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História do Ensino da Matemática: uma introdução

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História do Ensino da Matemática: uma introdução

Belo HorizonteCAED-UFMG

2012

Maria Laura Magalhães Gomes

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAISProfº Clélio Campolina Diniz ReitorProfª Rocksane de Carvalho Norton Vice-ReitoriaProfª Antônia Vitória Soares Aranha Pró Reitora de GraduaçãoProfº André Luiz dos Santos Cabral Pró Reitor Adjunto de Graduação

CENTRO DE APOIO DE EDUCAÇÃO À DISTÂNCIAProfº Fernando Selmar Rocha Fidalgo Diretor de Educação a Distância Prof º Wagner José Corradi Barbosa Coordenador da UAB/UFMGProfº Hormindo Pereira de Souza Junior Coordenador Adjunto da UAB/UFMG

EDITORA CAED-UFMGProfº Fernando Selmar Rocha Fidalgo

CONSELHO EDITORIAL Profª. Ângela Imaculada Loureiro de Freitas Dalben Profº. Dan Avritzer Profª. Eliane Novato Silva Profº. Hormindo Pereira de SouzaProfª. Paulina Maria Maia BarbosaProfª. Simone de Fátima Barbosa Tófani Profª. Vilma Lúcia Macagnan CarvalhoProfº. Vito Modesto de Bellis Profº. Wagner José Corradi Barbosa

COLEÇÃO EAD – MATEMÁTICA Coordenador: Dan AvritzerLIVRO: Lições de Cálculo Integral em Várias VariáveisAutores: Dan Avritzer e Mário Jorge Dias CarneiroRevisão: Jussara Maria FrizzeraProjeto Gráfico: Laboratório de Arte e Tecnologia para Educação/EBA/UFMGFormatação: Sérgio Luz

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Biblioteca da Escola de Belas Artes da UFMG, MG, Brasil)

Ficha catalográfica elaborada por XXXXXXXXXXXXXXXXXX, CRB-6/2725

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SuMáRIo

APRESENTAÇÃO 7

NOTA DO EDITOR 11

UNIDADE 1: ASPECTOS GERAIS DA HISTóRIA DO ENSINO DE MATEMÁTICA NO BRASIL 13

Introdução 13

Brasil Colônia (1500-1822) 14

Brasil Império (1822-1889) 15

Brasil República (a partir de 1889) 17

Para Concluir 27

Referências 29

Leituras Complementares 30

Atividades Referentes à Unidade 1

31

UNIDADE 2: OS CONTEúDOS MATEMÁTICOS SCOLARES SE MODIFICAM AO LONGO DO TEMPO:

OS NúMEROS RACIONAIS E IRRACIONAIS NOS LIVROS DIDÁTICOS USADOS NO BRASIL 33

Introdução 33

No início do século XX: racionais e irracionais nos livros de Aritmética 34

Dois tipos de números e sua caracterização nos livros de Aritmética 36

Entre a reforma Francisco Campos e o movimento da matemática moderna 39

Durante o movimento da matemática moderna 42

Um balanço dos três momentos 46

Referências 48

Leituras complementares 50

Atividades referentes à Unidade 2

51

UNIDADE 3: MEMóRIAS E REFLEXõES: HISTóRIAS DE ENSINO DE MATEMÁTICA 53

Introdução 53

Álvaro Moreyra e suas lembranças de um professor de Matemática 55

Felicidade Arroyo Nucci e o ensino da tabuada na escola primária 56

Augusto Meyer e suas dificuldades com a Matemática 58

Sylvia Orthof e sua professora de Matemática no ginásio 59

Humberto de Campos e as práticas com a Matemática na escola do final do século XIX 60

Nelson Werneck Sodré e a Matemática ensinada na formação militar 62

Breves reflexões sobre o ensino da Matemática nas memórias de seis brasileiros 65

Referências 66

Atividades referentes à Unidade 3 67

Lista de tópicos para orientar a escrita do texto de memórias 68

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APRESENTAção

Somos devedores de parte do que somos aos que nos precederam. O dever de memória não se limita a guardar o rastro material, escrito ou outro, dos fatos acabados, mas entretém o sentimento de dever a outros,

dos quais diremos mais adiante que não são mais, mas já foram. Pagar a dívida, diremos, mas também submeter a herança a inventário.

Paul Ricoeur1

O texto aqui apresentado foi escrito para o curso de Licenciatura em Matemática a distância, oferecido pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG2. Este trabalho visa à disciplina História do Ensino da Matemática, que compõe a matriz curricular do curso e está alocada ao final de seu 3º ano.

A história tem sido apontada, tanto nas pesquisas quanto nas propostas curriculares3, como um dos componentes importantes nas questões que envolvem o ensino e a aprendizagem da Matemática, salientando-se suas diversas potencialidades. Essa posição favorável à participação da história nas práticas pedagógicas da educação escolar se tem feito acompanhar, em geral, de uma preocupação com a presença de disciplinas que envolvam história nos cursos de formação de professores. O exame dos projetos curriculares das licenciaturas em Matemática de muitas instituições públicas e privadas revela, com frequência, que tais disciplinas vêm, de fato, fazendo parte do elenco proposto para formar o professor da escola básica brasileira.

No entanto, é oportuno lembrar que, em geral, a inclusão da História da Matemática na formação de professores tem se referido ao enfoque do desenvolvimento, ao longo do tempo, dos conhecimentos matemáticos, sem atenção específica às dimensões históricas do ensino. Tais dimensões constituem o objeto do campo de investigação que tem se estabelecido no Brasil e em outros países com o nome de História da Educação Matemática. Na maioria das vezes, mesmo quando as matrizes curriculares dos cursos de licenciatura acusam a presença de conhecimentos históricos, os aspectos relativos ao ensino não são mencionados nas ementas e programas das disciplinas.

Contudo, a compreensão histórica de diversos aspectos ligados à formação e à atuação docentes, a partir de concepções passadas e presentes, é um elemento de importância

1 RICOEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François [et al.]. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007, p. 101.

2 O curso iniciou-se em 2009, com turmas ingressantes em quatro polos: Araçuaí, Conceição do Mato Dentro, Governador Valadares e Montes Claros. Em 2011, iniciaram suas atividades novas turmas em Araçuaí, Conceição do Mato Dentro e Governador Valadares, além de turmas nos dois novos polos de Januária e Teófilo Otoni. Em 2012, foram abertas inscrições para ingresso de mais turmas em Governador Valadares e Montes Claros e ainda em mais dois polos: Bom Despacho e Corinto.

3 Distinguem-se, na investigação sobre essa temática, os trabalhos dos pesquisadores Antonio Miguel e Maria Ângela Miorim, entre os quais destacamos o livro História na Educação Matemática: propostas e desafios. Já no âmbito das propostas curriculares, é possível notar a defesa dos componentes históricos, por exemplo, nos documentos publicados pelo Ministério da Educação desde 1997-1998, a partir da divulgação dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental.

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8 HISTóRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA

considerável na formação docente, pois esses conhecimentos, adequadamente problemati-zados, podem levar os estudantes a entenderem melhor suas próprias concepções sobre a profissão de professor e sobre as práticas docentes em relação à Matemática. Mais ainda, esses conhecimentos têm o potencial de contribuir para a proposição, pelos professores, de formas alternativas positivas de atuação em relação ao que se tem feito na maioria das vezes – reproduzir práticas inadequadas do passado, mesmo sem entendê-las.

Na criação do curso a distância da UFMG, a elaboração do projeto curricular valorizou a focalização de aspectos históricos do ensino da Matemática e aprovou a inclusão da disciplina a que este texto se destina, com a proposta de ementa transcrita abaixo, considerando-se uma carga horária de 30 horas-aula no curso a distância:

A evolução do ensino de Matemática na educação básica no Brasil: surgimento e principais momentos; a “escola nova” e o “movimento da matemática moderna”; décadas recentes, com os movimentos de universalização e inclusão na educação básica.

Ainda que o escopo previsto seja o da história do ensino da Matemática no Brasil, a proposta é bastante ampla e poderia acolher uma grande variedade de abordagens.

O presente texto foi elaborado levando em conta que uma disciplina não tem espaço para abordar “tudo” e que, mais importante do que apresentar informações, é criar as condições para que os estudantes, no futuro (quando estiverem atuando como professores) possam estudar mais e compreender melhor o que estudam fundamentados em uma postura crítica e investigativa. O título escolhido para o trabalho – História do ensino da Matemática: uma introdução – procura retratar que não se pretendeu escrever um livro panorâmico sobre a história do ensino da Matemática no Brasil, guiado pela ementa proposta para a disciplina do curso de licenciatura a distância da UFMG. Por outro lado, essa ementa está contemplada nas três unidades em que o trabalho foi organizado e sobre as quais discorremos brevemente a seguir.

Na unidade 1, apresentamos uma visão geral da história do ensino da Matemática no Brasil, organizada cronologicamente, na qual procuramos abranger os itens que compõem a ementa da disciplina. Esboçam-se, então, considerações mais genéricas acerca de questões da história da educação brasileira nos períodos colonial, imperial e republicano, com alguma atenção específica ao ensino da Matemática. Considerando que a consolidação de um sistema de ensino no país veio a ocorrer somente no século XX, o espaço maior é dedicado ao Brasil República. Nessa parte, a Matemática é focalizada mais de perto, destacando-se a reforma Francisco Campos (que, em 1931, conferiu ao ensino brasileiro a primeira organização nacional) e o movimento da matemática moderna, marco na história do ensino da Matemática em todo o mundo, nas décadas de 1960 e 1970.

A unidade 2 se destina à tarefa específica de mostrar como os conteúdos matemáticos veiculados na escola, mesmo que estejam sempre presentes, se transformam com o transcorrer do tempo. Para isso, foi escolhido o tema dos números racionais e irracionais, que é abordado a partir de uma fonte muito relevante para a história do ensino da Matemática – os livros didáticos, particularizando três diferentes períodos do século XX: as três primeiras décadas; de 1931 até o início dos anos 1960; e os anos 1960-1970 – período de penetração e difusão do movimento da matemática moderna em nosso país.

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Para complementar o trabalho desenvolvido nas Unidades 1 e 2, são solicitadas leituras de outros textos, a serem disponibilizados aos estudantes com os recursos da plataforma Moodle. Com base na leitura do texto de cada unidade e desse material complementar, são propostas algumas atividades, que podem ser usadas na avaliação da disciplina.

A unidade 3 tem um objetivo duplo. Pretende-se, primeiramente, mostrar ao aluno a relevância das fontes autobiográficas para que se conheça o passado do ensino da Matemática no Brasil, por intermédio da apresentação de excertos de livros de memórias de autores brasileiros que viveram no século XX e relatam, em suas obras, suas experiências escolares. Na valorização da escrita autobiográfica para a história, recorremos às palavras de Paul Ricoeur ao referir-se à memória como matriz da história, “na medida em que ela continua sendo a guardiã da problemática da relação representativa do presente com o passado”4.

Em segundo lugar, visa-se conduzir o licenciando à própria inserção, como sujeito da história do ensino da Matemática no Brasil, pela proposição de uma tarefa reflexiva sobre sua vida pessoal e escolar consubstanciada na escrita de um texto memorialístico, desencadeado a partir da leitura dos fragmentos autobiográficos incluídos na terceira unidade, subsidiado pelo conteúdo das unidades anteriores. Busca-se, com essa proposta, aproveitar a oportunidade do trabalho com a história do ensino da Matemática para explorar as potencialidades das narrativas autobiográficas dos estudantes, que vêm sendo crescentemente valorizadas na pesquisa sobre formação de professores.

Finalizando esta apresentação, registro meus agradecimentos ao professor Dan Avritzer pelo convite para escrever este texto e ministrar, pela primeira vez, no curso de Licenciatura em Matemática a distância da uFMG, a disciplina História do Ensino da Matemática. Cabe-me, ainda, estender esses agradecimentos à professora Maria Cristina Costa Ferreira, pela leitura e cuidadosa revisão deste texto, bem como pelas muitas trocas de ideias e sugestões que contribuíram para o aperfeiçoamento do trabalho que me foi solicitado.

Belo Horizonte, fevereiro de 2012

Maria Laura Magalhães Gomes

4 RICOEUR, op. cit., p. 100.

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NoTA Do EDIToR

A Universidade Federal de Minas Gerais atua em diversos projetos de Educação a Distância, que incluem atividades de ensino, pesquisa e extensão. Dentre elas, destacam-se as ações vinculadas ao Centro de Apoio à Educação a Distância (CAED), que iniciou suas atividades em 2003, credenciando a UFMG junto ao Ministério da Educação para a oferta de cursos a distância.

O CAED-UFMG (Centro de Apoio à Educação a Distância da Universidade Federal de Minas Gerais), Unidade Administrativa da Pró-Reitoria de Graduação, tem por objetivo administrar, coordenar e assessorar o desenvolvimento de cursos de graduação, de pós-graduação e de extensão na modalidade a distância, desenvolver estudos e pesquisas sobre educação a distância, promover a articulação da UFMG com os polos de apoio presencial, como também produzir e editar livros acadêmicos e/ou didáticos, impressos e digitais, bem como a produção de outros materiais pedagógicos sobre EAD.

Em 2007, diante do objetivo de formação inicial de professores em serviço, foi criado o Programa Pró-Licenciatura com a criação dos cursos de graduação a distância e, em 2008, com a necessidade de expansão da educação superior pública, foi criado pelo Ministério da Educação o Sistema Universidade Aberta do Brasil – UAB. A UFMG integrou-se a esses programas, visando apoiar a formação de professores em Minas Gerais, além de desenvolver um ensino superior de qualidade em municípios brasileiros desprovidos de instituições de ensino superior.

Atualmente, a UFMG oferece, através do Pró-licenciatura e da UAB, cinco cursos de graduação, quatro cursos de pós-graduação lato sensu, sete cursos de aperfeiçoamento e um de atualização.

Como um passo importante e decisivo, o CAED-UFMG decidiu, neste ano de 2011, criar a Editora CAED-UFMG como forma de potencializar a produção do material didático a ser disponibilizado para os cursos em funcionamento.

Fernando Selmar Rocha FidalgoEditor

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1 Aspectos gerais da história do ensino de Matemática no Brasil

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13UNIDADE 1: ASPECTOS GERAIS DA HISTóRIA DO ENSINO DE MATEMÁTICA NO BRASIL

uNIDADE 1: ASPECToS GERAIS DA HISTóRIA Do ENSINo DE MATEMáTICA No BRASIL

objetivo

• Apresentar uma visão panorâmica da história do ensino da Matemática no Brasil, com atenção particular às questões que envolvem a tríade professor-aluno-conhecimento matemático.

INTRoDução

A organização atual da educação no Brasil foi estabelecida na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB –, em 20 de dezembro de 1996, quase quinhentos anos depois do descobrimento. Os cursos de Licenciatura em Matemática têm como objetivo a formação de professores para a educação básica proposta pela LDB, que é composta pela educação infantil, pelo ensino fundamental e pelo ensino médio. Em particular, os licenciandos se preparam para serem os docentes que atuarão nos quatro últimos anos do ensino fundamental e nos três anos do ensino médio. Poderão ser também os professores de Matemática da educação de jovens e adultos, da educação profissional, da educação indígena, da educação especial. A Matemática é componente de todos esses currículos, e há grande quantidade de materiais atualmente disponíveis para o seu ensino, alguns deles muito difundidos, como os livros didáticos.

Pode parecer aos futuros docentes que tudo isso é natural, e que sempre foi assim em nosso país. Entretanto, um breve olhar para o passado nos revela que houve muitas mudanças no que diz respeito ao oferecimento das oportunidades de educação e, especialmente para aqueles que pretendem ser professores, em relação aos objetivos, conteúdos e modos de ensinar os conhecimentos matemáticos para a população no longo intervalo de tempo decorrido desde a época em que o Brasil era uma colônia portuguesa até os dias atuais.

Cabe também chamar à atenção para algo que pode passar despercebida, quando se focaliza a formação de professores de Matemática: em geral, ao abordar esse tema, esquecemo-nos de que os anos iniciais da escolarização constituem a época em que se ensinam e aprendem os primeiros conhecimentos matemáticos. Ao lado da língua materna, esses conhecimentos são o principal componente do processo de alfabetização, e integram a célebre tríade “ler, escrever e contar”. A compreensão de dimensões históricas do ensino da Matemática não pode, portanto, desconsiderar conhecimentos gerais relativos ao passado dos níveis mais elementares da educação brasileira.

Neste texto, apresentamos um panorama da educação em nosso país ao longo do tempo no qual buscamos ressaltar alguns aspectos relativos ao ensino da Matemática. Fazemos uma abordagem extremamente geral, com referência aos períodos colonial, imperial e republicano de nosso país, buscando situar, para o estudante de licenciatura, alguns marcos importantes na história do ensino de sua disciplina. Valemo-nos de muitas leituras, e, entre elas, destacamos o livro Introdução à história da educação matemática, de Maria Ângela

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14 HISTóRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA

Miorim1. Um conhecimento mais profundo dos temas aqui apenas sobrevoados demandará muitas outras leituras e estudos complementares, para os quais podem contribuir as referências bibliográficas listadas no final do texto.

Alertamos nossos leitores para as dificuldades da empreitada que ousamos esboçar e para a consciência que temos das muitas lacunas resultantes. As escolhas aqui realizadas trazem os limites naturais advindos da intenção de abarcar um tema tão complexo em tão longo período. Todavia, há alguma coisa de muito útil a se aprender das falhas inerentes a uma tarefa como essa – não há histórias do ensino da Matemática completas, e num país imenso e diverso como o Brasil, muito existe e muito existirá sempre a se pesquisar para conhecer essas histórias, para compreender melhor o nosso passado.

BRASIL CoLôNIA (1500-1822)

Desde o descobrimento, o ensino no Brasil foi quase uma prerrogativa dos padres da Companhia de Jesus. O primeiro grupo de jesuítas chegou ao Brasil em 1549, junto com o primeiro governador-geral, Tomé de Souza. Esses seis padres, liderados pelo padre Manuel da Nóbrega, foram os responsáveis pela criação da primeira escola elementar, na cidade de Salvador. A rede de educação jesuíta ampliou-se com a fundação de outras escolas elementares (em Porto Seguro, Ilhéus, São Vicente, Espírito Santo e São Paulo de Piratininga) e dos colégios, gradualmente estabelecidos na Bahia (1556), no Rio de Janeiro (1567), em Olinda (1568), no Maranhão (1622), em São Paulo (1631) e, posteriormente, também em outras regiões.

Nas escolas elementares, no que diz respeito aos conhecimentos matemáticos, contemplava-se o ensino da escrita dos números no sistema de numeração decimal e o estudo das operações de adição, subtração, multiplicação e divisão de números naturais. Nos colégios, o ensino ministrado era de nível secundário, e privilegiava uma formação em que o lugar principal era destinado às humanidades clássicas. Havia pouco espaço para os conhecimentos matemáticos e grande destaque para o aprendizado do latim. Sobre o ensino desses conhecimentos, conhece-se pouco: por exemplo, sabe-se que a biblioteca do colégio dos jesuítas no Rio de Janeiro possuía muitos livros de Matemática. No entanto, estudos realizados por muitos pesquisadores conduzem à ideia geral de que os estudos matemáticos eram realmente pouco desenvolvidos no ambiente jesuíta.

Em 1759, Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal, primeiro-ministro de Portugal no período 1750-1777, ordenou a expulsão dos jesuítas de todas as colônias. Como esses padres eram os responsáveis pela maior parte das instituições educacionais no Brasil – havia 17 colégios em vários locais nesse momento –, considera-se que sua retirada do país é um marco importante na história da educação brasileira. Restaram poucas escolas, dirigidas por outras ordens religiosas e instituições de ensino militar.

Em 1772, um alvará do marquês de Pombal criou as “aulas régias”, nas quais isoladamente se ensinaram primeiramente a gramática, o latim, o grego, a filosofia e a retórica, e,

1 MIORIM, M. A. Introdução à história da educação matemática. São Paulo: Atual, 1998.

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15UNIDADE 1: ASPECTOS GERAIS DA HISTóRIA DO ENSINO DE MATEMÁTICA NO BRASIL

posteriormente, as disciplinas matemáticas: aritmética, álgebra e geometria. Eram aulas avulsas, e, em relação aos conhecimentos matemáticos, há indícios de que havia poucos alunos e, também, que era difícil conseguir professores.

Em resumo, o que se conhece dessa fase é que o número de aulas de Matemática era pequeno e essas aulas tinham baixa frequência. Uma ocorrência importante, no Brasil do fim do século XVIII, no que diz respeito ao destaque à Matemática e às ciências, foi a criação do Seminário de Olinda pelo bispo de Pernambuco, Dom Azeredo Coutinho, em 1798. Essa instituição, que funcionou a partir de 1800 e não formava somente padres, tornou-se uma das melhores escolas secundárias do Brasil2. Ela conferiu importância ao ensino dos temas matemáticos e científicos, e era estruturada em termos de sequenciamento dos conteúdos, duração dos cursos, reunião dos estudantes em classes e trabalho de acordo com um planejamento prévio.

Enquanto o Brasil foi colônia de Portugal e mesmo durante o império, além das aulas avulsas, havia seminários e colégios mantidos por ordens religiosas, escolas e professores particulares, e os chamados Liceus nos atuais estados do Rio Grande do Norte, da Bahia e da Paraíba.

A chegada de D. João VI e da corte portuguesa ao Brasil, em 1808, trouxe mudanças em muitos campos, entre os quais é preciso enfatizar os ligados à educação e à cultura em geral. Muitas instituições culturais e educacionais foram implantadas, como a Academia Real de Marinha (1808), no Rio de Janeiro, a Academia Real Militar (1810), também no Rio, destinadas a formar engenheiros civis e militares; cursos de cirurgia, agricultura e química, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios (1816), o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, entre outras.

BRASIL IMPéRIo (1822-1889)

Após a independência, em 1822, na instalação dos trabalhos da Assembleia Constituinte, que elaboraria a Constituição, D. Pedro I chamou a atenção para a necessidade de uma legislação especial sobre a instrução pública. A Constituição de 1824, que prevaleceu durante todo o período imperial, afirmava a gratuidade da instrução primária para todos os brasileiros, mas foi somente depois de muitos debates sobre a educação popular que, em 15 de outubro de 1827, a Assembleia Legislativa votou em favor da primeira lei de instrução pública nacional no Império do Brasil. Essa lei estabelecia que houvesse escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugares populosos.

No ensino das primeiras letras, a Matemática estava presente: “primeiras letras” significavam, afinal, “ler, escrever e contar”. É interessante notar que a lei de outubro de 1827 diferenciava a educação para meninos e meninas, prevendo escolas separadas para os dois sexos. O currículo para as escolas de meninos envolvia “ler, escrever, as quatro operações aritméticas, prática de quebrados3, decimais e proporções, noções gerais de

2 Conforme SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2007.3 Trata-se do estudo das frações ordinárias.

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16 HISTóRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA

geometria, gramática da língua nacional, moral cristã e doutrina católica”4. As escolas para meninas existiriam nas localidades mais populosas, seriam dirigidas por professoras e em seu currículo eliminava-se a geometria e a prática de quebrados, incluindo-se o ensino de práticas importantes para a economia doméstica.

No entanto, se é nesse momento que se pode situar a primeira colocação da educação da população como direito social, com a descentralização que o governo do Brasil promoveu em 1834, passando o encargo das “primeiras letras” para as administrações provinciais5, não foi possível a constituição de um sistema escolar capaz de atender a população. Há que se ter sempre em mente a marca antiga da exclusão em nosso país, colonizado por uma metrópole contrarreformista, que considerava os índios como bárbaros e os escravos negros como propriedade de seus senhores; para essa grande parcela da população, a educação era, pois, perfeitamente dispensável. A essas circunstâncias, associavam-se as dificuldades naturais de prover instituições escolares em um país imenso, despovoado, com enormes distâncias6.

No que concerne ao ensino secundário, no início do século XIX, os colégios, liceus, ginásios, ateneus, cursos preparatórios anexos às faculdades e seminários religiosos tinham como objetivo a preparação dos estudantes para os exames de acesso às academias militares e poucas escolas superiores existentes no país. A partir da metade do século, cresceu o número de colégios particulares em quase todas as províncias, que também passaram a oferecer ensino público no nível secundário.

O currículo não era uniforme, mas as disciplinas priorizadas eram o latim, o grego, a retórica, a poética, a filosofia e as línguas modernas. No Rio de Janeiro, o Município da Corte, em 1837, o ministro Bernardo Pereira de Vasconcelos, inspirado na organização dos colégios franceses, criou o Imperial Colégio de Pedro II, concebido para funcionar como internato e externato. O Colégio dava o grau de bacharel em letras aos alunos aprovados em todas as disciplinas durante os sete anos do curso e os alunos concluintes eram dispensados dos exames de ingresso aos cursos superiores.

As matemáticas, que eram as disciplinas de Aritmética, Álgebra, Geometria, e, posteriormente a Trigonometria, apesar do predomínio das disciplinas literárias e humanistas, estavam presentes em todas as séries do curso do Colégio de Pedro II, em todas as várias reformas que modificaram o seu plano de estudos ao longo do tempo.

O Colégio Pedro II tornou-se a instituição modelo para o ensino secundário no Brasil, e de acordo com a História da educação, escrita por Cynthia Greive Veiga7, professora da Faculdade de Educação da UFMG, até 1873, alunos de outras províncias tinham que ir ao Rio de Janeiro para realizar seus exames, que lá eram centralizados. Posteriormente, uma lei autorizou a aplicação desses exames nas próprias províncias.

O Colégio Pedro II, os liceus provinciais, os estabelecimentos religiosos e outros laicos ofereciam, durante a época imperial, o ensino secundário no Brasil. Fundamentalmente,

4 De acordo com VEIGA, Cynthia. G. História da Educação. São Paulo: Ática, 2007.5 Em 1834, promulgou-se um ato adicional à Constituição, que transferiu para as assembleias das províncias a tarefa de

administrar a instrução pública. Cada província passou a ter sua legislação educacional particular.6 CURY, Carlos R. J. A educação como desafio na ordem jurídica. In: LOPES, Eliane M.; FARIA FILHO, Luciano M.; e VEIGA,

Cynthia G. 500 anos de educação no Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.7 VEIGA, C. G., op. cit.

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17UNIDADE 1: ASPECTOS GERAIS DA HISTóRIA DO ENSINO DE MATEMÁTICA NO BRASIL

o público desse ensino era constituído pela elite econômica masculina do país, que se preparava para ocupar cargos político-administrativos e/ou para ingressar nos cursos superiores. As filhas das classes privilegiadas geralmente eram educadas para as atividades do lar e para a convivência social em colégios femininos – leigos ou religiosos – ou em casa, com o auxílio de preceptoras estrangeiras. Aprendiam as primeiras letras, o francês, música, piano e prendas femininas. As mulheres das classes populares podiam frequentar as aulas de instrução elementar, as escolas normais (para formação de professores) e cursos profissionalizantes. Na década de 1880, algumas mulheres passaram a estudar no Colégio Pedro II. Em 1887, a primeira mulher recebeu o diploma de médica no Rio de Janeiro, sendo a única presença feminina na turma.

BRASIL REPúBLICA (A PARTIR DE 1889)

A proclamação da República se deu num momento em que 85% da população era analfabeta8. O primeiro titular do Ministério da Instrução, Correios e Telégrafos, Benjamin Constant (1836-1891), foi o responsável por uma reforma do ensino, em 1890, que ficou conhecida pelo seu nome. Essa reforma, consubstanciada no Decreto 981, referia-se somente à instrução pública de nível primário e secundário no Distrito Federal, então situado no Rio de Janeiro. A lei buscava romper com a tradição humanista e literária do ensino secundário pela adoção de um currículo que privilegiava as disciplinas científicas e matemáticas. A Matemática era tida como a mais importante das ciências no ideário positivista do filósofo francês Auguste Comte (1798-1857), ao qual aderiram Benjamin Constant e o grupo de militares brasileiros que liderou a proclamação da República. Assim, essa disciplina adquiria grande relevância na proposta da Reforma Benjamim Constant, particularmente nos sete anos que compunham a educação secundária. É importante assinalar que o Colégio Pedro II, referência para esse nível da educação, passou a se chamar Ginásio Nacional quando se estabeleceu a República. A frequência ao ensino secundário, cujo objetivo principal, como vimos, era a preparação para a educação superior, não era obrigatória, e muitos estudantes, sem realizar um curso regular, faziam os chamados exames preparatórios para o ingresso nos cursos superiores, entre os quais figuravam os das disciplinas matemáticas: Aritmética, Álgebra, Geometria e Trigonometria.

No que diz respeito ao ensino primário, o início da República foi o momento da implantação de um novo modelo de organização, o dos grupos escolares, e o estado pioneiro nessa medida foi São Paulo, em 1893. Esse modelo, que logo se difundiu pelos outros estados, reunia as classes em séries, estruturadas progressivamente, com cada série numa sala, com um professor, e grupos de quatro ou cinco séries reunidos em um mesmo prédio. Em Minas Gerais, os grupos escolares foram estabelecidos em 1906, durante o governo de João Pinheiro, e se organizavam em quatro séries.

Na década de 1920, num contexto de profundas mudanças políticas, econômicas e sociais, realizaram-se, em diversos estados brasileiros e no Distrito Federal9, reformas no sistema

8 Conforme ROMANELLI, O. História da educação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2001.9 As reformas que ocorreram nesse período foram lideradas por autoridades ligadas à educação em cada local. Alguns

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18 HISTóRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA

de ensino relativas à educação primária e à formação de professores para esse nível. As mudanças efetivadas pelas legislações estaduais e do Distrito Federal vinculavam-se ao movimento pedagógico conhecido, entre outras denominações, como Escola Nova ou Escola Ativa10.

Com esse movimento, procurava-se implementar, na escola primária, ideias em desenvolvi-mento na Europa e nos Estados Unidos desde o século XIX apresentadas nos trabalhos de diversos educadores de países distintos. Embora a Escola Nova se tenha nutrido de um amplo espectro de teorias, alguns princípios se constituíram como seus traços identificadores. Segundo Diana Vidal11, esses princípios eram “a centralidade da criança nas relações de aprendizagem, o respeito às normas higiênicas na disciplinarização do corpo do aluno e de seus gestos, a cientificidade da escolarização de saberes e fazeres sociais e a exaltação do ato de observar, de intuir, na construção do conhecimento do aluno”. Maria Ângela Miorim12 destaca duas ideias fundamentais comuns às diversas correntes escolanovistas: o “princípio da atividade” e o “princípio de introduzir na escola situações da vida real”, que trouxeram mudanças no ensino dos anos iniciais da escolarização, com reflexos específicos na abordagem da Matemática.

Em Minas Gerais, no contexto das reformas realizadas por Francisco Campos (1891-1968), o titular da secretaria do governo estadual responsável pela educação, começou a funcionar, a partir de 1929, a Escola de Aperfeiçoamento. Esta instituição situava-se na capital do estado, Belo Horizonte, com o objetivo de oferecer às docentes mineiras em exercício no ensino primário um curso sintonizado com os princípios da Escola Nova, a fim de preparar adequadamente profissionais que seguissem as novas diretrizes pedagógicas.

Para dar uma ideia de como se manifestavam essas diretrizes em relação ao ensino da Matemática, é oportuno citar um trecho de um texto escrito pela professora Alda Lodi (1898-2002), docente de Metodologia da Aritmética na Escola de Aperfeiçoamento:

Como Arith. não deve ser ensinada com o fim de arith. exclusivamente, á parte das necessidades da vida, sem attender ás sit. reaes que a creança encontra, mas sim ajudal-a a estimar, a medir, a comparar, a calcular, a tornal-a socialmente efficiente no manejo das sit. numéricas, entendemos iniciar nosso curso discutindo a creança e o programa escolar. Assim, sempre firmamos as bases do nosso trabalho – giral-o em torno da creança, aproveitando seus interesses imediatos como ponto de partida da educação. (Lodi, 1929, p. 1)13.

Segundo Maria Ângela Miorim, esse movimento de renovação pedagógica não alcançou logo a educação secundária, que continuou pautando sua ação “num ensino livresco, sem relação com a vida do aluno, baseado na memorização e na assimilação passiva dos conteúdos” (1998, p. 90).

exemplos são: São Paulo (1920), com Sampaio Dória; Ceará (1922-1923), com Lourenço Filho; Distrito Federal (1922-1926) e Pernambuco (1928), com Carneiro Leão; Minas Gerais (1927-1928), com Francisco Campos; Bahia (1928), com Anísio Teixeira. No Distrito Federal, em 1928, ocorreu nova reforma, sob a liderança de Fernando de Azevedo (Conforme Veiga, C. G., op. cit.).

10 De acordo com Veiga (2007), utilizaram-se ainda os termos “escola moderna”, “escola progressista” e “escola do trabalho”. 11 VIDAL, D. Escola nova e processo educativo. In: LOPES, E. M.; FARIA FILHO, L. M.; VEIGA, C. G. (Orgs.) 500 anos de Educação

no Brasil.3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p. 497-517.12 Miorim, 1998, p. 90.13 Preservamos a ortografia e as abreviações da autora em Lodi, A. [Relato de atividades desenvolvidas nos três primeiros

meses como docente da Escola de Aperfeiçoamento] (1929). Belo Horizonte: não publicado.

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19UNIDADE 1: ASPECTOS GERAIS DA HISTóRIA DO ENSINO DE MATEMÁTICA NO BRASIL

Em 1908, realizou-se em Roma o quarto congresso internacional de Matemática, no qual foi criada uma comissão internacional14 para tratar de questões do ensino, presidida pelo matemático alemão Felix Klein (1849-1925). Essa comissão estabeleceu como meta proceder a um estudo sobre o ensino secundário da Matemática em vários países, entre os quais estava o Brasil, e sua constituição assinala a existência de um primeiro movimento internacional para a modernização do ensino. As principais propostas desse movimento eram: promover a unificação dos conteúdos matemáticos abordados na escola em uma única disciplina, enfatizar as aplicações práticas da Matemática e introduzir o ensino do cálculo diferencial e integral no nível secundário.

No Brasil, o maior adepto das ideias modernizadoras foi o professor catedrático de Matemática do Colégio Pedro II15, Euclides Roxo (1890-1950), que liderou a proposição de uma mudança radical nos programas de ensino da instituição, aprovada por sua congregação em 1928. A característica mais evidente dessa proposta era a unificação das antigas disciplinas de Aritmética, Álgebra, Geometria e Trigonometria, que eram ensinadas por docentes distintos e faziam uso de livros diferentes, em uma nova disciplina chamada Matemática.

A introdução das ideias modernizadoras em âmbito mais amplo nas escolas secundárias brasileiras concretizou-se, porém, somente em 1931, com uma série de decretos que se propunham a organizar nacionalmente a educação no país, e que ficaram conhecidos como a reforma Francisco Campos, porque foram publicados quando da gestão desse mineiro como o primeiro titular do Ministério da Educação e da Saúde, instituído no governo Getúlio Vargas.

A proposta curricular da nova disciplina Matemática na reforma Francisco Campos é bastante detalhada, ultrapassando uma simples lista de conteúdos a serem ensinados na escola secundária. Seu texto se inicia por uma exposição das finalidades do ensino da Matemática:

O ensino da Matemática tem por fim desenvolver a cultura espiritual do aluno pelo conhecimento dos processos matemáticos, habilitando-o, ao mesmo tempo, à concisão e ao rigor do raciocínio pela exposição clara do pensamento em linguagem precisa.

Além disso, para atender ao interesse imediato da sua utilidade e ao valor educativo dos seus métodos, procurará, não só despertar no aluno a capacidade de resolver e agir com presteza e atenção, como ainda favorecer-lhe o desenvolvimento da capacidade de compreensão e de análise das relações quantitativas e espaciais, necessárias às aplicações nos diversos domínios da vida prática e à interpretação exata e profunda do mundo objetivo.16

A proposta enfatizava a necessidade de se ter sempre em vista, no ensino, o grau de desenvolvimento mental do aluno e seus interesses, e insistia em que sua atividade fosse constante, de modo que o estudante fosse “um descobridor e não um receptor passivo de conhecimentos17”. Por isso, recomendava a renúncia “à prática da memorização sem

14 Trata-se da Comission Internationale de l’Enseignement Mathématique – CIEM – ou Internationalen Mathematischen Unterrichts Kommission – IMUK –, que ficou conhecida, desde 1954, pela sigla ICMI – International Comission on Mathematical Instruction.

15 A instituição, que havia tido seu nome trocado com a proclamação da República, voltou a usar o nome antigo em 1911.16 Novíssimo Programa do Ensino Secundário (nos termos do art.10, do decreto n. 19.890 de 18 de abril de 1931). Rio de

Janeiro, 1931.17 Os trechos entre aspas neste parágrafo são expressões transcritas da proposta de Matemática da reforma Francisco

Campos.

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20 HISTóRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA

raciocínio, ao enunciado abusivo de definições e regras e ao estudo sistemático das demonstrações já feitas”.

Além disso, salientava-se que o ensino deveria partir da intuição; para a geometria, em particular, o estudo das demonstrações formais precisa ser precedido de atividades de experimentação e construção. A proposta atribuía papel importantíssimo ao conceito de função, como “ideia central do ensino”, apresentada primeiro intuitivamente, e desenvolvida gradativamente ao longo das séries. Na quinta série, prescrevia-se o ensino das noções básicas do cálculo diferencial e integral – limite, derivada e integral.

Havia, ainda, orientações específicas quanto à Aritmética, à Álgebra e à Geometria, e, por fim, a lista de conteúdos para cada uma dessas áreas a serem trabalhados nas cinco séries do ensino fundamental, que se sucederiam ao curso primário de quatro anos.

Deve-se chamar a atenção para a estruturação do ensino secundário introduzida pela reforma: após o primário, vinha o curso fundamental, de cinco anos, com a presença da Matemática em todos eles, e posteriormente seguia-se o curso complementar, com duração de dois anos, já dirigido para o ensino superior almejado pelo aluno. No curso voltado para as carreiras de medicina, farmácia e odontologia, a Matemática comparecia em um dos dois anos; para os que desejassem ser engenheiros, químicos ou arquitetos, estava presente em todo o curso.

Uma característica central da proposta de educação secundária da reforma Francisco Campos é sua afirmação do caráter de formação desse nível de ensino, em contraposição à natureza anterior que se lhe associava, de preparação para os cursos superiores. Essa caracterização do ensino secundário, como uma etapa de formação, está explícita, na exposição de motivos do ministro Francisco Campos ao presidente Getúlio Vargas, em abril de 1931, como se pode notar no trecho a seguir:

A finalidade do ensino secundário é, de fato, muito mais ampla do que a que se costuma atribuir-lhe. Via de regra, o ensino secundário tem sido considerado entre nós como um simples instrumento de preparação para dos candidatos ao ensino superior, desprezando-se, assim, a sua função eminentemente educativa que consiste, precisamente, no desenvolvimento das faculdades de apreciação, de juízo e de critério, essenciais a todos os ramos da atividade humana, e, particularmente, no treino da inteligência em colocar os problemas nos seus termos exatos e procurar as suas soluções mais adequadas18.

Sendo revolucionária em relação à tradição de ensino vigente, a proposta de Matemática da reforma Francisco Campos foi atacada de muitas maneiras. Maria Ângela Miorim19 destaca alguns dos problemas ocorridos. Os professores da época tiveram dificuldades de adaptação, agravadas, num primeiro momento, pela falta de livros didáticos de acordo com as novas diretrizes.

Havia os defensores do ensino das humanidades clássicas, e especialmente do latim, como o padre Arlindo Vieira, que criticaram fortemente o que consideravam um excesso de conteúdos no programa da reforma, bem como a fusão das disciplinas matemáticas em uma única disciplina.

18 Novíssimo Programa do Ensino Secundário (nos termos do art.10, do decreto n. 19.890 de 18 de abril de 1931). Rio de Janeiro, 1931.

19 MIORIM, 1998, op. cit.

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21UNIDADE 1: ASPECTOS GERAIS DA HISTóRIA DO ENSINO DE MATEMÁTICA NO BRASIL

Professores de Matemática que se posicionavam favoravelmente ao ensino tradicional, no qual a Matemática era concebida principalmente como disciplina mental, consideraram que a nova proposta, que começou a ter repercussões em alguns livros didáticos de caráter mais intuitivo, rebaixava o ensino. O principal representante desse grupo era um professor do Colégio Pedro II, Almeida Lisboa, que, em muitos artigos publicados em jornais da época, atacava frontalmente o professor Euclides Roxo, o principal responsável pela reforma no que diz respeito à Matemática.

No que toca à educação superior20, nos anos iniciais da República, foram criadas várias faculdades no país. O controle desse nível de ensino pertencia ao governo federal. A primeira instituição de ensino superior brasileira com o nome de universidade foi a Universidade de Manaus, surgida em 1909, no auge da exploração da borracha, que teve existência até 1926. Em São Paulo (1911) e no Paraná (1912), criaram-se outras universidades, que também duraram pouco; a primeira universidade duradoura foi a do Rio de Janeiro, estabelecida em 1920, pela reunião das faculdades de Medicina, Direito e Engenharia já existentes.

Em 1927, as faculdades do mesmo tipo situadas em Belo Horizonte, juntamente com a de Odontologia e Farmácia, foram reunidas na Universidade de Minas Gerais, que veio a ser, a partir de 1965, a atual Universidade Federal de Minas Gerais. Cabe assinalar, ainda, que a formação específica de professores para o ensino secundário em nível superior só teve início no Brasil em 1934, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP). No Rio de Janeiro, tem destaque a criação da Universidade do Distrito Federal, em 1935, extinta em 1939 para dar lugar à Universidade do Brasil. Nesse mesmo ano, criou-se a Faculdade Nacional de Filosofia, na qual, bacharelando-se primeiramente em Matemática e, posteriormente, cursando Didática, o estudante poderia obter o diploma de licenciado em Matemática.

De 1942 a 1946, a educação brasileira passou por novas reformas, pela via de uma série de decretos-lei que criaram o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial –Senai – e o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial – Senac – e normatizaram os ensinos industrial, comercial, primário, secundário, normal e agrícola. O conjunto de decretos ficou conhecido como a reforma Gustavo Capanema.

O ensino secundário, regulamentado em 1942 por meio da Lei Orgânica do Ensino Secundário, foi organizado em dois ciclos: o ginasial, de quatro anos, e o colegial, de três anos, nas modalidades clássico e científico. Criou-se o ramo secundário técnico-profissional, subdividido em industrial, comercial e agrícola, além do normal, para formar professores para a escola primária.

Esse conjunto de reformas tinha caráter centralista e dualista no sentido de separar o ensino secundário, destinado às elites, e o ensino profissional, para o povo, pois somente os egressos do ensino secundário tinham o direito de acesso aos cursos superiores21.

20 Baseamo-nos, aqui, no texto de Luiz Antônio Cunha: CUNHA, L. A. Ensino superior e universidade no Brasil. In: LOPES, E. M.; FARIA FILHO, L. M. e VEIGA, C. G. 500 anos de educação no Brasil. 3ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

21 Conforme SAVIANI, 2007, op. cit.

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22 HISTóRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA

A Lei Orgânica do Ensino Secundário foi acompanhada por uma portaria ministerial, datada de 17 de julho de 1942, na qual se estabeleciam os programas para as disciplinas do curso ginasial do ensino secundário. Diferentemente do ocorrido com a reforma Francisco Campos, a reforma Gustavo Capanema não detalhou esses programas, limitando-se a portaria a apresentar listas de conteúdos, sem quaisquer indicações metodológicas para a abordagem dos diversos assuntos.

Os programas de Matemática das duas primeiras séries se subdividem em dois temas: Geometria Intuitiva e Aritmética Prática, enquanto os das duas últimas séries contêm, separadamente, os itens relativos à Álgebra e à Geometria Dedutiva. Após a reforma Campos, foram publicadas várias coleções de livros didáticos em cinco volumes que visavam atender ao disposto em sua proposta para o curso fundamental. Com a reforma Capanema, autores e editoras reorganizaram essas coleções em quatro volumes e as colocaram no mercado para atender a nova estruturação do ensino secundário22.

A partir da década de 1950, as disciplinas escolares, e entre elas a Matemática, começam a se modificar. Uma transformação das condições econômicas, sociais e culturais do Brasil e das possibilidades de acesso à escola começa a requerer alterações no funcionamento e nas finalidades dessa instituição, o que repercute no ensino das diversas disciplinas.

Modifica-se o público de estudantes, com a inserção, na educação escolar, de alunos provenientes das camadas populares, que vinham reivindicando há muito tempo o direito à escolarização. Trata-se de uma democratização da escola, que passa a receber também os filhos da classe trabalhadora, e cresce enormemente o número de alunos no primário e no secundário. As necessidades de professores para atender a esse público expandido levam à diminuição das exigências na seleção desses profissionais. Assinala-se, nesse momento, portanto, uma mudança significativa das condições escolares e pedagógicas, das necessidades e exigências culturais23.

De fato, e também por fatores além dos que acabamos de comentar, o ensino da Matemática no Brasil se alteraria muito a partir do final da década de 1950, quando tiveram início os primeiros congressos nacionais de ensino realizados em nosso país. O primeiro desses encontros ocorreu em Salvador, em 1955, com a participação de 115 professores de sete estados, e o segundo em Porto Alegre, em 1957, com a presença de 240 professores.

Muitos matemáticos e professores de Matemática se envolveram, desde essa época, no movimento internacional que ficou conhecido como o Movimento da Matemática Moderna. Apresentamos, a seguir, uma síntese dos aspectos principais desse movimento, cujos desenvolvimentos e desdobramentos vêm sendo pesquisados profunda e minuciosamente no Brasil e em outros países.

Em 1957, os soviéticos, superando os norte-americanos na corrida espacial, foram os primeiros a lançar o Sputnik, o primeiro satélite artificial da Terra. O governo dos Estados Unidos, que já se mobilizava em torno de uma reforma dos currículos escolares de Ciências e Matemática

22 De acordo com VALENTE, W. R. (Org.). o nascimento da matemática do ginásio. São Paulo: Annablume; FAPESP, 2004.23 Conforme SOARES, M. Português na escola: História de uma disciplina curricular. In: LOPES, E. M.; PEREIRA, M. R. (orgs.).

Conhecimento e inclusão social: 40 anos de pesquisa em Educação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

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23UNIDADE 1: ASPECTOS GERAIS DA HISTóRIA DO ENSINO DE MATEMÁTICA NO BRASIL

para vencer a defasagem entre este currículo e o progresso científico-tecnológico do momento, intensificou seus esforços e financiamentos para desenvolver recursos didáticos, inclusive livros, e disseminar as novas propostas no país e no estrangeiro24.

Ao mesmo tempo, na Europa, especialmente na França, matemáticos e educadores promoviam eventos e também propagavam um ideário renovador do ensino da Matemática. Em 1959, a Organização Europeia de Cooperação Econômica – OECE – realizou uma conferência de duas semanas de duração na cidade de Royaumont, na França, reunindo especialistas de vinte países para discutir propostas de mudanças para o ensino de Matemática no nível secundário. Buscava-se, com o Movimento da Matemática Moderna, renovar o ensino pela introdução, no currículo, de aspectos da Matemática desenvolvida mais modernamente, isto é, a partir do século XVIII.

Foi nessa conferência que se estabeleceram as bases do movimento modernista: além da introdução, nos currículos, de uma Matemática produzida mais recentemente, defendia-se o realce na precisão da linguagem matemática; uma nova abordagem dos conteúdos tradicionais na qual estivessem presentes as linguagens dos conjuntos, as relações (subconjuntos do conjunto dos pares ordenados do produto cartesiano de dois conjuntos) e as estruturas matemáticas (anéis, grupos, corpos, espaços vetoriais), a sequenciação dos conteúdos de acordo com a moderna construção lógica da Matemática, o destaque para as propriedades das operações em lugar da ênfase nas habilidades computacionais.

A penetração das ideias do Movimento da Matemática Moderna no Brasil foi grande. Em 1959, o 3º Congresso Brasileiro de Ensino de Matemática, realizado no Rio de Janeiro, agregou 500 professores de 18 estados e nesse evento se verificaram as primeiras manifestações sobre o Movimento da Matemática Moderna em nosso país.

Formaram-se, em vários estados, grupos cujo objetivo era preparar os professores para atuar em sintonia com as novas diretrizes propostas. Desses grupos, um dos mais importantes foi o Grupo de Estudos do Ensino da Matemática –GEEM –, fundado em São Paulo, em 1961, sob a liderança de Osvaldo Sangiorgi, que havia realizado, em meados do ano anterior, um estágio nos Estados Unidos, na Universidade do Kansas. Outros grupos de destaque foram o Grupo de Estudos de Ensino da Matemática – GEEMPA –, de Porto Alegre; o Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Matemática – GEPEM –, do Rio de Janeiro; o Núcleo de Estudo e Difusão do Ensino da Matemática – NEDEM –, de Curitiba; e o grupo da Bahia, coordenado pelo professor Omar Catunda25.

Em 1962, durante o 4º Congresso Brasileiro de Ensino de Matemática, em Belém do Pará, o GEEM apresentou algumas experiências realizadas com a Matemática Moderna, bem como um programa para a Matemática da escola secundária, baseado nas ideias modernizadoras. Em 1966, o 5º Congresso Brasileiro de Ensino de Matemática, realizado em São José dos Campos, no estado de São Paulo, teve como foco principal a implantação da Matemática Moderna no Brasil, e contou com a presença de defensores da reforma modernista em

24 Ver, por exemplo, Fiorentini (1995), Miorim (1998).25 Conforme MIORIM, 1998, e VALENTE, W. Programas e livros didáticos modernos para o ensino de matemática no Brasil.

In: MATOS, J. M. e VALENTE, W. R. A reforma da Matemática Moderna em contextos ibero-americanos. Lisboa: Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, 2010, pp. 77-102.

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24 HISTóRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA

outros países, como os professores Marshall Stone, dos Estados Unidos, e Georges Papy, da Bélgica, entre outros26.

O Movimento da Matemática Moderna tinha, como um de seus principais objetivos, integrar os campos da aritmética, da álgebra e da geometria no ensino, mediante a inserção de alguns elementos unificadores, tais como a linguagem dos conjuntos, as estruturas algébricas e o estudo das relações e funções. Enfatizava-se, ainda, a necessidade de conferir mais importância aos aspectos lógicos e estruturais da Matemática, em oposição às características pragmáticas que, naquele momento, predominavam no ensino, refletindo-se na apresentação de regras sem justificativa e na mecanização dos procedimentos.

Como a Matemática havia se tornado, desde o século XIX, mais precisa e fundamentada logicamente, buscava-se que os conhecimentos veiculados na escola refletissem essa característica27. Por outro lado, para a geometria, os defensores do movimento propunham a substituição da abordagem clássica inspirada nos Elementos, de Euclides, que dominava as escolhas dos autores e professores há séculos, pelo enfoque das transformações geométricas, com o estudo dos conceitos de vetor, espaço vetorial e transformação linear.

Torna-se agora importante sublinhar um aspecto mais geral da educação brasileira desde, principalmente, os anos 1960. De acordo com Magda Soares28, a necessidade de um recrutamento mais amplo e menos seletivo de professores em decorrência do crescimento da necessidade desses profissionais, já comentada anteriormente, levou a uma intensificação do processo de depreciação da função docente, que se manifestou no rebaixamento salarial e na maior precariedade das condições de trabalho. Nesse momento, os professores precisam de recursos que suavizem as atribuições docentes, e uma das estratégias para isso é transferir ao livro didático a tarefa de preparar aulas e exercícios. Observa-se, então, um aumento da importância dos livros didáticos no ensino de todas as disciplinas escolares.

No caso específico da Matemática, nesse período de propagação das ideias do Movimento da Matemática Moderna, muitas coleções de livros didáticos, publicados a partir de 1963, tiveram papel importantíssimo na disseminação do ideário modernista. Esses livros, fundamentados na organização estrutural dos conjuntos numéricos, na maior parte das vezes se iniciavam pela abordagem dos conjuntos, em que se evidenciava fortemente a presença da linguagem simbólica. Somente depois se focalizavam os conjuntos numéricos, na seguinte ordem: naturais, inteiros, racionais e reais, enfatizando a relação de inclusão de cada um deles naquele que o seguia. Na abordagem dos conjuntos numéricos, insistia-se nas propriedades estruturais das operações neles definidas, destacando-se, para a adição e a multiplicação, a associatividade, a comutatividade, os elementos neutro e inverso, a distributividade da multiplicação em relação à adição.

Em um estudo publicado em 2005, Maria Ângela Miorim29 aponta as dificuldades dos autores de livros didáticos para chegar a uma abordagem em conformidade com o ideário

26 De acordo com MIORIM, 1998, op. cit.27 De acordo com FIORENTINI, D.; Miguel, A.; MIORIM, M. A. Álgebra ou Geometria: para onde pende o pêndulo? In: Pro-

Posições. São Paulo, v.3, n.1 (7), pp.39-54.28 SOARES, M., op. cit.29 MIORIM, M. A. Livros didáticos de matemática do período de implantação do movimento da matemática moderna no

Brasil. In: V Congresso Ibero-americano de educação matemática, 2005, Porto. V CIBEM - Congresso Ibero-americano de educação matemática. Porto: Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, 2005. v. 1, p. 1-20.

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25UNIDADE 1: ASPECTOS GERAIS DA HISTóRIA DO ENSINO DE MATEMÁTICA NO BRASIL

modernista. A autora salienta que tais dificuldades parecem ter sido ainda maiores no tocante à geometria, pois os enfoques adotados nas obras não se distanciaram muito do que era feito anteriormente. Consequentemente, houve realizações distintas, e cada autor ou grupo de autores trabalhou de forma diferenciada os conteúdos geométricos, embora se possa perceber, nas apresentações desses conteúdos em diversos livros, um aspecto comum: a utilização da linguagem dos conjuntos.

A geometria escolar, tendo assumido abordagens muito variadas nos livros, foi, de acordo com Maria Ângela Miorim, traduzida pelos autores em suas obras segundo suas próprias experiências pedagógicas e leituras das propostas modernistas. Pode se dizer, porém, que resultou dos modos de apropriação das ideias do movimento, em parte, a descaracterização da tradicional abordagem axiomático-dedutiva da geometria em favor da presença de uma abordagem eclética, na qual se tornou patente o abrandamento da exigência das demonstrações.

Um dos efeitos da disseminação das ideias do Movimento da Matemática Moderna, de acordo com vários autores, foi uma diminuição da presença dos conteúdos geométricos nas práticas pedagógicas realizadas nas escolas, tanto pelo papel de relevo adquirido pela álgebra quanto pela falta de subsídios dos professores para efetivar as propostas modernistas para a geometria.

Regina Pavanello30 sublinha que, em decorrência da ampliação da rede de escolas públicas e das políticas educacionais daquele momento em que o país era governado por uma ditadura militar, a partir de 1968 criaram-se cursos de natureza aligeirada para formar professores para atender as demandas urgentes que se colocavam. Nesses cursos, não havia investimento suficiente em relação à preparação para o ensino da geometria, e como consequência da penetração do ideário modernista e desse contexto, configurou-se, no Brasil, aquilo que se passou a denominar “o abandono do ensino da geometria”.

Um ponto importante a ser destacado na história da organização do ensino brasileiro são as mudanças trazidas pela Lei de Diretrizes e Bases para o Ensino de 1º e 2º graus (LDB 5692) de 1971. Essa lei dividiu o ensino em dois níveis. O primeiro grau, com duração de oito anos, unia os antigos primário e ginásio sem a necessidade de que o estudante se submetesse, como anteriormente, ao chamado Exame de Admissão que o habilitava a prosseguir os estudos depois dos quatro primeiros anos de escolarização. O 2º grau foi proposto como curso de preparação profissional, buscando desviar parte da demanda pelo ensino superior, que não oferecia vagas suficientes para todos os concluintes da escola secundária.

Segundo Regina Pavanello, não foi possível realizar essa profissionalização nas escolas públicas, que careciam de recursos humanos e materiais para tais tarefas, enquanto as escolas particulares, interpretando de acordo com seus interesses a legislação, mantiveram um ensino preparatório para o nível superior. O que se verificou, em parte devido à expansão da rede escolar desacompanhada do oferecimento de uma formação docente de qualidade em larga escala, num contexto em que a álgebra assumiu papel preponderante, foi quase a total ausência do ensino da geometria nas escolas públicas nas décadas de 1970 e 1980.

30 PAVANELLO, R. M. o abandono da geometria no Brasil: causas e conseqüências. Zetetiké, Campinas, n. 1, p. 7-17, mar. 1993.

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26 HISTóRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA

No final dos anos 1970, surgem críticas ao Movimento da Matemática Moderna em muitos países. Pessoas de grande credibilidade entre os matemáticos, como Morris Kline31, nos Estados Unidos, e René Thom32, na França, posicionam-se contra as propostas do movimento. Critica-se a ênfase na Matemática pela Matemática, em seu formalismo e nos aspectos estruturais, assim como a preocupação excessiva com a linguagem e os símbolos.

No Brasil, a crítica à Matemática Moderna e a discussão sobre seu fracasso no ensino, no final da década de 1970 e início dos anos 1980, fizeram parte de um contexto de renovação dos ideais educacionais, estimulado pelo fim da ditadura militar. Em relação às propostas curriculares para a Matemática, no nível anteriormente chamado 1º grau, surgem alternativas ao ideário modernista, como a representada pelo documento oficial do estado de São Paulo, em 1986, que, centrada em três grandes temas – números, medida e geometria – apresenta características opostas às prevalecentes durante a predominância das concepções associadas à Matemática Moderna.

Entre essas alternativas destacam-se a preocupação com uma abordagem histórica dos temas, a ênfase na compreensão dos conceitos, levando-se em conta o desenvolvimento dos alunos, a acentuação na importância da geometria e a eliminação do destaque conferido aos conjuntos, à linguagem simbólica e ao rigor e à precisão na linguagem matemática.

Outros marcos relevantes quanto ao ensino da Matemática no Brasil, nos últimos trinta anos do século XX, são a implantação de programas de pós-graduação em Matemática nas universidades, desde 1971, e, a partir de 1987, a criação de cursos específicos de pós-graduação em Educação Matemática, em nível de especialização, mestrado e doutorado, em vários estados brasileiros.

Salienta-se, ainda, a realização de inúmeros encontros locais, estaduais e nacionais de Educação Matemática e a fundação, em 1988, da Sociedade Brasileira de Educação Matemática – SBEM – 33, uma sociedade civil, de caráter científico e cultural, cuja finalidade principal é congregar profissionais da área de Educação Matemática ou áreas afins. Os membros da SBEM são pesquisadores, professores e alunos que atuam na educação básica e superior no Brasil.

31 Morris Kline (1908-1902), professor da Universidade de Nova Iorque e historiador da Matemática norte-americano, publicou, em 1973, um livro em que expunha sua oposição radical ao ideário do Movimento da Matemática Moderna, intitulado Why Johnny Can’t Add: The Failure of the New Mathematics, que foi editado no Brasil em 1976, com o título de o fracasso da Matemática Moderna.

32 René Thom (1923-2002), matemático francês, ganhador, em 1958, do mais importante prêmio internacional de Matemática, a medalha Fields, é o criador da Teoria das Catástrofes. Escreveu textos contra as ideias do Movimento da Matemática Moderna. Como exemplo, tem-se o artigo denominado Matemática “moderna”: um erro pedagógico e filosófico?

33 Para mais informações, consultar o site da SBEM, cujo endereço é <www.sbem.com.br>.

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27UNIDADE 1: ASPECTOS GERAIS DA HISTóRIA DO ENSINO DE MATEMÁTICA NO BRASIL

PARA CoNCLuIR

Em 1996, como já foi comentado no início deste texto, publicou-se a atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que contém os principais parâmetros relacionados à educação em nosso país, inclusive sua estruturação.

As mudanças ocorridas em relação às recomendações para o ensino da Matemática vinculadas à crise do Movimento da Matemática Moderna, à emergência e ao desenvolvimento da área da Educação Matemática, com a realização de um número enorme de pesquisas que contemplam muitas tendências e os mais diversos contextos em que se ensina a Matemática, têm repercutido nas propostas curriculares mais recentes. Entre elas, a de maior relevo é a dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental, de responsabilidade do Ministério da Educação – MEC –, publicada em 1997-1998.

Posteriormente, surgiram propostas análogas para o Ensino Médio, a Educação de Jovens e Adultos e a Educação Indígena, também vinculadas ao MEC. Todas essas propostas incorporaram os resultados de pesquisas acadêmicas em Educação Matemática no Brasil e no exterior, desde o final da década de 1970. Elas trazem alguns elementos comuns, como a colocação da necessidade de incorporação, nas práticas pedagógicas escolares, das tecnologias da informação e da comunicação, dos jogos e materiais concretos, da história da Matemática, e almejam, sobretudo, que os conhecimentos matemáticos na formação escolar básica tenham realmente significado para os estudantes, ultrapassando a simples preparação para as carreiras profissionais que eventualmente venham a seguir.

Outra mudança recente a ser sublinhada na atualidade brasileira é a extensão do Ensino Fundamental de oito para nove anos, com a inclusão das crianças de seis anos nesse nível. Essa modificação traz novas demandas à formação de professores e à produção de materiais didáticos, no contexto da alfabetização, proposta para ser iniciada mais cedo.

O Brasil modificou-se completamente em suas dimensões políticas, sociais, econômicas e culturais no final do século XX e início do século atual. A educação está sempre atrelada às demandas e características das sociedades que a sustentam, e o ensino de Matemática integra essa educação. Em cada momento histórico, a Matemática, como qualquer outra disciplina escolar, tece-se pelos fatores externos – as condições sociais, políticas, culturais e econômicas que compõem a escola e o ensino – e pelos fatores internos – aqueles referentes à natureza dos conhecimentos de uma área específica. Para a Matemática, como também ocorre em outros campos, os fatores internos têm se constituído, cada vez mais, não apenas em relação aos conteúdos específicos, já que conhecimentos sobre a natureza dos processos de ensino e aprendizagem e a formação dos profissionais da área da Educação Matemática têm repercutido com força nas propostas e recursos curriculares e didático-pedagógicos.

A maior demanda da atualidade brasileira para a melhoria do ensino da Matemática é a formação de professores para atender a uma enorme e diversa população. Por isso, também se têm ampliado consideravelmente, nos últimos anos, os cursos de preparação de docentes, na graduação e na pós-graduação. Não podemos deixar de aludir, nesse contexto, aos programas de formação inicial de professores de Matemática a distância, inseridos na Universidade Aberta do Brasil – UAB –, como uma das iniciativas de destaque dos últimos anos, da qual faz parte o curso de licenciatura à distância da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.

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28 HISTóRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA

Não podemos, também, ao concluir este texto, deixar de chamar a atenção, uma vez mais, para o seu caráter de incompletude e para a consequente necessidade de outras leituras e estudos para que o futuro professor conheça mais acerca do passado do ensino dos conhecimentos matemáticos no Brasil.

Apêndice: notas explicativas sobre alguns nomes usados para instituições de ensino

Ao longo do tempo, alguns substantivos de origem grega e latina têm sido utilizados para designar instituições de ensino e algumas vezes também de pesquisa. Entre eles, procuramos dar uma breve explicação para os termos escola, colégio, liceu, academia, ateneu e museu.

Academia: A origem da palavra é o nome de um ginásio (para a prática de esportes) dedicado ao herói Academo, em Atenas, perto do lugar em que Platão residiu e que fundou sua escola de filosofia. Lá, Platão ensinou durante quarenta anos, de 387 a. C. até sua morte no ano 347 a. C. Essa escola ficou conhecida como a Academia de Platão e existiu até o ano 529, quando foi fechada por ordem do imperador romano Justiniano.

Ateneu: Originalmente, em Atenas, na Grécia antiga, o Ateneu era um lugar público dedicado à deusa da sabedoria, Palas Atena (chamada de Minerva pelos romanos). Nesse lugar, poetas e literatos liam suas obras. Por extensão de sentido, a palavra foi usada para nomear instituições ou associações com finalidade cultural e também instituições de ensino.

Colégio: A palavra é de origem latina (collegium) e significa associação, confraria, corporação. É usada para indicar uma reunião de indivíduos da mesma categoria (colégio eleitoral, colégio de sacerdotes) e instituições de ensino.

Escola: Sua origem mais próxima é a palavra schola, do latim clássico, advinda, por sua vez, do termo grego skolé, que significava ócio ou lazer, descanso, repouso. Para os gregos antigos, a busca do conhecimento tinha esse sentido. Por essa razão, o significado mais comum da palavra é o de instituição em que se ministra qualquer tipo de ensino coletivo.

Liceu: Palavra de origem grega (lyceum) foi o nome da escola de filosofia fundada em 335 a. C. por Aristóteles. Ela se situava a leste de Atenas, num bosque consagrado a Apolo Lykeios. O nome foi e ainda é usado em várias línguas para indicar lugares de instrução. Na França, o termo lycée se refere a estabelecimentos para os três últimos anos do ensino secundário. Em Portugal, até o final da década de 1970, os liceus eram as escolas voltadas para a formação geral em ciências e humanidades e a preparação para o ensino superior, e funcionavam paralelamente a diversos tipos de escolas técnicas profissionais. A partir de 1975, os liceus e escolas técnicas começaram a se transformar em escolas secundárias que deveriam ministrar o ensino liceal e também o ensino técnico. Em 1978, concluiu-se o processo de extinção dos liceus e todas as escolas que ainda eram assim designadas passaram a ter o nome de escolas secundárias.

Museu: O museu (mouseion) era, na Grécia Antiga, um templo de devoção às musas, que eram divindades protetoras da música, da poesia, da história, da tragédia, da comédia, da dança, da oratória e da astronomia. A palavra pode designar: uma instituição que busca, conserva, estuda e expõe objetos de valor artístico, histórico etc.; o local em que esses objetos são expostos; ou uma coleção de objetos raros.

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29UNIDADE 1: ASPECTOS GERAIS DA HISTóRIA DO ENSINO DE MATEMÁTICA NO BRASIL

REFERêNCIAS

BúRIGO, E. Z. Matemática Moderna: progresso e democracia na visão de educadores brasileiros dos anos 60. Teoria e Educação, n. 2, p. 255-265, 1990. Cidade?

CUNHA, L. A. Ensino superior e universidade no Brasil. In: LOPES, E. M.; FARIA FILHO, L. M. e VEIGA, C. G. (Orgs.). 500 anos de Educação no Brasil. 3 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p. 151-204.

CURY, C. R. J. A educação como desafio na ordem jurídica. In: LOPES, Eliane M.; FARIA FILHO, Luciano M. e VEIGA, Cynthia G. 500 anos de educação no Brasil. 3 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

DASSIE, B. A.; ROCHA, J. L.; SOARES, F. S. Ensino de Matemática no século XX – da Reforma Francisco Campos à Matemática Moderna. Horizontes, v. 22, n. 1, p. 7-15, jan./jun. 2004. Cidade?

FIORENTINI, D.; MIGUEL, A.; MIORIM, M. A. Álgebra ou Geometria: para onde pende o pêndulo? Pro-Posições, vol. 3, n. 1 (7), p. 39-54, mar.1992. cidade?

FIORENTINI, D. Alguns modos de ver e conceber o ensino da matemática no Brasil. Zetetiké, Campinas, n. 4, p. 1-37, 1995.

LODI, A. [Relato de atividades desenvolvidas nos três primeiros meses como docente da Escola de Aperfeiçoamento] (1929). Belo Horizonte, não publicado.

MIORIM, M. A. Introdução à História da Educação Matemática. São Paulo: Atual, 1998.

MIORIM, M. A. Livros didáticos de matemática do período de implantação do movimento da matemática moderna no Brasil. In: V Congresso Ibero-americano de educação matemática, 2005, Porto. V CIBEM – Congresso Ibero-americano de educação matemática. Porto: Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, 2005. v. 1, p. 1-20.

PAVANELLO, R. M. O abandono da geometria no Brasil: causas e conseqüências. Zetetiké, Campinas, n. 1, p. 7-17, mar. 1993.

PITOMBEIRA, J. B. Euclides Roxo e as polêmicas sobre a modernização do ensino da matemática. In: VALENTE, Wagner R. (Org.). Euclides Roxo e a modernização do ensino de Matemática no Brasil. Brasília: Editora UnB, 2004. p. 85-149.

ROMANELLI, O. História da educação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2001.

SAVIANI, D. História das idéias pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2007.

SOARES, F. Movimento da Matemática Moderna no Brasil: avanço ou retrocesso? 2001. Dissertação (Mestrado em Matemática) – Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro.

SOARES, M. Português na escola: História de uma disciplina curricular. In: LOPES, E. M.; PEREIRA, M. R. (Orgs.). Conhecimento e inclusão social: 40 anos de pesquisa em Educação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

VALENTE, W. R. A disciplina Matemática: etapas históricas de um saber escolar no Brasil. In: OLIVEIRA, M. A. T. & RANZI, S. M. História das disciplinas escolares no Brasil: contribuições para o debate. Bragança Paulista: EDUSF, 2003. p. 217-254.

VALENTE, W. R. (Org.). A Matemática do Ginásio. Livros Didáticos e as Reformas Campos e Capanema. CD-ROM. São Paulo: GHEMAT/FAPESP, 2005.

VALENTE, W. R. (org.). o nascimento da matemática do ginásio. São Paulo: Annablume, Fapesp, 2004.

VALENTE, W. Programas e livros didáticos modernos para o ensino de matemática no Brasil. In: MATOS, J. M.; VALENTE, W. R. A reforma da Matemática Moderna em contextos ibero-americanos. Lisboa: Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, 2010. pp. 77-102.

VALENTE, W. R. uma história da matemática escolar no Brasil (1730-1930). São Paulo: Annablume, FAPESP, 1999.

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30 HISTóRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA

VEIGA, C. G. História da Educação. São Paulo: Ática, 2007.

VIDAL, D. Escola nova e processo educativo. In: LOPES, E. M.; FARIA FILHO, L. M.; e VEIGA, C. G. (Orgs.) 500 anos de Educação no Brasil. 3 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p. 497-517.

LEITuRAS CoMPLEMENTARES

Como complementação ao texto “Aspectos gerais da história do ensino de Matemática no Brasil”, propomos a leitura e algumas atividades que tomam como referência dois outros textos, a serem disponibilizados na plataforma Moodle.

O primeiro desses textos foi extraído do Novíssimo Programa do Ensino Secundário, nos termos do artigo 10 do Decreto n. 19.890, de 18 de abril de 1931 – um dos decretos da reforma Francisco Campos.

A primeira parte do material consiste da Exposição de Motivos da reforma do ensino secundário feita pelo ministro da Educação, Francisco Campos, ao Chefe do Governo Provisório, Getúlio Vargas, em 10 de janeiro de 1931. Nesse texto, o ministro apresenta considerações sobre as finalidades do ensino secundário e justifica a proposta de reforma. A segunda parte refere-se especificamente à Matemática no ensino secundário, apresentando os objetivos da disciplina, orientações metodológicas (gerais e específicas em relação a alguns conteúdos) para o trabalho dos professores e uma lista de tópicos a serem focalizados em cada uma das cinco séries do ginásio.

O segundo texto importante para complementar a Unidade 1 é o artigo Alguns modos de ver e conceber o ensino da Matemática no Brasil, de autoria de Dario Fiorentini, publicado em 1995 na revista Zetetiké, da Faculdade de Educação da UNICAMP-Universidade Estadual de Campinas. O texto está disponível no site da revista Zetetiké:<http://www.fae.unicamp.br/zetetike/index.php>.

No artigo, Fiorentini se propõe a descrever e caracterizar alguns modos de ver e conceber a melhoria do ensino da Matemática, historicamente produzidos no Brasil. O autor identificou seis tendências que tiveram presença marcante na configuração do conjunto de ideias acerca da Educação Matemática em nosso país e expõe, no texto, o que distingue as tendências quanto aos seguintes aspectos: concepção de Matemática; crença sobre como se forma o conhecimento matemático; finalidades e valores atribuídos ao ensino da Matemática; concepção de ensino-aprendizagem; cosmovisão (visão de mundo) subjacente; relação professor-aluno; perspectiva de estudo/pesquisa com vistas à melhoria do ensino da Matemática.

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31UNIDADE 1: ASPECTOS GERAIS DA HISTóRIA DO ENSINO DE MATEMÁTICA NO BRASIL

ATIVIDADES REFERENTES à uNIDADE 1

Atividade 1

Após ler o texto Aspectos gerais do ensino de Matemática no Brasil até o fim do trecho que focaliza a reforma Francisco Campos e, também, o texto extraído do Novíssimo Programa do Ensino Secundário (especialmente a parte relativa à Matemática na reforma Francisco Campos):

1. Faça uma síntese das ideias quanto ao papel da noção de função expostas no texto extraído do Novíssimo Programa do Ensino Secundário (reforma Francisco Campos).

2. Destaque e explique três das recomendações feitas no texto da reforma Francisco Campos acerca do ensino da geometria.

Atividade 2

Depois de terminar a leitura do texto Aspectos gerais do ensino de Matemática no Brasil, escreva um texto de 1 a 3 páginas (se for digitado, use Times New Roman, tamanho 12, espaçamento 1,5), comentando três pontos que chamaram sua atenção quanto à história do ensino de Matemática no Brasil. Considere, para elaborar o seu trabalho, além do texto mencionado, a parte de Matemática da reforma Francisco Campos no texto extraído do Novíssimo Programa do Ensino Secundário. No trabalho, você deve explicitar e explicar, com suas palavras, os três pontos escolhidos e indicar os motivos pelos quais eles despertaram o seu interesse.

Atividade 3

Faça a leitura completa do texto de Dario Fiorentini – Alguns modos de ver e conceber o ensino da Matemática no Brasil, 1ª e 2ª partes.

Nesse artigo, o autor apresenta e discute seis tendências marcantes na configuração histórica do conjunto de ideias norteadoras do ensino da Matemática no Brasil: a tendência formalista clássica; a tendência empírico-ativista; a tendência formalista moderna; a tendência tecnicista e suas variações; a tendência construtivista; e a tendência sócio-etnocultural.

Escolha uma das tendências e, usando suas palavras, explique como ela se caracteriza, de acordo com o texto de Fiorentini, quanto aos seguintes aspectos: concepção de Matemática; crença sobre como se forma o conhecimento matemático; finalidades e valores atribuídos ao ensino da Matemática; concepção de ensino-aprendizagem; cosmovisão (visão de mundo) subjacente; relação professor-aluno; perspectiva de estudo/pesquisa com vistas à melhoria do ensino da Matemática.

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2 Os conteúdos matemáticos escolares se modificam ao longo do tempo:

os números racionais e irracionais nos livros didáticos usados no Brasil

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33UNIDADE 2: OS CONTEúDOS MATEMÁTICOS SCOL ARES SE MODIFICAM AO LONGO DO TEMPO:

OS NúMEROS RACIONAIS E IRRACIONAIS NOS LIVROS DIDÁTICOS USADOS NO BRASIL

uNIDADE 2: oS CoNTEúDoS MATEMáTICoS SCoLARES SE MoDIFICAM Ao LoNGo Do TEMPo: oS NúMERoS RACIoNAIS E IRRACIoNAIS NoS LIVRoS DIDáTICoS uSADoS No BRASIL

objetivo

• Mostrar, por meio das diferentes abordagens conferidas a um conteúdo específico da matemática escolar – os números racionais e irracionais – identificadas mediante a utilização de uma fonte específica para o conhecimento da história do ensino da Matemática – os livros didáticos –, que as propostas para esse ensino se transformam no transcorrer do tempo.

INTRoDução

Quando tratamos dos aspectos gerais da história do ensino de Matemática no Brasil, procuramos mostrar que as diversas alterações nas condições políticas, econômicas, sociais e culturais do país e do mundo repercutiram nos componentes desse ensino. A sociedade brasileira, em diversos momentos, demandou de maneira diferente a contribuição do ensino dos conhecimentos matemáticos na educação de seus membros. Necessidades, expectativas, objetivos e interesses em relação à escola e ao que nela se deve ensinar e aprender no que se refere à Matemática passaram por muitas transformações. A formação de professores para ensinar a Matemática em diversos níveis também se modificou profundamente. Talvez não se conteste que tenha havido mudanças nas escolas, nos estudantes, nos professores, nas realidades educacionais. Contudo, pode parecer aos olhos de muitos que os conhecimentos matemáticos focalizados na escola são sempre os mesmos, ensinados e aprendidos permanentemente do mesmo modo.

Se, porém, examinarmos, com algum cuidado, os programas de ensino, documentos curriculares e livros didáticos elaborados no passado, mesmo recente, serão possíveis perceber muitos exemplos de mudanças. Essas mudanças se manifestam na sequência da apresentação dos conteúdos, nas ênfases conferidas a diferentes aspectos, na abordagem dos conceitos e procedimentos, nos tipos de exercícios e problemas propostos.

Na Unidade 2, vamos nos dedicar a estudar algumas dimensões históricas da abordagem de um conteúdo específico que tem sempre feito parte do elenco de conhecimentos matemáticos veiculados na escola. Focalizaremos o tratamento conferido aos números racionais e irracionais no Brasil, valendo-nos da análise de livros didáticos para o ensino secundário usados em nosso país a partir do final do século XIX.

Vários autores têm assinalado a relevância dos livros didáticos para a pesquisa em história da educação, particularmente no que diz respeito à história das disciplinas escolares. Por

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34 HISTóRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA

exemplo, Magda Soares34 sublinha que os livros didáticos são uma fonte privilegiada para a compreensão da escolarização ou didatização dos saberes, isto é, do processo de sua seleção, segmentação e organização em sequências, que é determinado e explicado pela evolução de políticas culturais, sociais e, consequentemente, educacionais. A análise dessa autora chama a atenção, também, para as alterações verificadas nos manuais escolares ao longo do tempo como reflexos da natureza dos conhecimentos disponíveis em cada momento, do nível de desenvolvimento em que eles se encontram e das expectativas da sociedade em relação a esses conhecimentos para a formação das novas gerações.

Um argumento forte utilizado por muitos pesquisadores para justificar a pesquisa histórica nos livros didáticos é o fato de que essas obras podem ser consideradas como os principais portadores do currículo escolar quanto aos conteúdos das disciplinas, uma vez que subsidiam o trabalho docente e norteiam o estudo pelos estudantes, e, em alguns momentos, têm sido a principal, quando não a única, referência para alunos e professores.

Em que pesem esses argumentos, precisamos considerar, também, que os livros didáticos apresentam limitações como fontes para conhecermos a história do ensino de Matemática, pois examinar o seu conteúdo não nos pode revelar os modos como foram usados por professores e estudantes. Todavia, eles podem nos mostrar, sim, o que foi proposto para o ensino em determinados períodos, e podem, portanto, nos auxiliar a compreender as propostas que norteiam o trabalho com a Matemática na escola na atualidade.

Nesta unidade, construída com base em dois textos publicados anteriormente35, trabalhamos com livros didáticos do passado no que se refere a um tema específico. Queremos evidenciar que, do início do século XX até os anos 1960-1970, os manuais escolares de Matemática utilizados no Brasil apresentam diferenças acentuadas no enfoque dos números racionais e irracionais. Fazemos, então, uma tentativa de caracterização do tratamento desses números em livros didáticos representativos de três momentos: 1) as três primeiras décadas do século XX; 2) o período que se estende de 1931 até o início dos anos 1960; 3) os anos 1960-1970 – período de penetração e difusão do movimento da matemática moderna em nosso país.

No INíCIo Do SéCuLo XX: RACIoNAIS E IRRACIoNAIS NoS LIVRoS DE ARITMéTICA

Durante as três primeiras décadas do século XX, o ensino secundário brasileiro ainda se realizava balizado pelos programas e pontos fixados pelo governo central para os exames preparatórios que possibilitavam o acesso aos cursos superiores36. No sistema dos preparatórios, que atravessou o Império e as primeiras décadas da República no Brasil, os candidatos ao ensino superior prestavam exames de acordo com a carreira a que aspiravam,

34 SOARES, M. Um olhar sobre o livro didático. Presença Pedagógica, v. 2, n. 2, p. 53-63, nov./dez. 1996. Cidade?35 GOMES, M. L. M. Os números racionais em três momentos da história da matemática escolar brasileira. BoLEMA, Rio Claro,

n. 26, p. 17-44, 2006. GOMES, M. L. M. Aspectos históricos da abordagem dos números irracionais na matemática escolar brasileira. VI Seminário

Nacional de História da Matemática, 2005. Brasília. Anais do VI Seminário Nacional de História da Matemática. Rio Claro: Sociedade Brasileira de História da Matemática, 2005, p. 195-204.

36 Conforme HAIDAR, M. L. M. o ensino secundário no império brasileiro. São Paulo: Grijalbo/EDUSP, 1972.

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35UNIDADE 2: OS CONTEúDOS MATEMÁTICOS SCOL ARES SE MODIFICAM AO LONGO DO TEMPO:

OS NúMEROS RACIONAIS E IRRACIONAIS NOS LIVROS DIDÁTICOS USADOS NO BRASIL

e as disciplinas de conteúdo matemático eram ensinadas e exigidas separadamente em exames de Aritmética, Álgebra, Geometria e Trigonometria.

Nessa época, todo o ensino secundário e particularmente o estudo dos conhecimentos matemáticos tinham caráter essencialmente propedêutico, e não se sublinhava o seu papel formativo. No entanto, os preparatórios desempenharam um papel importante na incorporação da matemática à cultura clássico-literária que predominava nas elites intelectuais brasileiras no século XIX, pois foi por meio deles que a disciplina deixou de representar um saber técnico, específico das academias militares, para passar a fazer parte da cultura escolar geral de formação do candidato ao ensino superior.

Essa mudança de status está diretamente ligada à produção dos primeiros manuais escolares por autores brasileiros para uso nas escolas, nos cursos preparatórios, nos liceus e colégios37. A partir das últimas décadas do século XIX, editaram-se, em nosso país, muitos livros didáticos de Matemática, entre os quais se sobressai uma grande quantidade de textos de Aritmética. Nesses livros de Aritmética, localizava-se o estudo dos números racionais e irracionais na matemática escolar secundária brasileira.

Escolhemos algumas dessas obras, todas elas indicadas pelos programas oficiais de ensino de Matemática para o curso secundário, da segunda metade do século XIX até as primeiras décadas do século XX38, como fontes para o exame do enfoque dos números racionais e irracionais nesse momento. Os livros de J. A. Coqueiro, Aarão e Lucano Reis, Adelino Serrasqueiro e J. J. L. Vianna tiveram um número muito grande de edições39. Em suas páginas iniciais, esses autores convergem ao começar seu texto pela definição de grandeza como tudo o que é capaz de aumento ou diminuição.

As grandezas são, então, classificadas em contínuas – aquelas que podem ser aumentadas ou diminuídas por graus tão pequenos quanto se queira; ou que constam de partes ligadas entre si –, e discretas ou descontínuas – aquelas que só podem aumentar ou diminuir por unidades ou graus determinados ou, ainda, que constam de partes separadas umas das outras. Como exemplo de grandeza contínua, Coqueiro é o único entre os autores mencionados a citar aquela que, mais adiante, servirá a todos os autores para a separação dos números em racionais e irracionais – o comprimento de uma linha geométrica.

Logo em seguida, em todos os livros, aparece a noção de medição de uma grandeza: trata-se da comparação dessa grandeza com outra grandeza de mesma espécie, já conhecida, a qual recebe o nome de unidade. Nas palavras de Coqueiro, “medir é, então, procurar saber

37 Conforme VALENTE, W. R. A disciplina Matemática: etapas históricas de um saber escolar no Brasil. In: OLIVEIRA, M. A. T. e Ranzi, S. M. História das disciplinas escolares no Brasil: contribuições para o debate. Bragança Paulista: EDUSF, 2003, p. 217-254; VALENTE, W. R. (Org.). o nascimento da matemática do ginásio. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2004. VALENTE, W. R. uma história da matemática escolar no Brasil (1730-1930). São Paulo: Annablume/FAPESP, 1999.

38 De acordo com MIGUEL, A.; MIORIM, M. A. os logaritmos na cultura escolar brasileira. Rio Claro: Editora da SBHMAT, 2002; PITOMBEIRA, J. B. O cálculo na escola secundária brasileira – algumas considerações históricas. In: FERREIRA, Eduardo Sebastiani (Org.). História e Educação Matemática. Cadernos CEDES. Campinas: Papirus, 1996; Valente (1999, 2004), obras citadas.

39 Estamos nos referindo às seguintes obras e edições: COQUEIRO, J. A. Tratado de Arithmetica. Para uso dos collegios, lyceos e estabelecimentos de instrucção secundaria. Rio de Janeiro: Casa Mont’Alverne, 1897; REIS, A.; REIS, L. Curso Elementar de Mathematica – Theorico, pratico e applicado. Aritmética. Cálculo de valores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1892; SERRASQUEIRO, A. Tratado Elementar de Arithmetica. Composto segundo o Programma official para o ensino d’esta sciencia nos lyceus. 23ª edição. Coimbra: Livraria Central de J. Diogo Pires – Sucessoras, 1930; VIANNA, J. J. L. Elementos de Arithmetica. 24ª edição. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1929.

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36 HISTóRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA

quantas vezes a unidade escolhida se contém na grandeza que se quer medir”40. Finalmente, apresenta-se o conceito de número – a título de ilustração, citamos a definição dos irmãos Aarão e Lucano Reis: “Número é o resultado da comparação de qualquer grandeza com a respectiva unidade”41 O número é definido, pois, sempre, como o resultado da comparação da grandeza com a unidade, ou seja, o número é o resultado da medição de uma grandeza.

Observemos que os autores dos textos de Aritmética dessa época preocupam-se, portanto, desde as páginas iniciais, em atribuir um significado à ideia de número. Uma vez fixada essa noção de número como o resultado da medida de uma grandeza, os textos se propõem, de modos ligeiramente distintos entre si, a classificar os possíveis resultados dessas medidas; e é essa classificação que oferece os dois tipos básicos de números, os comensuráveis ou racionais e os incomensuráveis ou irracionais. Vejamos, a seguir, de que maneira são apresentados os dois tipos de números nos livros que focalizamos.

DoIS TIPoS DE NúMERoS E SuA CARACTERIzAção NoS LIVRoS DE ARITMéTICA

Com pequenas variações, Coqueiro, Reis e Reis, Serrasqueiro e Vianna abordam a noção de medida comum entre duas grandezas, e é segundo a existência ou a não existência de uma medida comum entre a grandeza a ser medida e a grandeza adotada como unidade que esses autores classificam as grandezas e os números que expressam suas medidas.

No primeiro caso, obtêm-se os números comensuráveis ou racionais, e no segundo caso, os números incomensuráveis ou irracionais. Enfatizamos o fato de todos os autores parecerem ter preferência pelos adjetivos comensurável e incomensurável em relação aos qualificativos racional e irracional, normalmente utilizados atualmente. Em geral, as palavras comensurável e incomensurável são mencionadas antes das palavras racional e irracional. Em cada uma das obras aqui focalizadas, com exceção do livro de Vianna, há uma seção ou capítulo intitulado Números incomensuráveis e não Números irracionais.

Para ilustrar a caracterização dos números racionais e irracionais a partir da existência ou inexistência de uma medida comum entre a grandeza a ser medida e aquela escolhida como unidade, vamos descrever detalhadamente a forma como Coqueiro faz isso. Apresentando a medição de uma grandeza contínua – o comprimento de um segmento AB – como a comparação desse comprimento com o de um segmento CD fixado como unidade, o autor destaca duas possibilidades. Na primeira, a unidade escolhida cabe um número exato de vezes na grandeza a ser medida, e obtém-se um número inteiro.

A segunda possibilidade corresponde ao caso em que, feita a comparação da grandeza a ser medida com a unidade, sobra da grandeza um resto menor que a unidade adotada, o qual precisa ser medido. Coqueiro continua a explicação: para isso, divide-se a unidade em certo número de partes iguais, e repete-se a operação com o objetivo de se verificar quantas vezes a unidade subdividida cabe no resto. Se ela não estiver contida um número exato de

40 De acordo com COQUEIRO, op. cit., p. 2.41 Segundo REIS & REIS, op. cit., p. 5.

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37UNIDADE 2: OS CONTEúDOS MATEMÁTICOS SCOL ARES SE MODIFICAM AO LONGO DO TEMPO:

OS NúMEROS RACIONAIS E IRRACIONAIS NOS LIVROS DIDÁTICOS USADOS NO BRASIL

vezes no resto, continua-se o processo. Pode acontecer que se chegue a um resto contido exatamente no resto precedente. Nesse caso, o resto original terá por medida uma fração da unidade, e “a medida da grandeza se comporá de um número inteiro mais uma fração da unidade”42, o que o autor chama de um número fracionário.

A partir dessa explicação, Coqueiro define as grandezas comensuráveis: são aquelas tais que, quando se toma uma delas como unidade, o valor da outra é expresso por um número inteiro ou fracionário. Diz-se que as grandezas têm, no primeiro caso, como medida comum a unidade e, no segundo caso, uma divisão dessa unidade. Os números comensuráveis são os valores das medidas de grandezas comensuráveis e são, portanto, os números inteiros e os números fracionários.

É interessante observar que Serrasqueiro e os irmãos Reis reservam a denominação números fracionários para o que costumamos chamar hoje frações impróprias, e distinguem o que chamamos comumente frações próprias com os nomes frações ou números quebrados, considerando assim mais uma categoria para os números comensuráveis.

Todavia, nem sempre a grandeza a ser medida e a unidade são comensuráveis, e essa situação é abordada por Coqueiro do seguinte modo:

Grandezas há, porém, que qualquer que seja a lei adotada para as divisões sucessivas, e por mais que se prolongue a operação, não encontram números, que lhes exprimam as medidas exatamente. Neste caso, diz-se que elas não admitem medida alguma comum – são incomensuráveis, e incomensuráveis também se chamam os números intermináveis, que lhes indicam os valores43.

(COQUEIRO, 1897, p. 7, destaques no original).

Os outros autores de que tratamos aqui – Serrasqueiro, Vianna e os irmãos Reis – utilizam-se de palavras muito próximas a essas para referir-se aos números incomensuráveis como números associados a grandezas incomensuráveis, isto é, grandezas que não têm medida comum.

Retomando o que comentamos a respeito da preferência dos autores dos livros de Aritmética do final do século XIX pelas designações número comensurável e número incomensurável em relação a número racional ou número irracional, consideramos oportuno observar que o uso do primeiro par de expressões torna totalmente explícito a ligação dos números racionais e irracionais à medição de grandezas. Chamamos também a atenção de nossos leitores para o fato de as expressões números comensuráveis e números incomensuráveis não serem mais usadas há muitos anos, tendo sido substituídas, respectivamente, por números racionais e números irracionais. Não se ressalta, com essas últimas expressões, que os números irracionais são necessários para que sempre se possa expressar a medida de uma grandeza utilizando-se como unidade qualquer outra grandeza de mesma espécie.

Tal aspecto central dos números irracionais é, porém, como acabamos de expor, realçado logo às primeiras páginas dos livros de Aritmética produzidos e/ou utilizados na escola secundária brasileira até as primeiras três décadas do século XX. A título de esclarecimento

42 COQUEIRO, op. cit., p. 3.43 COQUEIRO, op. cit., p.7.

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38 HISTóRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA

em relação aos livros de Aritmética, apresentamos uma breve descrição de sua estrutura.

As organizações das obras de Coqueiro, Reis e Reis e Vianna são muito semelhantes. Após essa primeira abordagem dos números racionais na introdução, primeiro capítulo ou seção, todas elas se dedicam ao tratamento dos números inteiros, isto é, daqueles números que resultam da medição de grandezas no caso em que a unidade escolhida para essa medição cabe um número inteiro de vezes na grandeza a ser medida.

Seguem-se, então, capítulos ou seções que focalizam a adição, a subtração, a multiplicação e a divisão de inteiros44, as noções sobre divisibilidade, os números primos, o máximo divisor comum e o mínimo múltiplo comum. É somente depois desses tópicos que os autores retomam o tema dos números racionais, em capítulos ou seções cujos títulos contêm as expressões números fracionários ou frações ordinárias. Os demais conteúdos abordados são medidas, potências e raízes, matemática comercial e financeira, progressões e logaritmos; um item que merece destaque em todos os manuais são as aproximações numéricas, acompanhadas do estudo dos erros nelas cometidos.

O cenário da educação brasileira registrou, a partir da década de 1920 do século passado, inquietações e movimentos de reforma, reflexo das tensões entre uma estrutura voltada para a formação das elites e as necessidades de uma sociedade em acelerado processo de industrialização e urbanização45. Nesse ambiente efervescente, Euclides Roxo, diretor do Colégio Pedro II desde 1925 e participante ativo dos debates educacionais, tendo abraçado as ideias do primeiro movimento internacional pela modernização do ensino da Matemática46, liderado pelo matemático alemão Felix Klein (1849-1925), lutou intensamente pela renovação dos métodos de ensino.

A proposta de modernização encaminhada por Roxo e aprovada pela Congregação do Colégio Pedro II em 1928 tinha como sua característica mais evidente a criação de uma nova disciplina denominada Matemática, na qual se reuniriam os ensinos até então isolados da Aritmética, da Álgebra e da Geometria, a partir de 1929.

A aprovação dessa proposta representou um elemento decisivo para a introdução do ensino moderno em todas as escolas secundárias brasileiras, concretizada depois da reforma Francisco Campos, em 1931, que acatou, para o ensino secundário, todas as ideias da proposta adotada no Colégio Pedro II.

Essa reforma, primeira iniciativa de organização nacional da educação em nosso país, marca uma mudança fundamental e definitiva quanto à educação matemática brasileira, até então

44 É importante observar que todos os manuais de diferentes épocas que examinamos empregam a expressão números inteiros para referir-se aos números naturais com o acréscimo do zero.

45 Conforme Pitombeira, J. B. Euclides Roxo e as polêmicas sobre a modernização do ensino da matemática. In: Valente, W (org.). Euclides Roxo e a modernização do ensino de Matemática no Brasil. São Paulo: Sociedade Brasileira de Educação Matemática, 2003.

46 Esse movimento se desencadeou a partir da constituição da Comissão Internacional para o Ensino da Matemática, conhecida atualmente por sua sigla em inglês ICMI – International Comission on Mathematical Instruction , em 1908, no Congresso Internacional de Matemática, realizado em Roma.

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39UNIDADE 2: OS CONTEúDOS MATEMÁTICOS SCOL ARES SE MODIFICAM AO LONGO DO TEMPO:

OS NúMEROS RACIONAIS E IRRACIONAIS NOS LIVROS DIDÁTICOS USADOS NO BRASIL

essencialmente propedêutica: a instituição, nos currículos escolares, de uma única disciplina denominada Matemática. Como foi estudada na Unidade 1, a grande mudança integrava o projeto de um ensino secundário de caráter formativo defendido pelos decretos do ministro Francisco Campos47.

Já assinalamos, também, que a organização escolar brasileira foi novamente alterada pela reforma Gustavo Capanema, realizada em 1942. Entretanto, essa reforma manteve a Matemática como disciplina única no ensino secundário48. Depois dessas duas reformas, publicaram-se no país muitas coleções de livros didáticos, que reuniram os conteúdos das quatro disciplinas matemáticas anteriormente existentes para constituir os manuais para o ensino da Matemática. Essas coleções, cuja produção tem origem nas décadas de 1930 e 1940, costumam chamar a atenção, na capa, na folha de rosto e nas apresentações ou prefácios, para o fato de estarem em consonância com as determinações legais das reformas.

Mudanças posteriores na legislação educacional preservaram a Matemática como uma única disciplina e não parecem ter afetado significativamente os tópicos e sua apresentação nos manuais brasileiros, particularmente no que diz respeito à abordagem dos números racionais e irracionais, até que as ideias do movimento da matemática moderna se disseminassem e fossem apropriadas em nosso país, caracterizando o terceiro momento que focalizaremos neste texto. Passemos a examinar, então, o segundo momento a que nos referimos, a saber, aquele situado entre a reforma Francisco Campos e o início dos anos 1960. Nessa parte, daremos atenção específica ao enfoque dos números racionais.

ENTRE A REFoRMA FRANCISCo CAMPoS E o MoVIMENTo DA MATEMáTICA MoDERNA

Para o estudo do enfoque dos números racionais no segundo momento – da Reforma Francisco Campos até o início dos anos 1960 – examinamos livros didáticos destinados ao primeiro ano do primeiro dos dois ciclos em que a escola secundária se dividiu desde 193149 – o curso ginasial – em edições publicadas entre 1934 e 1959.

Nesses livros, nas partes dedicadas aos números, procuramos identificar as mudanças e permanências dos aspectos assinalados como característicos do momento anterior: a

47 De acordo com MIORIM, M. A. Introdução à história da educação matemática. São Paulo: Atual, 1998.

48 As reformas Campos e Capanema fizeram parte do mesmo contexto de tentativa de renovação do ensino de Matemática, mas a segunda representou o desfecho de uma forte reação às inovações propostas, desde 1929, no Colégio Pedro II, as quais se refletiram na reforma Francisco Campos (conforme DASSIE, B. A.; ROCHA, J. L.; e SOARES, F. S. Ensino de Matemática no século XX – da Reforma Francisco Campos à Matemática Moderna. Horizontes, v. 22, n. 1, p. 7-15, jan./jun. 2004). Cidade?

49 A reforma Francisco Campos instituiu um primeiro ciclo (ginasial) de cinco anos e um segundo ciclo (complementar) de dois anos; a Reforma Gustavo Capanema reorganizou o ensino secundário em um ciclo ginasial de quatro anos e um colegial de três anos. A partir de 1971, com a entrada em vigor da Lei 5692/71, os quatro anos de escolarização correspondentes ao curso ginasial passaram a constituir as quatro últimas séries do 1º grau (Pimenta; Gonçalves, 1992).

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40 HISTóRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA

presença ou ausência da definição de grandeza, da conceituação de número como resultado da medição de grandezas e da definição de fração ligada à medição de comprimentos. Verificamos que nenhum dos livros emprega mais as expressões números comensuráveis e números incomensuráveis, mas que existe uma grande variedade em relação aos demais aspectos.

Assim, levando em consideração as oito obras que consultamos, de cinco ainda consta a definição de grandeza e em seis delas o número é conceituado como o resultado da medição de grandezas. Já a definição de fração vinculada à medição de comprimentos foi constatada em somente três dos livros. O quadro abaixo sintetiza os resultados para as oito obras, indicadas pelos nomes de seus autores e pelas datas das edições que utilizamos.

Livro Edição ConteúdoPresença da definição de

grandeza

Conceituação de número

como resultado da medição de

grandezas

Definição de fração ligada à medição de comprimentos

Thiré; Mello e Souza (1934)1 7ª

Aritmética, álgebra e geometria Não Não Não

Roxo, Thiré; Melo2 e Souza

(1943)3 Não constaAritmética e geometria Sim Sim Sim

Maeder (1940)9ª

Aritmética e geometria Sim Sim

Sim

Stávale (1940) 15ªAritmética, álgebra e geometria

Sim Sim Não

Stávale (1943) 2ª Aritmética e geometria Não Sim Sim

Sangiorgi (1953) 4ª Aritmética e

geometria Não Não Não

Maeder (1955) 16ª Aritmética e geometria Sim Sim Não

Lacaz Neto (1959) Não consta Aritmética e

geometria Sim

Sim, para número natural

Não, para frações

Não

Como os autores que mantêm a definição de grandeza em suas obras fazem isso? Percebemos que existem variações: Maeder e Stávale, nas edições de 1940 de seus livros, optam pela antiga definição – grandeza é tudo aquilo que pode aumentar ou diminuir; Roxo, Thiré e Melo e Souza, em seu livro de 1943, e Maeder, em sua obra de 1955, conceituam grandezas como entes abstratos entre os quais se pode definir a igualdade e a soma; Lacaz Neto, em edição de 1959, tem ainda outra definição – grandeza é tudo aquilo que podemos medir,

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41UNIDADE 2: OS CONTEúDOS MATEMÁTICOS SCOL ARES SE MODIFICAM AO LONGO DO TEMPO:

OS NúMEROS RACIONAIS E IRRACIONAIS NOS LIVROS DIDÁTICOS USADOS NO BRASIL

isto é, comparar com outra grandeza para determinarmos, pelo menos aproximadamente, quantas vezes uma contém a outra. É interessante notar que Stávale, em um livro publicado em 1943, tem posição diferente da que apresentara no manual anterior que analisamos: na obra mais recente, ele escreve que a noção de grandeza é intuitiva e não se define.

Abordemos agora outro aspecto que chama nossa atenção – a conceituação de número como resultado da medição de uma grandeza: a julgar por esses oito manuais de ensino, ela prevalece no segundo momento. É oportuno ressaltar o caso de um único autor – Lacaz Neto – que faz isso somente em parte, isto é, apresenta os números naturais dessa maneira, mas não faz o mesmo para as frações.

Observamos, ao examinar livros do momento anterior, que, nos manuais de Aritmética, quando o adjetivo racionais era aplicado aos números, isso era feito como segunda opção para qualificá-los, já que os autores preferiam a expressão números comensuráveis. No segundo momento, é interessante notar que, dos oito livros pesquisados, somente um50 emprega a expressão números racionais – trata-se do manual de Euclides Roxo, Cecil Thiré e Júlio César de Melo e Souza, de 1943, em que, à página 245, encontramos a frase “Os números inteiros e fracionários são números racionais”.

Não tivemos acesso a todos os demais livros das coleções das quais aqui analisamos o primeiro volume. Entretanto, pudemos verificar a presença da expressão números racionais no livro do terceiro ano51 da coleção de Thiré e Mello52 e Souza (nesse volume, com a participação, também, de Euclides Roxo), bem como no volume da 2ª série de Osvaldo Sangiorgi, em que o termo é associado à medição de grandezas comensuráveis53. De qualquer modo, os autores não manifestam muita preocupação, nesse momento, em dar destaque à expressão números racionais.

Finalmente, uma diferença fundamental se faz notar nesse conjunto de manuais em relação ao modo de apresentar as frações, escolhido por todos os autores dos livros do primeiro momento. De fato, enquanto as obras de Coqueiro, Reis e Reis e Vianna apresentam as frações de forma ligada à medição de comprimentos, dentre as oito obras que selecionamos para representar o segundo momento, esse enfoque só se mantém em três: a de Roxo, Thiré e Melo e Souza (1943), a de Maeder de 1940, e a de Stávale de 1943. Contudo, mesmo esses autores, como os demais, não utilizam mais a expressão números comensuráveis, preponderante no momento anterior. O abandono dessa expressão parece refletir, na matemática escolar brasileira, o desligamento operado ao longo do tempo entre a noção de fração e a medição de comprimentos. De forma mais geral, podemos assinalar que ocorreu uma progressiva desvinculação entre grandeza e número.

Vejamos como se define fração sem a explicitação de uma conexão direta com a medição

50 Os sete outros livros utilizam-se, em geral, da expressão “números fracionários”.51 Trata-se de Roxo; THIRÉ; MELLO E SOUZA. Curso de Matemática. 3º ano. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves,

1935. 52 Em todos os livros dessa coleção de cinco volumes, o nome de Melo e Souza aparece grafado como Mello e Souza. Veja-se

a nota de número 14.53 Escreve Sangiorgi em seu livro de 1959: “A relação entre duas grandezas comensuráveis é expressa mediante um número

denominado racional”. (SANGIORGI, O. Matemática para a Segunda Série Ginasial. 45ª ed. (Revista). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959).

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42 HISTóRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA

de segmentos nos cinco demais livros. A idéia que prevalece é a de fração como uma ou mais partes iguais de uma unidade. Contudo, em três livros – o de Thiré e Melo e Souza, de 1934, o de Maeder, de 1955, e o de Lacaz Neto, de 1959 –, a palavra fração designa precisamente essa uma ou mais partes, enquanto que nos outros dois, o de Stávale, de 1940, e o de Sangiorgi, de 1953, a fração é o número que indica uma ou mais partes iguais em que a unidade é dividida. É interessante, ainda, assinalar as diferentes representações de unidade escolhidas pelos autores: um segmento, para Thiré e Melo e Souza; uma laranja, para Stávale; um tablete de chocolate, para Sangiorgi; uma régua de madeira, para Maeder.

Assim, embora nesse momento da matemática escolar brasileira alguns autores de livros didáticos ainda mantenham a ligação entre números fracionários e medição de comprimentos, percebe-se nitidamente uma mudança de abordagem. Para os autores dos livros de Aritmética do momento anterior, a fração também é uma ou algumas das partes iguais em que se divide a unidade.

Todavia, o modelo de unidade é, invariavelmente, um segmento de reta. As modificações dos livros didáticos em relação à apresentação dos números racionais verificadas no segundo momento apontam, portanto, na direção da dissociação entre número e medição de grandezas e, particularmente, na direção de um progressivo abandono do segmento de reta como o protótipo preferido de grandeza/unidade. Configura-se, desse modo, uma alteração marcante, a qual diferencia a abordagem dos números, e, particularmente, dos números racionais, entre os dois momentos históricos que focalizamos até agora.

No entanto, ainda que tenhamos podido perceber e assinalar, com o passar do tempo, algumas modificações nos manuais, pelo menos naquilo que diz respeito ao tratamento dado aos números racionais, os livros didáticos de Matemática brasileiros refletiram certa estabilidade na apresentação dos conteúdos até a década de 50 do século XX54.

Mudanças profundas na matemática escolar brasileira se realizariam, de fato, a partir da penetração e difusão, em nosso país, do ideário propagado pelo segundo movimento internacional de renovação do ensino da matemática, iniciado na Europa e nos Estados Unidos, e amplamente conhecido como o movimento da matemática moderna. Focalizaremos essas mudanças em nosso terceiro momento, em que observaremos alterações significativas na abordagem dos conteúdos matemáticos da escola secundária em geral, e, particularmente, na dos números racionais. Comentamos, no que se segue, as modificações que se operaram nos livros didáticos nesse terceiro momento.

DuRANTE o MoVIMENTo DA MATEMáTICA MoDERNA

A entrada definitiva das propostas de renovação do ensino da matemática em nosso país deu-se, a partir de 1961, com a constituição, em São Paulo, do Grupo de Estudos do Ensino da Matemática – GEEM. Propunha-se, sobretudo, modificar a Matemática da escola secundária mediante a busca de proximidade com a Matemática ensinada nas universidades – um elemento central da proposta era a ênfase nas estruturas

54 De acordo com PFROMM NETO, et al. o livro na educação. Rio de Janeiro: Primor/INL, 1974.

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43UNIDADE 2: OS CONTEúDOS MATEMÁTICOS SCOL ARES SE MODIFICAM AO LONGO DO TEMPO:

OS NúMEROS RACIONAIS E IRRACIONAIS NOS LIVROS DIDÁTICOS USADOS NO BRASIL

matemáticas. Assim, o adjetivo moderna para qualificar a Matemática referia-se, em boa parte, à incorporação ao ensino elementar de temas desenvolvidos na matemática científica a partir da segunda metade do século XIX. O adjetivo moderno, todavia, trazia outras conotações, tais como a de atualização do ensino de forma a adequá-lo às exigências de uma sociedade em acelerado desenvolvimento técnico e a de sintonia com os avanços nas pesquisas nos campos da Psicologia e da Didática, as quais, acreditava-se, deveriam alimentar o ensino da Matemática. A expressão Matemática moderna, assim, carregava uma forte valoração positiva em nosso país55.

O movimento da Matemática moderna teve enorme impacto na Matemática escolar brasileira, pela realização de inúmeros cursos para professores e, em grande parte, pela publicação e ampla circulação de uma enorme quantidade de manuais que, muito frequentemente, declaravam-se adeptos do então novo ideário pelo uso do adjetivo moderno em seus títulos. Criaram-se as coleções denominadas curso moderno de Matemática, estabelecendo-se um novo padrão para o ensino no nível ginasial56.

Um traço característico essencial do conjunto de ideias defendidas pelos modernistas e incorporadas aos livros didáticos foi a proposta de unificação da Matemática no ensino pela introdução de elementos como a linguagem dos conjuntos, as estruturas algébricas e o estudo das relações. De modo geral, a abordagem dos números se modificou de maneira radical, passando a aritmética “a ser concebida como o estudo dos campos numéricos, sendo a ordem de apresentação desses campos feita segundo o critério da menor para a maior complexidade estrutural dos mesmos”57.

Para focalizar a apresentação dos números e, especialmente, dos números racionais nos livros didáticos desse terceiro momento, selecionamos cinco manuais produzidos e publicados com o propósito de subsidiar o ensino de Matemática na primeira série do ginásio, isto é, no primeiro ano da escolarização secundária. A opção por livros destinados a esse ano da escolarização buscou acompanhar o tipo de manual analisado, neste texto, para o estudo do momento anterior. Os livros escolares escolhidos foram os de Castrucci e Bóscolo (1966), Morandi (1971), Pierro Neto (s. d.), Quintella (1967) e Sangiorgi (1966)58.

A leitura do sumário de todas essas obras mostra os conteúdos organizados de forma semelhante, distribuídos em capítulos ou unidades que focalizam quatro grandes temas: números naturais e operações; divisibilidade; números fracionários e operações; grandezas e medidas. Esses temas são praticamente os mesmos abordados nos livros didáticos do segundo momento.

55 Conforme, BúRIGO, E. Matemática Moderna: progresso e democracia na visão de educadores brasileiros dos anos 60. Teoria e Educação, n. 2, p. 255-265, 1990. CIDADE?

56 De acordo com PFROMM NETO, et al., op. cit. 57 Palavras de FIORENTINI, Miguel e MIORIM, 1992, p. 46. Essa forma de apresentação, como pode ser facilmente verificado,

num rápido exame de diversas coleções editadas pelo menos até a década de 90 do século passado, foi mantida nos livros didáticos mesmo após o declínio do movimento da Matemática moderna no Brasil.

58 CASTRUTTI, B.; BóSCOLO, A. Matemática para o Ciclo Ginasial. (1º volume). São Paulo: Editora F.T.D., 1966; MORANDI, H. Matemática. Método Moderno. Curso Médio – Ciclo Ginasial. (1ª série). 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1971; PIERRO NETO, S. Matemática para a Escola Moderna. Curso Ginasial.. São Paulo: IBEP, s. d., V. 1; QUINTELLA, A. Matemática para a primeira série ginasial. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, 112. ed.; SANGIORGI, O. Matemática 1. Curso Moderno para cursos ginasiais. 8ª ed., revista. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966.

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44 HISTóRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA

Nota-se, contudo, em todos os livros do terceiro momento, uma das marcas mais fortes do movimento da Matemática moderna – a presença das noções sobre conjuntos – diferença nítida entre esses manuais e os dos momentos anteriores. A colocação dessas noções na abertura dos livros é o preâmbulo para a introdução do número de forma bem diferente daquela adotada pelos autores dos dois momentos anteriores. De fato, as grandezas e sua medição se ausentam quase totalmente59, agora, das páginas dos manuais, para ceder lugar à apresentação do número60 como uma propriedade comum a todos os conjuntos61 que têm a mesma quantidade de elementos. Vejamos como os autores estudados se pronunciam sobre o tema.

Osvaldo Sangiorgi escreve que o número “é uma idéia que associamos a certos conjuntos que têm em comum, uma mesma propriedade. Que é o número três? É a propriedade comum a todos os conjuntos de três objetos”62. Scipione di Pierro Neto prefere dizer que “aos conjuntos que podem ser colocados em correspondência biunívoca ou correspondência um a um, atribui-se o mesmo número”63. Para Ary Quintella, a característica comum a dois conjuntos, de estarem em correspondência biunívoca “independentemente da forma, da natureza e da disposição de seus elementos, é que nos dá a ideia de número natural”64. Castrucci e Bóscolo, após o mesmo tipo de considerações sobre dois conjuntos em correspondência biunívoca, apresentam do seguinte modo o conceito de número: “Número, que é uma idéia associada a um conjunto através da operação de contar, constitui também um atributo comum a conjuntos que podem ser colocados em correspondência biunívoca”65. O último dos autores cujo livro da primeira série ginasial analisamos neste terceiro momento, Henrique Morandi, no item intitulado Noção de Número Natural, no primeiro capítulo de seu manual, ao referir-se a um conjunto A e a seus conjuntos equivalentes – os conjuntos que podem ser postos em correspondência biunívoca com A – assim se expressa:

Entre um conjunto e outro, os elementos podem ter cores diferentes, gostos diferentes, formas diferentes, etc., mas, sendo os conjuntos equivalentes, eles têm todos uma propriedade comum, que é a mesma quantidade de elementos, dada pela correspondência biunívoca dos elementos. A esta quantidade comum dos elementos de conjuntos equivalentes chamamos de número natural.66

Observa-se, em todos os autores que estudamos a preocupação com a explicitação de um conceito – o de correspondência biunívoca entre conjuntos, para apresentação da noção de número natural. Nos manuais de tempos anteriores, percebe-se que a ideia de número como propriedade de uma coleção de objetos também está presente; entretanto, a linguagem empregada é totalmente diferente, e não inclui a expressão correspondência biunívoca, adotada unanimemente nos livros das décadas de 1960 e 1970.

59 De todos os livros estudados, somente Quintella (1967) alude à medição de grandezas. Porém, isso só ocorre à página 162, no capítulo sobre frações, quando o primeiro emprego apresentado para as frações é o de medida de um segmento (o segundo é o de quociente de uma divisão).

60 Trata-se do número natural, mas nem todos os autores usam explicitamente essa terminologia ao conceituar o número.61 Os conjuntos referidos são finitos, mas isso não é explicitado nos textos, e pode apenas ser inferido a partir dos exemplos

de conjuntos que são apresentados.62 SANGIORGI, 1966, p. 8.63 PIERRO NETO, op. cit., p.33.64 QUINTELA, op. cit., p.16.65 CASTRUCI e BóSCOLO, op. cit., p.25.66 MORANDI, op. cit., p.18, itálicos e negritos no original.

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45UNIDADE 2: OS CONTEúDOS MATEMÁTICOS SCOL ARES SE MODIFICAM AO LONGO DO TEMPO:

OS NúMEROS RACIONAIS E IRRACIONAIS NOS LIVROS DIDÁTICOS USADOS NO BRASIL

Atentemos agora para a alocação dos números racionais na sequência de conteúdos adotada nos livros nesse terceiro momento. O aparecimento dos números racionais ocorre somente após uma série de seções, capítulos ou unidades em que se focalizam a adição, a subtração, a multiplicação e a divisão no conjunto dos números inteiros (naturais reunidos ao zero), com ênfase especial nas propriedades de tais operações e, posteriormente, as noções de divisibilidade, máximo divisor comum e mínimo múltiplo comum.

É após a apresentação de tais conteúdos que surge, nos livros didáticos, o capítulo que trata dos números racionais. Seu título varia: alguns autores continuam preferindo os termos números fracionários ou frações ordinárias – tal é o caso de Osvaldo Sangiorgi, em seu livro de 1966, que escolhe a primeira dessas alternativas, e de Henrique Morandi e Ary Quintella, que adotam a segunda. Nas obras que examinamos, Scipione di Pierro Neto e Castrucci e Bóscolo, porém, optam, respectivamente, pelos títulos O conjunto dos números racionais e Números racionais.

Todos os cinco livros começam pela abordagem das frações. Em relação ao momento histórico anterior aqui estudado, nota-se uma diferença fundamental – enquanto antes do movimento da Matemática moderna, como vimos, dominava a ideia da fração como uma ou mais partes iguais em que se divide uma unidade, agora, ainda que essa ideia seja apresentada, ela é, de certa maneira, menos valorizada ao aparecer, em alguns manuais como uma noção intuitiva ou vulgar. Com efeito, observemos que, por exemplo, Osvaldo Sangiorgi, na abertura de seu capítulo sobre números fracionários, escreve: “Você tem a primeira idéia de número fracionário quando, repartindo um objeto (que nesse instante representa a unidade) em um número qualquer de partes iguais, considera uma ou algumas dessas partes.67”

Todavia, após algumas páginas em que são focalizados aspectos das frações – representação numérica, nomes dos termos, representações por figuras geométricas divididas em partes iguais, das quais algumas são coloridas, frações próprias, impróprias e aparentes –, o autor declara a seu leitor, estudante da primeira série ginasial, que ele agora já está “amadurecido” para receber uma definição “geral” de número fracionário que “apanhe” todos os casos estudados.68 O texto enfatiza que, em todos esses casos de números fracionários, participam dois números inteiros, um dos quais (o denominador) não pode ser zero. Define-se, então, o número fracionário como um par ordenado de números inteiros, em que o segundo número não é zero.

Para dar outro exemplo da maior valorização conferida a essa ideia do par de números inteiros que constitui a fração em relação à ideia anteriormente prevalecente de fração como uma ou mais partes iguais da unidade, recorremos a Morandi69 que, na ordem contrária à adotada por Sangiorgi, primeiramente define a fração como “um número representado por um par ordenado de números inteiros a e b e indicado pelo símbolo (a, b) ou a/b, para b ≠ 0”, para depois acrescentar que “vulgarmente entende-se por fração uma ou mais partes iguais de um inteiro”.

67 SANGIORGI, 1966, op. cit., p.161.68 Todas as aspas são do autor, e essa conversa com o leitor situa-se à página 168 do manual.69 MORANDI, op. cit., p.127.

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46 HISTóRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA

Observa-se, claramente, portanto, nesse terceiro momento, uma mudança da escolha da ênfase a ser conferida dentre os vários aspectos dos números racionais: em conformidade com as ideias do movimento da Matemática moderna, passa a realizar-se, a partir de agora, a apresentação formal da fração ou número fracionário por meio de um par ordenado de números inteiros.

Ao mesmo tempo, parece completar-se o processo, iniciado no momento anterior, de desvinculação entre a noção de fração e a medição de comprimentos, pois, entre os cinco livros analisados, somente o de Ary Quintella faz referência à associação entre fração e medida de comprimentos.

Por outro lado, quatro das cinco obras apresentam, no livro correspondente ao primeiro ano da escola secundária, a classe de equivalência de uma fração como o conjunto das frações a ela equivalentes. Os autores de duas delas, Quintella e Castrucci e Bóscolo, utilizam esse conceito para apresentar o número racional como a classe de equivalência de uma fração. Contudo, os autores das outras três coleções optam por apresentar o número racional como qualquer número que pode ser colocado na forma de fração p/q, sendo p e q inteiros quaisquer e q diferente de zero.

Cabe ainda assinalar que a importância atribuída às propriedades das operações com os números, no interior das concepções que norteiam o movimento da Matemática moderna, leva os livros didáticos a enfatizar uma vantagem do conjunto dos números racionais: a divisão é sempre possível, desde que o divisor não seja zero. Destaca-se, em quase todos70 os livros que estudamos, a ideia de ampliação do campo numérico dos naturais para um conjunto no qual a operação de divisão, com exceção do caso do divisor nulo, goza da propriedade do fechamento, isto é, seu resultado pertence sempre ao conjunto.

Examinando os oito manuais do momento anterior analisados neste texto, percebemos que apenas dois – o de Roxo, Thiré e Melo e Souza e o de Stávale, ambos de 1943 – sublinham a ideia de que a introdução dos números fracionários possibilita a realização da divisão com uma única exceção. A ênfase sobre a ideia de ampliação do campo numérico configura-se, pois, como mais uma das características da abordagem dos racionais no terceiro momento.

uM BALANço DoS TRêS MoMENToS

No estudo que acabamos de apresentar, procuramos identificar e caracterizar muitas das alterações pelas quais passou a abordagem dos números e, em especial, dos números racionais e irracionais no ensino secundário brasileiro por meio da leitura de alguns livros didáticos representativos de três momentos.

Em linhas gerais, verificamos que, no primeiro momento, a conceituação de número como o resultado da medição de uma grandeza coloca a ênfase no aspecto do número racional como expressão da medição de uma grandeza que tem uma medida comum com a grandeza escolhida como unidade. Essa expressão é um número inteiro ou fracionário, chamado

70 A única exceção é representada pelo manual de Scipione.

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47UNIDADE 2: OS CONTEúDOS MATEMÁTICOS SCOL ARES SE MODIFICAM AO LONGO DO TEMPO:

OS NúMEROS RACIONAIS E IRRACIONAIS NOS LIVROS DIDÁTICOS USADOS NO BRASIL

preferencialmente número comensurável. Notemos que essa conceituação depende de uma noção um tanto imprecisa de grandeza e se apoia fortemente sobre a medição de comprimentos.

No segundo momento, os livros continuam, ainda que com menos destaque, a conceituar o número como o resultado da medição de uma grandeza. Entretanto, enfraquece sensivelmente a ligação entre a noção de fração e a medição de comprimentos. Não se usa mais a denominação números comensuráveis: a fração é, sobretudo, uma ou mais das partes iguais em que se divide a unidade, unidade esta que não é mais sempre representada por um segmento de reta. Observa-se, ainda, tanto a ausência de uma definição para os números racionais quanto a inexistência dessa denominação em quase todos os livros analisados.

No terceiro momento, a noção de grandeza ausenta-se definitivamente dos livros. O número (natural) é apresentado como uma propriedade comum a dois conjuntos entre os quais se pode estabelecer uma correspondência biunívoca. A ideia da fração como uma ou mais partes iguais em que se divide a unidade é desvalorizada em favor de uma apresentação da fração a/b que coloca a ênfase sobre o par ordenado de inteiros a e b, com b diferente de zero. Aparece, assim, outra vez, uma abordagem formal que, porém, é completamente diferente daquela realizada no primeiro momento.

Ao mesmo tempo, desaparece a associação entre a noção de fração e a medição de comprimentos e manifestam-se, diferentemente do que acontecia no momento anterior, preocupações em definir o número racional. De acordo com as ideias defendidas no contexto do movimento da Matemática moderna, adota-se, para isso, um enfoque formal: ou o racional é apresentado como o número definido pela classe de equivalência de uma fração, ou é definido como qualquer número que possa ser colocado na forma p/q, sendo p e q inteiros quaisquer e q não nulo. Simultaneamente, sublinha-se a ideia de que o conjunto dos racionais representa a ampliação do campo numérico dos naturais de forma que a divisão seja sempre possível, exceto no caso em que o divisor é zero.

Podemos notar, portanto, que, com o passar do tempo, foram variando as escolhas sobre os aspectos dos racionais a serem postos em evidência, de acordo, certamente, com as propostas pedagógicas de que a Matemática escolar brasileira se apropriou em cada momento. Vale observar, ainda, que em vista das características apontadas para o tratamento dos racionais nos três períodos, no primeiro e no terceiro momentos, predomina uma linguagem mais formal do que a que se adota no segundo.

Levando em conta que os livros didáticos têm sido, como já dissemos, os principais portadores do currículo escolar quanto ao conteúdo lecionado nas escolas, o texto nos dá uma ideia sobre as formas como os números racionais foram apresentados aos estudantes pertencentes a várias gerações em nosso país. Essas formas certamente se refletiram na compreensão dos conceitos e na formação de concepções entre estudantes e professores.

Mesmo não tendo focalizado todos os aspectos envolvidos nas abordagens dos números racionais e irracionais no período envolvido neste estudo, torna-se claro, a partir dessa leitura de alguns livros didáticos de diferentes épocas, que ocorrem variações por trás da aparente homogeneidade dos conteúdos da Matemática escolar ao longo do tempo.

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48 HISTóRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA

REFERêNCIAS

BúRIGO, E. Z. Matemática Moderna: progresso e democracia na visão de educadores brasileiros dos anos 60. Teoria e Educação, n. 2, p. 255-265, 1990. Cidade?

DASSIE, B. A.; ROCHA, J. L.; SOARES, F. S. Ensino de Matemática no século XX – da Reforma Francisco Campos à Matemática Moderna. Horizontes, v. 22, n. 1, p. 7-15, jan./jun. 2004. . Cidade?

FIORENTINI, D.; MIGUEL, A.; MIORIM, M. A. Álgebra ou Geometria: para onde pende o pêndulo? Pro-Posições, vol. 3, n. 1 (7), p. 39-54, mar.1992. . Cidade?

GOMES, M. L. M. Os números racionais em três momentos da história da matemática escolar brasileira. BoLEMA, Rio Claro, n. 26, 2006. p. 17-44.

GOMES, M. L. M. Aspectos históricos da abordagem dos números irracionais na matemática escolar brasileira. VI Seminário Nacional de História da Matemática, 2005. Brasília. Anais do VI Seminário Nacional de História da Matemática. Rio Claro: Sociedade Brasileira de História da Matemática, 2005. p. 195-204.

HAIDAR, M. L. M. o ensino secundário no Império brasileiro. São Paulo: Grijalbo/EDUSP, 1972.

MIGUEL, A.; MIORIM, M. A. os logaritmos na cultura escolar brasileira. Rio Claro: Editora da SBHMAT, 2002.

MIORIM, M. A. Introdução à história da educação matemática. São Paulo: Atual, 1998.

PFROMM NETO et al. o livro na educação. Rio de Janeiro: Primor/INL, 1974.

PIMENTA, S. G.; GONÇALVES, C. L. Revendo o Ensino de 2º grau: propondo a formação do professor. São Paulo: Cortez, 1992.

PITOMBEIRA, J. B. Euclides Roxo e as polêmicas sobre a modernização do ensino da matemática. In: Valente, W (Org.). Euclides Roxo e a modernização do ensino de Matemática no Brasil. São Paulo: Sociedade Brasileira de Educação Matemática, 2003.

PITOMBEIRA, J. B. O cálculo na escola secundária brasileira – algumas considerações históricas. In: FERREIRA, E. S. (Org.). História e Educação Matemática. Cadernos CEDES. Campinas: Papirus, 1996.

VALENTE, W. R. A disciplina Matemática: etapas históricas de um saber escolar no Brasil. In: OLIVEIRA, M. A. T. & RANZI, S. M. História das disciplinas escolares no Brasil: contribuições para o debate. Bragança Paulista: EDUSF, 2003. p. 217-254.

VALENTE, W. R. (Org.). o nascimento da matemática do ginásio. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2004.

VALENTE, W. R. uma história da matemática escolar no Brasil (1730-1930). São Paulo: Annablume/FAPESP, 1999.

Livros didáticos citadosCASTRUCCI, B.; BóSCOLO, A. Matemática para o Ciclo Ginasial. (1º volume). São Paulo: Editora F.T.D., 1966.

COQUEIRO, J. A. Tratado de Arithmetica. Para uso dos collegios, lyceos e estabelecimentos de instrucção secundaria. Rio de Janeiro: Casa Mont’Alverne, 1897.

LACAZ NETO, F. A. Matemática. Destinado para 1ª série. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1959.

MAEDER, A. M. Lições de Matemática. 1º ano (1ª série). 9ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1940.

MAEDER, A. M. Curso de Matemática. 1ª série. Curso Ginasial. 16ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1955.

MORANDI, H. Matemática. Método Moderno. Curso Médio – Ciclo Ginasial. (1ª série). 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1971.

PIERRO NETO, S. Matemática para a Escola Moderna. Curso Ginasial. Vol. 1. São Paulo: IBEP, s. d.

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49UNIDADE 2: OS CONTEúDOS MATEMÁTICOS SCOL ARES SE MODIFICAM AO LONGO DO TEMPO:

OS NúMEROS RACIONAIS E IRRACIONAIS NOS LIVROS DIDÁTICOS USADOS NO BRASIL

QUINTELLA, A. Matemática para a primeira série ginasial. 122ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.

REIS, A.; REIS, L. Curso Elementar de Mathematica – Theorico, pratico e applicado. Aritmética. Cálculo de valores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1892.

ROXO, E.; THIRÉ, C.; MELO E SOUZA, J. C. Curso de Matemática. 3º ano. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1935.

ROXO, E.; THIRÉ, C.; MELO e SOUZA, J. C. Matemática Ginasial. 1ª série. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1943.

SANGIORGI, O. Matemática para a Primeira Série Ginasial. 4ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1953.

SANGIORGI, O. Matemática para a Segunda Série Ginasial. 45ª ed. (Revista). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959.

SANGIORGI, O. Matemática 1. Curso Moderno para cursos ginasiais. 8ª ed., revista. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966.

STÁVALE, J. Primeiro Ano de Matemática. 15ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1940.

STÁVALE, J. Elementos de Matemática. Primeiro Volume para a Primeira Série do Curso Ginasial. 2ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1943.

THIRÉ, C.; MELO e SOUZA, J. C. Matemática. 1º ano. 7ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1934.

VIANNA, J. J. L. Elementos de Arithmetica. 24ª edição. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1929.

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50 HISTóRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA

LEITuRAS CoMPLEMENTARES

Para complementar a Unidade 2, na apresentação sobre os diferentes modos como foi proposta ao longo do tempo, na escola brasileira, a abordagem dos números racionais e irracionais, consideramos importante que o licenciando tenha a oportunidade de conhecer as propostas atuais. Com esse objetivo, propomos a leitura de um trecho selecionado (páginas 100 a 107) dos “Parâmetros Curriculares Nacionais – Matemática para o Terceiro e Quarto Ciclos do Ensino Fundamental”. A referência bibliográfica do texto no qual se encontra a passagem escolhida é:

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: matemática. Terceiro e Quarto Ciclos do Ensino Fundamental. MEC/SEF, Brasília, 1998. 148p.

Esse material, a ser disponibilizado na Plataforma Moodle, também pode ser encontrado na íntegra no endereço do portal do Ministério da Educação (MEC), na parte referente à Secretaria de Educação Básica. O endereço do portal do MEC é: <www.portal.mec.gov.br>.

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ATIVIDADES REFERENTES à uNIDADE 2

Atividade 1

Depois de ler o texto “Os conteúdos matemáticos escolares se modificam ao longo do tempo: os números racionais e irracionais nos livros didáticos usados no Brasil”:

1. Faça uma síntese dos comentários do texto sobre o uso das expressões números comensuráveis e números incomensuráveis, nos livros didáticos das décadas iniciais do século XX, em lugar das expressões números racionais e números irracionais atualmente utilizadas.

2. Responda, de acordo com o texto: qual é a mudança fundamental na apresentação das frações nos livros didáticos do segundo momento em relação ao que se fazia no momento anterior?

3. Explique com suas palavras as características principais da abordagem do conceito de fração nos livros didáticos do terceiro momento.

Atividade 2

Escreva um pequeno texto (tamanho mínimo: meia página; tamanho máximo: uma página, em Times New Roman, fonte tamanho 12, espaçamento entre linhas 1,5) comentando o que mais chamou sua atenção na leitura do “Os conteúdos matemáticos escolares se modificam ao longo do tempo: os números racionais e irracionais nos livros didáticos usados no Brasil”.

Nesta atividade, você deve considerar a sua experiência e os seus conhecimentos, como estudante, desde a escola básica até a situação atual de licenciando em Matemática pela UFMG, e relacioná-la a aspectos das abordagens dos números racionais e irracionais nos três momentos, de acordo com o texto.

Atividade 3

Faça a leitura complementar indicada para a Unidade 2.

O texto dos “Parâmetros Curriculares Nacionais para os anos finais do Ensino Fundamental”, recomendado como leitura complementar da Unidade 2, comenta as dificuldades dos alunos quanto aos números racionais (p.101) e aos números irracionais (p.106).

Estabeleça e procure descrever as relações entre esses comentários e sua experiência com esses números, como aluno e/ou como professor.

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1 Memórias e reflexões: histórias de ensino de Matemática

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53UNIDADE 3 : MEMóRIAS E REFLEXõES: HISTóRIAS DE ENSINO DE MATEMÁTICA

uNIDADE 3 : MEMóRIAS E REFLEXõES: HISTóRIAS DE ENSINo DE MATEMáTICA

objetivos

• Evidenciar a relevância das fontes autobiográficas para o conhecimento de experiências e práticas de ensino e aprendizagem da Matemática que tiveram lugar no Brasil do século XX, mediante a apresentação de fragmentos autobiográficos extraídos de livros de seis autores brasileiros: Álvaro Moreyra, Felicidade Arroyo Nucci, Augusto Meyer, Sylvia Orthof, Humberto de Campos e Nelson Werneck Sodré.

• Incluir o licenciando em Matemática como sujeito da história do ensino da Matemática no Brasil por intermédio da escrita de suas próprias memórias, proposta a partir da leitura dos fragmentos autobiográficos presentes nesta unidade e dos estudos realizados nas unidades 1 e 2.

INTRoDução

Nesta unidade, vamos nos dedicar ao estudo de escritos autobiográficos como fonte para o conhecimento da história do ensino da Matemática.

Os escritos autobiográficos mais comuns são os livros de memórias e autobiografias, as correspondências e os diários. Trata-se daquilo que vem sido chamado de “escrita autorreferencial” ou “escrita de si” pelos pesquisadores. De acordo com a historiadora Angela de Castro Gomes71, a escrita de si é um gênero que agrega um conjunto de práticas culturais das sociedades ocidentais modernas, isto é, constituídas a partir do século XVIII, ligadas à difusão da leitura e da escrita, e também à emergência do indivíduo moderno nessas sociedades.

A escrita autobiográfica tem sido considerada, por diversos autores72, como fonte e objeto importante para a pesquisa em História da Educação. Embora reconhecendo as dificuldades de tal tarefa, pelo desafio de fixar os limites da escrita autobiográfica e elaborar uma classificação dos escritos autorreferenciais válida para épocas e lugares distintos, o pesquisador espanhol Antonio Viñao73 procura estabelecer uma categorização para esses escritos. Alertando para o fato de que o que é considerado autobiografia, memórias, carta,

71 GOMES, A. C. Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo. In: GOMES, Angela de Castro. (org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2004, p.7-24.

72 Por exemplo: Gomes (2004), op. cit.; VIÑAO, Antonio. Las autobiografías, memorias y diarios como fuente histórico-educativa: tipología y usos. Teias: Revista da Faculdade de Educação da uERJ, n.1. Rio de Janeiro: Faculdade de Educação – UERG, 2000. p.82-97; VIÑAO, Antonio. Relatos e relações autobiográficas de professores e mestres. In: MENEZES, Maria Cristina Educação, memória, história: possibilidades, leituras. Campinas: Mercado de Letras, 2004. p. 333-373; MIGNOT, Ana Chrystina. Em busca do tempo vivido: autobiografias de professoras (2003). In: MIGNOT, Ana Chrystina; CUNHA, Maria Teresa Santos (Orgs.). Práticas de memória docente. São Paulo: Cortez. p. 135-148.

73 Em seus trabalhos de 2000 e 2004 citados na nota de rodapé anterior.

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54 HISTóRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA

diário, livro ou caderno com anotações e recortes, etc. é algo que se modifica no espaço e no tempo, muitas vezes não correspondendo a sua denominação formal, o autor enumera alguns tipos de escritos autobiográficos: as autobiografias e memórias, as entrevistas autobiográficas, os diários, os autorretratos.

As autobiografias e memórias em sentido estrito (confissões, recordações, testemunhos, impressões etc.) são textos que narram vidas, independentemente de um caráter mais ou menos pessoal, íntimo, profissional ou público. Já as entrevistas autobiográficas, provenientes de depoimentos gravados ou taquigrafados, constituem uma modalidade próxima ou precursora da metodologia da história oral74.

Os diários são uma sucessão de textos mais ou menos extensos, escritos com maior ou menor frequência ou regularidade, ao longo de um período determinado. Entre os diários, há os pessoais e os profissionais (para os professores, podem ser, por exemplo, os de preparação de aulas; os diários de classe, de registro das atividades de sala de aula; os de prática, em forma de memória do acontecido). O autorretrato é um texto breve, independente ou integrado a outro mais amplo, circunscrito à descrição dos traços físicos e psicológicos de quem escreve.

Antonio Viñao considera ainda as agendas, a correspondência, os arquivos pessoais e as folhas de méritos e serviços, que seriam uma espécie de curriculum vitae comentado.

As formas autobiográficas mais comumente evocadas, as autobiografias e memórias, são, amiúde, distinguidas do seguinte modo: na autobiografia, o centro da atenção é o eu que recorda e dá conta de sua vida e sua pessoa, ao passo que, nas memórias, o que prepondera não é o eu que recorda e narra, mas sim o mundo exterior, os acontecimentos e personagens que são recordados e dos quais se fala. Assim, as memórias tenderiam a ser uma representação do mundo e a autobiografia uma representação do eu.

Contudo, como Viñao e outros autores indicam, essa distinção é de natureza mais teórica e acadêmica do que conceitual, uma vez que o mais comum é a combinação, em um mesmo texto, de ambos os aspectos, e o uso indiferente, nos títulos, de um ou outro dos termos. Na verdade, é impossível à narrativa “restringir-se à focalização do eu que narra”, pois este, “ao desencadear a retrospecção, olha não apenas para si e para outros eus que com ele interagiram, e com os quais estabeleceu relações recíprocas, mas também para um determinado contexto histórico-geográfico, que pode ser objeto de maior ou menor atenção”75.

74 De modo bastante simplificado, pode-se dizer que a história oral é uma metodologia de pesquisa na qual se fazem entrevistas gravadas com pessoas que falam de acontecimentos, instituições, suas próprias vidas ou quaisquer aspectos da época em que viveram.

O uso dessa metodologia passou a ser feito na década de 1950, com a difusão do gravador, sobretudo nos Estados Unidos, na Europa e no México. Cada vez mais ela é empregada, não apenas por historiadores, mas por antropólogos, cientistas políticos, cientistas sociais, educadores, psicólogos, dentre outros. No Brasil, a metodologia foi introduzida na década de 1970, com a criação do Programa de História Oral do Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea do Brasil – CPDOc –, vinculado à Fundação Getúlio Vargas. O movimento em torno da história oral cresceu cada vez mais nos anos 1990, e em 1994, criou-se a Associação Brasileira de História Oral – ABHO. Conforme texto veiculado no site do CPDOC: <www.cpdoc.fgv.br>, acesso em 27/01/2012.

No campo da Educação Matemática, um grupo brasileiro de pesquisa tem se destacado pelo uso dessa metodologia em pesquisas de iniciação científica, mestrado e doutorado. Trata-se do Grupo de Pesquisa História Oral e Educação Matemática – GHOEM – , fundado em 2002. Informações sobre o grupo, seus pesquisadores e trabalhos podem ser encontradas em seu site: <www.ghoem.com>.

75 Conforme MIRANDA, Wander Melo. Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago. São Paulo: Editora da

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55UNIDADE 3 : MEMóRIAS E REFLEXõES: HISTóRIAS DE ENSINO DE MATEMÁTICA

Para o tema que nos interessa, a História do Ensino da Matemática, também pode ser proveitoso trabalhar com textos autorreferenciais, uma vez que seus autores, frequentemente, relatam experiências de escolarização nas quais os conhecimentos matemáticos participam desde os primeiros estudos. Muitas vezes, ao narrar suas vidas, esses autores aludem às diferentes práticas de organização da educação escolar no que se refere à Matemática, aos procedimentos dos professores, às formas como conduzem o ensino, ao ambiente da sala de aula. Esses textos permitem que tenhamos acesso a histórias de ensino de Matemática de um modo diferente daqueles favorecidos pela leitura da legislação, das prescrições curriculares, dos livros didáticos e de outros documentos dos arquivos escolares.

Escritos memorialísticos nos informam, particularmente, sobre representações acerca da Matemática e seus professores construídas pelos alunos e reelaboradas no momento em que eles se dedicam a escrever sobre suas lembranças. Também podem contribuir para o conhecimento histórico do ensino da Matemática as narrativas de professores que ensinaram essa disciplina. Já foram publicadas várias obras desse tipo, redigidas, sobretudo, por docentes que ensinaram Matemática na escola primária brasileira, e que, em geral depois que se aposentaram, procuraram relatar suas impressões sobre os alunos, a organização e o funcionamento dos sistemas escolares, as inovações pedagógicas propostas/impostas pelos órgãos gestores, as relações com colegas e profissionais da administração escolar, entre outros temas, contribuindo indispensavelmente para que possamos compreender os modos como esses docentes conduziram a complexa tarefa educacional que assumiram.

Apresentamos, a seguir, fragmentos de escritos autobiográficos de seis autores brasileiros – Álvaro Moreyra, Felicidade Arroyo Nucci, Augusto Meyer, Sylvia Orthof, Humberto de Campos e Nelson Werneck Sodré –, nos quais estão registradas diversas histórias de ensino de Matemática.

áLVARo MoREyRA E SuAS LEMBRANçAS DE uM PRoFESSoR DE MATEMáTICA

Álvaro Moreyra nasceu em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, em 23 de novembro de 1888, e faleceu no Rio de Janeiro, em 12 de setembro de 1964. Foi jornalista, poeta, prosador, autor de muitos livros e membro da Academia Brasileira de Letras. Seus estudos iniciais foram feitos em Porto Alegre e os secundários num internato de padres jesuítas, o Colégio N. S. da Conceição, de São Leopoldo, também no Rio Grande do Sul. O escritor começou o curso de Direito em Porto Alegre e o concluiu no Rio de Janeiro, em 1912.

Álvaro Moreyra escreveu um livro de memórias intitulado “As amargas, não... (Lembranças)”, que foi publicado pela Editora Lux, no Rio de Janeiro, em 1954. Essa obra é composta por parágrafos de tamanho variado, que perfazem 327 páginas. Ao que parece, o autor escreveu esses textos durante muitos anos de sua vida, reunindo-os depois nesse livro. Essa ideia nos é sugerida pelo seguinte trecho:

Universidade de São Paulo; Belo Horizonte: Editora UFMG, 1992.

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56 HISTóRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA

Por muitos, muitos anos, escrevi, todas as noites, os sentimentos das horas passadas junto dos semelhantes. Escrevia e esquecia. Continuava a escrever. As horas boas e as horas que, a mim, não tinham parecido boas. Quando abri a gaveta, na manhã mais sozinha da vida, e comecei a ler aquelas folhas soltas, onde ficou guardado um tempo longo, não quis conservar as recordações aflitas. As coisas ruins acontecem, eu sei, mas devem ser, depois, como se não acontecessem. Da morada na Terra, só desejo lembrar, e contar, o que foi de entendimento, de doçura, de bem querer76.

Na passagem abaixo, extraída do livro de Moreyra, o autor se refere a seu professor de Matemática no internato jesuíta de São Leopoldo (pp.23-24):

Às vezes, quando me acho pequeno (isto em geral acontece no verão) penso naquilo: “Quem tem praga na cabeça, roga a Deus que nunca cresça”. A praga deve ter crescido. Recebi-a da boca do professor de matemática, que também lecionava história natural, matérias em cujos exames, por especial indulgência, fui aprovado com grau 1. Chamava-se Rick. Era apavorante: muito comprido, muito magro, muito feio, e sabia tudo. Na galeria do pátio, os mestres, alemães e amáveis, se despediam dos alunos. A cada um dos que haviam terminado o curso, murmuravam palavras sem consequências, reproduziam votos de venturas e triunfos. A mim, orador da turma, o poeta do colégio, ator aplaudidíssimo nos espetáculos das festas do Reitor, de São Luiz Gonzaga, do fim do ano, iam profetizando, à medida que me abraçavam, futuros maravilhosos. Cheguei ao padre Rick, o último, na porta quase. Ele derramou as mãos cabeludas em cima dos meus ombros, fincou os olhos gelados nos meus olhos, perguntou: Endon, Morrera, que vai fazer agôrra? – Respondi, tremendo, que pretendia estudar Direito. – Dirreito! – Abriu-se de alto a baixo, numa terrível gargalhada. E com a recordação de que eu nada tinha sido nas aulas dele, concluiu: - Vai, Morrêra, vai! Nunca serrá nada na vida! – Vim. Somei idade. Não entendi mais da vida do que entendi das matemáticas. Continuei a preferir as histórias artificiais às outras histórias. Nosso Senhor já chamou o padre Rick para classificar as plantas dos jardins suspensos do Paraíso e ensinar geometria no espaço. Eu fiquei. Fiquei com aquela praga, que foi só o que aprendi com ele...77

FELICIDADE ARRoyo NuCCI E o ENSINo DA TABuADA NA ESCoLA PRIMáRIA

Felicidade Arroyo Nucci nasceu em 1914, em uma fazenda do interior de São Paulo. Ingressou no colégio interno de Jaboticabal (SP), dirigido por freiras de nacionalidade belga, no 4º ano primário, e concluiu o curso de normalista na Escola Normal Livre do mesmo colégio em 1932. Começou a atuar como professora no estado de São Paulo em 1933, em Itajobi, onde ficou até 1939, quando se removeu para Araraquara e lá esteve até 1950. Nesse ano, foi transferida para um Grupo Escolar em Guarulhos e, em 1952, para outro Grupo Escolar em Vila Carrão. De 1954 a 1963, atuou como auxiliar de direção e, em 1963, tornou-se diretora do Grupo Escolar na Delegacia de Ensino de Jales, aposentando-se logo em seguida, em 1964, sem deixar de escrever para jornais e revistas (de bairro, religiosos e de colégios).

76 MOREYRA, A. As Amargas, não... (Lembranças). 2. ed. Rio de Janeiro: Lux, 1955. p.305.77 MOREYRA, op. cit., p. 23-24.

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57UNIDADE 3 : MEMóRIAS E REFLEXõES: HISTóRIAS DE ENSINO DE MATEMÁTICA

Em 1985, publicou o livro “Memórias de uma mestra-escola”, em edição particular impressa nas Oficinas da Sociedade Impressora Pannartz Ltda, da cidade de São Paulo.

Apresentamos, a seguir, uma parte do relato da experiência de Felicidade como professora primária na qual a autora escreve sobre o ensino da tabuada:

No bairro onde eu lecionava, os pais saíam cedo para o trabalho nas fábricas e as crianças ficavam sozinhas para olhar os irmãos menores, aquecer o almoço e cuidar da casa: não tinham tempo de estudar. A esses, bem como aos outros eu ensinava o método de ensinar a tabuada ou aprender os acidentes geográficos de um modo mais interessante.

[...]

E sobre a tabuada?Era um bicho de sete cabeças a decoração da tabuada: era uma aula monótona, insípida, da qual o aluno não tinha nenhum interesse e daí a dificuldade em decorá-la. Comecei a usar de vários recursos os quais auxiliavam a memorização e tornavam a aula menos massante78. Primeiro eu lhes ensinei que todas as tabuadas pares eram constituídas de números igualmente pares, as tabuadas ímpares começavam com número ímpar, seguido de número par e assim ímpar, par, ímpar, par... até o primeiro número ser multiplicado por dez. Para as classes de 1º ano eu dizia infantilmente: o último número é o primeiro chutando uma bolinha...

Depois eu os mandava observar que nas tabuadas pares, o final do 1º número era igual ao 6º, o segundo igual ao sétimo; o terceiro igual ao oitavo, e assim por diante.

Ex:

2 X 1 = 2 2 X 6 = 12

2 X 2 = 4 2 X 7 = 14

2 X 3 = 6 2 X 8 = 16

2 X 4 = 8 2 X 9 = 18

2 X 5 =10 2 X 10 = 20

Então do primeiro ao quinto: 2, 4, 6, 8, 0 é o final do sexto ao décimo: e assim é o mesmo em todas as tabuadas pares.

Na tabuada do nove os algarismos da esquerda são em ordem crescente: 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e o algarismo da direita, em ordem decrescente: 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1, 0. Somando-se os dois algarismos, dá sempre nove, assim: 0 + 9 = 9; 1 + 8 = 9; 2 + 7 = 9; ... e os algarismos são invertidos, assim: 09 = 90; 18 = 81; 27 = 72; 36 = 63; 45 = 54,... E de fato torna-se mais fácil a decoração da tabuada usando esses segredinhos”, sim, era esta a palavra que eu empregava.

Esta curiosidade atraía sempre a atenção dos alunos que gostavam de demonstrar aos familiares estes “segredinhos”.

Alguns me diziam: “Meu irmão está na faculdade e desconhecia estas curiosidades; eu lhe ensinei tudo, professora.” Diziam isto com orgulho estampado no rosto79.

78 Embora a grafia correta da palavra seja “maçante”, optamos, aqui, por reproduzir a forma como ela está escrita no livro de Felicidade Nucci.

79 NUCCI, F. A. Memórias de uma mestra escola. São Paulo: Ed. da Autora, 1985, p. 81-83.

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58 HISTóRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA

AuGuSTo MEyER E SuAS DIFICuLDADES CoM A MATEMáTICA

ugusto Meyer nasceu em Porto Alegre, em 24 de janeiro de 1902, e faleceu em 10 de julho de 1970, no Rio de Janeiro. Foi poeta, jornalista, ensaísta, folclorista e membro da Academia Brasileira de Letras – ABL.

Seus primeiros estudos foram realizados no colégio Bom Conselho, em Porto Alegre, em que atuavam freiras. Em seguida, o autor ingressou no Ginásio Anchieta, também em Porto Alegre, onde frequentou três anos de curso preliminar e depois o ginásio. No preliminar, teve irmãos maristas como professores, enquanto que os docentes do curso ginasial eram padres jesuítas. De acordo com sua biografia no site da Academia Brasileira de Letras80, Augusto Meyer deixou os estudos regulares para se dedicar às línguas e à literatura. Isso indica que sua escolaridade máxima deve ser a dos estudos secundários.

Em 1947, publicou a primeira edição de seu livro de memórias, denominado “Segredos da infância”. O livro teve uma segunda edição pelas Edições O Cruzeiro, do Rio de Janeiro, em 1966. Na página 64, o autor faz a seguinte reflexão sobre sua rememoração:

O tempo e a memória dos homens impregnam quase sempre as coisas de uma névoa de passado e evocação que se transfigura com não sei que toques de magia. Torna-se transparente qualquer paisagem, aos olhos de quem recorda ou tenta reconstituir os seus aspectos anteriores, e uma cidade, uma rua, começam a desandar para as suas feições primitivas, a desmanchar-se, recompondo-se noutra ordem de planos, quando se projeta no seu passado a luz da fantasia evocativa.

Em alguns trechos, Augusto Meyer escreve sobre suas experiências em relação à Matemática na escola. No fragmento que escolhemos, chamando a si mesmo de Tico, o autor diz:

Criado o automatismo da leitura, como se aprende a caminhar depois de muita queda, dificilmente conseguimos reproduzir por meio da evocação o nosso esforço durante aquela fase inicial, ao ensaiarmos os primeiros passos no mundo da palavra escrita. Se é verdade que às vezes no próprio obstáculo já existe um princípio de incitação, na maioria dos casos predomina o perigo de uma repulsa ou de um choque humilhante, quando a criança tropeça em dificuldades muito sérias, para compreender e assimilar.

No caso do Tico, foi a dura experiência dos números que o trouxe acovardado diante das quatro operações. Somar, subtrair, multiplicar, dividir, tudo isso era rima que não rimava com ele, custou-lhe um esforço doloroso, deixando arranhões na pele sensível do amor-próprio. Ainda mais tarde, no ginásio, a aula de aritmética sempre lhe pareceu aborrecida, e mal podia compreender o gosto de certos colegas por aqueles momentos de aridez; os cadernos quadriculados, que usavam então, pareciam-lhe as grades de um cárcere81.

80 O endereço do site da ABL é <www.academia.org.br>. 81 MEYER, A. Segredos da infância. 2 ed. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1966. p.53.

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59UNIDADE 3 : MEMóRIAS E REFLEXõES: HISTóRIAS DE ENSINO DE MATEMÁTICA

SyLVIA oRTHoF E SuA PRoFESSoRA DE MATEMáTICA No GINáSIo

Sylvia Orthof nasceu no Rio de Janeiro, em 3 de setembro de 1932, e faleceu em 24 de julho de 1997. Era filha única de um casal de judeus austríacos que fugiram para o Brasil entre as duas guerras mundiais. Foi escritora de literatura infantil e juvenil, atriz, pesquisadora, professora e diretora de teatro. Publicou o seu primeiro livro infantil em 1981 e escreveu cerca de 120 títulos para crianças e jovens, entre contos, peças teatrais e poesias. Ganhou diversos prêmios de teatro, jornalismo e literatura infantil. Teve formação profissional em cursos de mímica, desenho, pintura, arte dramática e teatro.

Em 1987, Sylvia Orthof publicou seu livro de memórias, intitulado “Se a memória não me falha”. A autora reflete sobre o processo de recordar para escrever acerca de suas lembranças:

Pensei que escrever acontecesse assim: a gente ia lembrando, lembrando e escrevendo, em sequência certa de tempo. Mas não é: a memória é um dos grandes mistérios.

Sou capaz de lembrar de poesias de Fernando Pessoa, recitar trechos de Romeu e Julieta, mais ou menos de cor. (Não, credo, não costumo recitar, ninguém precisa ficar receoso!) No entanto, sou exímia para esquecer, em momentos críticos, como por exemplo em lançamentos de livros, desses em que o pobre do escritor fica sentado e os pobres dos amigos são convidados pela pobre da editora para virem prestigiar o evento... uf! Aí vai me dando um nervoso! Fico achando que o livro é uma droga afinal, coitados de todos nós, livreiros, inclusive! Esqueço dos nomes mais íntimos. Esqueço também, em hora de apresentações. Esqueço, de tanto medo de esquecer82.

Sylvia fez muitos registros sobre sua escola, o Colégio Rezende, no Rio de Janeiro, e, particularmente, sobre a professora de Matemática que teve lá. À página 39, a autora descreve brevemente a escola:

Nosso colégio ficava na Rua Bambina e se chamava Colégio Rezende. Estive em outros colégios, antes... mas o Rezende foi o nosso-meu-colégio. Quando penso em escola, penso nele.

Até hoje existem quatro palmeiras, muito lindas e eretas, ali, na Rua Bambina. O colégio, há pouco tempo foi demolido.

Era um casarão branco, de janelas azuis. A diretora chamava-se Dona Marieta. Dona Marieta tinha duas irmãs, também professoras: Dona Sylvia (professora de matemática) e Dona Lucília (de inglês).

Mais adiante, na página 51, Sylvia fala de seus professores e especialmente de Dona Sylvia.

Eu sempre gostei de professores. Acontece somente que os professores, alguns, não sei por quê, é que implicavam comigo. Fui uma vítima indefesa, ora, e se não fui, sempre achei que era. De alguns, certamente.

Em matéria de matemática, sempre fui “português”. Quer dizer: essa coisa abstrata de símbolos que viravam teoremas, letras, x, e frações para mim eram um verdadeiro suplício.

82 ORTHOF, S. Se a memória não me falha. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987. p. 101-102.

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60 HISTóRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA

Minha professora de matemática, só para me chatear, tinha que se chamar Sylvia, também. Era irmã da diretora da escola. Sem dúvida, a de aspecto mais severo. Enquanto Dona Marieta pintava os cabelos de castanho e Dona Lucília pintava as faces de cor de laranja, no mesmo tom dos cabelos, Dona Sylvia Prosseguindo, a autora relata práticas da professora de Matemática.

Como é que Dona Lucília poderia ter boa pronúncia se era ruim de ouvido, né?

era grisalha. Daquele digno grisalho, imponente, apesar de baixinha.

Dona Sylvia, a irmã, ouvia perfeitamente, para o meu sofrimento. Era esperta, inteligente e irônica. No fundo, divertia-se com a gente, fazendo o contrário daquilo que fazíamos com sua cândida irmã. Vingava a família, com classe. Engraçado: nunca cheguei a não gostar de Dona Sylvia, quando ela estava presente. Ela era dona de um certo humor que me fascinava. Agora, quando ela estava longe, ausente, cheguei a fazer bruxarias para ver se ela ficava doente em dia de prova, ou coisa assim. Mas Dona Sylvia tinha uma saúde de teorema de Tales, mais uma resistência de Pitágoras... mesmo que Pitágoras não tivesse resistência física, sei lá se teve, seus teoremas estão aí, atormentando, até hoje. Os matemáticos que me perdoem, sei que sou ingrata, mas a gente não é feita só de qualidades, e é isso aí.

Dona Sylvia não adoecia. Tinha a mania odiosa de, no meio da aula, de repente, me descobrir, sumida, lá na última carteira... e dizer, com voz meio cantada:

Minha xará... ao quadro! (Eu sentava na última carteira, na aula de matemática.)

Lá ia eu, tremendo. E começava o desespero: se um trem a tantos quilômetros vai de A a B, e outro, com a velocidade de xyz, trafega de B a A, em qual ponto da reta eles se encontrarão?

Eu era mais “português” do que “matemática” e já ficava, de olhos no teto, imaginando como seriam os trens, se eram da Central, ou da Leopoldina, e se na hora do acidente, quem sabe, por força do cruel destino... ou por causa das minhas preces, na hora do encontro... ou acidente, quem sabe, Dona Sylvia não estaria atravessando a linha e... coitada, morreu tão moça, ainda grisalha, nem tinha ficado de cabeça totalmente branca, nem nada...

Minha maior nota em matemática foi sete, num dia em que colei bastante. Éramos especialistas em cola. Naturalmente, colar, em matemática, não é tão fácil, porque o raio da reta A-B sempre mudava de tamanho, e os trens (que trens sem horário certo!) sempre saíam em horas e velocidades diferentes. Mas consegui colar, copiei tudo de minha colega Yolanda Vargas. Pois é, tive duas colegas de sobrenomes inimigos: Yolanda Vargas e Lígia Lacerda. Só que o Vargas da Yolanda nada tinha a ver com Getúlio, de modo que nunca existiu problema83.

HuMBERTo DE CAMPoS E AS PRáTICAS CoM A MATEMáTICA NA ESCoLA Do FINAL Do SéCuLo XIX

Humberto de Campos nasceu no Maranhão, na cidade de Miritiba (atualmente denominada Humberto de Campos), em 25 de outubro de 1886, e morreu no Rio de Janeiro, em 5 de dezembro de 1934. Foi jornalista, crítico, contista e memorialista. Elegeu-se membro da Academia Brasileira de Letras em 30 de outubro de 1919, tendo sido o terceiro ocupante da cadeira de número 20. Foi também deputado federal eleito pelo Maranhão em 1920.

83 ORTHOF, op. cit, p. 51-54.

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61UNIDADE 3 : MEMóRIAS E REFLEXõES: HISTóRIAS DE ENSINO DE MATEMÁTICA

Humberto de Campos frequentou diferentes escolas durante curtos e descontínuos períodos de sua vida, e não obteve certificados referentes aos estudos primários ou secundários. Muitas dessas experiências escolares do autor são narradas no primeiro volume de suas memórias, publicado originalmente em 1933. Esse livro intitulado “Memórias: Primeira Parte – 1886-1900” focaliza a infância e o início da adolescência do autor no Maranhão. órfão de pai aos seis anos, o autor teve seu aprendizado das primeiras letras em parte conduzido por sua mãe. Entretanto, frequentou, também, pequenas escolas do interior do Maranhão, como a de Dona Marocas Lima, em que ingressou com nove anos, e sobre a qual escreveu:

A escola em que minha mãe me ia matricular, era, ainda desta vez, dirigida por uma mulher e destinada a meninas, mas admitia, também, embora em número reduzido, alunos do outro sexo. Ficava à rua Duque de Caxias, em uma casa pequena, de calçada alta, com uma porta e duas janelas de frente. A sala, que abria diretamente para a rua por essa porta e por essas duas janelas, era consagrada à escola. Em frente à porta, encostada à parede, em uma fila única, as doze ou quatorze cadeiras dos meninos. Do lado oposto, em filas sucessivas, as meninas. Entre uns e outros, de frente para a rua, a mesa de Dona Marocas Lima, nossa mestra.

Dona Marocas Lima, ou melhor, mestra Marocas, era uma senhora de pequena estatura, morena, magra, de cabelos lisos e negros, e de uma palidez terrosa e doentia. Tinha uma tosse miúda e seca, e diziam-na doente do peito há mais de vinte anos. Casada com um homenzarrão forte e alegre, não se metia muito, parece, com os negócios dele, nem ele lhe admirava, como devia, o espírito e a atividade84.

No fragmento a seguir85, Humberto de Campos narra práticas que vivenciou nessa escola em relação à matemática.

Os sábados eram, na escola, dias chamados de “argumento”. De pé, em semicírculo, os alunos da mesma classe, a mestra sentava-se na sua cadeira, de frente para eles. E começava a inquirição, ou “argumento” da tabuada:

— Oito vezes quatro?

O aluno tinha que responder prontamente, sem refletir nem pestanejar:

— Trinta e dois.

— Noves fora?

— Cinco; porque três e dois são cinco.

Aproveitando essa resposta, e o algarismo final, a professora saltava a inquirir um aluno da outra extremidade:

— Vezes cinco?

— Adiante... adiante.... adiante... _ dizia, mudando de alvo, à medida que o aluno titubeava.

— Vinte e cinco.

— Noves fora?

— Sete!

84 CAMPOS, H. Memórias: Primeira Parte 1886-1900. Rio de Janeiro: W. M. Jackson INC. Editores, 1951, pp. 204-205.85 CAMPOS, op. cit., p. 213-215.

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62 HISTóRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA

— Bolo! – ordenava Dona Marocas.

O aluno vitorioso tomava a palmatória, que se achava sobre a mesa, e corria a roda, castigando com um bolo, ora forte, ora mais suave, conforme a simpatia que os ligava ou a antipatia mútua, os companheiros que não haviam respondido, ou tinham respondido errado.

Resolvido a compensar pelo esforço a injustiça da Natureza, eu me tornei, em breve, um elemento respeitável na tabuada. E era com verdadeira delícia que, aos sábados, no “argumento”, segurava com a minha mão curta e grossa de plebeu, os dedos finos de mocinhas de quatorze ou quinze anos, a fim de lhes aplicar na palma um bolo estalado e seguro, - dos que nós chamávamos “de pé atrás”, - que às vezes as fazia chorar. E isso as tornava cada vez mais prevenidas contra mim e as levava a festejar com grande alegria, e não raro com algazarra, cada desastre que me ocorria.

Na continuidade da narrativa, Humberto de Campos escreveu:

A gargalhada foi geral. As meninas riam. Riam os rapazes. [...] Eu fiquei vermelho, congestionado, e com a cara de quem ia cometer um crime. Previ o lançamento de um apelido. Mas os meus companheiros não insistiram. Eu tinha, garantindo-me contra os apelidos e contra qualquer tentativa de ridículo, boa memória para a tabuada, e mão pesada, para o bolo.

A escola de Dona Marocas Lima utilizava, ainda, como a totalidade dos estabelecimentos de ensino primário do seu tempo, castigos físicos severos e humilhantes. O mais vulgar consistia em passar a tarde de joelhos. Mas havia uma coleção de capacetes de papelão com os dísticos vadio, burro, malcriado, e outros, que eram colocados à cabeça do aluno, pondo-o, em seguida, de pé, com o livro aberto, à porta da rua. Os transeuntes olhavam e sorriam. O aluno, porém, fazia-lhes uma careta, e ficava por isso.

Não tenho ideia de ter ficado, jamais, de castigo, exibindo qualquer desses capacetes. Mas é possível que se trate, apenas, de uma modéstia da minha memória86...

NELSoN WERNECk SoDRé E A MATEMáTICA ENSINADA NA FoRMAção MILITAR

Nelson Werneck Sodré nasceu no Rio de Janeiro em 27 de abril de 1911 e faleceu na cidade paulista de Itu em 13 de janeiro de 1999. Foi militar, jornalista e historiador. Realizou estudos primários em escolas públicas e internatos, estudos secundários no Colégio Militar do Rio de Janeiro e estudos superiores na Escola Militar do Realengo, também no Rio de Janeiro. Pertenceu ao Exército Brasileiro até 1962, quando passou para a reserva no posto de general. Dedicou-se, a partir de então, somente à atividade intelectual, tendo sido professor do Departamento de História do Instituto Superior de Estudos Brasileiros – ISEB. Em 1964, teve seus direitos políticos cassados por dez anos pelo regime militar que depôs o presidente João Goulart. Esse regime, que o colocou na prisão, no Rio de Janeiro, durante 57 dias, tirou-lhe o direito de ensinar. Sodré passou a ter como atividade o estudo e a produção de livros. Escreveu 58 livros e sua última obra foi publicada em 199587.

86 CAMPOS, op. cit., p. 217-218.87 Informações sobre o autor no site: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas2/biografias/nelson_werneck_sodre>.

Acesso em 20 de novembro de 2011.

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63UNIDADE 3 : MEMóRIAS E REFLEXõES: HISTóRIAS DE ENSINO DE MATEMÁTICA

Entre os livros de Nelson Werneck Sodré, estão as “Memórias de um soldado”, publicadas em 1967. Nessa obra, o autor relata detalhadamente suas lembranças dos tempos de estudante interno no Colégio Militar do Rio de Janeiro e na Escola Militar do Realengo. Seu ingresso, por concurso, no Colégio Militar, deu-se no ano de 1924.

Na passagem a seguir, Sodré caracteriza o regime militar dessa escola.

Porque o Colégio Militar não honrava o nome apenas pela forma das edificações: o seu regime era integralmente militar. A administração era constituída por oficiais da ativa – só o general-comandante era às vezes da reserva: comandante, fiscal, capitão-ajudante, tenente-ajudante, instrutores. Os alunos eram grupados em Companhias, comandadas por capitães da reserva. Austero o regime, severíssimo. Os professores eram militares da reserva ou civis que tinham honras militares e ministravam as aulas fardados. Como num quartel, havia vestiário, onde mudavam os trajes civis, antes de ganhar as salas de aula. Os trabalhos eram marcados por toques de corneta e por campainhas; tudo se processava em ordem absoluta e em silêncio. Enquadrados pela instrução militar, desde os primeiros dias, os alunos portavam-se como soldados, e faziam por isso: compunham um batalhão de infantaria e um esquadrão de cavalaria, participando, como até hoje, das formaturas, da tropa, no 7 de setembro88.

Prosseguindo, o autor se refere à rigorosa disciplina do colégio:

O rigor da disciplina, no meu tempo, era impressionante. [...].

As sanções iam da simples repreensão à prisão por um ou vários dias; excepcionalmente, havia suspensões, e o aluno ficava proibido de frequentar o Colégio por determinado número de dias; raras eram as expulsões. A severidade cotidiana evitava sanções mais pesadas. A vigilância não se resumia ao recinto do Colégio; prolongava-se nas ruas, nos cinemas, nas festas. As faltas externas mais comuns eram relacionadas com o uso dos uniformes. O uniforme cáqui só era permitido para circulação de casa para o Colégio e do Colégio para casa, e limitado aos bairros; para circular na cidade, era obrigatório o uso do uniforme garance, túnica azul e calça vermelha; a transgressão dessa norma importava em falta grave. Outra falta grave era fumar, dentro ou fora do Colégio89.

Nelson Werneck Sodré também nos conta sobre o ensino em sua escola:

O Colégio Militar gozava de fama não apenas pela sua disciplina, mas também pela qualidade do ensino ali ministrado. Quanto à disciplina, a fama era justa, deixando de lado a sua análise qualitativa. Quanto ao ensino, nem tanto. Talvez o conceito fosse relativo; provavelmente o seria, como todos os conceitos. Não conheci outros colégios da época, para avaliar, e por isso não estou em condições de julgar senão o caso isolado daquele que frequentei. Os dois primeiros anos eram como que introdutórios; no terceiro, começavam os exames finais das diversas disciplinas; os alunos que, nos dois primeiros anos, alcançassem média superior a cinco nos trabalhos mensais ficavam dispensados dos exames; a partir do terceiro ano, os exames eram obrigatórios e encerravam os estudos de cada matéria. Era o regime chamado dos preparatórios, corrente no país, ao tempo: o ensino médio, o curso secundário, consistia em provar, em exames prestados perante bancas oficiais, o conhecimento de dez ou doze disciplinas, tidas como preparatórias para o ensino superior.

88 SODRÉ, N. W. Memórias de um soldado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 6.89 SODRÉ, op. cit., p. 7.

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64 HISTóRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA

No Colégio Militar, subordinado ao Ministério da Guerra – e naquele tempo não havia ainda o Ministério de Educação e Cultura – as bancas oficiais eram constituídas pelos seus próprios professores. Nos outros colégios, essas bancas vinham de fora. O estabelecimento padrão era o Colégio Pedro II, perante cujas bancas, em inscrição avulsa, podiam prestar exame aqueles que o desejassem. No primeiro e segundo ano do Colégio Militar, estudávamos Aritmética, Português, Geografia, e, creio Francês90.

Em relação à Matemática, ingrediente fundamental da educação militar, Sodré faz reflexões específicas, relacionando o seu ensino ao das demais disciplinas.

Foi, pois, no terceiro ano que travamos conhecimento com a História. Normalmente a formação militar, no Brasil, punha em destaque a matemática sobre tudo o mais; matérias como as de ciências naturais e a História eram tidas como secundárias. O esforço do curso do Colégio era, portanto, na matemática. Aritmética, particularmente a teórica, Álgebra, Geometria, eram matérias básicas, longamente estudadas. A Física limitava-se a informações experimentais; a História Natural era meramente descritiva; dela, estranhamente, não constava a reprodução nos animais e, particularmente, no homem, embora compreendesse a reprodução dos vegetais. No Desenho, Teixeira da Rocha, monarquista apaixonado, só tratava do artístico, para o qual éramos impreparados; Sussekind, oficial de Marinha, só tratava do geométrico, muito útil aos que, na Escola Militar, iriam defrontar-se com a Geometria Descritiva; perspectiva e sombra, para o pintor que era Teixeira da Rocha, parecia uma coisa; para Sussekind, outra coisa; não podíamos compreender que se tratava da mesma coisa.

Nessa tendência, era natural que a História ficasse subestimada. E não é que as matérias ligadas à matemática fossem, realmente, bem entendidas e ministradas, apesar dos cuidados especiais que mereciam, consideradas que eram fundamentais. Em que pese a atenção dispensada à parte teórica, dedicada não apenas a solucionar problemas mais a deduzir fórmulas – a análise matemática que pode, sem dúvida, ter papel relevante no desenvolvimento do raciocínio, era esquecida, reduzida a uma compreensão estreita, sem fôlego para as abstrações, as generalizações. De todo o curso de matemática, no Colégio Militar, restou-me na memória, uma definição, a de Álgebra, proporcionada por Agrícola Bethlen, professor hábil, maneiroso, inteligente, excepcional para o meio, distinguindo-se facilmente no conjunto da congregação medíocre: ‘Álgebra é a parte da matemática que generaliza as questões propostas sobre números’.

É curioso como, de longos anos de aprendizagem, tão pouca coisa permaneça em nossa lembrança. Esquecemos tudo o que não usamos, e felizmente; é imenso o acervo do que nos ensinam e esquecemos, por desnecessário. Claro que, no ensino básico, o de formação, o importante não está na massa de conhecimentos, transmitida, está no hábito de raciocinar. Em matemática, a finalidade estaria, desse modo, em aprender a fazer análise e não a fazer contas, a resolver problemas. E tem sido por isso, acredito, que o ensino militar, em suas diversas escolas, não forneceu ao país o número de matemáticos capazes de avançar nos campos superiores, científicos, hoje abertos e necessários, apesar do destaque que confere à matemática em seus cursos91.

90 SODRÉ, op. cit., p.15.91 SODRÉ, op. cit., p.22-24.

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65UNIDADE 3 : MEMóRIAS E REFLEXõES: HISTóRIAS DE ENSINO DE MATEMÁTICA

BREVES REFLEXõES SoBRE o ENSINo DA MATEMáTICA NAS MEMóRIAS DE SEIS BRASILEIRoS

Apresentamos, aqui, fragmentos das lembranças de seis brasileiros registrados em seus livros de memórias. Quatro homens e duas mulheres, dois gaúchos, dois cariocas, uma paulista, um maranhense, ao rememorarem suas vidas, se preocuparam em inserir em seus escritos referências a suas experiências com a Matemática. Essas experiências, como o leitor certamente percebeu, são muito diversas.

Um dos autores, Nelson Werneck Sodré, fala do ensino da Matemática no âmbito militar e critica o enfoque desse ensino. Outro autor, Álvaro Moreyra, que mostra, no próprio título de seu livro, sua intenção de rejeitar as lembranças amargas, tece recordações desagradáveis, mas tratadas com o amadurecimento trazido pelo tempo, de um padre que foi seu professor de Matemática. A escritora Sylvia Orthof focaliza, de modo bem humorado, suas relações com sua professora de Matemática, representando-a com graça. Humberto de Campos, num misto de tristeza e humor, aborda o ensino da Matemática nas antigas escolas de primeiras letras, em que se insistia no domínio da tabuada e se usava a palmatória para os próprios alunos castigarem os que erravam, além de castigos de natureza moral. Augusto Meyer retrata a sensação de desamparo que o atingia, desde a infância, nas práticas escolares com os números. Felicidade Nucci, antiga professora primária, tem prazer em se recordar que, para auxiliar os estudantes a memorizar a tabuada, para tornar a aula menos aborrecida, lhes chamava a atenção para algumas regularidades nas tabelas de multiplicação – o que ela denomina “segredinhos”.

Todos eles, ainda que sejam diversos os tempos e contextos, os estilos, as vidas, se apropriam das formas de experiência com a Matemática na escola para produzir registros que precisamos compreender como processos de recordação e elaboração de lembranças significativas para esses sujeitos. Essas reminiscências, embora carreguem marcas da individualidade de cada autor, estão relacionadas aos seus grupos de pertencimento sociocultural, grupos esses aos quais deve ser creditada participação de grande relevância na elaboração das memórias.

Tempos vividos no pretérito, recordados no momento em que os autores traçam memórias escritas, nos quais se inscrevem experiências e práticas com a Matemática da escola, contribuem, desde que interpretados à luz de outros conhecimentos, para que possamos entender melhor as práticas e as representações mais antigas e também as da atualidade. Nas palavras de Denice Catani e Paula Vicentini, que dizem respeito não somente às memórias, mas também à literatura em geral:

Ao reconstruírem de modo romanceado ou ao criarem ficções, os escritores, a propósito das experiências escolares, tendem a descrever estados, sentimentos e relações que impregnaram sua vida escolar. Tais descrições são ricas pelo que acrescentam ao já sabido sobre a escola, e o que acrescentam é justamente o sentido que as experiências ganham. Sentidos esses que se apresentam como mesclas de tempos vividos, rememorados e narrados, dando conta de mostrarem em vida dupla: o que a história e a formação fazem aos sujeitos e aquilo em que os sujeitos transformam a ação exercida sobre eles. De algum

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66 HISTóRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA

modo, pode-se dizer que, nesse processo de dotar de sentido o que se vive, a reconstrução autobiográfica assume o lugar de uma inflexão temporal e social92.

As lembranças escritas sobre o papel representado pela Matemática escolar e por seus professores, na formação dos autores aqui mostrados em fragmentos de textos, evidenciam eloquentemente a inexistência de uma única história de ensino da Matemática no Brasil. Elas reforçam, em sentido oposto, que importa levar em consideração as muitas histórias de ensino de Matemática construídas por estudantes e professores.

REFERêNCIAS

CAMPOS, H. Memórias: Primeira Parte 1886-1900. Rio de Janeiro: W. M. Jackson INC. Editores, 1951.

CATANI, D. B.; VICENTINI, P. P. Uma história das práticas de ensino da leitura e da escrita na produção autobiográfica de professores e alunos no Brasil (1870-1970). Educação. v.34, n. 2. Porto Alegre: 2011, p.207-212 (p. 209).

GOMES, A. C. Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo. In: GOMES, Angela de Castro. (org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2004. p.7-24.

MEYER, A. Segredos da infância. 2 ed. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1966.

MIGNOT, A. C. Em busca do tempo vivido: autobiografias de professoras (2003). In: MIGNOT, A. C.; CUNHA, M. T. S. (Orgs.). Práticas de memória docente. São Paulo: Cortez. p. 135-148.

MIRANDA, W. M. Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Belo Horizonte: Editora UFMG, 1992.

MOREYRA, A. As Amargas, não... (Lembranças). 2. ed. Rio de Janeiro: Lux, 1955.

NUCCI, F. A. Memórias de uma mestra escola. São Paulo: Ed. da Autora, 1985.

ORTHOF, S. Se a memória não me falha. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.

SODRÉ, N. W. Memórias de um soldado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

VIÑAO, A. Las autobiografías, memorias y diarios como fuente histórico-educativa: tipología y usos. Teias: Revista da Faculdade de Educação da uERJ, n.1. Rio de Janeiro: UERJ-Faculdade de Educação, 2000. p.82-97.

VIÑAO, A. Relatos e relações autobiográficas de professores e mestres. In: MENEZES, M. C. Educação, memória, história: possibilidades, leituras. Campinas: Mercado de Letras, 2004. p. 333-373.

92 CATANI, D. B.; VICENTINI, P. P. Uma história das práticas de ensino da leitura e da escrita na produção autobiográfica de professores e alunos no Brasil (1870-1970). Educação. v.34, n. 2, Porto Alegre: 2011, p.207-212 (p. 209).

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67UNIDADE 3 : MEMóRIAS E REFLEXõES: HISTóRIAS DE ENSINO DE MATEMÁTICA

ATIVIDADES REFERENTES à uNIDADE 3

Atividade 1

Escolha dois entre os seis fragmentos autobiográficos apresentados no texto da Unidade 3 que mais tenham lhe chamado a atenção na primeira leitura que você fez. Releia esses dois trechos e escreva um texto de no mínimo uma página e no máximo três páginas (Times New Roman, tamanho da fonte 12, espaçamento entre linhas 1,5) sobre eles.

Em seu trabalho, procure relatar a sua interpretação do que dizem esses dois autores sobre suas experiências com a Matemática e aponte os componentes de seus escritos que mais se destacaram na leitura que você fez, comentando os motivos para esse destaque.

Atividade 2

Procure rememorar suas experiências de vida, dando especial atenção às suas vivências escolares e, nelas, àquelas vinculadas ao ensino e à aprendizagem de Matemática.

Em seguida, produza um texto que narre sua própria história de ensino de Matemática, desde os primeiros anos escolares até o curso de licenciatura em Matemática da UFMG.

Para orientá-lo (a) na escrita das suas memórias, apresentamos, a seguir, uma lista de tópicos. O que se pretende, com essa lista, não é que você redija respostas isoladas associadas a cada tópico ou a alguns deles, mas que componha o seu texto procurando contemplar esses tópicos integradamente.

Ao recordar sua vida quanto aos temas presentes na lista, procure estabelecer relações entre suas experiências no que se refere ao ensino e aprendizagem da Matemática e o que você estudou na disciplina História do Ensino da Matemática.

Use sua criatividade para escolher um título para as suas memórias.

Seu trabalho deve ter no mínimo duas e no máximo seis páginas em Times New Roman, fonte 12, espaçamento entre linhas 1,5.

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68 HISTóRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA

LISTA DE TóPICoS PARA oRIENTAR A ESCRITA Do TEXTo DE MEMóRIAS

1. Identificação pessoal:

• nome, local e data de nascimento;

• características de sua família (pais, irmãos e outras pessoas próximas a você);

• profissão e escolaridade de seus pais;

• cidade em que você reside hoje;

• estado civil;

• principais atividades que exerce atualmente;

• quaisquer outros assuntos que você julgue relevantes quanto à sua vida pessoal para a escrita de suas memórias.

2. Vida escolar (com ênfase no ensino e aprendizagem de Matemática)

• momento e local em que iniciou a escolarização;

• escolas que frequentou até hoje;

• lembranças da vida escolar;

• práticas pedagógicas dos professores, particularmente com a Matemática;

• características de seus professores (especialmente os de Matemática), tais como sexo, raça, idade, formação acadêmica, relacionamento com os alunos, uso de recursos no ensino (aula expositiva, livros didáticos, trabalhos em grupo, aulas de exercícios, filmes, jogos, computador, calculadora, leitura de textos etc.);

• conteúdos de Matemática nos quais teve facilidade ou dificuldades e dos quais gostou ou não gostou;

• professores que você teve e foram importantes na sua vida, por aspectos positivos ou negativos;

• mudanças significativas ocorridas no ensino em geral e no ensino de Matemática, em particular, para a sua vida escolar;

• razões para a realização do curso de licenciatura em Matemática;

• quaisquer outros assuntos que você julgue relevantes quanto a sua vida escolar para a escrita de suas memórias.

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Composto em caracteres Aller, Arial, Calibri, PT Sans e Times New Roman.

Editorado pelo Centro de Apoio à Educação a Distância da UFMG (CAED-UFMG).

Impresso pela XXXXXXXXXXX

Capa em Supremo, 250g, 4 X 0 cores - Miolo Off Set 120g, 2X2 cores.

2012