Silvio Romero - O Brasil social e outros estudos sociológico

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  • NoAlmanaquedas Glriasdarevista ,J.Carlosflagrou,comaelegnciadeseutrao,o carterprovocativoecontundentedeSlvioRomero( ,de4-7-1914).

    CaretaCareta

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    O BRASIL SOCIAL E OUTROSESTUDOS SOCIOLGICOS

  • Mesa Diretora

    Binio 2001/2002

    Senador Ramez TebetPresidente

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    Senador Lcio AlcntaraPresidente

    Joaquim Campelo MarquesVice-Presidente

    Conselheiros

    Carlos Henrique Cardim Carlyle Coutinho Madruga

    Raimundo Pontes Cunha Neto

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Coleo Biblioteca Bsica Brasileira

    O BRASIL SOCIALE OUTROS ESTUDOS

    SOCIOLGICOS

    Slvio Romero

    Braslia 2001

  • COLEO BIBLIOTECA BSICA BRASILEIRAO Conselho Editorial do Senado Federal, criado pela Mesa Diretora em 31 janeiro de 1997,buscar editar, sempre, obras de valor histrico e cultural e de importncia relevante para acompreenso da histria poltica, econmica e social do Brasil e reflexo sobre os destinos do pas.

    COLEO BIBLIOTECA BSICA BRASILEIRA

    A Querela do Estatismo, de Antnio PaimMinha Formao (2 edio), de Joaquim NabucoOito Anos de Parlamento, de Afonso CelsoA Poltica Exterior do Imprio (3 vols.), de J. Pandi CalgerasO Brasil Social, de Slvio RomeroCaptulos de Histria Colonial, de Capistrano de AbreuInstituies Polticas Brasileiras, de Oliveira VianaDeodoro: Subsdios para a Histria, de Ernesto SenaRodrigues Alves: Apogeu e Declnio do Presidencialismo, de Afonso Arinos de Melo Franco (2 volumes)Rui O Estadista da Repblica, de Joo MangabeiraEleio e Representao, de Gilberto AmadoFranqueza da Indstria, de Visconde de CairuDicionrio Biobibliogrfico de Autores Brasileiros, organizado pelo Centro de Documentao do

    Pensamento BrasileiroPensamento e Ao de Rui Barbosa Fundao Casa de Rui BarbosaPresidencialismo ou Parlamentarismo?, de Afonso Arinos de Melo Franco e Raul PilaA renncia de Jnio, de Carlos Castelo BrancoJoaquim Nabuco: revolucionrio conservador, de Vamireh ChaconHistria das Idias Polticas no Brasil, de Nelson SaldanhaA Evoluo do Sistema Eleitoral Brasileiro, de Manuel Rodrigues FerreiraO Estado Nacional, de Francisco Campos

    Projeto grfico: Achilles Milan Neto

    Senado Federal, 2001Congresso NacionalPraa dos Trs Poderes s/n CEP 70168-970 Braslia [email protected]://www.senado.gov.br/web/conselho/conselho.htm

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    Romero, Slvio.

    O Brasil social e outros estudos sociolgicos / SlvioRomero. -- Braslia : Senado Federal, Conselho Editorial,2001.

    278 p. (Coleo biblioteca bsica brasileira)

    1. Histria social, Brasil. 2. Poltica social, Brasil.

    I. Ttulo. II. Srie.

    CDD 309. 181

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Sumrio

    PREFCIOpor Francisco Martins de Sousa

    pg. 9

    I A QUESTO TERICA DA CULTURA NAESCOLA DO RECIFE

    pg. 9

    II O CULTURALISMO SOCIOLGICO DE SLVIO ROMERO E SEUSIGNIFICADO

    pg. 18

    1 O SR. ARTUR GUIMARESE SEU NOVO LIVRO (MARO, 1904)

    pg. 25

    2 A ESCOLA DE LE PLAY NO BRASIL (1906)pg. 43

    3 AS ZONAS SOCIAIS E A SITUAO DO POVO (1906)pg. 51

    4 EDMOND DEMOLINS (1907)pg. 61

    5 BRASIL SOCIALpg. 83

    6 O BRASIL NA PRIMEIRA DCADADO SCULO XX (1910-1911)

    pg. 103

    7 O REMDIOpg. 237

    NDICE ONOMSTICOpg. 273

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Prefcio

    Ao analisar parte da obra do pensador Slvio Romero(1851-1914) que compe mais de perto o que veio a se caracterizar comoa primeira e fundadora vertente do Culturalismo Sociolgico no Brasil,tomamos os estudos que se seguem em ordem cronolgica de publicao eapontar a sua influncia no pensamento posterior nos autores que condu-ziram tal mtodo de investigao.

    J em livro de 1981 publicado pela Editora Convvio, SoPaulo, analisamos, de acordo com indicao da existncia desta vertenteno Pensamento Brasileiro, a obra de Alcides Bezerra (1891-1938) eque denominaria O Culturalismo Sociolgico de Alcides Be-zerra.

    A idia da pesquisa foi indicao de Antnio Paim, consa-grado historiador das idias filosficas no Brasil e que orienta o rumo aser seguido, pois a influncia de Slvio Romero foi imediata em todosque produziram obras principalmente nos campos da Sociologia, daEsttica, da Poltica, da Cincia Jurdica, enfim em tudo que pudessehaver o confronto de um aparato conceitual com a observao e portantocom a prtica.

    I A QUESTO TERICA DA CULTURA NAESCOLA DO RECIFE

  • No livro em apreo j encaminhamos para futuros pesquisado-res as linhas gerais da existncia de tal ordem de pensamento na obra deSlvio Romero cuja tendncia seria uma maior valorizao da investiga-o sociolgica para mais de perto apreender o que seria o conhecimento darealidade nacional.

    Aqui tomo a liberdade de reproduzir o texto referente a SlvioRomero na minha primeira anlise temtica e em seguida continuar comuma passagem pelos estudos aqui reproduzidos.

    A denominada Escola do Recife, corrente filosfica que sedesenvolveu no ltimo quartel do sculo passado com alguns componentesda Faculdade de Cincias Jurdicas do Recife tentou estabelecer umagrande base de inquirio a partir do que seria o conceito de cultura anali-sado em suas ltimas conseqncias.

    Por um lado, Tobias Barreto, fundador da corrente, vai entenderque o poder criativo do ser humano em oposio natureza.

    Slvio Romero e outros membros da Escola o incorporam aogrupo natural para da fazer o engrandecimento da nova cincia, a Sociolo-gia, e dar novos rumos cincia do Direito, Cincia Poltica e s demaisCincias Sociais.

    Vejamos o que vamos transcrever do livro j citado, de comopassa a existir uma separao entre o Culturalismo filosfico de TobiasBarreto e a nova corrente que se formou no seio da especulao do Recifee procurava autonomia na busca do objeto prprio e que seria a prprianacionalidade.

    A movimentao das idias novas produzidas no sculoXIX que foram repensadas ou adaptadas profunda inquietao dospesquisadores da Escola do Recife, sob orientao de Tobias Barreto, assumida de acordo com a premncia dos problemas frente nova orien-tao a ser tomada para compreenso do mundo e da nacionalidade emparticular.

    Tobias Barreto sentiu necessidade de um retorno a Kant, comoo pensamento que fecundara a modernidade, seja como novos pressupostos

    10 Slvio Romero

  • para a cincia, seja como instalao da liberdade criadora no prprio serdo homem.

    O mentor da Escola do Recife, que se iniciara com o espiri-tualismo e depois assumira uma posio no positivismo de Comte, che-gara concluso de que a fsica social, preconizada por este, no atendiaao estatuto de cientificidade exigida, dada a liberdade e outros atributosque o seu objeto dispunha, e portanto a impossibilidade de previso oumensurao que o apangio da cincia.

    A compreenso do ser do homem e da sociedade por este insti-tuda, havia de ser algo menos quantificvel e mais entendido luz dareflexo puramente filosfica na busca de causas no apenas eficientes, massobretudo das finais.

    Assoma ento com a fora de uma argumentao rigorosacontra a constituio da Sociologia como cincia em seu trabalho contes-tatrio intitulado Variaes Anti-Sociolgicas.

    Ao causalismo das foras naturais onde se poderia instalarum saber determinante das relaes de fenmenos, ope a liberdade, acultura, a causalidade, e a fora do sentimento.

    A liberdade e a criatividade estariam na base e anteriores for-mao e desenvolvimento da sociedade, e no um resultado de modelo exte-rior e posterior, imposto cientificamente, o que seria anmalo.

    Esta liberdade no seria passvel de explicao mecnica im-plicando outra ordem de indagao qual o pensador procura respostanas especulaes de Kant.

    Miguel Reale analisa bem esta posio do pensador sergipanoe diz:

    No processo de elevao espiritual, declara Tobias, o acasointerfere, entretecido e indissoluvelmente ligado com tudo que se desenvolvefigurando na ordem das idias que tm um contedo positivo e no dei-xando imperar somente o puro causalismo das foras naturais. (Estudosde Direito, II, p. 21 e segs.).

    O Brasil Social e outros estudos sociolgicos 11

  • E prosseguindo:

    dentro desta cosmoviso que o sergipano ilustre situa o pro-blema do homem e da sociedade: O homem um ser histrico, o qual, vi-vendo originariamente jungido ao animalesco e instintivo, no jogo da causa-o mecnica, conseguiu emancipar-se, no controle evolutivo, na luta inces-sante pelo predomnio das foras interiores do sentimento. O homem natu-ral pois o lupus hobbesiano, que a sociedade e a cultura redimem.1

    A cultura nesta concepo d possibilidade ao homem de formularsua prpria lei, a autonomia, e a partir da integrar a sociedade dentro dasregras bsicas onde o ser humano fim em si mesmo, e no meio; sujeito eno objeto da cincia, o que est de acordo com o formalismo kantiano.

    Observa Miguel Reale esta importante posio do pensador, eporque fez objeo Sociologia:

    O certo que a idia de cultura, como domnio onde prevale-cem as causas finais, passando o mecanismo causal a ser simples resto,a cultura exerce poderosa influncia na formao de Tobias Barreto, quevai aos poucos se inclinando para uma Weltanschauung axiolgica. Foialis, o conceito de cultura, como reino do insusceptvel de explicaomecnica, que o fez tomar posio contra a Sociologia, vista esta quefosse como cincia fundada no princpio de causalidade.

    No demais lembrar que, se o culturalismo de Tobias,dada a sua feio, lhe impedia a compreenso de cincias com outras leisque no as vlidas para o mundo da natureza, lhe valeu muitas observa-es felizes, merecendo destaque a sua teoria do Estado como meio e comofim, ou seja, como realizador de ordem jurdica, e fomentador de bens decultura: O Estado fim ao mesmo tempo que meio, porque a ordemsocial, a cultura humana de que ele rgo, constituem o seu mesmofim. O seu fim o seu meio. (Estudos de Direito, 2 Vol., p. 52 esegs.)2

    12 Slvio Romero

    1 Miguel Reale, ob. cit., pp. 218/19.2 Idem, p. 220.

  • O Estado nesta concepo de Tobias Barreto, como meio efim, ordenado juridicamente, dotado de um poder coercitivo para promovera ordem social, responsvel ao mesmo tempo pela promoo e realizaoda cultura, dando possibilidade ao desenvolvimento criativo para realizaro homem e a constelao de bens por este idealizada.

    O prprio Estado realizao cultural o que permite inferiro poder criativo do ser humano em sua continuidade histrica, partindodas formaes mais simples para chegar a uma instituio a mais com-plexa.

    Portanto ao ser humano como liberdade criadora est impli-cado o fim ltimo, e ao Estado como possibilidade da ao, o meio ne-cessrio e que Tobias Barreto considera neste caso como fim e meio aomesmo tempo.

    A cultura, concebida em oposio natureza, uma contribui-o de Tobias Barreto, de ordem filosfica para reflexes posteriores, poisno teve tempo de aprofundar tal problema. Miguel Reale a denominanova regio ontolgica por onde se pode ter acesso pela via da criativi-dade, ao desvendamento do ser do homem.

    O aprofundamento da problemtica culturalista, o que permi-tiu a formao de uma corrente filosfica no Brasil a partir de meadosdeste sculo, uma retomada daquela via de acesso aos valores onde acincia no capaz de por si s compreend-los.

    A partir da colocao do problema por Slvio Romero noplano da cincia, uma busca pelo mtodo da observao dos prprios fe-nmenos para da inferir concluses ser o caminho seguido por outrospesquisadores da escola no final do sculo passado a princpios deste.Alcides Bezerra a partir de 1919 at 1938 avanou as pesquisas dandocontinuidade a esta busca no campo da Sociologia.

    Slvio Romero e Clvis Bevilqua assumiram a posio cultu-ralista mas dentro da concepo sociolgica e discordaram quanto in-transigncia de Tobias Barreto com relao a esta cincia, pois a conside-raram como um saber necessrio explicao dos fatos sociais, e portanto

    O Brasil Social e outros estudos sociolgicos 13

  • apto a dar uma melhor compreenso do desenvolvimento da sociedade,bem como do Direito em seu ordenamento.

    A cultura tambm teria uma explicao dentro das novas for-mulaes da Sociologia, mas no se afastariam dos princpios do kantismo(da filosofia como crtica do conhecimento), pois consideravam estes comocapazes de refutar as teses do mecanicismo ou do materialismo vulgar.

    Slvio Romero encaminha-se para os grandes problemas danova cincia e ser considerado profundo pesquisador neste novo ramo dosaber humano, enquanto Clvis Bevilqua privilegia a elaborao nocampo da cincia jurdica.

    Dentro de uma viso sociolgica, vai considerar tambm SlvioRomero o problema da cultura como sendo primordial, mas busca novoscaminhos. Assim, Miguel Reale indica a diferenciao:

    Se o conceito de Cultura representa na obra de TobiasBarreto um problema de ordem filosfica, j assim no acontece plena-mente com seu amigo e corifeu, Slvio Romero.

    Partindo de que s o homem ser dotado de impulso de criare de fazer conscientemente, chega ele ao conceito de Cultura como sendotudo aquilo que no para o homem uma ddiva direta e imediata danatureza, seno um resultado do trabalho espiritual, da produo cons-ciente, do esforo voluntrio. (Ensaio de Filosofia do Direito, 2ed., p. 250).3

    Esta posio culturalista de Slvio Romero, indicar rumonovo aos que seguem o esprito da Escola mesmo depois de sua dissolu-o.

    Clvis Bevilqua, que assumira tambm o roteiro de pesquisapela via sociolgica, como uma das possibilidades de modernizao doDireito, mostra como Tobias Barreto e Slvio Romero compreenderam oaparecimento da nova cincia; diz ele:

    Para o conhecimento dessas condies formao do Direitocomo cincia necessrio que o jurista remonte ao ponto onde comeam a

    14 Slvio Romero

    3 Idem, p. 250.

  • se formar os fenmenos de ordem jurdica. O Direito aparece na sociedade;portanto foroso que o jurista possua exata noo da sociedade e dacincia que a estuda, isto , a Sociologia, contra a qual, alis, Tobias vi-brou golpes hercleos. A sociedade um composto de homens; portanto acincia do homem, a antropologia, deve ser tida como a propedutica aoestudo do Direito. Em relao a este ponto, Tobias estava de acordo,apesar de que a antropologia no est mais adiantada, nem tem limitesmais certos do que a Sociologia. 4

    Em seguida, mostra Clvis Bevilqua o desenvolvimento destasidias no pensamento de Slvio Romero; diz ele:

    Em filosofia, Slvio fora positivista, com Littr, inclinara-separa o criticismo de Kant, e, afinal, evolvera para o evolucionismo deSpencer, conservando, sempre, a sua autonomia mental. E, quando osestudos sociolgicos o fizeram adotar o mtodo da escola de Le Play,Tourville, Demolins, Rousiers, Poinsard, no lhe aceitou a orientaofilosfica, nem o ponto de vista religioso. 5

    O evolucionismo filosfico e sociolgico de Herbert Spencer aque adere em definitivo o pensamento de Slvio Romero, servir para oencaminhamento das proposies com que contestar o positivismo de quej se desfizera.

    O auxlio da escola sociolgica com suas conquistas no campodas cincias, fecundar novas idias e abrir novas vias compreenso doproblema do homem contido na nacionalidade este fator introduzidopor Slvio Romero.

    A cultura e suas resultantes criativas, a Arte, o Direito, aReligio, etc., so para Slvio Romero um produto do esforo humanoligado a situaes diversas. Esta diversidade de fenmenos culturaisno catica em sentido autnomo onde cada um existiria por si, masimplica, isto sim, uma unidade no transfundo cultural; so os prpriospilares culturais ligados ao tronco comum. No podem ser reduzidos

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    4 Idem, p. 250.5 Clvis Bevilqua, ob. cit., p. 368.

  • uns aos outros, mas tambm no podem ser acrescidos de outros, o seunmero limitado. Diz Slvio Romero a propsito destes fenmenosbsicos da vida social:

    ... podemos afirmar, sem medo de errar, que sete, apenas sete,so as classes, as espcies diversas dos atos e fenmenos culturais queconstituem a civilizao humana, como ela tem se desenvolvido desde osmais remotos tempos da pr-histria at aos nossos dias de hoje.

    E chamam-se elas: Cincias, Religio, Arte, Poltica, Mo-ral, Direito, Indstria.

    Tais so as que se devem chamar as criaes fundamentaise irredutveis da humanidade e que constituem a srie dos fenmenos so-ciais. 6

    Cada um destes fenmenos observa seu prprio alvo, tem seuprprio fim, mas servem realizao do homem em seu destino histrico,em seu desenvolvimento, seja material, seja espiritual.

    Slvio Romero classifica estes fenmenos em dois grandes gru-pos: os atinentes s necessidades prticas da vida social e os que aten-dem s necessidades tericas ou ideais. Entre estes esto: a Religio, aArte e a Cincia; entre aqueles: a Indstria, o Direito, a Moral e aPoltica.

    O princpio bsico, fundamental destes fenmenos listados porSlvio Romero, o seguinte: A contemporaneidade de todos e a irredu-tibilidade de uns nos outros.

    Nesta fase do pensamento de Slvio Romero, ele professa oevolucionismo monstico spenceriano, a que chama evolucionismo socio-lgico, o qual possibilita a contestao a Tobias Barreto quanto ao pro-blema da cultura se antepor natureza.

    O evolucionismo de Herbert Spencer um organicismo seriauma sntese do pensamento de vrios filsofos e naturalistas aproximadospor idias afins e que descrito por Slvio Romero ao dizer:

    16 Slvio Romero

    6 Slvio Romero, Ensaios de Filosofia do Direito, in Slvio Romero, Obra Filosfica.Introduo e seleo de Lus W. Vita. Ed. Jos Olmpio, USP, 1996, p. 596.

  • Funda-se o evolucionismo spenceriano nas quatro idias capi-tais de todo o desenvolvimento filosfico e cientfico moderno: a crtica doconhecimento, iniciada por Hume, desenvolvida por Kant e levada sltimas conseqncias por Hamilton e Mansel; o princpio fundamental daevoluo, do werden perptuo, que lhe passou do prprio Kant, de Goethe,de Hegel; a aplicao prtica desse princpio Biologia pelo experimenta-lismo transformstico de Von Baer, Darwin, Wallace; finalmente a con-cepo monstica do Universo preparada pelas descobertas de Grove,Meyer, Joule, Helmholtz e trinta outros, aceita hoje geralmente por na-turalistas, como Haeckel e por filsofos como Noir e Hartmann. 7

    a esta doutrina do organicismo spenceriano que mais se atma busca de Slvio Romero, ligada no s ao pensamento especulativo, te-rico, mas observao dos fatos e histria do desenvolvimento humano.

    A colocao do problema da cultura como princpio de toda acriatividade humana na filosofia de Tobias Barreto e que passa a SlvioRomero como categoria sociolgica explicada luz do evolucionismo comoum fato natural que no se antepe natureza, sustentada por ClvisBevilqua que neste ponto tambm discorda do mestre.

    Clvis Bevilqua sugere que a repulsa de Tobias Barreto pelasociologia prendia-se contestao deste ao sistema comtiano, no qual estacincia tinha a sua gnese. Porm o que permitiu a adoo de pesquisas in-tensivas nesta nova rea do saber foi a grande contribuio que deu para odesenvolvimento do Direito na complexidade da vida moderna.

    A descida destes pensadores, das grandes generalizaes filos-ficas para o campo da Sociologia e do Direito, parece estar relacionada coma implantao daquilo que eles temiam, ou seja, a implantao do positi-vismo como a filosofia imposta nova ordem poltica que se estabele-cera com a queda da Monarquia parlamentar.

    A luta de idias seria agora no campo da prtica poltica, pois opositivismo impusera os seus desgnios. Assim, para se combater aquela

    O Brasil Social e outros estudos sociolgicos 17

    7 Slvio Romero, Doutrina contra Doutrina, in Slvio Romero, Obra Filosfica.Introduo (apud Lus W. Vita), p. XVII.

  • idia expatriada de seu bero natal s terras de Frana e que buscava en-raizamento em solo brasileiro amparada no direito da fora, nada melhordo que combat-la com um conhecimento adequado, o prprio conhecimentoda cincia social e a fora do Direito modernizado.

    Slvio Romero e Clvis Bevilqua assumem esta nova posiohistrica a partir dos conhecimentos desenvolvidos na Escola do Recife, aqual Tobias Barreto fundara em pleno florescimento do regime parla-mentar liberal.

    O desaparecimento de Tobias Barreto (1889) coincide com aqueda do regime que se aperfeioava, e d-se ento o que mais temia: aascenso do positivismo.

    o novo dogmatismo que se implanta e que Slvio Romeroem carta a Rui Barbosa revela como sendo um doutrinarismo compressore ditatorial.8

    II O CULTURALISMO SOCIOLGICO DESLVIO ROMERO E SEU SIGNIFICADO

    O texto que inicia esta antologia compe a melhor parte doCulturalismo Sociolgico de Slvio Romero, pois este aparece tambm emoutras partes de sua obra e dedicado a uma avaliao do livro de umseu discpulo que iniciava a srie de monografias conforme havia projetadoelucidar as grandes linhas de compreenso da realidade nacional.

    No texto em questo de 1904, Slvio Romero aproveita paradar larga explicao de seu projeto cultural-sociolgico justificando suaaplicao como mtodo e quase como sistema, pois ambiciona o conheci-mento em sua totalidade do objeto determinado, o ser nacional.

    Ali j expe em linhas gerais um programa de um curso ele-mentar de propedutica das cincias que se dispe em vinte e seis partesdos conhecimentos que no fundo representam as partes de um sistema quese prope completo.

    18 Slvio Romero

    8 O Culturalismo Sociolgico de Alcides Bezerra. Francisco Martins de Sousa, Ed. Conv-vio, So Paulo, 1981, pginas 19 a 26.

  • Aproveita sempre as oportunidades para desenvolver o projetocom vista aquisio dos conhecimentos e nada melhor do que separar aspartes a serem aprofundadas.

    A partir dos estudos sociolgicos aqui organizados, podemosapontar o que seria uma antologia componente do Culturalismo Sociol-gico, separando do corpo da obra geral e o que aparece o verdadeiro ca-minho para se tomar conscincia e a possibilidade de corrigir o rumo his-trico.

    Para se compreender a formao de uma sociedade seria neces-srio a observao de toda a concepo histrica e de onde promana suabase principal, a moral fundante, no caso a organizao familiar.

    Slvio apega-se s doutrinas da Escola de Le Play. O estudoprincipal a ser feito exatamente o da organizao da famlia e completacom a assertiva: Uma sociedade vale pelo que vale nela a famlia.

    A principal diviso vai se dar entre a famlia particularista ea famlia comunria para se entender as questes de organizao social,poltica e econmica.

    A grande pesquisa preconizada, e j desenvolvida em suabase, ou seja, a organizao de mtodo, chega a apontar a necessidade deque se desenvolva em todas as reas a realizao de duzentas ou tre-zentas monografias para compor um quadro completo do conhecimentoda realidade nacional.

    Slvio na sua ambio de conhecimento da realidade nacionalprepara em toda sua obra o que vai utilizar de prprio e o que servir apesquisadores futuros, e estes aparecem de imediato aps seu final com ofalecimento em 1914.

    Ali est uma grande virada na ordem do conhecimento naEuropa com os autores que iriam preparar as bases dos nacionalismosextremos aps a primeira Guerra Mundial.

    No Brasil, ao mesmo tempo surgir um novo apelo para secompor o quadro fundamental do que seria a chamada civilizao brasi-leira. Este apelo perpassa todas as camadas da intelectualidade que agora

    O Brasil Social e outros estudos sociolgicos 19

  • tinham um objeto definido, ou seja, dar uma ordem no que estava constru-do mas de maneira catica.

    Todos vo partir da base construda por Slvio Romero na ob-servao dos fatos e fenmenos sociais verificados na conjuntura nacional eque o conjunto e mtodo de tal observao ser considerada posteriormentecomo sendo o Culturalismo Sociolgico que procede da Escola do Recife.

    Cada pensador que abraa e desenvolve tal concepo segue ca-minho prprio de acordo com a visada escolhida. Assim Graa Aranha(1868-1931) com Cana vai na Literatura observar o comportamento depopulaes imigrantes adaptando-se a nova realidade. Com A Estticada Vida, desenvolve os elementos plasmadores da Semana da Arte de1922 em So Paulo que d a oportunidade formao de outro grupo depensadores voltados para o conhecimento da realidade nacional. Esteagrupamento inspira-se ento diretamente em Alberto Torres(1865-1917) que por sua vez est vindo diretamente das concepes doCulturalismo Sociolgico pois esteve concluindo sua formao na Fa-culdade de Cincias Jurdicas ao tempo de Slvio Romero terminando oCurso na Faculdade de Direito de So Paulo.

    Todos os intelectuais que produziram, aps a primeira GrandeGuerra, obras voltadas para que influenciem na conduo de projetos po-lticos ou culturais no Brasil, tiveram as idias voltadas direta ou indire-tamente para que se espelhassem em Slvio Romero.

    A parte de sua obra aqui apresentada por iniciativa do Con-selho Editorial do Senado Federal e que consta de sete estudos, tendosido publicados em vida do autor entre 1904 e 1913 representa o ama-durecimento das idias que lograriam destacar o corpo de doutrina donovo Culturalismo.

    Influncia maior receberam Alcides Bezerra que desenvolveu oculturalismo voltado para a antropogeografia; Oliveira Vianna com o es-tudo de adaptao das populaes; Cmara Cascudo com a etnologia e oestudo dos costumes (Folclore) e etnografia sempre voltados para o exem-plo da Escola do Recife, que carregou as tintas no conceito de Cultura,

    20 Slvio Romero

  • seja no sentido filosfico seja no Sociolgico, diz ele que a Cultura ...uma energia envolvente e ajustadora para aptides e condutas nosmoldes do trabalho genrico. Compreender o mecnico-tradicional, o or-gnico-continuador e o espiritual-criativo. Com esta definio separa oque seria na escola entendido como Culturalismo Sociolgico e Culturalis-mo Filosfico.

    Outra grande influncia a ser pesquisada a que se d emEuclides da Cunha (1866-1909) que partindo do fato social (a campa-nha de Canudos) vai estudar o hinterland brasileiro e o processo deadaptao da populao gerando um fato moral neste processo, a questoda resistncia, da bravura.

    Um fato novo vai aparecer com a influncia direta que apre-senta com o tenentismo e a Semana da Arte, a questo de se aprofundaro conhecimento da realidade nacional a partir de um novo conceito socio-poltico que o de brasilidade.

    De posse do instrumental novo, desencadeia-se o nacionalismo esua componente, o autoritarismo, antnimo do que queria Slvio Romeroque j repudiava o Republicanismo Positivista.

    Como j ficou exposto, a influncia direta e indiretamente dopensador em outros estudiosos das questes econmicas, sociais e polticasno pas se d por questes as mais diversas pois o que est em jogo com-preender para doutrinas uma mudana de mentalidade de modo ordenadoa partir de uma origem comum.

    A doutrina que se expe nos estudos aqui apresentados dirige-seaos que devero tomar a tarefa de virar o curso histrico tradicional dospovos de formao comunria no caso do Brasil e faz-los, como dizSlvio Romero, adquirir o carter dos povos de formao particularista,educar no sentido de conduzir a esta nova mentalidade.

    As famlias particularistas, a exemplo dos povos do Norte daEuropa, teriam um maior senso de liberdade e portanto menos dependentesdo grupo familiar, quando os componentes atingem a juventude e buscam acidadania, sendo menos dependentes dos governos e portanto do Estado.

    O Brasil Social e outros estudos sociolgicos 21

  • A preocupao fundamental de Slvio Romero com a educa-o, base de formao da cidadania. Os que detinham posses conseguiamalcanar os nveis do ensino superior e os demais uma educao rudi-mentar, sendo a grande massa de analfabetos.

    Aponta ento uma soluo que seria dar instruo aos menosfavorecidos e para tanto apia-se no exemplo seguido pelos pases an-glo-germnicos, que desenvolviam o ensino industrial para melhor pre-parar os que se encaminhavam para as diversas ocupaes que no re-queriam a formao superior.

    O estudo dos problemas sociais em sua plenitude que frutoda organizao do mtodo cultural sociolgico desenvolvido com as indica-es da Escola de Le Play faz com que o nosso pensador estabelea umacrtica vigorosa das instituies sociopolticas que at ento no se davamconta da responsabilidade prtica e respondiam sempre com discursosevasivos sem ligao alguma com os reais questionamentos da sociedade.

    A crtica centrada ento no sistema educacional e a grandemudana para acompanhar o carro da histria s seria possvel com a res-ponsabilidade sugerida na nova doutrina que o pensador estava a indicar.

    O primeiro despertar vai se dar com a criao do ensino indus-trial nas Escolas de Aprendizes Artfices, iniciativa do governo NiloPeanha em 1921. Estas transformam-se em Liceus Industriais noEstado Novo, sob orientao de Francisco Campos (1891-1968) eGustavo Capanema (1900-1985). Ainda sob este regime mudam a de-signao para Escolas Tcnicas Industriais com programas bem avan-ados no campo do ensino e que se desenvolve na atualidade.

    O segundo ser a influncia, como j ficou exposto nesta Intro-duo, consiste no lanamento das sementes do nacionalismo que vai de-sembocar na Semana de Arte de So Paulo em 1922.

    Slvio Romero desenvolve ento o mtodo sugerido na Escolade Le Play com vista a conceber mudana radical nos modos de conduzir asociedade de formao comunria, clnica, patriarcal do velho tronco latinosempre dependente dos poderes prximos, para uma sociedade aberta, livre,

    22 Slvio Romero

  • autnoma onde os integrantes realizassem projetos de vida de acordoapenas com sua livre iniciativa, conforme pode ser constatado na parte daobra aqui apresentada.

    No viveu o suficiente para ver o rumo que a doutrina iria to-mar. No conseguiu transformar o modo de ser da famlia de comunria eautoritria em particularista e liberal; ao contrrio, com aplicao diversada prpria doutrina, o culturalismo sociolgico iniciado por ele no Brasilexacerbou o nacionalismo e sua componente o autoritarismo poltico.

    No plano do conhecimento, como indica Antnio Paim, o Cul-turalismo Sociolgico fez na Histria da Filosofia no Brasil a ponte entreo Culturalismo Filosfico iniciado por Tobias Barreto na Escola do Recifee o atual Culturalismo que se desenvolve a partir da dcada de 50 comMiguel Reale e componentes desta corrente de pensamento filosfico noBrasil.

    Maiores esclarecimentos e indicaes quanto ao aprofundamentoda pesquisa no tocante a autores mencionados nesta Introduo e querepresentam momento de grande criatividade podem ser obtidos noDicionrio Biobibliogrfico de Autores Brasileiros, publicadopelo Senado Federal Conselho Editorial 1999/2000 Bras-lia/DF, nesta mesma coleo.

    Rio de Janeiro, fevereiro de 2000

    FRANCISCO MARTINS DE SOUSA

    Professor aposentado da UFRJ eestudioso do pensamento poltico brasileiro

    O Brasil Social e outros estudos sociolgicos 23

  • 1 O SR. ARTUR GUIMARES ESEU NOVO LIVRO (MARO, 1904)

    * Transcrito de Outros Estudos de Literatura Contempornea. Lisboa, Tipografia A Editora,1905, pp. 49-68.

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    O Sr. Artur Guimarese seu novo livro

    Durante os anos de 1896, 97 e 98, tive por discpulo, emcurso particular, o autor deste volume.

    Coincidia isto com o aparecimento de tremendas descompos-turas que, de vez em quando, se desencadeiam sobre mim. Era pocaclimatrica, verdadeira crise de assanhamento ofdico a investir-me portodos os lados. Como tivesse tomado a resoluo de no mais entreterpolmicas pela imprensa, por haver descoberto no passarem quase todaselas de provocaes propositais da parte de indivduos sequiosos de no-toriedade minha custa, tive o necessrio lazer para, alm dos cursospblicos do Ginsio Nacional, da Faculdade Livre de Direito, da FaculdadeLivre de Cincias Jurdicas e Sociais, dar as lies pedidas pelo Sr. ArturGuimares.

    Homem de comrcio, educado na severidade do viver prticoe trabalhoso, a sede de saber denota ser a vocao fundamental de seuesprito para as letras, vocao torcida noutro rumo, por influncias deeducao e de famlia.

    I

  • A instruo literria no lhe passava ento do estudo dealguns preparatrios; mas era suprida pelo traquejo da vida, trfegodos negcios, meneio dos homens, aturadas leituras e proveitosasviagens.

    Em leito assim preparado as minhas lies, que procuravatornar o mais possvel substanciais, no caram em terreno sfaro e aprova tem-na o pblico neste livro, e noutros escritos pelo moo brasileiro.

    Num pas, certo, onde a mais elevada prova de talento con-siste em dizer a maior cpia de tolices nas mais retumbantes frases, eonde os grupos literrios constituem verdadeiros cls, em torno de algunschefes, que se guerreiam uns aos outros e do o santo e a senha para asexcluses dos que lhes no agradam, em um pas assim os trabalhos deum Artur Guimares, escritos no mais singelo dos estilos e que saem dapena de um homem no pertencente a nenhum dos agrupamentos emevidncia, no podem deixar de achar, naquele meio, um quase geraldesagrado.

    Digo naquele meio, porque preciso lembrar ainda, e sempre,no ser constitudo o mundo legente s de tais indivduos, em que pese terrvel presuno de todos eles.

    para os que esto de fora e constituem a grande maioria dagente de bom senso que escrevo estas linhas.

    Dou-lhes aqui o programa da espcie de propedutica das cincias,organizado para as lies dadas ao jovem negociante.

    Poder ele servir a outros que desejam aprender, e, em todocaso, um documento da intuio de um professor brasileiro nos ltimosanos do sculo XIX.

    Ei-lo aqui:

    PROGRAMA DE UM CURSO ELEMENTAR DEPROPEDUTICA DAS CINCIAS

    I. Noo do conhecimento. Conceito da cincia. Cincia gerale cincias particulares. Classificao das cincias.

    II. Idia do mtodo. Seus elementos e vrias modalidades.Noes de Lgica.

    28 Slvio Romero

  • III. Uma cincia geral do Universo: Naturologia ou Cosmolo-gia. Cincias particulares em que se decompe.

    IV. As cincias matemticas. As fsico-qumicas. As biolgicas.Noes de todas elas.

    V. A termodinmica ou monismo fisico-qumico. O transformismoou monismo biolgico.

    VI. Principais sistemas filosficos. Estado atual da filosofia.VII. A cincia no a criao nica da humanidade. Outras

    criaes fundamentais.VIII. Uma cincia geral da humanidade: Sociologia. Cincias

    particulares em que se decompe. Classificao dos fenmenos sociol-gicos. De Greef, Le Play, Tourville, Romero.

    IX. Escolas principais de Sociologia: naturalstica ou mecnica,biolgica, psicolgica, etnogrfica, histrica. Comte, Spencer, Le Play,Tourville, De Greef, Tarde, Giddings, Ren Worms, Durkheim, Novicow,Gumplowicz, Lilienfeld, Schfile e outros.

    X. Idias gerais de Pr-histria, Etnografia, Antropologia, eLingstica.

    XI. Evoluo em geral. Sua aplicao Sociologia. Idia doprogresso humano. Evolucionismo de Spencer.

    XII. As Produes Econmicas; Indstrias. Sua classificao.Foras produtoras. Natureza, trabalho, capital. Troca, preo, valor,moeda.

    XIII. Questes e problemas fundamentais da economia poltica.O Socialismo. Escolas.

    XIV. A Arte. Idias dirigentes da esttica. Classificao dasArtes. Doutrinas diversas.

    XV. A Crtica. Sua evoluo. Seus princpios fundamentais.Que posio ocupa na esttica.

    XVI. Principais escolas literrias. Lance de vista sobre aevoluo literria e artstica.

    XVII. Como se deve escrever a histria literria e artstica deum povo. Mtodos vrios. Exemplificao com o Brasil.

    O Brasil Social e outros estudos sociolgicos 29

  • XVIII. Fases diversas da literatura brasileira. Seus principaistipos representativos.

    XIX. Idia do Direito. Escolas diversas. Crtica das principais.XX. Principais institutos do Direito. Explanao das questes

    fundamentais. Idia da evoluo dos vrios institutos ou criaes jur-dicas.

    XXI. Idia da moral. Escolas a respeito. A moral evolucionista.O egoaltrusmo. O fundamento da moral.

    XXII. A Religio. Seu conceito fundamental. Mitologia Com-parada. Suas idias capitais. Religies comparadas. Escolas principais damoderna crtica religiosa.

    XXIII. A Poltica. Seu conceito bsico. Suas relaes com ascriaes anteriores e seu valor entre elas. Fases principais da polticahumana. Poltica antiga, poltica medieval, poltica moderna, polticacontempornea. Conceitos falsssimos dos brasileiros, em geral, em rela-o poltica e ao Estado.

    A Poltica alimentria ou poltica-profisso e ganha-po.XXIV. A Histria. Filosofia da Histria. Sistemas principais.

    Apreciao dos grandes mestres no s no modo de escrever seno node interpretar a Histria.

    XXV. Idia da Civilizao. Elementos principais da civilizaomoderna no Ocidente e no Oriente.

    XXVI. Fases principais da histria da civilizao. Estado socialdo mundo moderno. Os novos processos econmicos, a nova poltica, onovo viver das naes. O futuro provvel.

    Levamos, mestre e discpulo, trs longos anos a deslindar esteprograma e ainda hoje, quando nos encontramos, o que mui comumenteacontece, versamos algum ponto do extenso questionrio; extenso porqueno se deve ignorar que cada um daqueles pontos se subdivide em dezou doze teses do maior alcance.

    Foi no decorrer das lies a esse discpulo querido que a difi-culdade da exposio, ainda que perfunctria, do complexo do saber hu-mano, me levou a formular a classificao didtica das cincias, que temservido de base, de ento em diante, a todos os meus cursos. Ei-la aqui,porque pode vir a aproveitar a algum:

    30 Slvio Romero

  • Classificao Orgnico-Didtica das Cincias

    Filosofia Histria

    Propedutica Lgica, ou formas do mundo subjetivoMatemtica, ou formas do mundo objetivo

    Naturalstica

    MecnicaFsicaAstronomia ou Fsica CelesteQumicaBiologiaPsicologia

    TransioAntropologiaLingsticaEtnografia

    Socialstica

    Indstria e cincia das indstrias, oueconomia PolticaArte e cincia das artes, ou estticaReligio e cincia das religies, ou crticareligiosaDireito e cincia do Direito, ou Jurispru-dnciaPoltica e cincia da Poltica e daAdministrao do EstadoMoral e cincia da moral, ou tica

    A explicao deste quadro didtico da classificao das cincias fcil. Predomina o princpio da complexidade crescente, base de todaclassificao racional. Inicia-se a srie pelo que pode haver de mais gerale simples: as formas e relaes, quer do mundo subjetivo quer do objetivo.As idias a reinantes de co-existncia e sucesso, simbolizadas nos conceitosde espao e tempo, do lugar Lgica e Matemtica, que constituem umaespcie de propedutica geral do estudo das cincias.

    Aps esta propedutica destacam-se os dois grandes objetosde conhecimento: a Natureza, o Mundo, o Universo, como lhe queiramchamar, e o Homem, a Humanidade, a Sociedade.

    O Brasil Social e outros estudos sociolgicos 31

  • Pode-se considerar a Natureza em seu conjunto como susce-tvel de ser o objeto de uma cincia geral, sob a denominao de Natu-ralstica ou Naturologia, ou, se quiserem, Cosmolgica ou Cosmologia, daqual se destacam as diversas cincias particulares que tm por objetoos fenmenos naturais, desde a Mecnica, que se ocupa do fenmenoque pode haver mais geral no mundo, o movimento no espao e notempo, at Psicologia, que trata da vida espiritual do homem indivi-dual, que, nesta qualidade, um objeto da natureza, como outro qual-quer.

    Entre a Mecnica e a Psicologia figuram sucessivamente: a Fsica,a Astronomia ou Fsica Celeste, aps a Fsica geral, de conformidade com acorreo irrefutvel de Spencer seriao de Comte, a Qumica e a Biolo-gia. Devem seguir-se a cincia que trata da Sociedade e suas vrias ramifi-caes; existem, porm, pelo menos, trs cincias de grande mrito, trsformaes modernas, que constituem a transio entre o mundo fsico eo mundo social, entre as cincias do universo e as da sociedade humana,e so: a Antropologia, a Lingstica, a Etnografia. Aps estas surgem, ento,as cincias da Humanidade ou Sociedade.

    Pode-se considerar, sob a denominao de Socialstica ou So-ciologia, o complexo dos fenmenos sociais, constituindo uma cinciageral.

    Dela se destacam as cincias que estudam as grandes criaeshumanas, a saber: a Indstria e a cincia das Indstrias ou Economia Poltica, aArte e a Cincia das Artes ou Esttica, a Religio e a Cincia das Religies ouCrtica Religiosa, o Direito e a Cincia do Direito ou Jurisprudncia, a Poltica ea Cincia da Poltica e da Administrao do Estado, a Moral e a Cincia daMoral ou tica.

    E como todos estes assuntos podem ser tratados filosofica-mente, isto , sob um aspecto geral e sinttico de unificao do saber noseu estado atual, ou historicamente, isto , no seu desenvolvimento eevoluo no tempo e no espao, temos duas outras cincias: Filosofia eHistria.

    Pode ser que me iluda: mas o quadro parece-me completo eperfeito, como disposio orgnica e didtica das cincias e presta bons

    32 Slvio Romero

  • servios na prtica. Habilita o esprito mais rebelde a ter uma vista deconjunto de toda a vastssima rea das idias e do saber humano.

    II

    Algumas palavras agora acerca do presente livro. Compe-se elede dez estudos de extenso e valor desiguais e vm a ser: O Brasil econmico efinanceiro, Subsdio para o estudo das causas da Crise Comercial Brasileira (1889-99), Notas e reflexes acerca da crise bancria de setembro de 1900, As classesprodutoras e a representao nacional, Crise econmica no Brasil, Uma das faces doproblema comercial, Outra face do problema comercial, Da vantagem de criar-se ahistria comercial no Brasil, O comissariado de caf no Brasil, Sntese histrica doComrcio Nacional e Notcia de seus principais representantes no Rio de Janeiro.

    Os melhores so os que se referem s crises comercial, bancria eeconmica, e os que se ocupam do conjunto do Brasil econmico e finan-ceiro (o 1) e das classes produtoras e a representao nacional (o 4).

    Estes dois ltimos foram por mim recomendados ao meuprezado amigo para servirem de subsdio e documentao ao quadro doBrasil como ele de fato, estudado pelos processos da escola de Le Playe Tourville, que ando a preparar.

    Que escola esta? Perguntar a maioria dos leitores, at osque se julgam melhor informados.

    Para responder a esta pergunta, reproduzo aqui, em resumo,palavras j emitidas na parte escrita do aludido quadro.

    Duas especiais circunstncias me puseram no encalo dasidias que vo ser expostas: a observao atenta dos fatos passados noperodo republicano que se vai atravessando e o conhecimento maisntimo das doutrinas e ensinamentos da chamada Escola da Cincia Socialde Le Play, H. de Tourville, Ed. Demolins, P. Rousiers, A. de Preville, P. Bureaue tantos outros, aos quais se devem os melhores trabalhos existentessobre a ndole das naes.

    A Repblica teve a vantagem de revelar este querido povobrasileiro tal qual , entregue a si prprio ou a seus naturais diretores, oque vem a ser a mesma coisa.

    Os vcios e defeitos de sua estrutura social tornaram-se patentesaos observadores imparciais e cultos.

    O Brasil Social e outros estudos sociolgicos 33

  • At Independncia este amado Brasil tinha aparecidosempre sob a tutela da realeza portuguesa que o havia dirigido, guiado,afeioado, por assim dizer, ao sabor de seus planos e desgnios, at ondegovernos podem influir na estrutura das massas populares sobre que lhescumpre velar. No regime passado igual tutela tinha sido exercida pelamonarquia nacional que se poderia considerar, em mais de um sentido,uma continuao, um prolongamento da realeza me. Poder-se-ia dizerque havia uma fora estranha a estorvar o povo no seu andar normal eprprio.

    Hoje este obstculo jaz desfeito: no existe mais tal embaraoou tal desculpa. O observador no encontra um astro estranho a des-viar-lhe os instrumentos de anlise; no encontra tropeos no caminho.

    As doutrinas do evolucionismo spenceriano tinham-me postona pista do desdobramento natural dos vrios ramos da atividade hu-mana; tinham-me despertado a ateno para as formaes dsparesdos povos mestiados, nomeadamente os da Amrica do Sul, e, poresse caminho, havia sido conduzido s concluses a que cheguei emtodos os escritos acerca da minha ptria. As doutrinas da escola de LePlay, posteriormente, fizeram-me penetrar mais fundo na trama internadas formaes sociais e completar as observaes exteriores do ensinospenceriano.

    uma confirmao, em ltima instncia, de concluses obtidaspor outros meios e estradas.

    A histria destes quinze anos de Repblica tem servido aosespritos sem preocupaes mesquinhas para aclarar toda a histria co-lonial, regencial e imperial do Brasil. O perodo da Regncia sobretudoesclarece-se com uma intensa luz nova. A coeso, a unidade, a estabili-dade constitucional do pas, a ntima organizao da nao eram emgrande parte puramente ilusrias! O manto da realeza, puxado e repuxadoem todos os sentidos pelos politices de ofcio, encobria muita coisa quese no deixava ver.

    A Repblica manifestou o Brasil tal qual ; e, por isso, exata-mente, o governo que mais lhe convm, porque o no ilude; mas coma condio de ser vazado em moldes conservadores ou de um apertadofederalismo contido sempre por um forte governo central. o que sevai ver na luz do sistema de Le Play e Henri de Tourville.

    34 Slvio Romero

  • Claro que de tal doutrina, cujas produes recomendo, notenho a fazer neste lugar uma exposio esmiuada: apenas as linhasprincipais para compreenso do leitor.

    Os homens cultos dentre os nossos mdicos, engenheiros,magistrados, advogados, oficiais de curso de terra e mar, que so osverdadeiros intelectuais do Brasil, tm quase geralmente andado ao par deoutras doutrinas, as do positivismo, do evolucionismo, do socialismo,por exemplo, e no tm lanado as vistas sobre os belos trabalhos daescola de Le Play, cujo nome uma ou outra vez h sido citado, comevidente desconhecimento de seu ensino. Que eu saiba, s nos meuscursos de poucos anos, a esta parte, e agora nestas linhas, que se fazum apelo mais srio a esse sistema e seus processos.

    No que lhe aceite todas as idias. Sobre o conceito de raa,verbi gratia, a clebre escola, suponho, confunde o sentido antropolgicocom o sociolgico; porque parece no ligar importncia ao primeiro e sadmite o segundo. Figura-se-me isto uma simples iluso francesa.Tambm lhe no aceito a classificao dos fenmenos sociais, que seme antolha antes uma nomenclatura de problemas e questes a estudar,do que rigorosa classificao.

    Como quer que seja, porm, os mritos da doutrina, a despeitodestas e doutras divergncias, deparam-se preciosos para quem querconhecer a fundo um pas qualquer e a gente que o habita. Em primeirolugar, lana mo, para tal fim, de processos de acurada observao local,estudando com monografias especiais cada regio do pas sob as mais variadasfaces, conforme uma enumerao de questes, que so outros tantosaspectos fundamentais da vida social.

    S depois de reunida grande massa de documentos do gnero que os mestres do sistema se atrevem a formular quadros gerais destaou daquela nacionalidade e a estabelecer as leis de seu desenvolvimento.Neste gnero so dignos de detida leitura os livros de Edmond Demolins, A quoi tient la supriorit des Anglo-Saxons, Les Grandes Routes des Peuples(Les Routes de lAntiquit e Les Routes du Monde Moderne); Les Franaisdaujourdhui (Les Types Sociaux du Midi et du Centre e Les Types Sociaux duNord); de Paul de Rousiers, La Question Ouvrire en Angleterre, La vieAmericaine; de A. de Prville, Les Socits Africaines; de Paul Boreau, LeHomestead ou LInsaisissabilit de la petite proprit foncire; de Henri Tourville,

    O Brasil Social e outros estudos sociolgicos 35

  • Histoire de la Formation Particulariste.1 A enumerao ou classificao dosproblemas sociais deve partir dos fatos mais ntimos e indispensveis vida, sem os quais nem a prpria subsistncia da gente a estudar seriapossvel. Tais so os meios de existncia, que se denominam lugar, traba-lho, propriedade imvel, bens mveis, salrio, economia ou poupana. Entre estesseis grupos de meios de existncia, que do lugar a variadssimas questes,como se pode ver em Henri de Tourville, La Nomenclature Sociale, ouem Maurice Vignes, La Sciencie Sociale daprs les principes de Le Play, en-tre esses meios, dizia, e o modo de existncia (alimentao, habitao,vesturio, higiene, recreaes), que vem aps, coloca-se o assunto dosassuntos, a questo das questes, a Famlia. Esta a base de tudo nasociedade humana; porque, alm da funo insubstituvel e essencial degarantir a continuidade das geraes sucessivas, forma o grupo prpriopara a prtica do modo de existncia, o ncleo legtimo da maneira normalde empregar os recursos criados pelos meios de viver. Em seguida suce-dem-se: as fases da existncia, o patronato, o comrcio, as culturas intelectuais, a reli-gio, a vizinhana, as corporaes, a comuna ou conselho ou municpio, as reunies de co-munas ou conselhos, a cidade, a comarca, a provncia, o estado, a expanso da raa, o es-trangeiro, a histria da raa, a posio ou jerarquia da raa. Ao todo vinte e cincogrupos de fatos e problemas sociais da maior importncia e do mais srioalcance. O estudo destes assuntos, no tempo e no espao, tem dado lugar aalgumas concluses notveis.

    Destarte, a humanidade, mais ou menos em conjunto, tematravessado trs grandes idades sociais: a idade das produes espontneas e dosaparelhos ou instrumentos manejados pelo brao; a idade das mquinas movidaspelos animais, pelos ventos, pelas guas correntes; a idade do carvo de pedra, dovapor e da eletricidade, aplicados produo das subsistncias e ao servio dos trans-portes.

    As revolues operadas na vida social por essas vrias alteraesintroduzidas no regmen do trabalho so da mais considervelimportncia.

    Por outro lado, a famlia, estudada quer historicamente, querna atualidade, apresenta quatro modalidades, do maior valor para quem

    36 Slvio Romero

    1 Uma idia completa da doutrina, alm dos livros citados e das obras de Le Play,pode ser adquirida na revista La Science Social e e no livro de J. B. Maurice Vignes, La Science daprs les principes de Le Play et de ses continuateurs.

  • quiser compreender a ndole das sociedades a que servem de basefundamental.

    Uma sociedade vale pelo que vale nela a famlia.Os quatro tipos so: famlia patriarcal, famlia quase particular,

    famlia-tronco (SOUCHE), famlia instvel, aceitando as modificaes feitasnas idias de Le Play por seus discpulos. O velho mestre s tinha clas-sificado trs tipos e acertadamente foi corrigido neste ponto.

    Eis as definies das quatro modalidades, conforme MauriceVignes: A famlia patriarcal aquela na qual os pais no pensam em pre-parar seus filhos para que eles venham a criar uma posio livre: porquea extenso do solo disponvel, o fraco crescimento da populao e dasnecessidades permitem aos filhos ficarem na indiviso.

    Quando estas circunstncias, que facilitam a vida em comumnos domnios paternos, vm a desaparecer, quando o nmero dos casosreunidos em um mesmo stio fora de proporo com a produtividadedas terras ou da oficina de trabalho, quando o equilbrio entre as subsis-tncias que estas produzem e a populao que nelas reside roto, faz-semister destacarem-se algumas famlias. Limita-se assim a famlia patriarcala cinco ou a quatro ou a trs casais e seus filhos.

    Um dia, sob o impulso das mesmas causas, a famlia reduz-sea dois casos, o do pai e do herdeiro escolhido para continuador.

    Estamos, neste caso, em face da famlia quase patriarcal.A transmisso integral da oficina de trabalho a um s filho ,

    neste caso, com efeito, um vestgio da transmisso integral em proveitode todos; a transmisso individual substituiu a transmisso integralcoletiva. Os filhos que no herdam em espcie recebem sua quota emdinheiro; mas como no foram criados com o pensamento de deixar aterra natal, nada os prepara no sentido de vencerem na luta pela vida.Sados de uma comunidade, continuam a contar com ela, a apelar paraele em seus embaraos e em seus desnimos.

    A famlia-tronco (SOUCHE) no , como a precedente, uma re-duo da famlia patriarcal. As sociedades que possuem este gnero defamlia por base, as sociedades de formao particularista, originaram-se nascostas da Escandinvia em conseqncia da inveno da barca a velas e

    O Brasil Social e outros estudos sociolgicos 37

  • das condies de iniciativa e isolamento, impostas, a essas gentes,enrgicas, pela pesca martima.

    Tal famlia funda-se na educao individualista dada aos filhos.Esta educao leva-os s vezes a abandonar o pai para melhor trabalhar,empregar melhor as prprias foras. s vezes um filho consente em ficar,com a promessa de lhe ser integralmente transmitida a oficina de traba-lho.

    Outras vezes recusa; porm, at neste caso, a famlia no perdeo seu carter fundamental, porque o isolamento dos pais e a sada detodos os filhos originam-se do desenvolvimento particular das qualidadesde iniciativa e de coragem dos ltimos, e tendem ao progresso da ativi-dade geral e das virtudes cvicas.

    Na famlia-tronco os filhos, colocados entre dois deveres, o depiedade filial e o de labor social, sacrificam o primeiro, em conseqncia,alis, dos incitamentos dos prprios pais, que renunciam a guardar pertode si seus descendentes reclamados pela ptria e pelo trabalho.

    E, pois, se o indivduo voluntariamente se desprende da fa-mlia, para consagrar mais intensamente sua atividade ao aumento dasriquezas e das foras gerais. Os hbitos, oriundos do esprito de famlia,cedem o passo aos costumes impostos pelo devotamento sociedade.

    No em to boas razes que se funda a famlia instvel: Nestafaltam dois caractersticos essenciais, existentes na famlia precedente:falta a educao viril dada aos filhos; e, alm disso, se no existe a trans-misso hereditria integral, no porque os filhos recusem prestar-se a elapor trazerem em si as largas esperanas e os vastos pensares, cuja reali-zao incompatvel com o apego profisso paterna, no; porque atransmisso integral se tornou ou intil pelo retalhamento da propriedade,ou impossvel em conseqncia do influxo dissolvente da legislao e doprincpio da partilha igual em espcie.

    Se os filhos no ficam junto aos pais, que temem perder aliberdade, porque esse dever lhes pesa e no porque os pais lhesaconselhem a procura ou lhes tenham ensinado a achar fora umaposio independente; , ainda, porque nenhum filho pode contar coma transmisso integral em seu favor, em razo do estado dedesmembramento excessivo das propriedades ou da m legislao. Afamlia instvel deriva, portanto, da falta de esprito familial, da falta de

    38 Slvio Romero

  • domnios aglomerados e do princpio da igualdade hereditria impostapor uma legislao retrgrada.2

    Estas quatro classes de famlias, oriundas de certas edeterminadas particularidades tnicas e histricas e, muito de perto, decondies especiais de lugar, trabalho e propriedade, do origem a duascategorias de sociedades humanas: as sociedades de formao comunria(communautaire) e as sociedades de formao particularista.3

    As sociedades de formao comunria, expresso esta, como digoem nota, que se no deve confundir com o termo comunista no sentidoque hoje lhe d certa ramificao do moderno socialismo, compreendemas diversas variedades de gentes que procuram resolver o problema daexistncia, apoiando-se na coletividade, na comunho, no grupo, quer da fa-mlia, quer da tribo, quer do cl, quer dos poderes pblicos, do municpio, daprovncia, do estado.

    As de formao particularista encerram as diversas variedadesque buscam solver o problema da vida, firmando-se unicamente naenergia individual, na iniciativa privada, e tiram o nome do fato deconservar nelas o particular toda a independncia em relao ao grupo.4

    Pondo de parte as sociedades simples dos caadores e pescadores selva-gens, cujo caracterstico principal no ter famlia, as sociedades complexas,em cujo nmero, abrindo a lista, devem ser contadas as gentes pastoris doOriente e os pescadores progressivos da Escandinvia, pertencem a umaou a outra das duas categorias citadas.

    As comunrias, em muito maior nmero do que as particularistas,apresentam trs modalidades tpicas, conforme a espcie de famlia quelhes serve de apoio: comunria de famlia, tendo por fundamento a famlia

    O Brasil Social e outros estudos sociolgicos 39

    2 La Science Sociale daprs les principes de Le Play et de ses continuateurs, par J. B. Vignes, I,pg. 196.

    3 A lngua francesa, mais rica do que muita gente pensa, alm dos substantivoscommun, commune, communaux, communage, commanaut, communisme, e dos adjetivoscommun, communal, communaliste, communiste, que correspondem (os ltimos) aos nos-sos comum, comunal, comunalista, comunista, possui o adjetivo communautaire que jul-go poder traduzir por comunrio, porque comunista, por exemplo, j tem outro signi-ficado.

    4 Ed. Demolins Les Franais daujourdhui (Les Types Sociaux du Midi et du Centre),pg. 440; quoi tient la supriotit des Anglo-Saxons, pg. 53.

  • patriarcal; comunria de famlia e de estado, tendo por base a famlia quasepatriarcal; comunria de estado, firmada na famlia instvel. As duas primeiraspredominam no Oriente asitico e europeu; a ltima no Meio-Diaocidental da Europa e na Amrica do Sul.5

    As sociedades de formao particularista apresentam duas modali-dades: ou d-se a escolha de um continuador do patrimnio e da oficinade trabalho, o que, alm da forte educao moral e do grande esprito deiniciativa, faz a sociedade revestir-se de um belo aspecto patriarcal dolargo sentido; ou, com a plena liberdade de testar da parte dos pais, osfilhos nem sequer pensam em lhes suceder, contentando-se com asqualidades de carter que herdaram. A primeira modalidade correntena Europa escandinava, na Inglaterra, na Holanda, na plancie saxnica;a segunda nos Estados Unidos.

    Sob o ponto de vista especfico do trabalho, que vem a ser agrande mola que move e afeioa as sociedades humanas, cumpre noperder de vista que vrias tm sido as fases atravessadas pela espcie;partindo ela do simples apanhamento de substncias que se prestam aoalimento e dos produtos espontneos da caa e da pesca, que demandam rudi-mentar esforo, passando pela recolta ou coleta da arte do pastoreio e dasprodues frutferas arborecentes, seguindo pela cultura maior ou menor,at chegar cultura intensa e vastssima e s indstrias complicadas dostempos hodiernos.

    Cada um destes gneros de trabalho, cada uma destas oficinasde produo, cada uma destas maneiras de agenciar os meios de subsistnciatrazia e traz conseqncias especiais indelveis, dificlimas de apagar;porque elas constituem o substratum ntimo das sociedades.

    Claro , por outro lado, que a humanidade, tomada em seutodo ou considerada em seu conjunto, no atravessou toda ela ao mesmotempo e de parceria cada uma das fases dessa gradao.

    As situaes recprocas dos povos divergem.A posio do Brasil, seu verdadeiro estado social, esclarecido

    com o critrio ntimo dos elementos primrios e essenciais da vida, que me proponho a elucidar.

    40 Slvio Romero

    5 Ed. Demolins, loco cit.

  • Infelizmente s em traos largos e em linhas gerais; porqueum estudo regular e completo do pas, sob tal mtodo, exigir trs ouquatro volumes, firmados em duzentas ou trezentas monografias, queno existem, que esto por fazer.

    Seria preciso apreciar acuradamente, sob mltiplos aspectos,cada um dos povos que entraram na formao da nao atual; dividir opas em zonas de produo, zonas sociais; em cada zona analisar uma auma todas as classes da populao e um a um todos os ramos daindstria, todos os elementos da educao, as tendncias especiais, oscostumes, o modo de viver das famlias de diversas categorias, ascondies de vizinhana, de patronagem, de grupos, de partidos;apreciar especialmente a vida das povoaes, vilas e cidades, ascondies do operariado em cada uma delas e nas roas, nos engenhos,nas fazendas, nas estncias de criar, os recursos dos patres, e cemoutros problemas, dos quais, nesta parte da Amrica, retrica dosbandos partidrios que vivem poltica alimentria que os nutre,devorando a ptria, jamais ocorreu cogitar...

    E, todavia, a despeito das dificuldades, levarei, se tiver vida esade, ao cabo a empresa.

    Como um dos muitos elementos de anlise indispensveis, foique encarreguei o ex-discpulo e dileto amigo, autor deste livro, de traarum esboo do Brasil, econmico, especialmente no que se refere aodficit de subsistncia, que uma das chagas mais cruis que nos fazemdefinhar.

    Ele galhardamente o cumpriu no sugestivo estudo que abre ovolume.

    S me resta de pblico agradecer-lhe o servio e recomendaros presentes ensaios a todos aqueles que em publicaes impressaspreferem verdades e fatos s delinqncias, arrebiques e fitalhadas falsasde todas as prosas vs, to do gosto de certos charlates, que danamno jornalismo como as ciganas nas feiras, para gudio de babaques edesocupados...

    Maro de 1904.

    O Brasil Social e outros estudos sociolgicos 41

  • 2 A ESCOLA DE LE PLAY NOBRASIL (1906)

    Transcrito de Provocaes e Debates. Porto Livraria, Chardron, 1910, pp. 189-194.

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    A Escola de Le Play no Brasil 1

    (Carta ao Il.mo Sr. Dr. Jos Oiticica)

    Grande satisfao tive com o recebimento de sua carta, naqual me sugere a idia de encarregar-me da descrio de Sergipe, minhaptria, pelo mtodo da doutrina de Le Play.

    O estudo sugerido teria o intuito de contribuir para a Enqutesociale, aberta pela revista La Science sociale, em o seu n de janeiro desteano.

    Se verdade, porm, que causa prazer ver que o meu nobrepatrcio se vai deixando influir pelas idias da severa escola, de que souadepto fervoroso, no menos verdade que o distinto confrade ainda,ao que parece, no est assaz inteirado das doutrinas, dos processos, dosmtodos da escola e da valorosa literatura, j existente, por ela inspirada.

    A enqute projetada versa sobre a circunscrio regionalelementar, que os franceses chamam de Le Pays, e ns poderemoschamar a regio, a zona local.

    1 No esquecer o que j foi dito em nota a uma das pginas anteriores. Desta escolano aceito as idias catlicas dum ou doutro de seus membros. Sigo os processos,as idias econmicas, sociais e polticas.

  • La Science Sociale, doutrina Ed. Demolins, no citado fascculoda revista de janeiro, em que vm as bases do inqurito, La Science socialedesigne, sous le nom de Pays, de petites circonscriptions rgionalespresentant des caracteres communs et des conditions de vie uniformes,determins par la nature du Lieu et du Travail e parfois aussi par les ori-gines de la population. Ces Pays forment partout les subdivisions natu-relles de la Contre ou de la Province.

    Ora, o novo processo aplicado a Sergipe, que no um pays,seno uma provncia, ou estado, como hoje se chama, sendo, portanto,uma reunio de vinte ou trinta pays, na acepo francesa, levar-me-ia,ainda que procedesse por grandes divises, a dez ou doze zonas ou regiesdiversas, todas merecedoras de estudos separados e dificlimos atentascertas condies locais.

    As mais notveis seriam: ribeira do S. Francisco, terraprincipalmente do arroz e da pesca; vale do Japaratuba, dando este lugar avrias subdivises, terra principalmente da cana-de-acar; Itabaiana,regio de antigas, famosas matas, hoje quase extintas, terra do algodo eda mandioca preponderantemente; o Palmar e a zona do noroeste daprovncia, onde a criao do gado predomina; Lagarto, zonavariadssima que, em pequeno circuito, oferece ao trabalho algodo;mandioca, tabaco, criao de gados e cana-de-acar; Itabaianinha, tabaco, gados,mandioca; Campos, mutatis mutandis, nas mesmas condies; Estncia cana-de-acar, algodo, mandioca, cereais, existentes, alis, tambm em todasas outras zonas; Cotinguiba cana, sal, pesca; Vaza-Barris, na regio deItaporanga e S. Cristvo, cana, sal, pesca, como na regio antecedente,mas modalidades dignas de apreo; Simo Dias e Coit gado, algodo,caf.

    Claro que no basta ter nascido em Sergipe para se fazercom rigor e verdade qualquer das monografias que essas vrias zonasexigem, mxime quando se deixou a terra natal h mais de trinta anos.

    J se v que me refiro a estudos rigorosamente cientficos,como alguns que tm aparecido nas pginas de La Science.

    Supor o contrrio andar alheio disciplina e severidade demtodo da escola.

    E o caso geral no Brasil.

    46 Slvio Romero

  • Por muito mais de vinte anos a doutrina floresceu, produzindoos trabalhos mais belos e profundos, sem que lhe prestassem, entre ns,a mais leve ateno.

    Foi preciso que Ed. Demolins escrevesse o seu vibrante livro quoi tient la supriorit des Anglo-saxons? para que os nossos descuidososlhe dessem escassos ouvidos. Mas o tomaram, evidentemente, por umaespcie de touriste, que tivesse estado na Inglaterra e houvesse ali encon-trado algumas cousas dignas de ser imitadas.

    No quiseram ver que atrs de tudo aquilo estava toda umadoutrina que importava conhecer. Mais tarde o mesmo preclaro Ed.Demolins escreveu o belo volume Lducation Nouvelle (Lcole des Roches)e, desta vez, muitos dos que entre ns vivem de se entreter com ascousas do ensino, que um ramo de negcios como qualquer outro,vieram a pensar que podiam contar com mais um pedagogo, a ser imitadosuperficialmente, como hbito fazer com muitos outros que a Europanos exporta. O grande discpulo de Le Play passou a ser consideradoum pedagogo, adicionado a um touriste.

    Era e a crena geral.No se quis ver que o novo processo de educao a conse-

    qncia de uma especial doutrina de filosofia e de cincia social e temapenas por fim arrancar as gentes francesas, e, com elas, as espanholas,italianas, portuguesas, latino-americanas e outras congneres de suadetestvel formao comunria e faz-las adquirir o carter dos povos deformao particularista. No se quis ver, repito, que a nova educao no passada aplicao de uma doutrina, que indispensvel conhecer.

    O meu caro confrade, desculpe a franqueza indispensvelentre homens srios, j pelos anncios de seu Colgio Latino-Americano,j pela carta que dirigiu ao Ilustre Ed. Demolins, inserta na revista do nde setembro do ano passado,2 v-se claro que laborava ainda no errogeral, corrente no Brasil.

    O nosso grande mestre, com sua natural perspiccia, foi dosprimeiros a reconhec-lo, tanto que na resposta que lhe dirigiu no per-deu o ensejo de dizer-lhe que a nova educao um resultado da Cincia Social,sem a qual perde seu carter original: Je vous engage faire partie de notre

    O Brasil Social e outros estudos sociolgicos 47

    2 1905.

  • Socit de Science Sociale et recevoir, ce titre, notre Revue mensuelle La Science Sociale, afin de vous tenir au courant de nos travaux. Voussavez en effet que lcole des Roches est un produit de la Science Socialequelle est soutenue par elle. Si nous perdions cette base le caractreoriginal de notre cole disparaitrait peu peu.

    Entretanto, desde princpios de 1904 tinha eu, no prefcio dasQuestes Econmicas Nacionais, de Artur Guimares, dado ampla exposiodas doutrinas bsicas da nova escola, doutrinas nos anos anteriores pormim comunicadas a esse eminente discpulo que as aceitou e nas quaisse inspira hoje.

    Disso testemunha o aludido volume das Questes EconmicasNacionais.

    No citado prefcio anuncio o livro, que ando a escrever, sob ottulo de O Brasil Social luz das Idias e do Mtodo de Le Play.

    A revista, rgo da grande escola, em seu n de dezembro de1904, traz circunstanciada notcia do fato, conhecido pelos nossos con-scios. Em todos os meus novos escritos, em jornais, revistas, folhetosou livros, venho sempre insistindo na grande doutrina. Disso soexemplos, alm dA Ptria Portuguesa (anlise do livro de igual ttulo deT. Braga) e dAmrica Latina (anlise do livro do mesmo ttulo de M.Bonfim), os Outros Estudos de Literatura Contempornea e O Alemanismo noSul do Brasil, que tenho o prazer de lhe enviar conjuntamente com asQuestes Econmicas, de Artur Guimares.

    Quando, pois, foi feita a sua apresentao para membro daSociedade Internacional de Cincia Social, como consta do n da revista de fe-vereiro recente, j havia dois anos que eu e meu discpulo Artur Gui-mares estvamos, em relao com o preclaro Ed. Demolins e tnhamosconstitudo no Rio de Janeiro um grupo, em cujo nmero temos hoje oprazer de o contar.

    Revela apenas ponderar que antes do Grupo do Rio, existia ode S. Paulo, sob a direo do Dr. Silveira Cintra.

    No me consta, porm, que este distinto cavalheiro ou qual-quer de seus colegas tenha dado a lume escritos acerca das doutrinas daescola.

    Creio que no existem, salvo erro da minha parte.

    48 Slvio Romero

  • Julguei de meu dever fazer-lhe as confisses que a ficam;porque neste pas, onde costume inveterado desprezar os esforos dosque estudam e trabalham, confisses tais so indispensveis.

    Pelo que toca enqute, digo-lhe em concluso, que, abarbadocomo ando com o Brasil Social, no poderei concorrer para ela pormodo direto.

    Limitar-me-ei a enviar Sociedade um esboo de classificao daszonas sociais do Brasil.

    4-5-906.

    O Brasil Social e outros estudos sociolgicos 49

  • 3 AS ZONAS SOCIAIS E A SITUAODO POVO (1906)

    Transcrito de Provocaes e Debates, ed. cit., pp. 195-204.

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    As Zonas Sociais e a situao do povo

    (Trecho duma carta a M. Ed. Demolins)

    Pode-se dizer que o Brasil contm as seguintes zonas geogrficas,perfeitamente caracterizadas, que so sedes de outras tantas zonas sociais,atendendo-se natureza do trabalho a que do origem.

    1 O planalto da Guiana no alto norte dos Estados do Ama-zonas e do Par, especialmente na regio em que corre o rio Branco. zona de criao de gados, indstria, porm, incipiente, quase toda por con-ta do Governo Federal, tudo desorganizado e mal dirigido.

    2 As terras mais baixas, que imediatamente se seguem e vo aentestar com a margem norte do rio Amazonas. regio de matas e dacueillette de produtos espontneos da natureza: borracha, castanha, sal-saparrilha, copaba, cravo, piaava, urucu, etc. A famlia a nas classespopulares assaz desorganizada, havendo quase inteira promiscuidadeem mais de um stio.

    Existe uma pequena lavoura rudimentar, em alguns pontos,de cacau, mandioca, cana-de-acar e tabaco. Os dois primeiros daquelesprodutos so quase de simples cueillette.

  • 3 As terras marginais do norte e do sul do grande rio, com-preendendo tambm a parte inferior do curso de seus afluentes.

    o vale do Amazonas no seu sentido mais estrito. regiode pesca fluvial. Os que se ocupam nela esto no grau mais inferior dasgentes que viviam dessa espcie de indstria.

    4 A zona das matas da regio ocidental onde se acham oscursos dos rios Madeira, Purus, Acre, Juru, constituindo o ncleo prin-cipal do territrio do Acre, que com toda razo aspira organizar-se emestado.

    tambm regio da borracha e indstrias extrativas congneres.5 O planalto central-norte, compreendido entre o Madeira, o

    Tocantins e o divisor das guas do sistema fluvial sul-americano. zonaainda quase completamente inaproveitada.

    Contm bons campos para a criao de gados.6 O planalto do interior desde o divisor das guas at regio

    serrana do Rio Grande do Sul.Contm diversas variedades de terras e de culturas, como

    sejam: campos de criar, terras de minerao, terras de lavoura de caf,tabaco, etc.

    Deve esta imensa regio ser dividida pelo menos em quatrozonas diferentes: a dos campos de criar do norte de Minas, Gois e terrasaltas de Mato Grosso; a de minerao, um pouco espalhada por esses trsEstados; a do caf, principalmente no sul de Minas, S. Paulo, terras altasdo Rio de Janeiro; a de criao de gados no Paran e em Santa Catarina.

    Por toda essa imensa regio o tipo da famlia instvel, porcausa da transmisso parcelada das heranas, o que equivale dizer porcausa de imposies retrgradas da legislao.

    7 A regio dos vales dos rios Paraguai e Guapor, compreen-dendo as terras baixas e mdias de Mato Grosso. Predominam ali a cueil-lette da erva-mate, alguma minerao e criao de gados em campos in-tercalados nas terras mdias.

    8 Regio entre os rios Gurupi e o Parnaba, compreendendoo Estado do Maranho e terras prximas. Arroz nos terrenos mais baixos,cana-de-acar na regio das matas e alguma criao de gado, nos sertes dooeste.

    54 Slvio Romero

  • 9 Os sertes do norte, denominados os Cariris na suaregio central, limitados pelo citado Parnaba ao norte e o Itapicuru, oumelhor, o Paraguau no Estado da Bahia. uma faixa de terreno quefica a leste do Brasil, entre os dois rios citados que lhes formam os limi-tes de norte e sul, a regio das matas que se prolongam atravs da costamartima pelo lado oriental e o alto planalto do interior pelo ocidental. a clssica zona das secas que a flagelam periodicamente.

    Criao de gados, sujeita porm a grandes perdas nos perodosde secas, cereais nas regies mais frescas beira de serras, etc., so asindstrias e o regmen do trabalho.

    10 As terras da costa martima, compreendendo a citada fai-xa de matas, desde o Maranho at o Esprito Santo. a famosa regiodos engenhos de acar.

    As melhores famlias constituram a patronagem natural daspopulaes; mas a sua riqueza, que repousava no brao escravo, estquase de todo aniquilada, por causa da extino da escravido e da concorrn-cia da beterraba nos mercados mundiais.

    A nesta zona em stios adequados se cultiva tambm a man-dioca, o tabaco e cereais.

    11 A regio da costa do Esprito Santo ao Rio Grande doSul. faixa estreita, por causa da aproximao da Serra do Mar.

    Arroz, mandioca, cereais em pontos vrios.12 As terras que formam a descida do planalto para o lado

    do rio Paran onde se acha o clebre territrio das Misses. zona demata inaproveitada em grande parte, mas se faz ali alguma extrao daerva-mate em vrios stios.

    13 Os campos, pampas e cochilhas do Rio Grande do Sul; a zona extrema do Brasil.

    A criao de gados por um sistema que lembra em parte odas estepes pobres dsia e frica, produz ali um tipo social, que temafinidades com os daquelas zonas.

    Recapitulando, posso dizer que existem as seguintes zonas sociaismais notveis no Brasil: regio do gado no alto Norte; regio da borrachano vale do Amazonas; regio da pesca fluvial nesse grande rio e seusafluentes; regio do gado nos sertes secos do Norte; regio do gado nos

    O Brasil Social e outros estudos sociolgicos 55

  • campos e tabuleiros de Minas, Gois e Mato Grosso; regio do acarna chamada Zona da Mata, desde o Maranho at o norte do Estado doRio de Janeiro (faixas intermdias desta regio existem prprias para oalgodo, o fumo, a banana); regio da minerao em Minas, Gois e MatoGrosso; regio do mate das matas do Paran e Santa Catarina e parte deMato Grosso; regio do gado no planalto destes dois ltimos estados; re-gio dos cereais na zona serrana de Santa Catarina e Rio Grande do Sul;regio do gado nos campos deste ltimo estado.

    Pela simples inspeo deste quadro, bem vedes, caro mestre,que no Brasil o trabalho, como base social, cheio de grandes lacunas.Predominam os produtos de mera cueillette, j de plantas puramente ex-trativas, j de frutos arborescentes, etc. A prpria cultura do caf algumtanto anloga da castanha e das nozes na Europa; pois que, uma vezplantada, a rvore vive de vinte e cinco a trinta anos dando bons resul-tados, quase sem esforo da parte do homem.

    A cultura mais difcil da cana-de-acar repousou duranteperto de quatro sculos no brao escravo. Os engenhos eram grosseirasexploraes de carter comercial, como as fazendas que ainda hoje osportugueses mantm na frica. Logo que cessou o brao escravo, aproduo do acar se alterou consideravelmente com as despesasacrescidas, etc.

    Quando o acar da beterraba comeou a inundar os mercadosdo mundo, a cultura da cana no Brasil entrou em crise franca.

    Os trabalhos da minerao prosperaram algum tanto no reg-men colonial com o brao escravo e quando os minrios estavam florda terra.

    Logo que foram precisas obras de arte, dificultosas e caras, aminerao cessou quase por completo, existindo apenas hoje algumascompanhias inglesas, com capitais desta origem.

    esta a base econmica que justifica as concluses a quecheguei a respeito do estado atual do povo brasileiro, concluses quepasso a deduzir.

    O povo brasileiro, considerado em seu conjunto, oferece o es-petculo dune socit formation communautaire branle. A velha famliaportuguesa, que de patriarcale-absolutiste j se tinha transformado em

    56 Slvio Romero

  • verdadeira famlia patriarcale dsorganise, em conseqncia da quase geraltransmisso parcelada das heranas e domnios, ainda mais se tem desorganizadono Brasil, chegando ao ponto de verdadeira famlia instvel, sob o influxo,cada vez mais rigoroso, do aludido sistema de transmisso hereditriaparcelada e da desorganizao crescente do trabalho com a extino daescravido e inexistncia de colonizao geral sistematizada, nacional eestrangeira.

    O trabalho, desde os comeos do povoamento no sculoXVI, teve, como sabeis, a base falsa da escravido, pretendendo o por-tugus forar dois povos que desconheciam por completo a cultura (ndiose negros) a serem agricultores; quando ele portugus no o era tambmem rigor, por no ter passado verdadeiramente da cueillette de frutos abo-rescentes, hortalias, alguns cereais e da leve cultura da vinha. A verdade que nem o colono portugus nem os seus escravos, ndios e negros,estavam preparados para os duros trabalhos da cultura americana. Aemancipao rpida perturbou ainda mais tudo isto.

    Com semelhante base de famlia e de trabalho , o regmen co-munrio abalado ou de estado domina de alto a baixo em toda a nao, denorte a sul, de leste a oeste. A famlia aqui se poderia chamar patriarcaldesorganizada em os tempos coloniais.

    Hoje tem os caracteres de famlia completamente instvel.Perdeu todas as vantagens do regmen patriarcal, ao contato

    do negro e do ndio, que no tinha famlia, e mais com o sistema da es-cravido como base do trabalho, e mais com o modo parcelado datransmisso hereditria e mais, finalmente, com a queda sbita da falsabase do aludido trabalho escravo.

    Perdeu todas as vantagens do regmen patriarcal, repito, semter at agora obtido as do regmen de formao particularista, a que nochegar seno ou por uma assimilao hbil de elementos provindos dasraas particularistas, ou por um sistema de educao severssima de altoa baixo, como esse que preconizais em La Nouvelle ducation. Ns osbrasileiros sofremos em larga escala de todos os achaques dos povoscomunrios de estado que vs tendes descrito to acuradamente emvossas obras.

    Ns os brasileiros do extremo norte ao extremo sul, desde asfronteiras das Guianas e da Venezuela e Colmbia at os limites com o

    O Brasil Social e outros estudos sociolgicos 57

  • Estado Oriental do Uruguai, formamos, em rigor, uma coleo de ver-dadeiros cls de espcies vrias, nos quais o indivduo no possui a maisleve sombra de iniciativa e esprito organicamente empreendedor.

    As tendncias comunrias dos povos que nos formaram agra-varam-se consideravelmente na estrutura na nova sociedade.

    Pode-se at dizer que algumas boas qualidades de que eramportadores os colonos europeus se dissolveram ao contato de ndios enegros e do novo meio tropical, que obraram como uma espcie de rea-gente qumico de ndole destruidora.

    As gentes brasileiras por toda a vastido do interior do pas, e atnas prprias cidades nas camadas populares, vivem de ordinrio todas emtorno dum chefe, dum patro, dum protetor, dum guia; todos tm o seu homem.

    Os fazendeiros, quer nas fazendas de caf quer nas de criaode gados, os senhores de engenho, os chefes de partido, as influncias locais, osnegociantes abastados das vilas e cidades; em vrios pontos os vigrios dasfreguesias, os juzes de direito, os advogados de renome, os mdicos espertos,todos, todos esses e muitos mais so como chefes de grupos, de cls,em torno dos quais vivem as populaes por esse Brasil afora.

    A poltica nos estados gira em torno dum chefe, um oligarca; naUnio em torno dum mando geral, o guia e senhor do bloco. Neste fato seprendem muitos fenmenos sociais, como o de famlias inteiras que noscentros se bateram sempre at ao extermnio, e o aparecimento repetidode bandidos, chefes de grupos nmades, que devastam o interior do pas.

    Os trabalhos da cultura agrcola, da criao, da minerao, dasindstrias, da navegao so muito pouco desenvolvidos.

    A maior parte da populao brasileira moureja desequilibradae consumida por um acentuado pauperismo.

    Um tero, se no menos, trabalha mal para alimentar os outrosdois teros.

    O recurso geral a poltica, sob todos os aspectos grosseirosde que se costuma revestir, a verdadeira politique alimentaire, to cruamentedescrita pela escola social de Le Play e seus eminentes discpulos. Os par-tidos, as associaes ou agrupamentos quaisquer nas freguesias, nos mu-nicpios, nas comarcas, nas provncias, hoje estados, na Unio, todas asinstituies, todos os cargos pblicos, em nmero incalculvel, no tm

    58 Slvio Romero

  • outro destino, no tm outra funo: seu fim fornecer meios de vida auma clientela infinita. O estado no tem por fim prprio a manuteno daordem, a garantia da justia, ou, se quiserem, a ajuda de certos empreendi-mentos elevados; seu papel preponderante, e quase exclusivo, alimentara maior parte da populao custa dos poucos que trabalham e isso portodos os meios, como sejam as malhas dum funcionalismo inumervel.

    Quando no so os empregos diretos nas reparties pblicas,muitos deles inteis, so as comisses para os influentes, as penses, asgratificaes sob ttulos vrios, as obras pblicas de toda a casta e mi-lhares de outras propinas.

    Nestas condies, no de estranhar que a poltica preocupemuito os brasileiros, mas a poltica que consiste em fazer eleies paraver quem vai acima e ficar em condies de fazer favores.

    O grau de corrupo e abastardamento a que chegaram oscostumes eleitorais no suscetvel de descrio por pena do homem.

    O geral do povo detesta a vida do campo, e, mesmo no inte-rior, acumula-se nas povoaes: cidades, vilas, aldeias, arraiais, etc. cata do chefe para o arrimo, cata do emprego pblico, do arranjo pol-tico sob qualquer forma.

    A propenso que tm os moos para se graduarem, para rece-berem ttulos acadmicos notria. para seguirem a vida das cidadesnas profisses liberais, no jornalismo, na literatura, nos empregos daadministrao.

    Nas classes inferiores os que no conseguem arranjo nosempregos compatveis com sua falta de cultura, ou nas obras pblicas,tm um derivativo nas fileiras do exrcito que se recruta pelo volunta-riado, ou nos corpos policiais e milcias urbanas que so numerosos nacapital e nos estados.

    esse o retrato social dos brasileiros de hoje em traos rpidos.A comprovao completa resultar do estudo mido de todas

    as regies do pas.Maio de 1906.

    O Brasil Social e outros estudos sociolgicos 59

  • 4 EDMOND DEMOLINS (1907)

    Transcrito de Provocaes e Debates, ed. cit., pp. 75-101.

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Edmond Demolins

    A notcia do falecimento do grande socilogo francsEdmond Demolins encheu de pesar o pequeno nmero de seus adeptosdo Rio de Janeiro.

    A coisa se justifica plenamente por si mesma.Para ignorncia ossificada da maior parte da literatada brasileira,

    Edmond Demolins era vagamente conhecido como um touriste que haviaescrito um livro de viagem sobre a Inglaterra, livro no qual cumulara deelogios o grande povo, reconhecendo-lhe certas superioridades sobreceltas, eslavos, latinos, no falando de mestios, amarelos, negros, exis-tentes pelo mundo afora.

    Alguns, dos que se supem mais atilados, supunham, por de-mais, ser Demolins um mestre-escola, um pedagogo, que escrevera umlivro acerca da educao da mocidade francesa. Era isto e mais nada.

    Preocupados com exotismos literrios, com tudo quanto temressaibos de extravagncia, de desequilbrio, de molstia, de desordemespiritual; abismados nas boutades de Tolstoi conta de Shakespeare,com as bizarras invenes de Ibsen, cujos enrgicos caracteres, a um

    I

  • tempo sutis e grandiosos, os atordoam; enleados em esquisitices ortogrficasou presos no visco do esperanto; alheados da realidade a seguir as fantasiasde Nietzsche; embasbacados diante das novelas romanescas de Ferrerosobre Tibrio e Jlia, Antnio e Clepatra, Nero e Agripina, o tempono lhes chega para acompanhar os graves problemas que preocupam omundo e tomar conhecimento dos estudos de economia, de poltica, decincia social, de assuntos industriais, de direito aplicado, de educao eoutros que visam diretamente a preparar o homem para a grande luta davida moderna.

    Pois no vimos, ainda h poucos dias, um desses magnospontfices da ignorncia sentenciar da sua ctedra de bonzo inconscientemediocridade do livro de Demolins acerca dos Anglo-Saxes?

    O que vale que aquele remendo de coisas alheias, escre-vendo para ser agradvel a Ferrero, que proclamara a superioridade doslatinos, nem sequer se lembrou de aprender a grafia exata do nome deDemolins, por ele sempre transformado em Demoulin!...

    Nem sequer o nome! significativo.Nem era de esperar outra coisa de certa classe de espritos.Tipos cpticos, sem ideal, incapazes de se bater por uma causa

    com sacrifcio de seus cmodos pessoais; temperamentos de pndegos,de pilhricos, de divertidos; pesquisadores de gozos, inventores de distra-es, amolentadores do viver, ei-los que deitam a mscara do riso e le-vantam a tenda da pagodeira...

    Para eles tudo tem feies de festa e deve ser saudado emestilo de brinde: estamos no melhor dos mundos; no preciso tentarnada, tudo vai em mar de rosas.

    Fora, riqueza, bem-estar, liberdade, cultura, cincia, arte, lite-ratura, indstria, comrcio; tudo... tudo... como num sonho.

    Ora, pois; ousamos dizer que este otimismo fcil e baratopara quem o exerce, carssimo para quem o paga, a pior forma dopessimismo; um pessimismo s avessas que mata lentamente as naes,fascinando-as com mentiras, tirando-lhes a conscincia de seus grandesdeveres, cortando-lhes os estmulos para as grandes ousadias.

    Mil vezes o pessimismo propulsivo de Cristo que vergastavaladres com os olhos num ideal superior.

    64 Slvio Romero

  • Mil vezes o pessimismo aparente de um Edmond Demolins,que ousou arcar, em nome dum patriotismo superior, com o chauvinismofrancs.

    A gente de bom senso compreendeu, sem esforo, o alvo im-pessoal e nobilssimo que inspirara a pena do escritor intrpido e tantoque numerosos chefes de famlias francesas se lhe dirigiram para tomarconselhos sobre a educao de seus filhos e levaram-no, por ltimo, afundar a famosa cole des Roches.

    Mas no antecipemos.O ilustre socilogo, recentemente extinto, deve ser estudado

    na complexidade de sua vida, no conjunto de seus escritos, no espor-dica e destacadamente num artigo.

    Tinha um sistema, uma doutrina que indispensvel conhecerpara que seja com justia apreciado.

    No mais do que pegar um sujeito qualquer em qui tient lasupriorit des Anglo-Saxons?... e, ignorando em absoluto tudo o mais,entender de dizer sandices ao pblico...

    Edmond Demolins era filho de Marselha, onde nascera em1852.

    Feitos os primeiros estudos em sua terra natal, partiu para Pa-ris em 1873, com o trplice fim de conhecer pessoalmente Fred. Le Play,cujas idias o tinham seduzido, de documentar um livro que escreveraacerca dO Movimento Comunal na Idade Mdia, e, finalmente, dilatar seusconhecimentos cientficos e sociais.

    Essa primeira fase de sua vida, no que toca a labores de escri-tor, foi consagrada aos estudos histricos.

    O aparecimento dO Movimento Comunal na Idade Mdia, em 1874,foi seguido da publicao duma excelente Histria de Frana, em 1879.

    Esta obra, em quatro volumes, j um livro de primeira ordem.O autor, muito engenhosamente, procurou consorciar as largas

    snteses de Guizot, segundo as quais grupava os acontecimentos peloencadeamento dialtico de causas e efeitos, com o mtodo narrativo epinturesco de Agostinho Thierry.

    Destarte, a concepo cientfica, filosfica e moderna nofaltava, mas ficava apenas na concepo geral, na intuio e no encadea-

    O Brasil Social e outros estudos sociolgicos 65

  • mento dos fatos, sem que o autor, com suas vistas de homem de hoje, sesubstitusse aos homens das passadas eras, defeito capital de muitoshistoriadores, nomeadamente Guilherme Ferrero.

    E o que preservou o jovem autor de vinte e sete anos de toconsidervel defeito foi a habilssima aliana que fe