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Tempo da Ciência

O Analfabetismo Sociológico

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Sociologia e educação

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Page 1: O Analfabetismo Sociológico

Tempo da Ciência

Page 2: O Analfabetismo Sociológico

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ-UNIOESTE

REITOR VICE-REITOR Paulo Sério Wolff Carlos Alberto Piacenti

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO

Silvio César Sampáio

DIRETOR DO CAMPUS DE TOLEDO José Dilson Silva de Oliveira

DIRETOR DO CCHS – CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS/CAMPUS DE

TOLEDO Rosalvo Schutz

COORDENADOR DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM

CIÊNCIAS SOCIAIS Silvio Antônio Colognese

TEMPO DA CIÊNCIA Revista de Ciências Sociais

EDITOR CIENTÍFICO

Geraldo Magela Neres Marco Antonio Arantes

CONSELHO EDITORIAL

PRESIDENTE: Dr. Silvio Antônio Colognese

MEMBROS:

Dr. Allan de Paula Oliveira, Dra. Eliane Cardoso Brenneisen, Dr. Eric Gustavo Cardin, Dr. Erneldo Schallenberger, Dr. Geraldo Magella Neres, Dr. Gustavo Biasoli Alves, Dr. Marco Antonio Arantes,

Dr. Miguel Angelo Lazzaretti, Dr. Osmir Dombrowski, Dr. Paulo Henrique Barbosa Dias, Dr. Paulo Roberto Azevedo, Dra. Rosana Kátia Nazzari.

CONSELHO CONSULTIVO

Dra. Ana Cleide Chiarotti Cesário- UEL, Dra. Carla Cecília Rodrigues Almeida-UEM, Dr. Celso Antonio Fávero- UNEB, Dra. Emilce Beatriz Cammarata- Universidade Nacional de

Missiones/Argentina, Dr. Eric Sabourin - CIRAD, França, Dr. Evaldo Mendes da Silva- UFAL, Dra. Ileizi Luciana Fiorelli Silva- UEL, Dr. João Virgílio Tagliavini- UFSCar, Dr. José Lindomar Coelho

Albuquerque- UNIFESP, Dr. Juan Carlos Arriaga-Rodríguez- Universidad de Quintana Roo- México, Dra. María Lois - Universidad Complutense de Madrid, Dra. Maria Salete Souza de Amorim - UFBA, Dr. Oscar Calavia Sáez-UFSC, Dr. Otávio Velho - UFRJ, Dr. René E. Gertz - PUCRS e UFRGS, Dr.

Ricardo Cid Fernandes - UFPR, Dr. Wagner Pralon Mancuso-USP.

SECRETARIA DOS CONSELHOS Giovane da Silva Lozano

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ-UNIOESTE CCHS – CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIAS SOCIAIS CAMPUS DE TOLEDO

Tempo da Ciência Volume 20 Número 40 2º semestre de 2013

EDUNIOESTE CASCAVEL

2013

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©2012, EDUNIOESTE

Capa

Douglas Luiz da Silva Ganança

Diagramação Marco Antonio Arantes e Deise Ellen Piatti

Revisão Técnica Marco Antonio Arantes

Revisão Ortográfica Deise Ellen Piatti

Ficha Catalográfica

Marilene de Fátima Donadel – CBR 9/924

Tempo da Ciência: revista de ciências sociais e humanas / Centro de Ciências T 288 Humanas e Sociais da UNIOESTE, Campus de Toledo. Revista de Ciências Sociais do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências Sociais da Unioeste/ Campus de Toledo – v. 1, n. 1(1994) -, -- Toledo : Ed. Toledo, 1994. Semestral. v.2, n.3 – 1º semestre de 1995 v.2, n.4 – 2º semestre de 1995 A partir do v. 4, n. 8 passou a ser editada pela EDUNIOESTE, Cascavel. ISSN: 1414-3089 Indexadores: GeoDados: http//www.geodados.pg.utfpr.edu.br Sumário de Revistas Brasileiras: http://www.sumarios.org 1. Ciências Sociais – Periódicos 2. Ciências Humanas – Periódicos I. Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Campus de Toledo II. Revista de Ciências Sociais do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências Sociais da Unioeste/ Campus de Toledo

CDD 20. ed. 300.5

Impressão e Acabamento Gráfica Universitária

Rua Universitária, 1619 e-mail: [email protected]

Fone (45) 3220-3085 Fax (45) 3324-4590

Cep. 85819-110 – Cascavel/PR Caixa Postal 701

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SUMÁRIO EDITORIAL ................................................................................................................................. 6

ARTIGOS

DÔSSIE MAQUIAVEL:

Guerra e Politica in Machiavelli .................................................................................................... 9

Fabio Frosini

Breves notas sobre a recepção das ideias maquiavelianas no pensamento militar e na Teoria

das Relações Internacionais .........................................................................................................27

Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos

Maquiavel e as relações internacionais nos “discursos sobre a primeira década de tito lívio” ..40

Rafael Salatini

O Riscontro: considerações sobre a política e a história em Maquiavel .....................................55

Patrícia Fontoura Aranovich

Maquiavel, história, política e aparência .....................................................................................67

Flávia Roberta Benevenuto de Souza

O legado de nicolau maquiavel para o pensamento de antonio gramsci ....................................80

Claudio Reis

O ‘Novíssimo Príncipe’: Gramsci e a Reconstrução da Teoria Marxista do Partido ..................94

Geraldo Magella Neres

Marcos del Roio

ARTIGOS LIVRES

Revolução Passiva no Brasil: uma ideia fora do lugar? ............................................................. 104

Camila Massaro de Góes

Bernardo Ricupero

O Alfabetismo Sociológico – uma contribuição para o debate sobre o ensino de sociologia ... 122

Osmir Dombroski

Jacqueline Parmigiani

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Relações de Gênero - uma problematização acerca da ausência de discussões no Ensino

Médio .......................................................................................................................................... 132

Juliana Almeida Matos

Tcharles Gonçalves Schmidt

Marco Antonio Arantes

Diretrizes para publicação.......................................................................................................... 140

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EDITORIAL

Encerramos o ano de 2013 com a presente edição da Revista Tempo da Ciência

apresentando uma nova proposta editorial. Reitera-se assim, com essa proposta

editorial, reforçar o objetivo de promover as discussões que permeiam a teoria, a

reflexão e a crítica, a socialização das pesquisas, a renovação dos conhecimentos, as

propostas intelectuais e a prática das Ciências Sociais em seus vários níveis.

O presente número da Revista Tempo da Ciência apresenta um dossiê sobre a

obra do pensador renascentista Nicolau Maquiavel. Organizado por Geraldo Magella

Neres e Marco Antonio Arantes, é composto por 10 artigos, sendo sete específicos

sobre a obra de Maquiavel e três artigos livres. Tema dos mais importantes da

Ciência Política, a obra de Nicolau Maquiavel tem suscitado novas pesquisas

motivadas por suas implicações nos temas comuns à ética, poder e Estado.

Testemunho da Renascença, de sua realidade histórica, a obra de Maquiavel funda de

fato uma “nova ciência”, uma nova modalidade de Ciência Política.

O dossiê apresentado neste número da revista Tempo da Ciência não apenas

obedece à intenção de atentar para a atualidade do tema, mas, sobretudo, constitui

um esforço de mostrar os principais deslocamentos e novas leituras postas hoje no

debate acerca da obra de Nicolau Maquiavel. Motivados pela comemoração dos 500

anos de composição de O Príncipe – escrito em 1513, mas só publicado pela primeira

vez em 1532 – decidimos apresentar como a comunidade contemporânea de

estudiosos aborda os diversos problemas da ação política explorados pelo “secretário

florentino”. Em seu contexto de produção, a reflexão contida em O Príncipe visava

compreender a nova conformação do poder político que se inaugurava na Europa

Ocidental com a emergência das monarquias absolutistas, fornecendo a um condottiere

italiano de virtù os elementos necessários para orientar suas ações no sentido de

unificar a península itálica. Contudo, dada a argúcia de Maquiavel na análise da vida

política renascentista, as suas fecundas intuições acabaram por influenciar a quase

totalidade do campo da Ciência Política, tornando-se um clássico da área.

O leitor encontrará nesse dossiê reflexões diversas sobre a obra de Nicolau

Maquiavel. No primeiro artigo, Fabio Frosini, um dos importantes estudiosos

contemporâneos da obra de Maquiavel, concentra-se na centralidade do tema do

conflito nos Discursos sobre a Primeira Década deTito Lívio, destacando a sua centralidade

na dinâmica da ação política e no ordenamento da vida social.

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7 ARTIGO Tempo da Ciência Volume 20 Número 40 2º semestre de 2013 ISSN: 1414-3089

Os dois artigos seguintes aproximam a obra de Maquiavel dos estudos

contemporâneos das Relações Internacionais nas discussões acerca da guerra e das

contribuições militares. Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos, professor de Teoria

das Relações Internacionais da Unesp, se apropria de algumas ideias do secretário

florentino no esforço de teorização acerca da guerra no campo das relações

internacionais, o que se convencionou chamar de Teoria das Relações Internacionais.

Segundo o autor, a obra de Maquiavel exerceu uma enorme influência sobre os

autores realistas que teriam um papel preponderante na criação da disciplina das

Relações Internacionais em 1919 na Universidade de Gales, em vista das mortes

causadas na 1ª Guerra Mundial.

Próximo também das Relações Internacionais, o artigo de Rafael Salatini

explora um tema pouco abordado pelos estudiosos da obra de Maquiavel, o tema da

República e sua relação com a política externa, ou seja, a relação guerra-paz tratado

no livro II e III dos Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio. E nesse aspecto, para

o autor, é quando Maquiavel atento ao tema da guerra analisa claramente a política

externa ao relatar a expansão do império romano, baseado centralmente no tema da

guerra.

Deslocando o foco para as relações entre História e Política e na

contraposição entre aparência e verdade efetiva por meio da história, os artigos de

Patrícia Fontoura Aranovich e da filosofa Flávia Roberta Benevenuto de Souza

colocam em discussão outras interfaces do pensamento de Maquiavel. Partindo do

conceito polissêmico de riscontro presente nas emblemáticas obras O Príncipe, os

Discursos e História de Florença, Patrícia Aranovich analisa o encontro entre a natureza

humana e a natureza dos tempos, servindo-se dos termos de riscontro natural e riscontro

artificial para explicar e aprofundar a temática da relação entre história e política. Já o

artigo de Flávia Benevenuto coloca em dúvida a contraposição entre aparência e

verdade efetiva por meio da história. Conclui a autora que, para a efetivação de

alguns objetivos políticos, a manipulação nem sempre é recomendável, visto que a

efetivação das ações políticas, muitas vezes, não se limita à imaginação, contando que

aparência torna-se imprescindível para o seu êxito.

O dossiê segue com dois artigos que analisam os estudos de Gramsci sobre a

obra de Maquiavel. O primeiro, de Geraldo Magella Neres e Marcos Del Roio,

explora com minúcia a perspectiva de Gramsci sobre o partido revolucionário, tendo

como ponto de partida a obra de Maquiavel. Para os autores, a teoria gramsciana do

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8 ARTIGO Tempo da Ciência Volume 20 Número 40 2º semestre de 2013 ISSN: 1414-3089

partido é marcada pela originalidade, contribuindo para destacar o grande desafio dos

partidos revolucionários contemporâneos de unificação das vontades individuais

numa vontade coletiva com a salvaguarda do ‘centralismo democrático’, evitando

tanto a burocratização quanto a cisão entre os dirigentes e sua base social de apoio. Já

o artigo de Claudio Reis explora a leitura que Gramsci faz da obra de Maquiavel,

identificando no ‘secretário florentino’ um contrapondo ao cosmopolitismo típico

dos intelectuais renascentistas e um difusor da cultura ‘nacional-popular’ na península

itálica do século XVI.

Já na seção de contribuições de artigos livres, o artigo de Camila Massaro de

Góes e Bernardo Ricupero reflete acerca do conceito de Revolução Passiva

desenvolvido por Gramsci para o entendimento da modernização brasileira, tendo

como parâmetro as apropriações do conceito de Revolução Passiva feitas por Carlos

Nelson Coutinho e Luis Werneck Vianna, seja centrado na questão democrática, seja

centrado na revolução sem grandes rupturas.

Dois artigos exploram questões relacionadas ao Ensino de Sociologia no

Ensino Médio. O primeiro, de Osmir Dombroski e Jacqueline Parmigiani, faz uma

ponte entre o conceito de cidadania presente na LDB e o alfabetismo, que são as

inúmeras práticas pedagógicas de aquisição de conhecimentos. À luz dos recentes

debates acerca da Lei 11.684 de 2008, que promove a reinserção da Sociologia no

Ensino Médio, os autores reforçam a importância da Sociologia na formação e na

autonomia dos sujeitos e o seu papel significativo na definição histórica da cidadania.

Por fim, o artigo do professor Marco Antonio Arantes e seus orientandos,

Juliana Almeida Matos e Tcharles Gonçalves Schimidt, apresenta uma interessante

contribuição metodológica para o tratamento de questões de gênero no Ensino

Médio, apropriando-se da pedagogia histórico-crítica de Dermeval Saviani.

Desejamos a todos e todas uma boa leitura!

Geraldo Magella Neres

Marco Antonio Arantes

Editores

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Guerra e Politica in Machiavelli1

Fabio Frosini2

Resumo: Il rapporto tra conflitto e politica è il tema di questo saggio. Nel cap. 2 si mostra come il conflitto sia tanto interno al corpo politico, quanto a esso esterno, e come per Machiavelli non sia possibile pensare la guerra separatamente dalla politica, e viceversa. Nel cap. 3 mostrerò che in testi precedenti il 1512 la guerra è per Machiavelli primaria rispetto alla politica e la potenza politica dello Stato si riduce alla sua capacità di organizzare la guerra. Il modo in cui Machiavelli rivede radicalmente questa posizione nel Principe e nei Discorsi è l’oggetto del cap. 4, dove in particolare si mette in luce il ruolo decisivo che in questo rovesciamento del nesso politica-guerra acquisisce il “popolo” nella sua accezione piú estesa: la guerra diventa un momento della politica, e la conquista di nuovi territori acquisisce il suo significato solamente dal fatto che esprime una certa dialettica delle parti in conflitto all’interno dello Stato. Ciò conduce (cap. 5) alla nozione di “confine” territoriale: si mostrerà che la delimitazione tra spazio interno ed esterno, tra politica e guerra, è in Machiavelli relativa e non assoluta: il confine non separa ma unisce i territori, non delimita ma espande la cittadinanza. Mentre il confine si andava delineando in Europa come termine assoluto e fondamento del potere sovrano, Machiavelli

propone ‒ grazie all’esempio di Roma ‒ un confine permeabile, associato a un’idea di “potenza” non separabile dalla libertà. Palavras-chave: Machiavelli, Niccolò; Guerra; Politica; Sovranità; Libertà; Cittadinanza; Conflitto. Abstract: This article deals with the relationship between conflict and politics. In ch. 2 it will be shown that conflict is both in the body politic and in its relationship to the outside, and that for Machiavelli war cannot be thought of separately from politics and vice versa. In ch. 3 it will be argued that before 1512, war played a primary role in Machiavelli’s though if compared to politics, and that political power consisted in the State’s capacity to make war. The way in which Machiavelli changed this position radi-cally is the object of ch. 4. In particular, it deals with the decisive role played by the “people”, under-stood in the most comprehensive meaning of the word, in overturning the relationship between politics and war: war becomes a moment of the political life and the conquest of new territories is meaningful only insofar as the expression of a certain dialectics between the conflicting “parts” within the State. This leads (in ch. 5) to the notion of territorial “border”: it will be shown that, in Machiavelli’s thought, the separation of inner and outer space, of politics and war, is not absolute but relative; the border does not separate but unites territories, does not limit but expands citizenship. At the time when “absolute” borders became the foundation of sovereign power in Europe, Machiavelli, through the example of Rome, suggested a kind of “porous” border, and associates it to an idea of “power” as inseparable from freedom. Keywords: Machiavelli, Niccolò; War; Politics; Sovereignty; Freedom; Citizenship; Conflict.

1 Introduzione

Inizierò (cap. 2) mettendo particolarmente a fuoco la centralità del tema del conflitto nei Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio, ed evidenziando come questa centralità si ripeta su tutti i livelli della vita politica: dal conflitto tra passioni nell’individuo singolo, al conflitto tra le “parti” del corpo sociale, al conflitto tra Stati. A questo proposito insisterò su due punti: 1) il conflitto è sempre irrisolto, rimane sempre aperto, e la sua costante apertura fa sí che la politica non possa proporsi come sua neutralizzazione, ma come suo orientamento; 2) il conflitto è tanto interno allo Stato, come lotta politica (“tumulti”, “dissensioni” ecc.), quanto esterno ad esso, come guerra; dunque tra politica e

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guerra c’è un nesso strettissimo, strutturale, e il significato di questo nesso non è una questione di principio, ma una questione di fatto: la guerra può essere, in talune circostanze, l’esito di un conflitto che distrugge il corpo politico, ma può anche essere, al contrario, l’espressione della sua vitalità. Ci può insomma essere un nesso tra guerra e “corruzione”3 (servitú) ma anche un nesso tra guerra e “generazione” (libertà).

A questo punto (cap. 3), facendo un passo indietro, esaminerò un testo del 1503 (Le parole da dirle sopra la provisione del danaio), in cui Machiavelli fa propria una concezione della politica, dello Stato e della guerra che si potrebbero definire hobbesiane avant la lettre: la politica è neutralizzazione del conflitto interno, istituzione di una delimitazione tra interno ed esterno, distinzione tra polizia e politica, possibilità di praticare repressione all’interno e guerra all’esterno. La politica poggia insomma sulla possibilità – che lo Stato avoca a sé – di fare la guerra, e l’obiettivo della politica è pertanto la conservazione dello Stato. Mostrerò infine (cap. 4.) come attraverso il Principe e i Discorsi Machiavelli giunga a mettere in questione tale visione, ridefinendo la guerra a partire dalla politica e non viceversa. La sua estraneità alla linea assolutistica del pensiero politico moderno è dunque una conquista e non indice del carattere “premoderno” del suo pensiero. Mostrerò qui, in particolare, come sia nel Principe sia nei Discorsi la dottrina della guerra venga ridefinita sulla base delle priorità della politica, come cioè il criterio orientativo decisivo per giudicare la realtà e il significato della guerra sia la libertà e non l’imperio. Dall’esame intertestuale di Principe e Discorsi emerge infine un ultimo particolare: il principato è per Machiavelli un concetto aporetico, perché il potere del principe non può fare a meno di poggiare sull’appoggio del popolo, ma al contempo mantiene un elemento di violenza dato dalla condizione di “sudditanza” a cui il principe non può non ridurre il popolo, se intende essere principe. Il principe deve insomma appellarsi ad un “popolo” come forza capace di appoggiarlo, che allo stesso tempo però – in perfetta e drammatica controtendenza – egli non può fare a meno di destrutturare, facendola (almeno tendenzialmente) scivolare verso la condizione di insieme indifferenziato di “sudditi”. Ne risulta una tensione interna al principato – a qualsiasi principato – non tale da renderlo contraddittorio e quindi impossibile, ma sí da renderlo instabile. Questa tensione trasforma il principato in una “figura” che costantemente rinvia alla repubblica, cioè al luogo in cui quella tensione può essere non certo neutralizzata, ma messa politicamente all’opera, e l’instabilità che nasce dal dislivello di potere tra

governanti e governati può ‒ a certe condizioni ‒ essere convertita in “potenza”. Ciò condurrà (cap. 5) ad affrontare il concetto di “confine” nell’opera di Machiavelli, cioè la delimitazione tra spazio politico interno ed esterno, tra politica e guerra. In un contesto europeo, nel quale il confine si andava

delineando come limite invalicabile e fondamento del potere sovrano, Machiavelli propone ‒ grazie

all’esempio di Roma ‒ un confine permeabile, associato a un’idea di “potenza” non separabile dalla libertà e quindi estranea alla concezione moderna della sovranità, in cui la potenza si associa alla sicurezza e alla neutralizzazione della politica.

2 Passioni, conflitti, guerra

Per Machiavelli non vi è politica (neanche la politica di governo del monarca) senza conflitto. Dunque non c’è politica senza guerra; anzi, la politica nasce come instabile e reversibile emergenza dalla e sulla guerra, che però rimane viva dentro di essa, come uno sfondo magmatico che può in ogni momento riprendere il sopravvento, inghiottendo le isole di ordine politico da esso emerse.

Questa conclusione non è però del tutto esatta: la guerra, il conflitto, per Machiavelli non è, come in Hobbes, in quanto tale l’equivalente del caos, del disordine. Infatti da una parte la guerra è una forma del conflitto, essendo il conflitto irriducibilmente polimorfo; dall’altra ogni forma del conflitto, sia essa la guerra, la disputa civile, la lotta per la libertà o viceversa per l’oppressione tra gli umori del corpo politico, non è in quanto tale né costruttiva né distruttiva, ma contiene potenzialità ambivalenti verso la “generazione” e verso la “corruzione”.

È per questa ragione che Machiavelli non pensa l’ordine politico come neutralizzazione del conflitto, ma come suo parziale ordinamento. È per questa ragione, anche, che il passaggio dalla “disunione” dentro lo Stato alla “guerra” tra Stati non comporta un cambiamento di terreno: disunione

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e guerra sono forme della politica, forme che possono essere distruttive o al contrario costruttive, senza che sia possibile determinarne la natura in linea di principio e una volta per tutte4.

Tento di spiegare questo punto leggendo un breve passaggio del capitolo 4 del primo Libro dei Discorsi, e mettendolo a confronto con un altro passo, tratto dal capitolo 37 del medesimo libro. Si legge nel capitolo 4 che

[...] ogni città debbe avere i suoi modi con i quali il popolo possa sfogare l’ambizione sua, e massime quelle città che nelle cose importanti si vogliono valere del popolo: intra le quali, la città di Roma aveva questo modo, che, quando il popolo voleva ottenere una legge, o e’ faceva alcuna delle predette cose [tumulti], o e’ non voleva dare il nome per andare alla guerra, tanto che a placarlo bisognava in qualche parte sodisfarli. E i desiderii de’ popoli liberi rade volte sono perniziosi alla libertà, perché e’ nascono, o da essere oppressi, o da suspizione di avere ad essere oppressi (MACHIAVELLI, 1984, p. 72).

Troviamo qui due termini quasi sinonimi, “ambizione” e “desiderio”, che vanno precisati. A

questo scopo ci soccorre il capitolo 37:

Qualunque volta è tolto agli uomini il combattere per necessità, combattono per ambizione; la quale è tanto potente ne’ petti umani, che mai, a qualunque grado si salgano, gli abbandona. La cagione è, perché la natura ha creati gli uomini in modo, che possono desiderare ogni cosa, e non possono conseguire ogni cosa: talché, essendo sempre maggiore il desiderio che la potenza dello acquistare, ne risulta la mala contentezza di quello che si possiede, e la poca sodisfazione d’esso. Da questo nasce il variare della fortuna loro: perché, disiderando gli uomini, parte di avere più, parte temendo di non perdere lo acquistato, si viene alle inimicizie ed alla guerra; dalla quale nasce la rovina di quella provincia e la esaltazione di quell’altra. Questo discorso ho fatto, perché alla Plebe romana non bastò assicurarsi de’ nobili per la creazione de’ Tribuni, al quale desiderio fu costretta per necessità; che lei, subito, ottenuto quello, cominciò a combattere per ambizione, e volere con la Nobiltà dividere gli onori e le sustanze, come cosa stimata più dagli uomini. Da questo nacque il morbo che partorì la contenzione della legge agraria, che infine fu causa della distruzione della Republica (MACHIAVELLI, 1984, p. 139-40).

Tra la fine del Quattrocento e l’inizio del Cinquecento la nozione di “ambizione” conosce a Firenze una trasformazione significativa. Da sinonimo di “disordine morale”, “desiderio sconsiderato” ecc., passa sempre piú a significare semplicemente il “desiderio” come sinonimo dell’“l’insieme delle attese che contraddistinguono un singolo o un’intera classe politico-sociale”5, per cui “non ci può essere durata e stabilità dello stato se non si appagano le ‘ambizioni’ dei cittadini che lo compongono”6. A seguito di questa trasformazione semantica, l’obiettivo della riflessione politica diventa quello di individuare le forme politico-costituzionali che possono “contenere” le rivendicazioni dei diversi ceti all’interno dello Stato, senza interrogarsi ulteriormente sulla posizione assoluta da essi occupata e sullo specifico valore che le differenti “ambizioni” vengono ad acquisire a seguito di questo “posizionamento”.

Machiavelli partecipa di questo nuovo clima; anzi, il suo Discursus florentinarum rerum può per certi aspetti essere considerato uno dei molti “trattati” che, nella Firenze dei primi decenni del Cinquecento, si preoccupano di trovare il modo per “contemperare” le “tre ambizioni” presenti in ogni città: i “grandi”, i “mezzani” e gli “ultimi”7. Ma va anche detto che la posizione di Machiavelli è resa

originale dalla distinzione ‒ che nei passi sopra citati emerge con chiarezza ‒ tra ambizione/desiderio in quanto tale e ambizione/desiderio in quanto collocato in un “luogo” dello “spazio” politico. Ambizione e desiderio sono tendenze universalmente presenti nell’uomo, tendenze che, proprio perché universali, non sono mai presenti nella loro purezza, ma sempre in una forma determinata, tanto che in situazioni differenti possono avere anche valenze opposte. Il capitolo 4 (dedicato a dimostrare Che la disunione della Plebe e del Senato romano fece libera e potente quella repubblica) parla infatti dell’ambizione del popolo come di un’istanza alla quale i governanti (in questo caso il Senato) devono dare soddisfazione

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(“sfogo”), se vogliono rendere potente la repubblica; in questo caso specifico: se vogliono che il popolo si renda disponibile a fare la guerra. Egualmente, i «desiderii de’ popoli liberi» sono quelli che accrescono la libertà, perché sono rivolti alla lotta contro l’eccessiva oppressione da parte dei senatori.

L’ambizione e il desiderio del capitolo 37 sono invece dei fattori di dissoluzione della libertà repubblicana. L’ambizione, afferma Machiavelli, subentra subito, non appena ci viene «tolto […] il combattere per necessità». Ora l’ambizione è una passione consistente nel fatto che gli uomini «possono desiderare ogni cosa, e non possono conseguire ogni cosa», da cui la «mala contentezza», l’inquietudine e quindi l’inimicizia, la guerra, il variare della fortuna. Dunque l’ambizione, cioè il desiderio in quanto esso eccede la potenza, pur essendo universale, non c’è concretamente sempre, ma solo in determinate circostanze; precisamente, quando è venuta meno la “necessità” di combattere. Fino a quando gli uomini sono costretti a lottare per affermare la propria libertà, per impedire ad altri di schiacciarli e cancellarli, il loro desiderio coincide perfettamente con il loro essere, l’ambizione con la potenza, e funziona pertanto virtuosamente. Dunque la “naturalità” del desiderio assume due valori opposti, secondo le circostanze: virtuoso e vizioso.

Queste circostanze (l’essere o meno costretti a lottare) sono i rapporti di potere: Machiavelli discute, nel capitolo 37 del primo libro dei Discorsi, della lotta tra Plebe e Senato, in particolare dell’imposizione della legge agraria come segno dell’ambizione della Plebe. La Plebe sperimenta pertanto la smisuratezza del proprio desiderio solo dopo essere uscita dalla necessità di lottare per affermare il proprio diritto a esistere, e corrode gradualmente le basi della repubblica. Se dunque l’ambizione è la “natura” dell’uomo, questa natura esiste solo nell’insieme di circostanze, cioè nei rapporti di potere che la definiscono. Questa affermazione è tanto vera, che mentre lungo il capitolo 37 Machiavelli stigmatizza con toni quasi moralistici l’ambizione della Plebe, alla fine, in modo quasi sorprendente, rileva che è stata proprio questa ambizione a far sí che Roma divenisse «serva» solo dopo trecento anni e non molto prima, perché fu l’ambizione della Plebe, quella che «frenò» costantemente l’ambizione, contrapposta e molto piú pericolosa, dei Grandi:

Tale, adunque, principio e fine ebbe la legge agraria. E benché noi mostrassimo altrove [cioè in Discorsi, I, 4], come le inimicizie di Roma intra il Senato e la Plebe mantenessero libera Roma, per nascerne, da quelle, leggi in favore della libertà; e per questo paia disforme a tale conclusione il fine di questa legge agraria; dico come, per questo, io non mi rimuovo da tale opinione: perché gli è tanta l’ambizione de’ grandi, che, se per varie vie ed in vari modi ella non è in una città sbattuta, tosto riduce quella città alla rovina sua. In modo che, se la contenzione della legge agraria penò trecento anni a fare Roma serva, si sarebbe condotta, per avventura, molto piú tosto in servitú, quando la plebe, e con questa legge e con altri suoi appetiti, non avesse sempre frenato l’ambizione de’ nobili (MACHIAVELLI, 1984, p. 142).

Siamo cosí quasi ricondotti al punto di partenza, cioè a quei «desiderii de’ popoli liberi» che accrescono la libertà di cui si discute nel capitolo 4. Ma a questa altezza quei desideri non hanno piú nulla di originario, non sono cioè qualitativamente diversi dai desideri dei popoli non liberi. Vi è una

sola ambizione, che variamente moltiplicandosi ‒ entro rapporti di potere ‒ in ambizioni contrapposte, produce risultati differenti e anche opposti; dove però questa opposizione è del tutto relativa, è un risultato e non una premessa: esattamente come il desiderio di un popolo libero (il non voler essere oppresso) sfocia nel suo lottare per ambizione, allo stesso modo la lotta per ambizione, cioè per distruggere la libertà, è condizione del suo mantenimento (perché attenua l’ambizione opposta, molto piú pericolosa, dei Grandi).

Anche la guerra assume di conseguenza valenze opposte. Mentre nel capitolo 4 essa è l’espressione della potenza di Roma, che a sua volta nasce dalla sua libertà e la aumenta (la Plebe va in guerra solo quando ha ottenuto un riconoscimento di maggiori diritti nella repubblica), nel capitolo 37 la guerra è l’esito della catena formata da ambizione-mala contentezza-inimicizia, ed è pertanto un risultato della “corruzione” della libertà repubblicana e un fattore di ulteriore “corruzione”.

Qui va però notato un particolare curioso: Machiavelli parla dapprima di guerra come guerra civile, e prosegue passando insensibilmente a parlare della guerra tra Stati: «perché, disiderando gli

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uomini, parte di avere più, parte temendo di non perdere lo acquistato [= lotta tra “umori” all’interno della Città], si viene alle inimicizie [all’interno] ed alla guerra [civile, ma anche, allo stesso tempo, tra Stati]; dalla quale nasce la rovina di quella provincia e la esaltazione di quell’altra [= guerra tra Stati]»8. Non si può risolvere il problema semplicemente notando che anche la guerra esprime le due direzioni fondamentali delle passioni, costruttive e distruttive della libertà. Questo è vero, ma occorre anche spiegare la coincidenza, qui presente, tra guerra interna e guerra esterna.

La questione si chiarisce, se si osserva che anche nel primo caso (Discorsi, I, 4) la guerra esterna è il prolungamento della guerra interna, che lí evidentemente non è una vera e propria guerra civile, ma una catena di tumulti messi in atto dalla Plebe per difendersi dall’ambizione senatoria. Insomma per Machiavelli la guerra tra Stati esprime sempre, in forme di volta in volta diverse e anche opposte, la conflittualità che attraversa ogni Stato, quella molteplicità irriducibile delle passioni e quindi delle istanze che lo Stato può solamente raccogliere e governare, ma mai disattivare9. Vi è insomma una continuità tra passioni conflittuali, politica conflittuale e conflitto organizzato, cioè guerra, la quale vale tanto nel caso in cui questa connessione conduca a un accrescimento di potenza e libertà, quanto nel caso opposto, in cui essa esprima la dissoluzione della libertà e del corpo politico in quanto tale.

3 Il punto di vista dello Stato: la politica come guerra

Si è detto che Machiavelli non pensa l’ordine politico come neutralizzazione del conflitto, ma come suo parziale e transitorio ordinamento. La continuità tra politica e guerra è tutta contenuta e spiegata in questa posizione: l’universalità del conflitto è ciò che solamente conta nell’universo machiavelliano, e questa universalità è lo sfondo sul quale si disegnano i profili dei corpi politici, che sono delle “forme” le quali, di volta in volta, incorporano il conflitto per accrescere la propria vitalità, o viceversa lo subiscono come un fattore di dissoluzione.

La continuità tra spazio interno e spazio esterno allo Stato profila cosí un’irriducibilità di Machiavelli rispetto al concetto moderno di “sovranità”10: grazie a questa sua assunzione teorica il nesso tra guerra e politica non diventa mai, in lui, ambito di esclusiva competenza della politica internazionale, e proprio per questa ragione la guerra in tutte le sue forme – compresa la guerra civile – diventa un legittimo momento della lotta politica. Insomma, per riprendere il confronto con Hobbes, se in questi la politica è la cessazione della guerra, in Machiavelli politica e guerra convivono in un intreccio strutturale, indissolubile, che assume un verso, una forma e una dominanza solo nelle circostanze concrete. Che sia la politica a definire la funzione della guerra, o viceversa la guerra prenda il sopravvento sulla politica, appartiene alla fenomenologia della generazione e della corruzione dei corpi politici, non alla sfera della loro definizione11.

Occorre però fare delle precisazioni. Infatti questa posizione, che abbiamo individuato nei Discorsi, cioè in un’opera scritta non prima del 1517-151812, è per Machiavelli una conquista teorica, un passaggio decisivo della sua teoria politica, l’esito di un percorso travagliato, drammatico, che coinvolge gran parte del suo pensiero tra il 1498 e il 1513 e che sarà qui possibile ricostruire solo per quanto strettamente attiene al tema considerato13. Vedremo subito come Machiavelli giunga a impostare in questo modo il rapporto guerra-politica, perché mette in questione proprio quella posizione teorica che piú tardi si affermerà, con Hobbes, nella nozione moderna di sovranità e legittimità come «esercizio di una potestas absoluta, ‘esorbitante dalle leggi leggi comuni e ordinarie’, e dunque di un potere che non è solo esercizio di deroga alle norme giuridiche, ma si estende a quelle morali in ragione delle esigenze del governo»14.

Questa posizione la troviamo da Machiavelli nitidamente formulata in un testo molto interessante, di cui possediamo l’autografo, datato marzo 1503 e recante il titolo Parole da dirle sopra la provisione del danaio, facto un poco di proemio et di scusa. Due sono i fatti di cui tener conto per contestualizzarlo: il 22 settembre 1502 Piero Soderini era stato eletto “gonfaloniere a vita” della Repubblica di Firenze; e Machiavelli era appena tornato (in gennaio) a Firenze dalla legazione a Imola presso Cesare Borgia. Vediamo meglio queste due circostanze. L’istituto del gonfaloniere della repubblica corrisponde grosso modo a quello di un primo ministro. Il problema era però che – nello

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statuto della Repubblica fiorentina – il gonfalonierato era una carica che veniva assunta a rotazione, e cambiava ogni due mesi. Questa misura, che nei fatti impediva qualsiasi continuità di governo, era una reazione al lungo monopolio del potere da parte dei Medici. A partire dal novembre del 1499 Firenze entrò tuttavia in un periodo di estrema tensione politico-militare, perché Cesare Borgia iniziò una campagna militare nell’Italia centrale, effettuando una progressiva manovra di accerchiamento (Piombino, Urbino, Arezzo, Perugia) mirante a condizionare la politica fiorentina, ad assorbire Firenze nella propria sfera di influenza, e in prospettiva ad annetterla al proprio Stato in formazione15.

In queste circostanze il vincolo della rotazione del gonfaloniere diveniva fonte di uno straordinario pericolo per la sopravvivenza della Repubblica. Machiavelli, che era Segretario della Seconda Cancelleria e come tale responsabile della politica estera e della guerra, fu direttamente coinvolto in questa emergenza e si adoperò a favorire una mutazione costituzionale che fosse capace di restituire a Firenze la capacità di rispondere adeguatamente ai rivolgimenti politici attuali, salvandosi dall’annientamento. La mutazione costituzionale in questione era per l’appunto l’istituzione del gonfaloniere perpetuo, che dunque dovrebbe garantire quella continuità di governo indispensabile per affrontare una situazione cosí critica.

Il gonfaloniere, istituito, come s’è detto, il 22 settembre 1502, era Piero Soderini, appartenente a una delle famiglie importanti della città; una sincera figura di democratico, di parte popolare, anche se non schierato rispetto alle varie fazioni, legatissimo a Machiavelli, che da quel momento in avanti fu il suo braccio destro. Tuttavia questa innovazione non cambiò radicalmente le cose, e lo si vide immediatamente, quando tra il febbraio e il marzo del 1503 ben sette diverse proposte presentate da Soderini al Consiglio maggiore (cioè il Senato della città), per imporre nuove imposte volte a procurare il denaro necessario a rafforzare l’esercito, furono respinte16.

Le Parole da dirle sopra la provvisione del danaio nascono proprio da qui, da questa situazione di impasse creatasi per l’ottusità e la resistenza della classe dirigente fiorentina, che per la propria scarsa propensione a spendere per il “pubblico” metteva in questione l’esistenza dello Stato. Lo scritto che ci è giunto è un discorso che Machiavelli ha scritto perché fosse pronunciato da qualcun altro, forse lo stesso Soderini dinnanzi al Consiglio maggiore17; piú precisamente, il testo che noi possediamo è la parte iniziale del discorso medesimo, cioè «un poco di proemio et di scusa», la premessa e la motivazione. Non sappiamo se il testo fu completato, e da chi, né se fu mai pronunziato. Ma il suo interesse sta proprio qui, in questi preliminari che espongono la motivazione universale, propriamente teorica, della politica attuale.

Qui insomma Machiavelli fa il punto su ciò che fino a quel momento ha appreso dalla propria esperienza politico-diplomatica. Il testo inizia infatti con una premessa dichiaratamente universale:

Tucte le città, le quali mai per alcun tempo si son governate per principe soluto, per otpimati o per populo, come si governa questa, hanno auto per defensione loro le forze mescolate con la prudentia [...]. Sono queste due cose el nervo di tucte le signorie che furno o che saranno mai al mondo; et chi ha observato le mutationi de’ regni, le ruine delle provincie et delle città, non le ha vedute causare da altro che dal mancamento delle armi o del senno (MACHIAVELLI, 1975, p. 412).

Le variazioni delle fortune, la vita e la morte, dei corpi politici provengono dalla presenza ovvero dall’assenza in essi di “armi” e “prudenza”. Questa è una legge universale e immutabile della

politica ‒ che Machiavelli non inventa ma ripete da una lunga e consolidata tradizione giuridica, che

rimonta al Corpus juris civilis di Giustiniano18 ‒ che interessa tutti i regimi senza distinzione: un esercito forte e la capacità di governare sono insomma i due pilastri sopra i quali poggia qualsiasi Stato. È una convinzione che Machiavelli non rimetterà piú in discussione. Nel capitolo XII del Principe affermerà che «e’ principali fondamenti che abbino tutti li stati, cosí nuovi come vecchi o misti, sono le buone legge e le buone arme» (MACHIAVELLI, 1995, p. 78). E nel capitolo XI del primo Libro dei Discorsi sosterrà che a mantenere unito e vivo un corpo politico sono necessarie le “armi” e la “religione” (MACHIAVELLI, 1984, p. 92), intendendo la religione civile dei Romani, vale a dire il pilastro fondamentale del governo “prudente” della moltitudine da parte del Senato. Prudenza, senno, leggi,

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religione sono dunque almeno tendenzialmente sinonimi nella misura in cui esprimono la capacità governativa della classe dirigente. Proprio questa, sostiene Machiavelli nelle Parole da dirle, è drammaticamente mancata ai fiorentini:

Non ci inganniamo a ppartito; examiniamo un poco, bene, e’ casi nostri; et cominciamo ad guardarci in seno: voi vi troverrete disarmati, vedrete e’ subditi vostri sanza fede [...]; et è ragionevole che sia cosí, perché gli homini non possono et non debbono essere fedeli servi di quello signore, da el quale e’ non possono essere né difesi né corretti. Come li havete possuti o possete correggiere, lo sa Pistoia, Romagna, Barga, e’ quali luoghi sono diventati nidi et riceptaculi d’ogni qualità di latrocinij. Come voi gli havete possuti difendere, lo sanno tucti quegli luoghi che sono stati assaltati. [...] Né gli possete chiamare vostri subditi, ma di coloro che fieno e’ primi ad assaltarli (MACHIAVELLI, 1975, p. 413).

Qui “fede” significa “fedeltà” e i “sudditi” sono gli abitanti del contado e dei distretti (le città sottomesse), tutti allo stesso modo privi di diritti politici, che si erano ribellati (Arezzo e la Valdichiana) alla prima occasione, offerta dalle manovre del luogotenente del Borgia, Vitellozzo Vitelli. C’è qui insomma un problema di “consenso”: non si può pretendere fedeltà e lealtà se non c’è una base di reciprocità data dal “buon governo”. Quando questa manca, viene a mancare uno dei due pilastri dello Stato.

La necessità del buon governo discende dunque dalla necessità di difendere lo Stato. Quando manca il buon governo manca la fedeltà, e lo Stato si trova esposto a chiunque lo voglia assaltare. Vi è dunque una priorità logica della guerra sulla politica, per cui la guerra determina le forme “buone” della politica. Questa priorità viene esplicitata poco sopra le righe citate:

Ogni città, ogni stato, debbe reputare inimici tucti coloro che possono sperare di poterle occupare el suo et da chi lei non si può difendere. Né fu mai signore né repubblica savia che volessi tenere lo stato suo ad discretione d’altri o che, tenendolo, gliene paressi haver securo (MACHIAVELLI, 1975, p. 413).

E poco piú avanti:

Quelli signori vi fieno amici che non vi potranno offendere [...]; perché fra gli huomini privati, le leggi, le scripte, e’ pacti fanno observare la fede, et fra e’ signori [qui s’intende evidentemente: fra le persone pubbliche, cioè gli “stati”] la fanno solo observare l’armi (MACHIAVELLI, 1975, p. 414).

Torna il termine “fede”: fedeltà ai patti tra privati, fedeltà dei sudditi al “signore”, fedeltà ai patti tra Stati: è un’unica serie, nella quale il potere armato produce e legittima la forza coattiva della legge. Il signore garantisce la fedeltà ai patti dentro lo Stato, la fedeltà dei sudditi allo Stato, e la fedeltà ai patti con altri Stati, solo in quanto sia sempre disponibile a fare la guerra. La politica scopre alla propria base la guerra come momento nel quale si mette a nudo il fondamento indiscutibile dello Stato, senza il quale la politica non è possibile. Solo una volta verificato questo fondamento sarà possibile l’“amicizia” tra Stati, essendo questa possibile solo tra eguali; e viceversa, mancando questo fondamento, tutti gli altri Stati saranno da “reputare inimici”.

Come si vede, siamo qui dinnanzi abbastanza precisamente al concetto del “politico” come è stato ricostruito da Carl Schmitt: il confronto esistenziale amico/nemico, appartenente alla logica della guerra, è il criterio che permette di identificare nella sua purezza il “politico”, che dunque c’è solo se c’è separazione tra interno ed esterno, con la contestuale disattivazione della politica entro lo Stato (ridotta a “polizia”) e il suo rivolgimento all’esterno come disponibilità a fare la guerra, su di un terreno in cui per definizione coesiste una pluralità di Stati19. Non è un caso che Schmitt individui una continuità tra Machiavelli e Hobbes in ordine alla concezione antropologica, condizione a sua volta della definizione del politico: «Teorici della politica come Machiavelli, Hobbes, spesso anche Fichte, con il loro

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“pessimismo” antropologico non fanno altro che presupporre la reale possibilità o concretezza della distinzione di amico e nemico»20.

Occorre però precisare che se diciamo che a questa altezza, nel 1503, la politica appare a Machiavelli una forma della guerra, non intendiamo sostenere che la politica scompaia, per lasciare il posto a una concezione della “guerra totale”, come sostiene Gerhard Ritter nel suo Die Dämonie der Macht.21 Tra “leggi” e “guerra” vi è anche qui pur sempre un rapporto: la disponibilità alla guerra è l’unico modo per conferire validità ai patti, come per stabilire le condizioni dell’amicizia. Di conseguenza, la pace è fondata sulla guerra esattamente come l’amicizia è fondata sull’eguaglianza, e sul terreno della politica internazionale l’unica eguaglianza possibile è l’eguale potenza bellica degli Stati. Insomma pace, patti e politica hanno una loro consistenza, una sfera di esistenza, ma tale sfera non è autonoma: essa può essere pensata solo a partire dalla potenza bellica.

D’altronde la prospettiva qui adottata da Machiavelli può essere agevolmente spiegata tenendo conto della particolare natura di questo testo: scritto per convincere i propri concittadini della necessità di una nuova tassa per poter procedere all’armamento della repubblica, esso si inserisce in un contesto in cui realmente e attualmente tutti gli Stati confinanti erano per Firenze dei nemici, un contesto caratterizzato in Italia dallo stato di guerra permanente. Le affermazioni contenute nelle Parole da dirle sopra la provvisione del danaio, pur se perentorie e universali, potrebbero insomma trovare una spiegazione come delle descrizioni e generalizzazioni dell’Italia di quel tempo. Ma occorre approfondire la questione, insistendo sulla prospettiva, sul punto di vista da Machiavelli adottato nello scriverlo. È stato notato che Machiavelli «si astenne in genere, prima del 1513, dall’evadere dal proprio ambito di fedele rappresentante ed interprete delle vedute del proprio governo»22. Niccolò, in quanto Segretario della Seconda Cancelleria, scrive dunque un testo tutto orientato sulla guerra e sullo spazio esterno: il punto di vista che orienta tutta la teoria, e la conseguente analisi politica, è quello governativo, quello dello Stato in quanto si muove nel terreno della politica internazionale. Lo Stato è il soggetto dell’analisi: uno Stato qualsiasi, indipendentemente dal regime monarchico, aristocratico o democratico23. La logica che stabilisce l’ordine delle priorità teoriche e politiche è quella della sopravvivenza dello Stato in quanto tale, definito non per la capacità piú o meno grande di essere l’organizzazione e la garanzia della “libertà” dei suoi cittadini, ma solo come centro di esercizio della potestas, capacità di porre il discrimine tra esterno e interno e, in questo modo, di istituire uno spazio della sicurezza (della “polizia”) all’interno, e uno spazio della (potenziale) guerra all’esterno.

Le parole da dirle non è del resto che un esempio particolarmente luminoso. Anche solamente scorrendo i titoli di alcune altre operette, dedicate ad altrettanti casi di ribellioni delle città e territori del dominio fiorentino – Discorso sopra Pisa (maggio-giugno 1499)24, De rebus pistoriensibus (marzo 1502)25, Del modo di trattare i popoli della Valdichiana ribellati (luglio-agosto 1503)26, Provvedimenti per la riconquista di Pisa (marzo 1509)27 – constatiamo la dominanza, nel periodo del servizio attivo di Machiavelli, del punto di vista della politica estera e della guerra, entro quella che è stata definita una “retorica della guerra” e “dell’emergenza”28.

4 Il punto di vista della Moltitudine: la guerra come politica

Dopo il 1513, con la forzata messa a riposo e la redazione del De principatibus, nel pensiero di Machiavelli si annuncia, come s’è detto, un cambio di prospettiva, che pone al centro non la guerra, lo Stato come fulcro di potere e la politica estera, ma la politica, lo Stato come rapporto di forze e la politica interna come organizzazione ed esercizio della libertà. Eppure, come anche si è avuto modo di vedere, la prospettiva precedente non viene semplicemente abbandonata, ma ripensata all’interno della nuova. Se in precedenza lo Stato era genericamente caratterizzato come esercizio del potere, ora la domanda si sposta e viene indirizzata alla natura di questo potere, dunque alle differenze qualitative nel concetto di politica.

Questo spostamento assume nel Principe una forma ben precisa, inscritta nella struttura stessa del libro: questa forma è il discrimine rappresentato dal capitolo VI, in cui si inizia a trattare dei “principati al tutto nuovi”. I precedenti, dopo il primo contenente una classificazione di «tutti gli stati,

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tutti e’ dominii che hanno avuto e hanno imperio sopra gli uomini» (MACHIAVELLI, 1995, p. 7), formano un blocco omogeneo, caratterizzato proprio dall’adozione del punto di vista dello Stato e quindi della politica come guerra. La differenza tra i capitoli II-V da una parte, e il capitolo VI e i seguenti, sta appunto in ciò, che mentre i primi trattano la politica come forma di esercizio di un potere che c’è già, è già costituito e mira a conservarsi in vita nella lotta contro altri poteri costituiti, i seguenti spostano il punto di vista all’interno dei processi di costituzione del potere, affrontando la questione della fondazione dello Stato, mettendo al centro gli elementi che discriminano una buona da una cattiva fondazione, problematizzando e differenziando qualitativamente dall’interno il concetto di politica29.

Nella prima sezione del Principe troviamo cosí una ripresa di tutta la precedente esperienza del Segretario: lo Stato vi è presentato essenzialmente come organismo capace di fare la guerra per difendersi dagli aggressori o conquistare nuovi territori; i rapporti di forza al suo interno non vengono presi in considerazione e domina la prospettiva della politica internazionale. I primi cinque capitoli del Principe formano una sorta di trattatello riguardante le possibilità di azione riservate al potere in quanto espressione di rapporti di forza dati, e non invece espressione del definirsi di rapporti di forza. E dato che il soggetto è qui lo Stato, ne consegue che tale soggetto è neutro, perché lo Stato ha come fine sé stesso, cioè la propria autoconservazione, e la dinamica sociale (cioè la politica in quanto conflitto di forme e di interessi contrapposti) dal punto di vista dello Stato come soggetto esiste e ha importanza negativa o positiva esclusivamente in quanto favorisca od ostacoli questo suo autofinalismo.

Il potere costituito, dunque, può essere tale sulla base di diversi rapporti di forza: può essere repubblica o principato, ottimatizio o popolare, può essere principato fondato sul popolo o sui grandi, ecc. Ciò che conta non è però questo, bensí il modo in cui queste diverse forme istituzionali, e le diverse realtà politiche che esse esprimono, sono utili o dannose allo Stato, cioè al modo in cui lo Stato lotta per perpetuarsi30. La repubblica viene cosí, per esempio, valutata esclusivamente dal punto di vista della maggiore resistenza che offre, rispetto a quella offerta da un principato, quando sia una terra di conquista (cap. V); o altrove il grado di stabilità del potere viene commisurato al grado di passività dei sudditi (cap. IV); o infine (nei capp. III e V) la “repubblica romana” viene valutata solamente per la sua potenza militare e per la prudenza dei suoi governanti (cioè per la coppia concettuale già presente in Le parole da dirle), senza che vi sia un qualsiasi riferimento alla vitalità del corpo sociale – cioè alla “libertà” – come segnalatore della potenza di quello Stato (come invece accadrà nei Discorsi).

Eppure questa sezione ha una sua precisa funzione nell’economia del Principe, in quanto è indispensabile per arrivare a formulare il problema centrale di questa opera: come sia possibile pensare la fondazione di un principato al tutto nuovo (capitolo VI) come problema propriamente politico, subordinando cioè l’ottica dello Stato all’ottica della moltitudine, di quella moltitudine che il principe, come si è detto all’inizio, si trova dinnanzi anche dopo la fondazione, che non riesce a unificare attraverso la “rappresentazione”, ma dal cui appoggio nondimeno non può prescindere se intende conferire solidità al principato nuovo31.

Questa funzione viene qui svolta da una progressione, dal capitolo II al V, e oltre fino al VII, verso il tema della “innovazione”. Il capitolo II si conclude con una frase importante: «E nella antiquità e continuazione del dominio sono spente le memorie e le cagioni delle innovazioni: perché sempre una mutazione lascia lo addentellato per la edificazione dell’altra» (MACHIAVELLI, 1995, pp. 9-10). È un riferimento non alla “mutazione” come “corruzione”, cioè all’inevitabile, fisiologica trasformazione che accomuna tutte le cose; ma alla “mutazione” come “innovazione”, cioè al mutare come “dare inizio a qualcosa”. Insomma, è il primo cenno – qui ancora meramente negativo – alla sfera propriamente politica.

Il cenno compare qui, al termine del capitolo dedicato ai “principati ereditari”, come faccia negativa del suo contenuto: l’innovazione è qui ciò che va evitato. Al contrario, essa compare positivamente nel capitolo successivo, che esordisce con un’avversativa che tende a rendere il senso della frattura rispetto a quanto precede: «Ma nel principato nuovo consistono le difficultà» (MACHIAVELLI, 1995, p. 10). Qui dunque ci si trova per la prima volta di fronte alle vere «difficultà», perché si tratta di dare inizio a qualcosa di completamente nuovo. Di conseguenza, la difficoltà sarà grande nel caso di Stati misti (capitolo III), ancora maggiore nel caso in cui gli Stati sottomessi non

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sono precedentemente retti a monarchia (capitolo IV) ma a repubblica (capitolo V), e raggiungerà il culmine nel caso di Stati “al tutto nuovi”, cioè doppiamente nuovi, per principe e per Stato (capitolo VI), e sarà pertanto massima quando ciò accada non a partire dalla figura del principe, con ciò che essa possiede come sua “proprietà” (virtú e armi proprie), ma gli provenga dall’esterno, dalla «fortuna» e «armi altrui» (capitolo VII).

Vi è dunque dal capitolo II al VII una progressione, il cui criterio è la graduale estinzione di ogni legame oggettivo tra la situazione nuova e la vecchia: gli Stati misti hanno un fondamento maggiore di quelli al tutto nuovi sorti per sola virtú, i quali lo hanno a loro volta maggiore di quelli sorti per sola fortuna, ecc. Questa progressione mira alla formulazione del tema della innovazione in quanto innovazione, cioè della politica in quanto politica. Sbaglieremmo, tuttavia, se credessimo di poter pensare questa progressione nella forma di una sottrazione meramente quantitativa della base oggettiva; o meglio, questa sottrazione quantitativa va vista come un modo per far compiere all’analisi un salto qualitativo, che si tratta di esplorare. Il passaggio dal capitolo II al VII è dunque sí una progressione, ma è al contempo un salto di qualità, un passaggio di forma, addirittura un’inversione dei criteri di analisi e di giudizio.

Questa inversione ha luogo quando, con il capitolo VI, Machiavelli pone il tema della fondazione dei «principati al tutto nuovi, e di principe e di Stato» (MACHIAVELLI, 1995, p. 32). Qui la prospettiva appare rovesciata: se in precedenza le “mutazioni” erano un equivalente del caos, in quanto eventi sottratti all’unica logica possibile, quella della perpetuazione della macchina dello Stato, e quindi la politica coincideva con le strategie di sopravvivenza di questa macchina, in primis la guerra; d’ora in avanti sarà proprio la “mutazione” il luogo della politica, il luogo in cui si produce l’ordine (possibile), perché questo non coincide piú con la perpetuazione della macchina statale, ma con la costruzione di un nuovo Stato. Questo cambiamento di prospettiva può accadere, perché Machiavelli fa una mossa teorica in due parti, indirizzando la propria attenzione, come si è detto, ai «principati al tutto nuovi, e di principe e di Stato», vale a dire A) agli organismi statali completamente nuovi, che per di piú B) vengono fondati da un «privato» che diventa «principe» (MACHIAVELLI, 1995, p. 33), cioè da un cittadino che acquisisce la qualifica di principe insieme alla nascita del principato stesso.

La “mutazione” non è piú assunta, genericamente, come evento che minaccia un “ordine” dato; in quanto innovazione, la mutazione non è casuale, ma indirizzata in una direzione precisa, coincide con un progetto politico, con la politica in quanto costruzione di nuove realtà. Potremmo anche dire, correndo il rischio dell’anacronismo, che il Principe mostra come alla base della stessa politica come “conservazione” ci sia la politica come “rivoluzione”32.

Ora, come immediatamente appare chiaro dal modo in cui la questione è stata formulata (principato nuovo di un principe nuovo), il punto di vista è completamente sbilanciato sul terreno dell’insicurezza, dell’incertezza: la politica diventa qui progetto di una novità. In altre parole, l’incertezza deve trovare un corrispettivo che riesca almeno in parte a colmarla, a riempirla. Questo corrispettivo è appunto la virtú. Non ci dovrà sorprendere, allora, constatare che questo concetto, per il quale Machiavelli viene universalmente ricordato, appare prima del capitolo VI solamente due volte, nel III e nel IV, in funzione generica; e che invece, a partire dal VI, svolge il ruolo di insostituibile raccordo teorico di tutta l’argomentazione. È infatti solo quando la politica si viene a definire in rapporto all’innovazione, che la virtú acquisisce il ruolo che le spetta.

Ma se consideriamo il modo in cui nel testo del Principe, a partire dal capitolo VI, si configura il nesso tra virtú e innovazione, constatiamo che questo nesso risulta impensabile, se non gli aggiungiamo un ulteriore elemento: il popolo, che Machiavelli definisce, in continuità tra la realtà di Roma antica e Firenze moderna, da un punto di vista sociologico come Plebe e, rispettivamente, “popolo minuto”33; da un punto di vista politico come l’insieme di coloro che non vogliono essere oppressi né comandati dai grandi (Principe, IX) ovvero come multitudo (oì polloí), cioè come quella “parte” caratterizzata dal fatto

di non possedere né potere né ricchezze, ma di essere il maggior numero. L’originalità di Machiavelli ‒

che in questo mostra di aver ripreso in pieno la lezione di Gerolamo Savonarola ‒ sta nell’aver individuato nel popolo nel senso piú ampio del termine, cioè nel popolo non limitato alla ristretta cerchia dei piú ricchi, il fondamento reale del potere del principe34.

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Se la politica è progetto innovativo, l’innovazione si definirà in rapporto alla solidità che riuscirà a conferire alla nuova costruzione, e questa solidità dipenderà tutta dal modo in cui il principe riesce a coinvolgere il popolo intero in questa impresa. Tra il capitolo VI e il VII ha luogo una progressiva messa a fuoco di questo nesso tra innovazione e consenso, e la virtù appare sempre piú chiaramente come un rapporto tra principe e popolo, piú che una dote personale del principe. Il “privato” che intende diventare “principe”, potrà insomma conseguire questo suo scopo, in assenza di un’antichità di stirpe, solo se il proprio popolo lo riconoscerà come tale, e questo potrà accadere solo se egli sarà in grado di rendere la nuova realtà istituzionale preferibile alla vecchia. Nell’ultimo capitolo dell’opera, per definire la figura del principe che fonda un forte potere in grado di unire l’Italia liberandola dal dominio straniero, Machiavelli usa addirittura il termine «redentore» e «redenzione» (MACHIAVELLI, 1995, p. 174 e 169):

E benché fino a qui si sia mostro qualche spiraculo in qualcuno, da potere iudicare ch’e’ fussi ordinato da Dio per sua [dell’Italia] redenzione, tamen si è visto come di poi, nel piú alto corso delle azioni sua,

è stato da la fortuna reprobato (MACHIAVELLI, 1995, p. 169).

È evidente che Machiavelli sfrutta la potenza del linguaggio religioso, richiamando implicitamente l’esperienza savonaroliana. Ma questo riferimento non è affatto strumentale, perché il termine “redenzione” unisce, ai tempi di Machiavelli, il significato religioso con quello piú generale, derivante dal latino redemptio, di «trarre dalla podestà d’uno, per convenzione, una cosa tolta da quello con violenza, ricomperamento, riscatto»35. Usando la parola “redenzione” Machiavelli fa dunque riferimento allo stesso tempo a un missione religiosa da compiere (gli Italiani sotto gli stranieri come gli Ebrei sotto gli Egiziani), sia al fatto che ciò viene fatto con “giustizia” («per convenzione»), che significa passare dalla violenza all’ordine, dalla forza alla legge (gli Italiani come gli Ateniesi), e sopratutto che questo stesso passaggio non è, esso stesso, un gesto violento (da cui il significato della citazione di Petrarca che chiude il libro: «virtú contro a furore prenderà l’armi» (MACHIAVELLI, 1995, p. 175).

Si diceva piú sopra che tra il capitolo VI e il VII il nesso tra innovazione e consenso viene progressivamente messo a fuoco. Infatti passando dai grandi fondatori di Stati e legislatori (Romolo, Mosè, Ciro, Teseo), figure mitiche e legate alla sfera del divino, ai principi nuovi interamente umani (Ierone di Siracusa, Francesco Sforza), ma che comunque hanno potuto valersi di virtú e armi proprie, a Cesare Borgia – che diventa principe grazie a fortuna e armi altrui –, abbiamo una progressiva messa in evidenza del carattere rischioso dell’innovazione (dato che il principe nuovo appare sempre meno legato a una qualche forma di potenza iniziale a sua disposizione sulla quale poggiare), e quindi della necessità di guadagnare l’appoggio del popolo. Paradossalmente, è proprio con Cesare Borgia, portato al principato dal padre Alessandro VI (fortuna) e dalle armi francesi (altrui), che c’è il maggiore bisogno della virtú, perché il principe si trova piú solo; e che il concetto di virtú emerge nella sua purezza, come ricerca dell’appoggio del popolo al nuovo principato36. Ed è probabilmente proprio a lui che Machiavelli allude nell’ultimo capitolo, parlando di un «redentore» che è stato «da la fortuna reprobato», in questo modo creando un legame strettissimo tra il capitolo VI, il VII e il XXVI.

Vi è dunque un rapporto organico tra politica, innovazione e libertà: questa è la scoperta fatta da Machiavelli in riferimento alla politica. Ma una volta attinto questo punto fermo, Machiavelli ritorna a considerare l’universo della guerra secondo questo nuovo punto di vista. Cosí nel capitolo XIV afferma che il principe non deve «avere altro obbietto né altro pensiero né prendere cosa alcuna per sua arte, fuora della guerra e ordini e disciplina di essa» (MACHIAVELLI, 1995, p. 97), ma poi specifica che per “guerra” intende una serie di attività e di abilità che lo mettono in relazione con il proprio popolo. Anzitutto, l’esercizio della guerra è la capacità di avere con il proprio esercito un ruolo effettivo di guida e di comando, cioè di conquistare l’ammirazione e il rispetto dei propri soldati (MACHIAVELLI, 1995, p. 97-98; e Machiavelli raccomanda al principe, nei capitoli XII-XIV, di abbandonare le milizie mercenarie e di armarsi di “armi proprie”: dunque in un certo senso questo rapporto è istituito con il popolo). In secondo luogo, esercitarsi alla guerra significa «leggere le istorie» (MACHIAVELLI, 1995, p. 100), perché il principe conquista la potenza militare solo se imita i grandi uomini dell’antichità per poterne attingere anch’egli la «laude» e la «gloria» (MACHIAVELLI, 1995, p.

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101) che quelli hanno saputo meritare, conquistando anche in questo caso il consenso popolare alle proprie imprese37.

In questo processo di ridefinizione della guerra a partire dalla politica svolge un ruolo fondamentale il capitolo X, intitolato In che modo si debbino considerare le forze di tutt’i principati. Qui lo sguardo torna a mettere a fuoco il modo in cui i principati si fronteggiano sul piano internazionale. Ma la loro rispettiva “potenza” viene adesso calcolata sul metro della vitalità politica, dipendente a sua volta dal rapporto tra principe e popolo:

E qualunque arà bene fortificata la suo terra e, circa li altri governi, co’ sudditi si sarà maneggiato come di sopra è detto e di sotto si dirà, sarà sempre con grande respetto assaltato; perché li uomini sono nimici delle imprese dove si vegga difficultà: né si può vedere facilità assaltando uno che abbi la suo terra gagliarda [cioè bene armata] e non sia odiato dal populo (MACHIAVELLI, 1995, p. 70).

E qui, in modo abbastanza sorprendente, vengono addotti come esempio non dei principati, ma delle repubbliche: quelle «città della Magna» che «sono liberissime» e per questo «non temono né quello [l’imperatore, a cui sono formalmente sottomesse] né alcuno altro potente che le abbino intorno» (MACHIAVELLI, 1995, p. 70).

Questo singolare rinvio (l’“esempio” non corrisponde al “caso”) mette in evidenza il fatto che, dinnanzi a un principato, sia pure solidissimo, una repubblica bene ordinata è comunque assai piú solida. Detto altrimenti, il rinvio alle libere città tedesche nel capitolo dedicato alle “forze” dei principati indica implicitamente l’obiettivo al quale la ricerca del consenso popolare da parte del principe deve tendere: a istituire cioè quella compattezza civica, quell’amore della patria, quel senso del “pubblico” che solamente una repubblica, formata non da sudditi ma da liberi cittadini, può possedere. Se dunque, si legge nel capitolo 58 del primo Libro dei Discorsi, «i principi sono superiori a’ popoli nello ordinare leggi, formare vite civili, ordinare statuti e ordini nuovi», dall’altra parte «i popoli sono tanto superiori nel mantenere le cose ordinate» (MACHIAVELLI, 1984, p. 183), perché, come recita il titolo del capitolo, «la moltitudine è più savia e piú costante che uno principe». Insomma l’unico modo, che una repubblica corrotta ha, di riformarsi, è di trovare un privato che voglia diventare principe per rifondarla (tema di Discorsi, I, 18); e reciprocamente l’unico modo, che un principato nuovo ha di mantenersi oltre la vita del suo fondatore, è di diventare (come accadde a Roma dopo la serie dei re) una repubblica. Infatti la “benevolenza popolare” verso il principe ha dei limiti, limiti precisi, dati dalla sua sudditanza. Per quanto si possa raggiungere tra principe e popolo un’alleanza, questa non potrà mai essere completa, perché in questo caso il principe non sarebbe piú sovrano, e il popolo non sarebbe piú suddito. Rimane un margine ineliminabile di violenza (di “guerra” interna”), e questo margine è appunto la debolezza del principato rispetto alla repubblica38.

5 Questioni di confine

Prendiamo il capitolo 10 del secondo Libro dei Discorsi, intitolato I danari non sono il nervo della guerra, secondo che è la comune opinione:

Perché ciascuno può cominciare una guerra a sua posta ma non finirla, debbe uno principe, avanti che prenda una impresa, misurare le forze sue e secondo quelle governarsi. Ma debbe avere tanta prudenza che delle sue forze ei non s’inganni; e ogni volta s’ingannerà quando le misuri o dai danari o dal sito o dalla benivolenza degli uomini, mancando dall’altra parte d’armi proprie. Perché le cose predette ti accrescono bene le forze, ma ben non te le danno, e per sé medesime sono nulla e non giovono alcuna cosa sanza l’armi fedeli. Perché i danari assai non ti bastano sanza quelle, non ti giova la fortezza del paese; e la fede e benivolenza degli uomini non dura, perché questi non ti possono essere fedeli, non gli potendo difendere (MACHIAVELLI, 1984, p. 316-317).

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Il consenso popolare può accrescere la potenza data dal fatto che il principe possiede “armi proprie”, ma non le può sostituire e di per sé “è nulla”. Nella ridefinizione della guerra a partire dalla politica c’è dunque un limite, consistente nella differenza tra “armi proprie” e “benevolenza popolare”: le armi del principe restano distinte dal rapporto con il popolo, l’elemento militare (l’elemento tecnicamente militare) continua ad essere decisivo rispetto a quello politico. Ma questo limite riguarda appunto solamente il principato. Qui le “armi proprie” non sono mai, come si è detto, completamente assimilabili al “popolo”, perché se l’identificazione fosse totale avremmo un “popolo in armi” e quindi

una repubblica, come sono le città tedesche o quelle della confederazione svizzera, o come fu ‒ con le

limitazioni che subito si vedranno ‒ la Roma “repubblicana”. Nel rapporto tra principe e popolo dovrà sempre restare un margine di violenza, dato dall’esistenza di truppe fedeli personalmente al principe (“proprie” in questo senso) e disposte a dirigersi contro lo stesso popolo, se necessario39.

Viceversa una repubblica bene ordinata si definisce per la coincidenza di popolo ed esercito40: è questo il luogo in cui, stando a Machiavelli, la guerra è completamente riassorbita nella politica, finanche nella logica del suo generarsi. Nei Discorsi, II, 2, si contrappone infatti l’espansione militare di una repubblica e di un principato: mentre nel primo caso essa avviene sulla base e in vista del «bene comune», nel secondo «il piú delle volte quello che fa per lui [il principe] offende la città, e quello che fa per la città offende lui» (MACHIAVELLI, 1984, p. 297)41. Infatti, argomenta il Segretario in Discorsi, II, 19 (che si riallaccia esplicitamente a Discorsi, I, 6), il fare o il non fare una guerra non è, per una repubblica bene ordinata, una decisione esterna alla politica. Ricordiamo il nesso tra passioni conflittuali, politica conflittuale e guerra individuato supra (cap. 2): lo scatenamento della dinamica territoriale espansiva discende dalla decisione, presa a Roma dal Senato, di “valersi del popolo” nelle “cose importanti” (Discorsi, I, 4), coinvolgendolo nella vita pubblica e quindi tollerando la sua conflittualità volta alla conquista di “leggi” che ampliassero la “libertà”. Tutto questo risponde all’obiettivo, stabilito dal Senato, di fare «un grande imperio», come si legge in Discorsi, I, 6 (MACHIAVELLI, 1984, p. 77): è sí un obiettivo militare, ma che ha immediatamente una dimensione politica (produce maggiore libertà all’interno) e può essere perseguito solamente nella consapevolezza, che i Romani ebbero, che il confine tra interno ed esterno non può che essere, per una repubblica espansiva, labile. Cosí, essi accrebbero «la città sua di abitatori» e si fecero «compagni e non sudditi», scrive Machiavelli in Discorsi, II, 19 (MACHIAVELLI, 1984, p. 345), tenendo cioè un rapporto aperto con l’esterno, integrando gli stranieri42 e concedendo diritti alle città sottomesse. In questa permeabilità non vi è un rifiuto della logica della potenza (associandosi i Latini, Roma in realtà li rese col tempo propri servi, come si argomenta in Discorsi, II, 4 e 13), ma una sua qualificazione politica in connessione con la libertà.

Differente, invece, è la logica all’opera nelle «republiche della Magna», che non intendono ampliare il proprio territorio, frenano le ambizioni individuali, vivono all’interno secondo una struttura comunitaria per quanto possibile aconflittuale, regolano in modo rigido leggi e costumi pubblici e privati delle città, proibiscono l’espansione, mirano esclusivamente alla difesa43. Ma questo è un caso-limite, determinato dalla particolare (e irripetibile) condizione storica e orografica di quelle città che, sebbene non si espandano, non vengono neppure minacciate da altre città o popoli che intendano battere la via dell’espansione territoriale44.

Siamo cosí confrontati con due modelli alternativi del rapporto interno/esterno, e quindi cittadino/straniero: quello di tipo “romano” e quello di tipo “greco”. Nel caso romano il limes è mobile (si sposta espansivamente verso il “fuori”) ma anche, correlativamente, completamente permeabile (è lí per essere attraversato in entrambe le direzioni). A Roma la “cittadinanza” è un fatto politico (esattamente come per lo jus romano la condizione di servitú è un fatto politico, stabilito dalla legge e non derivante dalla natura, per la quale anzi l’uomo è sempre libero). La cittadinanza designa l’appartenenza alla civitas, con i suoi diritti, e non alla “terra. Nel modello greco – a cui le città della Magna possono essere ricondotte – il confine è per quanto possibile statico e non è attraversabile: qui il “barbaro” (rispettivamente, nel mondo moderno, lo “straniero”) è segnato da una differenza insuperabile rispetto al “cittadino” (cioè all’“uomo”), che a sua volta si definisce per la duplice caratteristica di essere nato nella “terra” e di appartenere alla “stirpe” (lo jus sanguinis moderno)45.

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Il modello greco – anche in questo caso coadiuvato dalla conformazione orografica del territorio (insulare e montagnoso) – tende a segmentare nettamente lo spazio, a tracciare confini stabili che, per di piú, si pretendono ritagliati su di una traccia “naturale” che precede e determina la storia e la politica46. Analogamente, le città della Magna, geograficamente isolate in zone montuose, e costrette politicamente tra Svizzeri, principi e imperatori, «si godono questa loro roza vita et libertà»47 solo grazie a una strenua chiusura difensiva rispetto all’esterno, che in questo caso corrisponde anche, a differenza delle poleís greche, a una rigida ibernazione del conflitto sociale. Non solo: la loro stessa “libertà” e la loro struttura comunitaria fortemente integrata sono nei Discorsi (II, 19) trattate come delle risultanti dello stato di assedio virtuale permanente in cui esse vivono:

Possono vivere adunque quelle comunità contente del piccolo loro dominio, per non avere cagione di disiderarlo maggiore; possono vivere unite dentro alle mura loro, per avere il nimico propinquo e che piglierebbe le occasioni di occuparle qualunque volta le discordassono. Che se quella provincia fusse condizionata altrimenti, converrebbe loro cercare di ampliare e rompere quella loro quiete (MACHIAVELLI, 1984, p. 346).

Il “modello Roma” è pertanto, agli occhi di Machiavelli, teoricamente superiore e politicamente preferibile a quello rappresentato dalle città tedesche e dalle poleís greche. È teoricamente superiore, perché è il piú facilmente imitabile, non implicando condizioni geografiche capaci di giustificarne l’eccezionalità: l’esperienza di Roma si configura come “intrisa” di “fortuna”, di “caso”, di infiniti “accidenti” (come Machiavelli scrive in Discorsi, I, 2), ed è qui la cifra della sua rappresentatività: in questa “necessità” all’ampliare, che, data la costitutiva instabilità di tutte le cose umane, appartiene in linea di principio a qualsiasi corpo politico, fa parte della sua vita-morte48.

Ma Roma è anche politicamente preferibile (il modello romano è infatti tutto sotteso ‒ per

contrasto ‒ alla ricostruzione della storia di Firenze nelle Istorie fiorentine), perché qui si ha un esempio di come la guerra possa essere ricompresa nella politica; di come cioè la forza espansiva di uno Stato sia da leggere come funzione del grado di “libertà” presente nel corpo politico. Solo la «virtú eccessiva»49 di Roma spiega perché, in un mondo dominato dall’amore per la libertà50, proprio questa città abbia potuto prevalere. La natura eccessiva di questa virtú consiste nella capacità di fare del conflitto non la linea di confine con l’esterno, ma una struttura presente tanto “dentro” quanto “fuori”, in modo da relativizzare il significato del confine come preteso segnaposto dell’umanità autentica. I Romani hanno insomma – nello spazio rischioso e imitabile compreso tra virtú e caso – saputo intrecciare passioni, lotta politica e guerra, in un rapporto tra “interno” ed “esterno” non rigido né fisso, e perciò capace di oltrepassare l’alternativa tra ordine e disordine, tra violenza e legge, tra politica come polizia e politica come guerra, e in definitiva tra vita e morte51.

Notas

1 Una versione preliminare di questo testo è stata pubblicata in IESA Working Paper Series (WP 17-04) ed è reperibile all’indirizzo: http://digital.csic.es/handle/10261/2093. 2 Università di Urbino, Dipartimento di Scienze dell’uomo e doutor em Filosofia. Endereço eletrônico: [email protected], Endereço para correspondência do autor: Dipartimento di Scienze dell’uomo, Via Timoteo Viti, 10 - I - 61029 URBINO (Italia). 3 I termini “corruzione”, “corrotto” ecc. assumono in Machiavelli un significato politico a partire dalla loro originaria accezione di filosofia naturale e medicina. Cfr. Bonadeo (1973, p. 1-34) e Masiello (1971, p. 88-95). 4 Non per questo tuttavia mi spingerei a dire, con Damien (1999, p. 292) che «la décision militaire [est] le modèle de la décision politique», nonostante egli faccia discendere questa conclusione dall’assunzione, in sé corretta, secondo cui la politica è iscritta in un terreno per definizione conflittuale e mobile. Il pensiero strategico non è che una semplificazione del prospettivismo praticato e teorizzato da Machiavelli: in esso la “questione della verità” non viene a mancare, ma viene spostata sul terreno pratico (“effettuale”). Il primato del momento strategico è invece la premessa di tutte le riduzioni della politica a “calcolo”. 5 Varotti (1998, p. 381). 6 Varotti (1998, p. 382).

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7 Cfr. Varotti (1998, p. 380-395). 8 Sul concetto di «umori» cfr. Zancarini (2001). 9 Nota Del Lucchese (2004, p. 242-243) che per Machiavelli si rende necessario «pensare su un medesimo piano la politica interna e quella estera, il diritto e la guerra, la giustizia e la violenza, demolendo qualsiasi possibile suddivisione teorica e astratta e aprendo la strada al realismo di una concezione conflittualistica del diritto». Viceversa per il contrattualismo dominante nell’età moderna «un sistema di leggi [...] è uno stato di pace proprio perché è uno stato giuridico» (Bobbio, 1979, p. 98). 10 Cfr. per una tesi diversa Quaglioni (2004, p. 35-44). 11 Sullo spazio politico moderno, con particolare riferimento alla distinzione interno/esterno, pace/guerra, cfr. Galli (2001, p. 54-58). Sull’intreccio tra politica e guerra nella modernità si veda Galli (2000). 12 Sulla datazione dei Discorsi cfr. Gilbert (1953) e Ridolfi (1978, p. 232-234 e 531-532). 13 Mi permetto di rinviare a questo proposito a Frosini (2001, p. 63-90). 14 Quaglioni (2004, p. 43). 15 Cfr. Chabod (1953, p. 323) e Marchand (1975, p. 53-56). 16 Cfr. Chabod (1953, p. 324). 17 Cfr. Marchand (1975, p. 59-60). 18 Cfr. Quaglioni (2004, p. 37-38). 19 Cfr. Schmitt (1932, p. 101-138). 20 Schmitt (1932, p. 149). 21 Ritter (1948, p. 33; 49; 54). 22 Tenenti (2002, p. 40). Cfr. anche, in questo medesimo senso, Baron (1961, p. 245 e 248). 23 Sull’aspirazione universalistica di questo testo, e sull’indipendenza della “legge” dal regime politico cfr. Marchand (1975, p. 62). 24 Per la datazione cfr. Marchand (1975, p. 13-16). 25 Per la datazione cfr. Marchand (1975, p. 45-49). 26 Per la datazione cfr. Marchand (1975, p. 102-104). 27 Per la datazione cfr. Marchand (1975, p. 192-195). 28 Cfr. Fournel (2006). 29 Per questa prospettiva cfr. Procacci (1960), Pocock (1975, Vol. I, p. 319-358), Negri (2002, p. 55-126). 30 Non coglie questa distinzione Gilbert (1943, p. 269-273 e 282), che legge l’intreccio tra momento militare e momento politico nel pensiero di Machiavelli dal punto di vista del solo potere costituito. Gilbert scrive infatti (1943, p. 283) che Machiavelli avrebbe raccomandato di riplasmare «secondo le necessità militari le istituzioni politiche, sia nello spirito che nella forma». 31 Diversamente (come condanna, da parte di Machiavelli, delle guerre di conquista condotte dai suoi contemporanei) interpreta questa parte del Principe Bonadeo (1974, p. 342-343, 354). 32 Sul modo e i limiti entro i quali si possa parlare di un Machiavelli “rivoluzionario” cfr. Procacci (1969). Cfr. anche Negri (2002, capp. II e III). Sul concetto di rivoluzione in generale (e in particolare nel Rinascimento, quando ha un significato legato all’astrologia), cfr. Ricciardi (2001). 33 Sul contenuto sociale del progetto del principato nuovo cfr. Masiello (1971). 34 Sulla lezione del Savonarola cfr. Brown (1988). 35 Accademia della Crusca (1612, p. 690). 36 In questo modo mi pare vada complicata la distinzione tra il legislatore del cap. VI e il principe nuovo del VII, messa in evidenza da Pocock (1975, Vol. I, p. 341, 345-348, 350, 357-358) e in modo piú disteso in Pocock (1972). 37 Sull’intreccio tra virtú, gloria e guerra in Machiavelli, e sul carattere paradigmatico del gruppo di capitoli XII-XIV del Principe, cfr. le osservazioni di Galli (2000, p. 170-171). 38 Cfr. Lazzeri (1999) e Frosini (2005). 39 Cfr. Frosini (2005). 40 All’estremo opposto rispetto alla repubblica si colloca evidentemente l’Impero romano, in cui l’esercito professionalizzato ha raggiunto un grado di autonomia tale dal corpo politico, da essere attore politico esso stesso: qui non solo l’esercito non coincide col popolo, ma ne prende il posto (in Principe XIX Machiavelli scrive che è la «università» piú potente). Su questo caso cfr. Bonadeo (1974, p. 351), che però tratta questo punto in modo cursorio e lo confonde (p. 352-353) con il problema delle milizie mercenarie nel Rinascimento; e sul concetto di “università” cfr. Lazzeri (1999, p. 247-251). 41 Cfr. su ciò Bonadeo (1974, p. 347 e 348-351), dove si mostra come questo schema sia all’opera nelle Istorie fiorentine, dove le guerre condotte da Firenze vengono fatte risalire alla brama di arricchimento dei Grandi o addirittura lette come strumento da questi sapientemente adoperato per indebolire la parte popolare: in entrambi i casi, l’origine ultima sta nella difettività della “libertà” di Firenze. 42 Cfr. sopratutto Discorsi, II, 3, intitolato «Roma divenne gran città rovinando le città circunvicine e ricevendo facilmente i forestieri a’ suoi onori». Su questo punto cfr. Pocock (1975, Vol. I, p. 407-409). 43 Cfr. Discorsi, II, 19 (Machiavelli, 1984, p. 345). 44 Com’è noto, quando Machiavelli parla delle «città della Magna» intende i villaggi del Tirolo (Alpi austriache) e quelli e della Germania alpina, che cadevano sotto la giurisdizione imperiale. Questi luoghi furono da lui visitati in occasione della

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missione presso l’imperatore Massimiliano (1507-1508). Da questa missione nascono il Rapporto di cose della Magna e, successivamente, il Discorso sopra le cose della Magna e sopra l’Imperatore (1509) e il Ritracto delle cose della Magna (1512). Su tutto ciò cfr. Ridolfi (1978, p. 157-168) e Dotti (2003, p. 169-177). 45 Sui modelli greco e romano cfr. Galli (2001, p. 21-22), e piú in dettaglio Galli (1998, p. 225-226 e 235-236), dove si riporta la posizione di Serres (1983), che presenta il modello romano come alternativo a quello che, dalla pólis greca, si prolunga nello Stato moderno. 46 Tale fissità viene solo in apparenza violata con le colonie: queste infatti, in forma di gemmazione, ripetono la madrepatria al di fuori dei confini originari, riproducendovi lo stesso schema esclusivo interno/esterno. 47 Machiavelli, Ritracto delle cose della Magna (1512), in Marchand (1975, p. 526). Nel precedente Rapporto di cose della Magna (1508) Machiavelli aveva scritto «godono in questa lor vita roza et libera» (Marchand, 1975, p. 477). 48 Cfr. Discorsi, II, 19: «Nondimeno [...] è impossibile che a una republica riesca lo stare quieta e godersi la sua libertà e gli pochi confini; perché, se lei non molesterà altrui, sarà molestata ella e dallo essere molestata le nascerà la voglia e la necessità dello acquistare; e quando non avessi il nimico fuora, lo troverrebbe in casa, come pare necessario intervenga a tutte le gran cittadine. E se le republiche della Magna possono vivere loro in quel modo, e hanno potuto durare un tempo, nasce da certe condizioni che sono in quel paese le quali non sono altrove, sanza le quali non potrebbero tenere simile modo di vivere» (Machiavelli, 1984, p. 345). 49 Come Machiavelli scrive nei Discorsi, II, 2 (Machiavelli, 1984, p. 296). 50 «[...] lo amore che in quelli tempi molti popoli avevano alla libertà» (Machiavelli, 1984, p. 296), a differenza dei tempi moderni, dominati dal disprezzo della vita insegnato dal cristianesimo, che lascia libero campo alla tirannide (Machiavelli, 1984, p. 298-299). 51 Un’annotazione va fatta, a integrazione di quanto appena detto. Sul terreno repubblicano la tensione interna al principato non viene neutralizzata o sciolta, ma messa politicamente all’opera. Ciò accade a Roma nella tensione tra la logica di cui è portatrice la parte senatoria, e quella che trova espressione nella vita della Plebe. Se la seconda è l’espressione immediata della prassi della moltitudine, con i suoi limiti ma anche la sua “potenza”, la prima è il prolungamento della logica della fondazione e quindi del “dominio” assoluto, che però è costretto continuamente a mediarsi – non solo esteriormente, ma anche in quanto consapevolezza riflessa – con le istanze della Plebe, di cui peraltro intende “servirsi”. L’armamento del popolo, originato dalla brama di potere del Senato (“fare un imperio”), modifica in modo decisivo questa stessa brama, costringendola dentro lo spazio comune della libertà repubblicana. Cfr. Frosini (2001, p. 89).

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Breves notas sobre a recepção das ideias

maquiavelianas no pensamento militar e na

Teoria das Relações Internacionais

Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos1

Resumo: O objetivo do artigo é efetuar um brevíssimo recenseamento sobre a recepção das ideias de Nicolau Maquiavel no que tange as suas contribuições militares e nas brevíssimas formulações acerca do âmbito do além-fronteiras como parte das abordagens componentes do que se convencionou chamar de realismo na Teoria das Relações Internacionais. O artigo explora com maior ênfase as interpretações mencionadas no sentido de expor, de modo bastante sucinto, o legado maquiaveliano dentro dos estudos mais contemporâneos das Relações Internacionais.

Palavras-chave: Maquiavel; Pensamento militar; Realismo político; Teoria das Relações Internacionais.

Abstract: This text aims to present a very short review on Machiavelli’s ideas reception concerning his military thought and short reflections on international affairs, as part of what was called realism in the realm of international relations theory. The text deals with much more emphasis the mentioned inter-pretations in a very concise way within contemporary studies about maquiavelian legacy on contempo-rary studies in International Relations.

Keywords: Machiavelli; Military thought; Political realism; International Relations Theory.

1 Introdução O objetivo do texto é traçar um panorama sobre a recepção das formulações de Nicolau

Maquiavel no âmbito da guerra e da teorização mais recente no século XX em Relações Internacionais. A amplitude do tema dá margem a enorme exposição, o que não é o intento da presente reflexão. Far-se-ão breves notas sobre o tema em pauta, dando ensejo à explicação de algumas tendências relevantes na recepção destas ideias do secretário florentino.

A apresentação seguirá a ordem de, primeiramente, uma contextualização sobre o temário internacional e sua relação com as formulações políticas maquiavelianas de caráter mais geral. Em seguida, uma apresentação sucinta das formulações de Maquiavel acerca da guerra. Por fim, a partir da emergência da disciplina acadêmica de Relações Internacionais no início do século XX, um breve mapeamento de algumas apropriações do pensamento do secretário florentino no esforço de teorização desta área, com ênfase a uma crítica da interpretação do pensamento de Maquiavel por uma vertente realista que tem como principal expoente o britânico Martin Wight.

Subjacente a este plano, há importante ressalva metodológica. A riqueza do pensamento maquiaveliano se presta à possibilidade de interpretação por diferentes leituras e ênfases durante distintos períodos, deslocando o conjunto de ideias do secretário florentino de qualquer perspectiva imanentista, focada exclusivamente na conjuntura particular e específica da sua elaboração no renascimento italiano. Neste sentido, não se comunga de uma perspectiva contextualista linguística segundo a qual somente as assim chamadas intenções do autor a sua época seriam válidas para a sua interpretação (SKINNER, 2000b). Interpretar e reinterpretar Maquiavel consiste em ir além da sua particularidade epocal e direcioná-lo para as possibilidades, inclusive, de ressignificação do conjunto de seu pensamento. Isso tudo, no entanto, não leva a prescindir-se de buscar interpretá-lo de modo

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rigoroso e cuidadoso. Como sustenta Joseph Femia (1981, p. 130), é legítimo que alguém “trate os grandes textos como veículos para suas próprias preocupações – desde que isto não resulte numa absoluta distorção ou desrespeito com as ‘condições e exigências históricas’”2. Passemos à breve reflexão pretendida.

2 O Temário internacional Um rótulo pertinente a Maquiavel, e que lhe é sempre associado, é o do realismo político.

Evidentemente que há várias possibilidades de se configurar tal realismo. A designação em si também pouco explica. No que se refere às Relações Internacionais, realismo remete a uma centralidade (mas não exclusividade) do foco analítico nos Estados, sem que, com isso, possa ser generalizado o entendimento normalmente associado a tal rótulo de que os conflitos internos dos Estados não são importantes para a compreensão dos fenômenos no além-fronteiras, como sustentam algumas abordagens. Associado à centralidade da lógica do poder e do interesse dos diversos agentes políticos, o realismo, no plano internacional, compreende que a política no além-fronteiras, com muitas dificuldades, se transforma – à imagem e à semelhança da natureza humana – pouco permeável a eventuais mudanças. O conjunto dos autores classificados sob o rótulo do realismo daria maior ênfase ao Estado como agente político no âmbito internacional.

Há que se ressalvar a existência de vários dissensos no realismo internacionalista do século XX em seus vários representantes teóricos. Não se pode tratar de todos os pressupostos ou aspectos teóricos de distintos autores efetuando-se, pura e simplesmente, generalizações a partir de um rótulo. Conforme sublinhou o historiador Pierre Rosavallon, não se pode apegar a um exagerado tipologismo – no caso específico em pauta, o realismo – ou classificação que se leve a prescindir do estudo efetivo e específico das obras e do pensamento de cada autor em particular (ROSANVALLON, 1995).

Por oposição, o idealismo se pautaria por uma ênfase na transformação da natureza da política internacional, em que prevaleceriam como agentes outros atores que não o Estado. A educação e a opinião pública, por exemplo, desempenhariam relevante papel nesta direção. O idealismo reconhece a política tal como ela é e sua centralidade em torno do poder e do interesse. Porém, verifica que há espaço relevante para a moral e a ética, inclusive para graduais e efetivas mudanças no caráter da política internacional.

Na especificidade do autor em pauta, a raiz da associação ao realismo está na famosa proposição, presente em “O Príncipe” (1996), de se buscar a verdade efetiva das coisas, e não desenhar quadros de Estados e planos que não existem, ou ainda, como deveriam ser.

No âmbito da formulação sobre as Relações Internacionais, Maquiavel é associado ao pioneirismo de uma abordagem realista nesta vertente teórica, cerrando fileiras com outros autores clássicos como Tucídides, Bacon, Hobbes, Clausewitz e, até mesmo, em algumas classificações, os epígonos do materialismo histórico Karl Marx e Friedrich Engels (CARR, 2001). O realismo, no plano internacional, se caracteriza por aquela abordagem que enfatiza a consecução da busca dos interesses e poder dos agentes, inclusive os Estados, em ambiente no qual não há uma autoridade superior aos Estados no sentido de efetivo monopólio legítimo da violência.

Conforme já escrito, suscitar uma discussão mais pontual sobre o realismo de Maquiavel demanda ir para além do rótulo em questão e explicar sua particularidade. Um bom ponto de partida é a separação entre a política e a moral, em seu sentido cristão, com centralidade dos meios adequados para a consecução dos fins, ponto que caracteriza uma ação política exitosa. Os Estados têm que colocar em primeiro plano os seus interesses e de seus governantes, manter e ampliar seu poder, inclusive conquistando outros Estados.

Central neste sentido é o tema da guerra na acepção maquiaveliana, embora aqui, em alguns aspectos do tema, o rótulo realista não lhe caiba de modo tão adequado. Obviamente, ressalve-se que Maquiavel não fez nenhuma abordagem sistemática ou especializada para os eventos do além-fronteiras, nomeados a partir do século XIX como atinentes às “Relações Internacionais”. Todavia, a

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tradição contemporânea realista no temário internacionalista deu uma centralidade à guerra e ao uso da força por excelência como característicos das condutas entre os Estados, senão pela ocorrência da generalizada violência, pelo risco e ameaça constantes de sua manifestação.

Então, por que o rótulo realista não lhe cai totalmente bem no tocante ao fenômeno bélico? Passemos a tal tema.

3 As Formulações militares O plano destas notas não remete a um inventário exaustivo sobre o pensamento maquiaveliano

em toda a sua obra. O foco recairá principalmente sobre alguns pontos seletos de “O Príncipe” (1996) e “A arte da guerra” (2011).

Em “A arte da guerra”, a guerra é situada como parte das instituições mais antigas que compõem harmonicamente a vida civil e a vida militar. Estaria situada dentro das artes que se direcionam para a consecução e manutenção do bem-estar comum dos homens no contexto daqueles que são tementes a Deus e às leis (MAQUIAVEL, 2011). Em “O Príncipe”, a guerra é atividade que deve ser objeto de permanente preocupação de um príncipe (MAQUIAVEL, 1996) e daqueles que usam sua virtù não como príncipes de nascença para ascender ao poder. O príncipe não pode negligenciar tal arte, a causa primeva de ruína de um Estado e de seu poder. A paz deve ser o momento no qual o príncipe deve exercitar ainda mais seu exército e conquistar a confiança de seus soldados comandados.

Em “O Príncipe”, obra dedicada a Lorenzo de Medici, Maquiavel já se prepara para a análise do fenômeno bélico ao levantar a importância de controle de território e meios adequados para que um príncipe se defenda de adversários externos sem precisar recorrer aos aliados.

É no mínimo curioso que o rótulo realista associado a Maquiavel coloque em primeiro plano as formulações acima sobre a guerra presentes em “O Príncipe”, mas negligenciem outros pontos de sua elaboração, em particular de “A arte da guerra”, o único texto político de Maquiavel publicado em sua vida, mais precisamente no ano de 1521.

O desprezo demonstrado em “O Príncipe” pelas tropas auxiliares, mistas e mercenárias, vistas como inúteis e infiéis ao príncipe, não tementes a ninguém, está em desacordo com a experiência histórica daquela conjuntura histórica. O enaltecimento maquiaveliano da eficiência e confiabilidade das milícias de cidadãos está em sentido oposto à experiência recorrente da época do uso de tropas mercenárias, usadas em abundância pelos exércitos dos Estados absolutistas contemporâneos do secretário florentino. Isto é devido, inclusive, ao seu alto custo e difícil adestramento para os padrões da época, além do acesso às armas de fogo, tarefa fácil somente aos mercadores que eram controladores dos grandes exércitos de sua época. O êxito da infantaria suíça em 1476 contra a cavalaria do exército francês nas batalhas de Morat e Nancy foi ponto de enorme repercussão e que, certamente, contribuiu para este impacto no pensamento maquiaveliano (GILBERT, 1986).

Este sentido de desdém pelos exércitos mercenários acompanha a formulação maquiaveliana também em “A Arte da Guerra”. Os argumentos maquiavelianos enaltecem como modelo de melhores tropas a combinação de aspectos da infantaria, a saber, a falange macedoniana, a legião romana e a infantaria de formato bem fechado de origem suíça em detrimento da cavalaria (uma força auxiliar da infantaria) e do emprego das inovações técnicas em torno da artilharia e das armas de fogo. Toma com referência a prática militar romana antiga também para valorizar qualidades com o adestramento, a organização, a fúria, a coragem, obediência e entusiasmo. Considera as armaduras satisfatórias como proteção às armas de fogo. Reitera a pequena utilidade das armas de fogo em função de sua pequena mobilidade e da grande quantidade de fumaça que produz, dificultando a visibilidade dos combatentes.

Portanto, diferentemente da ruptura entre aspectos morais, éticos e políticos no pensamento maquiaveliano em relação à Antiguidade Clássica (cf. SKINNER, 2000a), seu parâmetro militar continua essencialmente atrelado ao período em questão. Tal ponto coloca em discussão justamente o limite que o rótulo realismo atrelado a Maquiavel enseja: sua formulação militar não possui um lastro

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tão realista, como se pode sugerir em primeiro momento. Acrescente-se a isto a significativa derrota impingida ao modelo cerrado de infantaria suíça pelo exército espanhol em Bicocca, em 1522, com o significativo apoio das armas de fogo (GAT, 2001). Trata-se de mais um argumento no qual a experiência histórica se contrapõe ao argumento maquiaveliano.

4 A Recepção de “A Arte Da Guerra”

A despeito dos limites já mencionados acerca das formulações militares de Maquiavel no que

tange particularmente à obra “A arte da guerra”, observa-se que tal publicação logrou significativa repercussão. Uma passagem mais longa, mas significativamente relevante para sintetizar o alcance de tal obra, é assim escrita por Felix Gilbert:

A A Arte da Guerra de Maquiavel foi um livro de sucesso: no curso do século 16 vinte e uma edições apareceram e ele foi traduzido para o francês, inglês, alemão e latim. Montaigne colocou Maquiavel ao lado de César, Políbio e Commynes como uma autoridade sobre questões militares. Embora no século dezessete a mudança nos métodos militares tenha trazido outros escritores à cena, Maquiavel era ainda frequentemente citado. No século dezoito, o Marechal de Saxe apoiou-se nele quando escreveu Especulações sobre A Arte da Guerra (1757), e Algarotti – embora sem muita base – viu em Maquiavel o mestre que tivera ensinado Frederico o Grande as táticas pelas quais ele espantou a Europa. Como a maioria das pessoas envolvidas com assuntos militares, Jefferson tinha A Arte da Guerra em sua biblioteca, e quando a guerra de 1812 aumentou o interesse americano em problemas bélicos, A Arte da Guerra foi publicada em uma edição especial estadunidense. Este contínuo interesse em Maquiavel como pensador militar não foi causado somente pela fama de seu nome; algumas das recomendações feitas em A arte da guerra – aquelas sobre treinamento, disciplina e classificação, por exemplo – ganharam importância prática crescente na nascente Europa moderna quando os exércitos vieram a ser compostos de profissionais vindouros dos mais diferentes estratos sociais. Isto não significa que o progresso da arte militar no século 16 – treinamento, divisão de um exército em distintas unidades, em planejamento e organização das campanhas – se devesse à influência de Maquiavel. A tentativa de Maquiavel de apresentação da organização militar romana como modelo para os exércitos de sua época não foi considerada extravagante. No fim do século dezesseis, por exemplo, Justus Lipsius, em seus influentes escritos sobre questões militares, também tratou a ordem militar romana como um modelo válido permanentemente. (GILBERT, 1986, p. 27-28, itálicos no original)3.

Outro crédito que se pode dar ao legado maquiaveliano como um todo, não restringindo-se

somente à “A Arte da Guerra”, remete ao general prussiano Carl von Clausewitz, general prussiano que escreveu um dos maiores clássicos sobre o fenômeno bélico, “Da Guerra” (1984), dentre outros textos e ampla obra sobre o tema. Viveu entre 1780 e 1831, sendo soldado do exército prussiano desde 1792. Clausewitz combateu nas guerras napoleônicas sempre contra a França, tendo, inclusive, renunciado a sua patente de oficial quando da aliança da Prússia com Paris. Alistou-se como oficial no Exército Russo que lutou contra o Grand Armée Napoleônico. Desempenhou papel fundamental na saída da Prússia da coalizão liderada pela França e no restabelecimento da guerra contra Napoleão após as primeiras derrotas do Grand Armée na Rússia, sendo, depois, reconduzido ao seu posto de oficial nas forças prussianas. Visto com grande desconfiança por suas escolhas pregressas e convicções, alcançou tão-somente posições inexpressivas no Exército, como a direção da Academia Militar de Berlim, até

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alçar ao generalato. Suas contribuições sobre a guerra e a política alcançaram enorme repercussão e influência em distintas tradições militares, políticas e de pensamento. Nicolau Maquiavel foi explicitamente uma das fontes de formação de seu pensamento.

Maquiavel e Clausewitz diferem bastante em termos de contexto histórico, pressupostos teóricos e epistemológicos. Se Maquiavel vê a guerra como uma arte, Clausewitz a vê muito mais como algo pertencente ao campo das relações sociais, das mudanças e particularidades histórico-sociais e, principalmente, da política. Não há, no âmbito da política, uma linha demarcatória clara entre a política violenta – a guerra, por exemplo – e a política pacífica, exemplificada pela diplomacia, que pode, inclusive, coexistir com o fenômeno militar. Clausewitz não viu a Antiguidade como um modelo militar, tampouco qualquer outro período histórico. Ele formulou um conceito abstrato que serviria de referência para unificar e explicar todas as manifestações da guerra no século XIX: a guerra absoluta.

A inovação histórica e social proporcionada pela Revolução Francesa levou a um patamar jamais visto de mobilização, envolvimento, paixão, fúria, motivação psicológica e mobilização de recursos para a formação de um gigantesco exército de cidadãos em defesa de sua pátria e suas conquistas históricas abrangendo toda a sociedade. Isso tudo conjugado com o ímpeto do comando napoleônico de buscar sempre a batalha decisiva, lutando sem trégua até os inimigos sucumbirem na fase vitoriosa da França levou à avaliação clausewitziana de que o comando napoleônico levou a guerra pioneiramente a um patamar próximo da guerra absoluta.

Como conceito teórico, a guerra absoluta se opõe a sua manifestação real, muito mais complexa e cheia de acasos na medida em que se configura uma explosão única e extrema de violência.

Certamente, compõem esse conceito de guerra não somente aquela separação entre política e moral prescrita por Maquiavel, mas também aqueles elementos fundamentais valorizados pelo secretário florentino: a disciplina, a fúria, a coragem, o ímpeto. Clausewitz elogiou explicitamente a atenção maquiaveliana com o elemento humano presente na guerra como um dado muito mais importante do que comparar ou fazer analogia dos soldados com máquinas no curso das hostilidades (CLAUSEWITZ, 1984; PARET, 1985; STRACHAN, 2008; ARON, 1986).

5 A emergência das relações internacionais como disciplina e a teorização à sombra de Maquiavel

Nesta seção, haverá uma brevíssima análise da ascendência maquiaveliana sobre os principais

formuladores rotulados como realistas, com maior ênfase na apropriação do pensamento maquiaveliano pelo britânico Martin Wight.

O surgimento das relações internacionais como disciplina acadêmica autônoma se deu em 1919, na Universidade de Gales, em Aberystwyth, no âmbito da criação da Cátedra Woodrow Wilson. A sombra de Maquiavel já se fazia presente, tendo em vista que a grande mortandade e violência da Primeira Guerra Mundial fizeram emergir um apelo gigantesco contrário à repetição de tal experiência histórica. Assim, houve no imediato pós-guerra um significativo predomínio e apelo difuso enorme em função das formulações de cunho idealista que nortearam vários discursos e práticas, tendo como grande referência, justamente, o presidente norte-americano Wilson. O empreendimento mais significativo de tudo isto foi a fundação da Liga das Nações, que se mostraria totalmente ineficiente no entre guerras e não conseguiria evitar uma nova catástrofe bélica de dimensão planetária.

No âmbito da crítica de tais formulações idealistas, destaque-se a formulação de Edward Hallet Carr, ao publicar em 1939 o livro “Vinte anos de crise: 1919-1939”. Nesta obra, com forte crítica ao idealismo então predominante, evocou, entre outros, o pensamento de Maquiavel.

Todavia, apresentou um Maquiavel consoante com o seu diagnóstico da crise que levou a novo conflito mundial. Conforme Carr, a maior dificuldade deste período residia numa política ineficiente na medida em que ela não conseguia traduzir nem por parte dos Estados, nem por parte da Liga das Nações uma política eficiente. Tal política eficiente contemplaria um equilíbrio entre o realismo e o

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utopismo, a rubrica de Carr para o idealismo. Tanto realismo como utopismo agiriam, reciprocamente, como um corretivo mútuo para evitar extremos. A própria tradição realista, com expoentes como Maquiavel, já contemplariam isto na medida em que o pensador florentino apregoava uma dose de utopia na sua defesa da unificação italiana, contrária às possibilidades históricas de sua época (CARR, 2001). Cabia ao realismo e ao utopismo não serem extremados, e sim se equilibrarem, mutuamente, na consecução de uma política eficiente. O realismo não poderia, portanto, ser congruente, estéril, pautado por um determinismo inerente, até porque o pensamento realista maquiaveliano não seria compatível com tal enquadramento também.

Finda a Segunda Guerra Mundial, o realismo se torna a vertente teórica predominante no meio acadêmico das Relações Internacionais. Surge no imediato pós-Segunda Guerra a contribuição paradigmática de Hans Morgenthau com seu livro “A Política entre as Nações”. A partir de então, o pensamento maquiaveliano se torna uma referência mais implícita nas formulações e nos debates, sem muitas menções nominais ao nosso autor.

Todavia, nos seus seis princípios que pautam o realismo político, a sombra maquiaveliana se faz presente. Destaque-se o quarto princípio, no qual Morgenthau sustenta ser necessária a separação entre a ação política de êxito em relação à moral, embora saiba do teor moral que tal ação possua. No sexto princípio, Morgenthau (2003) decreta a autonomia da política em relação às outras esferas (econômica, moral etc.) para que se tenha sucesso a busca pelo poder e a prevalência dos interesses de cada Estado.

A perspectiva de clara ascendência maquiaveliana, na qual a política seria autônoma das outras esferas sob pena de não obter a consecução dos fins, é explicitada por Morgenthau (2001):

Intelectualmente, o realista político sustenta a autonomia da esfera política, do mesmo modo como o economista, o advogado e o moralista sustentam as deles. Ele raciocina em termos de interesse definido como poder; enquanto o economista pensa em função do interesse definido como riqueza; o advogado, toma por base a conformidade da ação com as normas legais; e o moralista usa como referência a conformidade da ação com os princípios morais. O economista indaga: ‘de que modo esta política pode afetar a riqueza da sociedade, ou de um segmento dela?’ O advogado quer saber: ‘estará esta política de acordo com as normas da lei?’ Já o moralista pergunta: ‘está esta política de acordo com os princípios morais?’ E o realista político questiona: ‘de que modo pode esta política afetar o poder da nação?’ (Ou, conforme o caso em tela: do governo federal, do Congresso, do partido, da agricultura, etc.). (MORGENTHAU, 2001, p. 22-23).

Ainda no âmbito do realismo, embora com significativas diferenças teóricas que o espaço deste

texto não permite desenvolver, outro autor de enorme expressão, Raymond Aron, não faz muitas menções diretas ao secretário florentino, embora ele também esteja no registro da política em perspectiva do primado em função de interesses e objetivos. Ele é cônscio de tal perspectiva quando menciona, por exemplo, que o “[...] realismo (hoje chamado de maquiavelismo) dos diplomatas europeus passava, do outro lado do Atlântico, por típico do Velho Mundo, marcado por uma corrupção da qual se queria fugir emigrando para o Novo Mundo, para o país das possibilidades ilimitadas.” (ARON, 2002, p. 49).

Por sua vez, uma vertente teórica, conhecida por vezes como realista ou Escola Inglesa das Relações Internacionais, ou racionalista, ou ainda, escola grotiana ou neogrotiana (alusiva ao filósofo batavo Hugo Grotius) também tem uma menção explícita a Maquiavel no seu construto teórico. Porém, a vertente, inaugurada por Martin Wight, faz uma interpretação maquiaveliana que não faz jus à compreensão mais rigorosa de seu pensamento. Para demonstrar tal ideia, será necessária uma digressão que passa não somente pelo pensamento maquiaveliano, mas também por outros autores, como Hobbes, Grotius e Kant.

A tentativa de associar a Escola Inglesa ou o racionalismo com um meio-termo entre realismo e idealismo está associada, como já expus, ao jusfilósofo holandês Hugo Grotius. O realismo, por sua

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vez, é associado pelos autores dessa escola a Hobbes e Maquiavel. O idealismo, também nomeado co-mo revolucionismo, está ligado a Kant. Vejamos o meio-termo referido conforme a formulação de Wight.

Tal associação gera sérios problemas para a compatibilização de diferentes autores em um mesmo construto teórico, como se fosse “um encaixe de um quebra-cabeças”, impossível de ser efetivado. Vejamos como esse raciocínio pode ser reconstruído.

A partir da formulação de Maquiavel e Hobbes, entende-se o realismo como um conjunto de formulações em que privilegia-se na política internacional a incessante busca por poder, interesse, tendo a guerra como um elemento central em detrimento do Direito Internacional, chamado no período dos autores referidos de Direito das Gentes.

Conforme já explicitado, o construto realista vê a transformação das relações internacionais de modo pessimista, lento, quando for o caso. Muitas vezes, tal transformação não existe. Assim se coloca, por exemplo, no raciocínio de Hobbes.

Expliquemos esse raciocínio. No caso específico de Hobbes, lembremos, as relações entre os Estados estão identificadas com a natureza da guerra. Para o jusfilósofo de Malmesburry, a guerra não está ligada à concretização da violência ou de uma batalha. A relação de desconfiança, de competição, já é uma situação belicosa. A violência, na ação política, é sempre um risco, uma possibilidade. A relação entre os Estados se assemelha ao estado natural da humanidade, situação teórica descrita por Hobbes como a total inexistência do Estado, da lei e de qualquer tipo de poder, a não ser o de cada indivíduo sobre si próprio. Em tal quadro, todo indivíduo vê no seu semelhante um inimigo de guerra. Isto se liga à natureza antissocial do indivíduo, além de suas motivações essenciais para a discórdia: a competição, a desconfiança e a glória. Como desdobramento de tais teses, a inexistência de um poder soberano acima dos Estados e a constatação de que esse atributo é exclusivo dos Estados individualmente, impossibilitando a concretização do conjunto de pactos originários da instituição estatal, dá poucas perspectivas de uma eficácia a um eventual Direito Internacional4, para usar um linguajar mais recente.

No dizer de Maquiavel, conforme já dito acima, a guerra deve ser uma preocupação constante, central, objeto de preparativos intermináveis por parte de um príncipe. Não esqueçamos que a formulação central da política separada da ética e moral cristãs é um dos preceitos essenciais das formulações realistas.

No outro polo, Kant representaria a perspectiva revolucionista ou idealista. O rótulo em questão se identifica com o caráter transformador, revolucionário, que as ideias podem trazer para o plano internacional. Kant, no sentido diretamente oposto ao de Hobbes e Maquiavel, valorizaria o Direito Internacional, dentro da perspectiva específica por ele formulada de um direito cosmopolítico5, além de um direito das gentes que serviria de fundamento para um direito de hospitalidade cosmopolítico. Atravessa todo o argumento kantiano sua filosofia da história de cunho finalista, teleológico, que, gradativamente, através da mediação de vários conflitos, inclusive aqueles violentos, aponta para uma confederação de Estados soberanos e republicanos (moderados, que contemplam a separação dos poderes executivo e legislativo, evitando, assim, que se concentrem demasiadamente poderes em único grupo ou indivíduo, permitindo, assim, que os cidadãos possam participar e serem representados, contemplados quanto ao seu discernimento de evitar a guerra, uma opção que lhes é onerosa) em que vigoraria uma paz perpétua. A realidade internacional passaria, no dizer de Kant, de um quadro semelhante ao estado de natureza (muito semelhante àquele descrito por Hobbes) para uma evolução gradativa que seria coroada com o processo de pacificação referido, sem que os Estados abrissem mãos de suas prerrogativas soberanas. Por oposição às ideias realistas, a guerra seria proibida, banida, e o Direito entre os Estados seria um fato concretizado. Ainda que fique caracterizada uma oposição à guerra, um apego ao Direito, uma possibilidade de mudança evolutiva do plano internacional e um imperativo moral relacionado à política que marcam significativa diferença em relação à perspectiva realista, há traços realistas que denotam a concepção impura do idealismo do filósofo de Könisgberg. A soberania dos Estados, ponto fortemente enfatizado pelo realismo, é atributo do qual não se prescinde nem mesmo no estágio final da paz perpétua. Kant reconhece que um dos maiores obstáculos à construção de tal paz é a insociável sociabilidade do homem (que não pode

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prescindir de um senhor) e dos Estados (KANT, 1986), ponto que, em última instância, se relaciona à condição de um estado de natureza.

O meio-termo, associado a Grotius, de um ponto de vista didático poderia ser associado ao título de uma de suas obras, a saber, “O Direito da Guerra e da Paz” (2004). Se o realismo dá pouca importância ao Direito e enfatiza a guerra, e o revolucionismo, por sua vez, enfatiza o Direito e a paz, em um primeiro momento, o título da obra referida parece ser coerente com o construto que confere legalidade e legitimidade à guerra (senão todas, mas algumas) e à paz (também em circunstâncias específicas), proporcionando, assim, de modo coerente, a via media desejada por Wight.

Um primeiro problema do enfoque referido, iniciado por Martin Wight, é a maneira extremada, pura, como aborda as tradições realista e revolucionista. O enfoque de Wight ignora que todo e qualquer autor, seja ele idealista, revolucionista ou realista, possui elementos da corrente oposta. Como bem lembra Martin Griffiths, há que se considerar o estatuto epistemológico6 das três tradições e a divisão wightiana da disciplina de Relações Internacionais em três escolas de pensamento, além do fato de que fazer teoria política vai muito mais além do que classificar e comentar máximas dos estadistas e outros atores políticos (GRIFFITHS, 2004, p. 251-252). Indo mais além nesse ponto, sustento que a justaposição de três tradições de premissas, bastante incompatíveis entre si em vários aspectos, leva a um corpo teórico eclético, sem coesão, permissivo. Como explicar isso?

Existe a possibilidade de um argumento ou construto teórico compatibilizar adequadamente autores com premissas distintas entre si, desde que, em conformidade com os objetivos do argumento a ser construído, haja algumas premissas próximas, semelhantes, que permitam tal conciliação. Não encontramos no argumento dos autores da Escola Inglesa tal preocupação ou qualquer justificativa ou relação entre duas tradições teóricas distintas que possibilitem esse encaixe perfeito do quebra-cabeças. Não há, portanto, no dizer de Oliveira Filho (1995, 263-268) uma compatibilização adequada como “pluralismo metodológico”. Há, sim, um ecletismo. Expliquemos esses dois pontos, as incompatibilidades que referem à tradição realista e revolucionista como extremos lógicos e o ecletismo.

O realista é assim considerado porque é essa a sua ênfase, mas há elementos idealistas em sua formulação. Os autores que Wight cita como lapidares da tradição realista, ou seja, Maquiavel e Hobbes, podem ser assim compreendidos.

Na obra “O Príncipe”, o autor florentino destoa de suas proposições voltadas para o poder e sugere que o monarca de Florença, Lorenzo de Medici, seja o líder da unificação italiana (MAQUIAVEL, 1996, p. 123-127). Além de totalmente inviável para aquele contexto histórico7, Maquiavel tem a Roma republicana como uma espécie de modelo para a reconquista da grandeza e glória italianas, que são os valores e convicções que o orientam. Valores e convicções, como sabemos, identificam-se, predominantemente, com o idealismo. Não podemos, contudo, esquecer que Maquiavel orienta-se, ainda que também em menor medida, sem grande ênfase no seu pensamento, por formulações semelhantes, como a honra (MAQUIAVEL, 1996, p. 44).

Hobbes não pode ser visto de modo diverso. O filósofo de Malmesburry associa o poder a valores como prudência, honra, dignidade e a posturas de cunho moral, como a afabilidade (HOBBES, 1974).

Kant, por sua vez, admite o resguardo por parte de um Estado contra agressões externas por meio do exercício voluntário dos cidadãos no uso das armas (KANT, 2004, p. 34). Em seu raciocínio, a possibilidade da guerra como recurso de um Estado não é banida totalmente. Encontramos um elemento do meio-termo não contemplado por Wight. Ainda no que toca ao pensamento kantiano, o final do curso histórico por ele concebido aponta para a impossibilidade do estabelecimento de uma república mundial (KANT, 2004). Os Estados, mesmo no quadro de uma aliança ou federação mundial que preservasse a paz planetária, permaneceriam soberanos, independentes, característica bastante enfatizada pelos autores realistas, inclusive para associar o quadro semelhante ao estado natural hobbesiano de competição e desconfiança, que já é suficiente para caracterizar uma guerra.

Todos esses aspectos desaparecem das leituras de Wight sobre os autores mencionados. Uma passagem bastante elucidativa, disponibilizada por David Yost (um comentador que não esconde sua

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admiração pelo fundador da Escola Inglesa) dá notícia de que Wight tinha clareza das incongruências existentes no pensamento de Maquiavel e que, por isso, não procederiam as críticas no sentido de não fazer justiça às formulações individuais dos filósofos das tradições realista e revolucionista. Contudo, mesmo que a passagem citada pelo admirador possa eximir Wight de algumas críticas, ela também as sustenta. Wight não dá importância às incongruências mencionadas do pensador florentino: “Maquiavel foi inspirado a escrever por uma paixão estranha aos princípios de sua teoria – uma paixão que surge repentinamente no último capítulo de “O Príncipe8” (apud Yost, 2005, p. XXIII, negrito meu). A passagem é clara: tal paixão não faz parte da teoria maquiaveliana. É essa a leitura extremada de Wight pela qual perpassa seus rótulos dados às diferentes tradições, não rigorosos com os autores nos quais se baseia.

Qual a garantia de que a abordagem mediana de Grotius seja coerente com os pressupostos epistemológicos e metodológicos das outras tradições? Como contemplar uma abordagem mediana em vista da concepção kantiana reclamar um sentido finalista teleológico da história? Por sua vez, como contemplar a leitura indutivista que Maquiavel faz da história, como fica demonstrado ao longo de “O Príncipe”? Mais ainda, o que dizer da visão a-histórica de Hobbes em função de seu entendimento de uma natureza humana imutável quanto ao seu caráter interesseiro e egoísta? Como podem todos esses elementos serem contemplados numa via medíocre em que haja um equilíbrio entre raciocínios tão díspares e incompatíveis entre si? Como garantir que a especificidade grotiana seja uma espécie de matematização da metade de duas tradições teóricas cujas nuances podem sequer ser quantificadas? Qual seria o meio termo de uma abordagem contratualista kantiana e um enfoque não contratualista maquiaveliano? Qual seria o meio termo de uma abordagem a-histórica hobbesiana e uma concepção histórica finalista, teleológica kantiana? Qual seria o meio termo entre o deísmo hobbesiano e os imperativos morais kantianos? Qual seria o meio termo do método geométrico e do método resolutivo-compositivo tais como usados por Hobbes e maneira pela qual Kant se apropria do já citado modelo geométrico? Qual a média do contexto histórico específico que cerca a elaboração teórica de todos os autores arbitrariamente classificados por Wight e seus seguidores? Por que a história pode ser arbitrariamente enquadrada, independentemente de suas especificidades, em uma das três perspectivas já citadas? Quais as premissas metodológicas, axiológicas e epistemológicas que fundamentariam e proporcionariam uma costura minimamente adequada de todas as especificidades das três tradições? Qual a definição de ciência e teoria que está por trás das elaborações da Escola Inglesa? Qual a sua definição mais precisa de história, ou seja, a sua visão mais ampla – cíclica, teleológica – entre várias possibilidades?

Martin Wight e seus seguidores, dentre os quais Hedley Bull (2002), sequer colocam para si tais questões. Suas abordagens parecem lembrar, em certo sentido, os tipos puros ideais weberianos que são usados ao longo de um raciocínio histórico. Em dado momento histórico, se aproximaria de um tipo específico e, em outro, de outro tipo. Em outro período, seria uma mescla mais ou menos equânime de dois ou mais tipos puros. Os tipos puros propriamente ditos seriam extremos lógicos, com características tão exageradas e estilizadas em relação à realidade social que não seria exequível concebê-los concretamente. A passagem a seguir parece sustentar o raciocínio aqui sustentado:

O Helenismo para os gregos era uma comunidade de sangue e língua e religião e de modo de vida; mas os gregos nunca desenvolveram a teoria de uma sociedade de Estados mutuamente ligados por direitos legais e obrigações. E a experiência internacional de Roma, primeiro na consolidação da Itália, e então no mundo mediterrâneo na sua maioria, estava aquela do conquistador, aliado agressivo e patrão de clientes – nunca de intercurso igual entre Estados... Tal pensamento como os antigos deram à ética internacional encontraram um pequeno meio-termo entre a honra pessoal dos estadistas de um lado, e no outro, a justificativa do que deveríamos descrever como ação humana nos níveis da conveniência pura...Talvez seja uma característica da Europa moderna e medieval que, em contraste com a civilização clássica, ela cultivou esse meio-termo, e desenvolveu a concepção de uma moralidade

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política distinta igualmente da moralidade pessoal e da Realpolitik. (apud YOST, 2005, p. XXXIII)9.

Um “Grotius grego” é um anacronismo que sugere que a tradição do filósofo batavo seja um

extremo, ou um conceito lógico que pode passear na história para encontrar algum autor ou formulação que seja próximo a um tipo puro ideal que oriente a perspectiva racionalista. Tal interpretação sugere que não exista na Antiguidade nenhuma formulação que contemple valores, convicções moralidade ou qualquer tipo de noção que sugira a inclinação às características da tradição idealista. Mencionando algo que soa muito curioso, é possível perceber que a obra “O Direito da Guerra e da Paz”, de Grotius, esteja repleta de citações referentes a autores da Grécia e Roma antigas, provavelmente os mais mencionados pelo jurisconsulto holandês.

Isso posto, penso que vale a pena desenvolver, explicar algumas das críticas formuladas – que são apenas enumeradas, mas não aprofundadas no argumento – por Fred Hallliday (1999) à Escola Inglesa. Vejamos.

1) Wight e Bull passeiam pela história sem nenhum cuidado. Príncipes, reis, governantes, generais são mencionados ao tratar sobre diferentes períodos. Por outras palavras, Wight desconsidera as forças sociais envolvidas no contexto histórico, as classes sociais e suas frações, subdivisões internas. Ao mencionar de modo pouco cuidadoso diferentes períodos históricos para ilustrar certo raciocínio ou conceito, o fazem de modo absolutamente superficial, sem atentar para a especificidade histórica de cada um dos momentos mencionados;

2) Usam um conceito de filosofia datado, transistórico. Tudo na história seria organizado em torno de três tradições teóricas sem que se atentasse para a diferença de cada período e se o mesmo se adéqua às três tradições, ou uma delas, em especial, com muito cuidado e rigor.

6 Considerações finais A tônica da presente contribuição foi mostrar diferentes apropriações e recepções do

pensamento maquiaveliano no âmbito militar e da teorização mais recente em Relações Internacionais em termos de um esboço inicial. Tal investigação demandaria um aprofundamento ainda maior para buscar traçar ao menos um impacto mais condizente com a enorme repercussão nestes campos do pensamento maquiaveliano.

Ainda que Maquiavel seja passível de enquadramento como um realista político, foi demonstrado, por várias vias argumentativas, o quão problemático isto pode ser. Nenhum rótulo explica um autor adequadamente e, certamente, este é também o caso de Maquiavel.

Caberiam outras reflexões no âmbito do realismo político de Maquiavel explorado por outras interpretações que buscaram seu contexto histórico e sua reinterpretação em contexto de historicizar suas teses. A leitura de Antonio Gramsci (1975) certamente seria uma indicação nesta direção, ainda que sua totalidade teórico-prática não tenha deixado uma obra com escrita sistemática voltada para o temário internacional. Mas, em outra oportunidade, será possível explorar tal vínculo. Coloca-se tal projeto para um texto e investigação futura.

Notas

1 Professor de Teoria das Relações Internacionais I e II da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), Campus de Marília (SP); Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unesp, Campus de Marília; Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Unicamp; Coordenador e Pesquisador do Grupo “Marxismo e Pensamento Político” do Centro de Estudos Marxistas (CEMARX) da Unicamp. Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Endereço eletrônico: [email protected], Endereço para correspondência do autor: Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp - Av. Hygino Muzzi Filho, 737 – Departamento de Ciências Políticas e Econômicas – sala 55 - Mirante – Marília (SP) – 17525900.

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2 Doravante, todos os trechos originais citados a partir do inglês terão minha tradução e serão reproduzidos em nota de ro-dapé. O trecho original de Femia é o seguinte: “to treat the great texts as vehicles for the exercise of his own preoccupations - so long as this does not result in outright distortion or disregard for historical ‘conditions and exigencies’”. 3 O trecho no original: “Machiavelli’s Art of War was a successful book: in the course of the sixteenth century twenty-one editions appeared and it was translated into French, English, German and Latin. Montaigne named Machiavelli next to Cae-sar, Polybius, and Commynes as an authority on military affairs. Although in the seventeenth century changing military methods brought other writers to the fore, Machiavelli was still frequently quoted. In the eighteenth century, the Marshal de Saxe leaned heavily on him when he composed his Reveries upon tne Art of War (1757), and Algarotti – though without much basis – saw in Machiavelli the master who had taught Frederick the Great the tatics by which he astounded Europe. Like most people concerned with military matters, Jefferson had Machiavelli’s Art of War in his library, and when the War of 1812 increased American interest in problems of war, The Art of War was brought out in a special American edition. This continued interest in Machiavelli as a military thinker was not only caused by the fame of his name; some of the rec-ommendations made in the Art of War – those on training, discipline, and classification, for instance – gained increasing prac-tical importance in early modern Europe when armies came to be composed of professionals coming from the most differ-ent social strata. This does not mean that the progress of military art in the sixteenth century – in drilling, in dividing an army into distinct units, in planning and organizing campaigns – was due to the influence of Machiavelli. Instead, the mili-tary innovators of the time were pleased to find a work in which aspects of their practice were explained and justified. Moreover, in the sixteenth century, with its wide knowledge of ancient literature and its deep respect for classical wisdom, it was commonly held that the Romans owed their military triumphs to their emphasis on discipline and training. Machiavelli’s attempt to present Roman military organization as the model for the armies of his time was therefore not regarded as ex-travagant.. At the end of sixteenth century, for instance, Justus Lipsius, in his influential writings on military affairs, also ttreated the Roman Military order as a permanently valid model”. 4 Lembremos que Hobbes escreve a obra que contem tal reflexão, “Leviatã”, em 1651. Momento, portanto, que marca, por-tanto, historicamente, o início da instituição estatal moderna e do Direito Internacional. 5 Livre, portanto, de uma identidade ligada a um Estado específico e tendo como referência todos os Estados na perspectiva de seus interesses comuns ligados à paz. 6 Que refere ao tipo ou natureza de conhecimento ou teoria de um autor. 7 Para uma avaliação bastante arguta sobre os equívocos e formulações fora do contexto histórico de Maquiavel, recomenda-se a leitura do capítulo sobre a Itália de Linhagens do Estado Absolutista, de Perry Anderson (ANDERSON, 1995, pp. 143-72). 8 No texto original em inglês, encontramos: “Machiavelli was inspired to write by a passion foreign to the principles of his theory – a passion which breaks out in the last chapter of The Prince”. 9 O trecho original: “Hellas for the Greeks was a community of blood and language and religion and way of life; but the Greeks never developed the theory of a society of states mutually bound by legal rights and obligations. There was no Greek Grotius. And the international experience of Rome, first in the consolidating of Italy, and then in the Mediterranean world at large, war that of the conqueror, agressive ally and patron of clients – never of equal intercourse between states... Such thought as the ancients gave to international ethics found little middle ground between the statesman’s personal honour on the one side, and on the other, the justification of what we should describe as humane action on grounds of pure expedien-cy...Perhaps it is a characteristic of medieval and modern Europe that, in contrast to classical civilization, it has cultivated this middle ground, and developed the conception of a political morality distinct equally from personal morality and from Realpolitik”.

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Maquiavel e as relações internacionais nos

“Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio”1

Rafael Salatini2

Resumo: O texto apresenta um estudo analítico do tema das relações internacionais na obra “Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio” de Maquiavel, destacando os temas da guerra e da paz, especialmente no livro II.

Palavras-chave: Maquiavel; Relações internacionais; República; Guerra; Paz.

Abstract: This paper presents an analytical study of the issue of international relations in the work Machiavelli’s Discourses on the first decade of Livy, highlighting the themes of war and peace, especially in book II.

Keywords: Machiavelli; Republic; War; Peace.

Concernentemente ao pensamento político de Nicolau Maquiavel, abordei alhures o tema das relações internacionais em O príncipe (escrito em 1513 e publicado em 1531), de modo que pretendo analisar aqui o mesmo tema nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio (escritos entre 1513 e 1517 e publicados em 1531), com a ressalva de que aquela obra abordava o tema sob o ponto de vista dos principados, concernentemente à questão da relação entre o príncipe e outros Estados, enquanto esta última versa sob o ponto de vista das repúblicas, concernentemente à questão da relação entre as repúblicas e outros Estados, as duas formas de governo nas quais Maquiavel divide, essencialmente, todos os Estados, e que servem de tema central para suas duas grandes obras de teoria política.

Do ponto de vista formal, enquanto O príncipe consiste num pequeno tratado com 26 capítulos curtos, os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio consistem num longo discurso dividido internamente em três livros de grande extensão, com 142 capítulos ao todo. O primeiro livro (com 60 capítulos) é dedicado ao tema da república romana do ponto de vista interno, afirmando-se que, “visto que as coisas realizadas por ela [a república romana] e celebradas por Tito Lívio ocorreram por deliberação pública ou privada, dentro ou fora da cidade, começarei discorrendo sobre as coisas que, ocorridas dentro da cidade e por deliberação pública, me pareçam dignas de maior atenção, acrescentando tudo o que delas decorria” (I, 1). O segundo livro (com 33 capítulos) é dedicado à expansão imperial romana, e, portanto, ao tema da república do ponto de vista externo, afirmando-se que, “depois de falarmos, no livro anterior, das deliberações tomadas pelos romanos no que se refere à vida interna da cidade, neste falaremos de suas deliberações referentes ao aumento de seu império” (II, introdução). E, por fim, o terceiro livro (com 49 capítulos) é dedicado às relações entre o Estado e os indivíduos, afirmando-se que, “para demonstrar como as ações dos homens, individualmente, engrandeceram Roma e produziram naquela cidade muitos bons efeitos, passarei à narração e à consideração desses fatos, com o que se concluirão este terceiro livro e a última parte desta primeira Década” (III, 1).

Do ponto de vista substantivo, os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio se inserem na clássica tradição das obras que contam e comentam a história política de Roma, cujo modelo remonta às obras de Políbio, Tito Lívio e Tácito, autores nos quais Maquiavel se inspira e se fundamenta, e alcança de certa maneira desde uma obra medieval como A cidade de Deus contra os pagãos (413-426) de Santo Agostinho até uma obra moderna como as Considerações sobre a grandeza e a decadência dos romanos (1734) de Montesquieu e cuja influência, de resto, pode ser medida em praticamente todos os

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pensadores fortemente inspirados pela história política romana (como Vico, Rousseau e Hegel). Ademais, nunca será inútil repetir o quanto Maquiavel se inspiraria na estratégia romana como núcleo de todo seu pensamento político, minuciosamente repetida, a partir da leitura das obras (além do grego Xenofonte) dos estrategistas romanos antigos como Vegécio e Frontino, em A arte da guerra (escrita entre 1519 e 1520 e publicada em 1521), única obra política que chegaria a publicar em vida.

Com relação ao tema das relações internacionais, assim como havia escrito em O príncipe que “um príncipe deve ter dois receios: um interno, por conta de seus súditos, e outro externo, por conta dos potentados estrangeiros” (XIX), Maquiavel reconhece, no primeiro trecho citado acima, que a vida política da república romana pode ser dividida não apenas nas questões de deliberação “pública” (tema do livro I) ou “privada” (tema do livro III), mas igualmente nas questões ocorridas “dentro” (tema dos livros I e III) ou “fora” da cidade (tema do livro II), repetindo, no segundo trecho, a mesma distinção com relação à “vida interna da cidade” e as “deliberações referentes ao aumento de seu império”. No primeiro caso, trata-se, respectivamente, da diferença entre as relações do tipo república-cidadãos (questão pública) e as relações cidadão-cidadão (questão privada); no segundo, da diferença entre as relações república-cidadãos (questão interna) e as relações república-repúblicas ou república-principados (questão externa).

Tais distinções são importantíssimas, entre outros, por dois motivos: em primeiro lugar, com elas Maquiavel traçará fundamentalmente as linhas temáticas desenvolvidas nos três livros dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio; e, em segundo lugar, especialmente partindo da distinção entre questão interna e questão externa, Maquiavel abordará distintamente dois dos temas mais importantes do pensamento político de todos os tempos: internamente, a relação entre opressão-liberdade, e, externamente, a relação entre guerra-paz (questão externa).

Muitos trabalhos já analisaram o tema da república em Maquiavel sob o ponto de vista da política interna (relação opressão-liberdade), especialmente tratado no livro I dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, mas raros são os trabalhos que dedicaram a mesma atenção ao tema sob o ponto de vista da política externa (relação guerra-paz), especialmente tratado no livro II (e o mesmo poderia ser dito dos temas tratados no livro III).

Tomando-se os dois primeiros livros, no livro I, que trata da política interna, Maquiavel relata o nascimento e a instituição da forma de governo republicana em Roma, baseado centralmente no tema da liberdade; enquanto, no livro II, que trata da política externa, relatará a expansão do império romano, baseado centralmente no tema da guerra. Substantivamente, o primeiro livro apresenta uma ampla apologia da liberdade, baseada no princípio segundo o qual libertas est quaerenda [a liberdade deve ser buscada], enquanto o segundo livro apresenta uma ampla apologia da guerra, baseada no princípio segundo o qual bellum est quaerenda [a guerra deve ser buscada]. Ambas, liberdade (internamente) e guerra (externamente), foram importantes para o engrandecimento político romano. Tanto que Maquiavel inicia seus discursos com as seguintes palavras: “Quem quiser que uma cidade forme um grande império, deverá empenhar-se para enchê-la de habitantes; porque, sem essa abundância de homens, nunca conseguirá tornar grande uma cidade. Isso é feito de dois modos: pelo amor e pela força. Pelo amor, mantendo abertos e seguros os caminhos para os estrangeiros que pretendam morar na cidade, para que nela morem os que o desejarem; pela força, destruindo as cidades vizinhas e mandando seus habitantes morar na tua cidade. E isso foi tão observado por Roma, que, no tempo do sexto rei, ali moravam oitenta mil homens capazes de portar armas” (II, 3).

Maquiavel considera que a expansão romana, feito grandioso e único da antiguidade clássica, está fortemente relacionada com a sua ordenação interna (motivo porque somente a discute depois de haver discutido extensamente aquela questão): sem a manutenção interna da liberdade, garantida pela instituição da república, Roma não teria se tornado, externamente, um grande império. Justamente, um dos aspectos mais importantes da liberdade romana era a liberdade concedida, pelo ius gentium [direito dos gentios], aos estrangeiros. Comparando a república romana com os exemplos gregos de Esparta e Atenas, as duas mais importantes cidades helênicas, que, todavia, pouco ou nenhum direito concediam aos estrangeiros, Maquiavel percebe que, “embora – como escreve mais à frente – fossem duas repúblicas muito bem armadas e ordenadas com ótimas leis, não chegaram à grandeza do Império

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Romano”, enquanto Roma, ainda que fosse “mais tumultuada e não tão bem ordenada como aquelas” (II, 3), transformar-se-ia de uma pequena república num grande império (mesma opinião que será apresentada por Bacon, grande leitor de Maquiavel, em seus Ensaios, publicados em 1597 [1ª ed.] e 1625 [2ª ed.]).

Nesse princípio inovador do direito romano (que será repetido por Kant, como ius cosmopoliticum [direito cosmopolita], ainda no século XVIII) será baseado o segredo da expansão romana, pois “quem quiser – escreve – que uma cidade forme um grande império, deverá empenhar-se para enchê-la de habitantes”, uma vez que “sem essa abundância de homens, nunca conseguirá tornar grande uma cidade”. Embora as cidades gregas houvessem desenvolvido alguns instrumentos internacionais importantes, como a συμμχία [federação], em nenhum momento suas instituições políticas internas reconheceram a relevância de conceder o status de cidadania aos estrangeiros, sobretudo àqueles que não possuíam origem helênica, considerados não apenas como ξένος [estrangeiros], mas como βάρβαρος [bárbaros]. Como resultado dessa cultura xenófoba, o limite populacional das cidades helênicas não permitiu que fossem capazes de enfrentar, por falta de braços armados, nem o império macedônio nem o império romano.

Todavia, segundo Maquiavel, há duas formas de reunir cidadãos estrangeiros para o império: pelo amor e pela força. A primeira forma se faz “mantendo abertos e seguros os caminhos para os estrangeiros que pretendam morar na cidade, para que nela morem os que o desejarem”; a segunda, “destruindo as cidades vizinhas e mandando seus habitantes morar na tua cidade”. Percebe-se que o ius gentium [direito dos gentios] não era utilizado apenas no que se refere às cidades amigas, ‘pelo amor’, mas também concernentemente às cidades inimigas, ‘pela força’. Em ambos os casos, procedentes de cidades amigas ou inimigas, Roma permitia que os cidadãos estrangeiros, submetidos externamente à vontade romana, vivessem livremente em seu seio, garantindo que, passando do tema da liberdade para a guerra, “no tempo do sexto rei [romano], ali moravam oitenta mil homens capazes de portar armas”, esclarecendo a importância do aumento do contingente populacional romano. Em outras palavras, em virtude de sua política aberta aos estrangeiros, Roma conseguiria formar o maior exército da antiguidade, composto exclusivamente por seus próprios cidadãos (legítimos ou não), conforme afirma Maquiavel, num trecho do “Discurso sobre nossa língua” (1525):

“Os romanos em seus exércitos não tinham mais do que duas legiões de romanos, as quais eram cerca de doze mil pessoas, ao passo que havia vinte mil de outras nações. No entanto, como essas legiões eram, com seus chefes, o nervo do exército e porque militavam todos sob a ordem e disciplina romana, esses exércitos eram mantidos sob o nome, a autoridade e dignidade romanas”.

Dessa forma, argumentará Maquiavel, a primeira questão com que uma república se depara, externamente, quando decide se expandir frente a outros povos consiste (ainda sob o ponto de vista da relação entre liberdade e guerra) no que denomina de “qualidade dos povos”. Num capítulo dedicado ao tema dos povos que os romanos enfrentaram em sua época, Maquiavel escreve:

Nada deu mais trabalho aos romanos, no seu triunfo sobre os povos vizinhos e em parte das províncias distantes, do que o amor que naqueles tempos muitos povos tinham pela liberdade, e estes a defendiam com tanta obstinação que jamais seriam subjugados, senão por excepcional virtù. Porque muitos exemplos mostram os perigos a que se expuseram para mantê-la ou recuperá-la, que vinganças levaram a cabo contra aqueles que os privaram da liberdade. Ensinam-nos também as histórias quais os danos sofridos pelos povos e pelas cidades em razão da servidão. E, enquanto em nosso tempo existe apenas uma província em que se possa dizer que há cidades livres [referindo-se à Alemanha], nos tempos antigos todas as províncias tinham povos totalmente livres. (MAQUIAVEL, II, 2).

Como disse, o tema da liberdade é central no pensamento político republicano de Maquiavel,

tanto interna quanto externamente. Internamente, o tema da liberdade consiste propriamente no fundamento da forma de governo republicana; externamente, consiste na qualidade dos povos que uma república, ao expandir-se, deverá enfrentar. Atenta Maquiavel para o fato de que, por conta de sua

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expansão imperial, os romanos tiveram de vencer “o amor que naqueles tempos muitos povos tinham pela liberdade”, defendida pelos mesmos “com tanta obstinação que jamais seriam subjugados, senão por excepcional virtù”, como aquela demonstrada pelos romanos.

Todavia, para Maquiavel, não se pode analisar o tema da liberdade antiga, em oposição à servidão, sem analisar, concomitantemente, o tema da religião antiga, em oposição à religião cristã, pois,

pensando, portanto, – escreve mais adiante – nas razões de, naqueles tempos antigos, os povos serem mais amantes da liberdade do que nestes, concluo que isso se deve à mesma razão que torna os homens menos fortes agora, qual seja, a diversidade que há entre a nossa educação e a antiga, fundada na diversidade que há entre a nossa religião [cristã] e a antiga” (MAQUIAVEL, II, 2).

A diferença entre ambas reside no fato de que “a nossa religião [cristã], por mostrar a verdade e

o verdadeiro caminho, leva-nos a estimar menos as honras mundanas”, enquanto “os gentios, que as estimavam muito e viam nelas [nas honras mundanas] o sumo bem, eram mais ferozes em suas ações”. “A religião antiga – continua –, além disso, só beatificava homens que se cobrissem de glória mundana, tais como os comandantes de exércitos e os príncipes de repúblicas”, enquanto “a nossa religião tem glorificado os homens mais humildes e contemplativos do que os ativos” (II, 2).

Em diversas oportunidades, Maquiavel afirma (argumento que seria repetido futuramente também por Rousseau) que o apego dos povos antigos à liberdade estava fortemente relacionado à religião antiga, que exaltava a virtù (a força, a violência, o ímpeto, a coragem, a bravura, etc.), cobrindo de honras aqueles indivíduos que se destacavam pela detenção desse atributo, enquanto a religião cristã se destaca, opostamente, por exaltar as virtudes cristãs (a bondade, a paciência, o sofrimento, a resignação, a piedade, etc.), considerando dignos de honra os indivíduos que destacam, inversamente, por levar uma vida santa. Para Maquiavel, a religião organizada em Roma por Numa Pompílio (segundo a lenda), entendida, não como ius divinum [direito divino], mas como instrumentum regni [instrumento de governo], permitiu ao povo romano desenvolver sua “excepcional virtù”, pois “foi – escreve – a virtù dos exércitos que lhe permitiu conquistar o império, e foram o seu modo de proceder e o modo como ela própria era constituída, estabelecido pelo seu primeiro legislador, que lhe permitiram conservar o que fora conquistado” (II, 1).

No que se refere à Itália, Maquiavel não se cansa de apontar a distância entre o passado romano e o presente cristão, pois que, “naquele tempo – escreve – de que ora falamos, em toda a Itália, desde os Alpes que agora separam a Toscana da Lombardia, até a ponta da Itália, todos os povos eram livres, assim como o eram os toscanos, os romanos, os samnitas e muitos outros que habitavam no restante da Itália” (II, 2), enquanto, modernamente, a Itália se encontra (em sua época) “mais escrava que os hebreus, mais serva que os persas, mais dispersa que os atenienses, sem chefe, sem ordem, derrotada, espoliada, dilacerada, devastada, e tivesse suportado todo tipo de ruína” (O príncipe, XXVI). Em outras palavras, enquanto os romanos resplandeciam, na antiguidade, como o mais livre dos povos, os italianos, modernamente, haviam se reduzido ao mais servil. Não por outro motivo, Maquiavel não economizará suas palavras para criticar, de um lado, a influência cristã na cultura italiana, e, de outro, a falta de virtù dos príncipes italianos modernos (dois temas que aparecem vividamente no opúsculo de 1513). No primeiro caso, a Igreja católica será considerada a grande responsável pela falta de unidade do Estado italiano, fragmentado em diversas províncias politicamente frágeis (realidade que subsistirá até tardiamente); no segundo caso, os modernos príncipes italianos serão considerados responsáveis pela má administração dessas províncias (como é o caso de Florença).

Mencionado o tema da liberdade (ainda que apenas introdutoriamente), passemos ao tema da expansão imperial. Segundo Maquiavel, há três modos pelos quais uma república pode se expandir. O primeiro, que podemos chamar de confederativo, é descrito da seguinte forma: “Um [modo] foi o observado pelos toscanos antigos, e consistia em formar uma liga de várias repúblicas, em que nenhuma se impunha à outra em autoridade nem em importância, e, nas conquistas, tornar aliadas as outras cidades, de modo semelhante ao que fazem os suíços em nosso tempo e ao que fizeram, na

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Grécia, os aqueus e os etólios nos tempos antigos” (II, 4). O segundo, baseado em alianças, recebe a seguinte descrição: “O outro modo é fazer aliados, mas não a tal ponto que não te sobrem o título de comando, a sede do império e a prerrogativa das empresas: foi esse o modo como os romanos procederam” (II, 4). E, um terceiro modo, que chamarei de puramente belicista, foi descrito nos seguintes termos: “O terceiro modo é criar, imediatamente, súditos, e não aliados; foi o que fizeram os espartanos e os atenienses” (II, 4).

O primeiro modo, confederativo, cujo exemplo apresentado é, entre outros, o dos antigos toscanos e dos modernos suíços, consiste no emprego predominante das relações de paz; enquanto o terceiro modo, puramente belicista, cujos exemplos mencionados se referem às Atenas e Esparta antigas, consiste no emprego predominante das relações de guerra. O segundo modo, seguido pelos romanos, inclui a trabalhosa questão das alianças (discutidas no capítulo XXI de O príncipe e no capítulo 11 do livro II dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio), que redundam na avaliação das circunstâncias em que bellum est quaerenda [a guerra deve ser buscada] ou pax est quaerenda [a paz deve ser buscada].

Embora para Maquiavel as guerras sejam inevitáveis – segundo afirmara que “[os romanos] sabiam que as guerras não se evitam, mas se adiam em vantagem de outros” (O príncipe, III) –, nenhuma república sobreviverá estando em guerra simultaneamente com todos os outros povos (terceiro caso), assim como não sobreviverá esperando acordar a paz simultaneamente com todos os povos (primeiro caso). O defeito da primeira forma – que será aquela proposta futuramente por Rousseau e Kant – consiste em seu fundamento idealista, ou seja, em sua inadequação àquilo que Maquiavel denomina de verità effetualle delle cose [verdade efetiva das coisas]; enquanto o defeito da terceira forma, considerada “de todo inútil”, consiste em “conquistar um domínio que não pode manter” (II, 4), ou seja, na má avaliação do próprio poder. No primeiro caso, da confederação, ignora-se que as guerras são inevitáveis e busca-se a paz mesmo quando pax est vitanda [a paz deve ser evitada]; enquanto no terceiro, do belicismo puro, ignora-se que “encarregar-se de governar com violência, máxime cidades acostumadas a viver livres, é coisa difícil e trabalhosa” e busca-se a guerra mesmo quando bellum est vitanda [a guerra deve ser evitada]. A primeira forma peca por excesso de paz (subvaloração da inevitabilidade das guerras); a terceira, por excesso de guerra (sobrevaloração da inevitabilidade das guerras).

O segundo caso, das alianças, seguido pelos romanos, consiste numa estratégia que concilia dois princípios opostos, um de caráter bélico, outro de caráter pacífico: primeiro, belicamente, “se não estiveres armado, e com grandes exércitos, não conseguirás comandá-las [as cidades atacadas] nem governá-las”; segundo, pacificamente, “precisarás de aliados que te ajudem e aumentar a população da tua cidade”. Em suma, quando bellum est quaerenda [a guerra deve ser buscada], deve-se recorrer ao expediente das armas; quando pax est quaerenda [a paz deve ser buscada], deve-se recorrer ao expediente das alianças. Quem olhar atentamente para a antiguidade verá, segundo Maquiavel, que apenas “Roma, que é exemplo do segundo modo de proceder, fez as duas coisas, alcançando assim excepcional poder” (II, 4). Aqueles Estados que, por outro lado, se dedicaram a uma política internacional baseada unicamente na paz ou unicamente na guerra (em termos contemporâneos, unicamente na estratégia ou unicamente na diplomacia) falharam em sua expansão.

Todavia, não se pode dizer que Maquiavel dedica igual espaço ao tema da paz e da guerra em seus escritos políticos: tanto em O príncipe quanto nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, assim como em suas demais obras políticas, o tema internacional por excelência será a guerra, e não a paz. Para Maquiavel, a guerra será o principal instrumento internacional de virtù, enquanto a paz honrará apenas aqueles que seguem as virtudes cristãs. Por sua excepcional preparação para a guerra, embora não deixassem de fazer alianças (isto é, acordos de paz), quando necessário, os romanos dominarão, na antiguidade, todos os povos ao seu redor, ao passo que na preparação unicamente para a paz se reconhecerá a debilidade externa dos povos cristãos.

Não por outro motivo, praticamente todo o livro II dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio será dominado não pelo tema da paz (ou das alianças), mas pelo tema das guerras romanas, que Maquiavel apresenta com os seguintes termos: “Depois de discorrer sobre como os romanos procediam para ampliar seus domínios, discorreremos agora sobre como procediam na guerra; e em

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todas as suas ações veremos com quanta prudência eles se distinguiram do modo seguido por todos os outros, para abrir caminhos e chegar à suprema grandeza. A intenção de quem trava guerra por escolha, ou seja, por ambição, é conquistar e conservar o que foi conquistado; e, para tanto, procede de tal modo que enriqueça, e não empobreça, sua terra, sua pátria. Logo, tanto para conquistar quanto para conservar, é necessário não gastar; aliás, fazer tudo para utilidade do tesouro público” (II, 6).

O mote preferido por Maquiavel, com relação às guerras romanas, é aquele que descreve “com quanta prudência eles se distinguiram do modo seguido por todos os outros [povos], para abrir caminhos e chegar à suprema grandeza”, ou seja, a relação entre a virtù romana e a grandeza que conquistaram, não apenas interna, mas sobretudo externamente. Como os romanos travavam guerra “por escolha” e não por obrigação (isto é, guerras ofensivas e não guerras defensivas), seu objetivo era “conquistar e conservar o que foi conquistado”, com vistas ao enriquecimento de sua terra e sua pátria, frente ao empobrecimento de outros povos, e não a vitória pura e simples. Em inúmeras passagens dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, Maquiavel descreverá a estreita relação entre guerra e riqueza, enfatizando que, segundo um dos mais importantes ensinamentos que se pode aprender com as guerras romanas, o ouro consiste num dos fins da guerra e não em seu meio, ou seja, deve-se ir à guerra em busca de ouro e não empregar o ouro para ir à guerra.

No primeiro caso, a república pode entrar rica numa guerra e, em perdendo, sair empobrecida, servindo sua própria riqueza como incentivo para a vitória de seus inimigos, enquanto, no segundo caso, uma república pobre pode entrar numa guerra com o intuito deliberado de, vencendo, enriquecer com os despojos do inimigo. Para os romanos, as guerras deveriam servir apenas para o enriquecimento do império, não havendo interesse nem mesmo naquelas guerras em que se vence sem se aumentar o erário imperial. Maquiavel divisa, destarte, duas estratégias adotadas pelos romanos, tomando por marco divisório o evento do assédio de Veios [disputa entre os romanos e os etruscos] (que também seria lembrado por Rousseau no verbete “Economia política”, que escrevera para a Enciclopédia em 1755).

Primeiro, antes desse evento, os romanos preferiam empreender “guerras curtas e grossas” (como farão os franceses, dos quais Maquiavel afirmará em O príncipe que, entendiam de guerra, mas não de Estado), utilizando muitos soldados para conquistar a vitória no prazo de alguns dias: “se observarmos – escreve – todas as [guerras] que [os romanos] travaram desde os primórdios de Roma até o assédio de Veios, veremos que todas foram resolvidas em seis, dez ou vinte dias” (II, 6). Conquistando, dessa maneira, vitórias rápidas e devastadoras, os romanos obrigavam seus inimigos, “para não terem suas terras inteiramente devastadas”, a entrar em negociações vantajosas para os primeiros e desvantajosas para os segundos, impondo como pena aos derrotados a “entrega de territórios”, que eram, então, ou convertidos em possessões privadas, aumentando a riqueza romana, ou destinados a alguma colônia, aumentando o prestígio romano. Com esse tipo de vitória, os romanos “iam aos poucos conquistando reputação entre os inimigos e força entre seu próprio povo” (II, 6).

Segundo, depois do assédio de Veios, os romanos mudaram sua estratégia militar, adotando um procedimento diverso: “para poderem prolongar a guerra, determinaram que pagariam soldados, que antes não precisavam pagar, por serem curtas as guerras” (II, 6). Essa mudança, necessária para se conseguir travar guerras em localidades cada vez mais distantes da capital imperial, implicava em alterações diversas na forma de organizar a atividade bélica (embora, por diversas razões, que vão do “costume natural” à “ambição dos cônsules”, a determinação de fazer colônias e, quando possível, fazer guerras curtas, em nenhum momento tenha se perdido), entre as quais Maquiavel descreve as seguintes: antes não se precisava pagar soldo aos soldados, depois tornou-se necessário; antes as campanhas eram mais curtas, depois passavam a ser mais prolongadas; antes havia uma distribuição maior das presas de guerra, depois não mais; as próprias presas de guerras tornaram-se mais untuosas; e, por fim, aumentando a arrecadação do erário público deixou de ser necessário recorrer aos tributos internos para a provisão dos gastos externos. O resultado não poderia ser outro para o império romano: “tal ordenação, em pouco tempo, tornou riquíssimo o seu erário”, enquanto “os outros príncipes e repúblicas não-sábios empobreciam” (II, 6).

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Continuando, Maquiavel reconhece dois tipos de guerra. O primeiro tipo recebe a seguinte descrição: “Uma é travada por ambição de príncipes ou repúblicas, que procuram propagar seu império; tais foram as guerras travadas por Alexandre Magno e pelos romanos, bem como as que são travadas todos os dias entre uma potência e outra. Tais guerras são perigosas, mas não expulsam todos os habitantes de um lugar, pois o vencedor se satisfaz com a obediência dos povos, deixando-os, no mais das vezes, viver com suas leis e sempre com suas casas e seus bens” (II, 8). O segundo tipo é descrito com as seguintes palavras: “O outro tipo de guerra é aquela em que um povo inteiro, com todas as suas famílias, sai de um lugar, pela necessidade da fome ou da guerra, e vai procurar nova sede e novas terras, não para governá-las, como no caso acima, mas para apoderar-se de tudo, expulsando ou matando seus antigos habitantes. Essas guerras são muito cruéis e pavorosas” (II, 8).

Podemos chamar (utilizando dois termos freundianos) as primeiras de guerras polêmicas e as segundas, de guerras agonísticas (as quais os romanos enfrentaram em três ocasiões, vencendo sempre, duas vezes contra os gauleses [franceses] e uma vez contra os alemães e címbrios). No primeiro caso, “um príncipe ou uma república que ataca uma região contenta-se em matar apenas aqueles que a comandam”, pois seu único objetivo é “estabelecer quem devia mandar”, enquanto, no segundo caso, “a estas últimas populações cumpre matar a todos, porque querem viver daquilo de que os outros viviam”, pois “com estes ele [o povo romano] sempre combateu pela salvação de cada um” (II, 8). A importância dessa distinção é desmedida para compreender a história do império romano, uma vez que, enquanto as guerras do primeiro tipo descrevem as diversas etapas da expansão romana, as guerras do segundo tipo – historicamente chamadas de invasões bárbaras – descreverão as diversas etapas da decadência desse mesmo império. No primeiro caso, reconhecemos a ascensão do império romano; no segundo, seu ocaso.

Se adotarmos a linguagem da filosofia da história viquiana, poderíamos chamar, concernentemente à história do império romano, o período das guerras polêmicas de corso [curso], ao passo que o período das guerras agonísticas se referiria ao ricorso [recurso]. Sob um ponto de vista, a história caminha progressivamente; sob outro, regressivamente. O próprio Maquiavel não deixará de asseverar, no mesmo capítulo, essa fatalidade, com as seguintes palavras: “E não era pouca a virtù necessária para vencê-las [as guerras do segundo tipo], porque, como se viu depois, quando faltou virtù aos romanos, e aquelas armas perderam o antigo valor, seu império foi destruído por semelhantes povos: godos, vândalos e outros tantos, que ocuparam todo o Império do Ocidente”.

Mas, como o livro II dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio é dedicado não ao tema do declínio do império romano, mas à sua expansão, pouca atenção, para além dessas parcas palavras, será dedicada às guerras do segundo tipo, que representam a perda da virtù romana (momento negativo de sua história), em comparação o tema das guerras do primeiro tipo, que representam a crescente virtù romana (momento positivo de sua história). Depois de Maquiavel, importantes pensadores políticos insistiriam na importância de analisar não apenas a ascensão romana, mas igualmente seu declínio (não apenas o momento positivo, mas igualmente seu momento negativo), entre os quais Vico, Montesquieu e Gibbon. Não se cogita, contudo, que Maquiavel desconhecesse o fato de que a história política dos povos possui não apenas momentos de ascensão e expansão, mas igualmente momentos de declínio e retraimento, se lembrarmos que a concepção de história maquiaveliana é a mesma (cíclica) exposta por Políbio e defendida explicitamente quando da análise das formas de governo no capítulo 3 do livro I dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio.

Uma forma alternativa de explicar por que Maquiavel preferira centrar sua análise nos elementos que expõem a virtù romana e não nos elementos que expõem as razões porque o império romano seria sucedido por uma completa desagregação política, econômica e cultural pode ser procurada no fato de que o pensador florentino pretendia apresentar não uma completa filosofia da história, ou mesmo uma completa história de Roma, em seus discursos (que se centram apenas na “primeira década” da obra de Tito Lívio), mas exclusivamente os motivos que levaram à ascensão e expansão desse povo. Isso porque, em sua época, as lições negativas da história italiana eram vívidas para todos, enquanto quem procurasse pelo modelo das preciosíssimas lições positivas da história, há muito esquecidas, não teria outra escolha que investigar o passado. Por isso, do ponto de vista

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internacional, a descrição daquelas que chamamos de guerras polêmicas (determinadas pela virtù), que ilustravam lições positivas, parecia mais importante que a exposição daquelas que denominamos de guerras agonísticas (determinadas pela fortuna), que ilustravam apenas as lições negativas da história romana.

Voltando ao tema dos meios a serem empregados nas guerras (especialmente as guerras polêmicas), Maquiavel escreve: “Visto que qualquer um pode começar uma guerra quando bem entende, mas não pode pôr-lhe fim quando quer, todo príncipe, antes de intentar uma empresa, deve avaliar suas forças e por elas governar-se. Mas deve sua prudência ser suficiente para que ele não se engane sobre suas forças; e enganar-se-á sempre que as avaliar pelo dinheiro, pelo território ou pela boa disposição dos homens, mas não tiver armas próprias. Porque aquelas coisas servem para aumentar as forças, mas não para dá-las, e por si mesmas nada são, de nada servindo sem armas fiéis. Porque o dinheiro, por mais que o tenhas, não te bastará sem estas; de nada adianta ser inexpugnável o lugar; e a fé e a boa disposição dos homens não duram, pois estes não podem ser-te fiéis se não puderes defendê-los. Cada monte, cada lago, cada lugar inacessível torna-se plano onde faltam fortes defensores. O dinheiro também não só não defende, como transforma mais depressa em presa quem o possui” (II, 10).

Levando-se em consideração as guerras que se empreende “por escolha” (guerras ofensivas), é preciso notar que “qualquer um pode começar uma guerra quando bem entende, mas não pode pôr-lhe fim quando quer”, ou seja, pode escolher seu começo, mas não seu fim. Por isso, “todo príncipe [ou república], antes de intentar uma empresa [bélica], deve avaliar suas forças e por elas governar-se”, o que leva à importantíssima questão dos meios de guerra, que consiste num tema recorrente de todos os escritos políticos de Maquiavel, estando presente desde os primeiros escritos de 1498-1512 até a derradeira História de Florença (escrita entre 1520 e 1525 e publicada em 1532). Entre os meios de guerra enganosos, Maquiavel afirma que “enganar-se-á sempre” quem “avaliar [suas próprias forças] pelo dinheiro, pelo território ou pela boa disposição dos homens”, meios que “servem para aumentar as forças, mas não para dá-las, e por si mesmas nada são”, ou seja, podem ser considerados como meios necessários, mas não suficientes, para vencer uma guerra (ou, ainda, meios necessários para começar uma guerra, mas insuficientes para vencê-la). Dos meios enganosos, afirma-se: do dinheiro que, “por mais que o tenhas, não te bastará sem estas [armas próprias]”; do território, que “de nada adianta ser inexpugnável o lugar”; e, da boa disposição dos homens, que “a fé e a boa disposição dos homens não duram, pois estes não podem ser-te fiéis se não puderes defendê-los”. Destes três meios, aquele mais exprobrado por Maquiavel não é senão o primeiro, uma vez que “não pode – escreve mais adiante – ser mais falsa a opinião comum de que o dinheiro é o nervo da guerra” (II, 10).

Pode-se dizer quer a crítica de Maquiavel contra o princípio pecuniae sunt nervi belli civilis [o dinheiro é o nervo da guerra] tem um alvo certeiro: a dinastia que governava Florença na época de Maquiavel, os Médici, consistia numa família de banqueiros que retirava seu poder justamente desse meio. Por confiar demasiadamente no poder financeiro, utilizado largamente para contratar exércitos mercenários, a família Médici descuidava, na mesma proporção, do único meio que Maquiavel considerava adequado para quem queira vencer uma guerra: as “armas próprias” (tema largamente desenvolvido em O príncipe). Sem mencionar, via de regra, o nome da família mais poderosa e importante do Renascimento florentino (pela qual seus próprios serviços serão contratados em seus últimos anos de vida), Maquiavel em verdade empenhará (corajosamente) todas as suas grandi opere politici [grandes obras políticas] na crítica do governo praticado, interna e externamente, pelos Médici na cidade de Florença, cuja atonia ficará exposta quando, em 1527 (mesmo ano em que Maquiavel viria, posteriormente, a falecer), serão destituídos do poder por uma sublevação popular, que reinstaurará o governo republicano.

Maquiavel não desconsidera a importância da riqueza para a política, seja interna ou externamente, sendo o aumento desta, como vimos, um dos objetivos do império romano. A riqueza, entretanto, deve ser considerada, como dito, antes um fim político que um meio. Embora os romanos tenham feito das guerras que empreendiam também um meio para o incremento de sua riqueza, nunca transformaram sua riqueza num meio para vencer suas guerras. As vitórias dos romanos se baseavam,

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segundo Maquiavel, na virtù de seu exército, ou seja, na organização de um exército próprio e no seu treinamento militar (duas atividades descuidadas pelos Médici em Florença), especialmente quando este combatia pela honra (guerras próximas), diminuindo até cessar quando passara a combater por soldo (guerras distantes). Nesta verdade, em grande medida, residia o fascínio maquiaveliano pelos romanos, para o bem e para o mal, chegando o autor muitas vezes a afirmar que é preferível perder uma guerra com um exército próprio e bem treinado a vencê-la com um exército alheio e sem treinamento adequado, não passando este tipo de vitória de um presente (instável) da fortuna mais que de uma demonstração de virtù.

Continuando, Maquiavel compara duas táticas de guerra, que resumem, em grande medida, a questão dos meios. A primeira é descrita da seguinte forma: “Mas, para dizer agora o que penso, creio ser preciso fazer a seguinte distinção: ou se tem um território armado, como o tinham os romanos e o têm os suíços, ou se tem um território desarmado, como o tinham os cartagineses e tem agora o rei de França e os italianos. Neste caso, é preciso manter o inimigo longe de casa; porque estando a tua virtù no dinheiro, e não nos homens, estarás perdido sempre que o acesso a ele te for dificultado, e nada o dificulta mais do que a guerra em casa. Exemplo disso são os cartagineses [...]” (II, 12). A segunda tática é assim descrita: “Mas, quando os reinos são armados, como era o caso de Roma e como é o dos suíços, têm mais dificuldades para vencê-los quem mais se aproxima deles: porque tais corpos podem unir mais forças para resistir a um assalto do que para assaltar os outros” (II, 12).

No caso dos territórios desarmados, a única saída é “manter o inimigo longe de casa”, uma vez que, “estando a tua virtù no dinheiro, e não nos homens, estarás perdido sempre que o acesso a ele te for dificultado, e nada o dificulta mais do que a guerra em casa”. No caso dos territórios armados, “têm mais dificuldades para vencê-los quem mais se aproxima deles: porque tais corpos podem unir mais forças para resistir a um assalto do que para assaltar os outros”. No primeiro caso, onde falta virtù aos soldados, “sempre deve afastar-se de casa o mais que puder”, envolvendo-se apenas em guerras distantes; enquanto, no segundo caso, onde os soldados possuem virtù, “sempre [se] deve esperar em casa uma guerra poderosa e perigosa, e não [se] deve ir ao encontro dela” (II, 12). Num caso, como a vitória é demasiado incerta, a guerra deve ser travada o mais distante do próprio território para que a derrota não resulte na perda deste; no outro, havendo maior certeza de vitória, pode-se dar ao luxo de esperar a guerra em seu próprio território, sem grande receio de perdê-lo. Como Maquiavel considera como inevitáveis as guerras, não pode deixar de dar conselhos bélicos seja às repúblicas preparadas seja àquelas despreparadas para a guerra. A prova cabal dessa verdade é que, sejam os romanos antigos ou os suíços modernos, sejam os cartagineses antigos ou os franceses e italianos modernos, os primeiros preparados para a guerra, os segundo despreparados, nenhum desses povos deixou de conhecer aquilo que Locke chamaria, no século seguinte, de “tumulto da guerra, que toma tão grande parte da história dos homens” (Segundo tratado sobre o governo, § 175).

Sobre as técnicas de conquista, Maquiavel descreve três modos conhecidos pelos romanos. O primeiro é o assédio, a respeito do qual escreve: “Por isso, sempre se abstiveram de tomar cidadelas por meio de assédio, pois achavam que esse modo de proceder acarretava despesas e incômodos tão grandes que superavam em muito qualquer utilidade que se pudesse extrair da conquista: por isso, acreditavam que seria melhor e mais útil subjugar as cidades por qualquer outro modo, mas não o assédio, motivo pelo qual em tantas guerras e em tantos anos se contam pouquíssimos exemplos de assédios feitos por eles” (II, 27).

O segundo modo é a expugnação, que Maquiavel divide em dois subtipos, a expugnação manifesta e a expugnação furtiva (ou conjuração), escrevendo sobre o primeiro subtipo: “A expugnação era feita com força e violência manifesta ou por força misturada à fraude. A violência manifesta consistia no assalto, sem derrubada das muralhas [...] – e muitas vezes conseguiram tomar uma cidadela, ainda que muito grande, num só assalto, como quando Cipião tomou Nova Cartago na Espanha –, ou, quando esse assalto não bastava, tentavam derrubar as muralhas com aríetes ou com outras máquinas bélicas” (II, 27).

Do segundo subtipo, conclui: “Quanto à conquista das cidadelas por violência furtiva, foi o que aconteceu em Palepólis, que os romanos ocuparam por meio de entendimentos com os de dentro.

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Tanto os romanos quanto outros povos tentaram muitas expugnações como essa, e poucas deram bons resultados; isso porque qualquer mínimo impedimento põe o plano a perder, e facilmente ocorrem impedimentos. Porque a conjuração pode ser descoberta antes que se realize, e a descoberta não é muito difícil, seja por deslealdade daqueles a quem ela foi comunicada, seja por dificuldade de pô-la em prática, visto que é preciso conversar com os inimigos e com quem não é lícito falar, a não ser com algum bom pretexto. Mas mesmo que a conjuração não seja descoberta ao ser engendrada, ao ser posta em prática surgem mil dificuldades” (II, 27).

O terceiro tipo é a rendição, sobre a qual Maquiavel afirma: “Quanto à rendição forçada, a força pode provir de um longo assédio, como se disse acima, ou da contínua pressão de correrias, depredações e outros maus tratamentos; para escapar a isso, a cidade se rende. De todos os modos mencionados, os romanos usaram mais este último, e passaram mais de quatrocentos e cinquenta anos esgotando os vizinhos com derrotas e correrias, ganhando, por meio dos acordos que faziam, autoridade sobre eles, como doutras vezes já discorremos. E foi esse o modo que mais usaram, mesmo experimentando outros, mas nos outros viram coisas perigosas ou inúteis. Porque no assédio há demora e gastos; na expugnação, dúvida e perigo; nas conjurações, incerteza. E viram que com uma derrota do exército inimigo conquistavam um reino em um dia, e, para tomarem por assédio uma cidade obstinada, demoravam muitos anos” (II, 27).

Desses três modos, Maquiavel nota que os romanos não recorriam ao assédio, que consistia em armar uma operação militar ao redor ou em frente a uma cidade, estabelecendo um cerco com a finalidade de exercer o domínio, “modo de proceder [que] acarretava despesas e incômodos tão grandes que superavam em muito qualquer utilidade que se pudesse extrair da conquista”, recorrendo os romanos no mais das vezes ou à expugnação ou, especialmente, à rendição. Com relação à expugnação, que consistia na conquista pela força das armas, seja aquela “feita com força e violência manifesta” (expugnação manifesta) – lógica da força – seja aquela feita “por força misturada à fraude” (expugnação furtiva) – lógica da fraude3 –, Maquiavel afirma que a primeira acarreta “dúvida e perigo”, enquanto a segunda acarreta “incerteza”. Num caso, aflui a necessidade da ofensa; no outro, “é preciso conversar com os inimigos e com quem não é lícito falar, a não ser com algum bom pretexto”. Tanto num caso como noutro, exige-se exímia virtù, embora no primeiro caso essa virtù se refira à estratégia e, no segundo caso, mais propriamente à espionagem, a qual “mesmo que [...] não seja descoberta ao ser engendrada, ao ser posta em prática surgem mil dificuldades”.

Com relação à rendição, que consiste em conseguir a capitulação do inimigo sem proceder necessariamente ao ataque, afirma Maquiavel ser este o modo predileto dos romanos: pela superioridade dessa tática, pela qual se obtém o mesmo resultado das demais táticas sem a necessidade do mesmo empenho seja em dinheiro seja em armas, “os romanos usaram mais este último [modo]”, vendo nos demais “coisas perigosas ou inúteis”. Com os demais modos de conquista, “[para debelar] uma cidade obstinada, [os romanos] demoravam muitos anos”, enquanto, com a tática da rendição, “com uma derrota do exército inimigo conquistavam um reino em um dia”. Prova cabal da superioridade desse modo: com menos empenho se consegue melhor resultado. Para Maquiavel, tanto a lógica da força quanto a lógica da fraude são válidas tanto internamente quanto nas relações internacionais: se vencer pela primeira representa uma demonstração de virtù (dos males o menor), vencer pela segunda representa ainda mais virtù (dos bens o maior).

Por fim, como Maquiavel disse, no início do livro II dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, que os romanos não preferiam se expandir nem pela confederação (predomínio da paz) nem pelo puro belicismo (predomínio da guerra), mas pelas alianças (que exigem a avaliação da necessidade ou não da guerra), não se pode terminar este texto sem voltar a falar nesse tema. Falamos até aqui das circunstâncias em que bellum est quaerenda [a guerra deve ser buscada] (que preenchem praticamente todo o livro II), mas, das circunstâncias opostas, em que pax est quaerenda [a paz deve ser buscada], igualmente reconhecida pelos romanos, Maquiavel escreve, ao final, o seguinte: “Os príncipes, portanto, quando atacados por homens muitíssimo mais poderosos que eles, não podem cometer o grande erro de recusar um acordo, sobretudo quando oferecido, porque ele nunca será tão desfavorável que em alguma de suas partes deixe de encontrar-se o bem-estar daquele que o aceita, e nisso estará

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parte de sua vitória. [...] Mas os homens cometem o erro de não saber pôr limites às suas esperanças e, apoiando-se nelas, sem medir suas possibilidades de outro modo, acabam por arruinar-se” (II, 27).

Segundo Maquiavel, não se pode dizer que os romanos empreendiam guerras irracionalmente, sem calcular sua utilidade, mas que, assim como sabiam reconhecer o valor da guerra, também sabiam reconhecer, quando necessário, o valor da paz. Quem empreende uma guerra ofensiva possui a esperança de vitória, mas não pode ter a sua certeza (lembremos do importante recurso dos exércitos romanos aos oráculos), pois a vitória só pode ser conhecida ex post [posteriormente], enquanto a esperança é, por sua natureza, um sentimento ex ante [anteriormente]. Em termos gerais, para Maquiavel, não convém empreender uma guerra que não pode ser vencida (assim como também não convém empreender uma guerra que, vitoriosa, prepara uma guerra futura que não poderá ser vencida): antes, é preciso distinguir quando é possível a “vitória” e quando uma república não faz mais que alimentar uma “falsa esperança de vitória” (II, 27).

Maquiavel define o sentimento que leva ao segundo caso como aquele que, “quando entra no peito dos homens, leva-os a passar dos limites e perder, na maioria das vezes, a ocasião de obter um bem certo, na espera de um melhor incerto” (II, 27). Quem empreende uma guerra ofensiva espera angariar uma posição melhor do que aquela que já possui, mas isso só é possível em caso de vitória, quando consiste numa demonstração de virtù o empreendimento da guerra. Todavia, quando ocorre uma “falsa esperança que leva os homens a errar não só no que dizem, mas também no que fazem” (II, 27), o mesmo empreendimento não consistirá mais na demonstração daquela qualidade. Baseando-se (como de praxe) em “exemplos antigos e modernos”, e afirmando que “não é possível demonstrá-lo tão claramente com as razões” (II, 27), Maquiavel faz, então, uma defesa daquelas circunstâncias em que, ao invés de seguir o caminho da guerra, o príncipe deveria seguir o caminho dos acordos, segundo o princípio segundo o qual pacta sunt servanda [os acordos devem ser cumpridos], principal instrumento de paz conhecido durante muitos séculos.

Concluo, rapidamente, que, não esquecendo que as guerras são inevitáveis e convém às repúblicas (assim como aos principados) prepararem-se para elas, Maquiavel – que pode ser considerado o maior defensor renascentista da guerra (cuja maior oposição será encontrada no irenismo erasmiano) – reconhece também, embora subsidiariamente, o valor da paz: guerra e paz, dois temas antitéticos e igualmente presentes no pensamento de Maquiavel, tanto em O príncipe quanto nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio.

Notas 1 Este texto, aqui revisto, foi apresentado na “1ª Semana Acadêmica de Relações Internacionais da UFGD”, entre os dias 12 e 14/11/2010, na cidade de Dourados-MS. (Pesquisa financiada pela Fapesp em nível de doutoramento.) ² Professor de Ciência Política – Unesp – Câmpus de Marília. Doutor em Ciência Política – FFLCH-USP. Endereço eletrônico: [email protected], Endereço para correspondência: R. Pedro Serem, n. 145, ap. 934, Portal do Sol, Marília, SP, CEP 17519-330. ³ Maquiavel escreve o seguinte nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio: “Ainda que o uso da fraude em qualquer ação seja detestável, no manejo da guerra é coisa louvável e gloriosa; e todo aquele que, com a fraude, vence o inimigo é tão louvado quanto quem o vence com as forças. Isso se vê pelo juízo que dele fazem aqueles que escrevem sobre a vida dos grandes homens; esses louvam Aníbal e os outros que foram notabilíssimos em semelhantes modos de proceder. E, por serem muito conhecidos tais exemplos, não repetirei nenhum. Direi apenas que não considero gloriosa aquela fraude que leve a romper a fé dada e os pactos feitos; porque com ela, ainda que se conquiste, às vezes, estado e reino, como acima vimos, nunca se conquistará a glória. Falo, sim, daquela fraude que uses com o inimigo que não confia em ti, que consiste exatamente no manejo da guerra” (III, 60).

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O riscontro: considerações sobre a

política e a história em Maquiavel

Patrícia Fontoura Aranovich1

Resumo: O texto trata do termo riscontro que, tal como posto na obra de Maquiavel, permite reen-

contrar e retrabalhar questões que concernem à relação entre natureza e a história do ponto de vista das possibilidades de sucesso e fracasso da ação humana, tanto no aspecto prático como teórico. Palavras-chave: Maquiavel; História; Política; Prudência; Virtù.

Abstract: The paper deals with the term riscontro that, as put in Machiavelli’s works, allows rediscover-ing and reworking issues which concern the connections between nature and history from the point of view of the possibilities of success and failure of human action, both in the practical and theoretical as-pects.

Keywords: Machiavelli; History; Politics; Prudence; Virtù.

1 Introdução O objetivo deste texto é apresentar algumas considerações sobre a relação entre história e polí-

tica na obra de Maquiavel por meio da discussão do termo riscontro. Nesta discussão, vemos o entrela-çamento dos principais temas relativos ao lugar da história em sua obra e, consequentemente, da pró-pria natureza da obra, dada a onipresença da história que nela se observa, em especial nos três principais e mais conhecidos escritos: “O Príncipe”, os “Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lí-vio” e a “História de Florença”2.

Dada essa percepção sobre a natureza da obra maquiaveliana, vários são os caminhos de inter-pretação que se podem tomar. A questão que norteia a presente reflexão é sobre o encontro entre ho-mem e história que, fundamentalmente, é referente ao que impera na condução da história, se é a von-tade humana ou se são as circunstâncias. Esta questão pode ser ainda tomada de duas perspectivas, a do príncipe, em que os termos mais empregados são fortuna e virtù, e a perspectiva do cidadão, em que o vocabulário utilizado frequentemente remete à ideia de tempos e de modos – entendam-se modos de proceder3. A primeira perspectiva é apresentada principalmente em “O Príncipe”, enquanto a segunda é lida nos Discursos. Isso não significa que esse vocabulário seja exclusivo, mas que mais comumente o encontramos, respectivamente, nesses livros.

O termo riscontro pode ser traduzido simplesmente como encontro ou confronto e, como tal, é empregado algumas vezes por Maquiavel até mesmo em situações inteiramente corriqueiras4. Portanto, riscontro não é um termo técnico específico como, aliás, acontece com a maioria dos termos empregados por Maquiavel5. Há, no entanto, dois empregos do termo que nos interessam por referirem-se a consi-derações acerca do fazer histórico e do conhecimento da história, no sentido que entendemos essa pa-lavra, ou das coisas do mundo, como era denominada6.

Vemos que há um sentido em que o riscontro indica o encontro entre dois momentos, temporal e espacialmente diversos, do ponto de vista da semelhança:

Os homens prudentes costumam dizer, não por acaso nem indevidamente, que quem quiser saber o que haverá de acontecer deverá considerar o que já aconteceu; porque todas as coisas do mundo, em todos os tempos, encontram correspondência nos tempos antigos [hanno il

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proprio riscontro con gli antichi tempi]. Isso ocorre porque, tendo sido feitas pelos homens, que têm e sempre tiveram as mesmas paixões, tais coisas só poderão, necessariamente, produzir

os mesmos efeitos. (Discursos, III, cap. 43.). Neste caso, ao estabelecer uma relação entre os modos de proceder e os tempos, o riscontro indi-

ca a possibilidade da utilização do conhecimento das coisas do mundo como guia das ações. Assim, o tema do riscontro concerne, por um lado, à exemplaridade das coisas do mundo e, por outro, às possibi-lidades abertas aos homens de construir no mundo, isto é, da política. Mas, antes de passarmos ao que se poderia chamar de emprego teórico do termo riscontro, precisamos tratar de seu uso prático – visto que é pela compreensão da natureza da ação humana que se pode alcançar a filosofia política de Maqui-avel – para, por fim, reencontrarmos o aspecto teórico que abre espaço para a ação humana a mais livre possível.

Há outro sentido em que riscontro significa o momento em que uma ação humana entra em acordo com as circunstâncias presentes ou ajusta-se a elas provocando um resultado favorável. Em termos gerais, este riscontro diz respeito ao fazer humano ou, mais precisamente, ao encontro entre a na-tureza humana e a natureza dos tempos7. O juízo geral é que, se não houver qualquer encontro entre os modos de proceder e a natureza dos tempos, a ação não poderá ser bem sucedida. Assim, esses termos dizem respeito às circunstâncias concretas e que circunscrevem qualquer ação. Essas circunstâncias são praticamente insuperáveis e dificilmente se vergam à vontade de um homem que queira agir num senti-do inteiramente oposto ao que se inclinam os tempos, a fortuna ou a ocasião.

Diante do que é imposto pela necessidade, podemos ver em Maquiavel os aspectos humanos do fazer a história, isto é, da ação. A questão da liberdade está associada no pensamento da tradição cristã à liberdade humana diante de Deus, o problema de Maquiavel é a liberdade em situação, ou melhor, a li-berdade política. No vocabulário de Maquiavel, a liberdade (libertà) é uma categoria pública ou coletiva: "loro libertà, libertà della città, libertà del povo", a exceção é o livre-arbítrio, que aparece no capítulo 25 de “O Príncipe”. O termo que ele utiliza para tratar de uma ação não necessária é a escolha [elezione]. Assim, os homens têm escolha, o que chamamos de liberdade, isto é, são capazes de agir de acordo com seus de-sejos. A análise feita da ação humana refere-se, quase sempre, aos modos de proceder dos homens, a que ele designa, genericamente, “modi”. Esses modos de proceder têm um caráter necessário na medida em que cada homem possui uma natureza que lhe é própria, dada por suas inclinações naturais. O en-caminhamento desta questão sobre os modos de proceder dos homens é, tradicionalmente, a discussão moral sobre as virtudes. Sabemos que Maquiavel não vai exatamente nessa direção ou, ao menos, não da maneira como habitualmente se vai. Mais que um recurso retórico tradicional para enfatizar a novi-dade de seus ensinamentos, sua declaração sobre seu afastamento na matéria da filosofia moral precede um embaralhamento dos termos ciceronianos do útil e do honesto: “como sei que muitos já escreveram sobre esse assunto, temo que, escrevendo eu também, seja considerado presunçoso, sobretudo porque, ao discutir esta matéria, me afastarei do que foi prescrito pelos outros” (O Príncipe, cap. 15). Entretanto, ele não deixa de refletir sobre esses modos de proceder dos homens, tanto em “O Príncipe” como nos Discursos, pois, sem essa discussão, não seria possível pensar a ação humana, isto é, o agir histórico. Os termos envolvidos nesta reflexão são, sobretudo, a virtù e a prudência, cuja inserção na questão será ex-posta ao longo do texto e, pelo que vemos, as virtudes não estão, de modo algum, excluídas da discus-são, em que pese o afastamento proclamado pelo autor.

No encontro entre a ação humana e a natureza dos tempos observamos que há duas possibili-dades: esse encontro é dado por uma ação refletida ou é fruto do acaso. Em outros termos, o riscontro pode se dar de modo natural ou artificial (e ainda que esses modos não sejam declarados nesses termos por Maquiavel, as palavras não fogem ao espírito da época). O encontro entre a ação humana e a natu-reza dos tempos pode ocorrer naturalmente, quando o homem segue principalmente sua natureza ao agir, ou artificialmente, quando a reflexão guia seus modos.

O riscontro natural se dá quando a virtù ou a inclinação natural se encontram com a natureza dos tempos e, nesse caso, não se pode afirmar que houve liberdade na ação ou, mais propriamente, que houve escolha. Em termos simples, se os homens agem como estão habituados a agir, por suas inclina-

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ções naturais e o encontro entre esses modos de proceder e os tempos nos quais eles agem é positivo, não se pode afirmar que o encontro foi de algum modo previsto e planejado. Nesse caso, o sucesso ou fracasso da ação é, por assim dizer, ditado pela natureza. Assim, o sucesso de uma ação se dá pelo en-contro favorável das circunstâncias e o modo de proceder dos homens, sempre levando em considera-ção o contexto político.

Deste caso, vemos a exposição de Maquiavel nos capítulo 8 e 9 do livro 3 dos Discursos, em que ele expõe a ideia de natureza dos tempos. O capítulo 9 analisa primeiramente o caso de Fábio Máximo e sua campanha contra Aníbal, narrada por Tito Lívio no livro XXVIII de sua História de Roma e, em seguida, mais brevemente, o de Piero Soderini e o de Júlio II8, isto é, coisas antigas e modernas. Ele abre o capítulo com reflexões muito semelhantes às do capítulo 25 de “O Príncipe”9, que veremos à frente:

Já considerei várias vezes que a razão da má e da boa fortuna dos homens vem do ajuste [ris-contro] de seu modo de proceder com os tempos: porque se percebe que alguns homens, em suas ações, procedem com ímpeto, e outros com circunspecção e cautela. E como, nesses dois modos, são ultrapassados os limites convenientes, por não se observar a verdadeira via, em ambos se erra. Mas erra menos e tem a fortuna próspera quem, como já disse, ajusta [ris-contra] seu modo aos tempos e sempre procede conforme o força a natureza [dos tempos]. (Discursos, III, 9).

Fábio, cauteloso e circunspecto, foi bem sucedido enquanto os tempos lhe eram favoráveis, ou,

como é dito, “a boa fortuna fez com que esse seu modo estivesse bem ajustado aos tempos” (Discursos,

III, 9). Os tempos, determinados pela chegada do vitorioso Aníbal à Itália, em um momento em que “a república estava acovardada e quase desprovida de boa milícia” (Discursos, III, 9), pediam um comandante cauteloso. Maquiavel considera, entretanto, esse modo de Fábio menos como uma boa qualidade do que como um obstáculo para si e para a república:

E viu-se que Fábio fazia aquilo por natureza, e não por escolha, quando se opôs a Cipião com a força de quem não podia arredar-se de seus modos [de proceder] e de seus costumes, no momento em que este queria entrar na África com aqueles mesmo exércitos, para pôr fim à guerra; de tal modo que, se dependesse de Fábio, Aníbal teria continuado na Itália, pois ele não se apercebia que os tempos tinham mudado, e era preciso mudar o modo de travar a guerra. (Discursos, III, 9).

Se rei de Roma, Fábio a teria posto a perder, por ser cidadão pode ser substituído por Cipião,

que, com outras inclinações, alcança a vitória. Os cidadãos despersonalizam os modos do comando e, com isso, criam possibilidades muito menos limitadas para os encontros: “assim como houve um Fá-bio, que, no tempo devido, foi ótimo para conter a guerra, também houve depois um Cipião, nos tem-pos que favoreciam a vitória” (Discursos, III, 9). Isso permite a Maquiavel acrescentar, o que não teria sido apropriado em “O Príncipe”, uma conclusão fundamental com relação às naturezas da monarquia e da república, com respeito à sua duração. Os limites dos principados, inclusive de duração, são determina-dos diretamente pelos limites de seu dirigente.

Disso provém que as repúblicas têm vida mais longa e mais demorada boa fortuna que os principados, porque podem, mais que os príncipes, acomodar-se à diversidade dos tempos, em razão da diversidade dos cidadãos que nelas há. Porque o homem que está habituado a proceder de um modo nunca muda, como se disse; e, necessariamente,quando os tempos mudam e deixam de conformar-se a seu modo, advém-lhes a ruína (Discursos, III, 9).

Isso não significa que as repúblicas não tenham suas limitações, que, ao serem retiradas das pes-

soas, repousam em suas ordenações, o que não deixa de ser apontado logo em seguida:

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Daí também provém a ruína das cidades, por não variarem com os tempos as ordenações das repúblicas, [...] porém, estas são mais lentas, porque lhes custa mais variar, visto ser preciso que sobrevenham tempos que comovam toda a república, para o que a variação no modo de proceder de um só homem não basta (Discursos, III, 9).

Em resumo, as fragilidades dos corpos políticos variam de acordo com os regimes e, embora

não se equivalham, determinam a finitude do corpo, e, por isso, não é suficiente passar do regime mo-nárquico para o republicano para assegurar a estabilidade do corpo político. Ao transmitir o essencial da administração das coisas da pessoa do rei ou do grupo de governantes para as ordenações, recai-se em outra rigidez. Comparando isso com a posição de Cícero, para quem as instituições condensavam o sa-ber de gerações de homens sábios e, portanto, eram as melhores10, vemos que Maquiavel considera que as instituições não necessariamente se aperfeiçoam com o tempo e que apenas o encontro frequente en-tre os tempos e as ordenações seria o empecilho à ruína. O riscontro, desse modo, deixa de ser apenas o encontro entre a ação humana, compreendida como a ação pontual de um homem, e os tempos, e tor-na-se o encontro entre a construção de toda estrutura política e as mudanças dos tempos, o que nos aproxima da imagem dos diques e barreiras erguidos ao ímpeto furioso da Fortuna do capítulo 25 de “O Príncipe”.

Já o capítulo 8, antes referido11, diz respeito aos assuntos internos da república, sendo analisado o caso de Mânlio Capitolino, referido por Tito Lívio no livro VI. De forma semelhante ao que vai fazer no capítulo seguinte, e que havia feito no capítulo 25 de “O Príncipe”, ele afirma que é preciso haver um acordo entre a ação humana e a natureza dos tempos. Os exemplos trazidos para comprová-lo são os de Espúrio Cássio e de Mânlio Capitolino, cidadãos no período republicano de Roma que buscaram corromper a república, ou seja, transformá-la de república em principado, usurpando a autoridade das coletividades, como são compreendidas a plebe e o senado, pelo império de um só. Mânlio é visto co-mo exemplo maior dessa cupidez, o que, acompanhado dos elogios a sua virtù de corpo e ânimo que lhe são feitos ao longo de toda obra, ao lado da condenação por seus crimes contra a mesma república que ajudara a salvar, o aproxima do magnânimo, tal como retratado por Cícero, ainda que Maquiavel não use esse termo. Tal como ocorre no texto analisado, a cupidez, tida por um mal que atinge os homens magnânimos12, é caracterizada por um desejo de grandeza que ultrapassa os limites dados pelas ordena-ções de um regime republicano. A cupidez identifica-se à ambição, que é apontada por Maquiavel como vício próprio da nobreza. O patrício Mânlio Capitolino é o grande exemplo deste capítulo não apenas por seus erros, como por seus méritos:

porque por ele se vê como a virtù de alma e corpo, como as boas ações realizadas em favor da pátria são anuladas pela torpe cupidez de reinar; esta, como se vê, nasceu nele da inveja que sentia das honras prestadas a Camilo; e chegou a tal ponto a cegueira de sua mente que, não pensando no modo de vida da cidade, não examinando o sujeito dele, que não era ade-quado a receber ainda uma má forma, pôs-se a criar tumultos em Roma contra o senado e contra as leis pátrias. (Discursos, III, 8).

Em seguida, Maquiavel faz um elogio à Roma, à bondade da cidade do ponto de vista de sua

forma e de sua matéria13, ou seja, os próprios cidadãos são defensores da república e ninguém favorece Mânlio, e sua cupidez se extingue por não haver um terreno fértil, porque todos pensavam em manter o estado, isto é, manter a forma republicana. Isso significa que, no tempo de Mânlio, a matéria era apta àquela forma. A plebe e o senado se unem, então, contra Mânlio e a razão disso é que os tempos não eram favoráveis às suas aspirações.

Pelo que devem ser consideradas duas coisas: uma é que os modos de se buscar a glória nu-ma cidade corrompida são diferentes dos modos de uma cidade ainda viva politicamente; ou-tra (que é quase a mesma coisa) é que os homens, nos seus procedimentos e sobretudo nas grandes ações, devem considerar os tempos e a eles se adaptar. E, no mais das vezes, vivem infelizes aqueles que, por má escolha ou natural inclinação, não estão de acordo com os tem-

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pos, e suas ações têm mau êxito, ao contrário dos que estão de acordo com os tempos. (Dis-cursos, III, 8).

Portanto, a virtù de alma e corpo – pois esta não é negada a Mânlio – leva à glória apenas se seu

desejo for adequado aos tempos, o que faz com Maquiavel afirme que Mânlio “teria sido um homem raro e memorável se tivesse nascido numa cidade corrompida” ( Idem, ibidem). Nessa possibilidade apontada acerca da adaptação aos tempos, ter sucesso pode implicar uma capacidade mais profunda de alterar o curso dos acontecimentos. Quando as coisas levam numa determinada direção, a ação, ao en-contrá-las, constrói um caminho, ao mesmo tempo em que entra na corrente para onde as coisas estão indo; ou seja, a possibilidade dos homens de fazer a história é mais eficaz quando as coisas já caminham nessa direção. Por exemplo, numa cidade corrompida, o desejo de corromper se encontra com a cor-rupção, enquanto que a integridade de um corpo político republicano não tem um bom encontro com a ambição de alguém que queira reinar. O fator determinante, portanto, é a natureza dos tempos:

se Mânlio tivesse nascido nos tempos de Mário e Sila, quando a matéria já estava corrompi-da,e ele poderia ter-lhe imprimido a forma de sua ambição,talvez tivesse obtido os mesmos seguimentos e o mesmo resultados que Mário e Sila obtiveram, bem como os outros que, depois destes, aspiraram à tirania. Assim também, se Sila e Mário tivessem vivido nos tempos de Mânlio, já em seus primeiros feitos teriam sido reprimidos. Porque um homem pode mui-to bem começar a corromper o povo de uma cidade com seus modos e seus propósitos maus, mas é impossível que a vida de um só homem baste para corrompê-la de tal maneira que ele mesmo colha os frutos. (Idem, Ibidem).

A cidade incorrupta é aquela politicamente viva, ou seja, civilmente viva14, em que as leis estão

vivas e seu império está acima dos homens que possam deturpá-las, individual ou coletivamente. Nessa cidade, encontram-se matéria e forma. Esse encontro ou o seu contrário importa para pensar a capaci-dade de um homem de afetar os tempos, pensar o quanto pode pesar nesse todo que é a cidade, suas ordenações, seu povo, suas divisões e tudo mais que a compõe. Quanto menos a forma da cidade se encontra com a matéria, mais é possível que um homem possa fazer suas intenções se concretizarem. Isso faz com que não se possa levar com facilidade uma república sã à tirania, mas significa também que dificilmente se pode levar uma cidade que era uma tirania a se tornar um estado livre15. Portanto, Maquiavel apresenta a ação humana em relação às suas possibilidades de intervir no curso do corpo po-lítico, considerando que os homens se deparam com condições que são ou não favoráveis às suas in-tenções.

Examinado o riscontro natural e, antes de entrarmos naquele que foi chamado de artificial, deve-mos esclarecer algo que estava implícito na ideia de riscontro natural: a ocasião. A ocasião não foi tratada antes por faltar-lhe a reflexão que lhe é suposta. Isso não quer dizer que a ação natural não implique a ocasião, na verdade se poderia quase dizer que a ação natural, quando bem sucedida, é puramente oca-sional, mas lá a ocasião apenas podia ser entendida em sentido fraco.

Há, portanto, uma forma de riscontro que não pode ser explicada nem pela noção de naturalidade nem de artificialidade, representada na capacidade de um homem de reconhecer e apanhar a ocasião, aqui entendida em sentido forte, que é apresentada no capítulo 6 de “O Príncipe”. Não se trata mais o riscontro absolutamente natural entre o homem, agindo de acordo com sua natureza e a natureza dos tempos, que é ou não adequada a esse modo de agir, mas da capacidade de perceber que aquele tempo é o tempo oportuno para uma determinada ação. Assim, a capacidade de avaliação interfere não propri-amente criando a ocasião, pois esta não é criada, mas dada. Apanha-se ou agarra-se a ocasião, pois ela é apresentada, inicialmente, como um momento fugidio, o que é marcado pela iconografia a ela vincula-da, que é evocada por Maquiavel16. Este é o caso dos que são chamados por Maquiavel de homens ex-celentes, que conseguem realizar seus desígnios elevados17, por perceberem o tempo oportuno, isto é, por reconhecerem o momento do encontro:

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Examinando suas ações e suas vidas, veremos que não receberam da fortuna mais do que a ocasião, que lhes deu a matéria para poderem introduzir nela a forma que lhes aprouvesse. E, sem ocasião, a virtù de seu ânimo se teria extinto, assim como, sem a virtù, a ocasião teria vin-do em vão. (O Príncipe, cap. 6).

O riscontro sempre diz respeito à percepção da natureza das coisas, que é o reconhecimento da

matéria: qual é de fato o estado das coisas naquele momento preciso – como está organizado o exército, quantos homens este exército tem, se estão bem ou mal treinados, como está distribuída a população, quais suas ocupações; trata-se, pois, de perceber como aquele povo, aquele território, aquelas pessoas, estão ordenadas ou desordenadas. A forma é dada pelo desejo daquele homem de reconfigurar essa ma-téria e o fracasso ou o sucesso depende propriamente de se essa matéria é ou não apta, naquele mo-mento, ao desejo desse homem18. O riscontro se dá, então, no ajuste do desejo à matéria. Poder-se-ia, afirmar, em outros termos, que, para Maquiavel, o homem faz a história, mas não do modo como dese-ja.

Entretanto, à medida que avançamos na leitura e descrição das ocasiões que efetivamente se apresentaram a esses grandes homens, percebemos que se trata de um conjunto de circunstâncias propícias que englobam todo o percurso que um determinado povo faz até chegar aquele momento em que está pronto. A complexidade do exemplo vai além da menção ao alvo elevado, mais que isso, ao mesmo tempo em que temos um fator mítico na evocação de personagens como Moisés, Teseu e Rômulo, há uma concretude muito grande na descrição da ocasião, isto é, do momento em que puderam por em uso a virtù. É um momento gestado lentamente, uma conjuntura histórica complexa. Assim, a ocasião é figurada como momento fugidio e, ao mesmo tempo, como fruto de um processo de longa duração, o que quase nos faz duvidar da rapidez necessária para agarrá-la, do ponto de vista da possibilidade de perdê-la, e em pensar que esse movimento do apanhar responde menos por isso do que pelo ímpeto que se supõe necessário ao conquistador. Assim como – segundo a medicina hipocrática, cujo vocabulário é constante em Maquiavel – na doença há o momento da crise, na qual o remédio é eficaz, a ocasião é o tempo oportuno em que o desejo tem um efeito correto, porque foi feita a avaliação correta e teve força para aplicar o remédio. Nesse caso, a virtù não se transfigura em mera ambição ou cupidez, mas vai ao encontro dos tempos.

Passando agora ao riscontro artificial, veremos que os termos se modificam e abarcam, sobretudo, os conceitos de exemplo, imitação, prudência e virtù ordenada. No capítulo 25 d e “O Príncipe” reen-contramos o riscontro em sua forma prudencial. O texto inicia com a figura do homem prudente, ao con-trapor o governo das coisas do mundo por Deus e pela Fortuna e o descontrole dos homens, e oferece como alternativa a capacidade humana de governá-las parcialmente. Não nos interessa no momento es-sa questão, mas propriamente a maneira de controle da outra metade, o que é a construção metafórica de barreiras e diques, como se opõe à fortuna num corpo político. Logo após apresentar a fortuna co-mo rio impetuoso, aparece a virtù ordenada – “a fortuna, que demonstra sua potência onde não encon-tra uma virtù ordenada, pronta para resistir-lhe, e volta seu ímpeto para onde sabe que não foram ergui-dos diques nem barreiras para contê-la” (O Príncipe, cap. 25) – e, nesta expressão, importa pensar o sentido de ordenada e o que ela acrescenta à ideia de virtù19, que, normalmente, é considerada suficiente como atributo do príncipe.

No entanto, vemos também que a força não basta, pois a força desenfreada se esgota em si mesma, e é necessária a prudência. É precisamente essa união entre a força e a prudência que Maquiavel indica na expressão ‘virtù ordenada’ que se aplica tanto às ações dos príncipes e magistrados como a dos exércitos, ou seja, pode ser referente a um homem ou a uma coletividade. A melhor expressão dessa virtù ordenada encontramos na descrição dos tipos de exércitos feita nos Discorsi, em que o termo ‘virtù ordenada’ caracteriza um exército propriamente ordenado e disciplinado20. Um exército que tem virtù nesse sentido mais físico pode não ter chance contra outro talvez menos forte, mas melhor ordenado. A virtù precisa ser disciplinada para agir com sentido; a força precisa ser canalizada para um objetivo. Apenas com força não é possível resistir, ou resiste-se de modo desordenado, como Maquiavel julga ser o caso da Itália. A virtù apropriada refere-se, também e sobretudo, à força militar:

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Se considerardes a Itália, que é sede dessas variações, vereis que ela é um campo sem diques nem qualquer defesa; caso ela fosse defendida por uma virtù apropriada, como a Alemanha, a Espanha e a França, ou essa cheia não teria causado as grandes variações que ocorrem, ou es-tas nem sequer teriam acontecido (O Príncipe, cap. 25).

Ainda que, no final do capítulo 25, Maquiavel defenda a impetuosidade contra a cautela, o que é

notável, neste capítulo, é a ideia de que a força deve ser ordenada. Se a impetuosidade é uma virtù de-sordenada e a cautela uma virtù muito contida, o que ele preconiza é a virtù ordenada, pois é calculada em função dos tempos. Surge-nos, então, a pergunta: é possível existir esse príncipe? Em relação a isso Maquiavel vê muitas dificuldades em razão da inflexibilidade humana, ou seja, a incapacidade dos ho-mens de mudar quando as circunstâncias indicam que isso é necessário, o que, evidentemente, impõe obstáculos à eficácia do ensinamento exemplar. Essa, entretanto, não é a questão relevante, e o que de fato importa para a compreensão das formas de governo e da política de modo mais amplo, retornando aos capítulos dos Discorsi examinados, é que o mais seguro, do ponto de vista da saúde do corpo políti-co, é a garantia que o regime republicano proporciona de uma vida mais vigorosa, ainda que subsista a rigidez dada pelas ordenações e sua consequente superioridade em relação à monarquia. Maquiavel pen-sa o mundo extremamente móvel, pela própria natureza dos homens e das coisas. É por esta razão que não pode haver uma forma política perene, isto é, uma forma fixa não pode ter qualquer perspectiva de eternidade; se pudesse haver, talvez, um corpo político perene, ele precisaria ser tão ágil em suas mu-danças como são as coisas do mundo, o que não é possível nem na monarquia, nem na república, uma porque é impedida pela rigidez do governante, a outra pela rigidez das ordenações. Não é a perfeição da ordenação que traz estabilidade, ao contrário, assim como nos homens é a flexibilidade que garante o sucesso, nos corpos políticos é a capacidade de alterar-se ao longo do tempo que permite a ele perdu-rar.

Por sua vez, o que possibilita a ordenação da virtù é a prudência. Vimos, no capítulo 6 de “O Príncipe”, que o homem prudente segue os caminhos trilhados pelos homens excelentes:

Pois, como os homens sempre trilham caminhos percorridos por outros, procedem em suas ações com imitações, mas não são capazes de manter totalmente os caminhos dos outros nem de alcançar a virtù daqueles que imita, um homem prudente deve sempre começar por caminhos percorridos por homens grandes e imitar os que foram excelentes. Assim, mesmo que não alcance sua virtù, pelo menos mostrará algum indício dela, fazendo como os arquei-ros prudentes que, julgando muito distantes os alvos que pretendem atingir e conhecendo até onde chega a virtù de seu arco, orientam a mira para bem mais alto que o lugar destinado, não para alcançar com sua flecha tamanha altura, mas para poder, por meio de mira tão elevada, chegar ao objetivo (Idem, cap. 6).

A prudência, que leva à escolha do exemplo do homem excelente, também é o que leva a avaliar

a similitude21 entre os tempos:

Os homens prudentes costumam dizer, não por acaso nem indevidamente, que quem quiser saber o que haverá de acontecer deverá considerar o que já aconteceu; porque todas as coisas do mundo, em todos os tempos, encontram correspondência nos tempos antigos. Isso ocor-re porque, tendo sido feitas pelos homens, que têm e sempre tiveram as mesmas paixões, tais coisas só poderão, necessariamente, produzir os mesmos efeitos (Discursos, 2007a, III, cap. 43).

Assim, a partir da prudência, compreendida como a capacidade de perceber os tempos aos quais

é preciso adaptar-se, chegamos à imitação22, que se dá a partir do exemplo retirado das histórias como fragmento do tempo ou como modelo de modo de proceder. No entanto, a percepção da excelência do homem não é suficiente para assegurar que a imitação será bem sucedida, pois o sucesso depende da

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conjunção entre ato e circunstância, o exemplo visa apreender o como foi feito, mas principalmente as circunstâncias nas quais algo foi feito, porque esse é o ponto de partida da ação refletida.

Para guiar-se e agir entre as circunstâncias e nas necessidades, há o exemplo (passado ou presen-te) e a possibilidade da imitação, dois lados da mesma concepção sobre o tempo e o humano. É em ra-zão da possibilidade dos exemplos oferecerem uma abertura para a ação no presente, isto é, a imitação, que os homens podem livrar-se da alternativa de deixarem-se governar-se à sorte23 e podem governar a si mesmos.

O exemplo não tem valor em si mesmo, mas apenas a partir do momento em que a reflexão leva a avaliar que é possível não apenas repetir o exemplo, mas repetir o exemplo nesse encontro com os tempos. Trata-se, então, de um ajuste muito mais fino, mais preciso do que simplesmente imaginar que se está seguindo o exemplo de um grande homem ao pretender agir como Alexandre e conquistar a Ásia. O valor do exemplo, desse modo, fica condicionado, como matéria de reflexão, às circunstâncias que o tornaram possível e, como imitação, às circunstâncias que podem fazer dele um alvo possível. Portanto, a imitação não se opõe à escolha, pois não é cópia nem submissão ao modelo ancestral, mas a elevação da expectativa, e também é livre porque implica a capacidade de intervir não apenas na natureza dos tempos, como na própria natureza, suplantando, em alguma medida, suas inclinações naturais. Assim, a imitação é uma ação prudente de liberdade/escolha diante da necessidade, ciente de que o passado mostra as possibilidades de confrontar e de encontrar as coisas do mundo. Desse modo, é pelo conhecimento histórico que reencontrarmos o aspecto teórico que abre espaço para ação humana a mais livre possível, ditada pela escolha24.

A prudência é, portanto, um recurso tanto para a ação individual como para a coletiva. Não é porque na república a variedade de homens supre a capacidade do príncipe de variar de acordo com os acontecimentos que a prudência é desnecessária. Ela é essencial principalmente no que diz respeito à construção da ordenação, mas é importante também para a escolha dos homens adequados a cada situação, pois se Roma tivesse escolhido Cipião para comandar nos tempos de Fábio, e vice-versa, Aníbal poderia ter vencido a guerra.

À guisa de conclusão, é preciso observar que não se pode afirmar que a discussão mais aprofundada desse termo, o riscontro, acrescente propriamente algo ao exame da relação entre história e política, no sentido de trazer um elemento imprescindível para sua compreensão. Entretanto, pode-se dizer que, ao pensar esta relação a partir dele, torna-se possível unificar os temas e termos pertinentes a ela, centralizando e propiciando seu encontro. Assim, mesmo não tendo exaurido, evidentemente, nem a análise do termo riscontro, nem a questão da relação entre política e história, foi possível apontar como é relevante para a filosofia da história de Maquiavel o encontro entre os tempos, entre os modos de um homem e os tempos, entre a forma e a matéria, entre desejos e circunstâncias. Maquiavel não é o pensador da concórdia e sua obra é marcada pelo elogio do conflito, o que não significa que, para ele, a política não precise buscar, para subsistir em meio a toda mobilidade das coisas do mundo, os encontros.

Notas 1 Professora adjunta de Filosofia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Doutora em Filosofia. Endereço eletrôni-co: [email protected], Endereço para correspondência do autor: Alameda Santos, 1222, apto 82. São Paulo – SP. CEP: 014181-100. 2 Em cada um destes escritos a história ocupa um lugar específico. Evidentemente, na “História de Florença”, ela é o pró-prio objeto e é contínua, enquanto que nos outros dois é matéria de comentário e aparece de modo fragmentado, na forma do exemplo. Como já discuti em outro trabalho (este intitulado “História e Política em Maquiavel”), os exemplos (exempla) são, em Maquiavel, predominantemente constitutivos da argumentação, ou seja, não têm um caráter apenas ilustrativo. Tan-to nos “Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio” como em “O Príncipe” os exemplos históricos, presentes ou pas-sados, são a própria matéria de onde a reflexão deriva e estão presentes em todos os capítulos das obras, exceto o capítulo 15 de “O Príncipe”, onde o próprio método histórico é apresentado. Essa onipresença da história está prevista já na apre-sentação de suas obras a seus destinatários, pois o conhecimento que Maquiavel afirma que seus livros oferecem provém do seu estudo e de sua experiência, do diálogo com os antigos e do relato da prática política: as “coisas do mundo”. As coisas

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do mundo englobam aquilo que é e foi vivido pelos homens e pode ser transmitido como experiência de vida. Em “O Prín-cipe”, este conhecimento das coisas do mundo é apresentado por Maquiavel como algo que ele possui e oferece como pre-sente ao príncipe: “uma longa experiência das coisas modernas e um contínuo estudo das antigas” (O Príncipe, Dedicatória). Nos Discursos, Maquiavel enuncia esse conhecimento de um modo quase idêntico: “eu expressei o quanto sei e o quanto aprendi por uma longa prática e contínuo estudo das coisas do mundo” (Discursos, Proêmio). 3 Indica o caráter de cada homem e suas inclinações, e o resumo das possibilidades pode ser lido no capítulo 15 de “O Prín-cipe”. 4 Temos, por exemplo, em “Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio”, (2007a, III, cap. 6): “Accadde che, venendo Pandolfo, ed avendo fatto colui il cenno, riscontrò uno amico che lo fermò”; II, 17: “perché con più facilità le fanterie, nello accostarsi al nimico, possono fuggire il colpo delle artiglierie, che non potevano anticamente fuggire l'impeto degli elefanti, de' carri falcati, e d'altri riscontri inusitati, che le fanterie romane riscontrarono”; n’O Príncipe, 26: “e li Svizzeri hanno ad avere paura de' fanti, quando li riscontrino nel combattere ostinati come loro”. 5 O que não significa que não haja um uso sistemático de certas palavras em certos contextos, caracterizando um vocabulá-rio conceitualmente coerente. 6 Cabe aqui marcar essa distinção de vocabulário, pois é preciso ressaltar que, quando utilizamos a palavra história neste con-texto e, mais importante, quando Maquiavel escreve esta palavra, ele se refere à narrativa ou narrativas dos acontecimentos (é mais frequentemente lermos “istorie”, no plural), ou seja, aos relatos históricos concretos: a história de Tito Lívio ou de Salústio, ou ainda, a história de Veneza ou de Florença, tal como narrada por algum cronista ou historiador. Portanto, quan-do Maquiavel discute a história, aliás, como se discutia a história até o Renascimento, e mesmo depois, ele pensa a história como obra de alguém e, desse modo, com as circunstâncias que guiam seu autor. Nota-se, por exemplo, no prefácio do livro II dos “Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio” o modo como ele se refere aos testemunhos ou memória do pas-sado – a “memória que delas [coisas passadas] deixaram os escritores” (Discursos, Prefácio) –, atribuindo-lhes falsidade em razão do fato de que aqueles que o registram distorcerem o que de fato ocorreu. A esse registro enganoso, contrapõe a ver-dade do passado, o qual denomina, genericamente, ‘coisas’ ou ‘tempos’, sempre com um qualificativo: as coisas antigas, as coisas passadas, os tempos passados etc. O conhecimento do mundo e dos acontecimentos, portanto, passa pela apreensão dessas coisas ou tempos, no passado, no presente e, com a prudência, no futuro. As coisas do mundo ou coisas humanas designam sempre o que ocorreu, ocorre e ocorrerá, designam, assim, aquilo que chamamos história; entretanto, segundo Maquiavel, há identidade entre o modo como as coisas ocorrem, fazendo com que a história seja constante, apesar de variá-vel. Eis uma das formas pela qual se dá essa uniformidade: “E, pensando no modo como tais coisas acontecem, concluo que o mundo sempre foi de um mesmo modo, que nele sempre houve o bom e o mau, mas que há variações entre este mau e este bom, de uma província para outra, conforme se vê pelo conhecimento que temos dos reinos antigos, que variaram de um para o outro de acordo com a variação dos costumes, embora o mundo permanecesse sempre o mesmo”. ( Discursos, II, proêmio). 7 Com relação ao vocabulário referente aos tempos e à ação dos homens, observa-se que ‘os tempos’ ou a ‘natureza dos tempos’ indicam os estados de conflito, de ordenação, de corrupção, de guerra, de paz, de fraqueza, de força, de ócio, de ascensão, de queda, de desordem, de ordem etc. Os tempos, por exemplo, podem dizer respeito às situações em que a repú-blica está corrompida e àqueles em que ela não está. As coisas do mundo, maiores que um homem ou mesmo que um povo, são, para eles, a imagem da necessidade, isto é, daquilo que não pode ser alterado, ou seja, que é tal como é. A necessidade indica, por exemplo, a natureza do solo de uma região, como vemos no primeiro capítulo dos Discursos, ou o próprio fato de que algumas coisas são ‘sempre’, de uma mesma maneira. É possível perceber, na escrita de Maquiavel, o que ele considera necessário, o provável, o improvável, o possível e o impossível, que são marcados pelos advérbios sempre, nunca, dificil-mente, facilmente, quase sempre e outros similares; todas essas indicações estão dadas pela análise, em grande parte, do que ele chama “uma longa experiência das coisas modernas e um contínuo estudo das antigas” (O Príncipe, Dedicatória). É a partir disso que ele pode retirar o verossímil e o inverossímil nas coisas e nas ações. Mas há também, nas coisas do mundo, o elemento imponderável, que recebe o nome de Fortuna e que, por vezes, mostra mais ou menos força, mesmo nos textos de Maquiavel. É bastante difícil definir o peso que ela tem nas avaliações históricas de Maquiavel, ou para a tradição, e foi dito que, nos momentos mais difíceis, a ela é atribuída maior potência. Maquiavel sempre a invoca para tratar seus próprios in-fortúnios, mais ainda que os de Florença, para os quais ele encontra muitas explicações necessárias. Uma das faces da Fortu-na ou, mais exatamente, um de seus dons, é a Ocasião, que é sempre algo positivo e pode ser entendida em termos mais mundanos como uma conjuntura histórica favorável a determinado tipo de ação ou conduta. 8 Que foram os principais exemplos analisados no capítulo 25 de “O Príncipe”. 9 “Credo, ancora, che sia felice quello che riscontra el modo del procedere suo con le qualità de' tempi; e similmente sia infelice quello che con il procedere suo si discordano e' tempi”. 10“Porém, nossa república não foi constituída pelo engenho de um, mas de muitos, nem durante a vida de um homem, mas em alguns séculos e gerações. Pois [Catão] dizia jamais ter existido um engenho tão grande – alguém a quem nada escapasse – e que nem todos os engenhos reunidos em um só poderiam prever tanto, [a ponto de] abarcar em apenas um momento tudo, sem a experiência das coisas em sem amadurecimento” (Sobre a república, II, 2. In: BERNARDO, Isadora Prévide. O De Re Publica, de Cícero: natureza, política e história. 2012. 215 f. Dissertação - USP. São Paulo, 2012). 11 MAQUIAVEL, 2007a, III, cap. 8. 12 Vemos que em Cícero, para quem a magnanimidade é a virtude por excelência do homem político, a cupidez é o principal vício que a acomete: “é odioso que dessa elevação e grandeza de alma nasçam tão facilmente a pertinácia e a paixão desme-

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dida pela primazia [cupiditas principatus] [...] com efeito, quanto mais o homem se destaca pela magnanimidade, mais aspira a ser o primeiro ou mesmo o único”. (CÍCERO, 1999, I, 64). 13 Considerando o uso técnico que Maquiavel faz dos termos ‘matéria’ e ‘forma’ neste contexto, Pocock assinala a que se referem: “é impressionante notar o quanto Maquiavel se serve da linguagem teleológica em seu tratamento da corrupção: as leis, as constituições, e mesmo as estruturas da virtude concernem à forma, e o legislador como aquele que impõe a lei (sem falar do reformador) procura impor uma forma à matéria da república, que é certamente seu material humano constitutivo. Em certos capítulos dos Discorsi, nós notamos o hábito de utilizar matéria como um termo quase familiar para designar a população de uma cidade; mas na teoria da corrupção, seu emprego é técnico”. (POCOCK, 1997, p. 215). A matéria é aqui-lo que pode ser ordenado, como na fundação, mas também o que é desordenado pelo tempo, ‘pouco a pouco’, ‘de geração em geração’, isto é, progressiva e mesmo lentamente. A forma imposta à matéria pode ser boa ou má, mas independente-mente da qualidade da forma que lhe é imposta, o movimento da matéria tende à desordem ou, em outros termos, a negar a forma. Esta corrupção, por sua vez, pode ser reforçada por más condutas ou impedida pela frequente renovação. 14 Para o conceito de político e sua aproximação com civil, ver “The history of the word politicus in early-modern Europe”, de Nicolai Rubinstein. In: The Languages of Political Theory in Early-Modern Europe. Cambridge [Cambridgeshire]; New York: Cambridge University Press, 1987, pp. 41-56. 15 Cf. MAQUIAVEL, 2007a, I, cap. 16-18. 16 Essa iconografia é evocada no capítulo 6 de “O Príncipe” e pode ser lida integralmente no poema que ele dedica à Ocasi-ão, aqui reproduzido: “Quem és tu, que não pareces mulher mortal, de tanta graça que o céu te adorna e dota? Por que não

repousas? e por que em teus pés tens asas? Sou a Ocasião, por poucos conhecida; e a razão pela qual sempre me agito,/ é que tenho um pé sobre uma roda. Voar não há que ao meu correr se iguale; mas as asas aos meus pés mantenho, para que minha corrida a todos iluda. Meus esparsos cabelos na frente os tenho; com eles recubro o peito e o rosto, para que não me reconheçam quando venho. Todo cabelo me foi tirado detrás da cabeça,por isso, em vão, alguém se afaina se lhe acontece

que eu o tenha ultrapassado ou se me viro. Diga-me: quem é aquela que contigo vem? É a Penitência; por isso perce-ba e entenda:quem não sabe me apanhar, essa retém. E tu, enquanto gastas o tempo falando, ocupado com muitos pensa-mentos vãos, não te dás conta, infeliz! e não compreendes que te escapei de entre as mãos”. (Capitolo della Occasione: MACHIAVELLI, N., Cadernos de Ética e Filosofia Política 18, 1/2011, pp. 231-247 - Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/cefp/issue/view/4591/showToc>. Acesso em 22 de set. de 2013). 17 Elevação essa que é responsável pelo caráter forte da ocasião aqui representada, pois se trata do momento da ação política mais grandioso: a fundação. 18 Vemos que o termo desejo, em Maquiavel, é tanto empregado de modo positivo como negativo. Assim ele pode tanto ser aproximado da ambição, como, neste caso, “ancora che i nobili desiderino tiranneggiare, quella parte della Nobilità che si truova fuori della tirannide, è sempre inimica al tiranno; né quello se la può guadagnare mai tutta, per l'ambizione grande e grande avarizia che è inlei non potendo il tiranno avere né tante ricchezze né tanti onori che a tutta satisfaccia” (MAQUIAVEL, 2007a, I, cap. 40), como da ação útil e grandiosa “Potrebbesi dare in sostentamento delle cose soprascritte infiniti esempli; come Moises, Licurgo,Solone, ed altri fondatori di regni e di republiche, e' quali poterono, per aversi attribuito un'autorità,formare leggi a proposito del bene comune: ma li voglio lasciare indietro, come cosa nota. Addurronnesolamente uno, non sì celebre, ma da considerarsi per coloro che desiderassono essere di buone leggiordinatori [...]”. (MAQUIAVEL, 2007a, I, cap. 9). 19 A virtù – essa palavra que, em Maquiavel, tem significado tão controvertido a ponto de, muitas vezes, não ser traduzida em outras línguas da forma mais evidente; ou seja, virtude, quando é traduzida, isso é feito com tantas ressalvas que é quase o mesmo que não fazê-lo – tem em sua raiz latina o sentido que pode melhor esclarecer, na maioria das vezes, o lugar que ocupa no texto de Maquiavel, vis é força, nos vários sentidos que isso pode ter, e Maquiavel afirma que não importa tanto qual é especificamente o modo de proceder de um homem ou de um povo desde que ele tenha virtù, a força para fazer. A virtù, força, tomada, pois em seu primeiro sentido, é força ou virilidade. Ménissier justifica a tradução: “‘Virtude’ é sem dúv i-da o melhor termo, pois, por um lado, põe a ênfase na significação não moral da noção (presente em francês quando se diz de uma planta que ela tem muita virtude, isto é, que as qualidades medicinais que dela se esperam nela se encontram plena-mente), e com isso se subentende que Maquiavel realizou a emancipação da política em relação à moral comum; e, por ou-tro, ele introduz um sutil equívoco, igualmente presente na obra: o florentino não só emancipou a política da moral, ele in-verteu a relação que filósofos como Platão, santo Agostinho e são Tomás tinham instituído entre elas; portanto, ele inventou a moral mais propícia para a política, ou então regenerou a moral por meio da política”. (MÉNISSIER, 2012, verbete Virtu-de (virtù)). 20 “E, para provar isso, digo que há três tipos de exército. O primeiro é aquele em que há furor e ordem, porque da ordem nascem o furor e a virtù, como ocorria com os romanos, pois em todas as histórias se lê que naquele exército havia uma boa ordenação, que introduzira uma disciplina militar duradoura. Porque num exército bem ordenado ninguém precisa fazer na-da mais do que manter as regras; e ver-se-á que, no exército romano – que dominou o mundo e por isso deve ser tomado como exemplo por todos os outros exércitos –, não se comia, não se dormia, não se deitava com meretrizes, não se realizava nenhuma ação militar ou doméstica sem ordem do cônsul. Porque os exércitos que agem de outro modo não são exércitos verdadeiros; e, se dão mostras de ser um exército, fazem-no por furor e ímpeto, e não por virtù. Mas, quando a virtù ordena-da usa o furor na medida e no tempo devidos, nenhuma dificuldade o acovarda nem lhe tira o ânimo: porque as boas orde-nações renovam o ânimo e o furor, alimentados pela esperança de vencer, que nunca faltará enquanto as ordenações estive-rem firmes. O contrário ocorre aos exércitos nos quais há furor, mas não ordenação, como era o dos franceses, que no

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combate cediam porque, não conseguindo vencer no primeiro assalto e não sendo sustentados por uma virtù ordenada, arre-fecia aquele furor, no qual depositavam as esperanças (e, afora ele, não tinham nada em que confiassem), e eles cediam. Os romanos, ao contrário, receando menos os perigos por terem boas ordenações em seus exércitos, não perdiam a confiança na vitória e, firmes e obstinados, combatiam com o mesmo ânimo e a mesma virtù tanto no fim quanto no começo: aliás, agitados pelas armas, sempre se animavam mais. A terceira espécie de exército é aquela na qual não há furor por natureza nem ordenação por acidente: são os exércitos italianos dos nossos tempos, de todo inúteis, que, se não deparam com um exército que fuja, por algum acidente, nunca vencem”. (MAQUIAVEL, 2007a, III, cap.36). 21 Para uma introdução à ideia de similitude, ver FOUCAULT, M. La prose du monde. In: “Les mots et les choses”. Paris: Gallimard, 1966. 22 O tema da imitação, que vem da Antiguidade e toma uma enorme força no Renascimento ligada ao próprio sentido de seu nome, produz inúmeros textos sobre seu verdadeiro sentido, entre os quais o debate entre Bembo e Giovanni Francesco Pico della Mirandola, “De Imitatione”, e tem bela exposição de seu sentido por Petrarcanas duas cartas a Giovanni Boccaccio, datadas de outubro de 1359 e de outubro de 1365 (Familiares, XXII 2 e XXIII 19). Sobre o tema, pode-se ainda consultar a coletânea LECOQ, A. M. (Org.). “La Querelle des Anciens et des Modernes”. Paris: Gallimard, 2001. A imitação é censura-da severamente por Maquiavel, que se deve não a sua prática, mas aos seus objetos, denominados por ele de moles (cf. os proêmios de “A Arte da Guerra”, e dos Discursos, I). 23 “Não ignoro que muitos foram e são de opinião de que as coisas do mundo são governadas de tal modo pela fortuna e por Deus que os homens não podem corrigi-las com a prudência, e até não têm remédio algum contra elas. Por isso, poder-se-ia julgar que não devemos incomodar-nos demais com as coisas, mas deixar-nos governar à sorte”. (MAQUIAVEL, 2011, p. cap.25). 24 Horkheimer interpreta a liberdade em Maquiavel a partir de seus condicionamentos: “Machiavel deixou à atividade huma-na uma margem de liberdade no interior da qual as decisões da vontade podem influenciar o curso da natureza e da socieda-de. Há nos homens alguma coisa de irredutível aos fatores naturais, uma faculdade que se deve atribuir a uma força que transcende a natureza, a um absoluto, a uma graça ou a um livre-arbítrio? Contrariamente às correntes protestantes, o pen-sador da Renascença respondeu pela negativa a esta interrogação. Quando Machiavel divisa a possibilidade de tomar deci-sões livres, ele não subtende de nenhuma forma uma instância exterior ao curso da natureza; a vontade é tão condicionada por fatores naturais, os instintos, as tendências naturais contra as quais ninguém pode agir como a queda de uma pedra é determinada por seu peso. Ainda que ela não seja fundada nem desenvolvida, já se encontra em Maquiavel a idéia filosófica da inclusão dos instintos humanos no grande mecanismo da causalidade. O homem é um pedaço da natureza e não pode de nenhuma forma se livrar de suas leis. Ele não é livre senão na medida em que pode agir com base em suas próprias decisões; ser livre não significa ser libertado dos condicionamentos naturais”. (HORKHEIMER, 1974, p. 34).

Referências ARANOVICH, P. F. História e Política em Maquiavel. São Paulo: Discurso Editorial, 2007. CÍCERO. Dos Deveres. São Paulo: Martins Fontes, 1999. HORKHEIMER, M. Les débuts de la philosophie bourgeoise de l’histoire. Paris: Payot, 1974. MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. São Paulo: Martins Fontes, 2007a. ___________. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2011. ___________. História de Florença. São Paulo: Martins Fontes, 2007b. MÉNISSIER, T. Vocabulário de Maquiavel. São Paulo: Martins Fontes, 2012. RUBINSTEIN, N. “The history of the word politicus in early-modern Europe”. In PAGDEN, Anthony (Ed.). The Languages of Political Theory in Early-Modern Europe. Cambridge [Cambridgeshire]; New York: Cambridge University Press, 1987, p. 41-56. POCOCK, J.G.A. Le Moment Machiavélien. Paris: PUF, 1997.

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PRÉVIDE BERNARDO, Isadora. O De Re Publica, de Cícero: natureza, política e história. 215 f. Dissertação – FFLCH- USP. São Paulo, 2012.

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Maquiavel:

história, política e aparência

Flávia Roberta Benevenuto de Souza1

Resumo: Este artigo objetiva reconhecer o âmbito no qual se insere a política. Este âmbito parece ser apresentado por Maquiavel pela contraposição entre aparência e verdade efetiva. Mas, haveria um meio de dissociá-los? Pretendemos investigar a questão por meio de uma ferramenta muito cara a Maquiavel: a história. Se o terreno da política, assim como o âmbito do poder, se constitui por meio da aparência, do parecer em detrimento do ser, lidar com a incerteza da verdade efetiva é a constatação primeira da necessidade de se investigar o assunto. Palavras-chave: Maquiavel; Aparência; História; Verdade efetiva. Abstract: The objective is recognizer that the scope in which it operates the policy. This framework seems to be presented by Machiavelli by contrast between appearance and truth effective. But there would be a way to dissociate them? We will investigate the issue through a very important tool to Machiavelli: history. If the policy land, as well as the scope of power is constituted by the appearance of the opinion instead of being, dealing with the uncertainty of the effective truth is the first realization of the need to investigate the matter. Keywords: Machiavelli; Appearance; History; Truth effective.

Não se pode pensar o reconhecimento da importância da imagem e da visibilidade como uma novidade introduzida por Maquiavel. Além de fazer parte de uma cultura própria do Renascimento, os ‘espelhos dos príncipes’ (Specula)2, são, de fato, mais antigos e bastante comuns. Nas obras de Maquiavel, no entanto, a questão parece ser abordada de modo a considerar uma complexidade maior das possibilidades que circunscrevem as ações do governante. A imagem do governante permanece no centro da questão, mas, em função das imagens que tais ações são capazes de produzir, podemos pensar que uma espécie de cálculo dos resultados de suas ações é introduzida. A questão da aparência, nesse sentido, assume também um lugar no resultado da práxis do governante. Assim, na medida em que Maquiavel se interessa pelo resultado das ações do governante, que passa pelo julgamento dos homens, a maneira como este julgamento se efetiva torna-se objeto de investigação3.

O ator político não atua sem plateia, e a imagem do governante é, em grande medida, fruto do julgamento dos homens. O governante não pode ignorar a opinione, para usar o termo exato. Ela, muitas vezes, expressa as expectativas e/ou desejos em relação à figura do governante. Expectativas essas que, quando correspondidas, nem sempre implicam as ações mais apropriadas para uma determinada situação. A opinione, presa aos valores da tradição, não pode, sequer, reconhecer as necessidades presentes e, menos ainda, desejar ações específicas a elas. Cabe ao governante praticar ações que possam ir ao encontro das necessidades mais imediatas que lhe são postas em suas funções, preservando seu principal objetivo, que diz respeito à manutenção do poder e, ao mesmo tempo, garantir que sua imagem seja no mínimo aceitável. Assim, como é certo que tanto a obtenção quanto a manutenção do poder circunscrevem o julgamento que o povo faz da figura do governante bem como de suas ações, este juízo precisa ser minimamente abordado neste trabalho, muito embora não se trate de uma de suas questões centrais.

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Uma das passagens mais conhecidas da obra “O Príncipe” diz respeito justamente a esta questão. No capítulo XVIII, Maquiavel afirma que “os homens julgam mais pelos olhos que pelas mãos.” (MACHIAVELLI, 1997, p. 166)4. Encontramos uma passagem parecida nos “Discorsi”: “a universalidade dos homens se nutre com aquilo que parece como se fosse o que é; assim, muitas vezes são afetados mais pelas coisas que parecem do que pelas coisas que são.” (MACHIAVELLI, 1997, p. 257)5. As passagens indicam que, em primeiro lugar, há uma distância entre o que se vê e o que é. Em segundo, poderíamos pensar que o que se vê é mais importante que o que é, e, em terceiro, que só o pode ser em função da capacidade que os homens têm de imaginar. Estas conclusões iniciais já nos conduzem a uma quarta conclusão, ainda mais importante: se tal distância existe e favorece o que se vê, ou seja, o parecer ser, este parecer ser não pode estar à parte do espaço da política. Não pode se constituir fora dele.

No entanto, estas conclusões iniciais a respeito das afirmações de Maquiavel parecem nos conduzir a, no mínimo, duas questões. A primeira surge a partir da passagem expressa em “O Príncipe”, segundo a qual o julgamento dos homens se constrói mais pelos olhos que pelas mãos: podemos mesmo concluir que o que se vê é mais importante que o que é? A segunda questão aparece a partir da passagem dos “Discorsi” e, de acordo com ela, aquilo que parece se distingue do que é: há espaço para se pensar a oposição entre ser e aparecer, clássica na história da filosofia, como uma dicotomia no interior do pensamento de Maquiavel? Tais questões parecem estar interligadas e sua análise sugere nos conduzir a um questionamento da pertinência de tais perguntas. De maneira resumida, poderíamos afirmar que a imagem que se tem do governante é constituída parte pelo que ele de fato faz e parte pela imagem que se cria dele a partir das ações que ele efetivou e que não necessariamente lhes correspondem. Mas, como não é possível fazer essa distinção, dado que o mundo da política é também o espaço da aparência, não é possível opor o que se efetivou ao que parece ter se efetivado. Ambos constituem o terreno próprio da política.

Helton Adverse sugere uma resposta direta à primeira questão, ao afirmar que “não se trata, portanto, de menosprezar a complexidade da vida política reduzindo o real à aparência e sim de compreender que para Maquiavel essa divisão perde sentido no domínio político porque o efetivo é o que aparece.” (ADVERSE, 2010, p. 19). Esta resposta nos permite compreender que a própria pergunta não fazia sentido. Em outras palavras, se o objeto de análise – que é a política – se constrói em um ambiente onde não é possível distinguir o ser do parecer, não faz sentido questionar a relevância de um ou de outro. Só temos acesso ao que aparece e, portanto, nem nosso objeto de análise pode ser de outra natureza, nem as ações do governante se inserem em outro lugar, pois só há aparência. A respeito desta última, Adverse afirma que, “uma vez que os homens ‘julgam mais pelo olhar’, na cidade o parecer não pode ser distinguido do ser porque o espaço social e político é o domínio do aparecer. Dizendo de outro modo, o espaço público é o mundo da aparência.” (ADVERSE, 2010, p. 45). A aparência, assim, não somente se inscreve no espaço da política, como ela própria o constitui.

Assim, a resposta à segunda questão parece dar continuidade à primeira e não é menos definitiva. Não há uma dualidade no sentido clássico da metafísica e, por isso mesmo, não se pode tomar Maquiavel por ‘fenomenólogo’. Evidentemente, o que se concretiza na história e se caracteriza como um fato interessa a Maquiavel, mas não podemos tomar fatos históricos, tal como usados por Maquiavel, como sendo fenômenos próprios da metafísica. O primeiro passo para evitar uma confusão desta natureza é o reconhecimento de que não se trata de um conceito que se pretenda ideal. É construído, acima de tudo, a partir daquilo que se efetivou na história, e esta passa a ser, então, a grande ferramenta conceitual de Maquiavel. Desconsiderar este instrumento parece conduzir ao equívoco de uma tentativa de inserir Maquiavel no mesmo leque de pensadores clássicos que ele tanto criticava. Maquiavel, ao recusar os modelos ideais da tradição, não os substitui por outros da mesma natureza. Tal como afirma Adverse, “os instrumentos conceituais de Maquiavel não pertencem a essa tradição que poderíamos aqui chamar de metafísica” (ADVERSE, 2010, p. 26, grifo do autor). Se há uma distância entre o que é e o que parece ser, ela só interessa ao ator político na medida em que ele precisa considerá-la para tentar produzir, a partir de suas ações, imagens apropriadas aos seus objetivos. Do que se conclui que o bom político, para Maquiavel, é sempre o ator político.

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Precisamos considerar ainda que, mesmo havendo uma distância entre o que se vê e o que é, esta distância desaparece no espaço público. Extingue-se visto que, neste espaço próprio da política, não se pode distinguir as coisas como elas são de como elas parecem ser. A consequência se torna clara: no âmbito da verdade efetiva só há aparecer. Parte-se, assim, da premissa de que o espaço da política é o da aparência. Esta premissa, no entanto, não implica uma dicotomia entre ser e aparecer. Imaginação e realidade fundem-se de tal maneira naquilo que aparece que distingui-las torna-se impossível. A dualidade entre aquilo que se imagina ser e o que é se dissolve no aparecer, e o que se efetiva para Maquiavel é o aparecer. A oposição clássica da metafísica (entre ser e aparecer) parece não fazer sentido no pensamento de Maquiavel. Assim, segundo Adverse, “a aparência em Maquiavel não pode ser pensada com a grade conceitual da metafísica. Em primeiro lugar, ela não é conceito. Em segundo lugar, não se opõe a ser no sentido de essência.” (ADVERSE, 2010, p. 33, grifos do autor). Não podemos deixar de notar o quanto é difícil deixar de usar o vocabulário vinculado a esta dicotomia para abordar a questão. Isto, no entanto, não nos parece implicar um problema, pois este vocabulário nos parece útil para compreendê-la. Embora não se trate da dicotomia própria da metafísica, trata-se de uma diferença de perspectiva e, talvez por isso, nos seja ainda possível abordar a questão pela via deste vocabulário.

Voltando à nossa questão central, ao contrário do que poderíamos pensar em uma leitura inicial, a verdade efetiva não se opõe à aparência. Ao invés disso, constitui-se a partir dela. Não somente da aparência porque não descarta o real, mas não a exclui e nem o poderia fazer6. Poderíamos pensar, seguindo a argumentação de Claude Lefort (1999, p. 145-176), que uma justificativa para o tratamento que Maquiavel confere à questão é sua existência a priori. Dada sua existência, surge a necessidade de que o governante reconheça os dois planos e aprenda a lidar com eles, especialmente com a impossibilidade de identificá-los de forma definitiva. Desse modo, não podemos pensar que Maquiavel cria estes dois planos. Os planos constituem, eles mesmos, com toda sua ambiguidade, a verdade efetiva. Justamente por isso não se pode opor a verità effetuale à aparência. A aparência permeia a verdade efetiva, é uma de suas partes constitutivas. A este respeito, Vissing afirma que “Maquiavel substitui a oposição verdade/aparência pelo conceito de verità effettuale, que compreende indistintamente tudo aquilo que é operacional em política, incluindo as aparências.” (VISSING, 1986, p. 143). Ao ator político não cabe outra coisa senão sabê-lo e aprender a lidar com estes dois planos que constituem o terreno que lhe é próprio, o terreno da política. Resta ao governante ater-se à verdade efetiva e valer-se da imaginação, beneficiando-se dela em função da manutenção do poder. Precisa executar ações tendo em vista que será julgado pelas aparências dos resultados destas. Sua imagem não é fruto somente do que ele é, mas – e especialmente – do que ele parece ser.

Este parece ser um dos grandes desafios daquele que se propõe a manter o poder. Produzir de si e do Estado que governa a melhor imagem, definitivamente, não parece ser uma tarefa simples. A própria virtù (principal característica que deve ter o governante para efetivar seu objetivo relativo à manutenção do poder, como veremos mais adiante) não se caracteriza como própria do espaço da aparência, mas, ao mesmo tempo, não pode ser construída sem ele. O cálculo das ações do governante deve ser feito tendo em vista seus resultados. Dito dessa forma, não parece haver nenhuma especificidade no pensamento de Maquiavel. Mas quando levamos em consideração que, para ele, o terreno da política é o da aparência, uma possível análise dos resultados se torna bem mais complexa, especialmente porque tão ou mais importante do que o que se faz é o que se faz ver.

Neste ponto, precisamos reconsiderar nossas quatro conclusões iniciais. Faz-se necessário expandir seu sentido original tal como o apresentamos anteriormente. Em outras palavras, faz-se necessário complementá-las, pois, se antes não tínhamos elementos suficientes para fazê-lo, parece agora não haver momento mais apropriado. No caso da primeira, há uma distância entre o que se vê e o que é, a conclusão se sustenta, porém perde importância na medida em que o que se efetiva é aparência e, portanto, não se pode identificar tal distância, apenas sabê-la. A segunda, o que se vê é mais importante que o que é, como vimos, foi superada a partir da constatação de que só se efetiva o que se faz ver. Assim, a identificação de uma convergência entre o que parece ser e o que é naquilo que se efetiva, ou seja, na verdade efetiva, retira qualquer tipo de prioridade destas duas questões iniciais. Porém, tornam ainda mais interessantes as duas últimas. A terceira diz respeito à imaginação e

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corrobora a quarta e mais importante de todas elas: o que existe é a aparência e o é, em grande medida, graças à imagem que os outros dela formulam. Resta-nos investigá-las.

O reconhecimento de que a verdade efetiva é o que aparece, e que o que aparece pode ser somente uma imagem produzida pela imaginação, nos conduz à necessidade de uma melhor compreensão da função desta última na política. O lugar da política parece ser justamente o ponto onde a realidade e as possíveis imagens que se pode criar das coisas se encontram. Alguns autores chegam a usar o termo ficção para pensar a questão da imagem na política. Em “Figures du Povoir” (2001a), mais especificamente no seu capítulo intitulado ‘Politique et fiction’, Zarka aborda a questão pelo uso deste termo. Ele diz “arriscar a afirmação: a política é talvez o lugar da ficção por excelência” (ZARKA, 2001a, p. 119). Apesar deste uso, preferimos nos restringir a opor a verdade efetiva às imagens que se pode formular daquilo que acontece no âmbito da política. Acreditamos que, se a verdade efetiva das coisas não é mais que a aparência que, neste caso, se traduz pela confluência daquilo que é com as imagens que, de alguma forma, foram produzidas por aqueles que se inserem no espaço da política, talvez seja exagero pensar a política como um terreno próprio de ficções.

Assim, poderíamos pensar que a busca pela verdade se encerra justamente no reconhecimento da verdade efetiva. E, se a verdade efetiva coincide com a aparência, podemos dizer que a busca pela verdade em Maquiavel se encerra naquilo que aparece. Além disto, não há mais nada a procurar. Não necessariamente por ter-se atingido o ser, mas por ter-se atingido o ápice do que é passível de desvelamento no âmbito da política. A este respeito, Paul Valadier afirma que “o espaço público constitui então uma realidade específica estruturada pela aparência, e essa aparência não é ultrapassável. Aqui uma transparência ou um imediatismo são impossíveis; derivam do sonho ou da ignorância da realidade efetiva.” (VALADIER, 1996, p. 73). É certo que a realidade ou a verità effectualle della cosa se revela naquilo que aparece, mas, mesmo assim, além dela não há nada a se considerar. Ela encerra o conhecimento possível das coisas humanas. Por traz da verdade efetiva não há mais nada que se faça passível de ser conhecido e, portanto, nada que possa contribuir aos objetivos do governante. Assim, nas palavras de Adverse, “a obra de Maquiavel vai de encontro a essa estratégia seguindo em direção da verdade efetiva das coisas, tomando a realidade como é, afirmando sua opacidade e, a partir daí, colhendo material para conceitualizá-la.” (ADVERSE, 2010, p. 24). A obra de Maquiavel é, acima de tudo, política, e ele, privado deste espaço, parece ter-se disposto a desvendá-lo. Ao fazê-lo, no entanto, reconhece as dificuldades e os limites próprios da política e nos convida a refletir sobre eles, assim como sobre as maneiras de reverter o processo de corrupção de um Estado em crise (tal como a Itália daquele tempo). Não propõe um ‘modelo’ acabado (que existe, segundo ele, somente na imaginação dos homens), mas maneiras de reconhecer os obstáculos prováveis para melhor enfrentá-los.

De forma a dar eco ao que afirmaram todos estes autores, partimos da verdade efetiva como uma máxima maquiaveliana cujo fundamento não ultrapassa o que se realiza, ou seja, não ultrapassa a aparência. Como vimos a partir da afirmação de Zarka, isso só pode ocorrer por ser a aparência o âmbito da política e pelo fato de constituir esta última um terreno propício à produção de imagens pela – fazendo o uso do termo utilizado por Maquiavel – immaginazione. A necessidade atribuída ao governante de construir de si mesmo a imagem de grande homem é a consequência primeira de uma expectativa derivada da immaginazione dos homens. A construção desta imagem parece não poder se efetivar sem passar sempre pelo juízo dos homens. O julgamento, como vimos, é em grande medida do que se vê e, portanto, não parece ser possível dissociar a imagem do governante da opinione. Acontece que os homens julgam a partir do terreno das aparências. Não necessariamente o que é se caracteriza como prioritário. O que é inevitavelmente julgado é a imagem que se abstrai daquilo que se concretizou na história, mesmo que seja esta imagem muito distinta do fato ocorrido. Julgam com os olhos e não com as mãos, para usar os termos de Maquiavel. E é esta diferença de perspectiva que não pode ser ignorada por aquele que governa.

Talvez a história seja a única capaz de nos possibilitar certo desvelamento daquilo que aparece. Se o que é configura-se como o que aparece, por vezes, em um evento passado, pode ser possível perceber a não coincidência entre o que pareceu se efetivar na história e o que, de fato, se efetivou. A história, eventualmente, é capaz de nos possibilitar desfazer o engano. Porém, muito dificilmente

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poderemos desfazê-lo no momento em que ele acontece. Ainda mais dificilmente podemos pensar a possibilidade de desfazê-los sempre. Mas, é desfazendo vez ou outra a confluência verdade-aparência que podemos, até mesmo, assegurar que ela existe. Neste sentido, quando afirmamos que o mundo da política é o mundo da aparência, podemos afirmá-lo pela utilização da história, que se apresenta, neste caso, como mecanismo de investigação. A história apresenta-se como uma importante ferramenta àquele que governa. Ela fornece elementos para que o governante possa aprender com os acontecimentos passados e apreender deles certos meios para evitar cometer os mesmos erros de atores que o antecederam, bem como procurar alcançar os mesmos acertos dos grandes homens.

A história assume, assim, um papel fundamental para a figura do governante. Porém, seu conhecimento puro e simples não necessariamente se faz suficiente para uma decisão que precise ser rápida e eficaz. Se o âmbito da política é o da aparência e não há nada além daquilo que aparece, o engano pode ser inevitável quando o governante precisar efetivar sua ação sem a chance de se debruçar longamente sobre os acontecimentos. Ao passo que, ao partir dos resultados consequentes das ações políticas de atores que o antecederam, pode aprender com situações semelhantes e valer-se deste aprendizado para analisar melhor uma determinada situação presente. Para isso, o simples conhecimento da história não é suficiente. É preciso apreender dela os melhores modos de agir. Em curtas palavras, é preciso produzir o conhecimento a partir da experiência. Certamente, esta análise não elimina os riscos de um possível engano, mas pode diminuí-lo, dependendo das circunstâncias. Analisar fatos passados para tomá-los como parâmetro para uma decisão no presente exige cuidados específicos.

Neste sentido, faz-se necessário nos voltarmos aqui, mesmo que de forma breve, para algumas considerações que Maquiavel nos apresenta sobre a história e as maneiras pelas quais os homens costumam construí-la e apreendê-la. Esta questão é tratada por Maquiavel no proêmio do segundo livro dos Discorsi, em que ele analisa a construção dos eventos históricos ao longo do tempo e apresenta algumas de suas considerações sobre o juízo que os homens fazem dos acontecimentos passados, segundo ele quase sempre comum. Em suas palavras: “os homens sempre louvam – mas nem sempre com razão – os tempos antigos e reprovam os atuais: e de tal modo estimam as coisas passadas, que não só celebram as eras que conheceram graças à memória que delas deixam os escritores, como também aquelas que os velhos se recordam por as terem visto em sua juventude.” (MACHIAVELLI, 1997, p. 324)7. Na sequência do texto, Maquiavel parece problematizar esta perspectiva ao afirmar que, “quando tal opinião é falsa, como no mais das vezes o é, persuado-me de que são várias as razões que os levam a tal engano.” (MACHIAVELLI, 1997, p. 324)8. Duas destas razões nos são apresentadas logo em seguida. Em um primeiro momento, Maquiavel afirma que “nunca se conhece toda verdade das coisas antigas, visto que, no mais das vezes, se escondem as coisas que infamariam aqueles tempos, magnificando-se e ampliando-se as outras coisas que podem glorificá-los.” (MACHIAVELLI, 1997, p. 324)9. Mais adiante, seguindo sua argumentação, ele apresenta uma segunda razão ao afirmar que “os homens odeiam as coisas por temor ou por inveja, e nas coisas passadas estão extintas essas duas poderosíssimas razões de ódio, visto que elas não podem ofender e não dão motivos de inveja” (MACHIAVELLI, 1997, p. 324)10. Estas passagens, que abrem quase inusitadamente o Segundo Livro dos “Discorsi” e às quais muito se recorre, sugerem nos remeter, no mínimo, a duas considerações importantes. A primeira é a clareza que Maquiavel tem do papel do historiador na efetividade dos fatos históricos, podendo mesmo descrevê-los um tanto melhores do que de fato foram11. A segunda diz respeito à capacidade humana de imaginar, neste caso, de considerar um determinado fato ocorrido de forma distinta de como ele se efetivou. Assim, podemos pensar que é possível a imagem concretizada na história não corresponder integralmente à verdade efetiva do evento histórico. Consequentemente, podemos pensar que a história, de alguma forma, faz perdurar a imagem construída e não necessariamente a verdade efetiva das coisas. Voltamos, assim, à necessidade de tratar do ator político e seus expectadores, pois é a partir deles que se constrói a história que parece refletir, por sua vez, o único âmbito possível quando nos referimos ao terreno da política: a aparência.

Maquiavel, no entanto, nos aponta que o que se espera daquele que governa é que ele tenha todas as qualidades consideradas boas. Mais que isso, segundo ele, que conquiste a fama de grande homem. Consequentemente, esta é a imagem que o ator político precisa produzir a partir de suas ações

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para manter-se o poder. No entanto, e porque isto pode se configurar como um propósito muito difícil, Maquiavel, atento à verdade efetiva, adverte:

Sei que vão dizer que seria muito louvável que um príncipe, entre todas as qualidades acima [liberal, miserável; pródigo, ganancioso; cruel, piedoso; falso, fiel; efeminado, pusilânime; lascivo, casto; íntegro, astuto; duro, maleável; ponderado, leviano; religioso, incrédulo], possuísse as consideradas boas. Não sendo isto, porém, inteiramente possível devido às próprias condições humanas que não o permitem, ele deve ser suficientemente prudente para evitar a infâmia daqueles vícios que lhe tirariam o poder [...]. (MACHIAVELLI, 1997, p. 159-160)12.

Buscar a fama ou, no mínimo evitar a má fama. Maquiavel não aponta as qualidades consideradas boas e, consequentemente, no mínimo duas questões nos ocorrem, a saber: qual é a imagem de um grande governante? E, como produzi-la? Em outras palavras, sabemos que a resposta passa pela produção de uma determinada imagem, mas qual? E, quais ações o ator político deve efetivar para conquistar a fama de grande homem ou, pelo menos, evitar a infâmia?

Novamente as questões parecem estar interligadas. A obra de Maquiavel nos fornece elementos para identificarmos, no caso da primeira questão, a imagem que se espera do governante com a de grande homem. Mais que isso, de um homem honrado, de um homem de glória. Uma hipótese possível para se pensar a imagem que os homens esperam daquele que os governa é que o governante seja, de alguma forma, superior aos demais (e é justamente sua superioridade que justifica o lugar que ele ocupa) e que resplandeça sua superioridade, especialmente naquilo que diz respeito à guerra, à honra e aos valores da tradição. Assim, a imagem que se espera do governante é de um homem honrado, glorioso e, acima de tudo, um homem de virtude. Glória e honra, no entanto, não são, necessariamente, consequentes das mesmas praxes e, para obter essa reputação de homem honrado, o governante não pode colocar em risco seu poder, deve, ao contrário, tentar alcançar a glória. Isso, por vezes, pode implicar uma grande dificuldade.

A partir, por exemplo, da consideração de que suas ações serão julgadas pelos olhos, o governante pode tentar manipular a construção de sua imagem, tornando-se honrado e adequando sua imagem às expectativas que se têm dele (ao mesmo tempo em que age de acordo com o que exigem as circunstâncias). Esta manobra torna possível ao governante o somatório daquilo que ele precisa fazer e do que parecer ser, nem sempre coincidentes. Pode, assim, a partir dela, ser honrado, glorioso, e salvo pela força dos vitupérios da fortuna que podem tudo mudar e efetivar a conquista e a manutenção do poder. Estes, de fato, parecem ser os modos sugeridos por Maquiavel para que o governante possa sustentar estas expectativas construindo de si uma imagem adequada aos seus objetivos. Uma imagem adequada às “maneiras pelas quais se podem governar e conservar-se” (MACHIAVELLI, 1997, p. 119)13, no entanto, é difícil de ser construída devido à necessidade da prática de ações que não correspondem à práxis que se espera do governante. A solução encontrada por Maquiavel para que o governante possa tentar viabilizar seus objetivos se constrói inteiramente em função de dois pressupostos: primeiro, por ser o âmbito da política constituído pela aparência; segundo, por serem os homens capazes de imaginar (o que implica que são dotados de um mecanismo que pode remetê-los a experiências que não necessariamente se efetivam na história). Mas os resultados nem sempre podem ser controlados, e vários fatores contingentes podem modificá-los, e não necessariamente quem manipula consegue fazê-lo em seu favor. Por ora, deixaremos de lado tais contingências e retomaremos o assunto no capítulo seguinte quando trataremos da fortuna. Assim, quando a salvo dos imprevistos da fortuna, o governante, sabendo que tanto as suas ações quanto a de todos no âmbito público se efetivam no âmbito da aparência, pode se valer da capacidade dos homens de imaginar para alcançar seus objetivos principais, ao mesmo tempo em que se cerca de precauções em relação às ações dos demais atores políticos. Ao reconhecer a possibilidade de se imaginarem coisas que nunca se efetivaram em um corpo político e ao tomá-la como própria dos homens, Maquiavel sugere ao governante que produza de si uma imagem que o mostre melhor do que ele é e se beneficie da

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capacidade que os homens têm de imaginar. Paralelamente, ele, governante, precisa precaver-se em relação ao que imagina, especialmente quando se trata de governos que nunca existiram. É certo que o espaço da política é preenchido pela aparência e, consequentemente, nem sempre é o governante quem engana. Ele pode ser enganado e pode fracassar na sua tentativa de enganar. Ele também imagina, e isto não pode ser evitado. A este respeito, Adverse afirma que,

os lugares não são fixos, quem engana pode ser enganado. Os que julgam com as mãos podem, em outra circunstância, julgar apenas com os olhos. Maquiavel diz que os homens, em geral, julgam mais com os olhos e menos com as mãos, o que significa que não são duas classes de homens que estão em jogo e sim duas formas de juízo que todos, em princípio, podem utilizar, mas que a maioria não o faz. Nas questões políticas, a maioria costuma tomar suas decisões apoiando-se no juízo do olhar. Maquiavel nos mostra que esse juízo pertence a um certo lugar no jogo político sem definir quem o ocupa. (ADVERSE, 2010, p. 48).

A passagem evidencia o reconhecimento que Maquiavel faz da impossibilidade de se fazer um

cálculo absoluto das ações humanas, assim como das circunstâncias que as circunscrevem no espaço público. O governante atento à verdade efetiva pode se cercar de cuidados que, possivelmente, o auxiliarão nos seus objetivos. Entretanto, suas ações são limitadas pela opacidade das coisas humanas e não há como mudar isso. Mas é certo que deverá se ater à imaginação, seja a dos homens, para conduzi-los a acreditar naquilo que o sustente no poder, seja a sua própria capacidade de imaginar, para não cometer o erro de imaginar possibilidades de ações incapazes de se efetivar e perder seu poder em função disto14.

Estas considerações, no entanto, extrapolam os limites da primeira questão e invadem, de alguma maneira, o espaço próprio da segunda, relativa aos procedimentos específicos do governante para obter a imagem que dele se espera. E, muito embora não nos pareça ser possível respondê-la diretamente, a resposta à primeira questão sugere indícios de um caminho que começou a se delinear rumo à sua investigação. Voltando a nosso ponto de partida, de acordo com o qual associávamos a aparência à imaginação, podemos agora vislumbrar algumas consequências que começam a se fazer mais claras: a atuação do governante é necessária (especialmente porque ele precisa ser visto melhor do que ele é – e naquilo em que ele não corresponde à expectativa que se tem dele e, como sabemos, precisa corresponder, não lhe resta outra coisa senão manipular sua própria imagem –, caso contrário, terá chances menores de se manter no poder); os meios de atuação que conduzem aos melhores resultados tornam-se viáveis a partir do momento em que o governante pode recorrer à imaginação dos homens para criar de si a imagem esperada.

A atuação do governante e a manipulação de sua imagem se fazem possíveis, “pois os homens são tão simples e obedecem tanto às necessidades presentes, que aquele que engana encontrará sempre quem se deixe enganar” (MACHIAVELLI, 1997, p. 166)15. Os homens, como vimos, imaginam um ideal de governante que a verdade efetiva tende a evidenciar impossível. Prendem-se a um modelo de governante que acreditam ser razoável, mas que, inevitavelmente, em algum momento tem sua razoabilidade contestada pela veritá effetualle. Não há modelo capaz de lidar com todas as variáveis dispostas no ambiente da política; por melhor que seja o modelo imaginado, idealizado pelos homens, sua sustentabilidade é comprometida na mesma proporção em que as modificações próprias do âmbito da política se impuserem sobre ele. Ao mesmo tempo, é possível corresponder, em certa medida, a este ideal já traçado, porque os homens, ‘simples que são’, para usar os termos de Maquiavel, desejam que o governante corresponda à imagem ideal que criaram e parecem atentar pouco para aquilo que parece contrariá-la. Assim, desde que o governante saiba não a contrariar em muitas coisas, e ainda, disfarçar incompatibilidades eventuais (ou mesmo habituais) do que faz em relação àquilo que se espera dele, provavelmente não perderá o poder por não ter construído de si uma imagem apropriada. Conta, antes de tudo, com a condescendência daqueles que querem viver em um mundo perfeito. O governante, assim, se efetiva ator e, quanto mais capaz de manipular sua plateia, menor a resistência que ela lhe impõe e maior sua chance de êxito.

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Em uma passagem que se tornou bem conhecida, Maquiavel afirma que

a um príncipe, portanto, não é necessário ter de fato todas as qualidades supracitadas16, mas é indispensável parecer tê-las. Aliás, ousarei dizer que, se as tiver e utilizar sempre, serão danosas, enquanto se parecer tê-las serão úteis. Assim, deves parecer piedoso, fiel, humano, íntegro, religioso — e sê-lo, mas com a condição de estar com o ânimo disposto a quando necessário, não o ser, de modo que possa e saiba como tornar-se o contrário (MACHIAVELLI, 1997, p. 166)17.

Esta passagem parece evidenciar a necessidade que se impõe ao governante não só de

reconhecer a existência do âmbito da aparência, como de valer-se dele em seu favor sob pena de, se não o fizer, comprometer a manutenção do seu poder. Essa necessidade o faz aprender a atuar. Mas, muitas são as dificuldades para fazê-lo, especialmente por não se restringir ao governante a capacidade de valer-se do âmbito da aparência para manipular a própria imagem. Nas relações de poder que o governante precisa estabelecer, seja de ordem interna ou externa, ele se apresenta como imagem ao mesmo tempo em que sempre lida com imagens. Não há transparência no âmbito da política, e não se pode responsabilizar a figura do governante pela opacidade do espaço público. Este último não possibilita transparências, e o ator político manipula sua imagem ao mesmo tempo em que lida com imagens que também foram, de alguma forma, manipuladas. Além disso, apesar de haver uma maioria que se deixa enganar, o engano não pode ser generalizado. Assim, é certo que o governante não tem o poder de manipular tudo. Não pode e nem consegue simular ou dissimular tudo que faz, embora não possa deixar de fazê-lo. Assim, temos que, uma vez assumida a condição de ator (de ‘ilusionista’, de manipulador), mesmo que em situações específicas, quando age abertamente, ou seja, sem atuar, o governante não se faz menos ator. Talvez em função disto Sfez afirme que “a tarefa de Maquiavel não implica a constituição de uma ordem, mas na constituição de uma cena estético-política que guarda em seu cerne a apresentação do homem de glória.” (SFEZ, 1998, p. 81). O governante parece estar sempre atuando, mesmo quando não o faz; de fato, permanece ator, ou ainda, mesmo quando não tem a intenção de manipular sua própria imagem, ainda assim atua. Se bom ator, nunca permite que se saiba se, em um determinado momento, atua ou não. O ator é enigmático e não lhe poderia haver lugar mais apropriado que o âmbito da política. Há sempre uma cena a ser interpretada, e ela não é criada pelo governante, existe independentemente dele. Sua atuação não é ornamental, é necessária.

Assim, o bom ator se constitui como tal na medida em que não permite perceber quando se trata de uma atuação. Não pode atuar o tempo todo, mas, quando o faz, não poder permitir que percebam. Isto faz do governante mais que um ator. Ele não só manipula, também dissimula e simula. Assim, inevitavelmente, quando falamos em produção de imagem, não lidamos apenas com a manipulação, mas, dependendo do caso, com a simulação e a dissimulação. “A arte de governar é também, como é sabido, a arte de dissimular, e até de simular”, afirma Zarka (2001a, p. 121). O governante é, então, ator e ‘ilusionista’ e o faz, ou pelo menos precisaria fazê-lo, sempre que a situação presente exija. Nas palavras de Maquiavel, “é necessário [...] ser grande simulador e dissimulador” (MACHIAVELLI, 1997, p. 166)18. Não parece ser possível manter-se no poder sem o ser. Mas a que ele se refere exatamente? E como fazê-lo?

Zarka nos ajuda a compreender melhor tais termos. Ele investiga o uso deles na época de Maquiavel e apresenta uma distinção entre simulação e dissimulação que, segundo ele, é própria dos séculos XVI e XVII. Assim, de acordo com ele, enquanto “a primeira era compatível com as exigências da moralidade, a segunda [...] era incompatível com estas exigências.” (ZARKA, 2001a, p. 121). Maquiavel e suas obras se inserem neste período e, como sabemos, se valem de ambos os termos. Inevitavelmente, tais termos, também a partir de sua obra, costumam ser tomados sob tais critérios. Precisamos considerar que esta distinção é, no entanto, posterior à obra de Maquiavel. Isto não passou despercebido a Zarka19. Na sequência do texto, ele afirma que “não se trata de uma questão de moralidade ou imoralidade, mas de uma questão de política: a reprodução das condutas de obediência

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que asseguram a manutenção do Estado supõe a produção de ficções.” (ZARKA, 2001a, p. 121), ou, tal como preferimos, supõe a produção de determinadas imagens.

Haja vista a maneira como a obra foi lida ao longo dos tempos, dissimular e simular são apresentadas por Maquiavel como habilidades de grande valia aos objetivos do governante e tornam-se parte essencial da arte de governar. Zarka o evidencia, apontando, especialmente a partir da obra O Príncipe, a utilização que o autor faz destes termos. Segundo ele, “Maquiavel percebeu [...], assim como foi ele quem revelou, que a política funciona sob o modo da ficção-simulação, e que, antes dele, se pensava funcionar sob o modo da verdade e da moral, ou seja, da transparência.” (ZARKA, 2001a, p. 121)20. Se for certo que há muitas questões abordadas por ambos, e a da aparência se constitui como uma delas, é certo também, e de modo especial naquilo que diz respeito a esta questão, que se opõem irremediavelmente. Assim, enquanto uns defendem uma imagem de governante que se constrói por via de práxis, que assume como fundamento os valores da tradição (no caso da tradição cristã), o outro, apesar de reconhecer tais valores, assim como a necessidade de se criar uma imagem que os transpareça, assume como fundamento o objetivo de manter o poder que exige, em contrapartida, a desconsideração eventual de tais valores. Neste segundo caso, resolve-se a questão aparentando ter os valores da tradição cristã, mesmo que, sempre que necessário, os contrariando21. A partir da afirmação de Zarka, parece haver uma ‘novidade’ em Maquiavel. Governar é, entre outras coisas, atuar, e se não há novidade alguma em se pensar a maneira como o governante é visto, há em pensar os mecanismos capazes de forjar sua imagem, assim como na capacidade dos homens em admitir todo este processo. Desta questão, no entanto, trataremos, como já foi dito, mais adiante. Precisamos, antes, compreender os meios de se efetivar uma determinada imagem no âmbito da política pela simulação e pela dissimulação.

A partir do momento em que se reconhece o âmbito da política como o terreno da aparência, simular e dissimular se tornam atividades necessárias e próprias dos atores políticos. Admitir a impossibilidade de um desvelamento total do real pode ser tomado como uma condição para a manutenção do poder. Além disso, partindo do mesmo pressuposto que Zarka, poderíamos dizer que o governante, para Maquiavel, não necessariamente perde seu poder por ser efetivamente bom ou mau, mas muito mais pelas imagens projetadas por suas ações através dos planos possíveis de percepção destas. E, mesmo que ignore o fato de suas ações produzirem imagens (que nem sempre lhe correspondem), não produzirá menos imagens em função dessa sua ‘ignorância’. Assim, parece não haver como escapar à produção de imagens, e ele o faz, em grande medida, a partir do momento em que dissimula suas ações ou simula uma determinada cena.

A produção de imagens pode ser capaz de possibilitar ao governante aquilo que, sem elas, seria impossível. Assim, quando as ações do governante não correspondem à expectativa que se tem dele, não há outro modo de alcançar a fama de grande homem (ou pelo menos evitar a má fama) senão pela capacidade ilusionista do governante de manipular sua imagem para deixá-la de acordo com a expectativa; associada, vale lembrar, à capacidade dos homens de imaginar. Tudo isto, no entanto, só faz sentido e somente pode se concretizar se a verdade efetiva é tomada como ponto de partida. Neste sentido, Zarka afirma que “o retorno à verdade efetiva das coisas, que é o princípio da política em Maquiavel, está de fato ligado a uma análise dos mecanismos de produção de ficções. É pela ficção, entendida aqui no seu sentido de ilusão e artifício, que o príncipe deve regrar seu governo do povo” (ZARKA, 2001a, p. 121)22. O governante, ilusionista – para usar o termo de Vissing –, pode, assim, graças à aparência, ter a chance de efetivar seus objetivos relacionados à manutenção do poder. Ele precisa considerar que não há estratégia eficaz capaz de escapar das especificidades do âmbito da aparência.

Governar torna-se, assim, uma atividade mais complexa a partir de Maquiavel. Ela extrapola o âmbito das ações que devem ser efetivadas para considerar, ainda, a impressão que se tem delas, ou seja, parte-se do pressuposto de que as ações praticadas pelo governante assumem significados nem sempre idênticos àquilo que foi efetivado, mas de mesma importância para seus objetivos. Tal como afirma Adverse, “a ação política requer a capacidade de assegurar uma imagem que revestirá o ator político, de compor uma imagem que será o lugar no qual ele irá se abrigar nessa rede de significações.”

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(ADVERSE, 2010, p. 19). No entanto, não se restringe à produção desta imagem. Tal rede, que parece constituir os fundamentos deste que parece ser o complicado emaranhado teórico que Maquiavel se propõe a enfrentar, depende, por um lado, de ações efetivas que se constituam gloriosas e, por outro lado, passa, inevitavelmente, pela construção desta imagem que, não poucas vezes, pode precisar ser forjada. Assim, no que diz respeito à política, o que existe é aparência. Só há aparência. Mas, para que o governante construa de si mesmo, assim como do Estado que governa, uma aparência conveniente aos seus objetivos, ele não pode manipular todos os resultados de suas ações. Ele precisa, efetivamente, procurar ser um homem de reputazione, conquistar a fama de grande homem e, embora precise simular e dissimular nos momentos em que sua imagem poderia ser de alguma forma comprometida, não pode recorrer a esse artifício a todo o momento e, portanto, não pode edificar a imagem de grande homem sem o ser ao menos na maior parte do tempo. Não podemos nos esquecer de que muitas coisas não podem ser meramente imaginadas pelos homens, e que o governante precisa efetivá-las, embora nunca o faça por outra via senão a da aparência.

Notas 1 Professora da Universidade Federal de Alagoas – UFAL. outora em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Endereço eletrônico: [email protected], Endereço para correspondência: Av. Doutor Antônio Gou-veia, 775 apto 503. Ed. Canoa. Bairro Pajuçara, Maceió – AL. CEP: 57030-170. ² Quando mencionamos os ‘espelhos dos príncipes’ estamos nos referindo aos manuais de aconselhamento para príncipes. Trata-se de um assunto extremamente genérico, pois há vários tipos de conselhos e estes foram dados em momentos histó-ricos muito diferentes. Assim, partimos do pressuposto de que os Specula não representam uma inovação à arte de governar. Segundo afirma Senellart, se ignoramos os gêneros literários desse tipo de obra temos a chance de perceber o quanto são antigos: “vêm das civilizações do Egito e da mesopotâmia” (SENELLART, 1995, p. 45). Teriam sido, no entanto, e ao con-trário dos Specula, pouco estudados e não teriam um lugar iminente nas ‘artes de governar’ (SENELLART, 1995, p. 45). 3 Este trabalho se desviaria de sua proposta inicial se, neste momento, em vez de tratar do governante, começássemos a tra-tar do povo. Partimos do pressuposto de um corpo político cindido e optamos por estudar a figura do governante que se circunscreve claramente no lugar oposto ao do povo. Não pretendemos partir para uma análise da perspectiva do povo, haja vista que ela não cabe nos limites deste trabalho. Tal análise nos interessa apenas enquanto interfere no resultado das ações do governante, enquanto este último se apresenta como responsável direto pelas estratégias que o governante deverá arqui-tetar para manter o poder. Assim, não nos interessa aqui estudar propriamente as imagens sugeridas por Maquiavel, mas seu fundamento. Interessa-nos o conceito produzido por Maquiavel para minimizar a instabilidade consequente da enorme quantidade de variáveis às quais o governante se encontra sujeito ao assumir os objetivos de conquista e manutenção do po-der. 4 MACHIAVELLI. “Il Principe”, XVIII: E li uomini in universali iudicano piú alli occhi che alle mani [...]. 5 MACHIAVELLI. “Discorsi”, I, 25: [...] perché lo universale degli uomini si pascono così di quel che pare come di quello che è: anzi, molte volte si muovono piú per le cose che paiono che per quelle che sono. 6 A este respeito, Adverse (2010) nos apresenta ainda os riscos de se pensar, aqui, em uma dicotomia. Ele recorre ao conceito de maquiavelismo, tal como apresentado por Claude Lefort, para tratar das consequências de se assumir esta distinção entre ser/aparência. Segundo ele, “Maquiavel é ‘maquiavélico’ quando acreditamos que por detrás da aparência há uma verdadeira política, uma política real. Maquiavel é ‘maquiavélico’ quando desdobramos a realidade política, quando a duplicamos, colocando de um lado as autênticas intenções de um ator político, ou um príncipe, e de outro o que ele mostra. [...] Dizendo de outra forma, o príncipe não antecede o poder. Todo o ser do político, na medida em que ele age, está na representação, naquilo que ele dá a ver. Por isso não é correto dizer que para Maquiavel a aparência substitui o verdadeiro ser: na política, a aparência é o ser e o único príncipe que existe é o príncipe que se vê” (ADVERSE, 2010, p. 50, grifos do autor). Ver, a este respeito, LEFORT. 1972, p. 74. 7 MACHIAVELLI. “Discorsi”, II, Proemio: Laudano sempre gli uomini, ma non sempre ragionevolmente, gli antichi tempi, e gli presenti accusano, ed in modo sono delle cose passate partigiani che non solamente celebrano quelle etadi che da loro sono state, per la memoria che ne hanno lasciata gli scrittori, conosciute, ma quelle ancora che, sendo già vecchi, si ricordano nella loro giovanezza avere vedute. 8 MACHIAVELLI. “Discorsi”, II, Proemio: E quando questa loro opinione sia falsa, come il piú delle volte è, mi persuado varie essere le cagioni che a questo inganno gli conducono. 9 MACHIAVELLI. “Discorsi”, II, Proemio: [...] delle cose antiche non s’intenda al tutto la verità, e che di quelle il piú delle volte si nasconda quelle cose che recherebbono a quelli tempi infamia, e quelle altre che possano partorire loro gloria, si rendino magnifiche ed amplissime. 10 MACHIAVELLI. “Discorsi”, II, Proemio: [...] odiando gli uomini le cose o per timore o per invidia, vengono ad essere spente due potentissime cagioni dell’odio nelle cose passate, non ti potendo quelle offendere, e non ti dando cagione d’invidiarle.

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11 Maquiavel, em muitos momentos, utiliza a história para fundamentar suas hipóteses teóricas sem problematizá-las. Neste trecho em específico ele abre uma suspeita daquilo que sustenta muitos dos seus argumentos. Assim, se, por um lado, to-mamos a passagem para pensar a clareza que o autor tinha da forma como são narrados os eventos, por outro, compreen-demos que esta questão não se esgota. Tratar, no entanto, da relação entre a concepção maquiaveliana da construção da his-tória e o uso que ele faz desta não constitui um tema possível nos limites deste trabalho. 12 MACHIAVELLI. “Il Principe”, XV: E io so che ciascuno confesserà che sarebbe laudabilissima cosa uno principe trovarsi, di tutte le soprascritte qualità [liberale, misero; donatore, rapace; crudele, piatoso; fedifrago, fedele; effeminato, pusillanime; feroce, animoso; umano, superbo; lascivo, casto; intero, astuto; duro, facile; grave, leggieri; religioso, incredulo] quelle che sono tenute buone. Ma, perché le non si possono avere tutte né interamente osservare, per le condizioni umane che non lo consentono, è necessario essere tanto prudente ch'e' sappi fuggire la infamia di quegli vizi che gli torrebbono lo stato [...]. 13 MACHIAVELLI. “Il Principe”, II: [...] come questi principati si possino governare e mantenere. 14 Vale lembrar que “Power and Imagination” é o título do livro de Lauro Martines. No prefácio da obra, ele justifica a esco-lha do título. Em suas palavras: “o título ‘Power and Imagination’ é minha maneira de fazer referência, e alterar, a distinção mais tradicional existente entre ‘sociedade’ e ‘cultura’. Contando uma história que atravessa cinco séculos fui conduzido a tomar um tema central mais facilmente visível que ‘sociedade’. Eu escolhi centralizar atenção nas fortunas do ‘poder’ por-que, ao traçar o movimento da autoridade política, fui também compelido, durante todo o percurso, a seguir a direção da variável social e econômica. E eu escolhi ‘imaginação’ ao invés de ‘cultura’ porque minha maior preocupação diz respeito às relações entre grupos sociais dominantes (poder) e a articulada, formal, refinada, ou idealizada consciência daqueles que fa-lam pelo Poder. Neste sentido, o trabalho da imaginação tende a ser mais importante” (MARTINES, 1988, p. XI). 15 MACHIAVELLI. “Il Principe”, XVIII: [...] e sono tanto semplici gli uomini, e tanto ubbidiscono alle necessità presenti, che colui che inganna troverrà sempre chi si lascerà ingannare. 16 Maquiavel, no capítulo XVIII de sua obra “O Príncipe”, ilustra esta passagem problematizando as circunstâncias em que o príncipe pode ou não guardar a palavra dada. Parece se valer deste exemplo para tratar da necessidade do governante de pre-servar a aparência de que nele se pode depositar confiança mais que a lealdade propriamente dita (ver MACHIAVELLI, 1997, p. 165-166). 17 MACHIAVELLI. “Il Principe”, XVIII: A uno principe, adunque, non è necessario avere in fatto tutte le soprascritte qualità, ma è bene necessario parere di averle; anzi ardirò di dire questo: che, avendole e osservandole sempre, sono dannose, e, parendo di averle, sono utili: come parere piatoso, fedele, umano, intero, religioso ed essere; ma stare in modo edificato con lo animo che, bisognando non essere, tu possa e sappia diventare il contrario. 18 MACHIAVELLI. “Il Principe”, XVIII: Ma è necessario [...] essere gran simulatore e dissimulatore [...]. 19 Porém, ele o reconhece em outro livro: “Machiavel, Le Prince ou le nouvel art politique” (p. 12). Na introdução deste, do qual é um dos organizadores, Zarka afirma que o problema moral que recai sobre a questão da aparência constituiu-se histo-ricamente posterior a Maquiavel. Assim, segundo ele, “a partir da Contra-Reforma, com as doutrinas da Razão de Estado, é que o problema ganha um aspecto moral com a distinção entre a simulação (imoral) e a dissimulação (moral)” (ZARKA, 2001b, p. 12). Ver ainda, ZARKA, (Dir.). « Raison et déraison d’État: Théoriciens et théories de la raison d’État aux XVIe et XVIIe siècles ». 20 Talvez este seja um dos principais pontos de distinção entre um speculum principis e “O Príncipe”, de Maquiavel. 21 Tratar dos valores da tradição, assim como da forma como Maquiavel rompe com tais valores, não é uma tarefa simples. Reduzimos a questão neste trabalho para abordar diretamente o ponto da imagem do governante. Sabemos, no entanto, que não há solução fácil para esta questão, e o próprio legado maquiaveliano nos conduz a pensar as consequências do rompi-mento com a tradição. Uma abordagem mais demorada desta questão, no entanto, acabaria por nos desviar do nosso tema central. 22 Tal como afirmamos anteriormente, acreditamos que o termo ficção não é, necessariamente, o que traduz com mais clare-za o pensamento de Maquiavel. No caso desta passagem, preferimos pensar que o governante recorre à capacidade que os homens têm de imaginar, ou seja, à imaginação dos homens e sua capacidade de produzir ilusões, para produzir de si ima-gens apropriadas aos objetivos próprios de um governante.

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O legado de Nicolau Maquiavel para o pensamento de Antonio Gramsci

Claudio Reis1

Resumo: Definido como fundador do pensamento político moderno, Nicolau Maquiavel é um dos autores centrais da história ocidental, ou mesmo mundial. Suas reflexões sobre o Estado colocaram-no como clássico das ciências humanas e autor indispensável para se entender a dinâmica política ainda hoje. Neste ano (2013) se está completando 500 anos da publicação de “O Príncipe” e, apesar dos cinco séculos, o ‘pequeno’ livro continua surpreendendo seus leitores, por sua originalidade. Segundo Antonio Gramsci, Maquiavel, além das contribuições universais para o mundo da política, foi também um autor intimamente voltado às particularidades italianas. Maquiavel, na visão gramsciana, pode ser considerado como o grande contraponto ao cosmopolitismo renascentista. O secretário florentino, de modo geral, contribuiu para o desenvolvimento das reflexões de Gramsci quanto aos intelectuais e ao partido político.

Palavras-chave: Maquiavel; Gramsci; Intelectuais; Partido Político.

Abstract: Defined as the founder of the modern political thought, Nicolau Maquiavel is one of the central authors in Western history, even in the world history. His reflections about State have made him a classic in human sciences and an author indispensable to understand the current political dynamic. This year “The Prince” is achieving its 500th birthday. Despite five centuries of its publication, the “lit-tle” book continues to surprise its readers for its originality. According to Antonio Gramsci, besides the universal contribution to the realm of politics, Maquiavel was also an author intensely dedicated to Ital-ian particularities. In the prism of Gramsci, Maquiavel can be considered a large counterpoint to Re-naissancist cosmopolitism. The florentine secretary contributed to the development of Gramsci´s re-flections about intellectuals and political parties.

Keywords: Maquiavel; Gramsci; Intelectual; Political Party.

1 Maquiavel e o intelectual nacional-popular Como se sabe, Gramsci foi um dos principais autores a refletir sobre a figura do intelectual no

século XX. Durante as décadas de 1920 e 30, especificamente, “nenhum outro grande pensador e militante de esquerda tinha dado tanta importância à categoria social dos intelectuais como fator explicativo da realidade sociopolítica.” (BEIRED, 1998, p. 123). E muitas das suas reflexões, referente a esse tipo social, ainda são bastante utilizadas neste início de século XXI. Ainda que ele tenha discutido o tema dos intelectuais antes da prisão fascista – principalmente em seu texto inacabado sobre questão meridional, no qual faz referência ao significado político-cultural de Benedetto Croce, entre outros – foi nos “Quaderni del Carcere” o espaço de maior contribuição à questão. Será, precisamente, em sua obra carcerária que o autor italiano analisará historicamente como os intelectuais se transformaram.

Para Gramsci, antes de qualquer coisa, a categoria de intelectual deveria ser compreendida a partir de uma acepção ampla. No seu caderno 12, escrito em 1932, encontra-se uma das mais conhecidas passagens sobre esse tema. Diz ele, “todos os homens são intelectuais, mas nem todos os homens têm na sociedade a função de intelectuais...” (Q. 12, 2001, p. 1516). De certo modo, com essa afirmação, o autor rompe com o princípio de que somente alguns ‘iluminados’ possuíam a capacidade de exercer uma tarefa intelectual. Qualquer atividade profissional específica, desempenhada na sociedade, exige certo tipo de conhecimento intelectual. Assim, tanto o cozinheiro quanto o filósofo

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precisam do intelecto para desempenharem suas funções. Ainda que de modo completamente diferente, ambos são responsáveis por atividades que necessitam de certo conhecimento sistematizado, isto é, o ato de elaborar pratos sofisticados ou de trabalhar os conceitos mais abstratos, não são tarefas instintivas ou espontâneas.

No entanto, Gramsci, além de pontuar de maneira abstrata o significado de intelectual, também desenvolve certas características concretas e específicas do mesmo. Tentando analisar esse tipo social na dinâmica histórica, o autor italiano desenvolve quatro categorias fundamentais para entendê-lo: o orgânico, o tradicional, o cosmopolita e o nacional-popular.

O primeiro se configura por todo aquele que desempenha atividades organicamente ligadas a determinada classe social, atividades essas que podem ser tanto de cunho filosófico e científico, quanto puramente técnico. Na Idade Média, por exemplo, a nobreza tinha à sua volta figuras como o padre e o cavaleiro, ambos fundamentais para a manutenção do status quo. “A categoria dos eclesiásticos pode ser considerada como a categoria intelectual organicamente ligada à aristocracia fundiária: era juridicamente equiparada à aristocracia, com a qual dividia o exercício da propriedade feudal da terra e o uso dos privilégios estatais ligados à propriedade.” (Q. 12, 2001, p. 1514-1515). Na Era capitalista, os intelectuais orgânicos passaram a assumir outras configurações específicas, ainda que mantendo as mesmas atividades de defesa da classe social fundamental. “O empresário capitalista cria consigo o técnico da indústria, o cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura, de um novo direito, etc., etc.” (Q. 12, 2001, p. 1513). Este, então, é o caráter essencial do intelectual orgânico na história humana.

Sobre os intelectuais tradicionais, Gramsci também revela profundo interesse. Para ele, são tradicionais todos aqueles intelectuais que não têm sua existência social fundada em determinada classe social. E, aqui, pode-se pensar mais uma vez o clero, que sobreviveu às Revoluções Burguesas, mas sem suas fundamentações de classe. Em outras palavras, ao sair da Idade Média e entrar no Capitalismo, a categoria dos eclesiásticos deixou de ser representante orgânica de sua classe específica, ou seja, a nobreza feudal. Assim, o padre, que foi um dos principais intelectuais orgânicos da aristocracia, na Era capitalista passou a desempenhar uma atividade tradicional. Como diz o autor, os “intelectuais tradicionais sentem com ‘espírito de grupo’ sua ininterrupta continuidade histórica e sua ‘qualificação’, eles se põem a si mesmos como autônomos e independentes do grupo social dominante.” (Q. 12, 2001, p. 1515). Então, de maneira geral, intelectual tradicional é aquele que não se sente e, muitas vezes, não está ligado estruturalmente a uma determinada classe social fundamental da sociedade.

Outra categoria de intelectual importante na reflexão gramsciana refere-se ao chamado cosmopolita. Para o autor, esta foi a forma específica de intelectual que marcou amplamente o Renascimento italiano. O predomínio do intelectual cosmopolita na história italiana, foi um dos elementos principais para o caráter antipopular dos vários movimentos político-culturais existentes na península. O seu perfil caracterizado pelo não reconhecimento dos problemas específicos da vida nacional fez com que toda a sua atividade se tornasse estranha, e até oposta, aos interesses da maioria. Em outros termos, “tais intelectuais sofreram uma espécie de alienação com relação à sua própria realidade local.” (BEIRED, 1998, p. 127).

Segundo o próprio Gramsci, “para a Itália, o fato central é precisamente a função internacional ou cosmopolita de seus intelectuais, que é causa e efeito do estado de desagregação em que permaneceu a península, desde a queda do Império Romano até 1870.” (Q. 12, 2001, p. 1524). Todavia, essa herança histórico-nacional, de caráter antipopular, na visão do próprio autor, permaneceu até o seu tempo. E o grande exemplo de intelectual cosmopolita de sua época foi Benedetto Croce.

Em contraposição a essa tradição cosmopolita dos agrupamentos de intelectuais do seu país é que o autor sugere o intelectual nacional-popular. Esta forma de intelectualidade é uma concepção derivada do seu projeto nacional. Para Gramsci, a nação italiana somente assumiria um caráter popular à medida que determinados intelectuais incorporassem as questões dos subalternos como fonte de suas atividades específicas. Portanto, nacional-populares são os “intelectuais que expressam as idéias e os sentimentos populares (os ideais e paixões universais), que desenvolvem uma crítica social e apontam as

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contradições históricas podendo ser retomados e compreendidos pelo povo, em épocas históricas diferentes.” (SCHLESENER, 1992, p. 45).

O intelectual nacional-popular surge de modo embrionário na Itália com Nicolau Maquiavel. A preocupação do Secretário Florentino em pensar as soluções para a fragmentação da península e para a opressão das potências europeias sobre seu território dava ao príncipe-condottiere, seguindo sugestões gramscianas, a configuração de um intelectual nacional-popular. O próprio Maquiavel também pode ser entendido como uma forma originária de intelectual nacional-popular na península.

De modo geral, o autor florentino forneceu ao pensamento gramsciano um caminho para se entender o

desenvolvimento histórico italiano, funcionando quase como um cânone de interpretação histórica, que lhe permite identificar os entraves que impediram a constituição de uma ‘vontade coletiva’ nacional popular ainda durante o Renascimento e o conseqüente predomínio do cosmopolitismo entre os seus intelectuais nas fases subseqüentes de constituição da nação italiana. (NERES, 2012, p. 149).

Internacionalmente, o autor dos “Quaderni del Carcere” encontrou tal intelectual em três momentos fundamentais da história mundial. O primeiro corresponde ao movimento dos reformadores protestantes que, ao questionarem a Igreja de Roma, aproximaram-se do povo e contribuíram para o nascimento de um espírito de nacionalidade – tendo como ponto central a língua nacional. O segundo se refere ao processo revolucionário francês, mais especificamente do período jacobino. Em sua opinião, o jacobinismo foi o principal responsável pelo caráter nacional da Revolução Francesa de 1789, tudo graças à sua expressão popular. Ao se aproximarem dos setores populares, como os camponeses, os intelectuais jacobinos passaram, de fato, a representar a vida nacional francesa. Desse modo, transformaram-se em nacional-populares. O terceiro momento, diz respeito ao processo revolucionário russo, já no século XX. De acordo com a leitura gramsciana, os bolcheviques foram vitoriosos pelo fato de terem incorporado os principais anseios das classes populares, e isso somente foi possível graças à postura de figuras como V. Lenin, que tiveram um profundo respeito às particularidades nacionais da Rússia. Lenin foi o grande tradutor da filosofia da práxis (universal) em solo russo (particular), tarefa indispensável para transformar toda a insatisfação das classes populares numa revolução social radical em toda a vida nacional do país. O seu contato com o internacional não era um impedimento para se pensar a realidade social e nacional russa, muito pelo contrário. A inserção na dimensão mundial contribuiu ainda mais para Lenin perceber com clareza os problemas existentes na Rússia. Graças ao seu aspecto nacional-popular, o revolucionário russo conseguiu encaminhar o início de uma nova forma de sociabilidade naquele país, diferentemente de Trotski e Stalin, pois, enquanto o primeiro foi popular sem ser nacional, o segundo foi nacional sem ser popular.

De olho na Itália, Gramsci busca traduzir toda essa herança histórico-internacional popular e progressista para a península, pois, em sua época, ainda era possível sentir o peso da herança histórico-nacional elitista e cosmopolita. Ao mesmo tempo, era preciso difundir a ideia entre os setores políticos avançados da necessidade de se conhecer amplamente e se inserir profundamente na vida nacional italiana. Somente assim seria possível ser verdadeiramente popular e progressista. Era necessário romper com a tradição cosmopolita dos movimentos político-culturais tão fortes na península. Daí a importância de se construir um Anti-Croce, já que esse filósofo, representante do elitismo e do cosmopolitismo, exercia uma profunda influência sobre os intelectuais do país.

Tudo indica que o próprio Gramsci foi o mais importante intelectual nacional-popular da Itália de sua época. Representante da tradição maquiaveliana, o autor sardo buscou exaustivamente conhecer concretamente a complexidade da vida nacional do seu país. Para as classes subalternas, tão importante quanto formar seus intelectuais orgânicos era formar seus intelectuais nacional-populares. Somente assim seria possível redirecionar os rumos da vida popular italiana, marcada pelas opressões burguesa e latifundiária. Em decorrência, efetivar-se-ia o rompimento com a concepção de nação das elites em

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benefício da fundação do nacional-popular – até então desprezado pela herança conservadora do cosmopolitismo.

Dentro dessas quatro categorias de intelectuais, parecem existir certas relações. Por exemplo, seguindo Gramsci, pode-se dizer que, em alguns momentos, o intelectual tradicional acaba por se aproximar do cosmopolita, pois, em certo sentido, ambos se descolam, seja da classe social fundamental, seja da vida concreta nacional. Portanto, ambos não apresentam os elementos suficientes para se construir um movimento popular capaz de alterar as bases sociais da velha sociedade. Já a relação que se pode estabelecer entre o intelectual orgânico e o nacional-popular se fundamenta por meio de outros princípios. Tanto um quanto o outro desempenham suas atividades intimamente ligadas aos anseios de determinada classe social. Neste sentido, a criação de um movimento político-cultural progressista, disposto a alterar o status quo elitista e conservador da sociedade italiana, deveria, necessariamente, buscar a união entre eles.

Entretanto, independentemente dessas relações, e seguindo as sugestões gramscianas, é interessante notar que o intelectual nacional-popular é, indiscutivelmente, o único voltado ao avanço histórico das classes progressistas. Isto porque, no caso das demais categorias, o intelectual não é uma conformação necessariamente popular e revolucionária; diferentemente do nacional-popular que, como foi ressaltado, é historicamente inconcebível pelas elites e pelos movimentos conservadores já existentes e consolidados.

Na Itália a tarefa de concretização do intelectual nacional-popular deveria levar em conta diversas questões e mediações. Por exemplo, as instituições escolares, desempenhavam – ao lado dos partidos políticos, entre outros – papéis fundamentais para esse projeto político-cultual. Gramsci formulou, no seu caderno 12, a necessidade de se construir a chamada escola unitária que, em linhas gerais, tinha como função unir teoria e prática na formação dos indivíduos. No entanto, o autor amplia tal princípio às já estabelecidas instituições educacionais. Para ele, era preciso romper com as posturas adotadas pelas universidades e as academias de sua época, pois, tanto uma quanto a outra se baseavam, justamente, na distinção entre intelectual/povo. Como afirma: “as Academias são o símbolo, ridicularizado freqüentemente com razão, da separação existente entre a alta cultura e a vida, entre os intelectuais e o povo [...]” (Q. 12, 2001, p. 1538). Em termos educacionais amplos, o vínculo teoria/prática, pensado inicialmente para as escolas unitárias, deveria se expandir para as demais relações sociais e culturais. Isto significaria unificar os vários tipos de organização cultural existentes: “Academias, Institutos de cultura, círculos filológicos, etc., integrando o trabalho acadêmico tradicional – que se expressa sobretudo na sistematização do saber passado ou na busca da fixação de uma média do pensamento nacional como guia da atividade intelectual – com atividades ligadas à vida coletiva, ao mundo da produção e do trabalho.” (Q. 12, 2001, p. 1538-39).

Esse projeto educacional buscava dar vida a toda produção intelectual existente nas referidas instituições, pois eram, na maioria das vezes, ‘cemitérios de cultura’. Então, a formação de um intelectual vinculado à sua vida nacional deveria ser pensada também a partir desse aspecto.

Tais elementos também visavam solucionar um problema antigo da península – e não resolvido pelo Partido de Ação – no Risorgimento, que era a obtenção de “uma centralização e um impulso da cultura nacional que fossem superiores aos da Igreja Católica.” (Q. 12, 2001, p. 1539).

A figura do intelectual, então, coloca-se como indispensável não apenas para um projeto nacional, mas para qualquer proposta social inovadora que busque se transformar em vida concreta.

Sobre o processo de criação de uma nova configuração de intelectual, diz Gramsci:

Uma das características dos intelectuais como categoria social cristalizada (isto é, que concebe a si mesma como continuação ininterrupta na história e, portanto, independentemente da luta dos grupos e não como expressão de um processo dialético, pelo qual todo grupo social dominante elabora uma categoria de intelectuais própria) é, precisamente, a de relacionarem-se, na esfera ideológica, com uma categoria intelectual precedente, através de uma idêntica nomenclatura de conceitos. Todo novo organismo histórico (tipo de sociedade) cria uma nova superestrutura, cujos representantes

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especializados e porta-vozes (os intelectuais) só podem ser concebidos também como ‘novos’ intelectuais, surgidos da nova situação, e não como a continuação da intelectualidade precedente. Se os ‘novos’ intelectuais se colocam como continuação direta da intelligentsia precedente, não são verdadeiramente ‘novos’, isto é, não são ligados ao novo grupo social que representa organicamente a nova situação histórica, mas são um rebotalho conservador e fossilizado do grupo social historicamente superado (o que, de resto, é o mesmo que dizer que a nova situação histórica ainda não atingiu o grau de desenvolvimento necessário para ter a capacidade de criar novas superestruturas, mas vive ainda no invólucro carcomido da velha história.) (Q. 11, 2001, p. 1406-07).

O novo intelectual, portanto, não é somente expressão das alterações nas estruturas da sociedade, mas também é fruto de sua postura de rompimento crítico com as antigas superestruturas. Em outras palavras, o novo intelectual exige tanto o surgimento de uma nova sociedade, quanto o estabelecimento de uma nova relação dos indivíduos e dos grupos com o mundo da cultura precedente. A proposta, em decorrência, é a de se firmar, também, um novo vínculo entre cultura/massas e entre intelectuais/massas. E isso não significa uma

cultura de classe, isolada em si mesma, que se contraponha como um bloco estanque a uma outra cultura, mas sim a visão de uma nova hegemonia cultural que se constrói na relação crítica com a cultura tradicional, com a assimilação de suas contribuições, com a conquista de novas aquisições, no quadro de uma concepção do mundo. (GRUPPI, 2000, p. 88).

No caso específico das classes subalternas, seus intelectuais deveriam, indispensavelmente, possuir uma concepção de mundo oposta à tradicional visão elitista e antipopular. Sem essa nova orientação intelectual e moral, não há uma efetiva relação entre intelectuais e grupos subalternos. A consolidação de um projeto nacional progressista está intimamente ligada à construção desse novo intelectual, de modo que, sem ele, o fundamental vínculo entre vida nacional e classes populares não se concretiza. Então, para o nacional-popular existir, a criação do novo intelectual é indispensável, sobretudo tendo em vista uma tradição como a da Itália. Como foi ressaltado, os exemplos históricos nos quais é possível visualizar tal inovação foram o reformador do catolicismo, o francês-jacobino, o russo-soviético e, em menor grau, até o americano-yankee; internamente à península, a referência era o príncipe-maquiaveliano.

Ainda reconhecendo que nem sempre o passado nacional deve ser afastado e negado – e, aqui, se destaca o legado de Maquiavel –, na maioria dos casos, era necessário superar a postura dos intelectuais italianos, marcados pela tradição cultural cosmopolita e conservadora. Eles não se relacionavam e nem incorporavam os interesses do povo, o que, como já foi visto, correspondia a uma das principais causas da separação entre vida nacional e classes populares.

Até mesmo na história francesa, Gramsci percebe o específico momento em que o nacional se encontra separado do popular: “1870 e 1871 presenciaram, na França, duas terríveis derrotas: a nacional, que pesou sobre intelectuais burgueses; e a popular, a derrota da Comuna, que pesou sobre os intelectuais revolucionários.” (Q. 11, 2001, p. 1498). Por mais que tenha existido, num primeiro momento, a tentativa de conciliação entre o nacional e o popular no projeto social burguês, os jacobinos exemplificam isso, e essas duas dimensões da vida social se mostraram incompatíveis no âmbito do mundo capitalista. Em tal sociabilidade não há nacional-popular.

Essa constatação ajudou Gramsci a refletir a unidade entre esses dois aspectos da realidade. No caso da Itália, isso significaria a superação das velhas tradições, não solucionadas pela burguesia, anunciando, ao mesmo tempo, um novo projeto nacional e uma saída progressista aos problemas da península.

Para o autor, a relação entre a esfera do popular e do intelectual deveria ser fundamentada na ajuda mútua, na qual cada um contribui naquilo que lhe é intrínseco. Se, por exemplo, “o elemento popular ‘sente’, mas nem sempre compreende ou sabe; o elemento intelectual ‘sabe’, mas nem sempre compreende e, menos ainda, ‘sente’.” (Q. 11, 2001, p. 1505). Portanto, de acordo com essa leitura, um

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necessita do outro para se desenvolver. Um dos erros do intelectual está em acreditar que é possível saber sem sentir o povo-nação, isto é, sem estar intimamente ligado à sua realidade e à sua vida,

sem sentir as paixões elementares do povo, compreendendo-as e, portanto, explicando-as e justificando-as em determinada situação histórica, bem como relacionando-as dialeticamente com as leis da história, com uma concepção de mundo superior, científica e coerentemente elaborada, com o ‘saber’; não se faz política-história sem esta paixão, isto é, sem esta conexão sentimental entre intelectuais e povo-nação. Na ausência deste nexo, as relações do intelectual com o povo-nação são, ou se reduzem, a relações de natureza puramente burocrática e formal; os intelectuais se tornam uma casta ou um sacerdócio [...] Se a relação entre intelectuais e povo-nação, entre dirigentes e dirigidos, entre governantes e governados, é dada graças a uma adesão orgânica, na qual o sentimento-paixão torna-se compreensão e, desta forma, saber (não de uma maneira mecânica, mas vivida), só então a relação é representação, ocorrendo a troca de elementos individuais entre governantes e governados, entre dirigentes e dirigidos, isto é, realiza-se a vida do conjunto, a única que é força social; cria-se o ‘bloco histórico’. (Q. 11, 2001, p. 1505-06).

Nesse sentido, o intelectual nacional-popular surge aqui como um antropólogo, sem as pressões da ciência acadêmica. O princípio de que tal intelectual deve compreender em profundidade as paixões e os sentimentos do popular é um elemento decisivo na superação das relações burocráticas e formais entre dirigente e dirigido. Com isso, o intelectual poderia, a partir de uma “linguagem teórica e política nova”, estabelecer uma comunicação com os subalternos “para além dos jargões do especialista”. (BUEY, 2003, p. 27). Neste caso, a compreensão não está ligada à mediação acadêmico-científica, necessária para a construção do conhecimento oficial, mas está atrelada à lógica das correlações de forças políticos-culturais existentes na história. Em certo sentido, “[...] Gramsci acabou vendo muito bem o risco que os intelectuais correm ao fazer uso da ironia e do sarcasmo, a partir de uma situação privilegiada, em sua comunicação com os que não têm nada ou quase nada (que não têm, já de imediato, nem sequer o domínio da palavra escrita).” (BUEY, 2003, p. 38). É por esse caminho, rompendo com o pressuposto da separação sujeito/objeto, que o intelectual, enquanto miscível ao nacional-popular, pode elevar a visão de mundo das classes subalternas. Ao que tudo indica, somente assim é possível materializar a dialética entre senso comum – concepções folclóricas, manifestações culturais e políticas fragmentadas e diversas – e visão de mundo crítica e coerente, como é o caso da filosofia da práxis. Somente dessa maneira o olhar do intelectual sobre a sociedade e a sua representação social deixariam de expressar o tradicional movimento de casta, elitista e antipopular. O alcance de seus interesses históricos deve ser o mesmo do exigido pelo popular. Lembrando que, no âmbito das concepções de mundo, uma das funções do intelectual nacional-popular é, justamente, superar certas visões tradicionais e atrasadas das classes subalternas.

Tal inovação nas relações sociais entre intelectuais e povo – na qual as massas populares passariam, ativamente, a fazer parte de um determinado movimento coletivo – significaria, pelo menos na Itália, a efetivação de uma inédita reforma intelectual e moral. De certa forma, ela poderia se desdobrar na unificação entre Reforma e Renascimento, num mesmo esforço político-social, isto é, na junção entre a radicalidade política e o humanismo. Em outras palavras, significaria a criação de uma nova cultura integral, fundada, ao mesmo tempo, nas “características de massa da Reforma protestante e do iluminismo francês” e nos elementos de “classicidade da cultura grega e do Renascimento italiano”. Uma cultura que, “retomando as palavras de Carducci, sintetize Maximilien Robespierre e Emmanuel Kant, a política e a filosofia, numa unidade dialética intrínseca a um grupo social não só francês ou alemão, mas europeu e mundial.” (Q. 10, 2001, p. 1233). Certamente, tudo isso foi pensado visando não apenas a construção de uma nova nação, mas, sobretudo, uma nova sociabilidade. Todavia, para se concretizar, tal reforma deveria superar a tradicional herança histórico-nacional italiana, fundada no distanciamento entre intelectual e massas populares.

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No âmbito da relação conservadora, é ressaltada nos “Quaderni del Carcere” até mesmo a maneira como os intelectuais italianos entendiam o popular, muitas vezes como humildes. Para Gramsci, esta visão

é característica para compreender a atitude tradicional dos intelectuais italianos em face do povo e, conseqüentemente, o significado da ‘literatura para os humildes’. Não se trata da relação contida na expressão dostoievskiana ‘humilhados e ofendidos’. É poderoso em Dostoievski o sentimento nacional-popular, isto é, a consciência de uma missão dos intelectuais diante do povo, que talvez seja ‘objetivamente’ constituído por ‘humildes’, mas deve ser libertado desta ‘humildade’, transformado, regenerado. No intelectual italiano, a expressão ‘humilde’ indica uma relação de proteção paterna e divina, o sentimento ‘auto-suficiente’ de uma indiscutível superioridade, a relação como entre duas raças, uma considerada superior e outra inferior, a relação que se dá entre adulto e criança na velha pedagogia, ou pior ainda, uma relação do tipo ‘sociedade protetora dos animais’ ou do tipo Exército da Salvação anglo-saxônico diante dos canibais da Papuásia. (Q. 21, 2001, p. 2112).

No interior da dimensão do nacional-popular, o intelectual pode se relacionar com as classes subalternas de um modo distinto, mesmo quando comparado ao orgânico – que, de resto, seria a alternativa mais próxima a essa relação conservadora entre intelectual/massa. Diferentemente do intelectual orgânico, o intelectual nacional-popular parece possuir características de maior amplitude, não se restringindo ao âmbito da luta político-econômica muitas vezes imediata. Por exemplo, o mundo da produção, de fato, exige do trabalhador certa racionalização e técnica para o desempenho das tarefas, no entanto, esta dimensão formal esconde uma vida anterior, fundada no folclore e na multiplicidade cultural. O intelectual nacional-popular deve, portanto, ultrapassar esse momento formalizado e compreender profundamente as origens deste trabalhador, pois esta dimensão extraprodução é fundamental para o entendimento da subjetividade do popular. O operário da indústria é o mesmo que acredita nas diversas manifestações mitológicas, isto é, a condição de trabalhador especializado não elimina, necessariamente, a sua visão folclórica do mundo. Somente dessa maneira um projeto político-cultural se efetiva como alternativo ao sistema capitalista. O trabalhador de um determinado país, por mais que esteja inserido num gerenciamento produtivo global, pode ser considerado como igual a um outro operário de outra nação? Talvez nem mesmo no interior da fábrica eles sejam semelhantes, afinal a vida pré-mundo da produção, que está localizada nacionalmente, persegue-o com sua complexidade e intensidade, e o define em suas atividades – mesmo nas mais sofisticadas. Em consequência, a universalização do sistema também não ocorre sem específicas resistências, sejam elas materiais ou culturais. E o trabalho de investigador das minúcias nacionais, sob responsabilidade do intelectual nacional-popular, é indispensável para efetivar uma tal luta.

Em certo sentido, o intelectual orgânico pode ser visto como uma mediação necessária entre o intelectual (compreendido de modo universal-abstrato) e o intelectual nacional-popular (expressão do particular).

Daí a importância em compreender a inserção da literatura dostoievskiana no âmbito do nacional-popular. Devido ao seu trabalho extremamente complexo de busca da humanidade do povo russo, Dostoievski provavelmente não poderia ser definido como um intelectual orgânico. O seu realismo literário não está ligado a nenhum tipo de propaganda política, o que não significa apoliticismo, mas sim, vinculado aos mais profundos conflitos do ser humano (russo), em suas limitações e potencialidades.

Em Gramsci, de fato, existe uma definição dos intelectuais enquanto organizadores e mediadores do consenso, isto é, como ideólogos e porta-vozes da classe no poder. No entanto,

ela não esgota de nenhum modo o campo da pesquisa gramsciana, posto que Gramsci retorna permanentemente a discussão em torno da especificidade de certas práticas intelectuais e artísticas. O artista não é grande em função da justeza do conteúdo ideológico de sua obra. Do mesmo modo, o filósofo tradicional, com toda a idiotice que lhe é legada por sua

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profissão, com todo seu espírito de casta, detém, indubitavelmente, conhecimento sobre a história da filosofia. (BUCI-GLUCKSMANN, 1990, p. 54, itálico do autor).

De um ponto de vista etimológico, Gramsci faz uma relação fundamental entre os significados das palavras ‘nacional’ e ‘popular’, relação esta assumida em alguns países, e o perfil do intelectual italiano. Diz ele:

Deve-se observar o fato de que, em muitas línguas, ‘nacional’ e ‘popular’ são sinônimos ou quase (é o caso em russo; é o caso em alemão, onde volkisch tem um significado ainda mais íntimo, de raça; é o caso nas línguas eslavas em geral; em francês, ‘nacional’ tem um significado no qual o termo ‘popular’ já é mais elaborado politicamente, porque ligado ao conceito de ‘soberania’: soberania nacional e soberania popular têm ou tiveram igual valor). Na Itália, o termo ‘nacional’ tem um significado muito restrito ideologicamente e, de qualquer modo, não coincide com ‘popular’, já que na Itália os intelectuais estão afastados do povo, ou seja, da ‘nação’; estão ligados, ao contrário, a uma tradição de casta, que jamais foi quebrada por um forte movimento político popular ou nacional vindo de baixo: a tradição é ‘livresca’ e abstrata, e o intelectual moderno típico sente-se mais ligado a Annibal Caro (tradutor) ou a Ippolito Pindemonte (poeta) do que a um camponês da Púglia ou da Sicília. O termo ‘nacional’ de uso corrente está ligado na Itália a esta tradição intelectual e livresca: daí a facilidade tola (e, no fundo, perigosa) de chamar de ‘antinacional’ qualquer pessoa que não tenha esta concepção arqueológica e carcomida dos interesses do país. (Q. 21, 2001, p. 2116).

Gramsci, portanto, insere a figura do intelectual no centro das discussões referentes ao nacional-popular, pelo menos no caso italiano. Em outras palavras, demonstra como a partir da herança elitista e cosmopolita dos intelectuais da península o nacional e o popular, mesmo em termos etimológicos, não apresentavam qualquer proximidade. Na península, tradicionalmente, o nacional era sinônimo de erudito, e o popular era sinônimo de província.

De fato, entre os italianos, as expressões ‘nação’ e ‘nacional’ tinham “um significado muito mais limitado do que, em outras línguas, têm as palavras correspondentes registradas nos dicionários.” (Q. 5, 2001, p. 640). E, certamente, isto tinha como uma de suas determinações a separação dos intelectuais em relação ao povo.

Muitos intelectuais italianos chegavam até mesmo a defender que “no exterior, as pessoas eram mais honestas, mais capazes e mais inteligentes do que na Itália.” Isso, “além de ser uma estupidez, é um índice importante de ausência de espírito nacional-popular.” (Q. 23, 2001, p. 2204). No entanto, essa conduta moral e intelectual não era uma exclusividade dos italianos, dado a sua presença em outros países. A chamada ‘mania pelo estrangeiro’, tende, então, a ser uma atitude não apenas dos intelectuais da Itália. Nas palavras do autor: “este estado de espírito não parece ter sido característico apenas de alguns grupos intelectuais italianos, mas parece ter ocorrido, em determinadas épocas de envilecimento moral, também em outros países.” (Idem).

Na península, Maquiavel, em seu “O príncipe”, era uma das únicas referências político-culturais para se pensar a relação nacional-popular entre dirigente/dirigido.

2 Do Príncipe ao ‘moderno príncipe’ Gramsci conseguiu identificar uma preocupação fundamental de Maquiavel em fortalecer um

príncipe capaz de unificar, a partir de uma base popular, a península. Na época do florentino, o poder de um príncipe era uma das únicas forças existentes, em condições de impulsionar e concretizar a Monarquia Absoluta – a organização político-estatal mais avançada do momento. Com a complexificação das sociedades nos últimos séculos, essa força política não poderia mais ser entendida como uma individualidade concretamente dada na realidade, mas deveria ser vista a partir de outra forma organizativa. Tal organismo deveria acompanhar a complexidade da sociedade, ser a expressão

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concreta e ativa da vontade coletiva. E esse elemento já estava “dado pelo desenvolvimento histórico e é o partido político, a primeira célula na qual se sintetizam germes de vontade coletiva que tendem a se tornar universais [...]” (Q. 13, 2001, p. 1558). Como organizador de uma vontade coletiva, o partido assume uma importante posição na construção de um bloco nacional-popular.

Continuando, o ‘moderno príncipe’ deveria ser analisado do seguinte modo:

Se se devesse traduzir em linguagem política moderna a noção de ‘Príncipe’, da mesma forma como ela se apresenta no livro de Maquiavel, seria necessário fazer uma série de distinções: ‘príncipe’ poderia ser um chefe de Estado, um chefe de Governo, mas também um chefe político que pretende conquistar um Estado ou fundar um novo tipo de Estado; neste sentido, a tradução de ‘príncipe’ em linguagem moderna poderia ser ‘partido político’. (Q. 5, 2001, p. 661-62).

Nas sociedades contemporâneas o partido político surge como um agente capaz de colocar em

movimento as novas transformações sociais exigidas. Ao contrário da época de Maquiavel, a vontade coletiva nacional-popular não pode mais ser encarnada em um indivíduo isolado, pois,

no mundo moderno, só uma ação histórico-política imediata e iminente, caracterizada pela necessidade de um procedimento rápido e fulminante, pode se encarnar miticamente num indivíduo concreto; a rapidez só pode tornar-se necessária diante de um grande perigo iminente, grande perigo que cria precisamente, de modo fulminante, o fogo das paixões e do fanatismo, aniquilando o senso crítico e a corrosividade irônica que podem destruir o caráter ‘carismático’ do condottiero. Mas uma ação imediata desse tipo, por sua própria natureza, não pode ser ampla e de caráter orgânico: será quase sempre do tipo restauração e reorganização, e não do tipo peculiar à fundação de novos Estados e de novas estruturas nacionais e sociais (como era o caso no Príncipe de Maquiavel, onde o aspecto de restauração era só um elemento retórico, isto é, ligado ao conceito literário da Itália descendente de Roma e que devia restaurar a ordem e a potência de Roma) [...] (Q. 13, 2001, p. 1558, itálico do autor).

Então, aquele príncipe identificado por Maquiavel, o ‘herói’ pessoal, capaz de incorporar e organizar a vontade coletiva e fundar um novo Estado, assume outra forma. O que no século XVI significava projeto político-social progressista, nos séculos XIX e XX representava regressão. Enquanto “Maquiavel considerava o príncipe individual, Gramsci considerava o príncipe moderno: o partido revolucionário engajado num diálogo constante e produtivo com sua própria base de apoio.” (COX, 2007, p. 105).

As análises de Marx sobre o golpe de Estado liderado por Napoleão III na França parecem estar presentes nessa formulação gramsciana. Portanto, as ideias de Maquiavel deveriam ser traduzidas nos termos reais, existentes no cenário político da história recente. Contemporaneamente às suas reflexões, Gramsci parece ter como interlocutor o próprio movimento fascista, liderado por um indivíduo: Benito Mussolini, representante de uma vontade coletiva anti-nacional-popular. Como o autor demonstra, esses movimentos tendem a destruir o senso crítico e fomentar o fanatismo, terreno propício para o estabelecimento de formas de nacionalismos conservadores e até reacionários. No caso do fascismo, isso foi acompanhado por um forte combate sobre as instituições político-culturais progressistas e populares. Diante de tal situação, o elo entre o nacional e o popular não tem como se consolidar. Então, para que o projeto maquiaveliano, de fundação de novos Estados e novas estruturas nacionais, pudesse continuar vivo na realidade, o moderno príncipe deveria ser entendido como partido político. De certo modo, o alcance e a importância da organização partidária para o projeto nacional gramsciano fica em evidência quando se diz que

O partido é essencialmente político e até mesmo sua atividade cultural é atividade de política cultural; as ‘instituições’ culturais devem ser não apenas de ‘política cultural’, mas de ‘técnica cultual’. Exemplo: num partido existem analfabetos e a política cultural do partido é a luta

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contra o analfabetismo. Um grupo formado para lutar contra o analfabetismo não é ainda, estritamente, uma ‘escola para analfabetos’; numa escola para analfabetos, ensina-se a ler e a escrever; num grupo formado para lutar contra o analfabetismo, planejam-se todos os meios mais eficazes para extirpar o analfabetismo das grandes massas da população de um país, etc. (Q. 6, 2001, p. 790-91).

Então, a relevância de uma instituição como o partido político é indispensável para organizar a vida social e para impulsionar uma determinada vontade coletiva voltada ao nacional-popular. Traduzida em

linguagem peculiar de Gramsci, a tarefa do ‘moderno Príncipe’ consistiria em superar os resíduos corporativistas (os momentos ‘egoístico-passionais’) da classe operária e contribuir para a formação de uma vontade coletiva nacional-popular, ou seja, de um grau de consciência capaz de permitir uma iniciativa política que englobe a totalidade dos estratos sociais de uma nação, capaz de incidir sobre a universalidade diferenciada do conjunto das relações sociais. (Coutinho, 2003, p. 169, itálico do autor).

O moderno príncipe é para “Gramsci um unificador, um grande reformador intelectual e moral. Maquiavel tinha em mente um reformador desse tipo; mas, em sua época, ele não pôde existir. Na nossa época, tal reformador é o partido.” (GRUPPI, 2000, p. 74).

Gramsci identificou as origens da não consolidação da vontade coletiva nacional-popular no tempo de Maquiavel como resultado da herança do Império Romano, do caráter cosmopolita dos intelectuais renascentistas e do significado para a Itália da sede internacional da Igreja Católica em Roma. Em sua época, o autor se pergunta: “existem finalmente as condições para esta vontade, ou seja, qual é a relação atual entre estas condições e as forças opostas?” (Q. 13, 2001, p. 1560). A resposta pode ser afirmativa, pelo fato da história moderna já haver fornecido os elementos político-culturais necessários para o surgimento de tal fenômeno. Um exemplo foi a experiência jacobina que criou e organizou determinada vontade coletiva nacional-popular e fundou o Estado moderno. Um movimento coletivo deveria ser entendido, também, como fruto de uma

elaboração de vontade e pensamento coletivos, obtidos através do esforço individual concreto, e não como resultado de um processo fatal estranho aos indivíduos singulares: daí, portanto, a obrigação da disciplina interior, e não apenas daquela exterior e mecânica. Se devem existir polêmicas e cisões, é necessário não ter medo de enfrentá-las e superá-las: elas são inevitáveis nestes processos de desenvolvimento e evitá-las significa somente adiá-las para quando já forem perigosas ou mesmo catastróficas, etc. (Q. 6, 2001, p. 751).

Somente a partir de movimentos com tal princípio é que pode se efetivar uma democracia real, uma real vontade coletiva nacional, capaz de diluir a força da passividade existente nos indivíduos e de barrar o avanço das diversas formas de despotismos. A vontade coletiva nacional-popular não é uma força que depende apenas do grupo; a energia particular do indivíduo, como é destacado, é tão importante quanto. Muitas vezes, é o vigor do indivíduo o responsável pelo enraizamento ou não de concepções sectárias e antipopulares num dado ambiente político e cultural.

O jacobinismo que, em certa medida, expressou a energia individual, deveria ser visto como um acontecimento fundamental para ser traduzido para a Itália em termos de herança histórico-internacional progressista.

Continuando a sua resposta à pergunta anterior, Gramsci diz que no seu país, “tradicionalmente, as forças opostas foram a aristocracia rural e, de modo mais geral, a propriedade agrária em seu conjunto, com seu característico traço italiano, que é o de ser uma específica ‘burguesia rural’, herança de parasitismo legada aos tempos modernos pela dissolução, como classe, da burguesia comunal.” (Q. 13, 2001, p. 1560). Entretanto, é reconhecida também a existência de uma força antagônica à essa herança histórico-nacional, tendo a frente “grupos sociais urbanos, adequadamente

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desenvolvidos no campo da produção industrial e que tinham alcançado um determinado nível de cultura histórico-política.” (Idem). Tudo indica que os referidos grupos se articulam em torno do movimento operário, bastante ativo no cenário político-social italiano entre as décadas de 1910-1920. Então, as condições objetivas e subjetivas para a construção de uma vontade coletiva nacional-popular já estavam determinadas historicamente.

Por outro lado, tais grupos urbanos somente poderiam concretizar uma vontade coletiva na Itália uma vez unidos com as massas camponesas. Nas palavras do autor:

Qualquer formação de uma vontade coletiva nacional-popular é impossível se as grandes massas dos camponeses cultivadores não irrompem simultaneamente na vida política. Isso é o que Maquiavel pretendia através da reforma da milícia, isso é o que os jacobinos fizeram na Revolução Francesa; na compreensão disso, deve-se identificar um jacobinismo precoce de Maquiavel, o germe (mais ou menos fecundo) de sua concepção de revolução nacional. (Q. 13, 2001, p. 1560, itálico do autor).

Portanto, é com a união desses grupos sociais que Gramsci identifica, em sua época, a criação de uma vontade coletiva capaz de efetuar o bloco nacional-popular. E, mesmo reconhecendo que, no âmbito europeu, “toda a história depois de 1815 mostra o esforço das classes tradicionais para impedir a formação de uma vontade coletiva desse tipo [...]” (Idem), para ele, os elementos históricos para concretizar um projeto nacional popular progressista estavam dados.

No período pré-carcerário, Gramsci não só presenciou como também ajudou a organizar uma tentativa de pôr em movimento, na vida nacional italiana, o projeto maquiaveliano. Isso ocorreu no momento em que ele era um dos editores da revista de cultura socialista “L’Ordine Nuovo”, quando os operários de Turim assumiram o controle das fábricas, em 1919-1920. E foi justamente por não incorporar as forças camponesas – devido à recusa dos dirigentes do PSI (Partido Socialista Italiano) e da CGL (Confederação Geral do Trabalho) em apoiar os interesses dos trabalhadores da cidade e do campo – que esse movimento não saiu vitorioso. Em outros termos, não foi possível transformar o popular em nacional. Entre os intelectuais, com destaque para Croce, também não foram direcionadas manifestações de defesa ou apoio aos operários, até mesmo em decorrência do medo do surgimento de uma força jacobina.

De qualquer forma, mesmo com a derrota, as classes populares da Itália continuavam sendo as herdeiras diretas da filosofia de Maquiavel, tal como o trabalhador alemão foi tido como herdeiro da filosofia clássica alemã. Potencialmente, elas eram as que poderiam melhor incorporar e transformar em linguagem moderna os problemas e as soluções da questão nacional formulada pelo florentino.

Mesmo não se tornando senso comum na vida nacional italiana, o projeto mequiaveliano continuava vivo. Como o próprio Gramsci diz: “o maquiavelismo serviu para melhorar a técnica política tradicional dos grupos dirigentes conservadores, tal como a política da filosofia da práxis; isto não deve ocultar seu caráter essencialmente revolucionário, que é sentido ainda hoje e que explica todo o anti-maquiavelismo [...]” (Q. 13, 2001, p. 1601). Em outras palavras,

com o estudo de Maquiavel e um conhecimento profundo de toda a maquiavelística, Gramsci tenta destruir o uso reacionário que fazem do secretário florentino tanto as culturas liberal e católica quanto aquela fascista. E, como sempre ocorre em seu trabalho, esta primeira intenção é superada – e Maquiavel se converte, nos Cadernos do cárcere, na metáfora política por excelência, organicamente inserida em seu projeto crítico da modernidade für ewig. (KANOUSSI, 2003, p. 145, itálico do autor).

Neste sentido, toda a

singularidade e complexidade da questão nacional italiana, posta antes do processo de unificação da Itália por Maquiavel, recebe em Gramsci desdobramentos e desenvolvimentos significativos, que estabelecem a ligação desse momento com a época do Risorgimento, quando

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a questão da direção política na construção do Estado-nação enfrenta, ainda, os elementos da situação econômico-corporativa, da divisão do poder temporal e secular, dos resíduos feudais da situação agrária, das elites tradicionais e da situação camponesa, agravados no quadro capitalista. (SILVA, 1989, p. 51-52, itálico do autor).

Nos “Quaderni del Carcere” é desvendado um aspecto fundamental do pensamento maquiaveliano, a saber: até “Maquiavel, a filosofia se havia ocupado principalmente do modo como o poder é ou deve ser exercido. Maquiavel havia se proposto também o problema de saber como se pode conquistá-lo, que era afinal precisamente o problema do ‘principado novo’: o mesmo problema, mudados os tempos e as circunstâncias, do partido revolucionário.” (BOBBIO, 2002, p. 116).

Ainda sobre a derrota do movimento turinês, uma de suas consequências foi a fundação do PCI (Partido Comunista da Itália), em 1921. Segundo Gramsci, e outros intelectuais comunistas, o PSI não tinha mais condições de representar as classes populares da península, era preciso fundar um novo partido. E, aqui, é pertinente voltar à questão do moderno príncipe. De acordo com o autor sardo,

O moderno Príncipe deve e não pode deixar de ser o anunciador e o organizador de uma reforma intelectual e moral, o que significa, de resto, criar o terreno para um novo desenvolvimento da vontade coletiva nacional-popular no sentido da realização de uma forma superior e total de civilização moderna. Estes dois pontos fundamentais – formação de uma vontade coletiva nacional-popular, da qual o moderno Príncipe é ao mesmo tempo o organizador e a expressão ativa e atuante, e a reforma intelectual e moral – deveriam constituir a estrutura do trabalho. (Q. 13, 2001, p. 1560-61).

Uma vez sendo importante na construção de uma vontade coletiva nacional-popular, o partido acaba se colocando como central também para a formação da nova nação. Isso porque, para se concretizar a união entre o nacional e o popular, é preciso possuir instituições capazes de penetrar nas classes populares.

De modo geral, em cada país esse partido “deveria estudar a realidade nacional e ‘nacionalizar-se’, assim como fizera o partido bolchevique.” (LEPRE, 2001, p. 257). Na Itália, o moderno príncipe poderia ser decisivo na superação de uma questão bastante complexa, a saber, na desprovincianização da política, da cultura, dos costumes etc. dos vários grupos sociais e populares. Na prisão, Gramsci escolheu para si justamente esta “tarefa de dar um fundamento de análise sólido à nacionalização do PCI...” (Idem). Em outras palavras, uma das principais funções do partido frente aos interesses da classe representada, não é a de prestar assistência sobre as atividades produtivas imediatas ou econômico-corporativas, pois, para isso, existem os sindicatos profissionais. Na leitura gramsciana: “No partido político, os elementos de um grupo social econômico superam este momento (o econômico-corporativo) de seu desenvolvimento histórico e se tornam agentes de atividades gerais, de caráter nacional e internacional.” (Q. 12, 2001, p. 1523). O partido deve se colocar como um organismo capaz de retirar, organicamente, dos setores a ele ligados tanto a luta política estreita e imediata, a qual, muitas vezes, está relacionada aos interesses econômicos, quanto a consciência espacialmente provinciana. Assim, o partido político acaba sendo uma instituição fundamental da sociedade civil através da qual é possível alcançar não apenas o espaço nacional, como também o internacional. Ele, além de formar parte dos intelectuais orgânicos do seu grupo social específico, também contribui para a formação cultural intelectual de uma percepção e de um sentimento de maior alcance – tanto nacional quanto internacional. E, por esse motivo, ele deve ser considerado nos projetos de um movimento nacional-popular. Nesse sentido, a imagem que o autor tinha do partido era diferente de qualquer outra. “Mais do que uma organização política, era uma verdadeira escola de filosofia, uma universidade de vida, um exército, um lugar de convergência social, um ponto de encontro e, acima de tudo, um vínculo coletivo e duradouro de fraternidade, um lugar de pertencimento real.” (LESTER, 2003, p. 165).

Nenhuma dessas questões era distante das análises teóricas feitas por Gramsci, quando era dirigente do PCI.

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O princípio da reforma intelectual e moral, ou seja, da construção de uma nova cultura, é precisamente o processo de transformação subjetiva e ideológica no qual o nacional-popular pode se consolidar sobre a vida nacional. No trabalho de reformar a cultura e os valores do popular, o intelectual nacional-popular – entendido como um antropólogo sem as pressões acadêmico-científicas – é uma mediação indispensável. Ele contribui para a coesão do bloco nacional-popular à medida que provoca no popular uma concepção de mundo de maior alcance, superando os limites da província.

A presença do partido deve se dar de modo orgânico junto às massas populares, pois o grau de aproximação com a realidade efetiva das classes subalternas é o elemento que determina a importância do moderno príncipe. Para o autor, um partido político possui maior ou menor significado e importância à medida que sua atividade particular tiver maior ou menor peso na determinação da história de um país. (Q. 13, 2001).

Situando de um modo ampliado a instituição partidária, ela, no interior da relação nacional/internacional, assume o seguinte caráter: “de resto, as relações internacionais reagem passiva e ativamente sobre as relações políticas (de hegemonia dos partidos).” Dessa forma, o autor coloca o partido político como um organismo que age não apenas no terreno nacional. Diz ainda, “quanto mais a vida econômica imediata de uma nação se subordina às relações internacionais, tanto mais um determinado partido representa esta situação e a explora para impedir o predomínio dos partidos adversários.” De certo modo, essas palavras revelam um grande alcance histórico e explicativo, permanecendo bastante atual. Continuando, expõe:

[...] pode-se chegar à conclusão de que, com freqüência, o chamado ‘partido do estrangeiro’ não é propriamente aquele que é habitualmente apontado como tal, mas precisamente o partido mais nacionalista que, na realidade, mais do que representar as forças vitais do próprio país, representa sua subordinação e servidão econômica às nações ou a um grupo de nações hegemônicas. (Q. 13, 2001, p. 1562-63).

Ao ressaltar isso, Gramsci parece dialogar com uma tradição política italiana defensora de concepções nacionalistas, mas que, em sua essência, beneficiava os interesses estrangeiros.

No cenário das lutas entre nações, o partido é posto também como uma instituição fundamental. Diz ele, “Jamais devemos esquecer que, na luta entre as nações, cada uma delas está interessada em que a outra se enfraqueça por meio das lutas internas e que os partidos são exatamente os elementos das lutas internas. [...]”. Para completar, ainda argumenta: “na história do chamado princípio de nacionalidade, as intervenções estrangeiras a favor dos partidos nacionais que perturbavam a ordem interna dos Estados antagonistas são numerosas...” (Q. 14, 2001, p. 1735). Aqui, também parece haver uma significativa atualidade.

De maneira geral, Gramsci, através de sua reflexão sobre o moderno príncipe, figura-se entre os principais autores contemporâneos que contribuem para a realização de uma leitura popular e progressista sobre o pensamento do Secretário – muitas vezes alvo de apropriações autoritárias. Além disso, o comunista sardo, ao traduzir de maneira original o pensamento maquiaveliano, contribuiu para uma rica atualização do autor de “O Príncipe”, este, escrito há 500 anos.

3 Considerações Finais A influência de Maquiavel sobre o pensamento político-cultural de Gramsci está presente em

vários pontos. E isso, o autor dos “Quaderni del Carcere” deixa explícito em suas notas carcerárias. É certo que ele não tenha, de modo algum, abandonado a perspectiva internacional do movimento político-social dos subalternos, porém, a sua preocupação com o momento nacional da luta radical frente ao capitalismo, não foi relegada. Gramsci percebe como poucos marxistas a importância de se entender com organicidade a particularidade nacional da transição socialista. E, dentro dessa perspectiva, tem em Maquiavel uma referência central para analisar o processo histórico específico da Itália.

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Seja como referência para pensar o intelectual, mais especificamente o nacional-popular, seja para avançar o seu entendimento sobre o partido, isto é, o moderno príncipe, Maquiavel oferece ao dirigente do PCI contribuições inquestionáveis. Por sua vez, ao analisar de forma rica e original a obra do Secretário Florentino, Gramsci também contribui para que, ainda neste início de XXI, aquele autor continue sendo atual – mesmo após cinco séculos.

Notas 1 Professor de Ciência Política da UFGD. Doutor em Ciências Sociais pela Unicamp. Endereço eletrônico: [email protected], Endereço para correspondência do autor: Universidade Federal da Grande Dourados/ Faculdade de Ciências Humanas/ Rodovia Dourados – Itahum, Km 12. Dourados, MS. CEP: 79.804-970.

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O ‘Novíssimo Príncipe’.

Gramsci e a Reconstrução da Teoria Marxista do Partido

Geraldo Magella Neres1

Marcos del Roio2

Resumo: É somente nos “Cadernos do cárcere”, através da fórmula política cristalizada no ‘moderno Príncipe’, que a teoria gramsciana do partido político atinge a sua configuração definitiva. Além do diálogo direto com as formulações leninianas e com aquelas posteriormente desenvolvidas pela Internacional Comunista (IC), é também perceptível os ecos da interlocução crítica com a sociologia elitista do partido político de Robert Michels. Em grande medida, é graças a esse approach crítico, e não sectário, que Gramsci pôde produzir uma das mais originais reflexões sobre a organização partidária dentro da tradição marxista, enfrentando as questões então negligenciadas da burocratização e da oligarquização dos partidos operários, fornecendo, assim, uma possível superação teórica para a tese elitista da inevitabilidade da cisão entre os interesses do núcleo dirigente partidário e os interesses de sua referência social. O objetivo deste trabalho é recuperar algumas contribuições de Gramsci para a reconstrução da teoria do partido revolucionário nos dias de hoje.

Palavras-chave: Partido revolucionário; ‘Moderno Príncipe’; Antonio Gramsci.

Abstract: It is only in his Prison Notebooks, through the political formula crystallized in the 'Modern Prince', that gramscian theory of the political party reaches its final configuration. Beyond to direct dia-logue with the leninian formulations and those subsequently developed by the Communist Internation-al, is also noticeable echoes of critical dialogue with elitist sociology of the political party of Robert Mi-chels. Largely, is thanks to this critical and nonsectarian approach that Gramsci could produce one of the most original reflection on the party organization within the Marxist tradition, facing the issues pre-viously neglected of oligarchyzation and bureaucratization of workers' parties, thus providing a possible theoretical overrun for the inevitability of elitist thesis of split between the party leader's core interests and the interests of their social reference. The objective of this work is to restore some contributions of Gramsci to the reconstruction of theory of the revolutionary party today.

Keywords: Revolutionary Party; ‘Modern Prince’; Antonio Gramsci.

1 Introdução A perspectiva marxista de estudo do partido político segue uma abordagem metodológica

bastante específica quando comparada com a perspectiva liberal. Em oposição à perspectiva liberal, que tem como seu objeto de estudo o fenômeno partidário em geral, apreendendo o partido político como um fenômeno sociológico e circunscrevendo o seu funcionamento ao contexto da democracia liberal, delimitando as esferas de atuação e o conteúdo programático dos partidos aos limites estabelecidos pelo jogo democrático burguês, a teoria marxista delimita o seu objeto de estudo como sendo o partido revolucionário. Esta delimitação específica altera radicalmente os contornos da reflexão sobre o partido, introduzindo questionamentos exclusivos e reivindicando uma função estratégica para a organização partidária que transcende os limites ideológicos estabelecidos pela concepção liberal. Além disso, fica evidente que, na concepção marxista, o partido é muito mais do que uma mera associação contingente de indivíduos com interesses comuns (concepção sociológica), adquirindo o estatuto de um sujeito

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político coletivo, unificado pela práxis fornecida pelo conhecimento teórico das condições gerais do desenvolvimento da luta de classes.

A função privilegiada do partido dentro da tradição marxista é facilmente explicável. Para as classes subalternas, que não dispõem da posse dos meios de produção e nem do controle do Estado – e que, exatamente por isso, são subalternas – o partido aparece como a instância mais importante na afirmação de sua identidade antagônica. Neste sentido, a reflexão marxista sobre a organização partidária procura responder a questões teóricas e políticas bastante precisas. Fundamentalmente, dada a situação concreta de exploração e de dominação de classe vigentes na sociedade capitalista, a questão central colocada pela teoria marxista do partido é a seguinte: como a organização política das classes subalternas deve ser estruturada para que uma nova vontade coletiva possa ser construída?

Porém, em decorrência de sua complexidade, essa indagação fundamental não pode ser respondida diretamente. Para respondê-la, torna-se necessário proceder a uma investigação teórica mais pormenorizada, abordando uma série de questões paralelas que ocupam o centro da reflexão marxista sobre o partido, desde seus primórdios, definindo o próprio enfoque de sua abordagem: a) a questão da consciência de classe, que busca explicar o desenvolvimento da consciência socialista entre as massas trabalhadoras; b) a relação entre a classe e sua organização política, procurando esclarecer as semelhanças e distinções entre o ser empírico da classe e sua representação organizativa formal e, finalmente, c) a definição da estrutura do partido, estabelecendo os paradigmas organizativos apropriados para as diferentes conjunturas nas quais se desenvolve a luta concreta das classes subalternas.

É evidente que, apesar de comportar elementos universais, a maioria das respostas a essas questões é transitória e conjuntural. Consequentemente, as diversas teorias do partido concebidas pelos autores marxistas são concepções que traduzem as condições concretas da luta de classes de suas épocas, mais do que modelos canonizados e válidos para todas as situações históricas. De modo que não existe uma teoria marxista geral do partido político, pois a sua estrutura organizativa é determinada não só pelo contexto histórico internacional da luta de classes, mas também pelo quadro das relações de força existente entre as classes no interior de cada formação social particular: em suma, os modelos organizativos são fluidos, historicamente determinados e destinados a transformações constantes.

É neste sentido preciso que reivindicamos que a reflexão desenvolvida por Antonio Gramsci durante a primeira metade do século XX, apesar de conformada no calor das batalhas ideológicas de sua época, pode fornecer elementos importantes para a reconstrução contemporânea da teoria marxista do partido revolucionário. Com isso, o que queremos dizer é que Gramsci propôs soluções teóricas e políticas – ainda que enunciadas de modo fragmentário e jamais aplicadas na prática – que nos permitem responder de modo propositivo à acerba crítica anunciada pela sociologia elitista michelsiana já em 1911 e referendada pela práxis organizativa do movimento operário ao longo de todo o restante do século XX. Dizendo de outro modo, queremos sinalizar que algumas intuições organizativas desenvolvidas por Gramsci podem nos indicar alternativas de superação teórica aos problemas de burocratização e de oligarquização que marcaram indistintamente todas as experiências de construção da organização partidária do proletariado no século passado.

2 As primeiras formulações sistemáticas sobre a Concepção de Partido (1925-1926)

O último período de liderança de Gramsci à frente do PCI, pois fora eleito secretário-geral do

partido desde agosto de 1924, coincide com o momento de sua primeira sistematização da teoria do partido que vinha desenvolvendo desde sua estadia em Moscou. Para sermos mais exatos, as ideias e intuições que Gramsci vinha debatendo com seus companheiros mais próximos entre 1923 e 1924, no contexto da polêmica travada contra o sectarismo esquerdista de Amadeo Bordiga, ganham, enfim, organicidade e articulação lógica nos textos produzidos nesse período: o avanço em direção ao movimento de refundação comunista do século XX, apenas indicado na polêmica anterior com a

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extrema esquerda, desdobra-se agora numa nova síntese política original que elevará a novos patamares as contribuições herdadas de Lenin e dos bolcheviques.

Este desenvolvimento fica bastante evidente nas “Teses de Lyon”, redigidas em parceria com Togliatti entre agosto e setembro de 1925, para serem discutidas no III Congresso do PCI, em 1926. Neste momento, após assimilar a fórmula política leniniana da ‘frente única’ como a estratégia mais adequada à revolução socialista, Gramsci identifica o sujeito potencial da revolução italiana na aliança entre operários e camponeses, sob a hegemonia do proletariado industrial. Porém, não bastava simplesmente identificar os sujeitos potenciais da revolução socialista, era preciso suscitar no proletariado italiano e em seus aliados estratégicos uma consciência antagônica resoluta e uma firme identidade ideológica autônoma para passar do momento de preparação àquele da efetiva insurreição revolucionária. O único organismo capaz de desempenhar estas funções, como o exemplo russo havia demonstrado, era um partido comunista inteiramente comprometido com a revolução proletária. É por isso que os esforços de Gramsci se voltam inteiramente para a transformação do PCI num verdadeiro partido ‘bolchevique’ (GRAMSCI, 2004b, p. 341-342).

O cerne da ‘bolchevização’ do PCI, assim como apreendido por Gramsci, pode ser expresso em quatro pontos fundamentais: 1) implica na reformulação profunda de sua ideologia, através da substituição do sectarismo esquerdista pelo leninismo, 2) na estruturação do partido segundo uma forma específica de organização, capaz de assegurar a sua coesão interna e a eficácia de sua intervenção política, 3) na sua integração orgânica à classe operária, criando-se um vínculo real entre a vanguarda comunista e o movimento de massas e, por fim, 4) na definição da tática e da estratégia adotadas pelo partido com base nas condições objetivas da luta política e no nível de organização alcançado pelo movimento de massas, e não em princípios formais sectários (GRAMSCI, 2004b, p. 342). A resposta a este conjunto de problemas configura o modelo de partido desenvolvido por Gramsci neste momento importante de transição para o período de maturidade, indicando a sua dinâmica interna de funcionamento, a forma organizativa a ser adotada e a relação a ser estabelecida entre o partido e sua referência social (a classe operária e seus aliados estratégicos).

O primeiro ponto indicado por Gramsci estabelece a necessidade de adoção de uma completa unidade ideológica do PCI em torno das aquisições políticas desenvolvidas por Lenin e pelos bolcheviques. Entretanto, a conquista da unidade ideológica do PCI exigia, primeiramente, superar algumas de suas deficiências teóricas congênitas, representadas pelo perigo de possíveis desvios tanto de direita quanto de esquerda. Os dois tipos de desvios são vistos como entraves à capacidade do PCI de manter viva a perspectiva da revolução socialista e de conquistar a hegemonia sob a maioria da população trabalhadora italiana. Todavia, em decorrência da liderança da corrente esquerdista de Bordiga durante todo o período inicial de construção do PCI, o combate ao desvio de esquerda exigia maior empenho do partido.

O principal equívoco da ideologia esquerdista, a partir do qual todos os outros se originam (a indicação da função do partido e da forma de determinação de sua tática), consiste na definição do partido “[...] como um ‘órgão’ da classe operária, que se constitui pela síntese de elementos heterogêneos” (GRAMSCI, 2004b, p. 345). A correção deste equívoco implica em resgatar as contribuições teóricas leninianas, definindo o partido de modo a destacar “[...] o fato de que ele é uma ‘parte’ da classe operária” (GRAMSCI, 2004b, p. 345). A definição do partido considerando-se o seu conteúdo social sublinha o caráter de classe do partido comunista, em oposição ao modelo interclassista dos partidos socialdemocratas típicos da Segunda Internacional, superando a possibilidade de influências ideológicas pequeno-burguesas sobre a direção do partido comunista, como se verificou no PSI durante o bienio rosso.

Por outro lado, o segundo ponto do processo de ‘bolchevização’ sublinhado por Gramsci estabelece os elementos de base3 e a solidez da organização do partido comunista. Ele retoma uma concepção já desenvolvida anteriormente, quando de sua polêmica com a extrema-esquerda bordiguista, que converte os problemas organizativos em problemas políticos, indicando que a dupla função exigida do PCI (forjar uma identidade antagônica e guiar o proletariado na insurreição revolucionária) só poderá ser alcançada através da adoção das células profissionais como componentes

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básicos do organismo partidário (GRAMSCI, 2004b, p. 348-349). Além disto, a organização com base na produção também resolve outro problema fundamental do partido proletário, que é o da formação e seleção de seus quadros dirigentes. A célula por local de trabalho apresenta-se como o mecanismo ideal para selecionar diretamente do seio da própria classe operária os dirigentes partidários (GRAMSCI, 2004b, p. 350-351).

O terceiro ponto fundamental da ‘bolchevização’ do PCI, conforme indicado por Gramsci, aborda a questão da relação entre o partido e a classe operária. Esta questão, também recorrente nas diversas teorias marxistas da organização proletária, é central para indicar a função a ser desempenhada pelo partido revolucionário. Nesta questão específica, a ‘bolchevização’ significa reformular a função indicada ao partido pela ideologia esquerdista, que era reduzida apenas àquela de preparar quadros políticos revolucionários, sem participar diretamente da luta política cotidiana (daí a defesa do abstencionismo político por Bordiga), pela função “[...] de guiar a classe em todos os momentos, através do esforço para manter-se em contato com ela em face de qualquer mudança da situação objetiva” (GRAMSCI, 2004b, p. 345). Somente assim, o movimento espontâneo das massas operárias poderia ser guiado pela intervenção consciente do centro dirigente partidário, possibilitando uma intervenção política resoluta e compacta por parte do proletariado. Em função disto, Gramsci sugere algumas medidas práticas capazes de superar o sectarismo característico da antiga linha política bordiguista, criando as condições para enraizar profundamente o PCI no movimento de massa da classe operária, a saber: 1) aumentar o número de inscritos do partido e aprofundar sua formação política; 2) delegar tarefas práticas a todos os filiados; 3) instituir uma coordenação unitária das diversas atividades desenvolvidas pelo partido; 4) construir uma direção coletiva dos organismos dirigentes centrais do partido; 5) aumentar a presença dos militantes comunistas entre as diversas lutas parciais das massas trabalhadoras; 6) desenvolver a autonomia executiva e a iniciativa dos dirigentes que compõem o aparelho partidário e 7) intensificar a preparação para a luta clandestina, mantendo e ampliando o contato com as massas (GRAMSCI, 2004b, p. 354-355).

O quarto e último ponto do processo de ‘bolchevização’ do PCI defendido por Gramsci aborda o processo de definição da tática e da estratégia pelo partido comunista. Também neste quesito, trata-se de substituir a elaboração da tática “com base em preocupações formalistas”, como ocorria sob a hegemonia da concepção esquerdista de Bordiga, pela sua determinação “em função das situações objetivas e da posição das massas” (GRAMSCI, 2004b, p. 345). Contudo, é este último ponto dentre os quatro indicados por Gramsci como definidores da identidade comunista da organização proletária que permite a reconstrução de sua teoria do partido, situando-a no quadro geral da elaboração política desenvolvida neste período.

A questão tática e estratégica é importante porque coloca o problema fundamental da direção da classe operária e de seus aliados pelo partido revolucionário. O partido não dirige a classe “através de uma imposição autoritária vinda de fora”, reivindicando, de modo formal, que ele é “o órgão revolucionário desta classe” (GRAMSCI, 2004b, p. 356), e que a classe deve, automaticamente, aceitar a sua liderança, como concebia a extrema-esquerda bordiguista. O partido revolucionário só pode conquistar a legitimidade de dirigir a classe operária, na medida em que ele,

[...] ‘efetivamente’ se revele capaz – enquanto parte da classe operária – de se ligar a todos os segmentos de tal classe e de imprimir à massa um movimento na direção desejada e que encontre respaldo nas condições objetivas. Somente em consequência de sua ação entre as massas é que o Partido poderá fazer com que essas o reconheçam como ‘seu’ partido (conquista da maioria); e somente quando tal condição se efetivar é que o Partido pode presumir que está sendo seguido pela classe operária. (GRAMSCI, 2004b, p. 356).

3 A conformação definitiva da Teoria do Partido nos “Cadernos do Cárcere”: o ‘Moderno Príncipe’ como superação da crítica michelsiana

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Nos “Cadernos do cárcere”, além de traduzir sua concepção do partido revolucionário na linguagem conceitual da nova síntese teórica da ‘filosofia da práxis, Gramsci também procura responder à crítica michelsiana da inevitabilidade da burocratização e oligarquização do partido proletário. Como se sabe, em sua obra máxima, publicada ainda em 1911, Robert Michels (1982) propôs a ‘lei de bronze da oligarquia’, que estabeleceria com rigor determinista a inexorabilidade da cisão antagônica entre os interesses de reprodução da organização partidária e os interesses próprios de sua referência social. Com efeito, mesmo que originariamente motivado pela instauração do autogoverno das massas, a própria constituição formal do partido operário representaria o passo inicial do processo de oligarquização de seu funcionamento, substituindo os anseios democráticos originais pela progressiva salvaguarda dos interesses de seu vértice dirigente. Neste processo inexorável, a cisão entre os interesses de sua base social de apoio e os interesses da direção partidária seria a consequência direta da constituição da organização e do caráter psicológico passivo das massas populares. Se, sem organização, a luta política dos operários se torna impossível pela dispersão de forças, tão logo tenha início a constituição de sua organização partidária, com a delegação de poderes pelas massas a seus representantes, instala-se a tendência ineliminável de oligarquização, com o crescente divórcio entre dirigentes e dirigidos, entre chefes e seguidores.

Gramsci chega a propor uma exposição sistemática da reformulação de sua teoria do partido nos escritos carcerários. Trata-se da sugestão de escrever um hipotético trabalho sobre o ‘moderno Príncipe’, no qual a elaboração madura de sua teoria do partido revolucionário seria apresentada com base no modelo de exposição adotado por Nicolau Maquiavel em “O Príncipe”. A alusão a este pretendido projeto de estudo é integrada ao primeiro parágrafo do “Caderno 13”, redigido entre 1932-1934, segundo a proposta então adotada de sistematização e reagrupamento temático das notas presentes nos cadernos miscelâneos anteriores, iniciada com o “Caderno 10”. Entretanto, esta ideia é anterior a esta fase de redação dos “Cadernos do cárcere”, aparecendo já no parágrafo 21 do “Caderno 8”, escrito entre 1931-1932, cujo sugestivo título é exatamente “O moderno Príncipe” (GRAMSCI, 2001, p. 951). Ou seja, tal trabalho, utilizando-se de recursos estilísticos e literários, fundindo a ideologia socialista com a ciência política marxista na forma dramática do ‘mito’, através da personificação das ações políticas necessárias deveria indicar à classe progressiva de nossa época como construir uma nova “vontade coletiva nacional-popular no sentido da realização de uma forma superior e total de civilização moderna” (Gramsci, 2001, p. 1560).

Infelizmente, esta apresentação sistemática de sua concepção definitiva de partido não chegou a ser escrita. Tal exposição bem que poderia ter tomado o formato de um caderno especial, inteiramente dedicado à questão do partido revolucionário. No entanto, mesmo na sua ausência, a linha unitária de investigação que se desdobrou do hipotético trabalho planejado por Gramsci – a pesquisa sobre o jacobinismo, a inquirição histórica sobre o processo de formação da ‘vontade coletiva’ nacional-popular e a análise minuciosa sobre a dinâmica de funcionamento da ‘reforma intelectual e moral’ ou da afirmação ‘molecular’ de uma nova concepção de mundo, sem contar as diversas abordagens aproximativas sobre a concepção do partido político e de sua forma progressista de organização4 –, temas centrais constitutivos do que deveria ser a estrutura do trabalho conjecturado, acabou conformando de modo profundo a totalidade de sua reflexão política carcerária. Deste modo, embora fragmentária e não inteiramente explicitada, manifesta mais na articulação de suas diversificadas notas temáticas do que numa exposição logicamente concatenada, é possível derivar do conjunto de suas referências a Nicolau Maquiavel os lineamentos essenciais – mesmo que inconclusos e difusos – da pretendida sistematização da teoria do ‘moderno Príncipe.

Embora não exista nos “Cadernos do cárcere” um modelo organizativo minucioso e sistemático, é possível extrair das notas dedicadas à temática organizativa, importantes insights sobre o tipo de estruturação interna que deveria nortear a edificação da nova forma-partido preconizada por Gramsci através da fórmula do moderno Príncipe. A discussão sobre a questão organizativa tem seu núcleo básico fixado desde cedo, já no parágrafo 75 do “Caderno 2”, onde Gramsci define os eixos que guiarão a sua reflexão sobre o tema. Ao eleger como problema de pesquisa a refutação teórica da tese michelsiana da inevitabilidade da oligarquização dos partidos políticos, incluindo-se o próprio partido

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operário, Gramsci estabelece o ponto a partir do qual convergirá toda a sua reflexão sobre a organização partidária nos “Cadernos do cárcere”5.

Deste modo, o ponto de partida para apreendermos a estrutura organizativa do moderno Príncipe consiste exatamente na identificação das hipóteses iniciais formuladas por Gramsci a partir de sua crítica à concepção oligárquica de partido proposta por Michels. Em primeiro lugar, porque é no parágrafo 75 do “Caderno 2” que, pela primeira vez, nos “Cadernos do cárcere”, pelo menos de modo consistente, é colocada a necessidade de aprofundar a discussão sobre a estrutura organizativa do partido revolucionário6. Em segundo lugar, mas não menos importante, porque é exatamente no parágrafo 75 do “Caderno 2” que Gramsci elabora as hipóteses fundamentais que serão desenvolvidas ao longo dos “Cadernos do cárcere”, principalmente através da contraposição entre ‘centralismo democrático’ e ‘centralismo burocrático’, que conformarão o modelo de organização partidária capaz de superar a famosa ‘lei de bronze da oligarquia’, formulada por Robert Michels.

O que podemos deduzir das citações literais do artigo de Michels feitas por Gramsci, e das várias glosas que lhe seguem, é que, mesmo sem dispor no cárcere do livro de 19117, ele identificou de modo bastante preciso as suas principais teses. Assim, Gramsci identifica não só a proposição mais importante da sociologia do partido de Michels, aquela que lhe fornece todo arcabouço lógico-explicativo, que reivindica a existência de uma lei de bronze da oligarquização, que prevê com rigor determinista a inexorável distinção entre os interesses da base partidária e os interesses de seus dirigentes, mas também alguns de seus desdobramentos secundários, como a constituição de diferenciações ou funções especializadas no interior do partido e a consequente burocratização na tomada de decisões8. No entanto, apesar de reconhecer as deficiências metodológicas e o esquematismo da concepção michelsiana de partido, Gramsci considera que suas ideias “[...] são interessantes como coleta de material bruto e de observações empíricas e díspares” (GRAMSCI, 2001, p. 237).

Porém, ao distinguir democracia partidária de democracia na esfera do Estado, Gramsci restabelece o conteúdo de classe presente na oposição entre dirigentes e dirigidos, superando os pressupostos abstratos dos quais partia Michels. Se os dirigentes provêm de uma classe social diferente daquela de sua base de sustentação, a organização realmente estará condenada à oligarquização e ao burocratismo, como ficou evidente nos sindicatos e nos partidos socialdemocratas vinculados à Segunda Internacional. Todas as organizações operárias lideradas pela pequena-burguesia naufragaram inexoravelmente na oligarquização e na burocratização. Porém,

[...] se não existe diferença de classe, a questão torna-se puramente técnica – a orquestra não crê que o regente seja um patrão oligárquico – de divisão do trabalho e de educação, isto é, a centralização deve levar em conta que nos partidos populares a educação e o ‘aprendizado’ político se verificam em grande parte através da participação ativa dos seguidores na vida intelectual – discussões – e organizativa dos partidos (GRAMSCI, 2001, p. 236).

Mas será suficiente esperar resolver este problema apenas através da prerrogativa da

composição proletária do partido revolucionário, que, desde as “Teses de Lyon”, era concebido como o partido de uma única classe? Isto é, a composição proletária do partido seria suficiente para se evitar tanto o dirigismo sectário quanto a cisão entre os interesses do aparelho partidário e os interesses de sua referência social, própria do reformismo socialdemocrático? A composição proletária do moderno Príncipe, por si só, como um ato taumatúrgico, seria suficiente para assegurar a vigência de uma relação profundamente democrática entre dirigentes e dirigidos?

O próprio Gramsci demonstra estar insatisfeito com esta solução inicial, pois reconhece que reduzir o problema da existência da divisão entre dirigentes e dirigidos no interior do partido revolucionário a uma questão exclusivamente técnica – isto é, a uma questão de divisão interna do trabalho partidário, sem qualquer conteúdo de classe (daí a metáfora do regente e da orquestra) –, ainda que justa sob certos aspectos, significa ignorar a crescente complexificação e especialização da atividade política, sobretudo daquela envolvida na direção partidária. Este problema adicional, que remete ao papel destacado dos intelectuais no interior do partido revolucionário, exige a construção de

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mecanismos organizativos inovadores, já vislumbrados nas “Teses de Lyon”, quando Gramsci defende a célula profissional como base de organização do partido, capazes de formar um amplo estrato de dirigentes intermediários, extraídos diretamente da massa e que deveriam permanecer organicamente vinculados a ela, ainda que exercendo funções dirigentes (GRAMSCI, 2001, p. 236-237).

O aprofundamento das hipóteses que Gramsci estabelece a partir de seu confronto com Michels – e que deveriam fornecer os fundamentos organizativos do ‘moderno Príncipe’ – tem início no parágrafo 68 do “Caderno 9”, quando ele institui uma contraposição funcional entre ‘centralismo democrático’ e ‘centralismo burocrático’. O conteúdo da fórmula do centralismo democrático foi estabelecido por Lenin em 1902, através da publicação de seu livro “Que fazer?”. No entanto, o conceito leniniano só passou a ser utilizado amplamente pelo movimento operário internacional após a vitória da Revolução bolchevique e a fundação da Terceira Internacional. Neste contexto político específico, a referência ao centralismo democrático servia para indicar uma determinada forma de estrutura organizativa dos partidos comunistas, marcada pela direção centralizada, pela homogeneidade ideológica dos militantes e pela rígida disciplina imposta pelo Comitê Central na aplicação da linha política decidida pelas instâncias deliberativas do partido. Por outro lado, nos “Cadernos do cárcere”, apesar de manter esta definição como pano de fundo, Gramsci acaba ampliando o seu conteúdo, para incluir outras realidades sociais que não constavam de sua formulação original.

Gramsci começa o parágrafo 68 do “Caderno 9” delimitando a sua concepção ampliada de ‘centralismo’, que passa a incluir vários campos novos, além daquele diretamente vinculado à estruturação interna do partido revolucionário. Em seguida, Gramsci introduz as distinções que separam o ‘centralismo democrático’ do ‘centralismo burocrático’. O primeiro tipo de centralismo, o único efetivamente capaz de criar uma articulação orgânica entre as forças econômicas e políticas que precisam ser organizadas, apresenta as características de um “‘centralismo’ em movimento”, de “uma contínua adequação da organização ao movimento real”, combinando “os impulsos oriundos de baixo com o comando pelo alto”, permitindo, assim, “uma contínua inserção dos elementos que brotam do mais fundo da massa na sólida moldura do aparelho de direção” e assegurando a “acumulação regular das experiências” (GRAMSCI, 2001, p. 1634). Já o ‘centralismo burocrático’ apresenta características radicalmente opostas: constitui-se numa forma enrijecida de organização e unificação das forças econômicas e políticas, negadora do dinamismo vitalizador que garante o afluxo regular dos elementos provenientes da base para o vértice da organização, isolando o grupo dirigente de sua referência social, criando as condições adequadas para a oligarquização e para a burocratização previstas por Michels. Em suma, podemos dizer que a distinção fundamental entre ‘centralismo democrático’ e ‘centralismo burocrático’ reside precisamente no tipo de relação que se estabelece entre líderes e liderados, na forma como se administra politicamente a inevitável conformação de diferenciações ou especializações técnicas que, forçosamente, deverão ocorrer no interior da organização em questão: se esta relação é de natureza inclusiva, se a atuação da vanguarda respeita e fortalece a ligação orgânica com a base de sua referência social, o tipo de organização dado às forças econômicas e políticas (o funcionamento do partido, do Estado, do sindicato etc.) será o ‘centralismo democrático’; se esta relação é de natureza restritiva, fundada no isolamento do grupo dirigente e na aplicação burocrática da linha política, o tipo de organização erigido só poderá se basear no ‘centralismo burocrático’.

O corolário imediato da adoção do ‘centralismo democrático’ é a introdução de um novo tipo de disciplina no interior do partido. No parágrafo 48 do mesmo “Caderno 14”, ao reverberar os ecos das advertências contidas na sociologia oligárquica do partido de Michels, Gramsci define a disciplina partidária “não como acolhimento servil e passivo de ordens, como execução mecânica de tarefas”, “mas como uma assimilação consciente e lúcida da diretriz a realizar” (GRAMSCI, 2001, p. 1706). A disciplina partidária é, então, apreendida não como uma imposição extrínseca, imposta de fora por um Comitê Central onisciente, como ocorre quando o partido é concebido como um ‘órgão da classe’ (como no caso do bordiguismo e do stalinismo); porém, como uma exemplificação concreta de liberdade, que, ao invés de anular a personalidade do militante, apenas “limita o arbítrio e a impulsividade irresponsável” (Idem, p. 1706), unificando as vontades individuais numa ‘vontade coletiva’ estável, capaz de intervir conscientemente na realidade histórica, pois o partido é concebido e

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sentido como uma parte orgânica da classe, não como um corpo distinto e separado. Neste caso, a disciplina adquire um forte componente de convicção, pois a autoridade que lhe requisita obediência emana legitimamente de uma deliberação ‘democrática’. Ou seja, “se a autoridade for uma função técnica especializada e não um ‘arbítrio’ ou uma imposição extrínseca e exterior, a disciplina é um elemento necessário de ordem democrática, de liberdade” (GRAMSCI, 2001, p. 1707). Contudo, nada impede que, em situações determinadas, quando as decisões já tenham sido democraticamente tomadas, a disciplina na execução das ações planejadas não tenha que ser imposta de modo rígido pelo Comitê Central.

4 Conclusão – Os desafios contemporâneos à Teoria Marxista do Partido: a necessidade do ‘Novíssimo Príncipe’

Atualmente, a teoria marxista do partido revolucionário se encontra confinada entre o desafio

de unificar as vontades individuais numa vontade coletiva capaz de intervir politicamente e a descrença generalizada por parte das classes subalternas no partido como veículo de emancipação e de aplicação do programa comunista. Assim, o problema organizativo contemporâneo pode ser traduzido na seguinte fórmula: necessidade objetiva impostergável do ‘novíssimo Príncipe’ como articulador de uma nova vontade coletiva contra-hegemônica que se oponha radicalmente ao ‘capitalismo zumbi’9 e negação da organização formal partidária como instrumento de autoemancipação por parte das classes subalternas. Embora essa questão não decorra somente da incapacidade de funcionamento democrático demonstrada pelos partidos comunistas ao longo do século XX, que, majoritariamente, tornaram-se presas do burocratismo e da oligarquização de sua estrutura organizativa, inviabilizando, assim, o programa de autoemancipação comunista original, a crise atual do partido proletário também deve muito ao descrédito na própria ideia comunista neste início do século XXI. Após a ressaca utópica que se seguiu ao esgotamento de um inteiro ciclo histórico iniciado com a revolução bolchevique de 1917, aliada a uma intensa campanha ideológica na mídia mundial pelas forças anticomunistas, parece que o próprio projeto comunista perdeu parte de sua força de atração.

A descrença no projeto comunista e a crise das organizações proletárias constituem os dois problemas principais a serem resolvidos pela ‘refundação comunista’ do século XXI. De modo sumário, poderíamos definir a ‘refundação comunista’ como um processo teórico-prático de atualização do marxismo aos desenvolvimentos concretos do modo de produção capitalista. E, como tal, a ‘refundação comunista’ implica a articulação orgânica entre elaboração teórica e experimentação prática: a primeira é necessária para a compreensão da dinâmica de funcionamento do capitalismo em sua fase de desenvolvimento contemporâneo, traduzindo, assim, o projeto comunista para o século XXI, e a segunda para a constituição de formas de organização, capazes de fornecer eficácia tática à práxis política emancipatória das classes subalternas.

É, sobretudo, com relação a essa segunda questão que um retorno à concepção gramsciana de organização pode fornecer elementos importantes para a reconstrução contemporânea da teoria do partido revolucionário. A superação da sociologia elitista do partido tornou-se nos últimos tempos um dos mais persistentes desafios à teoria política marxista. Neste sentido, apesar do caráter fragmentário da conformação definitiva da teoria do partido delineada por Gramsci nos “Cadernos do cárcere”, os mecanismos organizativos inovadores e as medidas políticas propostos por ele aparecem como uma contribuição importante para a reconstrução da teoria marxista da organização. A extração das lideranças do meio proletário, a formação de um amplo extrato médio de militantes, que articule moral e intelectualmente o vértice partidário com a base do partido, a aplicação efetiva do ’centralismo democrático’ (e não sua versão caricata que predominou ao longo do século XX) e, principalmente, a constante formação teórico-política dos militantes, através de um programa de elevação cultural de massa, são os mecanismos iniciais que poderão resgatar a confiança das massas populares no partido comunista como veículo da emancipação social. Consequentemente, é a partir destes elementos que poderemos iniciar a reconstrução das organizações políticas proletárias, estabelecendo um vínculo

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orgânico com o novo proletariado que se constitui e criando o único tipo de disciplina capaz de criar os próprios sujeitos de sua autoemancipação.

Notas 1 Professor do Curso de Ciências Sociais da Unioeste/Campus de Toledo e doutor em Ciências Sociais. Endereço eletrônico: [email protected], Endereço para correspondência do autor: Rua Presidente Médice, 457. Bairro Loteamento Avenida, Marechal Cândido Rondon, Paraná. CEP 85960-000. 2 Professor do Curso de Ciências Sociais da Unesp/Campus de Marília e doutor em Ciência Política. Endereço eletrônico: [email protected], Endereço para correspondência do autor: Av. Independência, 29, Centro. Marília, São Paulo. CEP: 17509-040. 3 A expressão indica o tipo de grupo fundamental que constitui a base da organização típica dos diversos modelos de parti-dos políticos modernos: o comitê (específico dos primeiros partidos burgueses), a seção (criada pelos partidos socialistas ou socialdemocratas e, depois, copiada pelos partidos burgueses), a célula (desenvolvimento organizativo que demarca a emer-gência dos partidos comunistas ligados à Terceira Internacional) e a milícia (elemento de base do partido fascista). É a reuni-ão destas unidades básicas de organização, efetuada através de instituições coordenadoras, que definirá as distintas estruturas organizativas dos partidos (DURVEGER, 1980, p. 52-53). 4 No parágrafo 34 do “Caderno 14”, intitulado de “Partidos políticos e funções de polícia”, Gramsci propõe critérios para definir a função progressiva ou regressiva dos partidos: “De resto, o funcionamento de um dado partido fornece critérios discriminantes: quando o partido é progressista, funciona ‘democraticamente’ (no sentido de um centralismo democrático); quando o partido é reacionário, funciona ‘burocraticamente’ (no sentido de um centralismo burocrático). Neste segundo ca-so, o partido é puro executor, não deliberante: ele, então, é tecnicamente um órgão de polícia e seu nome de Partido político é uma pura metáfora de caráter mitológico” (GRAMSCI, 2001, p. 1692). 5 Convém ressaltar que, apesar da centralidade da interlocução com Michels para a reformulação da estrutura organizativa do partido revolucionário, sua presença nos “Cadernos do cárcere” é secundária. O parágrafo 75 do “Caderno 2” é aquele de maior relevância no conjunto de cerca de 14 referências ao sociólogo ítalo-germânico ao longo dos “Cadernos do cárcere”. 6 A reformulação da organização do partido revolucionário, através da construção de mecanismos internos que assegurem o seu funcionamento democrático e a sua vinculação orgânica às massas proletárias, decorre, principalmente, da necessidade de garantir a eficácia de sua intervenção política. Contudo, as notas carcerárias sobre esta questão podem também ser vincu-ladas à necessidade de combater o sectarismo organizativo que se difundia para os partidos comunistas europeus após a vi-rada sectária da IC em 1928-1929 (estabelecida pelo VI Congresso e referendada pela Décima Conferência do Executivo Ampliado da IC), que enrijecia ainda mais o PCI e o isolava do movimento de massas de resistência ao fascismo. 7 Nos “Cadernos do cárcere” Gramsci trava uma interlocução com Michels a partir da leitura do artigo “Les partis politiques et la contraint sociale”, publicado no “Mercure de France”, em 1º de maio de 1928. Apesar de possuir duas edições de “So-ciologia dos Partidos Políticos”, tanto a edição francesa de 1919 quanto a edição italiana de 1924 - e, muito provavelmente, ter lido o livro antes da prisão - Gramsci não pôde consultá-las no cárcere. 8 As citações literais de trechos selecionados do artigo de Michels são seguidas por comentários nos quais Gramsci assinala estas teses como sendo: 1) “tendência à oligarquia” e 2) “complexidade progressiva da atividade política” (Gramsci, 2001, p. 236). 9 A metáfora indica que o capitalismo contemporâneo em crise é um ‘morto-vivo’ (HARMAN, 2009).

Referências BANDIOU, Alain et al. Sobre la Idea del comunismo. Buenos Aires: Paidós, 2010. BUEY, Francisco Fernández. Leyendo a Gramsci. Barcelona: El Viejo Topo, 2001. CAFAGNA, Luciano et al. Le tesi di Lione: riflessioni su Gramsci e la storia d’Italia. Milano: Franco Angeli, 1990. CERRONI, Umberto. Teoria do partido político. São Paulo: Livraria Editora Ciências, 1982. DEL ROIO, Marcos. Os prismas de Gramsci: a fórmula política da frente única (1919-1926). São Paulo: Xamã, 2005.

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DUVERGER, Maurice. Os partidos políticos. Rio de Janeiro: Zahar; Brasília: Universidade de Brasília, 1980. GRAMSCI, Antonio. Escritos Políticos, v. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004a. GRAMSCI, Antonio. Escritos Políticos, v. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004b. GRAMSCI, Antonio. Cartas do cárcere, v. 1: 19261930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005a. GRAMSCI, Antonio. Cartas do cárcere, v. 2: 1931-1937. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005b. GRAMSCI, Antonio. Quaderni del cárcere. Edizione critica dell’Istituto Gramsci. A cura di Valen-tino Gerratana, 4 v. Torino: Einaudi Tascabili, 2001. HARMAN, Chris. Zombie Capitalism Global Crisis and relevance of Marx. London: Bookmarks Publications, 2009. NERES, Geraldo Magella. Gramsci e o ‘moderno Príncipe’ – a teoria do partido nos Cadernos do cárcere. Tese (doutorado – Ciências Sociais) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília, 2012.

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Revolução Passiva no Brasil:

uma ideia fora do lugar?1

Camila Massaro de Góes2

Bernardo Ricupero3

Resumo: Esse artigo busca refletir sobre a tradução da categoria gramsciana de revolução passiva para a análise da modernização do Estado brasileiro, nos termos da polêmica das ideias e seu lugar, suscitada por Roberto Schwarz em inícios da década de 1970. Com esse objetivo, em primeiro lugar, buscamos apreender a noção de revolução passiva nos “Cadernos do Cárcere”, atentando ao modo como foi apropriada e aplicada à explicação da história italiana desde o Risorgimento por Antonio Gramsci. Em seguida, passamos para as obras de Carlos Nelson Coutinho e Luiz Werneck Vianna, individualizando suas análises que se valeram da categoria do marxista italiano para buscar explicações do desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Com isso, buscamos, em primeiro lugar, a partir da história italiana, um maior esclarecimento da ideia de Revolução Passiva e, em segundo lugar, destacar a especificidade do termo quando aplicado ao caso brasileiro, bem como o aspecto original destas análises em seu contexto intelectual.

Palavras-chave: Revolução passiva; Gramsci; Capitalismo brasileiro; C. N. Coutinho; L. W. Vianna.

Abstract: This article has as its mains to reflect on the translation of the gramscian category of passive revolution to the analysis of Brazilian state’s modernization, in terms of the polemic on ideas and its place, originated by Roberto Schwarz in the 1970’s, to understand the exportation of liberal ideas to Brazil. In first place, we search in the Prison Notebooks to understand how the notion of passive revolu-tion was taken by the Italian Marxist Antonio Gramsci to understand the Italian history. With that, we pass to the works of Carlos Nelson Coutinho and Luiz Werneck Vianna, scholars that have taken the gramscian idea of passive revolution to search explanations of the development of Brazilian capitalism. Thereby, we seek to, in first place, from Italian history, clarify the idea of “passive revolution” and, in second place, to highlight the specificity of this term when apply to the Brazilian case, as well as the original aspect of these Brazilian scholar’s analyzes in their intellectual context.

Keywords: Passive revolution; Gramsci; Brazilian capitalism; C. N. Coutinho; L. W. Vianna.

Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude

(LAMPEDUSA, 1974, p. 42)

1 Introdução A afirmação de Roberto Schwarz de que as “ideias estão fora do lugar” deu nome ao texto que

inauguraria um amplo debate no âmbito do pensamento social e político brasileiro. Publicado primeiramente nos “Estudos Cebrap”, em inícios da década de 1970, esse texto comporia cerca de duas décadas depois o livro “Ao Vencedor as Batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro”. Em sua reflexão, Schwarz buscava analisar as transformações das referências ideológicas vindas das antigas metrópoles, no caso o liberalismo, apropriado para o contexto brasileiro de ex-colônia, no qual o trabalho escravo continuava dominante. Para Schwarz, “ao longo de sua

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reprodução social, incansavelmente o Brasil põe e repõe ideias europeias, sempre em sentido impróprio” (SCHWARZ, 1992, p. 24). O mais claro exemplo dessa “inadequação” entre ideia europeia e realidade brasileira era, para Schwarz, a importação do liberalismo no século XIX, revelando-se objetivamente uma “ideia fora do lugar”.

Ao longo dos anos, esta formulação passou a orientar um amplo debate, não só acerca do liberalismo, no qual se buscaram respostas à questão que nasce junto ao argumento do crítico literário – as ideias no Brasil estão fora do lugar? Inspirada nesta indagação, este artigo busca no entendimento da formação capitalista brasileira as potencialidades explicativas da concepção gramsciana de revolução passiva, entendida aqui como uma ideia que, tendo seu nascimento na Itália do começo do século XX, passou a ser utilizada em determinado momento para a compreensão do desenvolvimento do capitalismo brasileiro.

Como afirma Bernardo Ricupero (2011, p. 31), “não é evidente que um país como o Brasil seja capaz de criar um pensamento político e social que dê conta de suas condições particulares”. Ligada a esse problema, aparece ainda outra questão: como ideias elaboradas originalmente no centro capitalista comportam-se num outro contexto social e político, dependente e periférico?

É notável, nesse sentido, o caso do marxismo. Muito embora as ideias de Karl Marx tenham alcançado nosso contexto e, indubitavelmente, tenham se feito presentes em nosso léxico teórico e político, o desenvolvimento de um pensamento marxista adaptado às nossas circunstâncias históricas sempre se fez necessário, de modo a superar as dificuldades demonstradas por Marx e Engels. Dificuldades estas que permearam suas análises de todo o mundo não europeu. O desafio de traduzir ideias para a realidade latino-americana caracterizou grande parte das correntes teórico-políticas que, nascidas em solo europeu, foram transportadas aos trópicos na condição de “estrangeiras”.

No caso da filosofia e da crítica literária brasileiras, o desafio esteve sempre presente, nas diversas tentativas de realizar uma interpretação do Brasil. A questão de fundo, como indica a leitura de Raymundo Faoro em “Existe um pensamento político brasileiro?” (2002) é a existência ou não de um quadro cultural autônomo. A formação de um aporte teórico cultural independente foi, nesse sentido, um tema recorrente no Brasil enquanto país colonial. Parte fundamental deste esforço é que as ideias europeias tiveram aqui sempre um lugar de destaque, relacionadas correntemente a uma concepção clássica ou original que deveria direcionar a ação política (cf. FAORO, 2002).

Nesse sentido, expressivas são as primeiras linhas de Sérgio Buarque de Holanda em seu livro clássico “Raízes do Brasil” (2009), no qual o autor afirma que “a tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências.” (HOLANDA 2009, p. 31). Vale destacar, ainda, um trecho de Carlos Nelson Coutinho em “Cultura e Sociedade no Brasil” (1990), no qual afirma que, enquanto formação social específica e autônoma,

nossa pré-história como nação – os pressupostos de que somos resultado – não residem na vida das tribos indígenas que habitavam o território brasileiro antes da chegada de Cabral: situam-se no contraditório processo de acumulação primitiva do capital, que tinha o seu centro dinâmico na Europa ocidental (COUTINHO, 1990, p. 35).

No Brasil, as ideias ‘de primeiro grau’ assumiram características específicas – nessa ótica, é

compreensível o porquê, no caso do liberalismo analisado por Schwarz, os temas do favor e do escravismo possuíram centralidade em seu argumento. Para Coutinho, somente a partir do século XX as ideias importadas vão, cada vez mais, acomodando em seu lugar, tornando-se mais aderentes às realidades e aos interesses de classe que tentam expressar. Isso ocorre na medida em que a vida cultural brasileira aproxima-se, cada vez mais, das contradições ideológicas próprias da cultura universal do período (ibid., p. 41).

Levando em consideração o que Coutinho chamou de dialética da adequação e inadequação, e assumindo como ponto de partida desta reflexão, é importante sempre repensar as interpretações do

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Brasil, pois, como afirmam Botelho e Lahuerta (2005, p. 11-12), este empenho é válido mesmo quando o desafio é “investigar as interpretações clássicas ou mais rotinizadoras do pensamento social e político para demonstrar sua inteligibilidade histórica, cognitiva ou normativa”. Deste modo, buscamos retomar a interpretação da formação brasileira a partir da categoria de revolução passiva, antes desenvolvida por Antonio Gramsci em seus “Cadernos do Cárcere”.

A maior parte dos autores que se valera da noção gramsciana para realizar suas interpretações defende a coerência de sua utilização para o contexto brasileiro. Para Luiz Wernerck Vianna (2004), o Brasil, mais do que qualquer outro país da América Ibérica, é por excelência o lugar da revolução passiva, na medida em que chegou à modernização em compromisso com o seu passado – nessa visão, embora o país desconhecesse a experiência da revolução, não tratar-se-ia de uma “ideia fora do lugar”. Além de Vianna, vale destacar a interpretação de Carlos Nelson Coutinho sobre cujas argumentações pretendemos investigar: a revolução passiva aplicada ao contexto brasileiro configura uma ideia fora do lugar?

Apreender como a noção de revolução passiva foi utilizada na análise da modernização capitalista em nosso país significará, antes, recuperá-la nas notas de Gramsci em seus “Cadernos do Cárcere”. Com isso, temos como primeira intenção estudar as implicações da revolução passiva na formação de um Estado moderno, compreendendo o complexo quadro que se forma nessa estruturação tardia do capitalismo na Itália, no período do Risorgimento4. Em segundo lugar, busca-se estudar a tradução que foi feita deste conceito para a interpretação do Brasil, destacando as peculiaridades aqui assumidas.

2 Notas de um estudo sobre o conceito de revolução passiva nos “Cadernos do

Cárcere”.

Ao refletir sobre o conceito de revolução passiva ao longo dos “Cadernos do Cárcere”, Antonio Gramsci se apoia tanto na história italiana, no caso do Risorgimento, quanto na história europeia, nos casos da Revolução Francesa e da Revolução Russa. A partir destes materiais históricos, Gramsci reformulará o conceito e o analisará em suas diversas dimensões: “histórica, filosófica e política” (BIANCHI, 2007, p. 11). Com isso, a principal motivação do marxista italiano é refletir sobre as reais possibilidades de uma revolução de caráter socialista. Deste modo, “ao discutir o passado tem em vista o presente” (ibid., p. 11).

É possível afirmar, contudo, que é em sua reflexão acerca do Risorgimento que Gramsci, majoritariamente, desenvolve a sua apropriação do conceito de revolução passiva – nesse sentido, selecionamos o “Caderno 19”, dedicado a este tema, como o principal objeto de estudo desta seção.

O Risorgimento marca um importante período da história italiana, de 1815 a 1870, no qual se buscou a unificação do país que antes consistia em uma coleção de pequenos Estados submetidos às potências estrangeiras. Na luta sobre a futura estrutura da Itália, a monarquia, na pessoa do rei do Piemonte-Sardenha, Vítor Emanuel II, da Casa di Savoia, apoiado pelos conservadores liberais, teve sucesso quando durante o período de 1859 a 1861 se formou a Nação-Estado, sobrepondo-se aos partidários de esquerda, republicanos e democráticos, que militavam sob Giuseppe Mazzini e Giuseppe Garibaldi.

A teoria da revolução passiva (BRAGA, 1996, p. 168), construída sobre este material histórico, consiste numa denúncia e advertência histórica dos processos contrarrevolucionários que culminaram com o advento do Estado moderno na Itália. A primeira vez em que o conceito aparece nos “Cadernos” é em um texto redigido provavelmente em novembro de 1930 (cf. FRANCIONI, 1984):

Vincenzo Cuoco e a revolução passiva. Vincenzo Cuoco chamou de revolução passiva aquela ocorrida na Itália como resposta às guerras napoleônicas. O conceito de revolução passiva não parece exato apenas para a Itália, mas também para outros países que modernizaram o

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Estado por meio de uma série de reformas ou de guerras nacionais, sem passar pela revolução política de tipo radical-jacobino. Ver em Cuoco como ele desenvolve o conceito para Itália (Q 4, §57, p. 504)5.

A fórmula de Cuoco destinava-se a analisar os acontecimentos revolucionários de 1799, com cuja exatidão Gramsci concorda. Atendo-se firmemente a este juízo e a este primeiro nível de definição dos fenômenos que identifica, Gramsci desenvolve a sua reflexão numa multiplicidade de direções que têm nesta definição o seu centro unificador (DE FELICE, 1978, p. 193). As referências ao liberal elitista, entretanto, são escassas ao longo dos “Cadernos”. Segundo afirma Gerratana (1975, p. 2654), a julgar pelo teor da afirmação que finaliza esse parágrafo, “ver em Cuoco como ele desenvolve o conceito para Itália”, é provável que o ponto de partida de Gramsci não tenha sido a leitura direta do “Saggi storico sulla Rivoluzione di Napoli de Cuoco”, mas sim a leitura do prefácio de Benedetto Croce ao volume, “La rivoluzione napolitana del 1799”.

Em seus “Cadernos”, o marxista italiano recorre inicialmente ao conceito de Cuoco a fim de apreender a complexidade do movimento histórico pelo qual se debruçava e, com isso, atinge um alto grau de generalização – tratando-se, portanto, de uma utilização com “claro viés metodológico” (BIANCHI, 2008, p. 257). A irredutibilidade da categoria gramsciana a um cânone empírico, por sua vez, é garantida através da referência ao Prefácio Marxista de 1859:

O conceito de revolução passiva deve ser deduzido rigorosamente de dois princípios fundamentais da ciência política: 1) que nenhuma formação social desaparece enquanto as forças produtivas que nela se desenvolveram encontram um lugar para uma ulterior formação progressiva; 2) que a sociedade não se põe tarefas para cuja solução não tenham sido criadas já as condições necessárias, etc. [...] O ponto de partida do estudo será a argumentação de Vincenzo Cuoco, mas é evidente que a expressão de Cuoco a propósito da Revolução Napolitana de 1799 não é mais que um ponto de partida, pois o conceito é completamente modificado e enriquecido (Q15, §17, p. 1774-1775).

Em Gramsci, portanto, a revolução passiva tende a identificar as formas do processo revolucionário, “isto é, os modos em que se desenvolve a contradição fundamental e com ela a modificação a que é submetida toda a formação econômico-social” (DE FELICE, 1978, p. 196). Ainda no “Caderno 15”, Gramsci deixa claro o nexo entre revolução passiva e o Prefácio de 1859:

Risorgimento Italiano. Sobre a revolução passiva. Protagonistas ‘os fatos’ ‘por assim dizer’ e não os ‘homens individuais’. Como sob um determinado invólucro político necessariamente se modificam as relações sociais fundamentais e novas forças políticas efetivas surgem e se desenvolvem, influindo indiretamente, através da pressão lenta mas incoercível, sobre as forças oficiais que se modificam sem perceberem ou quase (Q15, §56, p. 1818-1819).

Assumindo que as ‘condições necessárias e suficientes’ já se encontravam pelo menos potencialmente definidas, Gramsci afirmava a centralidade da política –

Que tais condições se façam presentes, ou seja, que a relação contraditória entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção tenha chegado a um ponto de saturação, não é garantia de que uma revolução ativa ou passiva tenha lugar. Para que tal revolução ocorra, é necessário o concurso de determinações eficazes que se manifestem no âmbito das superestruturas e dos conflitos sociais. O ‘protagonismo’ da história não pode ser, portanto, do lado inerte (BIANCHI, 2008, p. 273).

O conceito de revolução passiva, deste modo, sintetiza a análise histórica e política conforme a

tradição do marxismo revolucionário, fundamentando o terreno prático-político para uma ‘teoria gramsciana da transição’, isto é, um esforço para explicar tanto a transição anti-jacobina da burguesia ao

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poder de Estado, quanto sua crise generalizada; vale dizer, base estrutural sobre a qual erguer um novo bloco histórico sob hegemonia das classes subalternas (BRAGA, 1996, p. 169).

2.1 Panorama Histórico: influências da Revolução Francesa

No que concerne às origens do Risorgimento, a Revolução Francesa assume um lugar de destaque

na argumentação de Gramsci, e, portanto, merece ser analisada com atenção. Segundo o marxista sardo, houve uma ‘doutrina’ francesa, segundo a qual se afirmava que a nação italiana deve sua fortuna à França. As questões tendenciais e tendenciosas postas a este propósito são: 1) a tese democrático francófila segundo a qual o movimento se deve à Revolução Francesa e é dela uma derivação direta, o que determinou a tese oposta; e 2) a Revolução Francesa, com sua intervenção na península, interrompeu o movimento verdadeiramente nacional. Há ainda a ideia de que o movimento reformador fora interrompido com o pânico suscitado pelos acontecimentos na França, e, portanto, a intervenção dos Exércitos franceses na Itália não interrompe o movimento nativo, mas, antes, torna possível sua retomada e efetivação (Q19, §3, p. 1964).

Em busca de melhor solucionar essa questão acerca da influência francesa no Risorgimento, Gramsci recorre ao artigo de Gioacchino Volpe, “Una scuola per la storia dell’Italia moderna”, no qual se encontra a ideia de que o Risorgimento, tido como retomada da vida italiana, formação de uma nova burguesia, consciência crescente de problemas nacionais, e ainda, como sensibilidade a certas exigências ideais, precisa ser investigado muito antes da Revolução – “é ele também um sintoma de uma Revolução em marcha, não só francesa, mas, num certo sentido, mundial” (Q19, §3, p. 1964-1965).

Deste modo, a Revolução Francesa é entendida como um dos acontecimentos europeus que operam com mais intensidade no sentido de aprofundar um movimento já iniciado das coisas, reforçando as condições positivas e funcionando como elemento de agregação e centralização das forças humanas dispersas em toda a península e que, de outro modo, teriam tardado mais a “concentrarem-se” e a entenderem-se entre si (Q19, §3, p. 1969).

Também para Gramsci, foi só a partir da Revolução Francesa que o Risorgimento, assim entendido, adquire efetiva concretude, porque é só a partir de então que ele não é mais apenas uma tendência geral da sociedade e da cultura italiana em sintonia com as tendências europeias, mas se transforma em ação consciente de “grupos de cidadãos dispostos à luta e ao sacrifício”, tornando-se, assim, um impulso histórico efetivo que opera através de forças específicas e consistentes. E é justamente o discurso sobre a natureza e o comportamento destas forças no momento decisivo do Risorgimento, quando a unidade italiana é realizada, que constitui o objeto dominante das reflexões históricas de Gramsci (cf. GALASSO, s.d.).

A explosão da Revolução em 1789 serviu como um catalisador das ideias que estavam em curso nesse contexto. A notícia da queda da Bastilha foi acolhida com entusiasmo pela maioria dos intelectuais italianos (DUGGAN, 1996, p. 123). Com isso, segundo Gramsci, a principal contribuição que a Revolução Francesa acrescentou ao movimento do Risorgimento consistiu no desgaste que atribuiu às forças opostas às unitárias (Igreja), que antes eram muito poderosas, coesas e que absorviam, desse modo, a maior parte das capacidades e energias individuais que poderiam construir um novo pessoal dirigente nacional, dando-lhes uma orientação e uma educação cosmopolita-clerical. Com a Revolução Francesa, há um enfraquecimento das forças reacionárias, fortalecendo, por consequência, as forças nacionais em si mesmas escassas e insuficientes (Q19, §3, p. 1972).

Vale destacar que a estreita ligação que Gramsci estabelece entre o processo de formação do Estado Burguês na Itália e o grande modelo francês não é, certamente, formulada para medir e avaliar em relação a este a solução burguesa alcançada na Itália, mas como verificação da categoria de revolução passiva – ou seja, não serve só para acentuar a inseparabilidade do movimento do Risorgimento da ascensão internacional da burguesia, mas, sobretudo, para sublinhar a impossibilidade de analisar fenômenos específicos e particulares, a não ser no quadro de tendências internacionais (DE FELICE,

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1978, p. 212). Gramsci usa constantemente o método comparativo, ou relacional, no exame dos fenômenos histórico sociais. Não se pode prescindir da compreensão disso se se deseja reconstruir sua reflexão sobre a questão nacional italiana no contexto internacional (BARATTA, 2003, p. 13).

2.2 A questão agrária e industrial: a relação Norte-Sul na Itália

Em seu importante ensaio de 1926, intitulado “Temas para a Questão Meridional”, Gramsci já visualizava a complexa relação de dominação entre cidade e campo, que se deu durante o Risorgimento, com a subordinação do sul agrário, exercendo “uma influência determinante no desenvolvimento das lutas pela independência” (Q19, §26, p. 2036). Uma unificação popular-nacional mais madura da Itália é, para Gramsci, um objetivo político-cultural básico. Na opinião de Gramsci, longe de representar a suspensão da análise de classe, a atualidade desta unificação expressava não só o resultado de uma história secular que confluiu na revolução passiva que está nas origens da unidade italiana, mas também uma complexa problemática social fundada em antagonismos de caráter econômico, territorial e cultural (BARATTA, 2003, p. 14).

Para Gramsci, a unidade efetiva italiana só poderia ser alcançada com a solução da Questão Meridional, que lhe serviu como ponto de partida para um exame mais profundo das vicissitudes históricas do capitalismo contemporâneo. Essa questão encontrava lugar numa Itália de notável instabilidade política e fragmentação do senso comum, no qual a região Sul foi definida como:

Uma grande desagregação social. Os camponeses, que constituem a grande maioria da sua população, não têm nenhuma coesão entre si [...] A sociedade meridional é um grande bloco agrário constituído por três estratos sociais: a grande massa camponesa, amorfa e desagregada; os intelectuais de pequena e média burguesia rural e, por fim, os grandes proprietários de terra e os grandes intelectuais (GRAMSCI, 1987, p. 114).

Como condição para a classe operária se tornar classe dirigente, nessa esfera, seria

necessário não só controlar a produção econômica, mas também exercer sua direção político-cultural sobre o conjunto das forças sociais opostas ao capitalismo. É nesse sentido que a preocupação central de Gramsci já em 1926 situava-se ao redor da questão da hegemonia, propriamente em relação à capacidade que as classes subalternas deveriam ter de não limitar sua ação à simples coerção, mas de fundá-la essencialmente sobre o consenso das massas trabalhadoras e, em particular, do campesinato.

Deste modo, pensar o problema do Sul italiano exigia pensar no modo de derrubar o próprio preconceito do proletariado presente na ideia de uma inferioridade natural do Sul, imposta pela ideologia de propagantistas da burguesia. Nesta ideologia, a culpa do Sul ser atrasado não seria uma questão histórica ou do próprio desenvolvimento do sistema capitalista, mas da natureza que os fizeram incapazes, criminosos, bárbaros etc.

Esta análise, retomada no “Caderno 19”, é apontada por Gramsci como exemplo da fragilidade que caracterizava a ideia de unidade nacional, a saber, o conjunto de sentimentos do Norte em relação ao Sul. Esta polêmica sobre as raças e a superioridade e inferioridade do Norte e do Sul era difundida, inclusive, através de estudos sociológicos positivistas, assumindo força de verdade científica. Permanecia no Norte a crença de que o Mezzogiorno consistia num peso morto para a Itália, a convicção de que a civilização industrial da Itália do Norte faria maiores progressos sem tal peso.

De maneira inversa, existia no campo uma hostilidade difusa, porém não menos feroz, em relação à cidade, e à cidade como um todo, sejam quais forem os grupos sociais que a compusessem. Para o marxista sardo, ao longo do Risorgimento, embrionariamente, já se manifestava essa relação histórica entre o Norte e o Sul como uma relação análoga à de uma grande cidade e um grande campo:

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como esta não é uma relação orgânica e normal entre província e capital industrial, mas implica dois amplos territórios de tradição civil e cultural muito diversas, acentuam-se os aspectos e os elementos de um conflito de nacionalidade (Q19, §26, p. 2037).

Essa relação cidade-campo, aplicada ao Norte-Sul, também pode ser observada nos programas políticos gerais: exemplo disso foi o programa de Giolitti, que tinha como objetivo criar no Norte um bloco urbano (de industriais e operários) que fosse a base de um sistema protecionista e que reforçasse a economia e a hegemonia setentrional. O Mezzogiorno era reduzido, deste modo, a um mercado de venda semicolonial, a uma fonte de poupança e de impostos, e era mantido sob disciplina com duas séries de medidas: medidas policiais de repressão impiedosa de todo movimento de massa e medidas político-policiais; e 2) favores pessoais à camada de intelectuais ou bacharéis, sob a forma de empregos na administração pública, de permissão para saque impune das administrações locais etc.

Neste contexto, atuavam dois importantes partidos: o Partido dos Moderados, representante das classes mais altas italianas e o Partido da Ação (PdA), representante dos de ‘baixo’, derrotado no curso do Risorgimento. Segundo Gramsci, para que o PdA conseguisse se contrapor aos moderados, deveria se ligar às massas rurais, especialmente meridionais, isto é, ser jacobino não só pela forma externa, de temperamento, mas especialmente pelo conteúdo econômico-social (Q19, §24, p. 2016 ).

2.3 O advento do Estado Moderno na Itália como Revolução Passiva

Para Gramsci, todo o problema acerca da direção política na formação e no desenvolvimento da nação e do Estado moderno na Itália, da conexão entre as várias correntes políticas do Risorgimento, se reduz ao fato de que os Moderados representavam um grupo social relativamente homogêneo, de modo que sua direção sofreu oscilações relativamente limitadas, ao passo que o chamado Partido da Ação não se apoiava especificamente em nenhuma classe histórica e as oscilações sofridas por seus órgãos dirigentes se compunham, em última análise, segundo os interesses dos moderados, ou seja, historicamente o PdA foi guiado pelos moderados (Q19, §24, 2010).

É nesse sentido que Gramsci desenvolve a fórmula pela qual se daria a supremacia (hegemonia) de um grupo social: como domínio e como direção intelectual e moral. Um grupo social domina os grupos adversários, que visa liquidar ou a submeter, inclusive com a força armada, e dirige os grupos afins e aliados. Um grupo social pode, e, aliás, deve ser dirigente já antes de conquistar o poder governamental; depois, quando exerce o poder e, mesmo se o mantém fortemente nas mãos, torna-se dominante, mas deve continuar a ser também dirigente. Gramsci ressalta que os moderados continuaram a dirigir o PdA mesmo depois de 1870 e 1876, e o chamado transformismo foi somente a expressão parlamentar desta ação hegemônica intelectual, moral e política (Q19, §24, p. 2011) .

Para o marxista sardo, o transformismo é o que caracteriza a vida estatal italiana a partir de 1848, com a derrota dos chamados jacobinos. A noção de transformismo é abordada como sendo a elaboração de uma classe dirigente cada vez mais ampla, com a absorção gradual, mas contínua, e obtida com métodos de variada eficácia, dos elementos ativos surgidos dos grupos aliados e mesmo dos adversários, que pareciam irreconciliavelmente inimigos (Q19, §24, p. 2011). O transformismo é considerado, ainda, como uma das formas históricas pelas quais se foi observado a chamada revolução passiva, a propósito do processo de formação do Estado moderno na Itália. É tido como um documento histórico real da verdadeira natureza dos partidos que se apresentavam como extremistas no período de ação militante (PdA) (Q8, §36, p. 962).

A direção política é salientada como um aspecto fundamental da função de domínio, ao passo que a absorção das elites dos grupos inimigos leva à decapitação destes e a sua aniquilação por um período frequentemente muito longo. A partir da política dos moderados, Gramsci conclui que é necessário haver uma atividade hegemônica mesmo antes da ida ao poder e que não se deve contar apenas com uma força material conferida pelo poder para exercer uma direção eficaz: “de fato, a

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brilhante solução destes problemas tornou possível o Risorgimento nas formas e nos limites em que ele se realizou, sem ‘Terror’, como ‘revolução sem revolução’, ou seja, como ‘revolução passiva’” (Q19, §24, p. 2011).

Através da iniciativa individual, molecular, privada, os moderados atingiram o mecanismo de hegemonia intelectual e política sob formas e com meios considerados liberais. Os moderados consistiam em uma vanguarda real, orgânica, das classes altas, porque eles mesmos pertenciam economicamente a essas classes. Com essa condensação orgânica, exerciam uma atração de modo espontâneo sobre toda a massa de intelectuais de todo nível que existia na península em estado difuso. De acordo com Gramsci, o PdA não podia ter um poder análogo de atração – era ele mesmo atraído e influenciado. Para que se tornasse uma força autônoma e, em última análise, conseguisse, pelo menos, imprimir ao movimento do Risorgimento um caráter mais acentuadamente popular e democrático, deveria ter contraposto à atividade empírica dos moderados um programa orgânico de governo que refletisse as reivindicações essenciais das massas populares, em primeiro lugar a dos camponeses (Q19,§24, p. 2013).

Ao refletir justamente sobre as razões que levaram o PdA a não apresentar a questão agrária, Gramsci afirma que faltou precisamente um programa concreto de governo – uma firme direção política, aspecto fundamental à condição de domínio construída pelos moderados (Q19, §24, p. 2014). O PdA estava ‘encharcado’ de tradição retórica da literatura italiana, confundindo a unidade cultural existente na península com a unidade política e territorial das grandes massas populares. É nesse sentido que Gramsci aponta a comparação entre os jacobinos e o PdA – os jacobinos franceses lutaram tenazmente para assegurar uma ligação entre cidade e campo e obtiveram êxito (Q19, §24, p. 2014). O PdA deveria ter colocado as grandes massas em contato com o Estado, mas, em virtude de sua atitude paternalista, ao longo do desenvolvimento do Risorgimento e da paralisação que apresentou frente à ameaça da Áustria de resolver a questão camponesa, considerando nacionais junto aos moderados, a aristocracia e os proprietários, e não os milhões de camponeses, fez com que não obtivesse êxito. O chamado transformismo é tão somente o fato de que o PdA foi incorporado molecularmente pelos moderados, e as massas populares foram decapitadas, não absorvidas no âmbito do novo Estado (Q19, §26, p. 2042).

Com isso, Gramsci conclui que, sobre todas essas questões complexas, o Partido da Ação faliu completamente ao se limitar, de fato, a fazer questão de princípio e programa essencial àquilo que era simplesmente questão do terreno político, no qual tais problemas poderiam se centralizar e encontrar uma solução geral: a questão da Constituinte (§Q19, 26, p. 2045).

Com isso, Gramsci analisou como o contexto italiano favoreceu uma modernização capitalista à base de uma coalizão conservadora, ao invés de propiciar uma ruptura revolucionária. Diferente da forma de articulação das revoluções clássicas, a revolução passiva implica sempre a presença de dois momentos: o da restauração, o qual trata-se sempre de uma reação conservadora à possibilidade de uma transformação efetiva e radical proveniente de baixo, e o da renovação, momento no qual algumas das demandas populares são satisfeitas ‘pelo alto’, através de concessões das camadas dominantes (COUTINHO, 2010, p. 33). É possível resumir o conceito de revolução passiva em algumas características principais, destacadas por Coutinho:

1) as classes dominantes reagem as pressões que provêm das classes subalternas, ao seu ‘subversismo esporádico, elementar’, ou seja, ainda não suficientemente organizado para promover uma revolução ‘jacobina’, a partir de baixo, mas já capaz de impor um novo comportamento às classes dominantes; 2) essa reação, embora tenha como finalidade principal a conservação dos fundamentos da velha ordem, implica o acolhimento de ‘uma certa parte’ das reivindicações provindas de baixo; 3) ao lado da conservação do domínio das velhas classes, introduzem-se modificações que abrem caminho para novas modificações. Portanto, estamos diante, nos casos de revoluções passivas, de uma complexa dialética de restauração e revolução, de conservação e modernização (Ibid., p. 34, itálico do autor).

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Sem estar estabelecida, a classe burguesa não têm condições de liderar um movimento amplo de ruptura da ordem vigente no momento pré-capitalista. Ao mesmo tempo, a pressão do desenvolvimento econômico internacional, difundido para os países periféricos, leva as classes hegemônicas pré-capitalistas a uma necessidade de aliar-se a essa burguesia para, juntos, manterem certa ordem social e, ao mesmo tempo, modernizarem a estrutura do país. É dada, então, uma aliança entre diferentes frações das classes dominantes e, desse modo, a revolução passiva é capaz de implementar mudanças necessárias ao progresso do capital, mas executa tal tarefa conservando vários elementos sociais, políticos e econômicos da ordem anterior.

Nessa via de processo histórico, as massas populares não estariam mobilizadas para exercer um papel politicamente ativo. Isso implica na ausência do elemento jacobino e, exatamente essa carência de um ator ativo, marca uma das principais características da revolução passiva – “a maior ou menor presença desse ‘portador da antítese’ que diferenciaria uma forma atrasada de uma forma avançada de revolução” (VIANNA, 2004, p. 101).

3 Da Itália ao Brasil: o ‘novíssimo’ conteúdo à forma da Revolução Passiva

Segundo argumenta Edmundo Fernandes Dias (1996, p. 183-184), o primeiro momento importante da expansão de Gramsci no Brasil começa em 1956, quando Krutschev publicava o relatório sobre os crimes de Stalin, provocando uma catarse no marxismo brasileiro, que decorre em um tímido processo de abertura pluralista. Foi, então, que tomou lugar a chamada ‘operação Gramsci’, o que, nas palavras de Dias (1996), significou um processo de renovação cultural, uma abertura, mais editorial que política. É nesse contexto que se encontram as primeiras edições da obra gramsciana, reproduzindo a interpretação oficial do “PCI togliatiano” de Gramsci como um “filósofo e crítico literário, no qual a dimensão estritamente política tinha peso secundário” (Ibid., p. 185).

Entretanto, a vida de Gramsci e sua importância permaneceram sendo mais conhecidas por meios de jornais e revistas do Partido Comunista Italiano (PCI) que chegavam ao Brasil (SECCO, 2002, p. 27). As primeiras edições dos textos do marxista sardo esgotaram-se com lentidão e dificuldade: a influência dos mesmos na produção intelectual brasileira daqueles anos foi praticamente inexistente ou, em poucos casos, subterrânea (COUTINHO, 1985, p. 104). Importante ressaltar que a recepção de Gramsci foi prejudicada pela decretação, em dezembro de 1968, do AI-5. Outra razão disto encontrava-se na cultura, então dominante, nos ambientes culturais de esquerda do país, principalmente no Partido Comunista Brasileiro (PCB), fortemente influenciado pelo chamado Marxismo da III Internacional. Nesta tradição, o Brasil era visto como uma formação social atrasada, semicolonial e semifeudal, que teria necessidade de uma revolução democrático-burguesa ou de libertação nacional.

Não por acaso, o declínio da ditadura e a crise da chamada ‘velha esquerda’ estiveram na raiz do grande crescimento da influência gramsciana quando, em meios da década de 1970, se deu no Brasil um fluxo de publicações de/e sobre Gramsci. Foi também em 1975 que Giulio Einaudi publicou a edição crítica dos “Quaderni”, organizada por Valentino Gerratana, na Itália.

Como aponta Marco Aurélio Nogueira, a partir de 1975, transbordando as fronteiras universitárias, as ideias de Gramsci passaram a integrar o corpo conceitual com que comunistas, liberais, socialistas e até mesmo cristãos começariam a interpretar a realidade brasileira – “todos, de uma ou outra forma, tornaram-se ‘gramscianos’” (NOGUEIRA, 1985, p. 130). Para o autor, este fato evidenciava a universalidade da elaboração teórica de Gramsci, sua capacidade de iluminar as contradições do capitalismo contemporâneo e de auxiliar a investigação da particular história brasileira. O entendimento das posições gramscianas, entretanto, não foi unívoco e, como bem afirma Nogueira, o pensamento de Gramsci terminou “reduzido a conceitos, desvinculado de qualquer dimensão doutrinaria mais abrangente e sobretudo separado da perspectiva de transformação socialista e da particular teoria do Estado que fazem de Gramsci um ponto de inflexão na história do marxismo e do movimento operário” (ibid., p. 131, itálico do autor).

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Gramsci difundiu-se no Brasil no exato momento em que se objetivaria a crise econômica dos anos 1970/1980 e em que se anunciava com clareza o particularíssimo processo de abertura democrática que iria demarcar toda a experiência social brasileira. Para Nogueira, essa abertura se configurou numa sociedade impregnada de autoritarismo, excludente da participação popular, politicamente atrasada e às voltas com uma crise econômica de caráter recessivo combinada a uma estagnação teórico-política de esquerda (ibid., p. 134). Assim, num quadro instável e turbulento, acabou por ser inevitável que o pensamento de Gramsci sofresse os usos mais diversos; entretanto, junto às vertentes marxistas da teoria social, isto foi decisivo para arejar o pensamento de esquerda no Brasil.

Assim como Carlos Nelson Coutinho e Luiz Werneck Vianna, Nogueira julga que, nas páginas dos “Quaderni” – repletas de revolução passiva, bloco histórico, transformismo e guerra de posição – encontramos “uma privilegiada perspectiva para compreender o caráter ‘prussiano’ assumido pelo processo de transformação capitalista e de formação da nacionalidade no Brasil” (ibid., p. 135). Para Nogueira, através da obra de Gramsci, foi possível aguçar a percepção da modernização conservadora impulsionada pelo regime implantado em 1964 e requalificar nosso conhecimento sobre o ‘atraso’ brasileiro. Desta forma, Gramsci ajudou a entender o Brasil moderno, industrial e de massas – mas também autoritário, excludente e miserável –, sendo decisivo para que se resgatasse o valor e a autonomia relativa da política e do fazer política que, ao longo dos anos 1970, passam a ocupar o centro mesmo das preocupações teóricas marxistas e da prática da esquerda.

Em fins da década de 1970, Carlos Nelson Coutinho, o principal responsável pela difusão da obra gramsciana no Brasil, abandonará a primeira visão do marxista italiano como “filósofo e teórico da cultura”, para trabalhar a política como “ponto focal do qual Gramsci analisa a totalidade da vida social” (DIAS, 1996, p. 188). Só no novo século, os “Cadernos” voltariam a ser editados por Coutinho e Luis Sergio Henriques. Essa nova edição, como afirma Lincoln (2002, p. 57), começou a ser feita depois que o debate das ideias de Gramsci declinou na Itália e se dirigiu com mais ardor para a querele filológica. Os “Cadernos” foram editados, nesta ocasião, combinando elementos das edições Gerratana, lançadas na Itália em 1975, com a Edição Togliatti.

Pode-se dizer que, ao longo destas décadas, Gramsci conquistou um espaço próprio na vida intelectual brasileira, tornando-se uma “força viva” (COUTINHO, 1985, p. 105). Para Coutinho, a adoção brasileira do marxista italiano deve-se a sua profunda universalidade, “capaz de iluminar alguns aspectos decisivos de nossa peculiaridade nacional” (ibid., p. 106). É nessa trajetória da expansão e difusão da obra de Gramsci que encontramos, principalmente nas décadas de 1970-1980, o uso do conceito de revolução passiva para pensar a formação do Estado brasileiro.

3.1 Carlos Nelson Coutinho

Desde o primeiro enunciado do conceito de revolução passiva nos “Cadernos”, Gramsci já apontava a possibilidade de que o conceito pudesse ser aplicado a “outros países que modernizaram o Estado por meio de uma série de reformas ou de guerras nacionais” (Q4, §57, p. 504). Para Coutinho, a noção de revolução passiva, assim como todos os demais conceitos gramscianos, sublinha fortemente o momento supraestrutural, em particular o momento político, superando, deste modo, as tendências economicistas – por essa razão, considera que esta noção se revelou de inestimável utilidade para contribuir com a especificação e a análise do caminho brasileiro para o capitalismo, um caminho no qual o Estado desempenhou, frequentemente, o papel de protagonista (COUTINHO, 1985, p. 107). Coutinho afirma, ainda, “estar convencido de que sua aplicação ao caso brasileiro pode se revelar de grande utilidade para determinar traços fundamentais de nossa formação histórica” (ibid., p. 108).

Segundo o autor, não é difícil documentar nas principais transformações ocorridas “pelo alto” que tiveram lugar no Brasil a presença de dois momentos apontados por Gramsci: como reações a movimentos populares, reais ou potenciais, as classes dominantes empenharam-se em restaurações que, em última instância, produziram “importantes modificações na composição das classes e prepararam o caminho para novas transformações reais” (ibid., p. 109). O exemplo emblemático, para Coutinho, é a

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instauração da ditadura de Vargas em 1937, culminação do agitado período que se inicia em 1922, ano da fundação do PCB e da primeira revolta militar tenentista.

Neste período, o movimento operário lutava pela conquista dos direitos civis e sociais, enquanto as camadas urbanas emergentes exigiam uma maior participação política. Essas pressões “de baixo” –que, não raramente, assumiam a forma de subversismo esporádico, elementar, desorganizado – fizeram com que um setor da oligarquia agrária dominante, o setor mais ligado à produção do mercado interno, se colocasse à frente da chamada Revolução de 1930. O triunfo dessa Revolução levou à formação de um novo bloco de poder, no qual a fração oligárquica ligada à agricultura de exportação foi colocada numa posição subalterna, ao mesmo tempo em que se buscava cooptar a ala moderada da liderança político-militar das camadas médias (os tenentes). Mas, o caráter elitista desse novo bloco de poder fazia com que os setores populares permanecessem marginalizados.

Segundo Coutinho, apesar de seu caráter repressivo e de sua cobertura ideológica de tipo fascista, o chamado Estado Novo varguista promoveu uma acelerada industrialização no país, com o apoio da fração industrial da burguesia e da camada militar; além disso, promulgou um conjunto de leis de proteção ao trabalho, há muito reivindicado pelo proletariado (salário mínimo, férias pagas, direito à aposentadoria etc.), ainda que o preço tenha sido o de impor uma legislação sindical corporativista, copiada diretamente da “Carta del Lavoro”, de Mussolini, que vinculava os sindicatos ao aparelho estatal e anulava sua autonomia. Portanto, “a ditadura de Vargas pode ser definida, gramscianamente, como uma ‘revolução passiva’” (ibid., p. 110).

A partir da categoria gramsciana, Coutinho propõe entender também o regime ditatorial instaurado no Brasil depois de 1964, que, embora não possa ser qualificado como um regime fascista clássico, apresenta fortes semelhanças com o fascismo italiano:

as forças produtivas da indústria, através de uma maciça intervenção do Estado, desenvolveram-se intensamente, com o objetivo de favorecer a consolidação e a expansão do capitalismo monopolista. A estrutura agrária, por seu turno, mesmo conservando o latifúndio como eixo central, foi profundamente transformada, sendo hoje predominantemente capitalista (ibid., p. 111).

O regime militar-tecnocrático conseguiu conquistar, deste modo, um significativo grau de

consenso entre amplos setores das camadas médias. E conseguiu isso precisamente na medida em que se fez propagandista dessa obra de modernização, ainda que se tenha tratado de uma modernização que, ao mesmo tempo, conservou e reproduziu muitos elementos de atraso – “ou seja: obteve consenso na medida em que assimilou e deu resposta a algumas das demandas dos grupos sociais derrotados em 1964” (ibid., p. 111).

Coutinho chama a atenção, nessa ocasião, para uma diferença fundamental entre o Risorgimento e o caso brasileiro:

enquanto na Itália o Estado particular desempenhou o papel decisivo na construção de um novo Estado nacional unitário, o Estado que desempenha no Brasil a função de protagonista das ‘revoluções passivas’ é já um Estado unitário. Isso significa dizer que o Estado Brasileiro teve historicamente o mesmo papel que Gramsci atribui ao Piemonte, ou seja, o de substituir as classes sociais em sua função de protagonistas do processo de transformação e o de assumir a tarefa de ‘dirigir’ politicamente as próprias classes economicamente dominantes (ibid., p. 113).

Também no Brasil as transformações foram sempre o resultado do deslocamento da função

hegemônica de uma para outra fração de classes dominantes, que preferiram delegar a função de direção política ao Estado – ao qual coube a tarefa de controlar e, quando necessário, de reprimir as classes subalternas. Coutinho, entretanto, alerta que “essa modalidade antijacobina de transição ao capitalismo não significa absolutamente que a burguesia brasileira não tenha levado a cabo sua ‘revolução’: fez isso, precisamente, através do modelo da ‘revolução passiva’” (ibid., p. 113, grifos nossos).

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O autor destaca ser possível identificar os tipos de transformismo levantados por Gramsci como formas de revolução passiva na história brasileira. A modalidade molecular desempenhou um papel decisivo, para Coutinho, talvez ainda mais negativo, através da assimilação pelo Estado de um grande número de intelectuais que representavam os valores das classes subalternas (ibid., p. 115). Esses intelectuais foram frequentemente cooptados para a burocracia estatal, uma camada que jamais deixou de crescer ao longo de todo o período republicano, à medida mesmo que o Estado ampliava o seu papel de protagonista das transformações políticas e econômicas que preparavam ou consolidavam o capitalismo.

O chamado populismo, que teve início na ditadura de Vargas e se desenvolve plenamente até 1964, pode ser interpretado, nessa visão, como uma tentativa de incorporar ao bloco do poder, em posição subalterna, os trabalhadores assalariados urbanos, através da concessão de direitos e de vantagens econômicas reais. Deve-se a esse relativo sucesso do transformismo de grupos inteiros ao pacto populista, o amplo consenso conquistado pela política nacional-desenvolvimentista posta em prática naquele período. Deste pacto, permaneceram excluídos os assalariados agrícolas e os camponeses: “essa exclusão tornava possível a manutenção no bloco do poder da velha oligarquia latifundiária, mas servia também à burguesia industrial, na medida em que ampliava enormemente o exército industrial de reserva e, por conseguinte, pressionava para baixo os salários dos trabalhadores urbanos” (ibid., p. 116).

Essa apropriação do conceito de revolução passiva, realizada por Coutinho para a interpretação da história brasileira, encontrava-se alinhada, naturalmente, aos seus interesses políticos já afirmados desde fins da década de 1970. Em seu artigo intitulado “Cultura e Sociedade no Brasil”, escrito entre 1977 e 1979, Coutinho já afirmava a tendência objetiva de transformação social no Brasil a se realizar por meio da conciliação pelo alto, marcando, de vários modos, o conteúdo da cultura brasileira.

Recorrendo à noção de ‘via prussiana’ de Lênin, Coutinho afirmou que a conciliação social e política encontrou, no Brasil, um reflexo ideológico na tendência do pensamento brasileiro ao ecletismo, ou seja, à conciliação igualmente no plano das ideias. Em sua visão, essa tendência não se encontra apenas nos pensadores liberais moderados. Até mesmo intelectuais progressistas, segundo Coutinho, “são pressionados pela situação objetiva a confusas sínteses ecléticas, que minimizam ou danificam seriamente o caráter em última instância progressista da ideologia que professam” (id., 1990, p. 48).

Para este autor, o nacional-popular na trajetória brasileira, tal qual descrito por Gramsci na análise do caso italiano, é, antes de tudo, a quebra do distanciamento entre os intelectuais e o povo, que está na raiz do florescimento do que denominou cultura ‘intimista’ ou ‘elitismo cultural’, e que, no mais das vezes, não resulta de uma escolha voluntária do intelectual (ibid., p. 51).

Essa postura configura um tipo de cosmopolitismo abstrato, no qual a ‘importação cultural’ não tem como objetivo responder a questões colocadas pela própria realidade brasileira, mas visa, tão somente, a satisfazer exigências de um círculo restrito de intelectuais intimistas. A forma de quebrar definitivamente os estreitos limites de casta em que a via prussiana emparedou a grande maioria dos nossos intelectuais, para Coutinho, só seria possível com a “construção de uma democracia de massas”:

[...] lutando pela democratização da cultura, os intelectuais combatem efetivamente pela renovação democrática da vida nacional em seu conjunto; e, ao mesmo tempo, lutando por essa renovação democrática, asseguram condições mais favoráveis à expansão e florescimento de sua própria práxis cultural (ibid., p. 68).

Esse argumento foi reafirmado em seu notável ensaio de 1979, intitulado “A democracia como valor universal”, no qual Coutinho defende a tese de que a democracia possui valor estratégico e universal, não possuindo, portanto, um valor apenas instrumental e tático aos socialistas. Para o autor:

A necessidade de que o processo de renovação democrática proceda de ‘baixo para cima’, consolidando e ampliando suas conquistas através de uma crescente incorporação de novos sujeitos políticos, impõe às forças populares – enquanto método de sua batalha política – a

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opção por aquilo que Gramsci chamou de ‘guerra de posição’. A progressiva conquista de posições firmes no seio da sociedade civil é a base não só para novos avanços, que gradativamente tornarão realista a questão da conquista democrática do poder de Estado pelas classes trabalhadoras, mas é sobretudo o meio de evitar precipitações que levem a recuos desastrosos [...] A luta pela renovação democrática [...] implica em conceber a unidade como valor estratégico (id., 1979, p. 44-45).

Esse ensaio é apontado, muitas vezes, como um verdadeiro divisor de águas no marxismo brasileiro – reflexo também da repercussão de ideias e posições italianas no Brasil, e do que Nogueira (1985) chamou de ‘gramscismo’, entre 1976 e 1982. Com sua apropriação das ideias de Gramsci, Coutinho enriqueceu a sua defesa política da renovação democrática e deu novo conteúdo à noção gramsciana a partir da realidade brasileira. Importante destacar que Coutinho, aqui, está imerso numa intensa influência do marxismo italiano de 1970, das ideias difundidas pelo PCI de Togliatti, do chamado eurocomunismo e da tese do ‘valor universal da democracia’, de Berlinguer. Coutinho, contudo, não atribui um valor positivo à ideia de revolução passiva, utilizando-a tão somente como critério de interpretação da história do Brasil. Resolver a questão democrática, significava, ao contrário, um meio de realizar uma antirrevolução passiva, ou seja, romper com o decurso da história que mantivera excluídas, até então, as classes subalternas.

3.2 Luiz Werneck Vianna

Em confluência aos esforços interpretativos de Coutinho, Werneck Vianna buscou analisar a

modernização capitalista brasileira a partir das categorias de revolução passiva, via prussiana e revolução pelo alto. Em “Liberalismo e sindicato no Brasil”, de 1976, Vianna elucida tanto o papel assumido pelo Estado como agente ativo do processo de modernização burguesa, quanto o fato de essa modernização ter dispensado o liberalismo como sua visão de mundo e a forma mercantil como condição para a venda da força de trabalho. Para o autor, a singularidade do prussianismo brasileiro residiria no “fato do setor agrário mais desenvolvido em termos capitalistas (o agro-exportador) ter sido desalojado do poder pelo menos desenvolvido” devido à impossibilidade daquele setor mais desenvolvido de dirigir o processo de modernização, dado seu isolamento real e incontornável das demais classes, camadas e estratos sociais (VIANNA, 1976, p. 130).

O domínio do aparelho do Estado por parte dessa ‘elite atrasada’, por sua vez, vai lhe facultar um “percurso extremamente rápido no sentido de adoção de novos papéis econômicos, como o do empresário agrícola, do industrial ou do financista”. E ainda, a chamada revolução pelo alto ao referir-se a uma forma de induzir a modernização econômica através da intervenção política, implicou, de outro lado, uma conservação do sistema político, algo real e visível, mesmo quando se consideram os sucessivos rearranjos nos lugares ocupados pelos seus diferentes protagonistas (ibid., p. 135-141). Ou seja, em Werneck Vianna, observamos, novamente, uma análise do caso brasileiro baseada na dialética de conservação e modernização, característica dos casos de revoluções passivas.

É nesse sentido que, cerca de duas décadas depois, Vianna explorará, em particular, a expressão assumida pelo conceito gramsciano no Brasil, em “Caminhos e Descaminhos da Revolução Passiva à brasileira”. Neste ensaio, Vianna remete à trajetória da revolução passiva desde a transmigração da família real para o Brasil, marca precoce de sua aplicação ao caso brasileiro – “o que significava conservação na metrópole importaria conservação-mudança na Colônia” (2004, p. 44, grifo do autor). Esse fato teria dotado as elites de recursos políticos a fim de manter sob controle o surto libertário que, originário das revoluções europeias de 1848, se disseminou pelo Ocidente. Nesse sentido, a Independência se estabelece enquanto “revolução sem revolução” (ibid., p. 44). O Estado que nasce, invocando e modelando suas instituições políticas de acordo o liberalismo, intensifica a escravidão.

Inspirado no liberalismo, o Estado-nação nascia sem uma economia que se apresentasse em homologia a ele. Se na sociedade civil o liberalismo atuava como ‘fermento revolucionário’, ele não

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poderia comportar-se como o princípio de sua organização, sem acarretar, com isso, o desmonte da estrutura econômica, fundada no trabalho escravo e no exclusivo agrário que assegurava ao Estado uma forma de inscrição no mercado mundial e presença internacional. Para as elites, a primazia da razão política sobre outras racionalidades se traduz em outros objetivos: “preservação e expansão do território e controle sobre a população” (ibid., p. 45).

Desde as crises da Regência, os liberais orientados pelo mercado e pela cultura material declinam, na prática, do papel de reformadores sociais, limitando-se, segundo Vianna, a “prescrever a necessidade de uma auto-reforma do Estado” (ibid., p. 47). A revolução burguesa seguiu em continuidade à sua forma passiva, obedecendo ao lento movimento da transição da ordem senhorial-escravocrata para uma ordem social competitiva, chegando-se, com a Abolição, à constituição de um mercado livre para a força de trabalho, sem rupturas no interior das elites, e, a partir dela, à República, em mais um momento na presença de um dos pilares da economia colonial: “o exclusivo agrário, que agora vai coexistir com um trabalhador formalmente livre, embora submetido a um estatuto de dependência pessoal aos senhores de terra.” (ibid., p. 47-48).

A expansão da ordem burguesa se dá, assim, através do papel ativo das ideias liberais no contexto de uma sociedade ainda permeada pela ordem patrimonial. Já na década de 1930, a revolução passiva adquire uma nova configuração, quando o seu elemento revolucionário passa a ser a questão social, ou seja, a incorporação das massas urbanas ao mundo dos direitos e a modernização econômica como estratégia de criar novas oportunidades de vida para a grande maioria ainda aprisionada e sob relações de dependência pessoal nos latifúndios.

A partir daí, o Estado que se estrutura se coloca sob uma base corporativista e é nessa característica que ele encontra a forma de contenção dos setores populares – o transformismo – ou seja, a dissolução das lideranças populares e sua cooptação, incluindo aquelas do movimento operário que surgia. Nos anos 1950, sob o governo de Juscelino Kubitschek, a revolução se reconfigura em ‘fuga para frente’. A vitalidade deste processo empresta, por suas realizações, principalmente econômicas, legitimidade às elites políticas territorialistas, isolando social e politicamente as elites do liberalismo econômico e a esquerda, representada especialmente pelo PCB, criado em torno do cânon liberal, principalmente por meio do sindicalismo operário ao longo da década de 1930.

Assim como Coutinho, Vianna (2004) assume que a modernização capitalista do Estado brasileiro se deu por meio de uma revolução passiva – de caráter processual, lento e gradual – com reformas moleculares que configuraram o novo, sobreposto ao velho, sem eliminá-lo. Dessa forma, a modernização seria conservadora, caracterizada pelo cerceamento do Estado e pela criação de maneiras de controle e expropriação dos grupos subalternos. É nesse panorama que Werneck Vianna enxerga o golpe de 1964 como continuidade do processo iniciado em nosso modelo colonial, aprofundado desde a República e, principalmente, em 1930.

Ao mesmo tempo em que buscava a apropriação do conceito de revolução passiva para explicar a história brasileira, em “O ator e os fatos: a revolução passiva e o americanismo em Gramsci” Vianna enveredou o caminho polêmico acerca da discussão em torno das interpretações que os textos gramscianos podem assumir, tanto no que concernia a prática, quanto no que dizia respeito à teoria. Nesse sentido, a marca principal deste ensaio é o esforço de Vianna ao adentrar nas páginas dos “Cadernos do Cárcere” enquanto justificativa de sua análise histórica – e também de seu posicionamento político – frente à modernização do Estado brasileiro. Para o autor, num contexto em que “o mundo não mais desejava reconhecer-se nas revoluções” o referencial analítico gramsciano, a interpretação da revolução passiva adquire uma atualidade geral, não dizendo mais respeito a casos singulares nacionais.

Ao resgatar a noção de revolução passiva, como Gramsci fez ao resgatar de Cuoco, Vianna reformula o sentido original com o fim de estudar o caso brasileiro e aponta possíveis mudanças no nosso desenvolvimento. Para o autor, a análise gramsciana configuraria uma sociologia política, “raiz de um novo modelo para a atuação da esquerda nos países de grandes ‘reservas políticas e organizativas’” (ibid., p. 69). Assim, o conceito utilizado por Gramsci ganha uma nova configuração nas palavras de

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Vianna – de critério de interpretação, como utilizado por Coutinho em sua análise da história brasileira, passa a ser um modelo de atuação da esquerda.

Vianna atribui um caráter positivo à revolução passiva, julgando ser possível, através dela, o desenvolvimento da renovação democrática no país – o que, no nosso entendimento, consiste numa interpretação equivocada do conceito como desenvolvido na obra gramsciana. Esta atribuição positiva à revolução passiva ecoa um julgamento de uma importante corrente intelectual e política italiana, que tem em Benedetto Croce um de seus maiores expoentes.

A fórmula de revolução passiva – que em Vincenzo Cuoco possuía um valor de advertência e em Gramsci era critério de interpretação – transformou-se, muita vezes, em uma concepção positiva, uma moral e um programa político (BIANCHI, 2007, p. 26). A possibilidade de uma transição sem revolução atraiu intelectuais que viam nela o passaporte de entrada da península italiana na modernidade capitalista. É nesse sentido que Croce será criticado por Gramsci devido a sua moderação política, “que estabelece como único método de ação política aquele no qual o progresso, o desenvolvimento histórico, é o resultado da dialética de conservação inovação. Em linguagem moderna tal forma de historicismo se chama reformismo” (Q10, §41, p. 1325).

Na análise do Risorgimento, segundo Vianna, Gramsci não pretendia sugerir que estaria nas mãos do Partido da Ação a possibilidade de deslocar a supremacia dos moderados, ao passo que o caráter passivo da revolução já estava dado (VIANNA, 2004, p. 103, grifos nossos). O Risorgimento, deste modo, seria um processo de revolução passiva em que o protagonismo dos ‘fatos’ ultrapassou o ator que poderia representar as expectativas populares. Esse protagonismo estaria a indicar o caráter inexorável do avanço da democratização social, expresso na valorização do trabalho e do trabalhador na sociedade moderna (ibid., p.104).

Com isso, Vianna reduz os “fatos à estrutura” (BIANCHI, 2008, p. 272). De modo oposto, em Gramsci, os ‘fatos’ eram os movimentos e partidos políticos que, congregando um sem número de ‘homens individuais’ em um projeto coletivo, assumiam uma força material, como em Marx (ibid., p. 273). Certamente, o objetivo de Gramsci não era o de estabelecer uma separação entre a política e a economia, tal qual em Croce. A partir do conceito de revolução passiva, o marxista sardo colocava claramente o acento nas chamadas condições subjetivas, definindo sua centralidade.

4 Conclusão A partir da formulação das ideias e sua adequação/inadequação ao lugar, buscamos refletir

acerca da apropriação do conceito de revolução passiva desenvolvido por Antonio Gramsci para a explicação da modernização brasileira. Em primeiro lugar, ao investigar nos “Cadernos do Cárcere” a análise de Gramsci acerca do advento do Estado moderno na Itália, buscamos melhor elucidar os principais traços interpretativos da noção desenhada pelo marxista sardo naquele específico momento histórico. Em segundo lugar, nas figuras de Carlos Nelson Coutinho e Luiz Werneck Vianna, nos debruçamos sobre o chamado ‘novíssimo’ conteúdo atribuído ao conceito, que, nascido na Itália de inícios do século XX, a partir da década de 1970 passou a ser utilizado enquanto instrumento de análise da realidade brasileira.

Demonstramos, assim, o papel importante que a categoria gramsciana desempenhou frente ao pensamento social e político de esquerda no Brasil, e também na reivindicação de um grupo de intelectuais marxistas por uma renovação democrática nos anos de transição. Individualizamos, entretanto, as apropriações de Coutinho e Vianna, de modo que o primeiro centrou a questão democrática como estratégia política em busca de mudar o curso passivo da trajetória brasileira, enquanto o segundo, ao positivar a forma da revolução passiva, atribui o caráter inexorável da história em seguir seu curso sem uma ruptura que não guarde consigo o elemento da conservação. Ambos os autores, contudo, realizaram pesquisas igualmente fundamentais para a teoria social brasileira.

Por fim, vale destacar que o esforço em adentrar nos “Cadernos do Cárcere” buscando na análise de Gramsci qual era a sua motivação política, vértice de suas preocupações teóricas na

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interpretação do Risorgimento, não significou uma tentativa de aplicar a metodologia contextualista de Quentin Skinner (1969) que, tendo descartado a possibilidade das ideias passadas poderem sobreviver aos processos de tradução para culturas díspares, trata as ideias como “fenômenos puramente históricos, sempre trancados em seus contextos determinados”, assumindo, nesse aspecto, uma disjunção radical entre o passado e o presente (FEMIA, 1981, p. 116).

De modo oposto, parte-se da premissa de que o contexto no qual o pensamento de Gramsci adquire significado não é exclusivamente aquele no qual ele foi produzido, mas é, também, aquele no qual ele foi apropriado. Esse significado não é atribuído somente pelos autores envolvidos nos processos de produção e apropriação teórica, mas também pelos próprios contextos históricos nos quais eles são reelaborados. É nesse sentido que estudar o caso brasileiro, implicou, primeiro, estudar o caso italiano.

Notas 1 A pesquisa que resultou neste artigo foi orientada por Bernardo Ricupero, Professor Doutor em Ciência Política da Universidade de São Paulo, e realizada por Camila Massaro de Góes, Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas e Mestranda em Ciência Política na Universidade de São Paulo. 2 Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas e Mestranda em Ciência Política na Universidade de São Paulo. Endereço eletrônico: [email protected] 3 Professor Doutor MS-3 da USP - Universidade de São Paulo. Endereço eletrônico: [email protected] 4 Nesta seção, devo muito ao grupo de pesquisa ‘Marxismo e Pensamento Político’, liderado pelo Prof. Alvaro Bianchi no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP. Nesse sentido, o que apresento nesta seção pode ser visto também como um dos resultados de um esforço coletivo de pesquisa, através de seminários sobre o pensamento gramsciano que ocorreram de 2009 a 2011. 5 Utilizaremos a edição crítica dos “Cadernos do Cárcere”, organizada por Valentino Gerratana e publicada em 1975 na Itália. Citaremos da seguinte forma: Q. ‘X’, para o número do “Caderno”, § ‘Y’, para o parágrafo, e p. ‘Z’ para a página na referida edição.

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O Alfabetismo Sociológico:

uma contribuição para o debate sobre o ensino de

sociologia

Jacqueline Parmigiani1

Osmir Dombrowski2

Resumo: Este ensaio discute a Sociologia como disciplina no Ensino Médio, argumentando que a iniciação à Sociologia não pode se resumir ao ensino aligeirado de alguns conceitos, autores ou temas das Ciências Sociais, como também não deve ser confundida com uma “formação para a cidadania”, mas deve orientar-se para as atitudes e os comportamentos da pessoa que passa por esse processo. Na primeira parte discutimos o conceito de cidadania presente na LDB e em outros textos de referência, bem como fazemos a denúncia do caráter conservador da ideia de uma formação para a cidadania e, na segunda, discorremos acerca do alfabetismo, argumentando que, por remeter ao conjunto de práticas sociais associadas aos conhecimentos adquiridos, este conceito amplia os horizontes da reflexão sobre o Ensino de Sociologia.

Palavras-chave: Alfabetismo Sociológico; Ensino de Sociologia; Ensino Médio; Cidadania.

Abstract: This paper discusses the Sociology in high school arguing that the initiation promoted at this level can not be reduced to a ‘streamlined teaching’ of some concepts, authors or subjects of social sci-ences as well not be confused with an 'education for citizenship', but should be directed to the attitudes and behaviors expected of a person who goes through this process. In the first part discuss the concept of 'citizenship' in LDB and other reference texts and denounces the conservative character of the idea of ‘Education for citizenship’, and in the second, discourse on the concept of 'literacy', arguing that by referring to the set of social practices associated with the acquired knowledge this concept broadens the horizons of reflection on teaching sociology.

Keywords: Sociological Literacy; Teaching Sociology; High School; Citizenship.

1 Introdução

A institucionalização da Sociologia como disciplina obrigatória em todas as séries do Ensino

Médio por meio da Lei 11.684 de 2008 trouxe, como efeito imprevisto, um ganho tão inesperado que, sequer, foi devidamente avaliado: a supressão do inciso III do § 1º do artigo 36 da LDB, onde se lia que “ao final do ensino médio” o educando deveria demonstrar “domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania”. Seguramente, uma das suas passagens mais infelizes. Mais que apresentar o sentido oficial atribuído ao Ensino Médio, o texto em questão expressa uma concepção de cidadania, aliada a uma visão sobre a função do ensino de Sociologia (e de Filosofia), de onde emanam inumeráveis consequências das quais apenas algumas serão tratadas nesse artigo, talvez as mais óbvias ou urgentes.

A revogação do inciso citado ao retirar do ensino de Sociologia a obrigação de “preparar para o exercício da cidadania”, permite que as comunidades acadêmicas e escolares como sugerem as Orientações Curriculares Nacionais do Ministério da Educação, sigam além do clichê da “formação para a cidadania” na busca de consensos e convergências a respeito de conteúdos e metodologias de ensino (BRASIL, 2006). As reflexões que apresentamos no corrente texto pretende contribuir com esse

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debate, sustentando que, durante o Ensino Médio, deve ser promovida uma espécie de iniciação do estudante à sociologia, e que isto não significa o ensino aligeirado de alguns conceitos, autores ou temas das Ciências Sociais, mas implica, por razões que veremos no seu decorrer, em questionar o estado ou a condição que assume a pessoa que vive o alfabetismo sociológico e criar as condições que possibilitem a construção desta situação.

Iniciamos discutindo a ideia de uma sociologia voltada para uma formação para a cidadania, pois entendemos que, mesmo que tenha sido suprimida da LDB, ela ainda aparece com muita força no interior dos discursos sobre o ensino de sociologia, acarretando graves prejuízos na prática do ensino. Em seguida, discorremos brevemente sobre o conceito de alfabetismo e apresentamos algumas razões para sua utilização nas reflexões sobre o ensino de Sociologia. Para concluir, questionamos acerca de quais são as atitudes e os comportamentos que devemos esperar de uma pessoa que vive a condição de alfabetismo sociológico e qual a relação dessas atitudes e desses comportamentos com o exercício da cidadania3.

2 O problema de uma formação para a cidadania

Antes de tudo, devemos observar que a noção de cidadania subjacente ao texto revogado, qual

determinava que, ao final do ensino médio, o educando devesse demonstrar “domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania4, remete a um construto ideal, previamente formatado, anterior ao processo educacional e anterior aos próprios cidadãos (!?), ao qual a massa deve ser moldada pela ação do sistema educacional e não a uma construção histórica que exprime conflitos políticos, sociais e econômicos. Nesse construto a cidadania é algo que existe já plenamente acabado no início do processo educativo, e o cidadão, aquele que deveria ser um agente ativo no processo, apenas poderá existir ‘ao final’, e somente nos casos em que demonstrar o domínio de determinados conhecimentos que são considerados 'necessários'.

Se a palavra ‘necessário’, no contexto da passagem suprimida da LDB, tem o sentido de imprescindível, indispensável ou imperioso, então, o texto considerava o exercício da cidadania como algo possível apenas e tão somente àqueles que dominam os tais conhecimentos (que em momento algum são especificados) de Filosofia e Sociologia. Isto é o mesmo que dizer que o exercício da cidadania não está ao alcance de qualquer pessoa, mas apenas de uma elite de iniciados nos mistérios da política, ou seja, de uma parcela da população que possui, ou aparenta possuir, alguns dons ou recursos que não estão ao alcance do restante da sociedade.

A concepção elitista de cidadania não é algo estranho à tradição política e intelectual ocidental. Desde o século XIX que republicanos, herdeiros teóricos de Montesquieu e da ideia de que a virtude do cidadão é o princípio sobre o qual as repúblicas devem se assentar, idealizam cidadãos dotados de espírito cívico desenvolvido por sistemas educacionais. Aliás, como Touraine (1996) observou com muita lucidez, foi principalmente na necessidade de formar cidadãos virtuosos que os republicanos encontraram justificativa para a instituição de sistemas educacionais públicos em oposição aos liberais clássicos, tradicionalmente defensores do estado mínimo. O estranho é que o texto em referência atribui exatamente à Filosofia e à Sociologia a responsabilidade pela iniciação à cidadania, supostamente por intermédio da revelação daqueles mistérios. Justo estas disciplinas que, ao longo das suas respectivas histórias, se encarregaram de provocar a admiração e o estranhamento diante destes e outros mistérios que cercam a vida em sociedade5.

Estamos sustentando que a concepção elitista de cidadania inerente ao texto suprimido da LDB retira do jovem – e também do adulto que não cursou o nível médio! – o status de cidadão. Na melhor das interpretações, o texto retira daqueles que não concluíram o Ensino Médio a condição de cidadão ativo, capaz de exercer sua cidadania, restando-lhe, quando muito, a condição de cidadão passivo, ou de súdito, conforme a expressão de Rousseau. Em tal concepção o jovem comparece como ingrediente básico da massa a partir da qual se moldarão os futuros cidadãos. Matéria-prima à disposição da geração que o antecedeu e que deve ser moldada segundo necessidades pré-definidas. Nesse processo, não são

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as necessidades ou os anseios dos jovens que devem ser considerados, e sim as vontades daqueles que, no interior das gerações que os antecederam, reúnem condição de conduzir o processo de modo a fazer com que as suas vontades sejam tomadas como desejos de toda a sociedade. Em outras palavras, são as necessidades das classes ou frações dominantes que determinam o formato do cidadão a ser formado. São estas necessidades que irão definir quais são as virtudes que aqueles cidadãos imaginados devem apresentar. Elas definirão, também, como é de se esperar, os vícios dos quais os futuros cidadãos devem se afastar.

É por isso que, ao lado da ideia de uma formação para a cidadania, quase sempre aparece, de forma explícita ou tácita, a intenção de formar “para o mercado de trabalho” – eufemismo sob o qual se escondem as necessidades de um grupo específico; aquele que necessita comprar força de trabalho no mercado. Não é outra coisa o que consta no Art. 35 da LDB, em seu inciso II. Nele aparece “a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores” como finalidades do Ensino Médio. Não estaremos pecando por exagero ao observar que, na LDB, a ideia de “preparar para cidadania” se realiza com o objetivo de preparar o jovem estudante para “ser capaz de se adaptar” às novas (na década de 1990) exigências do mercado capitalista globalizado, (re)organizado de acordo com os preceitos ideológicos hegemônicos do período. Nesse espírito, e “para fazer cumprir” a LDB, os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio iniciam falando da necessidade de submeter a educação escolar a uma “atualização”, “dotando-a de recursos para lidar com os imperativos da sociedade tecnológica [...]” (BRASIL, 2000, p. 8) e, para encerrar a parte relativa às Ciências Sociais, apontando para a necessidade de “compreender as transformações no mundo do trabalho e o novo perfil de qualificação exigida, gerados por mudanças na ordem econômica” e de “construir a identidade social e política de modo a viabilizar o exercício da cidadania plena […]” como sendo competências e habilidades a serem desenvolvidas durante o Ensino Médio (BRASIL, 2000, p. 43).

A revogação do inciso III §1º, do artigo 36 da LDB pela lei que institui a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias em todas as séries do Ensino Médio, se não retira da LDB todo o seu caráter neoliberal e a preocupação em promover uma inserção subordinada da sociedade brasileira na malfadada nova ordem econômica global, permite que as comunidades acadêmicas e escolares, livres da obrigatoriedade de trabalhar pela “formação de cidadãos”, sigam no sentido de construir outros caminhos, buscando novos consensos e convergências teóricos e metodológicos no interior do campo do ensino de sociologia.

A ideia de cidadania como uma coisa preconcebida é uma ideia de cidadania burguesa. É um produto do pensamento liberal republicano, que apresenta traços anteriormente definidos e, por isso, imutáveis. Nesse pensamento, a cidadania não se define historicamente como resultado de conflitos sociais. Esta ideia de cidadania decorre de uma visão de Estado igualmente idealista e burguesa. Nessa visão, também o Estado se apresenta como algo pré-definido em seus traços fundamentais e que, por isso, também aparece como imutável. Trata-se de um esquema no qual tudo aparece perfeitamente definido e a única variável que pode ser controlada é a chamada sociedade civil, ou melhor, o cidadão que a compõe. Daí deriva a importância atribuída à educação para a formação da cidadania nesse esquema teórico.

Nós, porém, pensamos diferente. O Estado não aparece para nós como uma realidade previamente definida, sem historicidade, mas como produto das relações entre homens determinados e em circunstâncias determinadas; histórico, portanto, e que, como tal, para ser adequadamente compreendido, deve ser questionado quanto à sua natureza de classe, condição que o define como instrumento de dominação de uma classe sobre outras, e quanto à forma como esta dominação se realiza concretamente na sua organização. Nessa concepção, o Estado é percebido pelos atores sociais como importante centro capaz de redistribuir recursos, o que o torna alvo da disputa política e social, ambicionado por todas as classes e frações – umas para manter sua condição de dominante, outras para exercer maior influência, e outras ainda, para se libertar do jugo a que estão submetidas. A contradição é que o poder do Estado, bem como sua autonomia em relação à sociedade, aumenta na mesma

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proporção em que os agentes se voltam para ele como centro do poder. Isto explica por que o Estado assume traços específicos em diferentes contextos históricos e geográficos, traços estes que definirão – em última instância consumarão juridicamente – os contornos que adquire a cidadania em cada um destes contextos.

Assim, para nós, o conceito de cidadania se define como histórico: ele indica o status, a posição, dos membros de uma comunidade política perante os outros e perante o Estado que, por sua vez, opera o reconhecimento político e jurídico desta posição a partir da definição de determinados direitos com as inevitáveis obrigações correlatas. Não é desnecessário dizer que as posições ocupadas por qualquer um dos segmentos não são fixas, nem naturais. São resultados parciais da luta empreendida no interior da sociedade em determinados momentos históricos.

Desta maneira, podemos pensar que a educação para a cidadania, quando requerida por determinados segmentos, tende a ser, inevitavelmente, reprodutivista. Trata-se de uma ação que tem por objetivo fundamental a reprodução do status quo a partir da difusão de direitos e obrigações que precisam6 ser exercidos para a realização plena da ideia de cidadania que os exprime. Se este conjunto de direitos e obrigações não for exercido, a ideia de cidadania que se expressa nele se torna apenas aquilo que ela é na realidade: uma abstração. Daí decorre a necessidade tão desesperadora quanto irrealizável de formar cidadãos ideais.

É razoável, também, concluir-se que aqueles que pretendem influenciar o Estado na direção de uma educação para a cidadania estejam preocupados com a realização de uma ideia particular de cidadania – aquela que se encontra definida e expressa pelas leis e normas do Estado, pois ao Estado é vedado ensinar algo em desacordo com aquilo que ele mesmo estabelece. Por isso, existe uma semelhança muito grande entre as aspirações dos proponentes da antiga Educação Moral e Cívica, ou da antiga OSPB, e as atuais propostas de um ensino de Sociologia voltado para a formação do cidadão. As diferenças visíveis entre estas proposições refletem apenas a diferença na posição de algumas frações de classe nos centros do poder do Estado. A natureza das propostas, entretanto, é a mesma.

Entretanto, pensar a cidadania como expressão dos conflitos e das lutas empreendidos por agentes históricos concretos que se definem enquanto tal apenas no decorrer do próprio processo de luta, primeiramente, implica em pensar que aqueles que participam do processo educativo são, já no início do processo, agentes históricos em luta pela (re)definição dos lugares que ocupam na organização social, ou seja, são cidadãos. E, em seguida, implica em pensar que o cidadão não pode ser formado pelo processo educacional, mas que ele se forma, necessariamente, na luta que define e redefine continuamente as condições da sua existência.

Isto quer dizer que temos, por assim dizer, duas opções: uma reprodutivista, a de formar o cidadão requerido pela manutenção do status quo, e outra crítica, na qual a Sociologia pode desempenhar um papel relevante, desde que se desprenda da missão a ela imposta de “formar para a cidadania”, e seja tomada como uma ciência que ela é, e que, dado o instrumental teórico e metodológico que reúne, reivindica a condição de explicar seu próprio papel no interior da sociedade que a engendra, e, por isso mesmo, permite àquele que a opera questionar sobre a sua própria condição (GOLDMANN, 1972). A Sociologia se constitui em uma espécie muito particular de linguagem, fundamental para explicar (e compreender) o mundo que nos envolve e dar sentido às nossas ações nele. É na direção desta segunda opção que se inserem as reflexões sobre o ensino de Sociologia na educação básica apresentadas a seguir. Tomando a Sociologia como ciência, e, portanto, como uma linguagem, pensamos no papel que ela pode desempenhar quando incorporada pelos jovens ao cotidiano das suas práticas sociais. Pensamos nas transformações que a incorporação desta linguagem pode provocar no comportamento e nas atitudes destes jovens.

3 O conceito de Alfabetismo e sua aplicação no campo do ensino de Sociologia

O fato de que a ciência pode ser compreendida como uma linguagem permite aos educadores se

referir ao seu ensino como um processo de alfabetização científica (CHASSOT, 2003). É de onde

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também se retira autorização para muitos, em nossa área, utilizarem a expressão alfabetização sociológica para se referir à iniciação do jovem nessa linguagem. Entretanto, se concordamos que, durante o Ensino Médio, o estudante tem a oportunidade de travar seus primeiros contatos qualificados com a Sociologia, inteirando-se sobre o objeto de estudo desta ciência, os métodos e as técnicas que tornam possível a sua prática, e algunsdos principais resultados obtidos na sua curta – porém profícua – história, lembramos que a iniciação da qual estamos falando não pode ser confundia com o ensino aligeirado de algumas noções, conceitos ou autores consagrados das ciências sociais, normalmente associados à ideia de uma alfabetização sociológica. Saber, por exemplo, que Marx era alemão, ou que ele escreveu para a Gazeta Renana, pode ser importante para alguém em certos momentos, mas não cremos que este tipo de informação seja interessante para todos os jovens que estão vivenciando sua iniciação em Sociologia. Além de ser extremamente enfadonho, este tipo de informação, como a maioria das informações descontextualizadas, tende a ser rotulado como inútil e arquivado nas profundezas da memória, provavelmente para nunca mais ser acionado. Lamentavelmente, a todo instante, vemos professores iniciarem o estudo de um autor pela apresentação aos seus alunos de uma pequena biografia retirada de algum manual ou da enciclopédia virtual Wikipédia. Nesses casos, muitos professores projetam também uma inevitável fotografia de um busto da ‘celebridade’ apresentada. Assim, os estudantes descobrem que Durkheim era magro e usava óculos! O caso extremo – e recorrente – desta excrescência consiste no fato de o professor organizar uma exposição com cartazes confeccionados pelos alunos nos quais são apresentados a vida e a obra dos autores estudados.

A Sociologia tampouco pode ser pensada como um instrumento para obtenção de alguma espécie de passaporte para a modernidade. É uma ilusão acreditar que o ensino da Sociologia pode conduzir a melhores níveis de desenvolvimento ao ‘produzir’ sujeitos mais capazes, críticos e modernos, aptos a ingressar no mercado de trabalho globalizado. Muitos professores apegados a esta ilusão tipicamente iluminista creem que a falta de alguns conhecimentos específicos impede que as pessoas consigam se inserir de forma mais adequada no mercado de trabalho. Esta visão tende a culpar os excluídos pela situação em que vivem, e os pobres pela pobreza das nações. É por que tais pessoas não conhecem as novas formas de organização do mundo do trabalho – as quais exigem sujeitos críticos e bem informados, e não mais os “homens bois” do velho Taylor – que elas não logram êxito na sua inserção neste novo mercado globalizado. E assim, durante o Ensino Médio, caberia à Sociologia propiciar aos jovens conhecimentos atualizados sobre o processo de globalização, as novas formas de organização do trabalho, o autoemprego, o empreendedorismo e a responsabilidade social, servindo, desta maneira, como ponte para uma nova vida. Por trás desta ilusão reside a ideia, apontada por Marta Kohl de Oliveira (1996, p. 98), de que “as conquistas intelectuais supostamente promovidas pela escola alterariam a competência do sujeito, tornando-o um indivíduo mais desenvolvido intelectualmente, mais pleno psicologicamente, de alguma forma 'melhor' quando comparado aos sujeitos não escolarizados”. É a mesma ideia de matriz iluminista presente na crença de que conhecer melhor os direitos, e, principalmente, os deveres, torna o sujeito um cidadão mais competente ou capaz.

Por outro lado – porém, igualmente iluminista –, muitos acreditam que basta enunciar os conceitos classe social e mais valia para fazer surgir jovens revolucionários, dispostos a transformar a sociedade burguesa na qual estão inseridos. Denunciar a exploração do homem pelo homem e os processos de expropriação que submetem a classe operária a uma condição de vida vil e indigna é uma tarefa importante e um procedimento louvável tanto do ponto de vista político como pedagógico. Entretanto, esta denúncia, por mais importante que seja, não pode ser confundida com Ensino de Sociologia. Uma coisa é dominar os procedimentos teóricos e metodológicos que permitem desnudar no plano intelectual os processos reais e evidenciar seu caráter de classe. Outra, significativamente diferente, é repetir informações, conteúdos prontos e impostos em processos pedagógicos autoritários que buscam inculcar, de fora para dentro, conhecimentos gerados pelos ‘senhores do saber’. Isso não é Sociologia e não é transformador, não passando da velha educação bancária denunciada por Paulo Freire, lidando com conteúdos supostamente revolucionários.

A iniciação à sociologia que pensamos é mais bem problematizada pelo conceito de alfabetismo. Este conceito, por remeter ao conjunto de práticas sociais associadas aos conhecimentos adquiridos,

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alarga ao limite a reflexão acerca dos processos de alfabetização. Em sua origem, ele não se refere simplesmente ao ato de saber ler e escrever este ou aquele sistema de escrita, mas problematiza o modo como as pessoas usam esses conhecimentos para propósitos específicos e em contextos sociais determinados. Há algum tempo o campo da educação vive um debate, no sentido de estabelecer uma distinção entre o ato de ensinar e aprender a ler e escrever e o que seria, propriamente, o estado ou condição que assume aquele que aprende a ler e escrever, designado pelo neologismo alfabetismo7. Este debate expôs a necessidade da construção de uma nova abordagem pedagógica: antes os estudos focavam mais o processo de alfabetização em si, sua duração, as metodologias de aprendizagem, os conteúdos necessários etc. A nova abordagem proposta deveria lançar o olhar sobre o sujeito da alfabetização, em seu sentido mais pleno, os novos processos de objetivação do mundo, os novos significados e usos que a condição de alfabetismo criaria. (KLEIMAN, 1995; OLIVEIRA, 1995; RIBEIRO, 1999; SOARES, 1995.).

Estudar o alfabetismo significa, então, desvendar um conjunto de comportamentos individuais e sociais que caracterizam o novo estado ou condição. Envolve refletir sobre quais são as atitudes e habilidades necessárias para definir alguém que vive nessa condição. Isto porque o termo designa a condição de pessoas ou grupos que não apenas aprenderam a ler e escrever, mas que, também, utilizam a leitura e a escrita no seu dia a dia, no seu viver, transformando, por esse uso, sua própria condição e vida. Conceituar o alfabetismo implica olhar para duas dimensões: a individual, no sentido do desenvolvimento de habilidades de leitura e escrita, e a dimensão social do processo que envolve, além do domínio individual de tais habilidades, a existência de um conjunto de práticas sociais associadas a elas.

Cada sociedade, de acordo com suas necessidades, constrói os elementos necessários para resoluções de seus problemas. Ocorre que, diante de determinadas tarefas, recebemos um conjunto predeterminado de conhecimentos teóricos, práticos e de meios técnicos que limitam ou ampliam as possibilidades de soluções possíveis. Essas possibilidades resumem o estado de nossa civilização. O conhecimento científico, assim como qualquer outra forma social de conhecimento, possui um sistema complexo de significados que é transmitido historicamente e atualizado a cada nova geração. Não são necessárias muitas pesquisas e estudos para perceber o papel que o conhecimento científico possui nas sociedades modernas, e que os sujeitos que não têm acesso a essa forma de conhecimento deixam de participar de eventos e atividades importantes. Enquanto modalidade específica de produção de conhecimento, a ciência trabalha com categorizações, processos de generalização, busca leis e princípios universais baseados em sistemas teórico-epistemológicos, enfim, coloca à disposição daqueles que fazem uso dessa linguagem um conjunto de saberes historicamente acumulados pelas sociedades. Alguns autores lembram ainda que o conhecimento científico promove transformações no desenvolvimento psicológico, na medida em que oferece aos sujeitos um instrumental diferente daquele que é obtido nas categorias construídas pelo senso comum (ver OLIVEIRA, 1995). Entretanto, conforme já observava Lévi-Strauss (1987), tais transformações não podem ser tomadas como evidência de maior ou menor competência intelectual, mas como resultado de uma estrutura de pensamento que abre possibilidades de construção de novas e outras habilidades. Por outro lado, o conhecimento dessa linguagem é fundamental para que possamos acessar e produzir novos corpos de conhecimentos. É próprio da natureza humana produzir conhecimento, mas, para produzir conhecimento em física, química, sociologia etc., é essencial conhecer a linguagem que possibilita acessar esses sistemas. Como bem disse Oliveira (1996, p. 101), a exclusão ou empobrecimento de tudo que compõe a experiência escolar, pode deixar de “promover o acesso do indivíduo a dimensões de sua própria cultura”.

É importante, ainda, considerar que, em nossa sociedade, a apropriação e uso de determinados conhecimentos específicos (de química, física, sociologia, filosofia etc.) podem produzir alterações nas vidas das pessoas, ampliando ou limitando suas ações. Costuma-se dizer que quem conhece um pouco de química pode ter uma qualidade de vida melhor na medida em que consegue identificar nos rótulos dos alimentos industrializados componentes que podem ser prejudiciais a sua saúde, e que a posse desse conhecimento permite que a pessoa ganhe autonomia na escolha dos produtos de sua

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alimentação. Do mesmo modo, há muito tempo a sociologia da educação percebeu a utilização do ensino de certos conhecimentos na produção e reprodução de comportamentos moldados para a submissão. De uma forma ou de outra, a assimilação de novos conhecimentos compete para a alteração do modo como as pessoas vivem.

Uma pessoa que tem sua vivência alterada por se apropriar de determinados conhecimentos não se torna mais capaz. Tão somente ela adquire novas habilidades. Em importante estudo sobre a relação entre alfabetismo e atitudes, Ribeiro (1999) afirma ser inapropriada a postulação de que a disseminação da linguagem escrita em si constitui o divisor de águas entre culturas consideradas tradicionais e modernas, assim como, no plano psicológico, a aprendizagem da leitura e da escrita por si só não é capaz de ampliar capacidades cognitivas, e nem muito menos produzir atitudes modernizantes nos sujeitos letrados: “não importa o que a linguagem escrita faz conosco, mas sim o que podemos fazer com ela, ou seja, como a utilizamos em práticas e contextos específicos e que recursos culturais ela nos coloca à disposição.” (RIBEIRO, 1999, p. 50). Por outro lado, neste mesmo estudo, a pesquisadora constata que existe uma importante relação de reciprocidade entre as atividades de leitura e escrita e certas orientações atitudinais, ou seja, entre alfabetismo e atitudes. Em uma sociedade letrada o desenvolvimento das atitudes de leitor e escritor possibilita que os indivíduos realizem, ou se dediquem, a determinadas atividades que exigem o domínio dessas habilidades. Anotar um recado, organizar uma lista de compras ou tomar nota de um endereço são atitudes que passam a fazer parte da vida de quem desenvolve a habilidade de ler e escrever. Se essas atitudes são tomadas quando julgadas necessárias, sem que outra pessoa peça ou determine que o sejam, podemos dizer que estamos diante de um comportamento que foi interiorizado por aquele que vive o estado de alfabetismo. A habilidade da leitura e escrita passa a fazer parte da forma como o sujeito organiza a sua vivência e constrói estratégias para resolução dos problemas que se lhes colocam na sua vida social. E, neste ponto, observamos que se a sociedade em pauta é uma sociedade letrada, ela tende a colocar os sujeitos diante de problemas que requerem o domínio desta habilidade para obter a sua resolução.

Pensamos que problematizar o conceito de alfabetismo aplicado ao ensino da ciência da sociedade, da Sociologia compreendida como linguagem necessária para a produção, organização e transmissão de um tipo específico de conhecimento, pode ser útil para escapar ao perigo de pensar que a simples transmissão de alguns conteúdos desta ciência é capaz de produzir sujeitos que serão cidadãos modernos, globalizados, críticos ou conscientes, remetendo a reflexão para os usos que pessoas alfabetizadas sociologicamente podem fazer deste conhecimento e da possibilidade de atualizá-lo cotidianamente. Nesse sentido, devemos nos questionar sobre quais são as atitudes esperadas de alguém que se encontra na condição de alfabetismo sociológico e que tipo de recursos são disponibilizados para quem vive essa condição. Quanto à primeira parte do nosso questionamento, podemos acompanhar, sem hesitação, as sugestões das Orientações Curriculares para Sociologia que estão lastreadas nas noções de estranhamento e desnaturalização (BRASIL, 2006), agregando a estas a noção de alteridade.

O estranhamento e a desnaturalização são atitudes típicas que se espera de alguém que vive nesse estado. Normalmente, não costumamos questionar, ou não somos dados a pedir explicações sobre as coisas que nos cercam, mesmo quando nos sentimos obrigados por elas e por mais forte e impositiva que seja tal obrigação. A maioria das pessoas, por exemplo, são obrigadas a se levantarem pela manhã e seguirem para os seus empregos e, satisfeitas ou não com seus salários e condições de trabalho, tendem a aceitar o fato de que são obrigadas a trabalhar tão naturalmente quanto aceitam o fato de que o sol nasce todos os dias. Isto ocorre porque elas foram ensinadas que a vida é assim, e que devemos trabalhar para viver. Coisas que já existiam antes da nossa chegada, que nos foram ensinadas ao longo da nossa vida, tendem a adquirir para nós um grau muito forte de naturalidade. Parece-nos que sempre existiram desta maneira e que não há outra forma possível de ser.

O sujeito que vive a condição de alfabetismo sociológico não olha para a própria realidade como algo natural que independe da vontade e dos interesses dos homens. Não toma a realidade social como mais um elemento da natureza, eterna e imutável. Pelo contrário, tende a perceber a historicidade do emaranhado de relações que compõe a realidade social em toda a sua temporalidade; seu caráter

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provisório e dinâmico. Este sujeito percebe que até os eventos mais corriqueiros, da mesma forma que os extraordinários, podem ser explicados como resultado da ação de pessoas e grupos que se relacionam em contextos determinados. Ele tem, por assim dizer, uma atitude de estranhamento diante da realidade, uma atitude que exige explicação mesmo para aquelas coisas mais banais. Essa atitude diante da realidade, que permite ao sujeito perceber-se a si próprio e ao seu modo de vida como uma construção histórica que nada tem de natural e definitivo, também lhe possibilita a noção de alteridade. Quando ele percebe que seu modo de vida não é natural, pode mais facilmente perceber que outros modos de vida, apesar de diferentes, são tão normais quanto o seu próprio. O sujeito que vive o alfabetismo sociológico, portanto, questiona a própria existência ciente de que ela não é a única possível, de que ela não é, necessariamente, a melhor forma de se viver, nem é definitiva.

No que diz respeito aos recursos que são disponibilizados a quem vive o alfabetismo sociológico, é certo que é muito rica e variada a gama de recursos conceituais e metodológicos desenvolvidos pelas Ciências Sociais ao longo da sua história. Mas é certo também que este sujeito acerca do qual falamos, e que vive a condição de alfabetismo sociológico, não é, necessariamente, um cientista social. Entre eles reside uma grande diferença que não pode ser ignorada nessas reflexões. Do cientista social se espera que, se não domine, ao menos esteja razoavelmente informado sobre grande parte destes recursos e saiba como acioná-lo nos momentos em que julgar necessário. Das outras pessoas, profissionais das mais diferentes áreas, cientistas ou técnicos; militantes ou diletantes; políticos profissionais ou artistas, enfim, de todas as pessoas que imaginamos poder viver a condição de alfabetismo sociológico, sem que sejam, necessariamente, cientistas sociais, não podemos esperar que detenham a mesma quantidade de informação. Afinal, como já se disse antes, quando pensamos o alfabetismo, importa menos o conhecimento que se adquire e mais o uso que se faz desse conhecimento. Portanto, se afirmamos acima que pretendemos nos afastar de um ensino aligeirado de alguns rudimentos das Ciências Sociais, isto não implica em nenhuma pretensão de ensinar aos estudantes do Ensino Médio todo o enciclopédico conhecimento acumulado pelas Ciências Sociais ao longo da sua história. Deste mal, diga-se de passagem, julgamos que padecem as disciplinas consagradas do Ensino Médio, com aquela vastidão de conhecimentos úteis apenas – e quando muito – para a realização dos exames vestibulares. O que pretendemos é que, nesta etapa da sua vida, o jovem possa adquirir recursos que confiram autonomia para suas ações na vida cotidiana, da mesma forma, por exemplo, que um determinado tipo de conhecimento de química pode se tornar importante para uma pessoa escolher um alimento industrializado na prateleira de um supermercado.

Mas para responder à pergunta que nós nos colocamos aqui, o grande recurso que a sociologia disponibiliza para quem vive o alfabetismo sociológico é uma visão de mundo com ambição de totalidade. É a habilidade de obter uma explicação científica para um problema real (um fato social problematizado), por intermédio da reconstrução teórica do mundo social em sua totalidade; processo que, como demonstrou laboriosamente Florestam Fernandes (1980), pode ser facilitado, sobremaneira, pela utilização dos procedimentos analíticos próprios das Ciências Sociais. Outra forma de pensar o que estamos sugerindo aqui é acompanhar Weber e pensar que a sociologia, como ciência que é, promove o desencantamento do mundo para aquele que aprende a pensar sociologicamente.

4 Considerações finais

Uma vez que dissemos que o sujeito que vive em estado de alfabetismo sociológico não é,

propriamente dito, um cientista social, não poderíamos concluir este trabalho sem tecer algumas considerações sobre outro aspecto da relação que se estabelece entre a ação destes sujeitos na vida social e o campo acadêmico das ciências sociais. O fenômeno, da forma como pensamos é semelhante ao que Burawoy (2009) postula para a relação que se estabelece entre a 'sociologia pública' e a 'sociologia profissional', quando sugere que a produção acadêmica pode ser alimentada por problemas colocados pela prática vivida no interior dos outros campos. Nossa expectativa é que a condição de alfabetismo sociológico pode implicar em uma maior autonomia dos sujeitos na definição dos seus

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interesses e na busca da melhor forma de satisfazê-los no interior do processo conflituoso no qual são produzidas as condições da sua existência uma vez que eles, nesta condição, e operando o instrumental disponibilizado pela sociologia, podem mais facilmente interrogar – e explicar – a sua própria participação no interior desse processo.

Nossa expectativa, portanto, é a de que a sociologia, uma vez incorporada à prática social de sujeitos que a ela recorrem para orientar suas ações, desempenharia um papel significativo na definição histórica da cidadania. Mas, não se esgota nessa dimensão o alcance das repercussões provocadas pela condição de alfabetismo sociológico. Ao recorrer ao instrumental disponibilizado pela sociologia para orientar sua ação na luta por uma melhor posição no interior da comunidade política, tais sujeitos estariam constantemente colocando novos problemas para a sociologia e demandando uma permanente atualização teórica e metodológica. Assim, da mesma forma que as práticas sociais mantêm vivas as línguas, também a sociologia deverá ter no alfabetismo sociológico uma fonte de vida inesgotável, recebendo os impulsos que emanam das lutas e dos conflitos sociais.

Notas 1 Filiação Institucional e a titulação do autor: Unioeste, Mestre em Ciências Sociais. Endereço eletrônico: [email protected], Endereço para correspondência do autor: Unioeste – Campus de Toledo. 2 Filiação Institucional e a titulação do autor: Unioeste, Doutor em Ciência Política. Endereço eletrônico: [email protected];br, Endereço para correspondência do autor: Unioeste – Campus de Toledo. 3

Versão preliminar desse texto foi apresentada no GT Ensino de Sociologia durante o XV Congresso Brasileiro de

Sociologia – 26 a 29 de julho de 2011 em Curitiba/PR. 4

Ver LDB, art. 36, § 1º, inciso III, item revogado pela Lei 11.684 (BRASIL, 2008). 5

Platão e Aristóteles já colocavam a admiração na origem do ato de filosofar. A admiração é provocada pelo

desconhecimento, pelo não saber e, assim, admirar é o primeiro passo no sentido de conhecer. Já a noção de estranhamento aparece nos dicionários como sinônimo de admiração, mas chega até nós por intermédio da crítica literária, onde é usada para se referir ao efeito provocado pela obra de arte ao distanciar o leitor/espectador do modo como ele normalmente apreende o mundo, e foi integrada ao campo de ensino de sociologia pelas mãos dos autores das Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio – Conhecimentos de Sociologia, Amaury Cesar Moraes, Elisabeth da Fonseca Guimarães e Nélson Dácio Tomazi (cf. BRASIL, 2006). 6

Note-se que o verbo precisar adquire um sentido ambíguo entre um caráter normativo e um neutro. 7

Em artigo apresentado na Reunião Anual da ANPEd em 1995, Magda Becker Soares acusava a inexistência na língua

portuguesa de uma palavra que designasse esse “estado ou condição de alfabetismo” como oposto de “analfabetismo”, tomando este fato como um indicativo da carência de estudos nessa direção.

Referências

BRASIL. Lei nº 11.684. Altera o art. 36 da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, para incluir a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias nos currículos do ensino médio. Brasília, Presidência da República, 02 jun 2008. BRASIL. Ministério da Educação. Orientações Curriculares para o Ensino Médio - Volume 3, Ciências Humanas e Suas Tecnologias. Brasília: MEC/SEB, 2006.

BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais (Ensino Médio), Parte IV - Ciências Humanas e suas Tecnologias. Brasília: MEC, 2000.

BURAWOY, M.. Por uma Sociologia Pública. In: BRAGA, R. e BURAWOY, M. Por uma Sociologia Pública. São Paulo: Alameda, 2009.

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Relações de gênero:

uma problematização acerca da ausência de

discussões no âmbito do Ensino Médio

Juliana Almeida Matos1

Tcharles Gonçalves Schmidt2

Marco Antonio Arantes3

Resumo: Partindo da realidade observada nas escolas em que o PIBID de Ciências Sociais atua na cidade de Toledo, o presente artigo tem como objetivo problematizar a ausência da discussão sobre as relações e desigualdades de gênero no âmbito do Ensino Médio, bem como a pouca preocupação que se tinha, até pouco tempo, com o mesmo tema por parte dos documentos que regem e orientam a educação básica no Estado do Paraná; cenário este que começa a sofrer alterações em 2010, com a publicação das Diretrizes Curriculares de Gênero e Diversidade Sexual. Pretende-se, também, sugerir métodos e instrumentos para a abordagem do conteúdo em questão no ambiente da sala de aula, tendo como base teórica os pressupostos da pedagogia histórico-crítica.

Palavras-chave: Relações de gênero; Metodologia; Educação.

Abstract: From the observation of the reality in the schools where Social Sciences PIBID is present in Toledo, this article aims at problematizing the lack of discussion on genre relations and inequalities in High School education, as well as the minor role played by the same issue until little time ago in the laws that regulate and orientate basic education in Paraná; situation that starts to change in 2010, with the publication of Diretrizes Curriculares de Gênero e Diversidade Sexual. We also intend to suggest methods and instruments to deal with this issue in the classroom, based on the theoretical assumptions of historical-critical pedagogy.

Keywords: Genre relations; Methodology; Education.

1 Introdução Este trabalho tem como objetivo apresentar um pouco das preocupações que emergem do

cotidiano de trabalho do grupo PIBID de Sociologia da Unioeste – Campus de Toledo –, tendo como ponto de partida seu contato com as duas escolas de referência e seus interlocutores. O que insurge com caráter de urgência desta relação é a preocupação para com a ausência de abordagem das relações e das desigualdades de gênero nos planos de trabalho docente dos professores supervisores e, por consequência, em suas turmas. Ao notar a ausência de tais discussões e procurar entender um pouco do cenário que permeia a ocorrência de tal fato, buscamos contribuir com a proposição de metodologias de ensino e aprendizagem que possam instigar e auxiliar o trato do tema aqui discutido, no âmbito da sala de aula, não só para os nossos colegas de trabalho, mas também para toda a comunidade interessada – já que não acreditamos que esta seja uma situação exclusiva dos contextos escolares com os quais estamos familiarizados.

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Deste modo, buscamos em Joan Scott (1995) os elementos necessários para a utilização e problematização do conceito de gênero, o associamos aos pressupostos teóricos da pedagogia histórico-crítica difundida por Savianni (2002; 2005; 2008) e também aos questionamentos que julgamos pertinentes a serem discutidos com o público do ensino médio no que se refere à desnaturalização e à crítica dos padrões que, historicamente, permeiam as relações de gênero. Diante disto, nos propomos a apresentar formulações iniciais de um plano de aula e de aspectos mais gerais que envolvem a discussão do tema aqui debatido na Educação Básica do Paraná, com vistas a contribuir para o exercício e a permanência da disciplina de Sociologia na grade curricular do ensino médio.

2 Problematizações O exercício aqui proposto, mesmo que de maneira breve e limitada, tem como intenção refletir

e contribuir para com o desempenho das Ciências Sociais no âmbito do Ensino Médio, tendo como ponto de partida elementos do cotidiano de trabalho das escolas em que o PIBID de Sociologia da Unioeste – Campus de Toledo – desempenha suas atividades, principalmente no que se refere à abordagem e à discussão de conteúdos em sala de aula. A partir do acompanhamento das aulas dos professores supervisores e do acesso aos seus planos de trabalho docente, identificamos a ausência do tratamento e da problematização da temática das relações e das desigualdades de gênero. Na medida em que entendemos tal conteúdo como um dos elementos fundamentais que permitem aos jovens a compreensão e a desnaturalização de processos e preconceitos sociais há muito enraizados em nosso cotidiano, geralmente responsáveis por fomentar intolerâncias e, consequentemente, violências, além de ameaçar e excluir práticas e sujeitos, preocupamo-nos com os motivos pelos quais a sua exploração vem sendo negligenciada nas escolas em que desempenhamos nossas atividades por intermédio do PIBID, assim como com formas de torná-la possível.

De acordo com o que observamos, várias podem ser as razões pelas quais as discussões de gênero são pouco frequentes em sala de aula e não possuem ‘autonomia’ enquanto conteúdo e/ou categoria de análise neste mesmo espaço. A falta de respaldo teórico e/ou metodológico dos professores em relação ao tema, sua pouca visibilidade nos documentos que norteiam a educação básica estadual – como é o caso das Diretrizes Curriculares Estaduais (DCEs)4 – ou até mesmo a falta de afinidade de alguns professores com o tema, dentre outras, configuram-se como algumas das motivações. A primeira é a que mais interessa para este trabalho, na medida em que nos empenharemos em oferecer alternativas para a aplicação prática do conteúdo das relações de gênero. No entanto, antes de nos debruçarmos sobre os pressupostos teórico-metodológicos que oferecem sustentação para a abordagem de tal conteúdo, julgamos necessário apresentar, de forma breve, como o mesmo aparece (ou não) nos documentos que orientam a organização do trabalho pedagógico da educação básica estadual e nos planos de trabalho docente dos professores supervisores tomados como referência para as problematizações aqui sugeridas.

Deste modo, sublinhamos que as DCEs trazem o conteúdo das relações e das desigualdades de gênero da seguinte forma: como tema básico a ser discutido em conjunto com o conteúdo estruturante de Cultura e Indústria Cultural, a ser trabalhado associado às problematizações sobre a Instituição Familiar ou contemplado nas discussões sobre Desigualdades Sociais. Embora o texto das DCEs garanta autonomia aos professores para adequarem seus planos de trabalho de forma a responder demandas que emergem do cotidiano escolar, os planos docentes das escolas com as quais trabalhamos, quando incluem a abordagem das relações de gênero, não se distanciam daquilo que é proposto pelas DCEs.

Atentos para a ausência de problematizações, tanto teóricas quanto práticas, em relação ao tema aqui discutido, recentemente a SEED (Secretaria de Estado da Educação do Paraná) demonstrou interesse frente à necessidade de debruçar-se com mais atenção sobre tais questões, interesse este materializado no ano de 2010 com a publicação das Diretrizes Curriculares de Gênero e Diversidade

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Sexual5, de forma que as DCGDS surgem com o objetivo de subsidiar as discussões acerca das relações de gênero e da diversidade sexual, e também de orientar as ações no interior das escolas em relação ao trato dos temas.

As Diretrizes de Gênero e da Diversidade se autointitulam como uma possibilidade para fomentar o pensamento e a reflexão sobre as práticas pedagógicas difundidas na esfera da educação básica, propondo-se como ‘contranarrativas’, isto é, como um texto que se dispõe a ser um lugar de questionamento das verdades estabelecidas e que não fazem funcionar as relações desiguais entre os gêneros e os sexos (PARANÁ, 2010). As diretrizes são compostas por um Glossário e um conjunto de quatro textos que abordam os seguintes temas: gênero, sexualidade, homofobia e educação sexual. Atestando uma invisibilidade no tratamento de temas como gênero e sexualidade, consideram de extrema importância a problematização de tais temáticas na medida em que as mesmas dizem muito a respeito das relações sociais e da organização da vida social como um todo.

Estas diretrizes, entretanto, não possuem o interesse – pelo menos não em sua versão preliminar – de direcionar a ação pedagógica em sala de aula no que tange às discussões de gênero ou de em regulamentá-las. O que se pretende, neste momento, é contextualizar e sugerir um olhar para a problemática que se coloca diante da existência das desigualdades de gênero, indicando que a totalidade do ambiente escolar – sem limitar-se à sala de aula ou a orientar unicamente os professores – tenha percepção dos desdobramentos da mesma em nossa sociedade e problematize-a na sua prática cotidiana; o que confirma, novamente, a necessidade de trabalhos e discussões como as que aqui se propõem, já que a instrumentalização para a aplicação prática do conteúdo referenciado permanece, de certa forma, insuficiente. No entanto, vale ressaltar que as DCGDS contribuem em muito para a aproximação dos professores do ensino básico para com alguns dos principais pressupostos e referenciais teóricos pertencentes aos estudos de gênero e sexualidade.

3 O conceito de gênero Entendemos serem necessárias algumas considerações acerca do conceito de gênero que norteia

os debates propostos por este trabalho, na medida em que ele deve ser diretamente responsável pelas posturas assumidas em sala de aula ao tratar do tema. Neste tópico, nos empenhamos, então, em apresentar um pouco das noções por nós compartilhadas a respeito de tal conceito.

Sabemos que a utilização do conceito de gênero é polêmica desde sua introdução no campo das Ciências Sociais. Houve sempre uma dificuldade muito grande de aceitação do conceito enquanto categoria de análise, assim como dos estudos feministas – junto aos quais o conceito de gênero sempre esteve, de uma forma ou de outra, associado – por parte do universo acadêmico. Os estudos sobre as relações de gênero no Brasil nascem com o movimento feminista e começam a ganhar visibilidade principalmente a partir da década de 70 (HEILBORN, 1999). Diante de um cenário um tanto quanto conflituoso no que concerne às pesquisas ligadas à teorização do conceito de gênero, optamos pelos pressupostos apresentados nos estudos de Joan Scott (1995).

Scott, grosso modo, entende gênero como um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, ou seja, o conceito expressa o caráter dos discursos e das práticas que se constroem socialmente a partir das diferenças observadas entre os sexos, e é também, de acordo com ela, uma forma primeira de significar as relações de poder. A autora acredita que, por estar fundada sobre as diferenças percebidas entres os sexos, a categoria gênero implica quatro elementos diretamente relacionados uns aos outros: o primeiro consiste nos símbolos culturalmente disponíveis que evocam representações múltiplas, geralmente contraditórias; o segundo consiste nos conceitos normativos que colocam em evidência interpretações do sentido dos símbolos, e que tentam limitar e conter as suas possibilidades metafóricas. Esses conceitos são expressos nas doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas e, tipicamente, tomam a forma de uma oposição binária que afirma, de forma categórica e sem equívoco, o sentido do masculino e do feminino; o terceiro consiste na noção do político, onde a referência às mais diversas instituições e

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organizações sociais (como por exemplo, mercado de trabalho, educação etc.) é imprescindível, na medida em que todos exercem papel fundamental na construção do gênero; por fim, o quarto elemento consiste na identidade subjetiva, associada à ideia de legitimação do gênero que atribuímos ou que atribuem a nós, é geralmente afirmada em relação ao ‘par’ oposto (SCOTT, 1995).

O ponto de vista proposto por Scott nos permite entender que as desigualdades de gênero são agentes e produtos de um sistema de relações de poder baseadas num conjunto de papéis, identidades, comportamentos e estereótipos opostos atribuídos a mulheres e homens. As relações de gênero – assim como outras que estão também ligadas a contextos de relações de poder e desigualdade, como é o caso das relações travadas entre as classes sociais e os grupos étnicos, por exemplo – são produzidas e reproduzidas pelo contexto social, cultural, político e econômico. Enquanto a biologia determina o sexo, a sociedade e sua história elaboram as noções e as funções sociais representadas pelos gêneros, criam e recriam a ideia do que é ser homem e do que é ser mulher de acordo com as necessidades do seu tempo, de modo que, fica claro, portanto, que a ideia de gênero precisa ser compreendida no âmbito do seu movimento histórico, variável e mutável.

A partir do momento em que passamos a entender a construção do conceito de gênero enquanto parte de um movimento histórico, devemos questionar, também, a ideia de fixidez da naturalização a qual as relações de gênero, bem como as categorias ‘homem’ e ‘mulher’, foram historicamente submetidas. Neste sentido, Scott afirma que é necessário “explodir esta noção de fixidez” (1995, p. 87), e uma forma de dar conta disto é trazer à tona o caráter político das relações entre os gêneros, através de uma análise que questione a forma como foram construídas, afirmadas e reafirmadas e, assim, também, naturalizadas, pois, só assim, será possível reconhecer que as demarcações entre as categorias ‘homem’, ‘mulher’, ‘feminino’ e ‘masculino’ embora possam ter sido forçadas a parecerem fixas, na verdade, transbordam. Isto é, não são transcendentais, mas definem-se e redefinem-se de acordo com os contextos históricos, sociais, culturais, econômicos e, principalmente, políticos das sociedades humanas.

Deste modo, para que tenhamos uma noção abrangente destes processos e para que possamos lhes entender segundo sua dimensão política, se faz necessário observar como tais padronizações se afirmam nas mais diversas esferas sociais, como, por exemplo, no mercado de trabalho, no ambiente escolar, nos sistemas políticos, no ambiente familiar etc. O gênero, desta maneira, também pode ser pensado como uma categoria relacional, que precisa ser entendida em associação a outras categorias, mas não reduzida a elas.

O pensamento de Guacira Lopes Louro (2008) acerca da categoria de análise aqui discutida, também vale ser resgatado na medida em que nos ajuda a esclarecer ainda mais as ideias acima propostas, haja vista:

Gênero, bem como a classe, não é uma categoria pronta e estática. Ainda que sejam de naturezas diferentes e tenham especificidade própria, ambas as categorias partilham das características de serem dinâmicas, de serem construídas e passiveis de transformação. Gênero e classe não são também elementos impostos unilateralmente pela sociedade, mas com referência a ambos supõe-se que os sujeitos sejam ativos e ao mesmo tempo determinados, recebendo e respondendo às determinações e contradições sociais. Daí advém a importância de se entender o fazer-se homem ou mulher como um processo e não como um dado resolvido no nascimento. O masculino e o feminino são construídos através de práticas sociais masculinizantes ou feminizantes, em consonância com as concepções de cada sociedade. Integra essa concepção a idéia de que homens e mulheres constroem-se num processo de relação. (LOURO, 2008, p. 57).

4 Proposta metodológica

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A opção metodológica que aqui se faz para empregar os conteúdos na prática, refere-se à pedagogia histórico-crítica, que, amplamente difundida por Dermeval Savianni, entende a educação como:

O ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens. (SAVIANNI, 2005, p. 36).

Grosso modo, a educação é concebida como a mediadora das relações que se gestam no bojo

da prática social global. Ao problematizar as pedagogias nova e tradicional, observando em seu interior, dentre outros aspectos, a ausência de historicidade – a falta de percepção quanto aos condicionantes sócio-históricos da educação –, Saviani formula uma teoria pedagógica, em suas palavras, revolucionária, e que, impulsionada pela Teoria da Curvatura da Vara, tem como objetivo aprimorar a qualidade do ensino das camadas populares.

Neste sentido, o autor afirma que

[...] nós precisaríamos defender o aprimoramento exatamente do ensino destinado às camadas populares. Essa defesa implica a prioridade de conteúdo. Os conteúdos são fundamentais e sem conteúdos relevantes, conteúdos significativos, a aprendizagem deixa de existir, ela transforma-se num arremedo, ela transforma- se numa farsa. Parece-me, pois, fundamental que se entenda isso e que, no interior da escola, nós atuemos segundo essa máxima: a prioridade de conteúdos, que é a única forma de lutar contra a farsa do ensino. [...] porque o domínio da cultura constitui um instrumento indispensável para a participação política das massas. Se os membros das camadas populares não dominam os conteúdos culturais, eles não podem fazer valer os seus interesses, porque ficam desarmados contra os dominadores, que se servem exatamente desses conteúdos culturais para legitimar e consolidar a sua dominação. [...] o dominado não se liberta se ele não vier a dominar aquilo que os dominantes dominam. Então, dominar o que os dominantes dominam é condição de libertação. (SAVIANNI, 2002, p. 60).

A pedagogia revolucionária é fundada na igualdade essencial dos homens, busca instrumentos

para a instauração de uma sociedade igualitária, sendo que, para Saviani, a libertação das camadas socialmente marginalizadas caminha no sentido da apropriação das concepções propostas pela sua pedagogia revolucionária – cuja finalidade é orientada para a apropriação das ferramentas culturais necessárias à luta social que, diariamente, travam para se libertar das condições de exploração às quais se encontram submetidas. Deste modo, entendendo a igualdade como sendo portadora de um caráter dual – a saber, a igualdade formal e a real, em que a primeira delas diz respeito aos pressupostos constitucionais, ou seja, que todos os indivíduos são iguais perante a lei (suposição emergente do contratualismo), enquanto a segunda significa a distribuição igualitária dos conhecimentos disponíveis, implica no acesso das camadas trabalhadoras à escola –, a pedagogia histórico-crítica identifica a relação estabelecida entre sociedade e educação sustentada por um movimento dialético, de forma que, ao contrário do que pensavam as pedagogias escolanovistas e as tradicionais, a escola não é apenas determinada pela estrutura social, tampouco determinante principal das transformações sociais.

O método pedagógico proposto por Savianni decorre da prática social onde

[...] o professor e aluno se encontram igualmente inseridos ocupando, porém, posições distintas, condição para que travem uma relação fecunda na compreensão e encaminhamento da solução dos problemas postos pela prática social, cabendo aos momentos intermediários do método identificar as questões suscitadas pela prática social (problematização), dispor os instrumentos teóricos e práticos para a sua compreensão e solução (instrumentação) e viabilizar sua incorporação como elementos integrantes da própria vida dos alunos (catarse). (SAVIANNI, 2005, p. 36).

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Pressupõe-se, assim, a ação e a iniciativa dos alunos no processo educativo, mas sem desvincular-se da inciativa do professor, tampouco do diálogo com a cultura acumulada historicamente e da lógica do conhecimento sistematizado. Saviani opta por não construir as categorias de entendimento acerca da realidade concreta partindo unicamente da experiência do educando, por ponderar que professores e alunos se situam em patamares diferentes de experiência e de compreensão da prática social, considerando que ambos os atores deste processo atingem um nível de igualdade somente no momento em que os estudantes alcançam o ponto de chegada – que é a própria prática social –, ou seja, momento em que os aparatos culturais já se encontram ativados para promover a transformação social. De posse disto, é possível compreender a fala de Saviani no instante em que demarca “a educação [como] uma heterogeneidade real e uma homogeneidade possível: uma desigualdade no ponto de partida e uma igualdade no ponto de chegada” (2002, p. 72).

Diante de tais asserções, nas linhas que seguem, temos como proposta apresentar uma das inúmeras possibilidades de plano de trabalho pedagógico com o objetivo de conjugar e aplicar as proposições da pedagogia histórico-crítica associada à temática das relações e das desigualdades de gênero.

5 Proposta de plano de aula O objetivo que possuímos com esta aula (com duração prevista de 1h40min), está ligado,

principalmente, à necessidade de oferecer aos estudantes do Ensino Médio – qualquer que seja a série – instrumentos para desmistificar concepções preconceituosas e desiguais que os mesmos possuam acerca dos gêneros, enfatizando seu conteúdo sociocultural em contraposição ao discurso (que permeia o senso comum) da origem natural dos padrões culturais atribuídos aos diferentes sexos e, desta forma, romper com noções preconceituosas e desiguais que os mesmos possam apresentar.

Para tanto, a prática social inicial do conteúdo deve se basear na divisão dos alunos em até três grupos, solicitando que os mesmos atribuam pelo menos cinco características e papéis sociais aos homens e às mulheres. Em seguida, pedimos que os estudantes leiam as características por eles elencadas para que possamos problematizar as diferenças e/ou semelhanças existentes entre a prática social de mulheres e homens. Aqui, a ideia é a de possibilitar que os alunos relacionem a discussão que será desenvolvida com suas convicções acerca de si e dos outros. Deste modo, a aula deve seguir com os seguintes questionamentos:

Todos concordam com as proposições de cada grupo? Por quê?

De que forma observamos essas diferenças e/ou semelhanças entre homens e mulheres aplica-das no nosso dia a dia?

Existe igualdade entre as funções atribuídas para homens e mulheres?

As relações estabelecidas, assim como os papéis atribuídos aos homens e às mulheres, são, atu-almente, os mesmos que aqueles difundidos em épocas anteriores da história humana?

O que faz com que existam diferenças e desigualdades entre os gêneros? Na sequência, a partir das contribuições dos estudantes, pretende-se problematizar o discurso

que naturaliza as características culturalmente atribuídas aos diferentes sexos, e também as transformações históricas que a ideia e os papéis de gênero sofreram ao longo do tempo. Para tanto, tem-se como apoio charges, propagandas e exemplos nos quais aspectos imputados pela nossa cultura às mulheres são apresentados por homens, e vice-versa. No decorrer da problematização, deve-se apresentar dados recentes sobre a amplitude da violência contra a mulher – aproveitar este momento para esclarecer algumas questões sobre a Lei Maria da Penha e as Delegacias da Mulher –, além de apresentar outros números que ajudem na compreensão acerca das posições e do contingente de mulheres e homens no mercado de trabalho – dentre outras esferas da sociedade –, a fim de que os estudantes entendam que, embora aparentemente tenhamos avançado muito em relação a instauração de uma equidade de direitos para homens e mulheres, o preconceito persiste no imaginário social e ainda é gerador de desigualdades. Por fim, pretende-se apresentar algumas campanhas e movimentos

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sociais que elaboram discursos de como a desigualdade instituída entre homens e mulheres está presente em nosso cotidiano, que forma assume e também de que maneira se pode lutar contra ela.

A prática social e final da aula deve envolver o resultado da catarse dos estudantes em relação aos conteúdos explanados. O que se propõe neste momento é que os estudantes confeccionem cartazes – utilizando-se do material disponível – a partir daquilo que apreenderam da aula. Os cartazes devem sintetizar a aplicação diária do conhecimento obtido em sala de aula, de como a não existência da desigualdade de gênero pode ser benéfica para o convívio com a coletividade.

6 Conclusão

Apesar de entendermos as limitações que o sistema gratuito de ensino apresenta atualmente

quanto à disponibilidade de recursos humanos e materiais, ou mesmo da carência em relação ao tratamento de determinados temas nos documentos responsáveis por direcionar a educação, pensamos ser possível que o professor exerça sua autonomia, principalmente em relação aos conteúdos e às metodologias de ensino, para que discussões de extrema importância sejam contempladas em seus planos de trabalho, e que, assim, possamos ampliar o leque de conteúdos problematizados em sala de aula que influenciarão diretamente na formação de sujeitos mais tolerantes quanto à diversidade presente no convívio social.

Deste modo, compreendemos ainda que as Universidades e os Programas de Pesquisa vinculados às mesmas devem dar continuidade aos seus esforços em contribuir para a elaboração de materiais didáticos, de novas metodologias etc. para que o convívio da Sociologia com a Escola Média não volte a se enfraquecer e, tampouco, seja excluído. A problematização do ambiente escolar, das metodologias de ensino-aprendizagem, das dinâmicas que envolvem a produção de materiais didáticos e documentos que orientam e dão respaldo às discussões de conteúdos em sala de aula jamais podem se tornar ausentes no interior da Universidade. Escola e Universidade devem caminhar tão juntas quanto teoria e prática.

Notas 1 Acadêmica do quarto ano de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE – Campus de Toledo, e bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), subárea de Sociologia. Endereço eletrônico: [email protected] 2 Acadêmico do terceiro ano de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE – Campus de Toledo, e bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), subárea de Sociologia. Endereço eletrônico: [email protected] 3 Doutor em Ciência Política pela PUC/SP. Professor Adjunto do Curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Câmpus de Toledo. Endereço eletrônico: [email protected] 4 Utilizaremos a sigla DCEs para nos referimos às Diretrizes Curriculares da Educação Básica de Sociologia, promulgadas pela Secretaria de Estado da Educação do Paraná em 2008. 5 Utilizaremos a sigla DCGDS para nos referirmos às Diretrizes Curriculares de Gênero e Diversidade Sexual, promulgadas pela Secretaria de Estado da Educação do Paraná em 2010.

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2.3.3 Título da Segunda seção: sem negrito e fonte 14.

3.3 O texto deve ser corrido, sem a utilização de espaços entre os parágrafos, a tabulação (tecla Tab) no início dos parágrafos deve ser de 1,25 cm, o espaço entre as linhas deve ser o simples.

3.4 As citações textuais no corpo do texto devem seguir o padrão NOME, DATA, PÁGINA, ex.: De acordo com Fernandes (2005, p. 149) “........................” ou “...................”(FERNANDES, 2005, p. 149), estas citações textuais

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deverão obrigatoriamente vir entre aspas. Para as citações indiretas o padrão é NOME DATA, ex.: De acordo com Fernandes (2005) ou (FERNANDES, 2005).

3.5 Caso seja necessária a utilização de notas explicativas, o autor deverá fazer o uso de Notas de Fim. Estas deverão ser empregadas após o corpo do texto e anteceder as Referências.

3.6 As citações maiores de 5 linhas devem estar separadas do corpo do texto por um espaço simples, com recuo de 3 cm e com fonte Garamond tamanho 11.

3.7 O nome dos livros, revistas, teses, dissertações citados no corpo do texto devem estar em Itálico. Já os títulos de Artigos, Ensaios e Capítulos de Livros devem estar entre aspas.

3.8 As palavras em outra língua devem estar em itálico.

3.9 Não use sublinhado.

4. Padrões utilizados para Referências ao final do texto. (Atenção: inserir nas Referências APENAS as obras citadas no cor-po no texto).

4.1 Livros

BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. 9. ed., Campinas: Papirus, 2007.

4.2 Capítulos de livros

MARTINEZ, H. L. Função e conteúdo na filosofia do primeiro Wittgenstein. In. PEREZ, D. O. Ensaios de filo-sofia moderna e contemporânea. Cascavel: Edunioeste, 1999.

4.3 Artigos de Revista

PORTELA. L. C. Y. Conhecimento e interesse. O problema da emancipação. Revista Tempo da Ciência, n.2 v.1, p. 73-83, 1994.

Demais documentos referenciados, tais como Monografias, Periódicos, Anais, Documentos Eletrônicos, Documentos Jurídicos etc. devem seguir as Normas estabelecidas pela NBR 6023/2002.

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REVISTA TEMPO DA CIÊNCIA REVISTA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIAS SOCIAIS

EXPEDIENTE

Criada em 1994, a revista Tempo da Ciência é uma publicação semestral do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências Sociais da UNIOESTE/Campus de Toledo/PR.

Tempo da Ciência tem como objetivo fomentar o debate acadêmico de temas relevantes das Ciências Sociais.

Publica dossiês temáticos, com prazos definidos para o envio das submissões, além de uma seção livre de artigos e uma de resenhas, ambas com fluxo contínuo.

As contribuições à revista Tempo da Ciência devem ser inéditas e podem ser apresentadas em Português e Espa-nhol.

As avaliações são realizadas por pelo menos dois pareceristas ad hoc, especialistas no tema.

MISSÃO: A Revista Tempo da Ciência tem por missão estimular e difundir a produção científica nas temáticas pertinentes às Ciências Sociais.

CRITÉRIO DE PUBLICIDADE: A revista Tempo da Ciência não é comercializada e oferece acesso livre e inte-gral ao seu conteúdo. Sua política segue o princípio de levar gratuitamente o conhecimento científico ao público, democrati-zando o acesso ao saber.

DISTRIBUIÇÃO: A revista Tempo da Ciência, em seu formato impresso, é distribuída como permuta aos Pro-gramas de Pós-Graduação da área, bibliotecas e instituições de ensino superior em geral. Em seu formato digital, pode ser acessada livremente através do endereço eletrônico: www.unioeste/br/pos/cienciassociais.

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA Revista Tempo da Ciência Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE – Núcleo de Documentação, Informação e Pesquisa – NDP. Rua da Faculdade, 645 – Jardim La Salle 85.903-000 / Toledo – Paraná . E-mail: [email protected] ENDEREÇO PARA PERMUTA Biblioteca Universitária Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Rua da Faculdade, 645 – Jardim La Salle 85.903-000 / Toledo – Paraná E-mail: [email protected]

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APOIO TÉCNICO

NÚCLEO DE DOCUMENTAÇÃO, INFORMÇÃO E PESQUISA – NDP.

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO LATU SENSU EM

PLANEJAMENTO, GESTÃO E AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS.

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO LATU SENSU EM PLANEJAMENTO MUNICIPAL E POLÍTICAS PÚBLICAS.

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIAS SOCIAIS DA UNIOESTE

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