos orgnicos, que no tm plasticidade, e vai fixar-se no pigmento, cuja formao tende a aumentar. A economia ficaria sobrecarregada desse princpio contrrio vida se o no expulsasse em parte pela pele e pelo fgado, que se anima com uma atividade suplementar do pulmo: o carbono, que esta vscera no elimina sob a forma de cido carbnico, o fgado se encarrega de evacu-lo debaixo da forma de blis, pelo tubo digestivo. Em todas as pocas da vida, desde o estado embrionrio, observa-se este antagonismo entre o fgado e o pulmo; ligados por uma relao inversa de desenvolvimento e atividade, logo que um destes rgos se enfraquece, o outro se exalta; o clima nisto opera como a idade e as molstias; cria idiossincrasias especiais e amortece as que dantes existiam.

    A transpirao cutnea, a secreo da blis, a deposio mais copiosa do pigmento so o trplice trabalho, que domina a fisiologia dos pases quentes; a pele e o fgado so os rgos mais vivos e sobre eles se dirige mais freqentemente a iminncia mrbida. A a forma mais ordinria da sade no ser, pois, o temperamento sangneo que mostra uma qualificao e uma hematose perfeitas; manifestam-se como tipo mais genrico os caracteres do predomnio bilioso, os sinais de uma verdadeira saturao de carbono, combinados com os do temperamento linftico e os do nervoso.

    A constituio dos indgenas testemunha a influncia enervadora do clima: todos os observadores assinalam neles o contraste da fraqueza radical, do relaxamento dos tecidos, da indolncia e da apatia, com a exaltao do sistema nervoso, o fogo das paixes, os borbotes desordenados de atividade fsica e moral. O enfraquecimento geral destas raas tambm favorecido pela natureza do regime alimentcio, pouco reparador no fundo, apesar dos condimentos incendirios com que se esforam para despertar a inrcia de seus rgos digestivos enfraquecidos pelos excessos venreos, que cometem pelo estmulo especial do clima, pelas desordens de toda a espcie a que as levam sua luxria natural, a ociosidade e o despudor dos costumes.

    A afeo dominante nestes climas na estao seca uma febre contnua remitente, acompanhada de congestes rpidas que se operam, j no encfalo ou nas meninges, j no tubo digestivo e anexos. Com esta afeo coincidem as molstias locais, febris ou apirticas: o calor seco dispe para as hiperemias cerebrais, as meningites, as encefalites, as apoplexias. O brilho da reverberao solar provoca oftalmias; a pele, sede de uma estimulao constante, se cobre de erupes diversas. Os aparelhos diges-tivo e biliar se irritam por seu lado, diretamente ou por simpatia: as colites, as disenterias, as hepatites, mostram-se em multido, cercadas de febre violenta, ordinariamente de natureza palustre, que no custa a imprimir seu cunho particular em todas estas flegmasias; at as febres traumticas revestem-se deste tipo especial.

    A estao mida vem acabar, por sua ao dissolvente, a prostrao da economia, gasta pela sobreexcitao produzida pelos calores da estao precedente. As primeiras chuvas, que refrescam a terra ressequida, fermentam a camada de detritos orgnicos que a cobrem; logo depois a superfcie do solo se enche de lamas e umidades ftidas, e sobre toda a extenso da zona trrida operam-se emanaes deletrias, mxime nas costas cobertas de mangues e pntanos, nos terrenos baixos e nas terras cobertas de mato; aparecem ento as endemias de febres intermitentes e remitentes, seguidas ou complicadas com hepatite, disenteria, ou clera-morbo; as leses locais apresentam maior propenso para a supurao e a gangrena.

    Ao passo que a febre da estao seca se faz notar pela perseverana da sobreexcitao inicial at o momento da catstrofe, a da estao mida comea por sintomas de abatimento, e acompanha-se de uma prostrao que progride com a decomposio dos fluidos orgnicos; por isso foi chamada febre biliosa ptrida por muitos observadores dos pases quentes.21

    a descrio mais ou menos exata do Brasil. Temos uma populao mrbida, de vida curta, achacada e pesa-rosa em sua mor parte. E que relao tem isto com a literatura brasileira? Toda. o que explica a precocidade de nossos talentos, sua extenuao pronta, a facilidade que temos em aprender e a 21 Lvy, ibid.

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    superficialidade de nossas f