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Regras Do Método Sociológico

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obra de Durkheim

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  • PREFCIO DA PRIMEIRA EDIO

    to pouco habitual tratar os fatos sociais cientifica-mente que algumas das proposies contidas nesta obra correm o risco de surpreender o leitor. Entretanto, se exis-te uma cincia das sociedades, cabe esperar que ela no consista em uma simples parfrase dos preconceitos tradi-C(mais, mas nos mostre as coisas diferentemente de como as v o vulgo; pois o objeto de toda cincia fazer desco-bertas, e toda descoberta desconcerta mais ou menos as opinies aceitas. Portanto, a menos que se atribua ao sen-so comum, em sociologia, uma autoridade que h muito ele no possui nas outras cincias- e no se percebe de < mde lhe poderia advir essa autoridade -, cumpre que o socilogo tome decididamente o partido de no se intimi-dar com os resultados de suas pesquisas, se estas foram metodicamente conduzidas. Se buscar o paradoxo pr-prio de um sofista, fugir dele, quando imposto pelos fatos, denota um esprito sem coragem ou sem f na cincia.

    Infelizmente, mais fcil admitir essa regra em prin-cpio e teoricamente do que aplic-la com perseverana.

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  • XII f\S REGRAS DO MTODO SOCIOL(j'JCO

    Ainda estamos por demais acostumados a resolver essas questes com base nas sugestes do senso comum para que possamos facilmente mant-lo a distncia das discus-ses sociolgicas. Quando nos cremos livres dele, ele nos impe seus julgamentos sem que o percebamos. Somente uma prtica longa e especial capaz de prevenir seme-lhantes lapsos. Eis o que pedimos ao leitor para no per-der de vista. Que tenha sempre presente no esprito que suas maneiras de pensar mais costumeiras so antes con-trrias do que favorveis ao estudo cientfico dos fenme-nos sociais e, por conseguinte, que se acautele contra suas primeiras impresses. Se se entregar a elas sem resistn-cia, arrisca-se a julgar-nos sem nos haver compreendido. Assim, pode acontecer que nos acusem de ter querido ab-solver o crime, sob pretexto de fazermos dele um fen-meno de sociologia normal. No entanto, a objeo seria pueril. Pois, se normal que em toda sociedade haja cri-mes, no menos normal que eles sejam punidos. A insti-tuio de um sistema repressivo no um fato menos universal que a existncia de uma criminalidade, nem me-nos indispensvel sade coletiva. Para que no houves-se crimes, seria preciso um nivelamento das conscincias individuais que, por razes que veremos mais adiante, no possvel nem desejvel; mas, para que no houves-se represso, seria preciso uma ausncia de homogenei-dade moral que inconcilivel com a existncia de uma sociedade. Todavia, partindo do fato de que o crime de-testado e detestvel, o senso comum conclui erradamente que ele deveria desaparecer por completo. Com seu sim-plismo costumeiro, no concebe que uma coisa que re-pugna possa ter uma razo de ser til. No entanto, no h nenhuma contradio nisso. No h no organismo funes repugnantes cuja atividade regular necessria sade individual? Acaso no detestamos o sofrimento? E, no

  • 1'1.'/:FC/0 DA PRIMBRA EJJJO XIII

    < >I >stante, um ser que no o conhecesse seria um monstro. < > carter normal de uma coisa e os sentimentos de aver-.'>;to que ela inspira podem inclusive ser solidrios. A dor um fato normal, contanto que no seja apreciada; o crime < normal, contanto que seja odiado1. Nosso mtodo, por-Lmto, nada tem de revolucionrio. Num certo sentido, ;tt( essencialmente conservador, pois considera os fatos -"< >ciais como coisas cuja natureza, ainda que dcil e male-H'I, no modificvel vontade. Bem mais perigosa a utrina que v neles apenas o produto de combinaes tncntais, que um simples artifcio dialtico pode, num ins-Ltnte, subverter de cima a baixo!

    Do mesmo modo, como habitual representar-se a vida social como o desenvolvimento lgico de conceitos ideais, julgar-se- talvez grosseiramente um mtodo que Ltz a evoluo coletiva depender de condies objetivas, < lefinidas no espao, e no impossvel que nos acusem

  • XIV AS REGRAS DO MTODO SOG10LGJCO

    positivismo no seno uma conseqncia desse racio-nalismo2. S podemos ser tentados a superar os fatos, seja para explic-los, seja para dirigir seu curso, na medida em que os julgarmos irracionais. Se forem inteiramente inteli-gveis, eles bastam cincia e prtica: cincia, pois no h motivo para buscar fora deles suas razes de ser; prtica, pois seu valor til uma dessas razes. Parece-nos portanto, sobretudo nesta poca de misticismo renas-cente, que tal empreendimento pode e deve ser acolhido sem inquietude e mesmo com simpatia por todos aqueles que, embora divirjam de ns em certos pontos, partilham nossa f no futuro da razo.

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  • PREFCIO DA SEGUNDA EDIO

    Quando foi publicado pela primeira vez, este livro suscitou controvrsias bastante fortes. As idias correntes, como que desconcertadas, resistiram a princpio com tal gismo. Embora tenhamos dito expressamente e repetido de todas as maneiras que a vida social era inteiramente feita de representaes, acusaram-nos de eliminar o ele-mento mental da sociologia. Houve at quem chegasse a restaurar contra ns procedimentos de disusso que po-diam se considerar definitivamente desaparecidos. Impu-taram-nos, com efeito, certas opinies que no havamos

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  • XVI AS REGRAS DO MTODO SOCJOLGJCO

    sustentado, sob pretexto de que elas estavam "de acordo com nossos princpios". A experincia j havia mostrado, porm, todos os perigos desse mtodo que, permitindo construir arbitrariamente os sistemas em questo, permite tambm triunfar deles sem esforo.

    No acreditamos nos enganar ao dizer que, desde ento, as resistncias progressivamente diminuram. Claro que mais de uma proposio nos ainda contestada. Mas no poderamos nos surpreender nem nos queixar dessas contestaes salutares; no resta dvida de que nossas frmulas esto destinadas a ser reformadas no futuro. Re-sumo de uma prtica pessoal e forosamente restrita, elas devero necessariamente evoluir medida que se adquira uma experincia mais ampla e aprofundada da realidade social. Em matria de mtodo, alis, jamais se pode fazer seno o provisrio, pois os mtodos mudam medida que a cincia avana. Apesar disso, nestes ltimos anos, e a despeito das oposies, a causa da sociologia objetiva, especfica e metdica ganhou terreno sem interrupo. A fundao da revista Anne sociologique certamente contri-buiu em muito para esse resultado. Por abarcar a uma s vez todo o domnio da cincia, a Anne pde, melhor do que qualquer obra especial, dar uma idia do que a socio-logia pode e deve se tornar. Deste modo foi possvel ver que ela no estava condenada a permanecer um ramo da filosofia geral, sendo capaz, por outro lado, de entrar em contato com o detalhe dos fatos sem degenerar em pura erudio. Por isso, nunca seria demais homenagear o ar-dor e a dedicao de nossos colaboradores; foi graas a eles que essa demonstrao pde de fato ser tentada e pode prosseguir.

    No entanto, por reais que sejam tais progressos, in-contestvel que os enganos e as confuses passadas ain-da no se dissiparam completamente. Eis por que gostara-

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  • PREFCIO DA SEGUNDA EDIO XVII

    mos de aproveitar esta segunda edio para acrescentar algumas explicaes a todas aquelas que j demos, res-ponder a certas crticas e fazer sobre alguns pontos novos esclarecimentos.

    A proposio segundo a qual os fatos sociais devem ser tratados como coisas- proposio que est na base de nosso mtodo- das que mais tm provocado contra-dies. Consideraram paradoxal e escandaloso que assi-milssemos s realidades do mundo exterior as do mundo social. Era equivocar-se singularmente sobre o sentido e o alcance dessa assimilao, cujo objeto no rebaixar as formas superiores do ser s formas inferiores, mas, ao contrrio, reivindicar para as primeiras um grau de reali-dade pelo menos igual ao que todos reconhecem nas se-gundas. No dizemos, com efeito, que os fatos sociais so coisas materiais, e sim que so coisas tanto quanto as coi-sas materiais, embora de outra maneira.

    O que vem a ser uma coisa? A coisa se ope idia assim como o que se conhece a partir de fora se ope ao que se conhece a partir de dentro. coisa todo objeto do conhecimento que no naturalmente penctrvel inteli-gncia, tudo aquilo de que no podemos fazer uma no-o adequada por um simples procedimento de anlise mental, tudo o que o esprito no pode chegar a com-preender a menos que saia de si mesmo, por meio de ob-servaes e experimentaes, passando progressivamente dos caracteres mais exteriores e mais imediatamente aces-sveis aos menos visveis e aos mais profundos. Tratar os ratos de uma certa ordem como coisas no , portanto, ( lassific-los nesta ou naquela categoria do real; obser-

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  • XVIII AS REGRAS DO MTODO SOC10LGICO

    var diante deles uma certa atitude mental. abordar seu estudo tomando por princpio que se ignora absoluta-mente o que eles so e que suas propriedades caractersti-cas, bem como as causas desconhecidas de que estas de-pendem, no podem ser descobertas pela introspeco, mesmo a mais atenta.

    Assim definidos os termos, nossa proposio, longe de ser um paradoxo, poderia ser quase considerada um trusmo, se ainda no fosse com muita freqncia desco-nhecida nas cincias que tratam do homem, sobretudo em sociologia. Com efeito, pode-se dizer, neste sentido, que todo objeto de cincia uma coisa, com exceo tal-vez dos objetos matemticos; pois, quanto a estes, como ns mesmos os construmos, dos mais simples aos mais complexos, suficiente, para saber o que so, olhar den-tro de ns e analisar interiormente o processo mental de que resultam. Mas, quando se trata de fatos propriamente ditos, eles so para ns, no momento em que empreende-mos fazer-lhes a cincia, necessariamente coisas ignora-das, pois as representaes que fizemos eventualmente deles ao longo da vida, tendo sido feitas sem mtodo e sem crtica, so desprovidas de valor cientfico e devem ser deixadas de lado. Os prprios fatos da psicologia indi-vidual apresentam esse carter e devem ser considerados sob esse mesmo aspecto. Com efeito, ainda que nos se-jam interiores por definio, a conscincia que temos de-les no nos revela nem sua natureza interna nem sua g-nese. Ela nos faz conhec-los bem at um certo ponto, mas somente como as sensaes nos fazem conhecer o calor ou a luz, o som ou a eletricidade; ela nos oferece impresses confusas, passageiras, subjetivas, mas no no-es claras e distintas, conceitos explicativos desses fatos. E precisamente por essa razo que se fundou neste s-culo uma psicologia objetiva, cuja regra fundamental es-

  • IWEFG10 DA SEGUNDA EDIO XIX

    tudar os fatos mentais a partir de fora, isto , como coisas. O mesmo deve ser dito dos fatos sociais, e com mais ra-zo ainda; pois a conscincia no poderia ser mais com-petente para conhec-los do que para conhecer sua vida prpria3. Objetar-se- que, como eles so obra nossa, s precisamos tomar conscincia de ns mesmos para saber o que neles pusemos e de que maneira os formamos. Mas, em primeiro lugar, a maior parte das instituies so-ciais nos so legadas inteiramente prontas pelas geraes anteriores; no tomamos parte alguma em sua formao e, por conseqncia, no nos interrogando que podere-mos descobrir as causas que lhes deram origem. Alm disso, mesmo que tenhamos colaborado na gnese delas, s vislumbramos da maneira mais confusa, e muitas vezes mais inexata, as verdadeiras razes que nos determinaram a agir e a natureza de nossa ao. Mesmo quando se trata simplesmente de nossas atitudes privadas, conhecemos bastante mal as motivaes relativamente simples que nos guiam; cremo-nos desinteressados e na verdade agimos como egostas, julgamos obedecer ao dio quando cede-mos ao amor, razo quando somos escravos de precon-ceitos irrefletidos, etc. Assim, como teramos a faculdade de discernir com maior clareza as causas, muito mais complexas, de que procedem as atitudes da coletividade? Pois, de mais a mais, cada um s participa dela numa nfi-ma parte; temos uma multido de colaboradores e o que se passa nas outras conscincias nos escapa.

    Nossa regra no implica portanto nenhuma concep-~o metafsica, nenhuma especulao sobre o mago dos seres. O que ela reclama que o socilogo se coloque no mesmo estado de esprito dos fsicos, qumicos, fisiologis-tas, quando se lanam numa regio ainda inexplorada de seu domnio cientfico. preciso que; ao penetrar no mun-do social, ele tenha conscincia de que penetra no desco-

  • XX AS REGRAS DO MTODO SOG70LGICO

    nhecido; preciso que ele se sinta diante de fatos cujas leis so to insuspeitas quanto podiam ser as da vida, quando a biologia no estava constituda; preciso que ele esteja pronto a fazer descobertas que o surpreendero e o desconcertaro. Ora, a sociologia est longe de ter chegado a um grau de maturidade intelectual. Enquanto o cientista que estuda a natureza fsica tem o sentimento muito vivo das resistncias que ela lhe ope e que s so vencidas com dificuldade, parece que o socilogo se mo-ve em meio a coisas imediatamente transparentes para o esprito, tamanha a facilidade com que o vemos resolver as questes mais obscuras. No estado atual da cincia, no sabemos verdadeiramente o que so nem sequer as princi-pais instituies sociais, como o Estado ou a famlia, o di-reito de propriedade ou o contrato, a pena ou a responsa-bilidade; ignoramos quase completamente as causas de que dependem, as funes que cumprem, as leis de sua evoluo; apenas comeamos a vislumbrar algumas luzes em certos pontos. No entanto, basta percorrer as obras de sociologia para ver como raro o sentimento dessa igno-rncia e dessas dificuldades. Os socilogos no somente se consideram como que obrigados a dogmatizar sobre to-dos os problemas ao mesmo tempo, mas acreditam poder, em algumas pginas ou em algumas frases, atingir a essn-cia mesma dos fenmenos mais complexos. Vale dizer que semelhantes teorias exprimem, no os fatos que no poderiam ser esgotados com tal rapidez, mas a prenoo que deles tinha o autor, anteriormente pesquisa. Certa-mente a idia que fazemos das prticas coletivas, do que elas so ou do que devem ser, um fator de seu desenvol-vimento. Mas essa idia mesma um fato que, para ser convenientemente determinado, deve igualmente ser estu-dado desde fora. Pois o que importa saber no a manei-ra como tal pensador individualmente concebe tal institui-

  • PREFCIO DA SEGUNDA /:L)JO XXI

    o, mas a concepo que dela tem o grupo; somente essa concepo socialmente eficaz. Ora, ela no pode ser co-nhecida por simples observao interior, uma vez que no est inteira em nenhum de ns; preciso, pois, encontrar alguns sinais exteriores que a tornem sensvel. Alm do mais, ela no surgiu do nada; ela prpria um efeito de causas externas que preciso conhecer, para poder apre-ciar seu papel no futuro. Seja como for, sempre ao mes-mo mtodo que necessrio voltar.

    II

    Outra proposio no foi menos vivamente discutida que a precedente: a que apresenta os fenmenos sociais como exteriores aos indivduos. Concedem-nos de bom grado, atualmente, que os fatos da vida individual e os da vida coletiva so heterogneos em certo grau; pode-se at dizer que um entendimento, se no unnime, pelo mens muito geral, est em via de se formar sobre esse ponto. Quase no h mais socilogos que neguem sociologia toda e qualquer especificidade. Mas, como a sociedade no composta seno de indivduos, o senso comum jul-ga que a vida social no pode ter outro substrato que a conscincia individual; sem isso, ela parece solta no ar e pairando no vazio.

    Entretanto, o que se julga to facilmente inadmissvel quando se trata dos fatos sociais normalmente admitido nos outros reinos da natureza. Toda vez que elementos quaisquer, ao se combinarem, produzem, por sua combi-nao, fenmenos novos, cumpre conceber que esses fe-" ntnnenos esto situados, no nos elementos, mas no todo f< mnado por sua unio. A clula viva nada contm seno partculas minerais, assim como a sociedade nada mais

  • XXII AS REGRAS DO MTODO SOCIOLGICO

    contm alm dos indivduos; no entanto, evidentemente impossvel que os fenmenos caractersticos da vida resi-dam em tomos de hidrognio, de oxignio, de carbono e de azoto. Pois de que maneira os movimentos vitais pode-riam se produzir no seio de elementos no vivos? De que maneira, alm disso, as propriedades biolgicas se reparti-riam entre esses elementos? Elas no poderiam se verificar igualmente em todos, j que eles no so da mesma natu-reza; o carbono no o azoto, portanto no pode adquirir as mesmas propriedades nem desempenhar o mesmo pa-pel. Tambm no admissvel que cada aspecto da vida, cada um de seus caracteres principais, se encarne num grupo diferente de tomos. A vida no poderia se decom-por desta forma; ela una e, em conseqncia, s pode ter por sede a substncia viva em sua totalidade. Ela est no todo, no nas partes. No so as partculas no vivas da clula que se alimentam, se reproduzem, em suma, que vivem; a prpria clula, e somente ela. O que dizemos da vida poderia ser dito de todas as snteses possveis. A dureza do bronze no est nem no cobre, nem no esta-nho, nem no chumbo que serviram para form-lo e que so corpos brandos ou flexveis; est na mistura deles. A fluidez da gua, suas propriedades alimentares e outras no esto nos dois gases que a compem, mas na substn-cia complexa que formam por sua associao.

    Apliquemos esse princpio sociologia. Se, como nos concedem, essa sntese sui generis que constitui toda socie-dade produz fenmenos novos, diferentes dos que se passam nas conscincias solitrias, cumpre admitir que esses fatos especficos residem na sociedade mesma que os produz, e no em suas partes, isto , em seus mem-bros. Neste sentido, portanto, eles so exteriores s cons-cincias individuais, consideradas como tais, assim como os caracteres distintivos da vida so exteriores s substn-

  • PREFCIO DA SEGUNDA EDIO XXIII

    cias minerais que compem o ser vivo. No se pode reab-sorv-los nos elementos sem que haja contradio, uma vez que, por definio, eles supem algo mais do que es-ses elementos contm. Assim se acha justificada, por uma razo nova, a separao que estabelecemos mais adiante entre a psicologia propriamente dita, ou cincia do indiv-duo mental, e a sociologia. Os fatos sociais no diferem apenas em qualidade dos fatos psquicos; eles tm outro substrato, no evoluem no mesmo meio, no dependem das mesmas condies. O que no quer dizer que no se-jam, tambm eles, psquicos de certa maneira, j que to-dos consistem em modos de pensar ou de agir. Mas os es-tados da conscincia coletiva so de natureza diferente dos estados da conscincia individual; so representaes de uma outra espcie. A mentalidade dos grupos no a dos particulares; tem suas prprias leis. Portanto as duas cincias so to claramente distintas quanto podem ser duas cincias, no importam as relaes que possam exis-tir entre elas.

    Todavia, convm fazer sobre esse ponto uma distin-o que talvez lance alguma luz sobre o debate.

    Que a matria da vida social no possa se explicar por fatores puramente psicolgicos, ou seja, por estados da conscincia individual, o que nos parece de todo evi-dente. Com efeito, o que as representaes coletivas tradu-zem o modo como o grupo se pensa em suas relaes com os objetos que o afetam. Ora, o grupo no constitu-do da mesma maneira que o indivduo, e as coisas que o ;tfetam so de outra natureza. Representaes que no ex-primem nem os mesmos sujeitos, nem os mesmos objetos,

    n~1o poderiam depender das mesmas causas. Para com- preender a maneira como a sociedade representa a si mes-ma e o mundo que a cerca, a natureza da sociedade, e n;lo a dos particulares, que se deve considerar. Os smbo-

  • XXIV AS REGRAS DO MTODO SOOOL(JGJCO

    los com os quais ela se pensa mudam conforme o que ela . Se, por exemplo, ela se concebe como originada de um animal epnimo, que constitui um desses grupos espe-ciais chamados cls. Se o animal substitudo por um an-tepassado humano, mas igualmente mtico, que o cl mudou de natureza. Se, acima das divindades locais ou fa-miliares, ela imagina outras das quais julga depender, que os grupos locais e familiares que a compem tendem a se concentrar e a se unificar, e o grau de unidade que apresenta um panteo religioso corresponde ao grau de unidade atingido no mesmo momento pela sociedade. Se ela condena certos modos de conduta, que eles ofen-dem alguns de seus sentimentos fundamentais; e esses sentimentos esto ligados sua constituio, assim como os do indivduo a seu temperamento fsico e sua organi-zao mental. Deste modo, mesmo que a psicologia indi-vidual no tivesse mais segredos para ns, ela no poderia nos dar a soluo de nenhum desses problemas, j que eles se relacionam a ordens de fatos que ela ignora.

    Mas, uma vez reconhecida essa heterogeneidade, po-de-se perguntar se as representaes individuais e as re-presentaes coletivas no se assemelham pelo fato de ambas serem igualmente representaes, e se, devido a es-sas semelhanas, certas leis abstratas no seriam comuns aos dois reinos. Os mitos, as lendas populares, as concep-es religiosas de toda espcie, as crenas morais, etc. ex-primem uma realidade diferente da realidade individual; mas poderia acontecer que a maneira como essas realida-des se atraem ou se repelem, se agregam ou se desagre-gam, fosse independente de seu contedo e se devesse unicamente sua qualidade geral de representaes. Em-bora feitas de uma matria diferente, elas se comportariam em suas relaes mtuas como fazem as sensaes, as imagens ou as idias no indivduo. Acaso no se pode

  • PREFCIO DA SEGUNDA EDIO XXV

    pensar, por exemplo, que a contigidade e a semelhana, os contrastes e os antagonismos lgicos atuam da mesma forma, quaisquer que sejam as coisas representadas? Che-ga-se assim a conceber a possibilidade de uma psicologia inteiramente formal, que seria uma espcie de terreno co-mum psicologia individual e sociologia; e talvez esteja a a causa do escrpulo que sentem certos espritos em distinguir com demasiada nitidez essas duas cincias.

    No estado atual de nossos conhecimentos, a questo assim colocada no poderia, a rigor, encontrar soluo ca-tegrica. Com efeito, tudo o que sabemos, por um lado, sobre a maneira como se combinam as idias individuais se reduz a algumas proposies, muito gerais e muito va-gas, que chamamos comumente leis de associao de idias. E, quanto s leis da ideao coletiva, elas so ain-da mais completamente ignoradas. A psicologia social, que deveria ter por tarefa determin-las, no mais do que uma palavra que designa todo tipo de generalidades, vari-adas e imprecisas, sem objeto definido. Seria preciso in-vestigar, pela comparao dos temas mticos, das lendas e tradies populares, das lnguas, de que forma as repre-sentaes sociais se atraem ou se excluem, se fundem umas nas outras ou se distinguem, etc. Ora, se o proble-ma merece tentar a curiosidade dos pesquisadores, mal se pode dizer que ele foi abordado; e enquanto no se tiver encontrado algumas dessas leis, ser evidentemente im-possvel saber com certeza se elas repetem ou no as da psicologia individual.

    Entretanto, na falta de certeza, pelo menos prov-vel que, se semelhanas existel)1 entre essas duas espcies. de leis, as diferenas no devem ser menos acentuadas. Parece inadmissvel, com efeito, que a matria de que so feitas as representaes no influencie a maneira como (.'las se combinam. verdade que os psiclogos falam s

  • XXVI AS REGRAS DO M1DDO SOC10LG/CO

    vezes das leis de associao de idias como se elas fos-sem as mesmas para todos os tipos de representaes in-dividuais. Mas nada mais inverossmil do que isso; as imagens no se compem entre si como as sensaes, nem os conceitos como as imagens. Se a psicologia fosse mais avanada, ela certamente constataria que cada cate-goria de estados mentais possui leis formais que lhe so prprias. Sendo assim, deve-se a fortiori esperar que as leis correspondentes do pensamento social sejam to es-pecficas como esse pensamento mesmo. Na verdade, por pouco que se tenha praticado tal ordem de fatos, difcil no ter o sentimento dessa especificidade. ela, com efei-to, que nos faz parecer estranha a maneira to especial co-mo as concepes religiosas (que so coletivas por exce-lncia) se misturam, ou se separam, se transformam umas nas outras, dando origem a compostos contraditrios que contrastam com os produtos ordinrios de nosso pensa-mento privado. Se, portanto, como presumvel, certas leis da mentalidade social lembram efetivamente algumas daquelas estabelecidas pelos psiclogos, no que as pri-meiras so um simples caso particular das segundas, mas que entre ambas, ao lado de diferenas certamente impor-tantes, h similitudes que a abstrao poder extrair, e que so ainda ignoradas. Vale dizer que em caso nenhum a sociologia poderia tomar pura e simplesmente de em-prstimo psicologia esta ou aquela de suas proposies, para aplic-la tal e qual aos fatos sociais. O pensamento coletivo inteiro, em sua forma e em sua matria, deve ser estudado em si mesmo, por si mesmo, com o sentimento do que ele tem de especfico, e cabe deixar ao futuro a ta-refa de saber em que medida ele se assemelha ao pensa-mento individual. Esse inclusive um problema relacio-nado antes filosofia geral e lgica abstrata do que ao estudo cientfico dos fatos sociais 'i.

  • PREFCIO DA SEGUNDA EDIO XXVII

    111

    Resta-nos dizer algumas palavras da definio que demos dos fatos sociais em nosso primeiro captulo. Dis-semos que consistem em maneiras de fazer ou de pensar, reconhecveis pela particularidade de serem capazes de exercer sobre as conscincias particulares uma influncia coercitiva. Sobre esse ponto produziu-se uma confuso que merece ser assinalada.

    to habitual aplicar s coisas sociolgicas as formas do pensamento filosfico, que muitos viram nessa defini-o preliminar uma espcie de filosofia do fato social. Disseram que explicvamos os fenmenos sociais pela coero, do mesmo modo que Gabriel Tarde os explica pela imitao. No tnhamos uma tal ambio e no nos ocorreu sequer que pudessem atribu-la a ns, por ser contrria a todo mtodo. O que propnhamos era, no antecipar por uma viso filosfica as concluses da cin-cia, mas simplesmente indicar em que sinais exteriores possvel reconhecer os fatos que ela deve examinar, a fim de que o cientista saiba perceb-los onde se encontram e no os confunda com outros. Tratava-se de delimitar o campo da pesquisa tanto quanto possvel, no de se en-volver numa espcie de intuio exaustiva. Assim aceita-mos de muito bom grado a censura feita a essa definio, de no exprimir todos os caracteres do fato social e, por conseguinte, de no ser a nica possvel. No h nada de inconcebvel, com efeito, em que o fato social possa ser caracterizado de vrias maneiras diferentes; no h razo para que ele tenha apenas uma propriedade distintiva6. Tudo o que importa escolher a que parece a melhor pa- ra o objetivo proposto. bem possvel, at, empregar si-multaneamente vrios critrios, conforme as circunstncias. Ns mesmos reconhecemos ser s vezes necessrio isso

  • XXVIII AS REGRAS DO M::10DO SUG10LGJCU

    em sociologia, pois h casos em que o carter de coero no facilmente reconhecvel. O que preciso, j que se trata de uma definio inicial, que as caractersticas utili-zadas sejam imediatamente discernveis e possam ser per-cebidas antes da pesquisa. Ora, essa condio que no cumprem as definies que s vezes opusemos nossa. Foi dito, por exemplo, que o fato social "tudo o que se produz na e pela sociedade", ou ainda "aquilo que interes-sa e afeta o grupo de alguma forma". Mas s possvel sa-ber se a sociedade ou no a causa de um fato ou se esse fato tem efeitos sociais quando a cincia j avanou. Tais definies no poderiam, pois, determinar o objeto da in-vestigao que comea. Para que se possa utiliz-las, pre-ciso que o estudo dos fatos sociais j tenha avanado bas-tante e, portanto, que tenha sido descoberto algum outro meio preliminar de reconhec-los l onde se encontram.

    Ao mesmo tempo que consideraram nossa definio demasiado estreita, acusaram-na de ser demasiado vasta e de compreender quase todo o real. Com efeito, disseram, todo meio fsico exerce uma coero sobre os seres que sofrem sua ao, pois estes so obrigados, numa certa me-dida, a adaptar-se a ele. Mas entre esses dois modos de coero existe toda a diferena que separa um meio fsico de um meio moral. A presso exercida por um ou vrios corpos sobre outros corpos, ou mesmo sobre vontades, no poderia ser confundida com aquela que exerce a conscincia de um grupo sobre a conscincia de seus membros. O que a coero social tem de inteiramente es-pecial que ela se deve, no rigidez de certos arranjos moleculares, mas ao prestgio de que seriam investidas al-gumas representaes. verdade que os hbitos, indivi-duais ou hereditrios, tm, sob certos aspectos, a mesma propriedade. Eles nos dominam, nos impem crenas ou prticas. S que nos dominam desde dentro, pois esto in-

  • PREFOO DA SEGUNDA EDJ'O XXIX

    teiros em cada um de ns. Ao contrrio, as crenas e as prticas sociais agem sobre ns desde fora; assim, a in-fluncia exercida por uns e por outras , no fundo, muito diferente.

    Alis, no devemos nos surpreender de que os de-mais fenmenos da natureza apresentem, sob outras for-mas, o mesmo carter pelo qual definimos os fenmenos sociais. Essa similitude decorre simplesmente de ambos serem coisas reais. Pois tudo o que real tem uma nature-za definida que se impe, com a qual se deve contar e que, mesmo quando se consegue neutraliz-la, jamais completamente vencida. E, no fundo, a est o que h de mais essencial na noo de coero social. Pois tudo o que ela implica que as maneiras coletivas de agir e de pensar tm uma realidade exterior aos indivduos que, a cada momento do tempo, conformam-se a elas. So coi-sas que tm sua existncia prpria. O indivduo as encon-tra inteiramente formadas e no pode fazer que elas no existam ou que sejam diferentes do que so; assim, ele obrigado a lev-las em conta, sendo mais difcil (no dize-mos impossvel) modific-las na medida em que elas par-ticipam, em graus diversos, da supremacia material e mo-ral que a sociedade exerce sobre seus membros. Certa-mente o indivduo desempenha um papel na gnese delas. Mas, para que haja fato social, preciso que vrios indiv-duos, pelo menos, tenham juntado sua ao e que essa combinao tenha produzido algo novo. E, como essa sn-tese ocorre fora de cada um de ns (j que envolve uma pluralidade de conscincias), ela necessariamente tem por efeito fixar, instituir fora de ns certas maneiras de agir e certos julgamentos que no dependem de cada vontade-particular isoladamente. Tal como foi assinalado7, h uma palavra que exprime bastante bem essa maneira de ser muito especial (contanto que se estenda um pouco sua

  • XXX AS REGRAS DO MTODO SOCIOLGTCO

    acepo ordinria): a palavra instituio. Com efeito, sem alterar o sentido dessa expresso, pode-se chamar instituio todas as crenas e todos os modos de conduta institudos pela coletividade; a sociologia pode ento ser definida como a cincia das instituies, de sua gnese e de seu funcionamentoH.

    Sobre as outras controvrsias que este livro suscitou, parece-nos intil voltar a falar, pois no se referem a nada de essencial. A orientao geral do mtodo no depende dos procedimentos que se prefira empregar, seja para classificar os tipos sociais, seja para distinguir o normal do patolgico. Alis, essas contestaes com muita freqn-cia resultaram da recusa em admitir, ou de no se admitir sem reservas, nosso princpio fundamental: a realidade objetiva dos fatos sociais. nesse princpio, afinal, que tu-do repousa e se resume. Por isso nos pareceu til coloc-lo uma vez mais em evidncia, separando-ode toda ques-to secundria. E estamos seguros de que, ao atribuir-lhe tal preponderncia, permanecemos fiis tradio socio-lgica, pois, no fundo, dessa concepo que a sociolo-gia inteira emergiu. Com efeito, essa cincia s podia nas-cer no dia em que se pressentisse que os fenmenos so-ciais, embora no sejam materiais, no deixam de ser coi-sas reais que comportam o estudo. Para se chegar a pen-sar que havia motivos de pesquisar o que so, era preciso ter compreendido que eles existem de uma forma defini-da, que tm uma maneira de ser constante, uma natureza que no depende do arbtrio individual e da qual derivam relaes necessrias. Assim a histria da sociologia ape-nas um longo esforo para precisar esse sentimento, apro-fund-lo, desenvolver todas as conseqncias que ele im-plica. Mas, apesar dos grandes progressos que foram fei-tos neste sentido, veremos pela continuao deste traba-lho que ainda restam numerosas sobrevivncias do postu-

  • PREFCIO DA SEGUIVDA EDIO XXXI

    lado antropocntrico, o qual, aqui como alhures, barra o caminho cincia. Desagrada ao homem renunciar ao poder ilimitado que por muito tempo ele se atribuiu sobre a ordem social, e, por outro lado, parece-lhe que, se exis-tem realmente foras coletivas, ele estaria necessariamen-te condenado a sofr-las sem poder modific-las. isso que o leva a neg-las. Em vo, experincias repetidas lhe ensinaram que essa onipotncia, em cuja iluso se man-tm complacentemente, sempre foi para ele uma causa de fraqueza; que seu domnio sobre as coisas realmente s comeou a partir do momento em que reconheceu que elas tm uma natureza prpria, e se resignou a aprender com elas o que elas so. Expulso de todas as outras cin-cias, esse deplorvel preconceito se mantm obstinada-mente em sociologia. Portanto, no h nada mais urgente do que buscar libertar nossa cincia definitivamente dele. esse o principal objetivo de nossos esforos.

  • INTRODUO

    At o presente, os socilogos pouco se preocuparam em caracterizar e definir o mtodo que aplicam ao estudo dos fatos sociais. assim que, em toda a obra de Spencer, o problema metodolgico no ocupa nenhum lugar; pois a Introduo cincia social, cujo ttulo poderia dar essa iluso, destina-se a demonstrar as dificuldades e a possibi-lidade da sociologia, no a expor os procedimentos que ela deve utilizar. Stuart Mill, verdade, ocupou-se longa-mente da questo 1; mas ele no fez seno passar sob o crivo de sua dialtica o que Com te havia dito, sem acres-centar nada de verdadeiramente pessoal. Um captulo do Curso de filosofia positiva, eis praticamente o nico estu-do original e importante que possumos sobre o assunto2.

    Essa despreocupao aparente, alis, nada tem de surpreendente. De fato, os grandes socilogos cujos no-mes acabamos de mencionar raramente saram das gene-ralidades sobre a natureza das sociedades, sobre as rela-es do reino social e do reino biolgico, sobre a marcha geral do progresso; mesmo a volumosa sociologia de

  • XXXIV AS REGRAS DO MTODO SOC!OLC)GICO

    Spencer quase no tem outro objeto seno mostrar como a lei da evoluo universal se aplica s sociedades. Ora, para tratar essas questes filosficas, no so necessrios procedimentos especiais e complexos. Era suficiente, por-tanto, pesar os mritos comparados da deduo e da in-duo e fazer uma inspeo sumria dos recursos mais gerais de que dispe a investigao sociolgica. Mas as precaues a tomar na observao dos fatos, a maneira como os principais problemas devem ser colocados, o sentido no qual as pesquisas devem ser dirigidas, as prti-cas especiais que podem permitir chegar aos fatos, as re-gras que devem presidir a administrao das provas, tudo isso permanecia indeterminado.

    Uma srie de circunstncias felizes, entre as quais justo destacar a iniciativa que criou em nosso favor um curso regular de sociologia na Faculdade de Letras de Bordus, o qual possibilitou que nos dedicssemos desde cedo ao estudo da cincia social e inclusive fizssemos dele o objeto de nossas ocupaes profissionais, nos fez sair dessas questes demasiado gerais e abordar um certo nmero de problemas particulares. Assim, fomos levados, pela fora mesma das coisas, a elaborar um mtodo que julgamos mais definido, mais exatamente adaptado na-tureza particular dos fenmenos sociais. So esses resulta-dos de nossa prtica que gostaramos de expor aqui em conjunto e de submeter discusso. Claro que eles esto implicitamente contidos no livro que publicamos recente-mente sobre A diviso do trabalho social. Mas nos parece interessante destac-los, formul-los parte, acompanha-dos de suas provas e ilustrados de exemplos tomados tan-to dessa obra como de trabalhos ainda inditos. Assim podero julgar melhor a orientao que gostaramos de tentar dar aos estudos de sociologia.

  • CAPTULO I O QUE UM FATO SOCIAL?

    Antes de procurar qual mtodo convm ao estudo dos fatos sociais, importa saber quais fatos chamamos assim.

    A questo ainda mais necessria porque se utiliza essa qualificao sem muita preciso. Ela empregada correntemente para designar mais ou menos todos os fe-nmenos que se do no interior da sociedade, por menos que apresentem, com uma certa generalidade, algum inte-resse social. Mas, dessa maneira, no h, por assim dizer, acontecimentos humanos que no possam ser chamados sociais. Todo indivduo come, bebe, dorme, raciocina, e a sociedade tem todo o interesse em que essas funes se exeram regularmente. Portanto, se esses fatos fossem so-ciais, a sociologia no teria objeto prprio, e seu domnio se confundida com o da biologia e da psicologia.

    Mas, na realidade, h em toda sociedade um grupo determinado de fenmenos que se distinguem por ca-racteres definidos daqueles que as outras cincias da ml-tureza estudam.

    Quando desempenho minha tarefa de irmo, de ma-rido ou de cidado, quando executo os compromissos

  • 2 AS REGRAS DO MTODO SOC!Ol(;JcO

    que assumi, eu cumpro deveres que esto definidos, fora de mim e de meus atos, no direito e nos costumes. Ainda que eles estejam de acordo com meus sentimentos pr-prios e que eu sinta interiormente a realidade deles, esta no deixa de ser objetiva; pois no fui eu que os fiz, mas os recebi pela educao. Alis, quantas vezes no nos ocorre ignorarmos o detalhe das obrigaes que nos in-cumbem e precisarmos, para conhec-las, consultar o C-digo e seus intrpretes autorizados! Do mesmo mdo, as crenas e as prticas de sua vida religiosa, o fiel as encon-trou inteiramente prontas ao nascer; se elas existiam antes dele, que existem fora dele. O sistema de signos de que me sirvo para exprimir meu pensamento, o sistema de moedas que emprego para pagar minhas dvidas, os ins-trumentos de crdito que utilizo em minhas relaes co-merciais, as prticas observadas em minha profisso, etc. funcionam independentemente do uso que fao deles. Que se tomem um a um todos os membros de que composta a sociedade; o que precede poder ser repetido a propsi-to de cada um deles. Eis a, portanto, maneiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam essa notvel proprieda-de de existirem fora das conscincias individuais.

    Esses tipos de conduta ou de pensamento no ape-nas so exteriores ao indivduo, como tambm so dota-dos de uma fora imperativa e coercitiva em virtude da qual se impem a ele, quer ele queira, quer no. Certa-mente, quando me conformo voluntariamente a ela, essa coero no se faz ou pouco se faz sentir, sendo intil. Nem por isso ela deixa de ser um carter intrnseco des-ses fatos, e a prova disso que ela se afirma to logo ten-to resistir. Se tento violar as regras do direito, elas reagem contra mim para impedir meu ato, se estiver em tempo, ou para anul-lo e restabelec-lo em sua forma normal, se tiver sido efetuado e for reparvel, ou para fazer com que

  • O QUE UM FATO SOCIAL? 3

    eu o expie, se no puder ser reparado de outro modo. Em se tratando de mximas puramente morais, a conscincia pblica reprime todo ato que as ofenda atravs da vigiln-cia que exerce sobre a conduta dos cidados e das penas especiais de que dispe. Em outros casos, a coero menos violenta, mas no deixa de existir. Se no me sub-meto s convenes do mundo, se, ao vestir-me, no levo em conta os costumes observados em meu pas e em mi-nha classe, o riso que provoco, o afastamento em relao a mim produzem, embora de maneira mais atenuada, os mesmos efeitos que uma pena propriamente dita. Ade-mais, a coero, mesmo sendo apenas indireta, continua sendo eficaz. No sou obrigado a falar francs com meus compatriotas, nem a empregar as moedas legais; mas impossvel agir de outro modo. Se eu quisesse escapar a essa necessidade, minha tentativa fracassaria miseravel-mente. Industrial, nada me probe de trabalhar com pro-cedimentos e mtodos do sculo passado; mas, se o fizer, certo que me arruinarei. Ainda que, de fato, eu possa li-bertar-me dessas regras e viol-las com sucesso, isso ja-mais ocorre sem que eu seja obrigado a lutar contra elas. E ainda que elas sejam finalmente vencidas, demonstram suficientemente sua fora coercitiva pela resistncia que opem. No h inovador, mesmo afortunado, cujos em-preendimentos no venham a deparar com oposies desse tipo.

    ' Eis portanto uma ordem de fatos que apresentam ca-ractersticas muito especiais: consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir, exteriores ao indivduo, e que so dotadas de um poder de coero em virtude do qual esses fatos se impem a ele. Por conseguinte, eles no poderiam se confundir com os fenmenos orgnicos, j que consistem em representaes e em aes; nem com os fenmenos psquicos, os quais s tm existncia na

  • 4 AS REGRAS DO MTODO SOCIOLG'JCO

    conscincia individual e atravs dela. Esses fatos consti-tuem portanto uma espcie nova, e a eles que deve ser dada e reservada a qualificao de sociais. Essa qualifica-o lhes convm; pois claro que, no tendo o indivduo por substrato, eles no podem ter outro seno a socieda-de, seja a sociedade poltica em seu conjunto, seja um dos grupos parciais que ela encerra: confisses religiosas, es-colas polticas, literrias, corporaes profissionais, etc. Por outro lado, a eles s que ela convm; pois a palavra social s tem sentido definido com a condio de desig-nar unicamente fenmenos que no se incluem em ne-nhuma das categorias de fatos j constitudos e denomi-nados. Eles so portanto o domnio prprio da sociologia. verdade que a palavra coero, pela qual os definimos, pode vir a assustar os zelosos defensores de um individua-lismo absoluto. Como estes professam que o indivduo perfeitamente autnomo, julgam que o diminumos sem-pre que mostramos que ele no depende apenas de si mesmo. Sendo hoje incontestvel, porm, que a maior parte de nossas idias e de nossas tendncias no ela-borada por ns, mas nos vem de fora, elas s podem pe-netrar em ns impondo-se; eis tudo o que significa nossa definio. Sabe-se, alis, que nem toda coero social ex-clui necessariamente a personalidade individuaP.

    Entretanto, como os exemplos que acabamos de citar (regras jurdicas, morais, dogmas religiosos, sistemas finan-ceiros, etc.) consistem todos em crenas e em prticas constitudas, poder-se-ia supor, com base no que precede, que s h fato social onde h organizao definida. Mas existem outros fatos que, sem apresentar essas formas cris-talizadas, tm a mesma objetividade e a mesma ascendn-cia sobre o indivduo. o que chamamos de correntes so-ciais. Assim, numa assemblia, os grandes movimentos de entusiasmo ou de devoo que se produzem no tm por

  • O QlJh' fiM rA.TO SOC1AU 5

    lugar de origem nenhuma conscincia particular. Eles nos vm, a cada um de ns, de fora e so capazes de nos arre-batar contra a nossa vontade. Certamente pode ocorrer que, entregando-me a eles sem reserva, eu no sinta a presso que exercem sobre mim. Mas ela se acusa to lo-go procuro lutar contra eles. Que um indivduo tente se opor a uma dessas manifestaes coletivas: os sentimentos que ele nega se voltaro contra ele. Ora, se essa fora de coero externa se afirma com tal nitidez nos casos de re-sistncia, porque ela existe, ainda que inconsciente, nos casos contrrios. Somos ento vtimas de uma iluso que nos faz crer que elaboramos, ns mesmos, o que se imps a ns de fora. Mas, se a complacncia com que nos entre-gamos a essa fora encobre a presso sofrida, ela no a suprime. Assim, tambm o ar no deixa de ser pesado, embora no sintamos mais seu peso. Mesmo que, de nos-sa parte, tenhamos colaborado espontaneamente para a emoo comum, a impresso que sentimos muito dife-rente da que teramos sentido se estivssemos sozinhos. Assim, a partir do momento em que a assemblia se dis-solve, em que essas influncias cessam de agir sobre ns e nos vemos de novo a ss, os sentimentos vividos nos do a impresso de algo estranho no qual no mais nos reco-nhecemos. Ento nos damos conta de que sofremos esses sentimentos bem mais do que os produzimos. Pode acon-tecer at que nos causem horror, tanto eram contrrios nossa natureza. assim que indivduos perfeitamente ino-:-fensivos na maior parte do tempo podem ser levados a atos de atrocidade quando reunidos em multido. Ora, o que dizemos dessas exploses passageiras aplica-se identi-camente aos movimentos de opinio, mais durveis, qtte se produzem a todo instante a nosso redor, seja em toda a extenso da sociedade, seja em crculos mais restritos, so-bre assuntos religiosos, polticos, literrios, artsticos, etc.

  • 6 AS REGRAS DO MTODO SOCIOLGICO

    Alis, pode-se confirmar por uma experincia carac-terstica essa definio do fato social: basta observar a ma-neira como so educadas as crianas. Quando se obser-vam os fatos tais como so e tais como sempre foram, sal-ta aos olhos que toda educao consiste num esforo contnuo para impor criana maneiras de ver, de sentir e de agir s quais ela no teria chegado espontaneamen-te. Desde os primeiros momentos de sua vida, foramo-las a comer, a beber, a dormir em horrios regulares, for-amo-las limpeza, calma, obedincia; mais tarde, foramo-las para que aprendam a levar em conta outrem, a respeitar os costumes, as convenincias, foramo-las ao trabalho, etc., etc. Se, com o tempo, essa coero cessa de ser sentida, que pouco a pouco ela d origem a hbitos, a tendncias internas que a tornam intil, mas que s a substituem pelo fato de derivarem dela. verdade que, segundo Spencer, uma educao racional deveria repro-var tais procedimentos e deixar a criana proceder com toda a liberdade; mas como essa teoria pedaggica jamais foi praticada por qualquer povo conhecido, ela constitui apenas um desideratum pessoal, no um fato que se pos-sa opor aos fatos que precedem. Ora, o que torna estes ltimos particularmente instrutivos que a educao tem justamente por objeto produzir o ser social; pode-se por-tanto ver nela, como que resumidamente, de que maneira esse ser constituiu-se na histria. Essa presso de todos os instantes que sofre a criana a presso mesma do meio social que tende a model-la sua imagem e do qual os pais e os mestres no so seno os representantes e os in-termedirios.

    Assim, no sua generalidade que pode servir para caracterizar os fenmenos sociolgicos. Um pensamento que se encontra em todas as conscincias particulares, um movimento que todos os indivduos repetem nem por isso

  • O QUE UM FATO SOCIAL? 7

    so fatos sociais. *Se se contentaram com esse carter para defini-los, que os confundiram, erradamente, com o que se poderia chamar de suas encarnaes individuais. O que os constitui so as crenas, as tendncias e as prticas do grupo tomado coletivamente; quanto s formas que assu-mem os estados coletivos ao se refratarem nos indivduos, so coisas de outra espcie.* O que demonstra categorica-mente essa dualidade de natureza que essas duas ordens de fatos apresentam-se geralmente dissociadas. Com efei-to, algumas dessas maneiras de agir ou de pensar adqui-rem, por causa da repetio, uma espcie de consistncia que as precipita, por assim dizer, e as isola dos aconteci-mentos particulares **que as refletem**. Elas assumem as-sim um corpo, uma forma sensvel que lhes prpria, e constituem uma realidade sui generis, muito distinta dos fatos individuais que a manifestam. O hbito coletivo no existe apenas em estado de imanncia nos atos sucessivos que ele determina, mas se exprime de uma vez por todas, por um privilgio cujo exemplo no encontramos no reino biolgico, numa frmula que se repete de boca em boca, que se transmite pela educao, que se fixa atravs da es-crita. Tais so a origem e a natureza das regras jurdicas, morais, dos aforismos e dos ditos populares, dos artigos de f em que as seitas religiosas ou polticas condensam suas crenas, dos cdigos de gosto que as escolas literrias estabelecem, etc. ***Nenhuma dessas maneiras de agir ou de pensar se acha por inteiro nas aplicaes que os parti-

    "Tanto no a repetio que os constitui, que eles existem fora dos casos particulares nos quais se realizam. Cada fato social consiste c 1u numa crena, ou numa tendncia, ou numa prtica, que a do grupo tomado coletivamente e que muito distinta das formas em que da se refrata nos indivduos." (l

  • 8 AS REGRAS DO MTODO SOCIOLGICO

    culares fazem delas, j que elas podem inclusive existir sem serem atualmente aplicadas."'**

    Claro que essa dissociao nem sempre se apresenta com a mesma nitidez. Mas basta que ela exista de uma ma-neira incontestvel nos casos importantes e numerosos que acabamos de mencionar, para provar que o fato social distinto de suas repercusses individuais. Alis, mesmo que ela no seja imediatamente dada observao, pode-se com freqncia realiz-la com o auxlio de certos artifcios de mtodo*; inclusive indispensvel proceder a essa ope-rao se quisermos separar o fato social de toda mistura para observ-lo no estado de pureza*. Assim, h certas cor-rentes de opinio que nos impelem, com desigual intensi-dade, conforme os tempos e os lugares, uma ao casamen-to, por exemplo, outra ao suicdio ou a uma natalidade mais ou menos acentuada, etc. *Trata-se, evidentemente, de fatos sociais.* primeira vista, eles parecem insepar-veis das forrnas que assumem nos casos particulares. Mas a estatstica nos fornece o meio de isol-los. Com efeito, eles so representados, no sem exatido, pelas taxas de natali-dade, de nupcialidade, de suicdios, ou seja, pelo nmero que se obtm ao dividir a mdia anual total dos nascimen-tos, dos casamentos e das mortes voluntrias pelo total de homens em idade de se casar, de procriar, de se suicidar2 Pois, como cada uma dessas cifras compreende todos os casos particulares sem distino, as circunstncias indivi-duais que podem ter alguma participao na produo do fenmeno neutralizam-se mutuamente e, portanto, no contribuem para determin-lo. *O que esse fato exprime um certo estado da alma coletiva.

    Eis o que so os fenmenos sociais, desembaraados de todo elemento estranho.* Quanto s suas manifestaes

    * Frases que no figuram no texto inicial.

  • < J QUE UM FATO SOCIAL? 9

    privadas, elas tm claramente algo de social, j que repro-duzem em parte um modelo coletivo; mas cada uma delas depende tambm, e em larga medida, da constituio or-gnico-psquica do indivduo, das circunstncias particu-lares nas quais ele est situado. Portanto elas no so fe-nmenos propriamente sociolgicos. Pertencem simulta-neamente a dois reinos; poderamos cham-las sociops-quicas. Essas manifestaes interessam o socilogo sem constiturem a matria imediata da sociologia. No interior do organismo encontram-se igualmente fenmenos de na-tureza mista que cincias mistas, como a qumica biolgica, estudam.

    Mas, diro, um fenmeno s pode ser coletivo se for comum a todos os membros da sociedade ou, pelo me-nos, maior parte deles, portanto, se for geral. Certamen-te, mas, se ele geral, porque coletivo (isto , mais ou menos obrigatrio), o que bem diferente de ser coletivo por ser geral. Esse fenmeno um estado do grupo, que se repete nos indivduos porque se impe a eles. Ele est em cada parte porque est no todo, o que diferente de estar no todo por estar nas partes. Isso sobretudo evi-dente nas crenas e prticas que nos so transmitidas in-teiramente prontas pelas geraes anteriores; recebemo-las e adotamo-las porque, sendo ao mesmo tempo uma obra coletiva c uma obra secular, elas esto investidas de uma particular autoridade que a educao nos ensinou a reconhecer e a respeitar. Ora, cumpre assinalar que a imensa maioria dos fenmenos sociais nos chega dessa forma. Mas, ainda que se deva, em parte, nossa colabo-rao direta, o fato social da mesma natureza. Um senti-mento coletivo que irrompe numa assemblia no expti-me simplesmente o que havia de comum entre todos os sentimentos individuais. Ele algo completamente distin-to, conforme mostramos. uma resultante da vida co-

  • 10 AS REGRAS DO MTODO SOCJOLGICO

    mum, das aes e reaes que se estabelecem entre as conscincias individuais; e, se repercute em cada uma de-las, em virtude da energia social que ele deve precisa-mente sua origem coletiva. Se todos os coraes vibram em unssono, no por causa de uma concordncia es-pontnea e preestabelecida; que uma mesma fora os move no mesmo sentido. Cada um arrastado por todos.

    Podemos assim representar-nos, de maneira precisa, o domnio da sociologia. Ele compreende apenas um gru-po determinado de fenmenos. Um fato social se reco-nhece pelo poder de coero externa que exerce ou ca-paz de exercer sobre os indivduos; e a presena desse poder se reconhece, por sua vez, seja pela existncia de alguma sano determinada, seja pela resistncia que o fato ope a toda tentativa individual de fazer-lhe violn-cia. *Contudo, pode-se defini-lo tambm pela difuso que apresenta no interior do grupo, contanto que, conforme as observaes precedentes, tenha-se o cuidado de acres-centar como segunda e essencial caracterstica que ele existe independentemente das formas individuais que as-sume ao difundir-se.* Este ltimo critrio, em certos casos, inclusive mais fcil de aplicar que o precedente. De fa-to, a coero fcil de constatar quando se traduz exterior-mente por alguma reao direta da sociedade, como o caso em relao ao direito, moral, s crenas, aos costu-mes, inclusive s modas. Mas, quando apenas indireta, como a que exerce uma organizao econmica, ela nem sempre se deixa perceber to bem. A generalidade com-binada com a objetividade podem ento ser mais fceis de estabelecer. Alis, essa segunda definio no seno

    * "Pode-se defini-lo igualmente: uma maneira de pensar ou de agir que geral na exrenso do grupo, mas que existe independente-mente de suas expresses individuais." (R.P., p. 472.)

  • O QUE f: UM FATO SOCIAL? 11

    outra forma da primeira; pois, se uma maneira de se con-duzir, que existe exteriormente s conscincias indivi-duais, se generaliza, ela s pode faz-lo impondo-se3.

    Entretanto, poder-se-ia perguntar se essa definio completa. Com efeito, os fatos que nos forneceram sua ba-se so, todos eles, maneiras de fazer; so de ordem fisio-lgica. Ora, h tambm maneiras de ser coletivas, isto , fatos sociais de ordem anatmica ou morfolgica. A socio-logia no pode desinteressar-se do que diz respeito ao substrato da vida coletiva. No entanto, o nmero e a natu-reza das partes elementares de que se compe a socieda-de, a maneira como elas esto dispostas, o grau de coales-cncia a que chegaram, a distribuio da populao pela superfcie do territrio, o nmero e a natureza das vias de comunicao, a forma das habitaes, etc. no parecem capazes, num primeiro exame, de se reduzir a modos de agir, de sentir ou de pensar.

    Mas, em primeiro lugar, esses diversos fenmenos apresentam a mesma caracterstica que nos ajudou a defi-nir os outros. Essas maneiras de ser se impem ao indiv-duo tanto quanto as maneiras de fazer de que falamos. De fato, quando se quer conhecer a forma como uma so-ciedade se divide politicamente, como essas divises se compem, a fuso mais ou menos completa que existe entre elas, no por meio de uma inspeo material e por observaes geogrficas que se pode chegar a isso; pois essas divises so morais, ainda que tenham alguma hase na natureza fsica. somente atravs do direito p-blico que se pode estudar essa organizao, pois esse direito que a determina, assim como determina nossas re-b

  • 12 AS REGRAS DO MTODO SOCIOLGICO

    duos essa concentrao. No podemos escolher a forma de nossas casas, como tampouco a de nossas roupas; pe-lo menos, uma obrigatria na mesma medida que a ou-tra. As vias de comunicao determinam de maneira im-periosa o sentido no qual se fazem as migraes interio-res e as trocas, e mesmo a intensidade dessas trocas e dessas migraes, etc., etc. Em conseqncia, seria, quan-do muito, o caso de acrescentar lista dos fenmenos que enumeramos como possuidores do sinal distintivo do fato social uma categoria a mais; e, como essa enumera-o no tinha nada de rigorosamente exaustivo, a adio no seria indispensvel.

    Mas ela no seria sequer proveitosa; pois essas ma-neiras de ser no so seno maneiras de fazer consolida-das. A estrutura poltica de uma sociedade no seno a maneira como os diferentes segmentos que a compem se habituaram a viver uns com os outros. Se suas relaes so tradicionalmente prximas, os segmentos tendem a se confundir; caso contrrio, tendem a se distinguir. O tipo de habitao que se impe a ns no seno a maneira como todos ao nosso redor e, em parte, as geraes ante-riores se acostumaram a construir suas casas. As vias de comunicao no so seno o leito escavado pela prpria corrente regular das trocas e das migraes, correndo sempre no mesmo sentido, etc. Certamente, se os fen-menos de ordem morfolgica fossem os nicos a apresen-tar essa fixidez, poderamos pensar que eles constituem uma espcie parte. Mas uma regra jurdica um arranjo no menos permanente que um modelo arquitetnico, e no entanto um fato fisiolgico. Uma simples mxima moral , seguramente, mais malevel; porm ela possui formas bem mais rgidas que um simples costume profis-sional ou que uma moda. H assim toda uma gama de nuances que, sem soluo de continuidade, liga os fatos

  • O QUE ' UM FA10 SOOAL? 13

    estruturais mais caracterizados s correntes 'livres da vida social ainda no submetidas a nenhum molde definido. que entre os primeiros e as segundas apenas h diferen-as no grau de consolidao que apresentam. Uns e ou-tras so apenas vida mais ou menos cristalizada. Claro que pode haver interesse em reservar o nome de morfol-gicos aos fatos sociais que concernem ao substrato social, mas com a condio de no perder de vista que eles so ela mesma natureza que os outros. Nossa definio com-preender portanto todo o definido se dissermos: fato 5;ocial toda maneira de fazer, fixada ou no, suscetvel de exercer sobre o indivduo uma coero exterior; ou ainda, toda maneira de fazer que geral na extenso de uma so-ciedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existncia prpria, independente de suas man~festaes individuais4.

  • CAPTl JLO 11 REGRAS RELATIVAS OBSERVAO DOS FATOS SOCIAIS

    A primeira regra e a mais fundamental considerar ( Jsjtos sociais como coisas.

    No momento em que uma nova ordem de fenme-nos torna-se objeto de cincia, eles j se acham represen-tados no esprito, no apenas por imagens sensveis, mas por espcies de conceitos grosseiramente formados. Antes dos primeiros rudimentos da fsica e da qumica, os ho-mens j possuam sobre os fenmenos fsico-qumicos no-

  • 16 AS REGRAS DO MTODO SOCIOLGICO

    e mais ao nosso alcance do que as realidades a que cor-respondem, tendemos naturalmente a substituir estas lti-mas por elas e a fazer delas a matria mesma ele nossas especulaes. Em vez de obsenrar as coisas, de descrev-las, de compar-las, contentamo-nos ento em tomar conscincia ele nossas idias, em analis-las, em combin-las. Em vez de uma cincia de realidades, no fazemos mais do que uma anlise ideolgica. Por certo, essa anli-se no exclui necessariamente toda observao. Pode-se recorrer aos fatos para confirmar as noes ou as conclu-ses que se tiram. Mas os fatos s intervm ento secun-dariamente, a ttulo de exemplos ou de provas confirma-trias; eles no so o objeto da cincia. Esta vai das idias s coisas, no das coisas s idias.

    claro que esse mtodo no poderia dar resultados objetivos. Com efeito, essas noes, ou conceitos, no im-porta o nome que se queira dar-lhes, no so os substitu-tos legtimos das coisas. Produtos da experincia vulgar, eles tm por objeto, antes de tudo, colocar nossas aes em harmonia com o mundo que nos cerca; so formados pela prtica e para ela. Ora, uma representao pode ser capaz de desempenhar utilmente esse papel mesmo sen-do teoricamente falsa. *Coprnico*, h muitos sculos, dissipou as iluses de nossos sentidos referentes aos mo-vimentos dos astros; no entanto, ainda com base nessas iluses que regulamos correntemente a distribuio de nosso tempo. Para que uma idia suscite exatamente os movimentos que a natureza de uma coisa reclama, no necessrio que ela exprima fielmente essa natureza; basta que nos faa perceber o que a coisa tem de til ou de desvantajoso, de que modo pode nos servir, de que modo nos contrariar. Mas as noes assim formadas s apresen-

    * "Galileu" (R.P., p. 476.)

  • Nl:XlRASRELA71VAS OBSERVAO DOS FATOS SOOAIS 17

    ram essa justeza prtica de uma maneira aproximada e so-mente na generalidade dos casos. Quantas vezes elas so to perigosas como inadequadas! No portanto elabo-rando-as, pouco importa de que maneira o faamos, que chegaremos a descobrir as leis da realidade. Tais noes, ao contrrio, so como um vu que se interpe entre as coisas e ns, e que as encobre tanto mais quanto mais transparente julgamos esse vu.

    Tal cincia no apenas truncada; falta-lhe tambm matria de que se alimentar. Mal ela existe, desaparece, por assim dizer, transformando-se em arte. De fato, supe-se que essas noes contenham tudo o que h de essenci-;tl no real, j que so confundidas com o prprio real. < :om isso, parecem ter tudo o que preciso para que seja-mos capazes no s de compreender o que , mas de prescrever o que deve ser e os meios de execut-lo. Pois I mm o que est de acordo com a natureza das coisas; o que contrrio a elas mau, e os meios para alcanar um c evitar o outro derivam dessa mesma natureza. Portanto, se a dominamos de sada, o estudo da realidade presente n;lo tem mais interesse prtico, e, como esse interesse a r:tzo de ser de tal estudo, este se v desde ento sem fi-n;didade. A reflexo , assim, incitada a afastar-se do que c' objeto mesmo da cincia, a saber, o presente e o passa-li< 1, para lanar-se num nico salto em direo ao futuro. l:m vez de buscar compreender os fatos adquiridos e reali-l.:tdos, ela empreende imediatamente realizar novos, mais 1 c mformes aos fins perseguidos pelos homens. Quando se 1 Tl' saber em que consiste a essncia da matria, parte-se I c 1gc) em busca da pedra filosofai. Essa intromisso da arte tt:t cincia, que impede que esta se desenvolva, alis faci- liJ;tda pelas circunstncias mesmas que determinam o des-1 wrtar da reflexo cientfica. Pois, como esta s surge para ..... ;tlisbzer necessidades vitais, natural que se oriente para

  • 18 AS REGRAS DO M:TODO SOOOLGJCO

    a prtica. As necessidades que ela chamada a socorrer so sempre prementes, portanto a pressionam para obter resultados; elas reclamam, no explicaes, mas remdios.

    Essa maneira de proceder to conforme tendncia natural de nosso esprito que a encontramos inclusive na origem das cincias fsicas. ela que diferencia a alquimia da qumica, bem como a astrologia da astronomia. por ela que Bacon caracteriza o mtodo que os sbios de seu tempo seguiam e que ele combate. As noes que acaba-mos de mencionar so aquelas notiones vulgares ou prae-notiones1 que ele assinala na base de todas as cincias2 , nas quais elas tomam o lugar dos fatos5. So os ido/a, fan-tasmas que nos desfiguram o verdadeiro aspecto das coi-sas e que, no entanto, tomamos como as coisas mesmas. E por esse meio imaginrio no oferecer ao esprito ne-nhuma resistncia que este, no se sentindo contido por nada, entrega-se a ambies sem limite e julga possvel construir, ou melhor, reconstruir o mundo com suas foras apenas e ao sabor de seus desejos.

    Se foi assim com as cincias naturais, com mais forte razo tinha de ser com a sociologia. Os homens no espe-raram o advento da cincia social para formar idias sobre o direito, a moral, a famlia, o Estado, a prpria socieda-de; pois no podiam privar-se delas para viver. Ora, so-bretudo em sociologia que essas prenoes, para retomar a expresso de Bacon, esto em situao de dominar os espritos e de tomar o lugar das coisas. Com efeito, as coi-sas sociais s se realizam atravs dos homens; elas so um produto da atividade humana. Portanto, parecem no ser outra coisa seno a realizao de idias, inatas ou no, que trazemos em ns, seno a aplicao dessas idias s diversas circunstncias que acompanham as relaes dos homens entre si. A organizao da famlia, do contrato, da represso, do Estado, da sociedade vista assim como

  • REGRAS RELATIVAS OBSERVAO DOS rA'lOS SOCIAIS 19

    um simples desenvolvimento das idias que temos sobre a sociedade, o Estado, a justia, etc. Em conseqncia, es-ses fatos e outros anlogos s parecem ter realidade nas e pelas idias que so seu germe e que se tornam, com is-so, a matria prpria da sociologia.

    O que refora essa maneira de ver que, como os detalhes da vida social excedem por todos os lados a conscincia, esta no tem uma percepo suficientemente rorte desses detalhes para sentir sua realidade. No tendo em ns ligaes bastante slidas nem bastante prximas, tudo isso nos d facilmente a impresso de no se pren-der a nada e de flutuar no vazio, matria em parte irreal e indefinidamente plstica. Eis por que tantos pensadores no viram nos arranjos sociais seno combinaes artifi-ciais e mais ou menos arbitrrias. Mas, se os detalhes, se :ts formas concretas e particulares nos escapam, pelo me-nos nos representamos os aspectos mais gerais da exis-tncia coletiva de maneira genrica e aproximada, e so precisamente essas representaes esquemticas e sum-rias que constituem as prenoes de que nos servimos para as prticas correntes da vida. No podemos portanto pensar em pr em dvida a existncia delas, uma vez que ;t percebemos ao mesmo tempo que a nossa. Elas no ;tpenas esto em ns, como tambm, sendo um produto de experincias repetidas, obtm da repetii to resultante- uma espcie de ascendncia e de autori-d;tde. Sentimos sua resistncia quando buscamos libertar-rlS delas. Ora, no podemos deixar de considerar como t"l:tl o que se ope a ns. Tudo contribui, portanto, para q uc vejamos nelas a verdadeira realidade social.

    E, de fato, at o presente, a sociologia tratou mais ou rt~e.:nos exclusivamente no de coisas, mas de conceitos. ( :< >nlte, verdade, proclamou que os fenmenos sociais

  • 20 AS REGRAS DO M'YODO SOCiOlGICO

    so fatos naturais, submissos a leis naturais. Deste modo, ele implicitamente reconheceu seu carter de coisas, pois na natureza s existem coisas. Mas, quando, saindo dessas generalidades filosficas, ele tenta aplicar seu princpio e extrair a cincia nele contida, so idias que ele toma por objeto de estudo. Com efeito, o que faz a matria princi-pal de sua sociologia o progresso da humanidade no tempo. Ele parte da idia de que h uma evoluo cont-nua do gnero humano que consiste numa realizao sempre mais completa da natureza humana, e o problema que ele trata descobrir a ordem dessa evoluo. Ora, su-pondo que essa evoluo exista, sua realidade s pode ser estabelecida uma vez feita a cincia; portanto, s se pode fazer dessa evoluo o objeto mesmo da pesquisa se ela for colocada como uma concepo do esprito, no como uma coisa. E, de fato, to claro que se trata de uma representao inteiramente subjetiva que, na prtica, esse progresso da humanidade no existe. O que existe, a nica coisa dada observao, so sociedades particula-res que nascem, se desenvolvem e morrem independen-temente umas das outras. Se pelo menos as mais recentes continuassem as que as precederam, cada tipo superior poderia ser considerado como a simples repetio do tipo imediatamente inferior, com alguma coisa a mais; poder-se-ia, pois, alinh-las umas depois das outras, por assim di-zer, confundindo as que se encontram no mesmo grau de desenvolvimento, e a srie assim formada poderia ser vis-ta como representativa da humanidade. Mas os fatos no se apresentam com essa extrema simplicidade. Um povo que substitui outro no simplesmente um prolongamen-to deste ltimo com algumas caractersticas novas; ele outro, tem algumas propriedades a mais, outras a menos; constitui uma individualidade nova, e todas essas indivi-dualidades distintas, sendo heterogneas, no podem se

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    fundir numa mesma srie contnua, nem, sobretudo, nu-ma srie nica. Pois a seqncia das sociedades no po-deria ser figurada por uma linha geomtrica; ela asseme-lha-se antes a uma rvore cujos ramos se orientam em sentidos divergentes. Em suma, Comte tomou por desen-volvimento histrico a noo que dele possua e que no difere muito da que faz o vulgo. Vista de longe, de fato, a histria adquire bastante claramente esse aspecto serial e simples. Percebem-se apenas indivduos que se sucedem uns aos outros e marcham todos numa mesma direo, porque tm uma mesma natureza. Alis, como no se concebe que a evoluo social possa ser outra coisa que ro o desenvolvimento de uma idia humana, parece na-tural defini-la pela idia que dela fazem os homens. Ora, procedendo assim, no apenas se permanece na ideolo-gia, mas se d como objeto sociologia um conceito que nada tem de propriamente sociolgico.

    Esse conceito, Spencer o descarta, mas para substitu-i< l por outro que no formado de outro modo. Ele faz das sociedades, e no da humanidade, o objeto da cincia; s

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    nhecido.s. '"> s primeiras, ele d o nome de sociedades in-dustriais; s segundas, de militares, e pode-se dizer dessa distino que ela a idia-me de sua sociologia.

    Mas essa definio inicial enuncia como coisa o que to-s uma noo do esprito. Com efeito, ela se a pre-senta como a expresso de um fato imediatamente visvel e que basta observao constatar, j que formulada desde o incio da cincia como axioma. No entanto, im-possvel saber por uma simples inspeo se realmente a cooperao a essncia da vida social. Tal afirmao s cientificamente legtima se primeiramente passarmos em revista as manifestaes da existncia coletiva e se mostrarmos que todas so formas diversas da coopera-o. Portanto, ainda certa maneira de conceber a reali-dade social que substitui essa realidade'. O que assim definido no a sociedade, mas a idia que dela faz o sr. Spencer. E, se ele no tem o menor escrpulo em proce-der deste modo, que, tambm para ele, a sociedade no e no pode ser seno a realizao de uma idia, is-to , dessa idia mesma de cooperao pela qual a defi-ne7. Seria fcil mostrar que, em cada um dos problemas particulares que aborda, seu mtodo permanece o mes-mo. Assim, embora d a impresso de proceder empiri-camente, como os fatos acumulados em sua sociologia so empregados para ilustrar anlises de noes e no para descrever e explicar coisas, eles parecem estar ali apenas para figurar como argumentos. Em realidade, tu-do o que h de essencial na doutrina de Spencer pode ser imediatamente deduzido de sua definio da socieda-de e das diferentes formas de cooperao. Pois, se s pu-dermos optar entre uma cooperao tiranicamente im-posta e uma cooperao livre e espontnea, evidente-mente esta ltima que ser o ideal para o qual a huma-nidade tende e deve tender.

  • REGRAS RELATIVAS 0/J.Sl:.is empiristas como para os racionalistas, ela tudo o que l de verdadeiramente real em moral. No que concerne ;to detalhe das regras jurdicas e morais, elas no teriam, por assim dizer, existncia por si mesmas, mas seriam

  • 24 AS REGRAS DO MTODO SOUOLG!CO

    apenas essa noo fundamental aplicada s circunstncias particulares da vida e diversificada conforme os casos. Portanto, o objeto da moral no poderia ser esse sistema de preceitos sem realidade, mas a idia da qual decorrem e da qual no so mais que aplicaes variadas. Assim, todas as questes que a tica se coloca ordinariamente se referem, no a coisas, mas a idias; o que se trata de sa-ber em que consiste a idia do direito, a idia da moral, e no qual a natureza da moral e do direito considerados em si mesmos. Os moralistas ainda no chegaram con-cepo muito simples de que, assim como nossa repre-sentao das coisas sensveis provm dessas coisas mes-mas e as exprime mais ou menos exatamente, nossa re-presentao da moral provm do prprio espetculo das regras que funcionam sob nossos olhos e as figura esque-maticamente; de que, conseqentemente, so essas re-gras, e no a noo sumria que temos delas, que formam a matria da cincia, da mesma forma que a fsica tem co-mo objeto os corpos tais como existem, e no a idia que deles faz o vulgo. Disso resulta que se toma como base da moral o que no seno o topo, a saber, a maneira como ela se prolonga nas conscincias individuais e nelas repercute. E no apenas nos problemas mais gerais da cincia que esse mtodo seguido: ele permanece o mes-mo nas questes especiais. Das idias essenciais que estu-da no incio, o moralista passa s idias secundrias de fa-mlia, de ptria, de responsabilidade, de caridade, de justi-a; mas sempre a idias que se aplica sua reflexo.

    No diferente com a economia poltica. Ela tem por objeto, diz Stuart Mill, os fatos sociais que se produzem principalmente ou exclusivamente em vista da aquisio de riquezasH. Mas, para que os fatos assim definidos pu-dessem ser designados, enquanto coisas, observao do cientista, seria preciso pelo menos que se pudesse indicar

  • REGRAS REIA77VAS OBSI:'RVAO DOS FATOS SOCIAIS 25

    por qual sinal possvel reconhecer aqueles que satisfa-zem essa condio. Ora, no incio da cincia, no se tem sequer o direito de afirmar que existe algum, muito me-nos ainda se pode saber quais so. Em toda ordem de pesquisas, com efeito, somente quando a explicao dos fatos est suficientemente avanada que possvel estabelecer que eles tm um objetivo e qual esse objeti-vo. No h problema mais complexo nem menos suscet-vel de ser resolvido de sada. Portanto, nada nos garante de antemo que haja uma esfera da atividade social em que o desejo de riqueza desempenhe realmente esse pa-pel preponderante. Em conseqncia, a matria da eco-nomia poltica, assim compreendida, feita no de reali-dades que podem ser indicadas, mas de simples poss-veis, de puras concepes do esprito; a saber, fatos que o economista concebe como relacionados ao fim conside-rado, e tais como ele os concebe. Digamos, por exemplo, que ele queira estudar o que chama a produo. De sa-da, acredita poder enumerar os principais agentes com o auxlio dos quais ela ocorre e pass-los em revista. Por-tanto, ele no reconheceu a existncia desses agentes ob-servando de quais condies dependia a coisa que ele es-tuda; pois ento teria comeado por expor as experincias de que tirou essa concluso. Se, desde o incio da pesqui-sa e em poucas palavras, ele procede a essa classificao, que a obteve por uma simples anlise lgica. Parte da idia da produo; decompondo-a, descobre que ela im-plica logicamente as de foras naturais, ele trabalho, de instrumento ou de capital, e trata a seguir da mesma ma-neira essas idias derivadas9.

    A mais fundamental de todas as teorias econmicas, a do valor, manifestamente construda segundo o mes-mo mtodo. Se o valor fosse estudado como uma realida-de deve s-lo, veramos primeiro o economista indicar em

  • 26 AS NEGRAS LJO Mf:10DO SOCiOLGICO

    que se pode reconhecer a coisa chamada com esse nome, depois classificar suas espcies, buscar por indues me-tdicas as causas em funo das quais elas variam, com-parar enfim os diversos resultados para obter uma frmu-la geral. A teoria portanto s poderia surgir quando a cin-cia tivesse avanado bastante. Em vez disso, encontramo-la desde o incio. que, para faz-la, o economista con-tenta-se em recolher, em tomar conscincia da idia que ele tem do valor, ou seja, de um objeto suscetvel de ser trocado; descobre que ela implica a idia do til, do raro, etc., e com esses produtos de sua anlise que constri sua definio. Certamente ele a confirma por alguns exemplos. Mas, quando se pensa nos inumerveis fatos que semelhante teoria deve explicar, como atribuir o me-nor valor demonstrativo aos fatos, necessariamente muito raros, que so assim citados ao acaso da sugesto?

    Por isso, tanto em economia poltica como em moral, a parte da investigao cientfica muito restrita; a da ar-te, preponderante. Em moral, a parte terica se reduz a al-gumas discusses sobre a idia do dever, do bem e do di-reito. Mesmo essas especulaes abstratas no constituem uma cincia, pq.ra falar exatamente, j que tm por objeto determinar no o que , de fato, a regra suprema da mo-ralidade, mas o que ela deve ser. Do mesmo modo, o que mais preocupa os economistas a questo de saber, por exemplo, se a sociedade deve ser organizada segundo as concepes dos individualistas ou segundo as dos socia-listas; se melhor o Estado intervir nas relaes industri-ais e comerciais ou abandon-las inteiramente iniciativa privada; se o sistema monetrio deve ser o monometalis-mo ou o bimetalismo, etc., etc. As leis propriamente ditas so pouco numerosas nessas pesquisas; mesmo as que nos habituamos a chamar assim geralmente no merecem essa qualificao, no passando de mximas de ao, pre-

  • REGRAS RELA77VAS OH.Sf.1NAO lJOS J
  • 28 AS REGRAS DO MTODO SOCIOLcJGICO

    No entanto, os fenmenos sociais so coisas e devem ser tratados como coisas. Para demonstrar essa proposi-o, no necessrio filosofar sobre sua natureza, discutir as analogias que apresentam com os fenmenos dos rei-nos inferiores. Basta constatar que eles so o nico da-tum oferecido ao socilogo. coisa, com efeito, tudo o que dado, tudo o que se oferece ou, melhor, se impe observao. Tratar fenmenos como coisas trat-los na qualidade de data que constituem o ponto de partida da cincia. Os fenmenos sociais apresentam incontestavel-mente esse carter. O que nos dado no a idia que os homens fazem do valor, pois ela inacessvel; so os valores que se trocam realmente no curso de relaes econmicas. No esta ou aquela concepo da idia moral; o conjunto das regras que determinam efetiva-mente a conduta. No a idia do til ou da riqueza; toda a particularidade da organizao econmica. poss-vel que a vida social no seja seno o desenvolvimento de certas noes; mas, supondo que seja assim, essas no-es no so dadas imediatamente. No se pode portanto atingi-las diretamente, mas apenas atravs da realidade fe-nomnica que as exprime. No sabemos a pror que idias esto na origem das diversas correntes entre as quais se divide a vida social, nem se existe alguma; somente de-pois de t-las remontado at suas origens que saberemos de onde elas provm.

    preciso portanto considerar os fenmenos sociais em si mesmos, separados dos sujeitos conscientes que os concebem; preciso estud-los de fora, como coisas exte-riores, pois nessa qualidade que eles se apresentam a ns. Se essa exterioridade for apenas aparente, a iluso se dissipar medida que a cincia avanar e veremos, por assim dizer, o de fora entrar no de dentro. Mas a soluo no pode ser preconcebida e, mesmo que eles no tives-

  • NJ;"GRAS RELATIVAS OBSERVAO DOS FATOS SOCIAIS 29

    sem afinal todos os caracteres intrnsecos da coisa, deve-se primeiro trat-los como se os tivessem. Essa regra aplica-se portanto realidade social inteira, sem que haja motivos para qualquer exceo. Mesmo os fenmenos que mais parecem consistir em arranjos artificiais devem ser consi-derados desse ponto de vista. O carter convencional de 11ma prtica ou de uma instituio jamais deve ser presu-mido. Alis, se nos for permitido invocar nossa experin-cia pessoal, acreditamos poder assegurar que, procedendo dessa maneira, com freqncia se ter a satisfao de ver os fatos aparentemente mais arbitrrios apresentarem, ;tps uma observao mais atenta dos caracteres de cons-t:mcia e de regularidade, sintomas de sua objetividade.

    De resto, e de uma maneira geral, o que foi dito an-teriormente sobre os caracteres distintivos do fato social suficiente para nos certificar sobre a natureza dessa objeti-vidade e para provar que ela no ilusria. Com efeito, reconhece-se principalmente uma coisa pelo sinal de que 1o pode ser modificada por um simples decreto da von-t;tde. No que ela seja refratria a qualquer modificao. Mas, para produzir uma mudana nela, no basta querer, C preciso alm disso um esforo mais ou menos laborio-s< >, devido resistncia que ela nos ope e que nem sem-pre, alis, pode ser vencida. Ora, vimos que os fatos sociais tm essa propriedade. Longe de serem um produto de nossa vontade, eles a determinam de fora; so como mol-( ll's nos quais somos obrigados a vazar nossas aes. Com l'reqncia at, essa necessidade tal que no podemos vscapar a ela. Mas ainda que consigamos super-la, a ( 1posio que encontramos suficiente para nos advertir (I e que estamos em presena de algo que no depende ( k ns. Portanto, considerando os fenmenos sociais co-li I coisas, apenas nos conformaremos sua natureza.

  • 30 AS REGRAS DO MTODO SOOOU)GJCO

    Em suma, a reforma que se trata de introduzir em so-ciologia em todos os pontos idntica que transformou a psicologia nos ltimos trinta anos. Do mesmo modo que Comte e Spencer declaram que os fatos sociais so fatos de natureza, sem no entanto trat-los como coisas, as diferentes escolas empricas h muito haviam reconhe-cido o carter natural dos fenmenos psicolgicos, *em-bora continuassem a aplicar-lhes um mtodo puramente ideolgico*. Com efeito, os empiristas, *"'no menos que seus adversrios, procediam exclusivamente por intros-peco**. Ora, os fatos que s observamos em ns mes-mos so demasiado raros, demasiado fugazes, ***demasia-do maleveis para poderem se impor s noes corres-pondentes que o hbito fixou em ns e estabelecer-lhes a lei. Quando estas ltimas no so submetidas a outro con-trole, nada lhes faz contrapeso; por conseguinte, elas to-mam o lugar dos fatos*** e constituem a matria da cin-cia. Assim, nem Locke, nem Condillac consideraram os fe-nmenos psquicos objetivamente. No a sensao que eles estudam, mas uma certa idia da sensao. Por isso, ainda que sob certos aspectos eles tenham preparado o advento da psicologia cientfica, esta s surgiu realmente bem mais tarde, quando se chegou finalmente concep-o de que os estados de conscincia podem e devem ser considerados de fora, e no do ponto de vista da cons-cincia que os experimenta. Tal foi a grande revoluo

    "e declarado que eles deviam ser estudados segundo o mtodo das cincias fsicas. Entretanto. na realidade, todos os trabalhos que lhes

  • REGRAS RF.!A17VAS OBSERVA:riO DOS FATOS SOCIAiS 31

    que se efetuou nesse tipo de estudos. Todos os procedi-mentos particulares, todos os mtodos novos que enri-queceram essa cincia, no so mais que meios diversos de realizar mais completamente essa idia fundamental. o mesmo progresso que resta fazer em sociologia. pre-ciso que ela passe do estgio subjetivo, raramente ultra-passado at agora, fase objetiva.

    Essa passagem, alis, menos difcil de efetuar do que em psicologia. Com efeito, os fatos psquicos so na-turalmente dados como estados do sujeito, do qual eles no parecem sequer separveis. Interiores por definio, parece que s se pode trat-los como exteriores violen-tando sua natureza. preciso no apenas um esforo de abstrao, mas todo um conjunto de procedimentos e de artifcios para chegar a consider-los desse vis. Ao con-trrio, os fatos sociais tm mais naturalmente e mais ime-diatamente todas as caractersticas da coisa. O direito existe nos cdigos, os movimentos da vida cotidiana se inscrevem nos dados estatsticos, nos monumentos da his-tria, as modas nas roupas, os gostos nas obras de arte. Em virtude de sua natureza mesma eles tendem a se cons-tituir fora das conscincias individuais, visto que as domi-nam. Para v-los sob seu aspecto de coisas, no preciso, portanto, tortur-los com engenhosidade. Desse ponto de vista, a sociologia tem sobre a psicologia uma sria vanta-gem que no foi percebida at agora e que deve apressar seu desenvolvimento. Os fatos talvez sejam mais difceis de interpretar por serem mais complexos, mas so mais fceis de atinar. A psicologia, ao contrrio, no apenas tem dificuldade de elabor-los, como tambm de perce-b-los. Em conseqncia, lcito imaginar que, no dia em que esse princpio do mtodo sociolgico for unanime-mente reconhecido e praticado, veremos a sociologia pro-gredir com uma rapidez que a lentido atual de seu de-

  • 32 AS REGRAS DO MTODO SOGJOLGICO

    senvolvimento no faria supor, e inclusive reconquistar a dianteira que a psicologia deve unicamente sua anterio-ridade histricaio.

    II

    Mas a experincia de nossos predecessores nos mos-trou que, para assegurar a realizao prtica da verdade que acaba de ser estabelecida, no basta oferecer uma de-monstrao terica nem mesmo compenetrar-se dela. O esprito tende to naturalmente a desconhec-la que re-cairemos inevitavelmente nos antigos erros, se no nos submetermos a uma disciplina rigorosa, cujas regras prin-cipais, corolrios da precedente, iremos formular.

    1) O primeiro desses corolrios que: preciso des-cartar sistematicamente todas as prenoes. Uma demons-trao especial dessa regra no necessria; ela resulta de tudo o que dissemo"s anteriormente. Alis, ela a base de todo mtodo cientfico. A dvida metdica de Descartes, no fundo, no seno uma aplicao disso. Se, no mo-mento em que vai fundar a cincia, Descartes impe-se como lei pr em dvida todas as idias que recebeu ante-riormente, que ele quer empregar apenas conceitos cien-tificamente elaborados, isto , construdos de acordo com o mtodo que ele institui; todos os que ele obtm de uma outra origem devem ser, portanto, rejeitados, ao menos provisoriamente. J vimos que a teoria dos dolos, em Ba-con, no tem outro sentido. As duas grandes doutrinas que freqentemente foram opostas uma outra, concor-

    . dam nesse ponto essencial. preciso, portanto, que o so-cilogo, tanto no momento em que determina o objeto de suas pesquisas, como no curso de suas demonstraes, proba-se resolutamente o emprego daqueles conceitos

  • NEGRAS Rl:'LA11VAS OBSERVAO DOS FATOS SOCIAIS 33

    que se formaram fora da cincia e por necessidades que nada tm de cientfico. preciso que ele se liberte dessas falsas evidncias que dominam o esprito do vulgo, que se livre, de uma vez por todas, do jugo dessas categorias empricas que um longo costume acaba geralmente por tornar tirnicas. Se a necessidade o obriga s vezes a re-correr a elas, pelo menos que o faa tendo conscincia de seu pouco valor, a fim de no as chamar a desempenhar na doutrina um papel de que no so dignas.

    O que torna essa libertao particularmente difcil em sociologia que o sentimento com freqncia se introme-te. Apaixonamo-nos, com efeito, por nossas crenas pol-ticas e religiosas, por nossas prticas morais, muito mais do que pelas coisas do mundo fsico; em conseqncia, esse carter passional transmite-se maneira como conce-bemos e como nos explicamos as primeiras. As idias que fazemos a seu respeito nos so muito caras, assim como seus objetos, e adquirem tamanha autoridade que no su-portam a contradio. Toda opinio que as perturba tra-lada como inimiga. Por exemplo, uma proposio no es-t de acordo com a idia que se faz do patriotismo, ou da dignidade individual? Ento ela negada, no importam as provas sobre as quais repousa. No se pode admitir que seja verdadeira; ela rejeitada categoricamente, e a paixo, para justificar-se, no tem dificuldade de sugerir razes que so consideradas facilmente decisivas. Essas noes podem mesmo ter tal prestgio que no toleram sequer um exame cientfico. O simples fato de submet-Lts, assim como os fenmenos que elas exprimem, a uma ;1nlise fria e seca, revolta certos espritos. Quem decide l'Studar a moral a partir de fora e como uma realidade ex-terior visto por esses delicados como desprovido de sl'nso moral, da mesma forma que o vivissecionista pare-l'l' ao vulgo desprovido da sensibilidade comum. Em vez

  • 34 AS REGRAS DO MTODO SOOOLGJCO

    *de admitir que esses sentimentos so do domnio a* da cincia, a eles que se julga dever apelar para fazer a cin-cia das coisas s quais se referem. "Infeliz o sbio'', escre-ve um eloqente historiador das religies, "que aborda as coisas de Deus sem ter no fundo de sua conscincia, no fundo indestrutvel de seu ser, l onde dorme a alma dos antepassados, um santurio desconhecido do qual se ele-va por instantes um perfume de incenso, uma linha de salmo, um grito doloroso ou triunfal que, criana, lanou ao cu junto com seus irmos e que o repe em sbita comunho com os profetas de outrora!1 1"

    Nunca nos ergueremos com demasiada fora contra essa doutrina mstica que - como todo misticismo, alis -no , no fundo, seno um empirismo disfarado, nega-dor de toda cincia. Os sentimentos que tm como obje-tos as coisas sociais no tm privilgio sobre os demais, pois no outra sua origem. Tambm eles so formados historicamente; so um produto da experincia humana, mas de uma experincia confusa e inorganizada. Eles no se devem a no sei que antecipao transcendental da rea-lidade, mas so a resultante de todo tipo de impresses e de emoes acumuladas sem ordem, ao acaso das cir-cunstncias, sem interpretao metdica. Longe de nos proporcionarem luzes superiores s luzes racionais, eles so feitos exclusivamente de estados for