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História das idéias filosóficas na Bahia (séculos XVI a XIX)

História das idéias filosóficas na Bahia (séculos XVI ...cdpb.org.br/historia_das_ideias_filosoficas_na_bahia.pdf · Ao livro do prof. Reale seguiu-se a História das idéias

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Histria das idias filosficas na Bahia (sculos XVI a XIX)

FRANCISCO PINHEIRO LIMA JNIORDINORAH DARAJO BERBERT DE CASTRO

Salvador Bahia

2006

NA BAHIA

HISTRIA

(sculos XVI a XIX)

CDPB

2006 by Francisco Pinheiro Lima Jniore Dinorah dArajo Berbert de Castro.

Todos os direitos reservados.Foi feito o depsito legal.

Capa: Esmeraldo CoelhoFolha de rosto: Paulo LachenmayerEditorao e indexao: Edies IanamReviso: Edinlia Maria de Almeida

Centro de Documentao do Pensamento Brasileiro CDPBRua Miguel Calmon, 57, Edf. Conde Pereira Marinho, 3 andarCEP 40015-010 Salvador, BA Tel. (71) 3242-6302centro [email protected]

Lima Jnior, Francisco Pinheiro.

Histria das idias filosficas na Bahia (sculos XVI a XIX) / FranciscoPinheiro Lima Jnior; Dinorah dArajo Berbert de Castro. Salvador: CDPB,2006.

774 p.

Bibliografia.

ISBN 85-7059-005-9

1. Filosofia Bahia. 2. Histria Filosofia sculos XVI a XIX. I. Castro,Dinorah dArajo Berbert de. II. Ttulo.

CDU 141(091)(813-8)

APRESENTAO

Histria das idias filosficas na Bahia (sculos XVI a XIX) fruto de uma pesquisa que se desenvolve h mais de

trs lustros. Em 1973, o prof. Francisco Pinheiro apresentava aoIII Congresso de Histria da Bahia uma comunicao acerca doscompndios de Filosofia adotados na Provncia, no sculo anterior,que veio a preencher uma lacuna decisiva no estudo de uma dasmais relevantes vertentes da nossa meditao, o tradicionalismo. Asdescobertas ali contidas foram devidamente valorizadas por diversosestudiosos, o que certamente o ter animado a prosseguir na inves-tigao. J agora, contando com a colaborao de Dinorah dArajoBerbert de Castro, Pinheiro realiza um autntico inventrio do quehavia de discusso filosfica nas teses defendidas na Faculdade deMedicina ao longo do sculo XIX. E, em 1977, ambos reeditama famosa carta do cnego Antonio Joaquim das Mercs, escrita em1851, na qual d conta do ensino de Filosofia na Bahia e em outrasprovncias do Nordeste. Estava plenamente esboado o roteiro queiria desembocar no livro que ora entregue ao pblico.

A necessidade de estudar o pensamento filosfico nas provnciashavia sido encarecida pelo prof. Miguel Reale, que procurara dar oexemplo ao publicar Filosofia em So Paulo (2 ed., Grijalbo/EDUSP,1976). A investigao que se desenvolvia, sob o patrocnio do Insti-tuto Brasileiro de Filosofia, conseguira em cerca de duas dcadasestabelecer as linhas gerais do debate filosfico no pas, promovendoigualmente a reedio dos textos mais importantes e assegurando,por esse meio, que se efetivasse o ensino da disciplina Filosofia Brasi-leira na universidade. Contudo, o estudo monogrfico devia prosse-guir, no s para completar o quadro delineado, mas igualmente parapermitir imprescindveis correes. A relao entre as duas ordensde questes havia sido magistralmente fixada por Roque Spencer

A

6 Antonio Paim

Maciel de Barros. Aps indicar que os progressos alcanados namatria no nos impediam de verificar que h monografias e mono-grafias por fazer, temas e temas a esclarecer, passos que, ao seremempreendidos, nos dariam aproximaes maiores, com uma visoque, se no for mais verdadeira, ser ao menos mais completa.Entretanto, o trabalho monogrfico, prossegue, exige certas balizasgerais, certos parmetros, certas hipteses de trabalho, para que opesquisador daquele segmento que escolheu no tempo no se percana mncia e, vendo por demais prxima a rvore, acabe por noperceber a floresta. Assim, obras gerais e obras monogrficas exer-cem uma recproca influncia: a monografia corrige a viso geral,a viso geral enquadra melhor o segmento. Essa mesma relaopreside o estudo que toma ao pas em seu conjunto e aquele queconsidera, isoladamente, essa ou aquela provncia.

Ao livro do prof. Reale seguiu-se a Histria das idias filosficase polticas em Minas Gerais no sculo XIX, de Jos Carlos Rodrigues,aparecido nessa mesma coleo (Reconquista do Brasil, 2 srie,vol. 97). A Bahia era, entretanto, uma pea-chave, desde que foi ocentro diretor fundamental da colonizao ao longo dos trs primei-ros sculos, devendo ser ali, por isto mesmo, mais evidentes as linhasde continuidade da meditao portuguesa.

Francisco Pinheiro e Dinorah dArajo Berbert de Castro reali-zaram um trabalho exaustivo, difcil mesmo de ser apresentado vista das dimenses que assumiu. Quer me parecer, entretanto, queencontraram uma soluo muito feliz.

O livro traa, preliminarmente, um amplo panorama da evolu-o cultural na Bahia desde os primeiros tempos da colonizao,detendo-se em seus ingredientes mais destacados, como o caldea-mento de raas, as instituies e a luta poltica. Nesta primeiraparte, que denominam de Um filosofar difuso, estudam o saber desalvao, que , por assim dizer, a herana principal que nos foilegada na fase em que Portugal resistia poca Moderna.

O saber de salvao uma categoria aplicada ao Brasil porLuiz Washington Vita (1921-1968), em seus estudos pioneiros, paradestacar a prevalncia da pregao de ndole moral, em nossosprimeiros pensadores, sempre na mais estrita dependncia dareligio. O texto paradigmtico apontado pelo prprio Vita eraO peregrino da Amrica, de Nuno Marques Pereira (1652-1728),

7Apresentao

livro que merecera sucessivas edies no sculo XVIII. Com a inves-tigao levada a cabo por Francisco Pinheiro e Dinorah dArajoBerbert de Castro adquirimos do evento uma viso renovada emuito mais ampla.

Segundo os autores desta obra, o modelo seguido por MarquesPereira que escrevera sua obra na Bahia foi a Histria dopredestinado peregrino (Lisboa, 1682; vora, 1685; Lisboa, 1724) deAlexandre de Gusmo (1629-1724), padre jesuta que viveu grandeparte de sua vida no Brasil, tendo sido dignatrio da ordem naBahia e fundador do seminrio de Cachoeira. Outra inovao impor-tante a identificao de certa continuidade dessa mesma viso, oque se pode inferir de uma obra aparecida em 1870, que estudam,denominada O alforge da boa razo, de Bruno Seabra. A perspectivamoralizante, de cunho religioso, inspirou-se tambm em um textode Benjamin Franklin (1706-1790), difundido na Bahia no sculoXIX: A cincia do bom homem Ricardo. No opsculo de Franklin,como registram os autores, h a mesma tese to valorizada porMax Weber na sua vinculao do protestantismo ao capitalismo,contida na recomendao de que aos homens compete trabalhare poupar.

A parcela fundamental desta Histria est contida na segundaparte, a que denominam de Um filosofar institucional.

Comea com um quadro geral dos sistemas filosficos, na ordemsucessiva em que se apresentam na Provncia, a saber: I) segundaescolstica; II) empirismo mitigado; III) escola escocesa e idelo-gos; IV) ecletismo; V) tradicionalismo e VI) fidesmo e ontologismo.Entre os professores e estudiosos, aparecem alguns dos que iniciarama difuso do positivismo. O cientificismo , entretanto, na Bahia,um fenmeno mais afeioado ao sculo XX.

Segue-se a apresentao das fontes de que se louvaram paraempreender a investigao.

Privilegiam o ensino, a comear das ordens religiosas, comple-mentado pelo que teve lugar nos colgios, entre os quais sobressai,no sculo XIX, o Liceu Estadual. Nas faculdades, procuram carac-terizar sobretudo as idias em debate, prescindindo da identificaoespecfica dos professores, levando em conta que, na quase totalidadedos casos, j se tinham feito presentes nas instituies estudadasanteriormente.

8 Antonio Paim

no levantamento dos professores, desde o perodo colonial,que a pesquisa de Francisco Pinheiro e Dinorah dArajo Berbertde Castro no tem precedentes. Valendo-se de fontes primrias,notadamente documentos preservados nas instituies religiosas elaicas, trataram de fixar, em relao a cada um dos nomes identifi-cados, todas as informaes de ndole biobibliogrfica, enriquecidascom uma avaliao de carter doutrinrio sempre que se tornaaconselhvel.

Os professores de Filosofia (II parte, captulo V) esto estudadosna ordem em que aparecem, isto , no ensino das ordens religiosas(captulo III) e dos colgios (captulo IV). Entre os primeiros pro-fessores figuram nomes como Antonio Vieira. Na caracterizao deestudiosos do sculo XIX, os autores trataram de dar viso, a maisampla possvel, de personalidades pouco estudadas, em que pese asua relevncia para a cultura baiana. Esto nesse caso, entre outros,Leovigildo Filgueiras (1856-1910), Virglio de Lemos (1863-1926)e Almachio Diniz (1880-1937), que animaram o debate filosficona Faculdade de Direito, na ltima dcada do sculo XIX e nasprimeiras do sculo XX, ou Antonio Ferro Moniz (1813-1887), quedeixou monumental obra indita, que se preservou, alm do muitoque publicou em vida, achando-se vinculado aos primrdios docientificismo. Sendo autor mal estudado, Francisco Pinheiro eDinorah dArajo Berbert de Castro valem-se da circunstnciapara dar de sua bibliografia quadro amplo e preciso. Ferro Monizencontra-se entre os primeiros divulgadores das idias de Comteno Brasil.

O livro insere ainda uma terceira parte em que esto estudadosos compndios de Filosofia. Francisco Pinheiro justamente uminovador na matria. Como os autores de compndios eram emgeral estrangeiros, deixou-se de abord-los na considerao da Filo-sofia Brasileira. Sua escolha envolve, entretanto, uma opo quasesempre muito significativa da magnitude e dos contornos de umaou outra tendncia. No caso particular daquele de autoria de freiItaparica que o padre Franca, sem jamais o ter manuseado, arro-laria como ecltico , Francisco Pinheiro, que o localizou e o estudou,mostra a sua inconfundvel filiao tradicionalista. Esta vertente temem d. Romualdo Antonio de Seixas (1787-1860), primaz do Brasil,uma figura central, que ocupa na Histria das idias filosficas na

9Apresentao

Bahia o lugar que de direito lhe cabe. A discusso ensejada pelaGramtica Filosfica est igualmente focalizada na ltima parte.

Com este livro, Francisco Pinheiro e Dinorah dArajo Berbert deCastro prestam uma contribuio inestimvel ao estudo da FilosofiaBrasileira. A Histria das idias filosficas na Bahia est destinada atornar-se livro de consulta obrigatria a quem se disponha a conhe-cer, em profundidade, o sentido principal da meditao brasileira.

Rio de Janeiro, setembro de 1988.

ANTONIO PAIM

SUMRIO

APRESENTAO ...................................................................... 5PREFCIO ................................................................................. 13

1 parteUM FILOSOFAR DIFUSO

I A Filosofia como atividade permanente do homem ....... 19II Nossos elementos culturais primitivos ............................ 23III A vida literria na Bahia (sc. XVI-XIX) ......................... 51IV Peridicos, livros e bibliotecas ........................................ 63V O saber de salvao .......................................................... 81VI Revoltas populares e suas idias-foras .......................... 101

2 parteUM FILOSOFAR INSTITUCIONAL

VII Os sistemas filosficos ...................................................... 139VIII Fontes indicadoras ........................................................... 153IX O ensino da Filosofia nas ordens religiosas .................... 159X O ensino da Filosofia em colgios ................................... 233XI Professores de Filosofia ................................................... 259XII Idias filosficas nas faculdades ...................................... 521

3 parteCOMPNDIOS E LIVROS DE FILOSOFIA

ADOTADOS ENTRE NSXIII Os compndios ................................................................. 553XIV Manuais de Gramtica Filosfica .................................... 675XV Outros escritos .................................................................. 699

BIBLIOGRAFIA ......................................................................... 713NDICE ONOMSTICO ............................................................ 741

PREFCIO

ttulo do presente trabalho, Histria das idias filosficasna Bahia, procura atingir os objetivos que, desde o incio

de nossa pesquisa, nos propusemos. Deliberadamente no visamos aescrever uma histria da Filosofia na Bahia, porque julgamos quetal denominao insinuaria a existncia de figuras estelares e nexoscronolgicos mais rgidos, sobre correr o perigo de acenar a umaoriginalidade de uma Filosofia Baiana. Ora, os quinhentos anosde existncia do Brasil (Colnia, Imprio e Repblica na ltimadcada do sculo XIX) e a falta de instituies permanentes eespecficas no possibilitaram o surgimento de grandes filsofos,entre ns.

O ttulo escolhido enseja a abrangncia de um filosofar difusoe institucional; na Bahia, pensadores escreveram pginas e atmesmo livros, onde se emitiram e defenderam conceitos filosficos,ao tempo em que, em forma puramente cultural ou no exercciodo magistrio ou de outras atividades, se difundiram doutrinas ousistemas que entendem com a Filosofia.

Destarte, pensamos poder responder a quantos dissessem quemuito mais se deveria esperar, em face do tempo de pesquisa e dovolumoso livro. A coleta de dados, se no conseguiu obter bomsucesso relativamente a certas publicaes filosficas desaparecidas(mesmo a compndios, como, por exemplo, os da corrente ecltica)ou acerca de escritos existentes no estrangeiro, de que ainda nologramos cpias, resultou em trazer luz nomes de autores oumestres de Filosofia, documentos inditos, fatos ignorados, pers-pectivas novas ou anlises mais profundas e minuciosas cremos.

composio a quatro mos, feita em intervalo de docnciaintensssima, h cerca de vinte anos comeada. Roteamo-nos inicial-mente pela carta noticiadora a respeito da Filosofia na Bahia, do

O

14 Francisco Pinheiro Lima Jnior e Dinorah dArajo Berbert de Castro

pe. me. cn. dr. Antonio Joaquim das Mercs, e pelo que escreveuo pe. Serafim Leite sobre o Colgio das Artes em Salvador e porescassas referncias iniciais, provindas de analistas de pensadoresbaianos, mas que depois se foram minudenciando. No princpio,quando julgvamos que eram mnimos os dados, neles nos detivemoscom pormenores. medida, porm, que rico filo se nos mostrava,compreendemos a necessidade de deixar para outrem melhor explo-rao do achado, no trabalhando em todos os veios. Acreditamosseja nosso livro pioneira contribuio, mas sem julgarmos esgotarassuntos tratados ou referir todos os informes.

A primeira fase para o que agora se publica comeou com acoleta de dados para elaborao de trabalho sobre idias filos-ficas encontradias nas teses de doutoramento, concurso e verifi-cao de ttulo, na Faculdade de Medicina da Bahia. Tais estudos,juntamente com outros, foram divulgados, bem como citados nestelivro.

Seu universo abrange professores, escritores e instituies quemais adentram na rea da Filosofia. No tempo, restringe-se a quantostiveram maior vigncia at o sculo XX, desde os primrdios de nossahistria. Devido, porm, a especiais circunstncias, estudaram-sealguns intelectuais com atuao em nosso sculo, embora vinculadosao anterior. Deliberadamente, omitimos citar nomes daqueles que,entre ns e em nossos dias, se dedicaram ou se dedicam ao filosofar,quer como autores, quer como mestres de Filosofia: cedo para julg-los e injusto omitir-lhes nomes. nossa inteno dar continuidade aeste trabalho relativamente Bahia no sculo XX, porquanto j pos-sumos farto material. Estranharo alguns no havermos dedicadopginas a duas estelares figuras baianas Castro Alves e Ruy Barbo-sa. que eles, alm de terem j merecido estudos, em quantidadee qualidade excelentes, no escreveram trabalhos especificamentefilosficos. Claro que sempre um motivo condutor se pode perceberem suas geniais produes afinando com o filosofar: em Castro Alves,o inseparvel tema amorliberdade, em Ruy Barbosa, o dpticoverdadejustia. Extrapolaramos assim os limites da abordagemdeste livro. O mesmo diramos de outros ilustres representantes daintelligentzia baiana, cuja enumerao seria demasiadamente prolixa.No lhes desconhecemos o iderio, e somos, de resto, cientes do quedisse Vieira:

15Prefcio

Sabei, cristos, sabei, prncipes, sabei, ministros, que se vos h depedir estreita conta do que fizestes; mas muito mais estreita do quedeixastes de fazer. Pelo que fizeram, se ho de condenar muitos, peloque no fizeram, todos [Sermo da Primeira Dominga do Advento].

Nosso primeiro intento era apresentar os textos dados seusineditismos ou raridades no original, com aquele sabor que nelesentem os pesquisadores! Vimos, contudo, que para muitos leitorestal desiderato seria contraproducente. Transcritos antes na ortografiada poca, tiveram, depois, que ser refundidos. Quando se trata, porm,de obras, preferimos transcrever-lhes os ttulos e autores na grafia deento.

Por julgarmos que certos nomes podem fugir memria at dosdoutos, cremos necessrio acrescentar-lhes algumas notas, quiapenas datas. Tal critrio, reconhecemos, implica possveis discri-minaes. Ao analisarmos algumas obras ou peculiares artigos,com citaes maiores ou com desenvolvimento do tema, preferimoscolocar-lhes no texto em pauta os lugares entre parnteses, a fim deno sobrecarregar as notas. Algumas siglas so empregadas paratrabalhos mais conhecidos. A bibliografia final procura elencar asprincipais fontes em que nos abeberamos.

A criao entre ns do Centro de Documentao do PensamentoBrasileiro ensejou-nos leitura de muitos textos bsicos. Foi sempre,porm, a vasta obra especializada do prof. Antonio Paim que nosorientou desde o princpio.

Salvador, maro de 2001.

1 parteUM FILOSOFAR DIFUSO

I A FILOSOFIA COMO ATIVIDADE PERMANENTEDO HOMEM 19

II NOSSOS ELEMENTOS CULTURAIS PRIMITIVOSO elemento indgena 23O elemento africano 28O elemento portugus 38

III A VIDA LITERRIA NA BAHIA (SC. XVI A XIX) 51A censura de publicaes 59

IV PERIDICOS, LIVROS E BIBLIOTECASPeridicos 63Livros e bibliotecas 71

V O SABER DE SALVAO 81Alexandre de Gusmo 83Nuno Marques Pereira 84Conto do alforge 87A cincia do bom homem Ricardo 90Uma histrica sntese: cristianismo e escravatura 93

VI REVOLTAS POPULARES E SUAS IDIAS-FORAS 101A Sabinada 116A Cabanagem 121Revolta de Santo Amaro das Brotas 122Outras sedies 123Canudos 125

Captulo IA FILOSOFIA COMO ATIVIDADE

PERMANENTE DO HOMEM

Filosofia um ramo do saber diverso de qualquer outro pelaprofundidade especulativa e pela colocao de determinadas

questes referentes ao ser, ao conhecer e ao agir. Tendo como objetoprincipal o homem, que outrossim o seu inquiridor, vai indagar desua natureza, de sua origem, do seu fim, de seu modo de agir, e comeaa questionar sobre isso, primeiro de modo espontneo, natural edifuso, constituindo-se, depois, pela reflexo cada vez mais abrangentee profunda, o saber propriamente filosfico.

No defendemos, porm, a fim de explicar naturais e acrticascertezas, uma faculdade especial intuitiva e sem apelo razo (escolaescocesa) nem um sentimento estranho algico (escola sentimentalista)ou qualquer das formas da chamada biognosiologia (a converter mera-mente a teoria em praxis). Julgamos, ao contrrio, que j no homemqualquer existe uma como filosofia imperfeita e embrionria osenso comum.1 Trabalha-o, com aprimoramentos e correes, a razohumana desenvolvida e metdica, qual instrumento imperfeito masperfectvel, capaz de atingir validamente o campo do metemprico.Expliquemo-nos.

Em rigor, pode o homem, usufruindo de vrios conhecimentosempireomtricos (fsicos, matemticos, histricos, jurdicos, agron-micos), no se preocupar com os princpios, os fundamentos que osbalizam e sustentam. No pode ele, contudo, deixar de colocar, naturalou reflexivamente, as questes bsicas: Que sou, donde vim, para ondevou, como agir?. Ora, isso implica uma cosmoviso, ou aceita pelasformas tradicionais da cultura em que est imersa, ou questionadaem crenas e solues dadas. Vrias foram e continuaro sendo as

A

1 Jacques Maritain, Elementos de Filosofia, t. I, Introduo geral Filoso-fia, p. 87.

20 Um filosofar difuso

respostas, mas o questionamento se far sempre, quer pelo homemcomum, quer pelo pensador propriamente dito. De qualquer modo, sefilosofa, porquanto se colocam os problemas bsicos da Filosofia! Ouse quiserem, todo homem toma posio relativamente a fundamentaisidias filosficas.

Dizia Tertuliano: anima humana naturaliter christiana, pois suasaspiraes encontram respostas nos ensinamentos de Cristo. Assimtambm o homem naturalmente filsofo, pois procura solues paraproblemas da vida que a Filosofia forceja em dar. Por isso fala Bergsondo natural pendor metafsico do homem No trai toda a coleo deprovrbios uma sabedoria popular?

Talvez uma comparao esclarea nosso pensamento. O folcloreassinala o dual da cultura. Uma sagrada, reservada aos iniciados,outra popular, aberta transmisso vulgar coletiva, mantendo cren-as e costumes.2 Assim tambm, diramos, a Filosofia, no seu sentidoprprio, construo de alguns, mas tomada ela em mais ampla acepose constitui forma de pensar do senso comum. Distingue-se destarteo filosofar difuso e primrio que lida com idias filosficas dofilosofar reflexivo e crtico, especial forma do saber que procura o que bsico e fundamental em tudo.

Onde se podem colher tais atividades, para extrair destas os funda-mentais e bsicos contedos? Cremos, na anlise da cultura, entendidaessa como o conjunto de atitudes espirituais, conhecimentos cientficosou empricos, tcnicos, tradies e criaes artsticas.3

O Brasil, que o mais extraordinrio acervo de variedades cultu-rais que jamais se formou dentro de uma nao,4 possui, entre dezenasde atributos apontados por estudiosos, algumas caractersticas gerais,como: o personalismo, a capacidade de adaptao, o poder de impro-visao, a vocao pacfica, a cordialidade (na expresso de Buarquede Holanda, entendida por Gilberto Freire como paternalismo), aemotividade e o amor liberdade impossvel.5

2 Lus da Cmara Cascudo, Dicionrio do folclore brasileiro, vol. 1 (A-I),verbete folclore, p. 630-631.

3 Gladstone Chaves de Melo, Origem, formao e aspectos da cultura brasi-leira, c. 1, p. 27.

4 T. Lynn Smith, Brasil, povo e instituies, p. 33.5 Srgio Buarque de Holanda, Razes do Brasil, c. V, p. 101; cf. tambm

Hilrio Torloni, Estudo de problemas brasileiros, p. 41-42.

21A Filosofia como atividade permanente do homem

Pedro Calmon, referindo-se ao Nordeste do Brasil, escreve:

Ele quase no mudou. No Imprio, julgava-se governado pelorei de Portugal; na Repblica, julgava-se governado pelo impera-dor do Brasil. Vive num quadro social obsoleto; vibra com os seusvelhos sentimentos coloniais; repete a resistncia de quinze gera-es de sertanejos. Os seus arraiais invariavelmente abrem emquadra, tendo ao meio a capela, como eram as aldeias indgenasque os jesutas construram. O fazendeiro, que o chefe espiritual docl, continua a ser major ou coronel, como os antigos oficiaisdas ordenanas, cujo governo administrativo-militar deixara napovoao indelveis saudades. O proco tem poderes aproximadosaos do missionrio histrico. Pouco se faz sem ele, mas nada se fazcontra ele. Onde no h vigrio, sobreleva o monge, o asceta querene as virtudes do feiticeiro e do padre, reincarnao do paj,a quem as famlias confiam os casos de conscincia e a justiagremial. O misticismo do sertanejo intenso, e complexo. Parti-cipa do religiosismo portugus, da crendice aborgena e de certofeiticismo africano: exige um chefe espiritual, e considerveismanifestaes exteriores do seu culto. Este complica-se de inge-nuidade tupi, graas ao medo dos gnios florestais, das forasnaturais e da ancestralidade europia; o culto mameluco, comoo vaqueiro.6

At bem pouco tempo guardou a Bahia grandes caractersticasde peculiar passado. Somente em nosso sculo se impregna de novasmentalidades, e as mudanas se tornam mais sensveis. No planejadotrabalho sobre as idias filosficas na Bahia no sc. XX, abordaremosessas necessrias anlises.

Partindo da citada pgina a ressaltar poro do Brasil, de vivnciaspessoais nossas oriundos que somos do Recncavo baiano , e admi-tindo a complexidade e co-existncia, em maior ou menor grau dostipos brasileiros,7 julgamos, pelo acima exposto, que um trabalho, noda histria da Filosofia baiana, mas das idias filosficas entre nsexistentes, no pode deixar de levar em considerao as culturas ini-ciais da Bahia, isto , as mentalidades indgena e africana, aculturadaspela influncia predominantemente lusa.

6 Esprito da sociedade colonial, p. 198-199.7 Joaquim Ribeiro, Os brasileiros.

Captulo IINOSSOS ELEMENTOS

CULTURAIS PRIMITIVOS

O ELEMENTO INDGENA

uando descobriram o Brasil, no encontraram aqui os portu-gueses a mesma cultura que os espanhis acharam em terras

conquistadas. Assim, restringindo-nos Bolvia, nos altiplanos formadospelas serranias gigantescas, em que se bifurca a Cordilheira dos Andes,perto do Lago Titicaca e a poucos quilmetros de La Paz, se encontramas runas de Tiahuanacu, cujos segredos nem os incas puderam reco-lher, mas to s informaes mitolgicas. De tal modo o atual territrioboliviano possua, na poca, uma cultura altamente evoluda, quemuchos investigadores opinam escreve G. Francovich, que delesdiscorda que el pensamiento de las poblaciones precolombianas seelev al rango metafsico.1 O esplendor das civilizaes pr-colombianasse situa pelos sculos XII e XV.

Entre ns, antes do desembarque no sul da Bahia, j no Brasil seencontrava o ndio desde tempos recuados, ainda no precisos, masestimados em milhes de anos.2 Contudo, as tribos tupis, js e caririsencontravam-se em estado cultural de grande atraso3 (comparando-ascom a cultura dos africanos e dos europeus), j que adornos, habita-es, vida nmade, com caa e pesca, tudo enfim assinalava primriacivilizao, em que pese certas tribos tupis as que ocupavam o lito-ral baiano praticarem pequena lavoura e amanho do campo, pela

Q

1 La Filosofa en Bolvia, cap. 2, p. 11.2 Luis Henrique Dias Tavares, Histria da Bahia, p. 25. Hoje, no Brasil, h

cerca de 200.000 ndios, e a Amaznia o refgio de mais da metade da popu-lao indgena. Cf. Manuela Carneiro da Cunha, Os direitos do ndio; ensaios edocumentos, p. 11-12.

3 Luis Henrique Dias Tavares, op. cit., p. 28.

24 Um filosofar difuso

coivara. Dessa cultura material, a cozinha baiana herdou utenslios,alimentao, a conservao dessa pelo moqum e rudimentares tc-nicas artesanais, em madeira, fibra ou barro.

Interessa-nos a cosmoviso dos autctones ou mais precisamentea dos tupinambs e tupiniquins, estes por aqueles expulsos,4 quepovoaram a Bahia desde a costa de Sergipe at Camamu, no sculoXVI, e conseqentemente a Cidade do Salvador centro da coloni-zao. Aos poucos fugiam os ndios do litoral para o serto, sempre queo europeu os queria no irmos de f, mas escravos, no sem usar oartifcio da peita

Observe-se que, malgrado a primeira impresso pelo bon sauvage,os reins, que o queriam escravo, o consideraram, pela m conscin-cia, como bruto e irracional, a ponto de o Papa Paulo III intervir coma bula Veritas ipsa (1537), declarando os selvcolas racionais, aptos catequese.5 Para este trabalho, os tupinambs eram reunidos em aldeiase misses, pelo trabalho extraordinrio dos religiosos (jesutas, princi-palmente, e os franciscanos, carmelitas e beneditinos); disso resultouse preservasse algo da cultura indgena.6

Muito embora no se tenham feito especiais trabalhos a respeito davida espiritual do autctone brasileiro, em sua viso global, j autorescomeam a interessar-se pelo problema de certas tribos.7 Sobre ostupinambs, maiores so as facilidades devido ao clssico trabalhoA religio dos tupinambs, de Alfred Mtraux,8 a que seguiremos nesta per-functria anlise.

Um ente poderoso criou a terra e foi o pai da humanidade, o qualrevelou a cultura da mandioca.

4 Thales de Azevedo, Povoamento da Cidade do Salvador, p. 70ss.5 Os jesutas foram especiais defensores do ndio, pois no o viam como facil-

mente transformvel em escravo, a modo do que se pode perceber de algumasobservaes de Cristvo Colombo em seu Dirio. Cf. Joseph Hffner, Coloni-zao e Evangelho; tica da colonizao espanhola no sculo do ouro, p. 146.Eram missionrios sem o animus conomicus dos conquistadores. conversodo aborgene que se devem referir e entender as palavras de Nbrega: Essa nossa principal tarefa.

6 Luis Henrique Dias Tavares, op. cit., p. 31.7 Pedro Agostinho, Kwarip; mito e ritual no Alto Xingu.8 A religio dos tupinambs e suas relaes com a das demais tribos tupis-

guaranis, 2 ed.

25Nossos elementos culturais primitivos

Este super-homem, aps lutar contra aqueles a quem cobrirade benefcios, retirou-se para uma espcie de paraso terrestre,estncia dos mortos e de alguns vivos favorecidos. Em sua quali-dade de mago, o mencionado heri-civilizador teria criado outrascriaturas secundrias, geradas por suas transformaes. Esseheri-civilizador ainda destruir talvez o mundo, conforme j o fezanteriormente.9

Toda uma dinastia dos heris tupinambs, a partir de Munh (opai, o amigo criador, deus heri), se pode conjeturar. Numa linhadireta de descendncia se encontram Irin-Mag, depois Mair-Munh,que sucedeu ao pai, a quem roubou atributos, de onde provieram Sum,origem de Tamendonar (o bom) e Aricoute (o mau), a significaremirmos gmeos ou dupla personalidade.10 Tup pai se identifica,por vezes, com Mair-Munh, e tem como atributos nuvens, gua, som,fogo Em outra dependncia, indireta, aparecem Mair-Puxi (mau efeio), Mair-Puxi II, Mair-At (ou o mesmo Mair-Puxi ou o duplo deSum, curruptela de paj), e por ltimo os gmeos mticos (prova-velmente os j citados Tamendonar e Aricoute). Nessa conjeturadadinastia, escreve Mtraux, se mostram os disfarces e enfraquecimentosdo mito.11

Os tupinambs acreditavam ter havido duas destruies do mundo.Da primeira, sobreviveu Irin-Mag a quem Munh deu uma mulher, eambos repovoaram a terra A segunda se teria dado por um dilvio,por briga dos dois irmos Tamendonar e Aricoute, que fugiram paraaltas montanhas com suas mulheres. Ento, a terra foi repovoada peladescendncia dos dois.

Alm de Tup, deus do trovo,12 acreditava-se nos gnios da mata,13

nos espritos que perambulavam com aspectos sinistros, pelas matas estios obscuros espritos que, na maioria, eram as almas dos mortos.O marac receptculo dos espritos os manifestava quando im-pregnado pela fora que s os feiticeiros lhe podiam dar.14 O feiticeiro

9 Mtraux, op. cit., p. 17.10 Id., ibid., cap. II, p. 21-30.11 Ibid., p. 19.12 Ibid., cap. IV, p. 40-44.13 Ibid., cap. V, p. 45-55.14 Ibid., cap. VI, p. 56-64.

26 Um filosofar difuso

paj era o sacerdote da tribo, fazia o ofcio de curandeiro, presidias danas e s cerimnias religiosas.15 Natural que em tribo tupinambas doenas fossem condicionadas a sortilgios e que especiais ritosmarcassem o nascimento, a puberdade dos rapazes, a primeira mens-truao; no casamento, a primeira gustao do cauim.16

Particularmente atendem a nosso propsito as crenas dos tupi-nambs no alm-tmulo. A cerimnia do enterramento e o trmino doluto esse comemorado com a festa do cauim ganham especialsignificado, ao considerarmos que os tupinambs estavam persuadidos deque seus mortos deveriam passar por algumas provas, antes que atin-gissem o lugar em que estavam seus ancestrais: cada um levava consigoum chocalho para que assinalasse sua chegada ao lugar de felicidade,em que porm trabalharia por isso o morto levava, outrossim, osinstrumentos agrcolas por ele usados O acesso ao paraso erainterdito s almas dos efeminados e das pessoas insignificantes, queno porfiaram em defender o seu pas, e somente as mulheres virtuo-sas, isto , as esposas dos bravos, o alcanavam17

Tinham idia de um Ser superior, Man, e de divindades inferio-res, entre as quais o Tup. Guardavam a tradio do dilvio e tinhamrudimentos de astrologia, venerando o sol, Guaraci, e a lua, Jaci.Conheciam ou cultuavam, alm disso, gnios ou duendes locais ().18

Animistas, temiam raios, trovoadas e relmpagos. Embora notivessem os tupinambs uma religio organizada, porquanto seu pajpossua mltiplas funes de adivinho, pacificador da natureza,mestre de cerimnia fnebre ou de festa da puberdade , sempre aosabor das necessidades, sem o mnus propriamente de um sacerdote,um homem consagrado. Tinham vrios mitos e acreditavam em seresque perturbavam a caa e at conseguiam atorment-los fisicamente,a exemplo de Yurupari, ou Jurupari ser mtico ao qual os religiososcatlicos, jesutas e frades franciscanos, emprestaram a figura doDiabo. Curupira, outro ser mtico, protegia os animais e dificultavaa caa. Os europeus o interpretavam com os ps virados para trs e

15 Mtraux, op. cit., p. 65-79.16 Id., ibid., cap. VIII e IX, p. 80-104.17 Ibid., cap. X, p. 106 e 113.18 Gladstone Chaves de Melo, Origem, formao e aspectos da cultura brasi-

leira, cap. IV, p. 62-63.

27Nossos elementos culturais primitivos

guardaram outra de suas denominaes: Caapora. Um morubixaba,cercado pelo conselho de ancios, dirigia politicamente a tribo.19

Os ndios que no se embrenharam pelos sertes como ostupinambs foram muito influenciados pela cultura portuguesa,muito mais do que os africanos. Por isso nos legaram menos traos dacultura espiritual.

Alm do grande nmero de palavras advindas do tupi, herdamosdos indgenas o esprito supersticioso e a ndole libertria. H quematribua influncia dos aborgenes o total descaso pela habitaoreduzida a mero e precrio abrigo contra intempries, encontradiano interior e nas pequenas povoaes,20 onde se observa o uso dobanho de rio, o descansar de ccoras, o p descalo, e a rede, toimportante e de to largo uso.21

Lembremo-nos, por fim, da influncia amerndia no candomblde caboclo.22

Deixamos de analisar a antropofagia ritual dos tupinambs,23 pr-ticas mgicas,24 bem como a saudao lacrimosa feita ao estrangeiroque chegava oca de seu hospedeiro e aos membros da tribo que, poralgum tempo, se ausentaram (tudo a insinuar o inspito dos cami-nhos),25 bem como festas e danas, a explicarem toda uma tradionordestina26 e nos detivemos no mito da terra sem mal e nas crenas,por parte dos indgenas sul-americanos, em um mundo ideal.27

Observa Mtraux que povos subjugados, cujos mais caros valoresse consideram ameaados, sentem a nostalgia de um passado aalimentar-lhes vises de grandioso porvir. Tal crise messinica seencontra tambm nos ndios sul-americanos, quando, em revoltasou imigraes, indivduos carismticos se apresentam como reden-tores de uma ordem.28 Na Bahia, houve tentativas fracassadas dos

19 L.H.D. Tavares, op. cit., p. 30; cf. Lus da Cmara Cascudo, Dicionrio dofolclore brasileiro, t. I, verbetes anhanga e curupira , p. 110-114 e 523-525.

20 Gladstone Chaves de Melo, op. cit., cap. IV, p. 65.21 Id., ibid., p. 65.22 Edison Carneiro, Candombl da Bahia, p. 136.23 Mtraux, op. cit., cap. XI, p. 114-147.24 Id., ibid., cap. XII, p. 148-156.25 Ibid., cap. XIII, p. 157-164.26 Ibid., cap. XIV e XV, p. 165-174.27 Ibid., cap. XVI, p. 175-196.28 Op. cit., cap. XVI, p. 175.

28 Um filosofar difuso

tupinambs. Assim, por exemplo, em 1562, trs mil ndios fugirampara o serto, arrastados por dois feiticeiros, mas que foram obstados, atempo, pelos jesutas. No meado e nos fins do sculo XVI, numerososndios tupis conseguiram abandonar o litoral procura da terra semmal.29 Foram possivelmente bem numerosos os movimentos mes-sinicos entre os indgenas americanos, e tais fenmenos representamparticular caso de aculturao.30

O ELEMENTO AFRICANO

Trazidos em navios negreiros, cuja hedionda realidade Castro Alvesem versos exprobrou, viram-se os escravos africanos longe de suas ter-ras e famlias, sem nenhuma influncia poltica, organizao jurdica,sem cargos de direo, sem at a posse de terra. Mais ainda a deprim-los a provenincia de vrias naes ou grupos, com diversos costumese lnguas, formas de vida, que os impedia de manter suas tradies.31

Mesmo quando os engenhos trabalhavam com at mil escravos, nemsempre tal populao pertencia a idnticos grupos tnicos, e os senho-res, sempre temerosos de revoltas, os vigiavam.32

Pouco importa se distingam atribuies de mo-de-obra escrava(plantaes ou servios domsticos e externos): o escravo foi sempreescravo.33 Compreende-se-lhe o banzo e, talvez, a vontade de imitaros israelitas na servido, que penduravam os alades nos salgueiros

29 Mtraux, op. cit., p. 183.30 Id., ibid., p. 195.31 James P. Comer, O poder social do negro, em: A cincia social num

mundo em crise, III, 25, p. 186-187.32 A circunstncia fortuita de aglomerados de pretos, com idntica etnia,

que explica manuteno de peculiares tradies, cristalizadas formas religiosas.Tais agrupamentos eram autorizados pela administrao da colnia, no porbenevolente e particular tolerncia, mas como incentivo para os conflitos entregrupos de origens diversas, porm Lembremo-nos de que exatamente o Condedos Arcos temia, no fim do sculo XVIII, o esquecimento pelos negros das raivasque os desuniram na frica, tornando-os irmos no Brasil grandssimo e inevi-tvel perigo , segundo lembra Nina Rodrigues. Cf. Monique Angras, O duploe a metamorfose; a identidade mtica em comunidade nag, p. 26.

33 L.H.D. Tavares, op. cit., p. 34. Sobre a situao do escravo brasileiro antes edepois da abolio, cf. Katia M. de Queirs Mattoso, tre esclave au Brsil XVIeXIXe sicle.

29Nossos elementos culturais primitivos

como dedilh-los em lonjura da ptria? [Salmo 137 (136), v. 1-4].Resistia, sim, o escravo com a fuga, o suicdio ou o aborto, o assassina-to, o alcoolismo, a passividade no trabalho Principalmente a fuga lheacenava meios de libertao, e, dos mocambos aos quilombos, escolhe-ria seu zumbi! As rebelies, in loco, no faltaram e so conhecidasde nossos historiadores, tendo sido a dos mals (1835), em Salvador,a mais ideolgica e violenta.34

No muito antes de 1549, nem muito depois de 1550, se comeou,na Bahia, a importao de escravo africano. Inicialmente, o termonegro se aplicava aos ndios, mas a denominao negros da Guinocorre j na poca dos governos gerais, como, por exemplo, no deMem de S (1558-1572), que trouxe 336 escravos africanos, embarca-dos na Guin, dos quais 42 morreram na travessia do Atlntico.35

Autores h, contudo, que dizem haver sido, qui, a primeira levade escravos, a dos provindos de So Tom, desembarcados em 1538.Tais peas de Guin nome que exclua todos os portos do reinode Angola, mas que compreendia as ilhas de So Tom e muitos dosportos da Costa da Mina teriam sido compostas de peules e mandin-gas, parcialmente islamizados.36

No sculo XVII, Angola e Congo foram os grandes fornecedores denegros bantos que se espalharam por toda a costa brasileira. J no fimdo sculo XVIII e primeira metade do sculo XIX, vieram os negrosda Costa, daomeanos, nags, haus.

A chegada relativamente recente () desses povos explica emgrande parte o predomnio de seus descendentes na regio daBahia, que gozava de um quase monoplio de importao graasa suas ligaes diretas com os reis de Daom. Dessa concentraodo elemento iorub, egb, ijex, kto, em particular, provm aimportncia do modelo nag para a ulterior evoluo das reli-gies africanas no Brasil.37

34 Joo Jos Reis, Rebelio escrava no Brasil; a histria do levante dos Mals(1835). guisa de contribuio, lembramos o depoimento de Antonio FerroMoniz que, em 30 de junho de 1835, fala de uma revolta de pretos em Salva-dor, noite (Dirio XX, fl. 83).

35 L.H.D. Tavares, op. cit., p. 32 e 65.36 Monique Angras, op. cit., p. 25.37 Id., ibid., p. 25.

30 Um filosofar difuso

At 1830, cerca de 1.067.930 escravos teriam sido importadospara a Bahia.38 Numa estimativa, a populao de Salvador, em 1835,assinala para os africanos 17.325 escravos e 4.615 para os libertos(respectivamente 26,5 e 7,1% da populao geral 65.500); apenasaparecem brasileiros/europeus em nmero de 18.500 (28,2%), livrese libertos de cor (crioulos, cabras e mulatos) num total de 14.885(27,7%), enquanto se computavam escravos brasileiros na cifra de10.175 (15,5%).39 Ao menos oficialmente, o ltimo desembarquede escravos africanos para a Bahia ocorreu em 1852.40

Dispositivos legais vo colaborar numa progressiva extino daescravatura. Pelo tratado assinado com a Inglaterra (1826) e pela Leide 7 de novembro de 1831, foi proibido o trfico de escravos. A Lei de1850 condenava a escravido e o trfico negreiro; a Lei do VentreLivre (1871) concede liberdade ao nascituro; a Confederao Abolicio-nista (1883) unifica, em plano nacional, o movimento antiescravita; ossexagenrios obtm a liberdade com a Lei Saraiva-Cotegipe (1885), atque a Lei urea, de 13 de maio de 1888, declara extinta a escravidono Brasil, mas que mudou para livre uma despreparada mo-de-obra escrava fato a permitir a continuidade da marginalizao dopreto, no pela cor, mas pela cultura.

A imigrao e colonizao de novos elementos europeus livres,que colaboraram para formar-se nova mentalidade no Brasil, tiverammnima influncia na Bahia.41

Luiz Viana Filho mostra as profundas divergncias entre os bantose sudaneses. Aqueles,

() sempre dispostos a uma posio de transigncia diante doconflito cultural, alheios s rebelies, infiltravam-se pela socie-dade nova, impregnando-a pacificamente com as marcas da suacultura. Distanciados das atitudes ruidosas das revolues, quetanto impressionaram, os bantos integravam-se silenciosa e eficien-temente na sociedade.42

38 Luiz Viana Filho, O negro na Bahia.39 Joo Jos Reis, op. cit., p. 16.40 L.H.D. Tavares, op. cit., p. 235.41 Luiz Koshiba & Denise Manzi Frayze Pereira, Histria do Brasil, p. 199-201.42 Op. cit., cap. IV, p. 136.

31Nossos elementos culturais primitivos

O grupo banto se caracterizou principalmente com o angola,

() estimado pelas suas qualidades comunicativas, expansivo,loquaz, amigo da capoeira, e se definiria no capadcio bem falan-te, sempre pronto para uma frase de humor, cordial, e incapaz de sesegregar para as reaes violentas, e por isso mesmo sempre maisprximo do grupo branco, em cuja cultura se integrou, perdido nafuso annima e fcil.43

Do grupo sudans

() se fizeram tpicos representantes os nags, que o Marqusde Abrantes, lembrando a ndole inassimilvel e traioeira, compa-rava cobra regelada, e os mandingas, ainda hoje recordadospelos seus feitios e a sua arte no preparo de venenos lentos esutis, que administravam aos senhores, vtimas da sua reao aonosso meio.44

A esse grupo pertenciam os mals, cuja revolta em 1835 foi a maiorluta para instalar na Bahia um reinado negro muulmano, pois, apsa acreditada vitria, aclamariam uma mulher como rainha.45 Aqui,sem dvida, estamos diante de um iderio, de uma mentalidade emgrupos mais culturalmente formados, embora no se possa falar, como fracasso, de uma acomodao absoluta das comunidades de cor: Atradio de rebeldia deixava de se expressar em aes coletivas espe-taculares, mas permaneceria marcando as relaes senhor-escravo, avida cultural e, de um modo geral, o cotidiano dos africanos na Bahia.O fim das rebelies no seria o fim da resistncia.46

Teriam sido possveis as revoltas dos escravos sem uma conscin-cia comum dos direitos humanos? Lembremo-nos de que na rebeliodos mals no apenas tomaram parte os partidrios do Coro decerto lido e interpretado com pureza da fonte. No tentariam elesa rebelio, caso no confiassem nos irmos de cor na capital da Pro-vncia e no Recncavo; afinal, em 1835, o presidente da Provncia,

43 Luiz Viana Filho, op. cit., p. 136.44 Id., ibid., loc. cit.45 Antonio Monteiro, Notas sobre negros mals na Bahia, p. 28.46 Joo Jos Reis, op. cit., p. 284.

32 Um filosofar difuso

Francisco de Souza Martins, escrevia: A classe dos pretos superabun-dava imensamente a dos brancos.47

Nos trs sculos de trfico, foi-se estabelecendo a transculturao,em todos os setores.

Comecemos pelas miscigenaes. Inicialmente se realizou entre oportugus e o aborgena.48 Do negro e do ndio, aparece o cafuzo. Daunio do branco e do preto, surge caracterstica raa: Deus fez o ho-mem e o portugus o mulato49 Francisco Manuel de Castro exilado noBrasil, de 1655 a 1658, escreveu Brasil, inferno dos pretos, purgatriodos brancos e paraso dos mulatos, e Gregrio de Matos (1633/1696):

No sei para que nascerNeste Brasil empestadoUm homem branco e honrado,Sem outra raa;Terra to grosseira e crassa,Que a ningum se tem respeito,Salvo se mostra algum jeitoDe ser mulato.50

De um lado, os que blateravam contra a hegemonia do mulato;do outro, quantos lhe enalteciam o mrito e a colaborao na culturabrasileira.

Antonio Ferro Moniz, ao falar da instalao da Sociedade de Bene-ficncia, de que foi aceito scio, lamenta a ausncia de proprietriosem tais sodalcios, porquanto cargos importantes na Sociedade eramexercidos, pela omisso dos brancos, por mulatos: So os mulatinhos[que o fazem], estes abusam dos poderes que tm () eu no queroassim fazer, antes quero ser Ferro do que boi.51

No h dvida de que mulatos ilustres, em pocas e diversssimasatividades, demonstram como no Brasil houve todo um processo demiscigenao.

Ao contrrio do ndio que, em grande parte, foi dizimado ou fugiupara as matas, deixando, porm, vestgios de sua cultura, o negro teve

47 Joo Jos Reis, op. cit., p. 17.48 Thales de Azevedo, op. cit., p. 87ss.49 Apud Gladstone Chaves de Melo, op. cit., p. 71.50 Id., ibid., p. 76.51 Dirio XXI, fl. 95-97, de 16 ago. 1835, sbado, doc. mss.

33Nossos elementos culturais primitivos

energias para invadir o sobrado, penetrar na igreja, derramar-se portoda a vida social,52 no abandonou em maioria, malgrado o impostobatismo, seus cultos e supersties, embora modificados e adaptadospelas exigncias do catolicismo oficial Sua tpica dana e luta acapoeira , sua peculiar cultura se constituem no despiciendosfatores para compreenso de nosso ethos.

Historicamente, se podem ver medidas contra intransigentesposies.

A Igreja Catlica, desde 1585, permitiu a fundao, pelos pretos, doCordo de So Francisco, de cor branca e com trs ns, em contrastecom as ordens terceiras que lhes proibiam o acesso ao quadro. Com ainstituio de irmandades de cor de Nossa Senhora do Rosrio(fundada pelos jesutas em 1586),53 de So Benedito, de Santa Efigniaetc. , os pretos encontram o ambiente propcio para seus folguedose socializao, certos prestgios aparentes que os nivelam aos brancos.Tais sodalcios, porm, julgamos, no lhes exigiam de todo a condiode catlicos praticantes. Na Sociedade Protetora dos Desvalidos, porexemplo, embora se fale da obrigao de missas em sufrgio de mem-bros falecidos, de juramento de obedincia s normas estatutrias,sobre o livro do Santo Evangelho, nada se percebe de maior engaja-mento na prpria vida sacramental da Igreja.54

De tais associaes, que poderiam ter sido influenciadas por certastendncias para manifestaes externas do culto cristo,55 se pode dizer:

As irmandades de cor, dependentes da orientao da Igreja,foram apoiadas pelo branco, que via nelas uma forma adequadade controle das aspiraes da populao negra. Para o negro, airmandade funcionava como um meio de participar da sociedade,de adquirir um status social, sem se dar conta de que pertencer auma delas era o equivalente a no ser branco e, por isso, submeter-se ainda classe dominante.56

52 Luiz Viana Filho, op. cit., p. 95.53 Serafim Leite, Histria da Companhia de Jesus no Brasil, vol. I, p. 340-341.54 Jlio Santana Braga, Sociedade Protetora dos Desvalidos: uma irmandade

de cor, Estatutos de 1874, art. 7 e 50, p. 79 e 88.55 C.R. Boxer, A idade de ouro do Brasil (dores de crescimento de uma socie-

dade colonial), p. 129-130.56 Jlio Santana Braga, op. cit., p. 10.

34 Um filosofar difuso

Quando, na culinria da Bahia, se provam quitutes que alhures nose saboreiam, quando nas ruas de Salvador, principalmente, tpicasvestes, de diferenciadas cores, em baianas se admiram, com saiasrodadas, panos da costa e toros, quando em praas se formam asrodas de capoeira, ao som dos berimbaus, quando filhas-de-santo,as ias, saem para cumprimento de sua iniciao, com tabuleiros eofertas, quando nas madrugadas espocam foguetes ou em noiteso rum, rumpi e l falam a mstica linguagem dos atabaques, quando,principalmente, se assiste s cerimnias, ao culto entusistico doscandombls, compreende-se o estupor quase medo de um psiclo-go estrangeiro ligado escola de Jung, que tomara parte em congresso,em Salvador, e que acabara de vir de um terreiro, muitos anos faz, adizer-nos: Que terra estranha esta, em que se percebe algo de miste-rioso e inquietante? No ar, aqui, um no-sei-qu de mtico e mstico,em outros lugares no sentido Contentamo-nos em responder-lhe:So as vozes dfrica, so as razes de um passado a impregnarem uminconsciente coletivo.57

Relativamente ao candombl, principalmente em Salvador, cum-pre observar circunstncias ou fatores especiais. Outrora, havia todauma restrita e fechada famlia pertencente a tal ou tal casa, ounao e, longe de ser amparado pelo poder pblico, sofria tenazperseguies. Hoje, ao contrrio, o turismo tem apresentado as festasde candombl como parte integrante do folclore, e polticos fazempraa de participantes dos terreiros. Pessoas de elevada cultura soogs, e a sociedade ostenta gamas de adeptos ou crentes nos orixs,ebs, quizlias

57 Impossvel aqui registrar toda uma literatura que trata sobre o assunto.Contentemo-nos em citar alguns livros que compulsamos: Roger Bastide, O can-dombl da Bahia (rito nag), trad. de Maria Isaura Pereira de Queiroz; EdisonCarneiro, Candombl da Bahia; Idem, Religies negras e Negros bantos; Estcio deLima, O mundo mstico dos negros; Vivaldo da Costa Lima, A famlia-de-santo noscandombls jeje-nags da Bahia; um ensaio de relaes intragrupais (dissertaode mestrado em Cincias Humanas); Elyette Guimares de Magalhes, Orixs daBahia; Waldir Freitas de Oliveira & Vivaldo da Costa Lima, Cartas de Edison Carneiroe Artur Ramos (de 4 de janeiro de 1936 a 6 de dezembro de 1938); Donald Pierson, Ocandombl da Bahia; Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil; Artur Ramos, O negrobrasileiro: etnografia religiosa e psicanlise; Manoel Querino, Costumes africanosno Brasil; Valdemar Valente, Sincretismo religioso afro-brasileiro.

35Nossos elementos culturais primitivos

De um lado, tem-se a difuso de idias em todos os nveis sociais,do outro, a perda de maior originalidade ou autenticidade. O chamadosincretismo termo de acirrados debates ou rejeies. Claro que tudoisso tem influncia em nosso ethos. Por exemplo, lembramos queas festas religiosas mais populares e conservadas, em Salvador ouno Recncavo, so justamente aquelas em que santos e orixs secultuam

No se aprofundou ainda, entre ns, o estudo da cosmoviso dacultura negra,58 miscigenada branca e indgena elementos im-portantes para a compreenso das idias-foras que impulsionaramnossa histria. No temos condio nem inteno de tent-lo, masjulgamos poder acenar para hipteses, baseadas em confluncia deisolados escritos. Com exceo dos mals, que professavam o isla-mismo, peculiar cosmoviso a lhes inculcar religiosas lutas, mas noisentos de composio ideolgica,59 cremos poder encontrar, levandoprincipalmente em conta o culto dos orixs em nmeros e especi-ficaes complicados algo subjacente nos diversificados cultos decandombl, qual espcie de cristalizaes de formas amorfas e dissol-vidas, de vidncias e vivncias

Parece que o ax, a fora mgico-sagrada, a energia que fluientre todos os seres, pode ser considerado como o elemento bsico efundamental de toda a concepo explcita ou implcita dos cultosde candombl. Sua natureza: algo que flui, mas de todo no se esvai,algo que se assemelha, embora multvio em seres. Teramos assim,

58 Roger Bastide tenta uma abordagem metafsica-sociolgica e faz o ensaiode uma epistemologia africana iorub, aps o captulo VI, O homem reflexo dosdeuses (p. 235-263), em: O candombl da Bahia, p. 264-284. F-la, por exemplo,Plcido Tempels relativamente aos bantos (Bantu Philosophy, trad. do francsA. Rubbens): In search of a Bantu Philosophy (cap. I, p. 13-26); Bantu Onto-logy (cap. II, p. 27-46); Bantu Wisdom or Criteriology (cap. III, p. 47-74); TheTheory of Muntu or Bantu Psychology (cap. IV, p. 63-74); Bantu Ethics (cap.V, p. 75-89) e Restoration of Life (cap. VI, p. 91-108). No captulo VII (p. 109-123), Bantu Philosophy and our mission to civilize, crente de tal possibilidade,no v na vital fora, pelos bantos considerada como base de sua cosmoviso,algo exclusively earthly and materialistic (p. 121-123). Ento aponta para umaspecto a ser explorado numa eficaz catequese: a doutrina da Graa do cris-tianismo (p. 120).

59 Antonio Monteiro, op. cit.; ainda Joo Jos Reis, op. cit., e tambm JlioSantana Braga, op. cit.

36 Um filosofar difuso

semelhana do que ocorre entre os bantos da frica, um comporta-mento de nossas populaes negras, ainda no presente, em seus vrioscultos de terreiros, a crena numa singular fora vital, de Deus pro-vinda e a Ele pedida, atravs de rezas, modos e mgicos elementos.Cada ser e o homem particularmente o encarna influencia emoutro, numa hierarquia de foras, cuja suprema Deus qualquer lheseja o nome dado ou concepo aceite , comunicadas aos arquipa-triarcas. O universo criado est centralizado no homem, segundo asleis gerais da causalidade mtua vital, razo por que pode essa entrarem contato com especiais seres intermedirios os orixs.60 Tambmcremos ter sido a cosmoviso que, entre ns, se integrou na culturanegra, a filosofia baseada no elemento primordial e bsico, a forasem dvida acriticamente aceita , um pressuposto para que se possaexplicar o mgico procedimento de nossos africanos com rezas eritos para defesa ou manuteno da vida.61

Consideremos algumas anlises.Em sugestivo captulo, com o nome de Estrutura e dinmica

do mundo, Monique Angras62 estuda o essencial da religio nag.Acompanhemo-la.

O universo composto de dois mundos, orum (sobrenatural) e ai(fsico). Olorum o dono do primeiro, e a comunicao desse com ooutro se faz pela condensao e distribuio do ax, presente em todosos seres. Os orixs, cujo nmero incalculvel, desempenham espec-ficas funes relativamente aos demais seres. Oxal representa o podergenitor masculino e encarna a figura do pai dos deuses fecundantes,e as divindades femininas, aiabs (rainhas), so fecundadas, comodepositrias dos mistrios da gestao.

Relativamente aos homens, deuses so chamados, respectivamente,de pais ou mes, porquanto cada um deles o eled; assim em cadaser humano existe algo da substncia divina. Enquanto o eled apre-senta uma fora, um smbolo da natureza a ditar um modelo de com-portamento, o ipori a manifestao individual da fora da divindadeespecfica, o dono da cabea. O ponto de interseo, onde se con-centram as foras sagradas e a possibilidade de realizao pessoal,

60 P. Tempels, op. cit., p. 27-46.61 Id., ibid., p. 47-61.62 Op. cit., p. 55-92.

37Nossos elementos culturais primitivos

justamente o ori (cabea). Cada homem escolheu livremente, no mo-mento em que foi criado, sua cabea e seu destino (odu), mas disso,ao nascer, se esquece, e ento deve recorrer ao orculo para saber dequem ele , de como conduzir sua vida. Duas etapas na vida individual:a fixao do orix na cabea do iniciado e o axex, que destri ospotes dos assentos individuais, retira o oxu da cabea; ento o axdo falecido reincorporado ao potencial coletivo (p. 92).

Conclui Monique Angras pelo impossvel sincretismo entre a reli-gio nag e o cristianismo, ao nvel do candombl tradicional:

Encontramos ao contrrio uma nova viso do mundo, modosdiferentes de pensar, smbolos originais. Parece que, em ltimaanlise, a transmisso dos mitos e dos ritos, a organizao dostemplos, objetivaram reconstruir um templo (mtico) e um espao(segredo), que recriam a essncia da frica perdida.

Surgiu, ento, um mundo genuinamente brasileiro (p. 31-32). Emvez de sincretismo, haveria uma cobertura, certa equivalncia,entre santos catlicos e as divindades africanas. No plano, contudo,politesta ou pantesta, a contradio dos observadores que se escan-dalizaram com a juno do catolicismo e do candombl, como, porexemplo, Nina Rodrigues (p. 31), parece no oferecer dificuldadesquanto ao sincretismo, tomado esse como aceito de modo no refle-xivo e crtico, quando no se perceberia a incompossvel unio dopantesmo e do transcendentalismo divino. Lembramo-nos, espon-taneamente, da bela comparao feita pelo pe. Pedro Arnou (S.J.),mestre na Universidade Gregoriana de Roma: essas duas posiesfilosficas se assemelham a dois blocos de montanhas, de impossvelescalar, devido ao infindo fosso que as separa na base, mas cujos cimosse apresentam to prximos que, de um para outro, se pode saltarilogicamente, tamanhas so as parecenas Como querermos que opovo no as concilie e as ultrapasse?

O sincretismo se assemelha combinao, enquanto a mera jus-taposio de crenas no passa de uma mistura, em que falta internaunidade. A essa ltima nos parece mais ligado o culto paralelo de santose orixs. Lembremos que a maioria das festas religiosas em Salvadore no Recncavo possuem adeptos em ambas as crenas, em que pesea nomenclatura adotada.

38 Um filosofar difuso

Costuma-se dizer que, para fugir perseguio policialesca, osescravos camuflavam ritos e festas religiosas com a invocao desantos. Talvez tal amlgama de culto possua razes mais profundas:uma superficial e apressada catequese dos escravos, em funo dobatismo, no lhes tirou ramificaes de toda uma cultura religiosa pri-mitiva, quando a reunio em senzalas de grupos religiosos favoreceuambivalncias Uma cultura antagnica no se modifica seno custade choques, enquanto uma miscigenao o esperado em grupos quese misturam.

fato, porm, que at hoje o chamado sincretismo existe paraos menos puros cultores dos terreiros, embora rejeitado por ldimoscrentes dos orixs.

At hoje, para falarmos s da Bahia, existe boa parte da populaocom maior ou menor ambivalncia, em que nem sempre teria facili-dade a navalha de Ockam

O ELEMENTO PORTUGUS

As armas da Cidade do Salvador, descritas pelo heraldista Her-mann Neeser,63 expressam interpretemo-las o sentido de primeiracidade brasileira, edificada pelos portugueses, fundada em 29 de marode 1549 data oficialmente aceita. A coroa mural, de cinco torres,simboliza a cidade-fortaleza, garante da permanncia lusa, quartel-general para a conquista das terras sem fim. Os dois golfinhos sinali-zam uma baa, ancoradouro de longas travessias martimas. A pomba,tendo no bico um ramo de oliveira, mostra a realizao da esperanada empresa, aps viagem pelo Atlntico, a lembrar sinal de terra, coma mensagem ps-diluviana: Sic illa ad arcam reversa est.64

Colonizar e cristianizar o Brasil, em cujo descobrimento, com aposse da terra (Cruz de Cabrlia, a 23 de abril de 1500), o tronoe o altar firmaram incio de longo regime, eram o propsito daquela() Gente ousada mais que quantas / No mundo cometeram grandes

63 L.H.D. Tavares, op. cit., p. 76.64 Gnesis, VIII, II.

39Nossos elementos culturais primitivos

coisas,65 e Dada ao mundo por Deus, que todo o mande / Pera domundo a Deus dar parte grande.66

Na Bahia, nos sculos XVI a XVIII, estima-se que habitaram, emnmeros inicialmente crescentes, lusitanos oriundos de vrias partesde Portugal (sc. XVI, 58; sc. XVII, 1.684; sc. XVIII, 1.869; sc. XIX o de nossa Independncia, 1822-1823 , 1.430).67

Antes, porm, da fundao da Cidade do Salvador, portuguesesj se tinham estabelecido na Bahia, e desde ento comearam a acli-matao e a mobilidade do colono luso, de quem foi exemplo Diogolvares, j entre ns em 1510. Mas Caramuru no saiu de Portugalnem aportou, nufrago, em plagas baianas, como Bias, um dos setesbios da Grcia, que respondeu a quem o via sem carregar suas rique-zas: Tudo o que tenho, levo comigo Foi, talvez, um aventureiro,com elevado senso de comerciante, adaptado aos ndios, entre osquais se ligou a vrias mulheres, casando-se depois, na Frana, comCatarina Paraguau. De dez filhos seus provieram clebres famliasbaianas.

Luis Henrique Dias Tavares resume a contribuio cultural dosportugueses: () foi bem maior que a do indgena e do africano. Nacultura material e na espiritual. Ressalta-lhe pontos significativos:traados de cidades e habitaes, igrejas e conventos, uso de utens-lios domsticos, comemoraes de festas tradicionais da Ptria, quandodestaca a maior a do Senhor do Bonfim, devoo que provm desdeo sculo XVIII, e cuja imagem, trazida pelo capito-de-mar-e-guerraTeodsio Rodrigues de Faria, enseja na Sagrada Colina, com o ele-mento africano, Oxal, comemoraes religiosas (novenas, lavagense missas).68

Mostra, outrossim, o citado historiador que, na Bahia de outrora,as pessoas se destacavam e afirmavam pela posio das famlias a quepertenciam. A sociedade baiana era estruturada em moldes fortementehierrquicos, oligrquicos e repressivos, imagem do Estado monr-quico e altamente controlado. Nada se faria na Bahia, sem licena de

65 Cames, Os Lusadas, V, 507.66 Id., op. cit., I, 6.67 Carlos Ott, Formao e evoluo tnica da Cidade do Salvador, apud L.H.D.

Tavares, op. cit., p. 41.68 Op. cit., cap. 5, p. 42.

40 Um filosofar difuso

Lisboa. Eis os estamentos sociais: a) produtores, chamados outrorahomens bons, os grandes proprietrios (plantaes, engenhos, fazen-das de gado, donos de escravos); b) lavradores, que no possuamengenhos mas to somente escravos e terras; c) lavradores sem terra(agregados, meeiros, foreiros e moradores de favor); d) escravos. Noscentros urbanos, havia os comerciantes, mercadores, exportadorese importadores, chamados tambm homens bons, os oficiais mec-nicos (mestres, oficiais e aprendizes). Acima de todos o Estadomonrquico do pas colonizador.

Lembra, por fim, que, nos primeiros sculos da Bahia, a vidasocial foi quase exclusivamente rural, pois, malgrado Salvador ser asede dos governos-gerais, e ativo porto, os proprietrios residiam emcasas de suas plantaes, de seus engenhos e fazendas, geralmenteperto de povoados que deram origem s cidades do Recncavo, do sule do serto.

Muito embora os senhores tivessem amparo da Monarquia, nose pode afirmar houvessem tido maiores poderes polticos, em quepese a numerosa famlia sustentada (de descendentes, colateraise aderentes)69

Era intensa a vida religiosa, ao menos nas exteriorizaes do cultoparticular e coletivo. A venerao das imagens em cada casa, umoratrio com vrios santos , as festas de calendrio catlico, relativoao ciclo litrgico, as comemoraes dos oragos e santos protetores oude devoes especiais, as procisses e a quantidade mui numerosa detemplos a lenda decantou 365 igrejas em Salvador , os conventos,irmandades etc., tudo contribua para que uma atmosfera religiosatranspirasse, herana da religiosidade medieval portuguesa. O mapabaiano assinala em localidades, ilhas e acidentes geogrficos, todamarca de uma cristandade culturalmente recebida.

Do portugus herdamos, alm da religio e da lngua, a ligarextensos e diversos territrios, veculo precioso para a articulao daunidade nacional, o sentimentalismo e a saudade, to vivos em nossasmodinhas, a par com uma mentalidade inclinada ao pragmtico.

A propsito da saudade, que perpassa pela vida portuguesa,Pinharanda Gomes escreve:

69 L.H.D. Tavares, op. cit., p. 43-44.

41Nossos elementos culturais primitivos

de contedo dinmico, futurista e progressista. Gera osmessianismos, os sebastianismos, os quinte-imperialismos, e s aexegese racionalista no tem possibilidade de o notar. O aparentemarasmo, que os futurismos sebastianistas mostram, no resultada sua interioridade passivante e passiva: resulta de que tais futu-rismos so a-temporais, de futurao distante e, por isso, despidosdo activismo das coisas que so aqui e agora.70

Natural que, com os justos anseios da independncia do soloptrio, o elemento portugus fosse aos poucos, devido a conhecidasrazes, sendo mal visto, e at nas ordens religiosas se travou umantilusitanismo.

Com o tempo, surgiram conflitos entre colonos e metrpole pro-blema do estanco (monoplio) e fixao de preos , e os geradoscomo anticoloniais, como a Conjurao dos Alfaiates, em 1798. Final-mente, a luta direta da Independncia, consumada em 2 de julho de1823, na Bahia. O movimento Mata-Maroto, em Salvador (4 de abrilde 1831), que se estendeu s vilas de Cachoeira e Santo Amaro foia ltima e mais forte manifestao contra os portugueses na Bahia. Apartir da Sabinada (1837), toda luta se desenvolveu contra o sistemamonrquico constitucional unitrio brasileiro.

O corte progressivo das relaes entre Portugal e o Brasil, com aodiosidade crescente, no deixou de afetar o lado ideolgico, porquan-to muitos que no aceitavam, de todo, o iderio iluminista se uniramem associaes a Maonaria, por exemplo ou a grupos que comba-tiam o absolutismo e propugnavam a independncia dos povos. Tpicaa participao do clero em movimentos polticos. Natural, outrossim,que o poder temporal das naes conquistadoras nem sempre obede-cesse s normas ticas da colonizao, que um grupo de pensadorescomeava a bem fundamentar em princpios cristos, na Espanha eem Portugal.71 Duvidar, contudo, no se pode que na fome de glria,poder, ouro e honrarias, achava-se, imediatamente, uma profunda esincera religiosidade.72

70 Incidncias platnicas na cultura portuguesa, em: Plato, O banquete oudo amor, Coimbra, Atlntida, 1968, p. 23.

71 Joseph Hffner, op. cit.72 Id., ibid., p. 145.

42 Um filosofar difuso

Trabalhos j se publicaram relativamente ao filosofar no Brasil eem Portugal.73

Nenhum melhor testemunho em favor da influncia portuguesa emnossa cultura do que lembrar tambm, ao lado de outras relevantesfiguras, os bacharis oriundos do Brasil que se formaram em cnonesou leis em Lisboa ou Coimbra os brasileiros coimbres. Dentreesses, Pedro Calmon arrola, desde 1644 a 1798, cerca de 86 baianos,sendo que a lista do sculo XVII abrange apenas nove, entre os quaisGregrio de Matos Guerra (1666) e o mestre em artes, por Coimbra,vice-governador da Universidade, Clemente Carneiro. O renomadohistoriador apresenta em p de pgina breves anotaes para quasetodos esses eminentes nomes, ao tempo em que ressalta o tributodado pelo Brasil colnia aos ofcios letrados em Portugal.74 Se levar-mos em conta essa pliade ilustre, cujos nomes impossvel declinar,e os nascidos na Bahia que estudaram Medicina em Paris e Mont-pellier etc., podemos aquilatar a influncia portuguesa (e europia) emnossa cultura superior.

No nos furtamos, porm, de enfatizar os baianos que estudaramDireito na Universidade de Coimbra, onde cursaram Filosofia (de modo

73 Antonio Paim, Filosofias portuguesa e brasileira, convergncias e pecu-liaridades e As filosofias portuguesa e brasileira tronco comum e caminhosautnomos, Rev. Portuguesa de Filosofia, out.-dez. 1982, t. XXXVII-II, fasc. 4,p. 91-95, 899-902; Francisco da Gama Caeiro, O pensamento filosfico do sculoXVI ao sculo XVIII em Portugal e no Brasil, ibid., p. 51-90; Jorge Borges deMacedo, Formas e premissas do pensamento luso-brasileiro do sc. XVIII, ibid.,p. 932-943; Eduardo Abranches de Soveral, Pensamento luso-brasileiro, ibid., p.392-396. Ver, alis, artigos vrios nesta revista que contm as Atas do I CongressoLuso-Brasileiro de Filosofia, realizado em Braga, de 18 a 22 de fevereiro de 1981.Tal evento serviu para demonstrar a necessidade de uma acareao entre o filoso-far das duas ptrias irms, que Antonio Paim e luzida equipe procuram incentivarcom a criao do estudo do pensamento luso-brasileiro na Universidade Gama Filho,donde j provieram originais e importantes teses. Seja-nos permitido assinalarquatro fatos: nos primrdios de nossa cultura filosfica, temos o luso-brasileiroAntonio Vieira, a centralizar nossa ateno; a presena entre ns, de 1810 a 1821,com aulas e publicaes filosficas de Silvestre Pinheiro Ferreira; Sampaio Bruno,a publicar, em 1898, O Brasil mental; esboo crtico; Tiago Sinibaldi, a publicar,em 1894, os Elementos de Filosofia, de larga adoo nos seminrios do Brasile veculo do neotomismo. Temos diante dos olhos a 3 edio, em dois volumes(XVI-439 p., 608 p.).

74 Histria da literatura baiana, cap. IV, p. 45-50.

43Nossos elementos culturais primitivos

ordinrio ou obrigatrio), pois isso bem atende aos nossos propsitos.Encontramo-los em nmero de cem, de 1775 j reestruturada, pois,a Universidade pombalina at 1866.75

Seria preciso lembrar as publicaes propriamente literrias (religio-sas e profanas) que se constituram o pano de fundo de nossas leituras(eruditas ou populares)?

Em nossa anlise panormica e brevssima, no deixamos, contudo,de aludir ao papel que a cabala teve, no mtuo campo, da religio e daFilosofia.76

Quando atentamos para nossa cultura em tempo de imediata enecessria ligao com Portugal, no podemos presumir tivssemosns, malgrado os peculiares aspectos de um natural repensar dos proble-mas gerais e circunstncias, muita dissonncia com o filosofar luso. Nonos esqueamos de que Antonio Paim escreveu a respeito da transioentre a corrente do empirismo mitigado e do positivismo: () ao fimdo Imprio, assistimos mais cabal demonstrao da fora e do peso daherana portuguesa.77 Repare-se que se trata do findar do sculo XIX

Os estatutos da Universidade de Coimbra, confirmados por D.Felipe I, em 1591 (L. III, tt. 58), estabeleciam para os quatro anos docurso de Artes os tratados de Aristteles. Os oriundos de 1596 e 1612nenhuma alterao fizeram queles, sendo assim regida a universidadeportuguesa at 1772.78 E os jesutas, principais mestres da geraobrasileira, adotariam, no Colgio das Artes, em Salvador o que precei-tuava a Universidade de vora, por eles dirigida com diplomas expe-didos em 10 de agosto de 1563 e em 28 de novembro de 1567, e queem nada excedia o estabelecido para a Universidade de Coimbra.

Durante todo o sculo XVII se foi adensando o atraso que dis-tancia Portugal dos pases mais evoludos e cultos da Europa, emespecial a Inglaterra, a Holanda e a Frana (). Os primeiros

75 Francisco da Silveira de Morais, Estudantes brasileiros na Universidade deCoimbra (1772-1872), Anais da Biblioteca Nacional, vol. LXII, 1940, p. 146-302.

76 Jos Hermano Saraiva, Histria concisa de Portugal, p. 214-215, e PinharandaGomes, Histria da Filosofia portuguesa, t. 1, A Filosofia hebraico-portuguesa.

77 Trajetria da Filosofia no Brasil, em: Mrio Guimares Ferri & ShozoMotoyama (org.), Histria das cincias no Brasil, t. 1, cap. 1, p. 17.

78 Lopes Praa, Histria da Filosofia em Portugal, edio preparada porPinharanda Gomes, cap. III, p. 117.

44 Um filosofar difuso

movimentos no sentido de uma reforma comearam ainda no sculoXVII e desenvolveram-se durante toda a centria seguinte. Parti-ram principalmente de portugueses fixados no estrangeiro ().79

A atitude mental dos estrangeiros caracterizava-se pelo iluminis-mo, pelo empirismo, pelo utilitarismo.80 Era a predileo pelo saberindutivo, pelo mtodo experimental, era a oposio Filosofia ensinadano Colgio das Artes.81

Como nenhuma nao consegue isolar-se da influncia culturalalhures provinda, o elemento portugus, a que ora aludimos, nopode ser considerado sem a referncia ao europeu. Se fomos, semdvida, formados pela mentalidade lusitana, tivemos que receber oinfluxo de sistemas ou idias oficialmente aceites em Portugal ou neledisseminados e transmitidos por todos os meios de comunicao, perfas et nefas Importa, pois, distinguir perodo.

Adiante falaremos de movimentos revolucionrios na Bahia, emque se percebe a influncia de uma filosofia iluminista, de teses sobrea igualdade para todos perante a lei num regime que teria do povo suafundamental origem. A francesia, incrementada pela leitura de livrostrazidos por compatriotas e viajantes, ou contrabandeados em poresde navios, e por escritos de pensadores polticos, particularmenteressaltada por nossos historiadores.

Observe-se que muitos dos movimentos deflagrados entre ns sotambm os que em Portugal se processavam. Assim, a Revoluo Cons-titucional de 1820, do Porto, se opunha ao absolutismo. Os deputadosbaianos convocados para a elaborao dessa Carta somente no a assina-ram porque julgavam que o Brasil permaneceria colnia de Portugal.

A Igreja, escreve Serafim Leite, foi a nica educadora do Brasil atfins do sculo XVIII, representada por todas as organizaes religio-sas, do clero secular ao clero regular, que possuam casas no Brasil o que no constitui exagero, comenta Rubens Borba de Moraes.82

Veremos a ao dos religiosos, na Bahia, com a adoo de compndios.

79 Jos Hermano Saraiva, op. cit., p. 239.80 Id., loc. cit.81 Roque Cabral, Filosofia no Colgio das Artes de Coimbra (sc. XVI); sub-

sdios para a sua histria, Rev. Portuguesa de Filosofia, n cit., p. 903-908.82 Livros e bibliotecas no Brasil Colonial, p. 1.

45Nossos elementos culturais primitivos

Levando-se em conta a grande quantidade de formados emconventos ou seminrios, onde sempre se ensinou a Filosofia, e,principalmente o Colgio das Artes em Salvador (1572-1759), pode-seestabelecer como espinhao da formao provinda de Portugal (diretaou indiretamente) e que prevaleceu no Brasil, ao menos at as primei-ras dcadas do sculo XX, uma Filosofia espiritualista, crist mesmo.83

Opondo-se s extremadas correntes racionalista e empirista, asegunda escolstica portuguesa, e num clima da Contra-Reforma, emque, porm, no se devem esquecer as divergncias entre tomistas,escotistas, nominalistas etc., pensava que Aristteles no parecia batidopelos estudos cientficos da poca. Joaquim de Carvalho escreveu:A teoria da matria e da forma, ou, mais explicitamente, a existnciade formas substanciais e a concepo da explicabilidade naturalmediante o concurso de quatro causas (material, formal, eficiente e final),so o pilar fundamental da interpretao aristotlica e escolstica danatureza.84

Erraria, contudo, quem encarasse a escolstica dos sculos XVIe XVII como esttica. Procurou ela uma atualizao, repensando oseu sentido profundo, continuou a servir de base estrutural, inegavel-mente, a todo o pensamento culto; f-lo apenas da o seu erro ,ficando isolada em seus prprios limites, mal se abrindo aos valorese perspectivas novas da cincia ().85

Autores tm procurado mostrar que, apesar de se constituremminoria, muitos mestres, nas vrias ordens religiosas, j defendiamcertas teses ao arrepio das aristotlicas, mesmo antes da publicaodo Verdadeiro mtodo de estudar (1746), do arcediago da S de vora eoratoriano Lus Antonio Verney (1713-1792), que incentivou granderevoluo pedaggica em Portugal.86

Sem falar dos oratorianos que, inicialmente favorecidos pelasbenesses reais, chegaram a abrir, em 1750, na casa de N. Senhora das

83 Dinorah Berbert de Castro, O tradicionalismo em d. Romualdo Antonio deSeixas, p. 371-372.

84 Subsdios para a histria da Filosofia e da Cincia em Portugal, vol. II, p. 16.85 Maria Cndida Monteiro Pacheco, Filosofia e Cincia no pensamento por-

tugus dos sculos XVII e XVIII, Rev. Portuguesa de Filosofia, n cit., p. 475.86 Antonio Alberto Banha de Andrade, Verney e a Filosofia portuguesa e

Contributos para a histria da mentalidade pedaggica portuguesa.

46 Um filosofar difuso

Necessidades, o famoso colgio, com laboratrio de cincias expe-rimentais, mas que tiveram tambm () a honra de, inclusive seumaior nome, Teodoro DAlmeida, serem perseguidos por Pombal (20de junho de 1760),87 lembremos que o Cursus Coninbricensis, de quedepois trataremos, mostrava adiantado progresso de reao inconcussaautoridade aristotlica Alis, bom recordar que, para So Toms, oargumento de autoridade, em Filosofia, de mnimo valor; acontece,porm, que a cincia, no dizer de Bacon, tem asas de chumbo Criti-cando ainda quantos afirmam que os jesutas isolaram, pelo nmerode colgios que possuam, a cultura portuguesa do resto da Europa,Antonio Alberto Banha de Andrade mostra que, antes da publicao doclssico livro de Verney, j se faziam sentidas manifestaes iluministasem Portugal. Fala desse movimento agitado que pretendeu mudar orumo Filosofia em Portugal, cuja presena se nota

() em toda a gama de intelectuais portugueses, nomeadamentenas escolas dos jesutas, oratorianos, teatinos e franciscanos.Com efeito, j antes de o Verdadeiro mtodo de estudar (1746)entrara em Portugal a Filosofia moderna de reao escolstica e,sobretudo, a ateno curiosa Cincia, sem intuito propriamentede as amoldar num sistema coerente, mas admitindo a Filosofiae a Cincia, como duas expresses da explicao do Cosmos e doHomem que se podem interajudar, sem se identificarem.88

Deixamos de analisar a figura de Luis Antonio Verney, tantos e tama-nhos so os escritos sobre o autor e suas obras! Outrossim, dispensamoscomentrios sobre Genovesi, objeto, alis, de perfunctria anlise nestelivro.

Dispensar-nos-amos, tambm, de abordar o que Antonio Paimconsagrou com o nome de momento pombalino,89 por considerar oassunto sobejamente tratado, no quisssemos retomar as conclusesdo renomado historiador de nossas idias filosficas relativamente ao

87 Pe. Miguel de Oliveira, Histria eclesistica de Portugal, p. 271.88 O iluminismo filosfico em Portugal, Revista Portuguesa de Filosofia, n

cit., p. 664. Ver a (p. 641-665) a anlise de alguns autores.89 Duarte Klut, O momento pedaggico pombalino, Revista Portuguesa de

Filosofia, n cit., p. 549-517. Ver todo o excelente artigo de Adolpho Crippa, Con-ceito de Filosofia na poca pombalina, na mesma revista, p. 435-449.

47Nossos elementos culturais primitivos

perodo que se lhe seguiu, quando nos lanamos aventura de criaralgo autnomo em relao Filosofia portuguesa.90

O empirismo mitigado, que ser de freqente referncia neste livro,animou todas as medidas de Sebastio Jos de Carvalho e Melo (1699-1782), cuja denominao de dspota esclarecido o tornar sempreuma figura discutvel Em 1772, o Marqus de Pombal oficializou, nareforma da Universidade, a Filosofia que Verney e Genovesi (Genuen-se) propugnavam. Antes, em 1761, foi criado em Lisboa o Colgio dosNobres, com grande leque de disciplinas cientficas que, anos depois,o mostraram desproporcionado idade dos estudantes.91 Pela citadareforma, foram introduzidas na Universidade as novas faculdadesde Matemtica e Filosofia; esta correspondia s atuais faculdades deCincias (com cursos de Cincias Naturais, Fsica Experimental eQumica). Ambas as faculdades visavam a um cunho utilitrio, muitomenos terico, e segundo tais orientaes, surgiram o horto florestal,museu de Histria Natural, teatro de Filosofia experimental (gabinetede Fsica), laboratrio de Qumica, observatrio astronmico, dispens-rio farmacutico e teatro anatmico. Conseqncia de tudo isso foia formao de elite com mentalidade nova e de naturalistas.92 Entre osilustrados assim formados,93 cita-se o baiano Alexandre RodriguesFerreira (1756-1815), que se matriculou em 1770 no curso de Filoso-fia, em que se doutorou, aprovado que foi nas concluses magnas.Ainda estudante (1777-1778), foi demonstrador de Histria Natural emCoimbra e mandado viajar pelo Brasil. Escreveu, fruto de trabalho dedemarcao do norte e noroeste do Brasil (1783), Viagem filosfica(1785).94

90 Trajetria da Filosofia no Brasil, em: Mrio Guimares Ferri & ShozoMotoyama, op. cit., t. 1, cap. 1, p. 11.

91 Jos Hermano Saraiva, op. cit., p. 249.92 Antonio Paim, O estudo do pensamento filosfico brasileiro, p. 26-27.93 Cf. tambm Maria Luisa S. Ribeiro, Histria da educao brasileira, p.

38-39, e Rubens Borba de Moraes, op. cit., p. 126ss.94 Pedro Calmon, op. cit., cap. XIV, p. 86, nota 1; Wilson Martins, Histria

da inteligncia brasileira, t. 1, p. 530-533. Interessante observar-se como o sentidode cientfico identificado com o de filosfico tambm, quando o povo deno-minara Engenho da Filosofia aquele mantido na Bahia, por Manuel JacintoSampaio e Melo, onde se fazia toda a sorte de experincia, e que publicaria, em1816, um Novo mtodo de fazer o acar ou reforma geral econmica dos engenhos(Rubens Borba de Moraes, op. cit., p. 79).

48 Um filosofar difuso

De mximo valor para estudo do pensamento filosfico luso-brasileiro Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846), que tem sidoobjeto de inmeras referncias e estudos.95 Suas Prelees filosficasforam editadas pela Grijalbo e contm, outrossim, as Categorias deAristteles, traduzidas por ele do grego.

Como se sabe, Silvestre Pinheiro Ferreira elaborou um sistemafilosfico que permitiu cultura luso-brasileira integrao maior napoca Moderna, com uma tentativa de superar o realismo mitigadoento vigente. Lembremos que entrou na Ordem do Oratrio em 1783,deixando-a dez anos depois, e que criticou acerbamente a obra deGenovesi. Retornou a Aristteles, repensando-o diversamente de algunsautores escolsticos, e julgou poder restaurar cientificamente as cate-gorias aristotlicas, dando assim a base realista Metafsica, ao tempoem que elevava o saber filosfico a especfica forma de pensar. Esta-belece, atravs de uma teoria da linguagem, baseada nos sentidos,o respaldo para integrao do emprico e do terico. Quanto proble-mtica moral, buscou Silvestre Pinheiro Ferreira fundamentar a ticaatravs de uma doutrina utilitarista, embora no sentido amplo do termo,quando Deus apresentado como fundamento para a ordem moral dohomem, que deve procur-la guiado pelo desejo tambm da felicidadeterrena.

Publicou vrios trabalhos de cunho poltico, de que destacaremosManual do cidado em um governo representativo ou princpios de direi-to constitucional, administrativo e das gentes (1834) e Declarao dosdireitos e deveres do homem e do cidado (1836).

No plano prtico escreve Antonio Paim foi incumbido derealizar o trnsito da monarquia absoluta para a constitucional,como chefe do ltimo governo de D. Joo VI no Brasil. Mais tarde,radicado em Paris, tornou-se, em seu tempo, um dos principais te-ricos europeus do liberalismo poltico.96

Quis mostrar que o liberalismo poltico devia integrar-se coerente-mente num sistema filosfico. Ento o problema da liberdade humana

95 Cf., entre muitos, Nady Moreira Domingues da Silva, O sistema filosficode Silvestre Pinheiro Ferreira; Antonio Paim, Histria das idias filosficas no Bra-sil, 253-280 et passim; Lopes Praa, op. cit., p. 252-264 et passim.

96 O estudo do pensamento filosfico brasileiro, p. 33.

49Nossos elementos culturais primitivos

conseguiria uma fundamentao baseada na frmula proposta porMaine de Biran (1766-1824), quando o esforo em vencer os impulsosmeramente corpreos, com provados sucessos, inculcaria a existnciade um esprito livre, a animar a matria, veculo de sensaes.

Foi justamente por ter provocado esses debates que Silvestre Pinhei-ro Ferreira vai ensejar o aparecimento entre ns da corrente chamadaecletismo espiritualista, de que falaremos, formada aproximadamentede 1833 a 1848 e que teve como apogeu as dcadas de 50 a 80.97

Esclarece Antonio Paim que a hegemonia do ecletismo espiritualistano significou terem sido afastados da cena o empirismo mitigado e otradicionalismo: o segundo gerar o positivismo, enquanto o primeiro,que especialmente combateu o ecletismo, se vai purificando de exces-sos numa linha neo-escolstica.98

O tradicionalismo na Bahia teve em d. Romualdo Antonio de Sei-xas um dos mais fortes representantes, ao menos nos aspectos polticoe religioso, conforme veremos. Apareceu em Portugal defendido porJos da Gama e Castro (1795-1873), miguelista refugiado no Brasil,cuja obra O novo prncipe, ou o esprito dos governos monrquicosfoi editada no Rio de Janeiro em 1841. Neste trabalho, se defende arestaurao do absolutismo monrquico, numa tese em que se dizser o Prncipe e no a Constituio o elemento essencial para um bomgoverno, ao tempo em que se propugna um liberalismo econmico.

97 Histria das idias filosficas no Brasil, p. 293-310.98 Cf. esquema dos vrios sitemas e suas possveis correlaes em Dinorah

Berbert de Castro, op. cit., p. 65.

Captulo IIIA VIDA LITERRIA NA BAHIA

(SC. XVI A XIX)

edro Calmon, em especfica e documentada obra sobre a vidaliterria baiana, escreve: So em pequeno nmero os filso-

fos,1 e seus escritos, acrescentaramos, em nmeros insignificantes.T-los-amos em boa quantidade, caso no se tivessem perdido as defe-sas de teses de nosso Colgio das Artes. Das concluses pblicas deFilosofia, sobram-nos uma do Maranho, uma do Recife, no colgiofranciscano (frei Joaquim da Purificao O.F.M., entre 1789 e 1802),2

uma do Rio de Janeiro.3 Ao menos tivesse restado o manual de Filo-sofia escrito por Antonio Vieira, citado j pelo Rodrigo de Arriaga!4

Pedro Calmon chama de um perodo ureo da literatura baianao primeiro quartel do sculo XVIII, apoiado inclusive no testemunhode Nuno Marques Pereira (O peregrino da Amrica, de que falaremos),e lembra a necessidade de recordar-se das Constituies primeiras doArcebispado da Bahia publicadas em Lisboa (1719) e em Coimbra(1720) e, em resumo, na Bahia, pelo cn. Joaquim Cajueiro de Campos,em 1847 , no s para comprovar-se a altura dos estudos na Bahia,como tambm porque se trata de um dos mais importantes documentoslegislativos da Igreja no Brasil e na Bahia, com repercusso na readas idias. Arrola nomes religiosos ligados ao ensino da Filosofia, comoos jesutas Martinho Calmon, Domingos de Ramos, o carmelita freiManoel da Madre de Deus Bulhes, frei Manuel do Desterro OFM., dequem fala do Tratado de Filosofia eclesistica, ainda indito.5

P

1 Histria da literatura baiana, p. 141.2 Lus Washington Vita, Conclusiones de Metaphysica, Revista Brasileira de

Filosofia, vol. IX, abr./jun. 1959, p. 248-255.3 Pe. Francisco Fraga S.J., em 1747. Ver os textos em Fernando Arruda Cam-

pos, Tomismo e neotomismo no Brasil, p. 48-54.4 Fernando Arruda Campos, op. cit., p. 43.5 Op. cit., p. 38-44.

52 Um filosofar difuso

Na Academia dos Esquecidos, fundada em 7 de maro de 1722,constavam nomes como do pe. Manuel Ribeiro Rocha (que seria oprecursor do abolicionismo), de Sebastio da Rocha Pitta (1660-1738),bacharel em cnones por Coimbra, do pe. Antonio de Oliveira, lusitano,mestre em artes e telogo dos estudos gerais da Companhia de Jesus naBahia, o de Joo lvares Soares, nascido na Bahia em 8 de setembrode 1676, onde cursou o Colgio dos Jesutas etc.6 De Filosofia, nada.

Tambm no se encontra maior interesse, para nosso propsito,na Academia dos Renascidos, fundada por Jos Mascarenhas PachecoCoelho de Melo, em 19 de maio de 1979, com quarenta acadmicos.Desse escreve Pedro Calmon:

Magistrado cruel e letrado, dcil aos caprichos do Marqus dePombal, de quem foi instrumento e agente, as mos ensangenta-das no castigo do motim do Porto em 1757, mandado Bahia paraexpulsar os jesutas, aqui terra de seu pai se desmascarouidealista, afrancesado, criador de academia de poetas, desafiandoo despotismo em nome do esprito, mrtir da liberdade do pensa-mento

Parece que, por promessa feita na iminncia de naufrgio, prote-lou as medidas contra os inacianos, tendo sido deportado preso,depois, para a fortaleza de Santa Catarina, por julgar-se Pombaltrado, pois Jos Mascarenhas fundou a Academia sem a licenaprvia do Rei, incluiu entre os acadmicos um oficial francs epermitiu a demora da esquadra francesa em Salvador. Celui quimange du juif, en meurt Como homenagem a quem legou Cria(1814) seu palcio rua do Bispo, em Salvador, para nele ser insta-lado o Seminrio de So Dmaso, citamos o acadmico cn. JosTeles de Menezes.7

Ao falar dos filsofos, pelo sculo XIX, Pedro Calmon escreveperodos que integralmente reproduzimos, sem as notas a que remete:8

Representa-se a filosofia com os seus padres mestres, o cnegoAntonio Joaquim das Mercs (que esboou a histria deste ensinoem carta preciosa); fr. Antonio da Virgem Maria Itaparica; fr. Jos

6 Pedro Calmon, op. cit., p. 51-57.7 Ibid., p. 58-66.8 Ibid., p. 141-143.

53A vida literria na Bahia (sc. XVI a XIX)

de Santa Maria Amaral; fr. Jos do Esprito Santo; Joo da VeigaMurici; o dr. Salustiano Jos Pedrosa; Guedes Cabral, que serviude arauto ao materialismo cientfico com a sua tese Funes docrebro (1875); Antonio Ferro Moniz, humanista, extremamenteerudito, o primeiro brasileiro que interpretou o positivismo de Au-gusto Comte, ilustrado por uma original classificao das cincias,para o Catlogo da Biblioteca Pblica da Bahia (1878); EduardoFerreira Frana, autor de Investigaes de Psicologia (Bahia, 1854);o padre Eutichio Pereira da Rocha

A transio do classicismo para a moderna dialtica processou-se atravs da cultura enciclopdica, na sua mistura de ortodoxiae voltairianismo, dos lentes-filsofos de 1820, para alcanar, comfr. Jos do Esprito Santo, a grande voga da escola ecltica, de quefoi divulgador copioso Salustiano Jos Pedrosa, tingindo-se por fimdas novas cores cientificistas com o spencerismo de Ferro Monize o naturalismo filosfico, levado por Guedes Cabral Faculdadede Medicina em 1875, porm por ela repelido com grande atoardade imprensa (na polmica ento aberta entre espiritualistas e mate-rialistas). A briga do positivismo e da Metafsica, que, no campodas idias jurdicas, daria um relevo imenso escola do Recife(Tobias Barreto, o epgono, Slvio Romero, o paladino), antedatou-se destarte porta do ensino mdico e no limiar da livraria pblica,ensejando uma reviso ruidosa das doutrinas sedimentadas emconfronto com as que chegavam, nas tradues do alemo e doingls, com o evolucionismo, o monismo, o organicismo e todaa meia-cincia selada com o carimbo darwinista.

As paralelas projetam-se nos tempos que se seguiram. Haviade deslocar-se o debate para a Faculdade de Direito (1891), maisapropriada s pesquisas do fato social e da sua gern