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HISTÓRIA E DIREITO: Sesmarias e Conflito de Terras entre Índios em Freguesias Extramuros do Rio de Janeiro (Século XVIII) Carmen Margarida Oliveira Alveal Orientador: Prof. Dr. João Luís Ribeiro Fragoso Rio de Janeiro 2002 Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre.

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HISTÓRIA E DIREITO: Sesmarias e Conflito de Terras entre Índios em Freguesias

Extramuros do Rio de Janeiro (Século XVIII)

Carmen Margarida Oliveira Alveal

Orientador: Prof. Dr. João Luís Ribeiro Fragoso

Rio de Janeiro

2002

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre.

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HISTÓRIA E DIREITO: Sesmarias e Conflito de Terras entre Índios em Freguesias Extramuros do Rio de Janeiro (Século XVIII) Carmen Margarida Oliveira Alveal Dissertação submetida ao corpo docente do Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do Grau de Mestre. Prof. _________________________________________ - Orientador Professor Doutor Prof. _________________________________________ Professor Doutor Prof. _________________________________________ Professor Doutor

Rio de Janeiro

2002

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Alveal, Carmen Margarida Oliveira. História e Direito: sesmarias e conflito de terras entre índios em freguesias extramuros no Rio de Janeiro (século XVIII)/ Carmen Margarida Oliveira Alveal. Rio de Janeiro: UFRJ/PPGHIS, 2002. 150p., il. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2002. 1. Sesmarias. 2. Conflito de Terra. 3. Índios. 4. Rio de Janeiro. 4. Tese (Mestr.- UFRJ/PPGHIS). I. Título.

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Aos meus pais, a minha irmã Joana e a tia Margarida, pelo carinho, paciência e apoio.

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v

AGRADECIMENTOS

Três anos de pesquisa e trabalho, buscando as fontes entre papéis da nossa

história. Entre a poeira do tempo e a boa vontade e atenção de funcionários das

instituições de pesquisa, gua rdiões de nossa herança histórica documentada, várias

foram as pessoas que ajudaram a viabilizar os nossos objetivos. Pesquisando em um

país que não apóia a pesquisa acadêmica, fazendo com que a arte da pesquisa seja árdua

e estressante, o valor dessas pessoas, torna-se de maior importância.

Em primeiro lugar agradeço aos funcionários do Arquivo Público do Estado do

Rio de Janeiro. A equipe que atende aos pesquisadores é de gentileza tamanha que faz

com que nos sintamos em nossa própria casa. Apesar de a pesquisa ter tomado rumos

diferentes e a documentação levantada dessa instituição não ter sido utilizada, não posso

me furtar de agradecer pelo ótimo atendimento durante os cinco meses em que

permaneci pesquisando lá. Da mesma forma, Carla e Sátiro, do Arquivo Nacional foram

de valiosa ajuda no encaminhamento da busca das fontes do meu precioso objeto.

Graças a eles encontrei preciosidades que poderão ser contempladas na dissertação.

Agradeço também aos funcionários do Arquivo Histórico do Exército, do

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Biblioteca Nacional por toda hora

retornar pedindo para confirmar algum conteúdo perdido nas fontes.

Ao longo do levantamento das fontes e de sua leitura, importantes colegas foram

vitais ao me ajudarem a compreender o que aquelas letras e abreviaturas tão antigas

significavam. Sem dúvida, meu amigo Roberto, carinhosamente conhecido domo Che,

foi fundamental para entender metade da documentação. Da mesma forma contribuíram

em alguns entendimentos Aletéia, Érika, Janaína e Daniel.

Ao meu amigo Tarcísio, outro maluco que se aventurou a estudar o problema da

terra no Brasil, pelas trocas de idéias sobre o tema, contribuindo maravilhosamente com

a sua inteligência.

Agradeço aos professores da UFF, onde fiz a graduação, Mário Jorge, Marcelo

Badaró, Virginia Fontes, Hebe de Castro, Théo Lobarinhas e, em especial, a professora

Márcia Motta, por ter me "apresentado às sesmarias".

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Agradeço a minha irmã Joana e a minha prima Isabel pelas fotografias tiradas e

pelas figuras esquemáticas elaboradas para a dissertação. À Márcia Lemos,

companheira das noites niteroienses, agradeço pela digitação, elaboração de gráficos e

revisão técnica. À Maria Tereza o meu agradecimento pela revisão do texto. Á Paula

Johns pela tradução do abstract.

À professora e grande amiga Sônia Mendonça por ter me iniciado na pesquisa,

embora nunca tenha me perdoado de ter partido para pesquisar sobre o Brasil colônia e

tê-la forçado a ler os meus capítulos.

Este trabalho não seria possível sem a sábia e paciente orientação do professor

João Fragoso, que nos momentos mais difíceis desses três anos perdoou todas as falhas

de uma delicada pesquisa. Muitas fontes encontradas foram graças a sua insistência

quanto ao aporte documental. Ademais, o seu conhecimento profundo sobre a história

do Brasil no período colonial e os vários campos teóricos facilitou muito a compreensão

dos elementos abordados na pesquisa.

Aos meus pais por ouvirem todas as reclamações da falta de perspectiva de uma

jovem que insistiu em fazer História num país que não tem memória e por terem se

submetido aos sacrifícios de aprenderem tudo sobre as sesmarias.

A todos aqueles que perguntam sobre meu tema e ao responder sesmarias me

perguntam quem eram as "seis Marias" ou o que "elas" fizeram, prova cabal de que o

tema ainda precisa ser bastante visitado.

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RESUMO

ALVEAL, Carmen Margarida Oliveira. História e Direito: Sesmarias e Conflito de

Terras entre Índios em Freguesias Extramuros no Rio de Janeiro (século XVIII).

Orientador: João Luís Ribeiro Fragoso. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2002. Diss.

O trabalho apresenta uma discussão acerca da implementação do instituto das

sesmarias na América portuguesa e os problemas fundiários que derivaram de sua

aplicação. As sesmarias, legislação presente nas Ordenações, foram incorporadas ao

processo de colonização, acarretando em aspectos específicos nas formas de

apossamento da terra colonial.

A pesquisa trata, mais especificamente, de um conflito de terra na região de

Mangaratiba, na Capitania do Rio de Janeiro do século XVIII. O conflito teve como

agentes principais os próprios índios, indicando que a luta pela terra não foi apenas

travada entre brancos e índios, ou apenas entre brancos. A disputa entre índios na justiça

pela terra acabou revelando uma disputa pelo poder no interior da abtiga Aldeia dos

Índios de Mangaratiba.

Para tanto, as fontes utilizadas foram processos judiciais julgados na Corte de

Apelação do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, que estão depositados no Arquivo

Nacional.

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Abstract

ALVEAL, Carmen Margarida Oliveira. History & Law: Sesmarias and Land Conflict

among Indians in Outside Districts in Rio de Janeiro (XVIII Century).

Supervisor: João Luís Ribeiro Fragoso. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2002.

Masters Dissertation.

The dissertation presents a discussion about the implementation of the Sesmarias

Institute in Portuguese America and about the land conflicts that arise from its

implementation. The Sesmarias, the legislation present in the Portuguese Ordenações

(Colonial and Imperial Laws), were incorporated into the colonization process that lead

to specific aspects, such as the forms of land appropriation.

The research deals, most specifically, with a Land conflict in the Magaratiba

Region, in the Rio de Janeiro Captaincy of the XVIII Century. The conflict had as its

major agents the Indians among themselves, indicating that the struggle for land was not

only between whites and Indians, or only among whites. The Indians dispute in the

justice for land end out revealing a power dispute from the old Mangaratiba Indians

Settlement.

For the purpose of the research, the sources used were the judicial processes

judged at the Appellation Court of the Rio the Janeiro Relations Tribunal, kept at the

National Archive.

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LISTA DE ABREVIATURAS

AHEx - Arquivo Histórico do Exército

AN – Arquivo Nacional

ANB – Anais da Biblioteca Nacional.

ANS – Arquivo Noronha Santos

BN – Biblioteca Nacional

DH – Documentos Históricos

IHGB – Instituo Histórico e Geográfico Brasileiro

INDEX- Index Geral das leis, alvarás, ordens, previzõens, e cartas pertencentes

ao governo do Rio de Janeiro

RIHGB – Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Quadro 1 – Distribuição das terras pelas ordens religiosas.................................. 23

Tabela 1 – Dados numéricos por Distritos........................................................... 130

Tabela 2 – Produção por distrito........................................................................... 133

Tabela 3 – Receita das vilas e cidades................................................................... 134

Tabela 4 – Demografia de Mangaratiba................................................................ 135

Tabela 5 – Demografia por Distrito...................................................................... 136

Gráfico 1 – Fogos por Distrito.............................................................................. 131

Gráfico 2 – Engenhos por Distrito........................................................................ 131

Gráfico 3 – Caixas de Açúcar por Distrito............................................................ 132

Gráfico 4 – Engenhocas por Distrito..................................................................... 132

Gráfico 5 – Produção de Pipas de Aguardente por Distrito.................................. 133

Gráfico 6 – População por Vilas............................................................................ 136

Figura 1 – Localização da Sesmaria de Bartolomeu Antunes Lobo e de Vitória de Sá.......................................................................................................................

140

Figura 2 – Detalhe do Plano da Capitania do Rio de Janeiro................................ 141

Figura 3 – Sobreposição da Sesmaria dos Antunes e da área destinada aos índios 142

Figura 4 – Localização da área envolvida na troca de engenhos entre Salvador C. de Sá e D. José Rendom.....................................................................................

143

Figura 5 – Área pertencente a Nicolau Baldim de Alvarenga transferidas a Manoel Pavão.........................................................................................................

147

Figura 6- Área vendida a Pedro Alexandre Galvão pelos religiosos...................... 151

Figura 7 – Saco de Mangaratiba, supondo suas duas pontas com a mesma denominação...........................................................................................................

136

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................... 1

1. ORIGEM DO INSTITUTO DAS SESMARIAS.......................................... 17

1.1. A lei de sesmarias no contexto histórico português.................................. 17

1.2. A Lei de Sesmarias...................................................................................... 37

1.2.1. Sesmarias: considerações etimológicas...................................................... 37

1.2.2. A Lei de Sesmarias original e a contida nas Ordenações Afonsinas.......... 41

1.2.3. A Lei de Sesmarias nas Ordenações Manuelinas e Felipinas..................... 50

1.3. O problema das sesmarias em Portugal.................................................... 53

2. AS SESMARIAS NA AMÉRICA PORTUGUESA.................................... 75

2.1. Colonização e Colonos................................................................................ 75

2.2. A historiografia sobre sesmarias na América portuguesa...................... 78

2.3. A contribuição dos juristas......................................................................... 89

2.4. A documentação sobre terras para a América portuguesa..................... 91

2.4.1. Sesmaria primordiais na América portuguesa............................................ 92

2.4.2 Índios e sesmarias: uma relação especial..................................................... 99

2.4.3. Sesmarias e acumulação de ganhos: surgimento de conflito...................... 101

2.4.4. Sesmarias nas áreas das minas.................................................................... 101

2.4.5. Domínio útil e domínio efetivo: o cultivo legitimando o pedido............... 106

2.4.6. Dificuldade do controle régio .................................................................... 106

2.4.7. Conflito de competência............................................................................. 108

2.4.8. Ideogenia e idiossingrasia da legislação sesmarial : distribuição régia de mercês e rede clientelar........................................................................................

110

2.4.9. Regimentos específicos e locais................................................................. 112

2.4.10. Avanços na regulamentação corrigindo lacunas ostensivas : o Alvará de 1795..................................................................................................................

114

2.5. Os processos judiciais da Corte de Apelação no Rio de Janeiro............. 117

3. A DISPUTA PELA TERRA ATRAVÉS DOS PROCESSOS JUDICIAIS

123

3.1. A disputa judicial entre Pedro Alexandre Galvão e os índios da aldeia de Mangaratiba...................................................................................................

123

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3.2. A costa verde entre o mar e as montanhas : a região de Mangaratiba.. 124

3.3. A versão e os documentos apresentados por Pedro Alexandre Galvão.. 138

3.4. A versão dos fatos, segundo Bernardo de Oliveira, capitão-mor da aldeia.....................................................................................................................

152

3.4.1. O argumento de posse imemorial................................................................ 160

3.5. O resultado final do primeiro processo e o verdadeiro conflito : índios versus índios.........................................................................................................

165

3.5.1. A invasão das aldeias indígenas.................................................................. 171

3.5.2. O conflito no interior da aldeia................................................................... 176

3.6. O problema da documentação, os argumentos apresentados no segundo processo e o não-fim da contenda.......................................................

184

CONCLUSÃO....................................................................................................... 191

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................... 194

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CAPÍTULO 1

1. ORIGEM DO INSTITUTO DAS SESMARIAS

1.1 A lei de sesmarias no contexto histórico português.

A formação do reino unificado de Portugal se iniciou em 1080, a partir do Condado

Portucalense de Dom Henrique de Borgonha, vassalo do reino de Leão que, na luta contra

os mouros, aumentou seu poderio sobre os demais senhores, na região dos rios Minho e

Mondego (região norte atual de Portugal).

A Igreja de Roma apoiava decisivamente a luta contra os mouros já que esta tinha

um profundo caráter religioso, determinando que o Reino de Leão reconhecesse a

independência do Condado em 1143. Assim, o duque de Portugal, Dom Afonso Henriques

assumiu o reino e, em 1179 enfim, o papa Alexandre III o ungiu como rei de Portugal

(Marques, 1987; Rau, 1985). Segundo Oliveira Marques, “considerava-se guerra justa a

guerra que <<servia a Deus>>, onde se incluía a guerra contra os infiéis, sobretudo se

tratando de recuperar territórios que já haviam sido cristãos” (Marques, Op.cit, 355). Esse

conceito de justiça promoveu o processo de “Reconquista” como “algo legítimo e

defensável, não só do ponto de vista político como também do religioso” (Marques, Op. cit.,

356).

Na luta bem sucedida contra os mouros, o prestígio conquistado por algumas ordens

militares1, tornou-as beneficiárias de expressivas doações de terras. No caso português, as

mais importantes foram as ordens dos Templários, de Avis e de Santiago. A partir da

própria ocupação dos territórios que recebiam, a contribuição destas ordens não foi apenas

1 A organização militar feudal consistia no auxílio militar do vassalo para com o rei com determinado número de lanças em troca de uma quantia de determinada oficialmente.Cada lança era composta em média de 3 homens montados: um cavaleiro, um escudeiro e um pagem. Além das lanças, havia homem de pé, armados de lança e dardo ou de lança e escudo.Eram geralmente em maior número que os cavaleiros.Os concelhos também forneciam cavaleiros. Além disso, eram muito importantes as contribuições das ordens-religiosas militares.

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militar no sentido estrito. Foi, sobretudo, de enorme proveito logístico e organizacional para

o sucesso da guerra. Da mesma forma, os mosteiros e capelas das ordens religiosas se

tornaram importantes instrumentos de luta, por formarem pólos de segurança organizados

para a população.

Com a conquista de novas terras, o seu povoamento foi feito, principalmente,

através das presúrias. Esse instrumento de acesso à terra, reivindicado ou conquistado pelas

armas, na luta de Reconquista dos séculos IX e X, era realizado por homens livres não

poderosos o bastante. Dessa forma, a ocupação teve como conseqüência a pequena e a

média, esta em menor escala, propriedade.

A presúria era acessível, na maioria dos casos através de uma autorização régia, que

mais refletia uma intervenção real. Às vezes, este acesso era deflagrado sem nenhuma

intervenção régia. Segundo Rau, todas as presúrias foram delimitadas e sua confrontações

registradas pelo próprio presor, indicando que a autorização viria a posteriori, formalizar

um acesso de fato. “A presúria tornara-se idêntica a qualquer outra propriedade podendo ser

vendida, escambada, herdada ou doada” (Rau, 1982, 34-35).

Esse tipo de acesso, porém, apresentava problemas no momento em que houvesse

direitos de propriedade, verificando-se a impossibilidade da ocorrência de presúria em

terras onde existissem direitos anteriores. Contudo, discute-se ainda o caráter da presúria,

onde distiguem-se duas linhas: a presúria como pleno direito de propriedade ou apenas

direito possessório a partir do efetivo cultivo.

Segundo Rau, “Luís Dominguez Guilarte defende que, no início, a presúria não

criava um direito real de propriedade e que este só podia surgir com o cultivo da terra”

(Rau, Op cit., 35). Já Inácio de La Concha (1942-1943, 445 e segs.) afirma que só com a

ocupação já se criava tal direito. Contudo, Rau redefine essa diferença de interpretação ao

considerar que a instituição da presúria possuía duplo objetivo: o de povoamento e o de

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arroteamento. Desenvolvendo o pensamento de La Concha, afirma que além da presúria, o

cultivo da terra também dava direitos sobre ela. E realmente, já que a finalidade econômica

e social da presúria era o povoamento ou repovoamento e arroteamento das terras

conquistadas, o próprio cultivo da terra originava o mesmo direito. Esse aspecto é relevante

ao refletirmos sobre o território da América portuguesa, dado que a necessidade de garantir

a ocupação do vasto-território descoberto compeliu à implementação de uma política de

povoamento semelhante ao da presúria dos séculos XII e XIII na península ibérica. Não

seriam as sesmarias tal instrumento? Para os juristas brasileiros estudiosos do assunto, esse

ponto está mais do que confirmado. Contudo, entre os historiadores o debate ainda não

mereceu destaque.

Em quase toda a península ibérica já era consagrado o princípio de que toda terra

vaga podia ser apropriada ou doada a quem a cultivasse. Porém, atente-se que a presúria só

tinha sentido em épocas de reconquistas. Os últimos vestígios de presúria, na região do

Alentejo (sudeste do atual território), registraram-se no século XIII. “No entanto, em

Portugal, nunca se perderia a primitiva lembrança da aquisição de direitos sobre a terra

mediante o cultivo” (Rau, 1982, 39).

Conforme o processo de expulsão dos mouros avançava, o poder real se fortalecia.

Nesse sentido, a contribuição organizacional das ordens militares e religiosas catalisou a

alteração de posições de domínio no reino em formação. Assim, a criação de concelhos 2

visou o enfraquecimento do poder da nobreza fundiária, já que agora deveriam obedecer às

determinações régias. Estas determinações visavam configurar complexo sistema legal e

regulador da propriedade.

Entre os séculos XII e XIII, o poder real criou as inquirições, comissões de inquérito

que funcionavam como alçadas, com o objetivo de avaliar a situação das propriedades de

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terra no reino, dado que a falta de controle régio sobre a nobreza laica e eclesiástica

estimulara o aumento dos seus domínios. Desse modo, as inquirições foram utilizadas "a

fim de investigar se os direitos reais devidos estariam sendo cumpridos e até mesmo

verificar o direito legal às propriedades” (Salgado, Op. cit., 26). Em seguida, para

complementar tais medidas, foram elaboradas as confirmações, "processo pelo qual o rei

sancionava não só a propriedade da terra como o próprio título nobiliárquico do senhor em

questão" (Salgado, id ibid, loc. cit).

Nessa época, a ação da realeza relativa ao regime senhorial visava, por um lado,

coibir os abusos que ocorriam na outorga de novas honras; por outro lado, procurava manter

os senhores, no marco dos poderes que lhes haviam sido concedidos nas terras imunes,

criando limites que garantissem a autoridade da suprema jurisdição da Coroa, agora munida

de novos recursos e meios de processar e fazer valer a justiça criminal para manter a ordem

no Reino (Caetano, 1985, 325).

As Inquirições Gerais, feitas por D. Afonso II, foram levadas a cabo no norte do

país, para verificar o “estado do território quanto à sua ocupação, aos direitos da coroa, dos

senhores e dos povoadores” (Caetano, id ibid, loc. cit).

As “honras” constituíam o modo de geração de imunidades territoriais mais

perigoso para os direitos da Coroa. A imunidade da “honra” era resultante do fato da terra

pertencer a um fidalgo. Em sua origem, as “honras”, tal como isenções, eram somente

atribuídas aos nobres em retribuição aos serviços por eles prestados. Com o tempo, no

entanto, qualquer fidalgo foi considerando a imunidade das suas terras, como inerente aos

privilégios de sua condição de fidalgo, mesmo das terras que não fossem de sua propriedade

plena, “jure hereditario”, pertencentes a plebeus aos quais o fidalgo oferecia amparo e

proteção e daquelas que eram por eles usurpadas ao rei (reguengos).

2 Estes concelhos originariam os municípios conforme Salgado (1985, 25).

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D. Afonso inquiriu as terras que, por direito consuetudinário, deveriam ser

consideradas "honras, reputando como terras devassas, isto é, sujeitas ao senhorio real, as

que, por abuso, reivindicavam iguais direitos. Dessa maneira, as inquirições de 1220

representaram o marco das "honras" legitimas, posteriormente chamadas de "honras velhas"

(Caetano, Op. cit., 326). Em 1258, no governo de Afonso III, realizaram-se novas

Inquirições Gerais no norte para apurar a situação dos reguengos e aforamentos. D. Dinis

renovou esta operação entre os anos de 1284 e 1308, inclusive sobre as terras da igreja.

Já a lei de 19 de março de 1317 tratou pela primeira vez do problema da jurisdição

nas terras senhoriais, sendo dirigida a todos os homens e mulheres abastados, mestres e

priores de ordens religiosas, cavaleiros e damas e a todos os outros habitantes do reino. Em

função da continuidade de práticas de abuso, D. Afonso IV, em 1325, criou as

Confirmações ou <<chamamento ou edicto geral de todos os que possuíssem vilas, castelos,

coutos, honras e jurisdições>> para virem à corte, em dias aprazados, demonstrar os seus

direitos perante os ouvidores do rei. Verificado o direito, era proferida a sentença de

confirmação. Em 1335, os inquiridores foram obrigados a ir <in loco> examinar as terras

dos que não tinham comparecido.

As terras variavam nos 5 tipos:

a) terras onde a imunidade era antiga e continuava a abranger todos os

encargos fiscais habitualmente pertencentes à coroa, com ou sem jurisdição;

b) terras onde a coroa tinha o direito de cobrar, voluntária ou

executivamente, certas prestações de bens e serviços, pertencendo outras aos

senhores;

c) terras onde apenas era reconhecido o direito de julgar, pelos

funcionários do senhor, as questões civis, no todo ou em parte, ficando reservada a

jurisdição criminal aos juízes régios;

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d) terras dos grandes senhorios em que se mantinha a jurisdição civil e

criminal em 1ª e 2ª instâncias, salvo o recurso à corte;

e) terras doadas, honradas ou coutadas, a partir do reinado de D.

Afonso IV onde a imunidade era puramente fiscal, sem qualquer espécie de

jurisdição ou com reserva para a coisa dos direitos de recurso e de correição,

expressamente consignada nas cartas de doação (Caetano, id ibid, 331).

O complexo sistema legal de regulação da propriedade implementado ao longo dos

séculos XIII e XV incorporou também a perspectiva de melhorar o rendimento a partir da

tecnologia agrária. As técnicas agrárias usuais em Portugal eram aplicadas com intensidade

em culturas exigentes, como cereais, que levavam ao esgotamento do solo, tendo como

solução óbvia o aumento das áreas de pousio, nos séculos XIV e XV. Assim, houve, a partir

do enfraquecimento do solo, maior cuidado com a terra, sendo introduzido algumas

inovações, tais como a alqueivação, a estrumagem, a monda, a gradagem (Marques, Op.cit.,

46).

Já com relação aos instrumentos utilizados na lavoura, havia o uso abundante das

alfaias, bem como das charruas, sem apresentar nenhum melhoramento estrondoso.

Contudo, a grande maioria dos utensílios era composta ou, pelo menos, sua base era de

metal. Avanços também se registraram a partir do cuidado de ajeitar os campos da água,

abrindo-se canais e drenando os campos. As obras hidráulicas tiveram início com D.

Fernando, em 1374. Data dessa época também o uso da energia eólica e da energia

hidráulica nos engenhos e no abastecimento das casas pela força da água. Para o engenho de

açúcar, o primeiro registro é de meados do século XV, na Ilha da Madeira.

A propriedade fundiária se caracterizava pelo fato de o grosso das propriedades

rurais e urbanas estar nas mãos do rei, senhores laicos, clero secular, ordens religiosas e

religiosas-militares (Marques, Op. cit., 76). A reserva senhorial era conhecida em Portugal

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como quinhão, granjas e outros, o que entregue aos foreiros e vendeiros, era dividido em

parcelas ou casais-herdades, que, por sua vez, foram se fracionando em sub-divisões

levando Portugal à pequena propriedade.

Com a crise ocorrida no século XIV, os grandes senhores foram abandonando a

exploração direta das quintas, passando a vendê-las ou entregando-as aos foreiros e

rendeiros, mediante contrato. Havia os contratos de aforamento perpétuo, mas

preferencialmente havia contratos de emprazamento. Os contratos de concessão também

sofreram mudanças. Verificou-se o aumento dos contratos em vida e os arrendamentos com

anos determinados, em geral entre 5 e 10 anos, que possibilitavam ao senhor atualizar a sua

venda a partir da instalação de uma crise. As parcelas dos mesmos casais eram alternadas,

obrigando-os à diversificação do cultivo.

Muitas vezes os foreiros acessavam mais de uma parcela. Este processo, embora não

acarretasse no empobrecimento do foreiro, explica o tamanho reduzido dos aproveitamentos

agrários portugueses. Foram raríssimos os casos de grande exploração agrária, ou seja,

vastas extensões de terra contínua explorada por um mesmo senhor ou foreiro. O que havia

eram grandes administrações, já que “toda a terra, em princípio, tinha o seu senhor, detentor

último dos domínios útil e directo”(Marques, Op. cit., 81).

O patrimônio da nobreza, apesar de configurar grandes senhorios, era subdividido

por dezenas de pequenos senhores. O Clero possuía cerca de 20% de todas as terras de

Portugal. Já as ordens militares-religiosas tinham terras em praticamente todas as regiões

portuguesas e estavam assim divididas:

Quadro I - Distribuição das terras pelas ordens religiosas

Região do Alentejo: as 4 ordens possuíam 40% das terras. A Ordem Santiago possuía cerca de 25%.

Região da Estremadura; as 4 ordens possuíam 19%. A ordem de Santiago detinha cerca de 12%.

Região de Be ira: as 4 ordens possuíam 13% . A Ordem de Cristo detinha cerca de 6% .

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A administração de D. Pedro I concentrou a propriedade dos membros da família

real, por volta de 1361. Criador dos extensos patrimônios de seus filhos D. João Bastão e D.

Dinis, em 1364, o primeiro tendo ganhado o mestrado de Avis. Já em meados dos séc. XV,

o mapa da propriedade consagrava seis grandes patrimônios territoriais pertencentes aos

membros da família real e três grandes senhorios eclesiásticos, Santiago, Avis e Hospital.

Nessa mesma época, a Ordem de Cristo passou a pertencer ao infante D. Henrique, ou seja,

já era contabilizada como reguengo.

Com relação ao patrimônio da nobreza proveniente de boa linhagem, isto é,

fidalgos, esse poderia ser concedido pela coroa, sendo conf irmado por cada novo soberano

ou também revogável ao arbítrio do rei. Segundo Oliveira Marques, as restrições crescentes

à jurisdição dos senhores nas suas terras foram uma característica do processo de

centralização do poder real nos séculos XIV e XV, em Portugal (Caetano, Op. cit., 325-

328).

Os nobres precisavam ser suficientemente abastados, ou seja, proprietários ou

detentores de terra, pois não se ocupavam no comércio ou no artesanato, atividades

consideradas tipicamente de grupos sociais emergentes. Havia na lei feudal dois modos de

exercício da justiça pelos senhorios: mero império “ou soberania pura, sem restrições,

incluindo-se a faculdade de impor as penas de morte, mutilação e desterro” e misto império

que “limitava à faculdade de estabelecer penas menores, mormente pecuniárias, conquanto

permitisse decisões finais em pleitos cíveis” (Marques, 1987, 238).

Apesar da tradição de não interferir nos domínios senhoriais, deixando a nobreza

com plena liberdade de jurisdição, ao rei cabia à apelação. Nesse sentido, as inquirições e as

confirmações do século XIII procuraram fazer respeitar os direitos do rei e, ao mesmo

tempo, tolher os abusos.

A lei de 1317, no reinado de D. Dinis (1279-1325) obrigava os senhores a darem

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direito de apelação ao rei, acentuando a política repressiva da coroa sobre a nobreza. Esta

reagia aliando-se ao clero e protestando nas cortes contra “abusos” das autoridades régias.

“Se, por um lado, os senhorios pequenos e médios iam, pouco a pouco, perdendo os

seus direitos jurisdicionais, nos poderosos senhorios criados de novo, o mero e o misto

império voltava a aparecer com redobrado vigor” (Marques, Op. cit., 239). A partir de

1357, as doações de senhorio se fizeram com mero e misto império, implicando jurisdição

ampla aos beneficiados.

Ocorreram, porém, muitos protestos nas cortes de 1371 e 1372 para que houvesse

apenas a justiça real. Assim, as doações realizadas foram reguladas por importantes leis

restritivas ente 1372 e 1375, “base de uma política futura de afirmação do poder da coroa”

(Marques, id ibid, 240) . Embora caracterizado pela alternância do predomínio do poder real

sobre a nobreza senhorial ou do predomínio da nobreza senhorial sobre o poder real,

dependendo das oscilações provocadas pela conjuntura econômica, a longa série de crises

demográficas ocorridas nos séculos XIV e XV, catalisou e reforçou o processo progressivo,

de centralização do poder político, que operava ao longo desses séculos.

Apesar de faltarem estudos para confirmar esta interpretação, as crises demográficas

teriam sido ocasionadas por maus anos agrícolas. O excesso de chuvas provocou uma

primeira crise agrícola entre 1314-19, sendo que em alguns locais foi até 1321 ou 1322.

Observou-se nos anos de 1314-15 e 1317 crises agrárias em toda a Europa. Já o território

português foi também assolado por secas em 1331 e 1333.3 Apesar de a maioria do

território não estar cultivada, as áreas atingidas serviam de pasto para o gado e outras partes

eram ocupadas por florestas.

Dessa forma, em função do declínio demográfico, a produção de estável, diminuía.

3 Outras crises: 1354-56, 1366, 1371-72, 1374-76, 1391-92, 1394, 1397-1400, 1412-14, 1418, 1422-27, 1438-40, 1445-46, 1451-55, 1467-68, 1475-78 e 1484-88.

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Contudo, o catalisador da crise teria sido a chegada da Peste Negra, em1348 e 1349, por via

terrestre e marítima, quando a população diminuíra entre 1/3 ou ½ do total. Houve,

posteriormente outras epidemias, embora não tão devastadoras como a de 1348. Além de

afastarem a população, sobretudo das cidades (Marques, id ibidem, 20-21), essas epidemias

não permitiram que Portugal retornasse ao seu índice normal demográfico e, enfim,

acentuaram a crise da agricultura. Um processo de recuperação ocorreu na década de 1390-

1400 e na década de 1410-20. Entretanto, a gravidade da crise demográfica em curso

emperrou uma recuperação total.

O povoamento do sul data de 1385. O Algarve seria a região por último conquistada

e onde haveria maior número de portugueses mouros. Sabe-se de pedidos de cristãos da

região ao rei para entregar-lhes as terras dos mouros. Houve também casos onde terras de

cristãos foram cedidas aos mouros, demonstrando a gravidade do despovoamento da área.

Os mouros que não migraram para o norte da África, integraram-se à sociedade portuguesa

cristã. Contudo, faltam estudos para confirmar estes fatos.

No ano de 14224 registrava-se uma concentração populacional nas áreas de Lisboa,

ao seu leste (Estremoz) e ao norte (Braga). Com as epidemias, ocorreu um despovoamento

quase total do território, onde quem sofreu mais foi o norte, uma vez que o sul ainda não

estava totalmente povoado após a Reconquista.

Assim, nesse período, haveria a ocorrência de muitas herdades abandonadas. Aliou-

se às epidemias, a fome ocasionada pelas crises frumentárias e, em geral, pela

descontinuidade da produção e do abastecimento alimentar provocado pela guerra. Tão

comum quanto as epidemias seriam as crises alimentares5. Não que o país inteiro passasse

fome, mas essas crises travavam o processo de recuperação demográfica (Marques, Op.cit.,

4 Data do outro registro de habitantes. 5 Ocorreram 24 crises frumentárias entre 1331 e 1496, algumas duraram até cinco anos.

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30).

Com sua população reduzida quase à metade, Portugal e seus senhores

principalmente, sofreram com o problema de falta de mão-de-obra, sobretudo urbana. A

necessidade de artesãos fez com que seus soldos fossem aumentados, atraindo o trabalhador

rural, nos intervalos da doença. “Como conseqüência da falta de mão-de-obra seguiu-se a

carestia dos salários e a conseqüente tentativa de os regular pela elaboração de taxas que os

fixassem, bem como o tabelamento dos preços dos produtos da terra”(Rau, 1982, 87). O

resultado do processo foi o “desequilíbrio entre a oferta do trabalho rural e a procura dele”

(Rau, Op.cit., 80). Em conseqüência, no reinado de D. Afonso IV, multiplicaram-se as leis

reguladoras da liberdade de trabalho. Essa legislação continuou com D. Pedro, visando

impedir a mobilidade de trabalhadores de uma comarca para outra. Porém, não surtiram

resultados positivos frente à crise da falta de mão-de-obra.

O êxodo rural ocasionou a crise da mão-de-obra rural, reforçado pela já baixa

densidade demográfica na área. As cidades, não suportavam a quantidade de pessoas,

criando uma massa de desempregados e indigentes. “Em Portugal, data do século XIII, de

1211, o primeiro diploma legislativo que manda perseguir os vadios” (Rau, id ibid, loc. cit).

Dessa forma, as tentativas de controle social seriam uma constante nos século XIV e XV.

“A imigração para a cidade de centenas ou mesmo milhares de pessoas efectuou-se,

gradual mas continuamente, ao longo de décadas. Note-se que, com a possível excepção de

Lisboa, a força de atração da cidade não foi geralmente além de um pequeno raio que

atingia o hinterland próximo”(Marques, 1987, 181). Havia realmente apenas nove cidades,

que eram sedes de bispado: Braga, Coimbra, Évora, Guarda, Lamego, Lisboa, Porto, Silves

e Visas. Completava o quadro urbano um conjunto de vilas bastante desenvolvidas como

Santarém, Guimarães, Beja, Elvas, Lagos, Setúbal. Já o crescimento das cidades do sul, em

fase posterior à Reconquista, teria sido ocasionado pelas migrações decorrentes da peste

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negra, a partir de meados do século XIV e do século XV.

As cidades portuguesas mantiveram-se durante a Idade Média por causa dos

muçulmanos. Dessa forma, em Portugal não se processou o denominado renascimento

urbano e comercial. Com a valorização da cidade, o próprio rei passou a investir nos

núcleos urbanos, operando-se profundas mudanças na administração, com a multiplicação e

especialização de cargos e de órgãos.

A intervenção do poder real na vida administrativa não constituiu inovação no

decorrer dos séculos XIV e XV. Na realidade ela existiu desde os séculos IX e X nas

cidades portuguesas, profundamente marcadas pela tradição islâmica e pelas condições

específicas da Reconquista.

A própria falta de mão-de-obra teria levado ao uso de escravos, principalmente nas

Canárias. Eram utilizados negros do norte da África e também brancos europeus orientais.

Os primeiros negros trazidos por Antão Gonçalves vieram em 1441 originários da costa da

Mauritânia. Os escravos trazidos da costa da Guiné acabavam sendo vendidos para a

Espanha ou outros países europeus.

O abandono das terras com a crise do século XIV provocou um avanço das florestas

e das terras “incultas”. A madeira alimentava a construção civil e naval e as alfaias

domésticas, agrícolas e artesanais. As pastagens alternavam com a própria rotação de

cultura dos campos de cereais. Em outras áreas, como o Alentejo, o cultivo de cereais era

permanente e exclusivo. O aumento dos pastos nos séculos XIV e XV foi também

conseqüência da crise, marcando um avanço sobre terras férteis para trigo, vinha e outras,

sendo devassadas pelo gado. Assim, a criação de gado se transformara num obstáculo

quando do fim da crise, retardando a possibilidade de retornar-se aos cultivos agrícolas.

Tanto nas cortes de Elvas, de 1361 quanto nas de Lisboa, de 1371, os concelhos

reclamaram da ausência de solução para o problema agrícola e da falta de trabalhadores

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rurais, enfatizando o alto nível dos soldos vigente para a mão-de-obra rural. Em resposta às

reclamações feitas contra vadios nas cortes de 1371, D. Fernando ordenou que as justiças

locais elaborassem e implementassem inquirições e posturas para regular sua situação.

“Enquanto se procurava promover o aproveitamento da terra, punindo com a

expropriação o proprietário que a deixasse inculta, tentava-se lhes fornecer os braços

necessários para o seu amanho, coagindo o maior número de indivíduos ao mester da

lavoura, e entravava-se o encarecimento da mão-de-obra taxando os salários máximos”

(Rau, 1982, 86). Rau indica os anos de 1371 e 1372 como os piores da crise social,

necessitando de uma urgente intervenção do poder central.

É nesse contexto, finalmente, que se teria recorrido aos “preceitos antigos, leis

esparsas e costumeiras isoladas, [quando] erige-se uma das primeiras leis agrárias da

Europa” (Rau, Op. cit., 87). O costume vem da obrigatoriedade de cultivo como condição

de posse da terra e a expropriação da gleba ao proprie tário que a deixasse inculta,

assumindo, então, um duplo aspecto: agrário e social.

Assim, em 28 de maio de 13756, no reinado de Dom Fernando I, foi formulada a Lei

de Sesmarias. Dada a grande fuga das populações camponesas em direção aos centros

urbanos, este instituto visava a expropriação de terras não produtivas de forma coercitiva,

na tentativa de solucionar a falta de mão de obra no campo e a conseqüente redução da

produção de gêneros alimentícios.

O próprio prefaceador do livro de Virgínia Rau, José Manuel Garcia, sem embargo,

coloca que a principal força política que motivara a lei de sesmarias parece “ser a da classe

média ligada às áreas rurais, constituída pelos homens bons e cidadãos dos concelhos, que

agem junto do rei no sentido de lhes satisfazer as suas necessidades econômicas em

6 No verbete "Sesmarias" escrito por Marques in: Dicionário de História de Portugal, (dir.). Joel Serrão a data mencionada é a de 28 de maio de 1375, enquanto Falcão (1995), a data citada é a de 26 de junho de 1375.

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detrimento dos trabalhadores por salário ou dos incapazes de promover a agricultura” (Rau,

id ibid, 14).

Apesar do conceito classe média utilizado por Garcia não identificar claramente

qual grupo da sociedade se refere, um outro autor vai na mesma direção, apontando como o

segmento social beneficiado a própria nobreza senhorial. Armando Castro em sua obra

clássica A Evolução Econômica de Portugal dos séculos XII a XV (1964) , postula uma visão

marxista. Ao estabelecer a relação entre a lei de sesmarias e os laços de dependência,

visualiza no conteúdo econômico e social da lei de sesmarias, a materialização crescente

dos laços de subordinação dos camponeses aos titulares das terras doadas, não

desempenhando qualquer papel relevante na solução da crise agrícola. Ademais, Castro

sugere que a divisão praticada pelos sesmeiros teria como efeito perverso a formação de

relações individualizadas de dependência, que podemos traduzir como a personalização das

decisões pelos sesme iros.

“E não é impossível topar com casos destes, casos em que a acção dos sesmeiros

tinha por objectivo não só individualizar as glebas de cada família camponesa do mesmo

domínio da aristocracia feudal, como implicava também a concretização das terras

transferidas para os senhores, modificando os laços sociais de produção particulares de que

participavam os produtores e os membros da classe privilegiada”.

Assim, esse autor apresenta a sesmaria como uma forma de concretização de

relações de dependência individualizada dos camponeses aos senhores.

Todos os fatores até aqui considerados permitem afirmar que o real objetivo da lei

de sesmarias teria sido o de regular a produtividade, mas também de regular a mão-de-obra

rural, assegurando a posse da terra aos senhores. Essa questão se torna mais profunda

quando lembramos que a lei de 1375 é sempre apresentada como uma lei para resolver um

Contudo, a primeira data refere-se ao dia em que foi criada e a segunda ao dia em que foi publicada.

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problema conjuntural: o da crise agrícola/agrária do século XIV. Ora, se era para resolver

um problema conjuntural, como se explica ter sido reeditada por mais três vezes, em 1446,

1511 e 1603? Dado não ser o objetivo desta dissertação discutir o problema português, esses

elementos são apenas levantados para contextualizar a análise das sesmarias no caso da

América portuguesa.

O processo de implementação da legislação sesmarial foi acompanhado de

ajustamentos nas relações entre o exercício do poder régio e os poderes locais, cabendo

notar que o processo, embora lento, se afirmou favorecendo a autoridade central.

Com a morte de Dom Fernando I em 1383, desencadeou-se o problema da sucessão,

que originou a Revolução de Avis. Portugal vivia uma séria crise de abastecimento

acirrando os problemas sociais. O rei D. Fernando morreu sem deixar herdeiros. Como sua

filha era casada com o rei de Castela, este se considerava legítimo sucessor do trono

português. Nesse caso, Portugal passaria para o domínio de Castela, solução aceita pela

nobreza senhorial, mas recusada pelos grupos mercantis, ou seja, a nascente burguesia. O

pai de D. Fernando, entretanto, tivera um filho natural chamado João, Mestre de Avis, que

recebeu o apoio da população e, sobretudo, da burguesia para assumir o trono português.

Em 1385, os rebelados enfrentaram os exércitos de Castela e venceram e João, agora Dom

João I, assumiu o reino.

Para sair da crise, estabeleceu-se um novo imposto, a sisa, incidindo sobre as trocas

comerciais, ou seja, imposto sobre importação e exportação. O financiamento do esforço de

guerra teria sido, segundo Oliveira Marques, a relação principal da imposição do novo

tributo. Contudo, o fato de o novo imposto afetar os negócios da nascente burguesia poderia

ser interpretado como a criação de um mecanismo deliberado de controle da influência

deste emergente grupo social, uma vez que a sisa constituiu-se na principal fonte de

recursos para o tesouro real.

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O novo tributo possibilitou à Coroa manipular a política de incentivos às atividades

mercantis. Assim, ao mesmo tempo em que a coroa beneficiava o setor mercantil, a nova

legislação tributária atrelava o desenvolvimento do setor aos interesses e à política do

Estado, que, de fato, assumiria mais tarde sua dimensão absolutista. Por outro lado, a

orientação imprimida pela política real de tributação era necessidade prioritária, porque a

gravidade da crise no campo colocava o setor mercantil como o único capaz de sustentar a

nobreza. Atente-se, então, para o avanço da afirmação do poder regulatório da coroa, seja

na atividade agrícola, seja na atividade mercantil.

Até 1384 as sisas não eram permanentes. A partir dessa data, porém, constituir-se-ia

num dos primeiros impostos gerais permanentes, formando uma unidade fiscal. A limitação

temporal não foi provocada apenas pelas necessidades do esforço de guerra; os custos de

administração da crescente organização urbana podem ser identificados como o principal

fator explicativo da permanência desta tributação, a exemplo de Lisboa, cuja administração

representava um ônus financeiro muito forte: 53,9% de sua receita vinham das sisas.

Surpreendente é notar que a sisa era a principal fonte de receita do Estado ainda no século

XVII, quando incidiu bastante no mundo rural, gerando tensões e conflitos (Tengarrinha,

1994, 60). A sisa incidia sobre o valor das trocas ou vendas de bens de raiz (sisa de raiz) e

também sobre o preço de venda dos gêneros da agricultura e artes (sisa das correntes). A

sisa sobre a terra praticamente impediu a alienação das terras, ou seja, a sua mobilidade, já

regulada pela questão da obrigatoriedade do cultivo.

Paralelamente à afirmação do poder central, ocorria um processo de ajustamento no

âmbito do poder local, cuja unidade básica era o concelho. Os senhores nomeavam os

ouvidores, almoxarifes, almotaces. Esse conjunto de funcionários judiciais e fiscais tinha

atribuições paralelas às da coroa. Quando o concelho fazia parte de um senhorio, tinha que

pagar direitos senhoriais, como também deveria apelar antes ao senhor e, somente depois,

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ao rei.

Grande parte dos concelhos das regiões centro e sul pertenciam às ordens religiosas

– militares, que passariam posteriomente para o senhorio régio, convertendo o monarca em

senhor único. De fato, os concelhos começaram a sofrer intervenções de agentes da

administração pública, perdendo sua autonomia. Um exemplo foi a criação da figura

jurídica conhecida como Juiz de Fora. "Da mesma forma, as decisões quanto aos

investimentos na empresa mercantil marítima eram tomadas por funcionários reunidos nos

diversos conselhos régios e não pelos diretamente envolvidos na questão" (Salgado, 1985,

27).

Mais tarde, Dom Duarte promulgaria a Lei Mental, em 1434, que regulava os

direitos de primogenitura no seio da nobreza. A Lei Mental estabelecia que "os bens doados

pela coroa à nobreza só poderiam ser herdados pelo filho varão legítimo mais velho”

(Apud Salgado, Op. cit., 27), permitindo que a Coroa retomasse uma série de propriedades,

em mais uma tentativa de reforçar o seu poder em detrimento do domínio senhorial. A Lei

Mental, um conjunto de instruções, impediu a alienação perpétua dos bens da coroa doados

aos senhores.

Sendo assim, a partir de 1460, o número dos grandes domínios aumentou, incluindo

laicos e eclesiásticos-militares. Em 1475, havia grandes senhorios, sendo os principais o do

Duque de Bragança, D. Fernando; Duque de Viseu e Beja (filho do infante D. Fernando), D.

Diogo, que era mestre da Ordem de Cristo e da Ordem do Hospital; e D. João, futuro D.

João II que possuía os mestrados de Avis (desde 1466) e de Santiago (desde 1472).

Também a igreja, clero regular e secular, aumentou significativamente suas posses, através

das doações, sobretudo após a grande peste negra (1348).

A lei de sesmarias, entretanto, não foi um obstáculo significativo para o processo de

acumulação de patrimônio por parte de outros segmentos sociais. “O acréscimo de riqueza,

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resultado do desenvolvimento do comércio e do artesanato urbano, permitiu [que] muitos

burgueses, pequenos, médios e grandes (...), adquirissem terra, tornando-se proprietários

plenos, enfiteutas ou arrendatários” (Marques, 1987, 90). A propriedade urbana acumulada

por esses segmentos sociais emergentes também era objeto de alienação a outrem em

regime de aforamento, emprazamento ou arrendamento.

A renda senhorial provinha da terra ou casa aforada ou emprazada, sendo paga

anualmente por um cânone parciário ou fixo. 7 Também vinha dos instrumentos cedidos pelo

senhor, como moinho, lagares, fornos pagos pelo seu uso. A partir do século XIV, os

rendimentos senhoriais foram afetados com a fuga da população dos trabalhadores do

campo, deixando as terras sem cultivo ou cultivo insuficiente.

No universo urbano em franco desenvolvimento, multiplicaram-se as fontes de

renda proveniente de um incipiente processo de divisão social do trabalho, organizado em

bases essencialmente artesanais e reguladas pelo poder local, nos aspectos de circulação de

mercadorias e de pessoas, pesos e medidas e, especialmente, de preços. Com relação à

produção artesanal, a maioria dos artífices era composta de homens. Porém, as mulheres os

auxiliavam e ganhavam metade de seus salários a exemplo de o fabrico da telha. A

fabricação e a venda do pão era quase exclusiva das mulheres. Elas tinham grande presença

também na fiação e tecelagem. Os mesteres estavam reunidos por profissões numa mesma

rua, primeiro espontaneamente e depois por determinação das câmaras. A casa e as

ferramentas pertenciam ao mestre que, por sua vez, os alugara do rei, dos grandes senhores

ou dos burgueses ricos. Abaixo dos mestres estavam os obreiros e, por último, os

aprendizes.

Os concelhos estabeleciam posturas para evitar a subida de preços, como também o

7 Cânone fixo era pago em gêneros, em dinheiro ou ambos, estipulado pelo contrato de concessão, era mais comum na área urbana. Já o cânone parciário era percentagem sobre os produtos cultivados.

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rei podia intervir no tabelamento (Marques, Op. cit. 121). Após a peste negra houve um

aumento dos preços. Somente em 1380-9 90 houve uma baixa contínua que se verificaria

até o último quartel do século XV. Entre 1430 e 1470 a moeda teria se desvalorizado até

quase 100%, fazendo cair o preço de cereal. Somente entre 1470 e 1480 os preços voltariam

a elevar-se.

A infraestrutura de transporte e escoamento da produção não sofreu avanços

significativos, embora os níveis de produção apresentassem acréscimos no final do século

XV. As vias terrestres continuavam a ser aquelas construídas por romanos e muçulmanos.

Havia muitas estradas e caminhos a pé, cavalo e carro. Eram geralmente leitos de terra

batida, sem pavimentação. As vias fluvia is também eram largamente utilizadas, através do

uso de barcos pequenos. Percorria -se uma média de 50 Km/dia, dependendo das estações do

ano. Transportava-se a mercadoria no lombo dos animais e não em carroças.

Segundo Oliveira Marques, as restrições à circulação nessa época eram muitas,

tendo em vista que “a idade média nunca conheceu o princípio da liberdade de passagem,

pelo contrário, o ideal da auto-suficiência local, por um lado, e o da fixação do homem à

sua terra, pelo outro, permaneceram sempre como princípios norteadores, apesar de os

séculos XIV e XV terem testemunhado uma tão revolucionária modificação de estruturas

que os tornou impraticáveis e obsoletos” (Marques, id ibid, loc. cit.). Além do grande

número de impostos que oneravam a mercadoria, havia o problema dos pesos e medidas que

variavam de região para região e até de aldeia para aldeia. Em 1455, os pesos e medidas de

Santarém tornaram-se normativos para a maior parte do país, restando apenas Coimbra e

Lisboa com suas respectivas unidades. O sistema de pesos e medidas português era uma

mistura ou combinação do sistema romano e do Islã.

Apesar da permanência de contínuas políticas regulatórias, cada vez mais os campos

foram enviando sua produção para as cidades. Havia a difusão da armazenagem, dos

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mercados e das faixas, embora o caráter de auto-suficiência típico medieval perdurasse. O

início das feiras, no século XIII, apesar da variação das suas periodicidades, permitiu

alargar a rede de distribuição interna. A propriedade de estabelecimentos comerciais, como

açougues, mercados e tendas variava, podendo ser do rei, dos senhores ou concelhos ou

também, ser aforado.

Portugal não se especializara em nenhuma produção. Dessa forma, “valia pelo

conjunto de produtos que eram compráveis” pelos mercadores das várias regiões. “Mais

tarde, a expansão militar em Marrocos e a expansão descobridora e colonizadora no

Atlântico e ao longo da costa africana vieram dar-lhe novas e alargadas possibilidades”

(Marques, Op.cit., 151).

Nesse contexto de desenvolvimento do comércio e das trocas, mobilizando a

produção agrícola e outras mercadorias, o controle desse crescente âmbito de atividades foi

incorporado na agenda pelo poder central, configurando, no caso português, desde o século

XIV, a longa transição da organização política pré-moderna para o Estado Moderno. As

compilações oficiais que surgiram, como o Livro das Leis e Posturas do século XIV, e as

ordenações de D. Duarte e as Afonsinas do XV, que entraram em vigor entre 1446 e 1454,

tentaram alargar a competência real. “O rei e a burocracia da coroa invadiram as

prerrogativas dos senhores, interferiram nas suas terras, sobrepunham-lhes uma doutrina,

uma autoridade e um centralismo que violavam todos os seus direitos e tradições”(Marques,

id ibid, 127).

Impor tante salientar que a promulgação das Ordenações Afonsinas não significou

uma uniformização do direito. Os forais, as posturas e os costumes para a região local

continuavam existindo. Essa contradição criava conflitos entre as partes (poder central

versus poder local). Como já exposto, o processo de centralização do poder, como já

exposto, sempre esteve sujeito às oscilações conjunturais. Assim, com o governo de D.

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Afonso V (1438-1481), processou-se “um constante fortalecimento das casas nobres em

detrimento do poder da coroa (...) acompanhado de uma política sistemática de conquistas

em Marrocos” (Marques, id ibidem, 559). A vitória sobre a África, após a tomada de

Constantinopla pelos turcos, era bem vista internacionalmente, e tinha apoio do papa.

Essa fase embrionária da expansão além-mar dos domínios da coroa portuguesa, já

registrava sensível melhora da crise e a população retornou a aumentar. Agricultura e

comércio foram reativados, além da chegada dos produtos exóticos do ultramar, escravos,

açúcar e outros. Lisboa atraiu mercadores estrangeiros e as trocas internacionais alcançaram

um nível insuperado após esse período, em virtude da importação de ouro e da cunhagem

do cruzado, primeira moeda de prestígio internacional estável.

Em síntese, o conjunto de fatores que convergiu para o processo de centralização do

poder foi essencial para a própria constituição da unidade territorial, para o enfrentamento

das graves crises econômicas e demográficas que acompanharam o processo de formação

do reino e, enfim, para a expansão ultramarina. A lei de sesmarias foi um mecanismo

central nesse processo marcado por descontinuidades e árduos conflitos de demarcação de

esferas entre os poderes locais e o poder central.

Em conseqüência, esse lento processo de centralização resultou na produção de farta

legislação destinada ao controle da organização social urbana e rural. É desta perspectiva

que se caberia situar a análise da legislação sesmarial.

1.2. A Lei de Sesmarias

1.2.1. Sesmaria: considerações etimológicas

Sesmarias, tal como definidas pelas Ordenações Manuelinas de 1511, "são

propriamente aquelas que se dão de terras, casaes, ou pardieiros, que foram ou são de

alguns senhorios, e que já em outro tempo foram lavradas e aproveitadas, e agora o não

são"( Ordenações Manuelinas. Livro IV, título 67. p.164). Contudo, apesar da origem

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etimológica da palavra ter sido bastante discutida, não foi possível, até agora, segundo

Costa Porto (1965, 37), apontar a verdadeira etimologia da palavra sesmaria.

Esse mesmo autor, no entanto, apresenta algumas explicações possíveis. A primeira,

sugere que sesmaria viria do latim caesinare ou caesimare de caesim, que significa "aos

golpes, aos cortes, como a traduzir que a terra, cortada pelo arado, sofria rasgões, ficando

em condições de produzir" (Porto, id. ibid., loc.cit). Entretanto, Porto refuta tal

possibilidade, afirmando que o verbo caesimare não teria existido nem na baixa latinidade.

A segunda explicação baseia -se em Cirne Lima que considera a palavra sesmaria

originária do verbo sesmar , derivado, por sua vez, de ad-Aestimare significando avaliar,

calcular (Lima, s/d, 16).

Outra possibilidade, aventada por Porto, indica ser a expressão sesmaria oriunda de

sesma que seria uma medida de divisão de terras. No entanto, ele próprio questiona o

porquê de sesma significar uma medida, já que não se tem evidência histórica do fato.

Sesmaria também poderia derivar de sesmo "sítio onde se achavam localizadas as terras"

(Porto, 1965, 38) ou de sesmar que significaria separar, dividir. Da mesma forma, não se

explica porque estas palavras teriam tais significados.

Uma quinta opinião, mais difundida, acredita ser a sesmaria uma derivação do latim

siximum, tendo em vista que quem recebia terras de sesmarias era obrigado a pagar a sexta

parte dos frutos colhidos ou ao antigo senhorio ou ao Estado. Porém, conforme Costa Porto,

não há documentação aludindo ao pagamento deste foro.

Após suas considerações, Costa Porto, abandona a filologia e retorna para a história,

a fim de encontrar uma explicação plausível para a origem da palavra sesmaria.

Desse modo, remonta aos tempos do Império Romano, quando teria sido adotado o

regime de administração colegiada, no caso seis pessoas, o sevirato. Assim, em Portugal

teria havido o sevirato, o que ele demonstra mediante registro deste em Memória para a

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História da Legislação e Costumes de Portugal de Antonio Caitano do Amaral. Estes

conselhos foram denominados sesmos. Desse registro, Costa Porto conclui que o problema

da distribuição de terra inculta e sem dono estava subordinado a um conselho - o sesmo -

que tinha tal denominação pelo fato de ser composto de seis membros, os sixviri ou seviri

(Porto, id ibid, 39).

Seguindo fielmente a filologia, Cirne Lima se opõe às derivações apresentadas por

Costa Porto. No entanto, Costa Porto advogando sobre a importante função da semântica na

transformação da linguagem, afirma que o historiador não deve se prender à questão da

língua, tão somente, mas também buscar explicações históricas para contextualizá-la.

Reconstitui, enfim, a sua hipótese, segundo a qual "as terras distribuídas diziam-se de

sesmaria porque a repartição se processava através dos sesmeiros, integrante do siximum ou

sesmo, colégio integrado de seis membros, os sixviri ou seviri, encarregados de repartir o

solo entre os moradores" (Porto, id ibid, loc.cit).

O estudo de Virgínia Rau é anterior ao dos dois juristas apresentados. A linha de

Costa Porto é, seguramente, apoiada na análise da autora portuguesa. Ao investigar a

origem do termo, Rau inicia com um questionamento de a quem coube “fazer a divisão e

distribuição da gleba a cada um dos indivíduos que se propunham arrotear e povoar o

reguengo, o senhorio ou o município”, na época da Reconquista (Rau, 1982, 42).

Era o concelho a autoridade administrava que indicava os sesmeiros para regular a

divisão da terra. O cargo de sesmeiro é anterior ao termo sesmaria. Porém, o sesmeiro surge

no momento em que o concelho inicia sua existência; da mesma forma que sesmo, sendo

este o colégio de sesmeiros que estava autorizado a nomear o juiz. As pessoas que faziam

parte dos concelhos eram chamados de coureleiros e, segundo Rau, é possível estabelecer

uma relação entre coureleiro e sesmeiro pela similaridade de funções dos cargos.

Em território espanhol, há registro nos documentos da “sexma”, como a sexta parte

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de total de uma comarca. Já nos documentos portugueses, Rau não encontrou dados tão

flagrantes. Contudo, a partir do aparecimento do termo “sesmo”, por volta de 1229, as

palavras sesmo, sesmarias e sesmeiros apareceriam recorrentemente. Além disso, a autora

indica que o uso do termo sesmeiro aparece na razão inversa das presúrias.

“Sesmo”, segundo filólogos, significa a “sexta parte”, oriundo de “seximus” ou

“septimus”, e teria originado sesmaria, sesmar e sesmeiro. “Sesmo era uma fração de

determinada área de terreno onde se talhavam as herdades ou courelas que o concelho

distribuía aos povoadores. (...) Portanto, os sesmos seriam assim chamados porque de início

o território distribuível de cada concelho estava repartido em seis lotes, onde só durante os

seis dias da semana, excluindo o Domingo, superintendiam os seis sesmeiros, cada um num

dia e no sesmo que lhe competia” (Rau, id ibid, 54-55).

Nesta interpretação a expressão sesmeiros surgiu para nomear ou identificar os seis

homens do concelho que repartiam as terras dos sesmos nos 6 dias da semana; "sesmar o

acto de repartir os sesmos e sesmarias as terras distribuídas nos sesmos” (Rau, Op. cit., 56-

57). Contudo, o uso do termo sesmeiro foi diminuindo. Segundo Rau, “a própria natureza

da acção de sesmeiro, transitória e temporária, intermitente e restrita deve ter influenciado a

obliteração da primitiva significação. E da mesma forma o facto de, passado o período

inicial de divisão de terras, o afã ter diminuído e com ele o número de sesmeiros que baixou

até chegar a um, ou quando muito dois, no século XV”.

A transformação do significado das palavras ainda suscita um grande desafio. A

palavra sesmeiro indicava, originalmente, a pessoa que repartia e distribuía a terra. Porém,

com o passar do tempo, na colônia, sesmeiro passou a designar aquele que recebia a terra

em sesmaria. Assim, apesar de a maioria dos autores apontar esta mudança, ninguém

conseguiu explicar o seu motivo.

A apresentação destas possíveis explicações acerca da origem da palavra que indica

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o objeto de estudo deste trabalho torna-se importante na tentativa de entender os elementos

que fundaram o instituto básico das sesmarias para, posteriormente, poder-se emitir

conclusão mais fundamentada.

1.2.2. A Lei de Sesmarias original e a contida nas Ordenações Afonsinas

A despeito de ter surgido para solucionar um problema específico conjuntural, no

conjunto legal régio da época em questão, a lei de Sesmarias passou por quatro edições

sucessivas. Seu enunciado básico manteve os objetivos iniciais de tornar produtivas as

terras que não estavam sendo cultivadas, tendo como intuito primordial resolver o problema

do abastecimento. Assim, todos aqueles que possuíssem terras, mas não as cultivassem,

estavam obrigados a lavrá-las. Caso não fosse possível, por parte do titular da terra, lavrá-

las, ele deveria arrendá-las ou fazer com que outro as tornasse produtivas, sob pena de ter

suas terras tomadas pelos órgãos responsáveis 8 e distribuídas a quem pudesse cultivá-las.

Contudo, a lei de 1375 foi acrescida de enorme apêndice já nas Ordenações Afonsinas

(1446). Nas Ordenações Manuelinas (1511-12), o enunciado desses dois corpos legais

precedentes foi rescrito sem modificações, apenas sendo conjugados artigos que, antes,

encontravam-se separados, sendo posteriormente reproduzida fielmente nas Ordenações

Filipinas (1603).

Rau afirma que “a violência da lei é enorme, sem dúvida, mas a orientação jurídica-

econômica do século XIV era a de coerção” (Rau, 1982, 92). A autora registra que no texto

do ordenamento legal não apareceram as palavras sesmarias nem sesmeiros. Entretanto,

atenta para a palavra “Coagir” que aparece 19 vezes. “É lógico supor que o nome com que

mais tarde foi designada corresponda a uma extensão por analogia baseada na forma e

condições em que eram dadas as terras e os pardieiros” (Rau, id ibid, loc. cit.).

A partir da publicação da lei, teria havido um impulso das sesmarias e sesmeiros,

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aumentando sua importância. O próprio D. Fernando teria concedido sesmarias e dado

ordens a seus funcionários diretos para também fazê-lo (Chancelaria de D. Fernando. Liv. 1,

fls.196v). Surtindo efeito a ordenação régia, várias eram as pessoas que agora requeriam

terras, chãos ou pardieiros em sesmarias.

A primeira lei de Sesmarias inaugurava-se com um conciso enaltecimento da

atividade agrícola. A lei nasceu dividida em 19 artigos. Em primeiro lugar, tinha-se a

identificação das causas da crise da agricultura, ou seja, a migração da mão de obra rural.

Em segundo lugar, era apresentada a solução: tornar obrigatório o cultivo da terra,

explicitando o aforamento das terras restantes, não lavradas pelo senhor. O terceiro

elemento legal destacava a obrigatoriedade da cessão por venda a preços justos, estipulados

pela justiça local, de gado excedente. O quarto ponto, além de reforçar a imposição do

cultivo, indicava a possibilidade de penalidade, decidida pela justiça local, caso não fosse

cumprida essa determinação.

Os artigos seqüentes9 dispunham sobre determinações normativas de repressão à

vadiagem, confinando errantes e desocupados a retornar ao trabalho agrícola. Em termos

específicos, o artigo quinto precisa a mão de obra errante e sem ocupação produtiva. O

sexto, dispensava do trabalho no campo as pessoas que tivessem mais de 500 libras: todas

as demais deviam trabalhar no campo. Já o artigo sete, estipulava multa de 50 libras, pela

primeira vez, e 100 em caso de reincidência, para os jovens que não tivessem atividade na

agricultura. Enfim, o oitavo completava as normas punitivas para aqueles que se

encontrassem nas seguintes situações: i) os que ofendessem o rei, a rainha ou o infante; ii)

os que não tivessem certidões ou provas de como viviam e andavam; e, iii) penas de açoites

e constrangimento para voltarem a servir na atividade agrícola. Dessa forma, verifica-se a

8 Nesta lei é citado as Justiças Territoriais ou pessoas que tivessem intendência do assunto 9 Artigos 5, 6, 7 e 8.

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tentativa de controle social punitivo escamoteada na legislação de política agrária.

Prosseguindo, os artigos nove, dez e onze regulamentavam a mendicância.

Minuciosamente, o nono proibia de dar esmolas, exceto para os que não pudessem

trabalhar. Os pedintes que fossem achados pela justiça local, seriam levados às corporações

e constrangidos a trabalhar no campo. Já o décimo, punia também os membros de ordens

religiosas não autorizadas, obrigando-os a trabalhar na agricultura, sob pena de açoite e

expulsão do reino. Finalmente, o rei concedia alvarás autorizando a esmola para velhos,

fracos, doentes e senhores arruinados, no décimo-primeiro artigo.

O conjunto seguinte, artigos doze, treze, catorze, quinze e dezessete, definia os

responsáveis pela ação fiscalizadora do cumprimento do cultivo. Assim, o décimo-segundo

artigo designava dois "homens bons", dos melhores cidadãos que as cidades e vilas

apresentassem, para tomarem conhecimento e classificassem as herdades e seu

aproveitamento ou não.

Em seguida, tratou-se da possibilidade de não haver acordo entre o senhor e o

lavrador sobre o foro, devendo os dois homens bons arbitrar o valor de acordo com a

proposta do lavrador. O artigo catorze proferia sobre a hipótese de ser considerado injusto o

valor fixado pelos dois homens bons, sendo designado um terceiro homem pelo juiz local

para analisar e fixar o valor considerado ideal. Contudo, caso o senhor não estivesse de

acordo e não quisesse cumprir, teria suas terras confiscadas para o bem comum. O

penúltimo artigo deste bloco mencionava os atributos dos homens bons, estabelecendo que

eles deviam controlar o fluxo populacional do local, com a ajuda de religiosos das

freguesias e também fixar o valor dos preços e soldadas para os mancebos que chegavam. O

último artigo determinava o poder dos dois homens bons para multar os fidalgos, em 500

libras e os não fidalgos em 300 libras e pena de degredo, pela obstrução de aplicação da

Ordenação.

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O décimo sexto artigo instituía que onde houvesse "ganha-dinheiro", termo utilizado

para pessoas que ofereciam sua força de trabalho, deveria ser determinado o número de

pessoas necessárias a trabalhar nesta atividade, sendo o restante constrangido à lida na

lavoura. Novamente, nota-se a cla ra tentativa de controle social por parte da Coroa.

O penúltimo artigo da lei de Sesmaria de 1375 permitia a atividade pecuária, desde

que combinada com a lavoura, sendo estipulado o prazo de três meses para a adaptação da

plantação em criação, tempo definido no artigo posterior.

O intuito de apresentar os componentes da lei pormenorizadamente é possibilitar

retirar os elementos que serão importantes no desenvolvimento do trabalho, sendo dois

pontos relevantes a se destacar. Por um lado, o fato de não aparecer a palavra sesmaria nem

sesmeiro na lei original e, por outro, a dimensão punitiva para "coagir" os que, por ventura,

resistissem ao cumprimento dos objetivos precípuos da legislação.

Tematicamente, a lei pode ser dividida da seguinte forma:

1. Escassez de cereais ocasionada pelo abandono das lavras (§ 1);

2. Carência de mão-de-obra pela fuga do trabalhador rural para outros mesteres e vida

mais folgada (§§1, 5, 8 e 16);

3. Encarecimento dos gêneros e dos salários dos homens do campo (§§ 1, 5 e 6);

4. Falta de gado para a lavoura e seu preço excessivo (§ 3);

5. Desenvolvimento da criação de gado em detrimento da agricultura (§ 8);

6. Oscilação perigosa entre o preço da terra pedido pelo senhorio e o oferecido pelo

locatário (§ 13);

7. Aumento dos ociosos, vadios e pedintes (§§ 5, 9, 10 e 11);

Já os recursos ou mecanismos legais conducentes às soluções podem ser

visualizados dessa maneira:

1. Coagir o proprietário a cultivar a terra, ou quem a tivesse por qualquer outro título,

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mediante sanção de expropriação (§§ 2 e 4);

2. Facilitar o amanho da gleba obrigando ao mester da lavoura todos os que fossem

filhos e netos de lavradores, os que não possuíssem bens avaliados até quinhentas

libras10 e não tivessem ocupação profícua ao bem comum nem senhor certo que

necessitasse do seu trabalho para obra de serviço proveitoso (§6);

3. Evitar o encarecimento geral estabelecendo taxas de salários para os servidores

rurais e, ao mesmo tempo, multas para quem lhes desse mais do que o fixado (§§ 6, 7,

15 e 16);

4. Entravar a decadência da agricultura constrangendo os lavradores a terem o gado

necessário para a lavoura e obrigando quem o possuía para vender a fazê-lo por preço

razoável e previamente fixado (§3);

5. Fomentar o cultivo proibindo a criação de gados a não ser àqueles que os

necessitassem para lavrar herdades suas ou de outrem (§§ 18 e 19);

6. Regular o aproveitamento agrário fixando eqüitativamente o preço das pensões ou

rendas, a serem pagas pelos lavradores aos proprietários das terras (§ 13);

7. Aumentar o contingente de proprietários rurais compelindo ao trabalho agrícola os

ociosos, os vadios e os mendigos que pudessem fazer serviço de seu corpo (§ 8 a 11).

Quanto às penalidades, além da expropriação da terra ao proprietário que a deixasse

inculta durante um prazo determinado, a lei original contemplava multas relativamente

elevadas, açoites e até desterro.

A segunda edição, contida nas Ordenações Afonsinas, de 1446, já se encontrava sob

o título Das Sesmarias. Esta se inicia com uma frase, que lembrava a lei formulada por

10 “Como já vimos, a quantia que extremava o assalariado do homem que trabalhava por conta própria era de 300 libras, até ao reinado de D. Fernando. Com a desvalorização crescente da moeda foi a quantia elevada para 500 libras, pois, como disseram os concelhos nas cortes de Lisboa, bastava então ter dois asnos e uma cama de um moio de trigo para possuir 330 libras” (Rau, 1982, 91).

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Dom Fernando para, em seguida, incorporar os mesmos 11 enunciados da lei de 1375. No

entanto, acrescia mais dezenove pontos à lei original, aliás, extremamente interessantes,

pois se referiam à carta de um vassalo do rei, Álvaro Gonçalves, indagando sobre o que

faria acerca das terras que se apresentavam incultas na vila de Estremoz. Álvaro Gonçalves

tivera seu nome sugerido pelos juizes, vereadores, procuradores e homens bons da vila de

Estremoz para o cargo de sesmeiro da região, o que foi confirmado por carta régia de

25/02/1427. Diante de algumas dúvidas no exercício de sesmeiro foi esclarecido de suas

dificuldades através de resoluções régias que acabaram inseridas nas Ordenações Afonsinas

(IV, 81, parágrafos 24 a 34).

Álvaro Gonçalves permaneceu no cargo de sesmeiro até a sua morte, em 1463,

tendo seu filho Rodrigo Álvaro da Guerra, escudeiro e criado do infante D. Henrique,

assumido o cargo também por escolha do concelho de Estremoz e confirmado por carta

régia em 03/04/1453, evidenciando, como apontado por Rau, a natureza hereditária do

cargo.

Os artigos vão acolhendo primeiro a dúvida do vassalo para, depois, o rei

determinar, através de cartas, o que se fazer. Esta parte é altamente instigante por apresentar

uma jurisprudência sobre o assunto, tornando a lei um pouco menos evasiva,

regulamentando os mecanismos de ação e, sobretudo, introduzindo novos conceitos.

Assim é que, logo no artigo vinte, aparecia pela primeira vez, a palavra sesmaria,

referindo-se ao seu avô Dom João como tendo cumprido a lei no tocante à distribuição de

sesmarias. Para exemplificar, disserta no artigo seguinte sobre a carta enviada por Alvaro

Gonçalves, da vila de Estremoz, onde o confirmava como sesmeiro, "para poder dar de

sesmarias casas, e pardieiros, e bens, e herdades, que jazem em mortório, que já em outro

tempo foram casas povoadas, vinhas, e olivais, pomares, hortas, ferragens, e herdades de

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pão" (Ordenações Afonsinas, 296). Esta fonte esclarece, portanto, que sesmaria era o

instrumento legal de apropriação da terra pelo sesmeiro, com o propósito de distribuí-la

novamente visando garantir o cultivo e o aproveitamento do solo. Ademais, define-se na

forma escrita a função do sesmeiro, como distribuidor das sesmarias.

No vigésimo-segundo artigo, in finis, mencionam-se prazos, convencionando-se o

de um ano para que os novos receptores das terras dadas em sesmarias, lavrassem-nas. Esta

carta de El-Rey é datada de 1427, portanto, 19 anos antes da publicação das Ordenações

Afonsinas e 52 anos após sua primeira edição.

Os artigos vinte e três e vinte e quatro anunciavam que o rei, estando na vila de

Estremoz, foi notificado de certos capítulos pelo próprio sesmeiro Alvaro Gonçalves, os

quais responderia nos artigos seqüentes na forma de terminações.

Desse modo, Alvaro Gonçalves denunciava, no artigo vinte e cinco, o aparecimento

de outras cartas de sesmarias, distintas daquelas que ele outorgara, visando tomar, com o

auxílio dos juizes locais, as sesmarias já concedidas por ele. Denunciava, ainda, que estas

terras, após tomadas, ficavam abandonadas. Apesar da or denação, compilada a mando do

próprio rei, mostrar as suas cartas e as do sesmeiro com o intuito de verificar o

cumprimento da lei, o rei se esquivava determinando que se ordenasse aos juizes ordinários

verificarem a quem cabia as sesmarias. Fica claro a existência de um conflito de

competências e sobretudo de interesses entre aqueles que desejavam receber as terras em

sesmarias, já que a pessoa autorizada a dar sesmarias vinha tendo seu trabalho preterido por

uma investigação.

No vigésimo-sexto artigo, era denunciada pelo sesmeiro a existência de terras

inaproveitadas, pertencentes a capelas, desejadas pela população temerosa delas se

utilizarem e, ele mesmo, de dá-las em sesmaria, pelo fato de haver a possibilidade de outras

11 A transcrição ocorre ipsis literis.

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cartas surgirem. Na mesma situação existiam terras pertencentes a Igrejas e Confrarias. O

rei prescrevia que se constrangessem os responsáveis a cultivá-las, através de comunicados

oficiais como editos.

Do artigo vigésimo-sétimo ao vigésimo-nono legislava-se sobre as terras

inaproveitadas que estavam sob responsabilidade de outrem. Em primeiro lugar, dispunha

sobre os bens de menores sob tutela. Em segundo lugar, sobre os bens de pessoas que se

encontravam fora do reino. E, em terceiro lugar, o caso específico de bens de fidalgos e

grandes homens. Nessas três situações, o rei resolvia que os tutores, as mulheres ou parentes

dos ausentes e os próprios fidalgos, fossem avisados e pressionados sobre a obrigação do

cultivo.

O trigésimo artigo colocava os almoxarifes como responsáveis pela resolução dos

reguendos.

No artigo trinta e um, era denunciado o fato de vários olivais, devido à falta de

cuidado do proprietário em tratar do mato em volta, serem constantemente tomados pelo

fogo, havendo menos azeite do que se poderia ter. Estes proprietários alegavam que tinham

medo de tratar a terra e depois ser ela tomada, visto não possuírem carta de sesmaria. O rei

ordenou que se dessem em sesmarias as terras aos donos, submetendo-se aos prazos e penas

da lei.

A dúvida colocada nos artigos trinta e dois e trinta e três era sobre o que fazer com a

população que não cuidava da terra que se encontra em pousio, deliberando que deviam,

pelo menos, adubá-la adequadamente.

Os últimos artigos tratavam de aspectos burocráticos e de regulamentação da lei. 12

12 O artigo de número trinta e quatro transformou em ordenação a carta de 1436, que tratou dos assuntos discutidos entre os artigos vinte e vinte e três. O artigo trinta e cinco estipulava que qualquer problema específico devia ser levado ao rei. O trinta e seis liberava a mendicância, desde que autorizada pelo rei. Antes, apenas velhos, fracos, doentes e senhores falidos podiam obter esta autorização. O penúltimo artigo pregava a continuidade da lei e, finalmente, o trinta e oito a promulgava.

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Em suma, esta segunda edição da lei de sesmarias traz dois novos elementos. Se por

um lado, a legislação tentou se aperfeiçoar ao estipular prazo de um ano para que os

lavradores que recebessem as terras em sesmarias as cultivassem, por outro, comprovou

serem inúmeras as dificuldades de compreensão da própria lei e a dificuldade de pô-la em

prática.

A carta de 25/02/1427 escrita por Álvaro Gonçalves foi incorporada nas Ordenações

Afonsinas. Contudo, o que se verifica é que alguns sesmeiros apresentam a sua carta de

nomeação para serem confirmados pelo novo rei, ao invés de ser confirmados pelos

concelhos. Para entender essa prática cabe salientar que o parágrafo 37 das Ordenações

Afonsinas deixa claro que as sesmarias valiam para as regiões onde havia o costume de se

dar terras neste regime, o que por oposição significaria que em área onde nunca havia se

dado essa legislação, não “deveria” ser levada em consideração.

Um exemplo citado por Rau é o caso do concelho de Aveiro, que apresenta nas

cortes de Lisboa, de 1456, solicitação para que não se faça vigorar as sesmarias, alegando

que nunca foi costume na região e, mais grave, nem sabiam do que se tratava. O rei acaba

permitindo que se fizesse uso do costume antigo da vila, já que nunca utilizaram o sistema

de sesmaria. Essa autorização está na carta régia de 20 de junho de 1456, na chancelaria de

D. Afonso V, livro 13, fs. 57 v.58.

Essa questão abre enorme precedente. Como utilizar uma legislação definida e

registrada em algumas regiões, e no mesmo tempo, se conceder a permissão para que se

perpetue um sistema costumeiro em outras?

Porém, novamente Rau atenta para o uso das sesmarias no processo de colonização

de áreas fronteiriças. “O facto de se procurar que as sesmarias se tornassem profícuas pode

ser interpretado não só no sentido econômico de aproveitamento agrário, mas também na

acepção fiscal, isto é, que o seu cultivo resultasse em benefício do erário régio. (...) Por

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conseguinte, que os indivíduos que as recebessem ficassem sujeitos à tributação da coroa e

à jurisdição da mesma, no caso de não cumprirem aquilo a que se obrigavam”(Rau, 1982,

113).

Inserida no código afonsino, a lei de sesmarias representou os esforços de três

reinados sucessivos para coordenar a legislação e dar-lhe unidade, significando ao mesmo

tempo a decadência do direito local e o progressivo desenvolvimento da autoridade do rei.

1.2.3. A lei de Sesmarias nas Ordenações Manuelinas e Filipinas

As edições da Lei de Sesmarias escritas nas Ordenações Manuelinas (1511) e

Filipinas (1603) mantêm o mesmo conteúdo da anterior, aparecendo somente de forma

escrita diferente e apresentando alguns elementos novos. Como ambas são escritas de modo

igual, tratar-se-á delas conjuntamente.

Dessa forma, estas edições se iniciam já definindo sesmaria e sesme iro, explicitando

a tributação das terras de responsabilidade dos sesmeiros e almoxarifes. É destas edições

que pode se extrair a definição de sesmarias. Como já foi colocado na abertura deste

capítulo, etimologicamente sesmarias "são propriamente aquelas que se dão de terras,

casaes, ou pardieiros, que foram ou são de alguns senhorios, e que já em outro tempo

foram lavradas e aproveitadas, e agora o não são".

O primeiro artigo destas edições expunha a obrigatoriedade de o sesmeiro saber de

quem eram as terras incultas para citá-los e dar o prazo de um ano para a lavra, mesmo

sendo fidalgos e grandes homens. Dando seguimento a este aspecto, o segundo artigo

proferia que caso não fosse conhecido o senhor, divulgar-se-iam editais, com prazo de 30

dias para o dono aparecer. Sem o aparecimento do senhor para reclamar as terras, estas

seriam dadas em sesmarias com o prazo de até um ano para lavrá-las.

Sobre a fiscalização, o terceiro artigo estipulava o prazo de 5 anos para inspeção,

após a concessão, para se verificar a continuidade do aproveitamento da terra. Além disso,

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expunha sobre a qualificação das terras segundo a tributação. Também não fixava limite das

posses, apenas discursava sobre o bom senso determinando que "serão avisados os

sesmeiros [para] que não dêem maiores terras a uma pessoa que as que razoadamente

parece que no dito tempo as poderão aproveitar" (Ordenações Manuelinas. Livro IV, Título

LXVII). Havia, também, uma flexibilidade na fixação do tempo para lavrar pelo sesmeiro,

sendo a única exigência, não passar do prazo da ordenação que era de cinco anos. Caso não

fosse lavrada, seria dada a outrem com prazo estipulado pela ordenação. Não deveria se dar

sesmarias a pessoas que já as tivessem recebido sem aproveitá-las. Autorizava, ainda, o

senhor a recorrer à justiça para a retomada das terras. Por fim, as cartas de sesmarias

deviam estar presentes nos autos dos sesmeiros, registrados por tabelião ou escrivão.

Já o artigo quatro, referia -se à responsabilidade da tributação. Enquanto as

sesmarias situadas em terras foreiras ou tributárias da coroa eram de competência dos

almoxarifes, as terras isentas eram de responsabilidades dos juizes ordinários.

O quinto artigo destas publicações é uma junção dos artigos 27 e 28 da lei publicada

na Ordenação Afonsina. Dessa forma, expunha sobre a terra de órfãos, sob

responsabilidades dos tutores, ou terras de capelas, Hospitais, Albergues ou Confrarias não

lavradas que estariam sujeitas as mesmas penas e prazos.

O sexto artigo corresponde ao vigésimo nono da Afonsina, sobre os homens que

estavam fora do reino, também se sujeitando às mesmas regras do caso anterior.

Já o sétimo artigo conjugava os artigos 31, 32 e 33 da Afonsina, relativo ao

descuido dos senhores sobre os olivais e terras em pousio, pelo fato de não possuírem cartas

de sesmarias, determinando que os sesmeiros dessem-lhes as cartas. Contudo, caso os

senhores não as adubassem nem as cuidassem, seriam dadas em sesmarias a outrem.

O oitavo possibilitava que terras incultas, embora nunca lavradas, fossem dadas em

sesmarias, após procuradores e vereadores serem consultados pelos sesmeiros. No entanto,

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estas terras tributárias estariam sob responsabilidade de almoxarifes que podiam acumular o

cargo de sesmeiros.

O artigo nove afirmava que em caso da outorga da terra em sesmaria prejudicar o

bem comum, esta não deveria ser dada. Assim como o décimo respeitava os senhores que

tivessem quintais e casa (como segunda propriedade) e as usassem.

No décimo primeiro artigo, contava-se que não se deveria conceder sesmarias nos

Vales de Ribeira ou nas terras úteis às pessoas das vilas.

O seguinte conservava a estrutura tributária, não podendo ser criado tributo ou foro

novos, sobre as terras dadas em sesmarias.

O antepenúltimo artigo, declarava, quanto aos locais aonde se lavravam, de forma

temporária, caberia aos juizes, vereadores e procuradores verificar se a terra era tributária e

se o seu uso prejudicava a coletividade.

O penúltimo, reconhecia as propriedades dos Fidalgos, Igrejas e Mosteiros que

tivessem seu título de posse e recomendava que as outras fossem concedidas em sesmarias.

Enfim, o último artigo, anunciava que, mesmo escrito nas cartas de sesmarias que as

Ordens, Igrejas ou senhores pudessem utilizar as terras no tempo limitado, que ultrapassasse

o prazo da Ordenação, seriam anuladas caso as terras não fossem cultivadas.

Dessa forma, estas novas edições da Lei têm como aspecto relevante a questão da

fiscalização após passados cinco anos, para verificar se o lavrador havia realmente cultivado

as terras ganhas em sesmarias.

Mesmo este novo aspecto, contudo, não retirou o caráter sofismático desta lei. Além

disso, o velho problema da distância entre a teoria e a prática também ocorreu com a

legislação referente às sesmarias, dado a quantidade de alvarás, cartas régias e ordens que

tentaram, várias vezes, regular sobre o assunto, principalmente na distante colônia

portuguesa da América. Aliás, o aspecto geográfico tornou-se um obstáculo, agravando a

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ineficácia ou, na melhor das hipóteses, eficácia duvidosa desta Lei.

Assim, ao analisar minuciosamente a legislação referente às sesmarias produzida no

reino na perspectiva do seu "transplante" para a América portuguesa, apresenta-se como

objetivo desta dissertação verificar como a mesma foi administrada no Brasil, tentando

examinar a sua real aplicabilidade na colônia, através de processos judiciais da Corte de

Apelação no século XVIII na Capitania do Rio de Janeiro. Em conseqüência, a pesquisa se

debruçou sobre a legislação complementar posterior às Ordenações produzida pelo reino,

para acompanhar as modalidades de resolução dos conflitos provenientes da falta de clareza

da própria legislação, ou da sua não aplicação por parte dos administradores coloniais,

discutindo as razões ou interesses que levariam ao não cumprimento da legislatura.

1.3. O problema das sesmarias em Portugal

A implementação da legislação sesmarial em Portugal, quando examinada no marco

das mudanças econômicas, sociais e políticas do período, gerou um conjunto complexo de

problemas relativos à posse da terra, uma vez que a terra constituía a principal fonte de

valor agregado (riqueza). Rau apresenta vários tipos de conflitos ocasionados por essa

implementação, a começar pelas diversas formas de nomeação dos sesmeiros, dado que o

cargo podia ser adquirido por nomeação régia ou por eleição do concelho, a ser confirmado

pelo rei.

O primeiro tipo de conflito nascia da própria origem da lei: a denúncia de terras não

cultivadas. A obrigação de cultivo e aproveitamento como condição de posse é um princípio

básico que remontava ao código de Justiniano. O primeiro registro do confisco de uma terra

por não ter sido cultivada se encontra no livro Memória para a história da agricultura em

Portugal. Segundo o registro, João Eanes teria denunciado ao rei, D. Afonso II, de que o

prior e os beneficiados da Colegiada de S. Bartolomeu de Coimbra não cultivavam seu

olival havia cerca de três anos. O rei, após instauração de inquérito, ordenou a retirada das

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terras e as doou ao denunciante.

Um problema com relação aos sesmeiros foi registrado em 1339 pelo corregedor

Afonso Eanes. Os sesmeiros haviam dado em sesmaria as terras do concelho em volta da

vila de Beja e das aldeias e os mesmos não as cultivaram. Em nome do rei, o corregedor

ordenou que os sesmeiros dessem todos os campos desaproveitados havia mais de 10 anos,

tendo os novos donos um ano e um dia para aproveitá-las (Chancelaria de D. Fernando, liv.

1, fl.157).

No regimento dos corregedores de Entre Tejo e Guadiana, que foi modificado em

1366, há um artigo que determina o aviso por três meses de casas desaproveitadas e

pardieiros, obrigando os donos a aproveitarem-nas. Caso não o fizessem, os juízes e

vereadores deviam mandar os sesmeiros darem essas localidades a quem as aproveitasse.

O princípio da obrigação do cultivo e aproveitamento como condição de posse

radicalizaria -se na segunda metade do século XIV, devido às condições sócio-econômicas

de Portugal. Os próprios concelhos observavam a necessidade de obrigar os proprietários a

aproveitarem as terras, “por que acima dos direitos e interesses individuais se erguia a

necessidade da comarca ou do concelho” (Rau, 1982, 72). Contudo, as críticas incidiam

principalmente sobre a propriedade eclesiástica tendo em vista sua excessiva riqueza

material traduzida em terras.

“Os artigos apresentados nas cortes de Lisboa de 1352 são bem elucidativos. Os

homens bons dos concelhos levantam a voz contra os bispos, clérigos, mestres, priores e

abades que tinham deixado arruinar as suas casas nas cidades e vilas, ao mesmo tempo em

que muitas das suas terras ficavam sem ser lavradas”(Rau, id ibid, loc. cit.). Ou seja, nas

cortes de 1352 já se reclamava da extrema concentração de terras pela igreja, fato que se

repetiria nas cortes de Elvas de 1361.

Esses fatos mostram que a partir da implementação da legislação sesmarial,

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multiplicaram-se as denúncias relacionadas com o não aproveitamento das terras e

pendências judiciais entre denunciantes e denunciados: os primeiros visando o acesso a

terra e os segundos defendendo a manutenção de sua posse.

Uma segunda ordem de problemas se refere ao controle social da mão-de-obra.

Como já exposto, foi a partir do reinado de D. Afonso IV que se deu início ás

regulamentações da liberdade de trabalho. Mais uma vez, veio a tona a escassez de

trabalhadores rurais. Em 1385, D. João I ainda batia -se com o problema da mão-de-obra.

Nas cortes de Coimbra, D. João I recebeu a solicitação do concelho para ordenar "que tais

homens tornassem a viver nas suas casas e a lavrar”(Rau, Op cit., 94). Novas reclamações

de campos improdutivos de grandes extensões de terra "dados" em sesmarias e que não

foram aproveitadas, surgiram em 1392 do concelho de Tavira. Também nas cortes de

Coimbra de 1394, o concelho de Santarém reclamava do prejuízo por muitas regiões não

serem devidamente cultivadas.

Mas qual a origem e os aspectos envolvidos nessa escassez?

Atentando-se para a proximidade das datas das representações dos concelhos e da

grande epidemia, poder-se-ia relacionar a falta de mão-de-obra com a mortandade. Sem

dúvida , tal aspecto tem seu peso. Contudo, não é capaz, por si só, de explicar este quadro,

pois, paralelamente aos queixumes com a falta de braços para a lavoura, abundavam as

afirmações de que se concentrava, principalmente nas grandes cidades, um crescente

número de vadios, bem como a referência a antigos lavradores que migravam para os

ofícios urbanos. Tudo indica que a atração exercida pelas cidades era acompanhada da

radicalização das medidas de coerção ao trabalho tomadas principalmente a partir de 1349

pela pressão da classe de médios proprietários rurais na defesa de seus interesses: a

implementação da legislação de sesmaria representou um importante recurso para esses

objetivos.

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Enfim, um terceiro conjunto de problemas encontra-se na indefinição da nomeação

e o exercício de cargos. Como exemplo, pode-se citar o caso da autorização dada por Dom

Fernando ao concelho de homens bons para escolherem duas pessoas, também homens

bons, para darem terras de sesmarias. Contudo, ele mesmo já havia encarregado Gil Anes,

ouvidor da Rainha de o fazer, tanto que o próprio efetivara a entrega de cartas de sesmarias

em 1378. No reinado de D. João I, a eleição de sesmeiros dentro do concelho foi paralela à

nomeação deles pelo órgão que era confirmado pelo poder régio. Por outro lado, consagrou-

se uma espécie de hereditariedade no cargo de sesmeiro: quando o pai morria, seu filho era

eleito o novo sesmeiro, sendo confirmado pelo rei. Há alguns casos registrados por Rau.

Os problemas de nomeação se vinculavam à variedade e opacidade existente na

legislação sesmarial entre as esferas de competências funcionais Nos reguengos e outras

terras da coroa, competia ao almoxarife, ou ainda ao contador del-Rei o encargo de outorgar

as sesmarias. “Quando em terras de senhorio, o rei delegava no donatário não só a outorga

das sesmarias como a nomeação do sesmeiro”(Rau, id ibidem, 65), a exemplo do ocorrido

com os infantes D. Henrique e D. João que foram autorizados a dar sesmarias em suas

terras, em 1422. Algumas vezes cabia aos juízes ordinários o cargo de sesmeiro. Contudo,

poderiam ser diferenciados quando os sesmeiros tinham qualificação da magistratura,

aparecendo em alguns documentos o termo juiz das sesmarias, apesar de não haver

indicação do ofício na legislação oficial.

Nas cortes de Lisboa de 1459, os procuradores de Pinhal reclamaram do sesmeiro

nomeado, por este haver enviado uma carta ao rei para que os moradores não tivessem outro

juiz de sesmarias que não fossem os juízes ordinários. Dessa forma, o rei D. Afonso V

manteve as cartas de sesmarias, bem como destituiu o sesmeiro do cargo. O que se percebe

é que a partir da reclamação dos concelhos, o rei mandou o próprio concelho escolher dois

homens bons para que a distribuição a quem pudesse lavrá-las fosse feita.

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A autora registra sua preocupação quanto ao fato de “confiar ao critério dos

sesmeiros a resolução da expropriação e distribuição dos prédios incultos ou

desaproveitados [já que] tornava particularmente perigosa a sua acção e espinhoso o seu

cargo, bem como precária à sit uação dos que beneficiavam das sesmarias, sempre sujeitos à

revisão da apreciação feita por menos equitativa e justa. É natural pensar, também, que

deviam ser vulgares as demandas referentes a sesmaria, pois com justiça ou sem ela, o

proprietário tentaria por todas as formas obstar a perda dos seus bens e apelar para quem o

pudesse evitar ou reparar”(Rau, Op. cit., 105). Quem fiscaliza é o mesmo que redistribui, ou

seja, a mesma pessoa que retira a terra de outrem, define o novo destino da dada de terra, o

que poderia, segundo Castro, levar à individualização das terras ou ao que se prefere

denominar nesta dissertação de personalização das decisões.

O proprietário que tivesse perdido a propriedade por determinação do sesmeiro,

podia recorrer às justiças ordinárias. Cabia a esses juizes “verificar se as sesmarias tinham

sido bem ou mal dadas”. Contudo, tais reclamações poderiam ir até a instância dos

corregedores, até que D. Duarte determinou que competia apenas aos juizes a demanda

relativa às sesmarias, com a carta régia de 19 de julho de 1435.

O que Rau enfatiza como o processo de perda do objetivo de municipalidade

acarretado pela ascensão progressiva dos homens bons, ou seja, os próprios senhores eleitos

pelos concelhos ou protegidos por eles, na ocupação desses cargos, refletia a existência de

um conflito latente que traduzia a própria construção das funções institucionais do rei e de

outras esferas de competência paralelas de cunho local, processo característico da

configuração do poderio local em contraponto à centralização. Esse processo desembocaria

na formação do Estado Moderno, somente a partir do século XVIII.13

13 Este ponto central será retomado no momento de se analisar a configuração da centralização do poder versus a permanência do poder local.

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De um modo geral, o conjunto complexo de problemas advindos da implementação

da legislação sesmarial marca um grande ponto de inflexão com relação à posse da terra em

Portugal. Por um lado, com a possibilidade de acesso à terra aos despossuídos emergiu a

pressão exercida por aqueles que não possuíam, levando a um incremento das sesmarias,

além de favorecer o crescimento demográfico pelo aumento do cultivo. Por outro lado,

surgiram também problemas para os senhores de terras, em função da obrigatoriedade de

seu cultivo e da comprovação da titularidade do domínio ou posse, tendo que buscar

mecanismos para cumprir a legislação.

A lei de sesmarias deu origem à possibilidade de parte da população menos

favorecida ter acesso à terra. Em 17 de julho de 1430, quando D. João I doou a Lambert de

Orques as terras e o castelo, não foram concedidas somente as terras não cultivadas, mas

também as já cultivadas por terceiros que não demonstrassem a sua propriedade através de

cartas de sesmarias. Esse registro demonstra que as cartas de sesmarias eram invocadas para

criar direitos sobre a terra, constituído por ou a partir de título outorgado pelo rei, fato que

se repetiria na América portuguesa, como se verá nos dois capítulos seguintes.

Já pela ótica dos senhorios e eclesiásticos, “as sesmarias são a penalidade sempre

invocada para obrigar os proprietários a lavrarem suas terras”(Rau, 1982, 98). D. João I, em

1426, na região de Açeca, perto de Santarém, espalhou éditos para que “os donos viessem

mostrar os seus títulos de posse”. Como ninguém apareceu, o rei se apossou delas. Em

1432, D. João utilizava-se do mesmo procedimento para promover o arroteamento das

terras danificadas no termo de Santarém. Em 1434, um fato na região de Torres Nova, pedia

o estabelecimento das demarcações para efeito de as cartas serem confirmadas.

“Além do rei e dos concelhos, os infantes, os senhores, os abades e os mestres das

ordens monásticas e militares começaram a lançar mão das sesmarias e solicitaram

autorização para as mandarem pôr em prática nos territórios que lhes pertenciam, dando-nos

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assim a impressão de que as julgavam eficazes para melhorarem os seus réditos e

fomentarem a prosperidade das suas terras”(Rau, Op. cit., 100). Os infantes D. Pedro, D.

João e D. Henrique receberam autorização, já que visualizavam um meio de aumentar os

seus rendimentos, fosse de impostos ou por que a sesmaria não retirava o atributo de

propriedade.

Esse conjunto de mecanismos em que os senhorios e eclesiásticos davam em

sesmarias pode ser visto como uma estratégia defensiva para assegurar suas posses ou

preservar suas rendas, face à pressão crescente exercida pelos despossuídos.

A documentação portuguesa, segundo Virgínia Rau, é pouca para verificar a

natureza do direito à terra, quando referida ao domínio útil ou, aliado a esse, estava o

domínio efetivo. Rau limita-se a esclarecer como eram dadas as terras em sesmaria. A

autora verifica que muitas concessões eram isentas de foro ou qualquer tributo, sendo os

sesmeiros apenas obrigados a pagar a dízima, que já seria um fardo pesado.

Durante o reinado de D. Afonso V, o que se depreende é que as terras dadas em

sesmarias eram propriedades plenas com o encargo de arrotear. Contudo, algumas terras de

sesmarias eram “concedidas” por pagamento de foro, que acabava tornando-se anual e

transmissível aos seus herdeiros e sucessores, o que reforça o questionamento de Rau sobre

a sesmaria ter se transformado, com o decorrer do tempo, numa forma de aforamento. O

problema real é que as terras, especialmente de religiosos, estavam sujeitas à tributação e as

terras dadas em sesmarias acabavam funcionando como recurso de aforamento para reduzir

o ônus relativo às tributações.14

A lei de sesmarias não teria trazido apenas problemas para a sociedade portuguesa

14 “As ordens religiosas estavam no direito de dar as sesmarias nas suas terras sem que o poder central lhes tivesse imposto qualquer preceito legal que as regulamentasse em relação à forma como era cedida a terra ao cultivador. Portanto, afigura -se me que, em terras de senhorio, os donatários tinham direito de aforar as terras abandonadas e os maninhos, ao passo que nas terras concelhias elas eram dadas livres e isentas, talvez, nalguns casos, sujeitas aos tributos impostos pelo costume ou pelo foral” (Rau, Op cit., 125).

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de então. Em várias situações, a função social da lei, relativa ao objetivo de povoamento do

campo, foi cumprida. No caso da região de Terena arrasada por uma guerra contra Castela,

D. João I distribuiu várias sesmarias, em 1413, para repovoá-la. Nessa região foi feito

exatamente como a legislação ordenava: primeiro foram divulgados éditos para que os

proprietários retornassem e cultivassem as terras. Como não apareceram após o prazo, as

terras foram doadas aos lavradores. O objetivo do povoamento foi atingido, já que a região

de Terena foi-se repovoando paulatinamente, verificando-se que o processo resultou eficaz.

Da mesma forma ocorreu na região fronteiriça de Pinhel, que também sofrera

despovoamento com a guerra de independência. O próprio concelho pediu licença para dar

em sesmaria as terras da região (era hábito se pedir a licença ao rei). O rei concedeu,

somente após a intimação aos proprietários para cultivá-las.

Estes resultados positivos, embora variáveis na legislação sesmarial portuguesa

permitem compreender a lógica da sua utilização para a América portuguesa, vasto

território virgem necessitando de povoamento. Independente de pertencerem ou não a um

senhorio, a doação de terras em sesmaria tornava-se um instrumento poderoso para regular

a posse da nova terra.

Problemas de grande envergadura que pautaram a formação do reino português

configuram o momento específico do nascimento e o objetivo precípuo da Lei de Sesmarias

em 1375. Essa lei foi criada para responder às necessidades peculiares de uma conjuntura

econômica pela qual Portugal passava: uma grave crise de abastecimento, principalmente de

cereais, ocasionada pelo abandono das terras, bem como pela carência de mão de obra,

insegurança em relação aos mouros e o próprio encarecimento da vida no campo. Contudo,

sendo reeditada por mais três vezes e, perdurando por mais de 200 anos, cabe a questão do

real interesse, por parte do Estado português, em resolver um problema dito conjuntural.

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Em síntese, de um ponto de vista mais amplo, pode se perceber que tanto a Lei de

Sesmarias como a Lei Mental e outras medidas adotadas pelo poder régio, teriam

funcionado como mecanismos de controle social nos momentos em que o poder central se

via enfraquecido. Esse controle pode ser visualizado mais claramente na primeira tentativa

do governo central de taxar soldadas15 e produtos, na lei de 1246, concernentes ao

tabelamento de preços e soldadas citada por Virgínia Rau. Mais especificamente, o sentido

racional desse conjunto de medidas reguladoras era a tentativa de controlar tanto as

propriedades senhoriais como, principalmente, assegurar a fixação da mão de obra no

campo. 16 Dessa forma, é necessário que se ampliem os estudos acerca das sesmarias para se

verificar o grau de eficácia dessa legislação no próprio reino de Portugal, bem como a

forma de sua aplicação na América colonial.

Nessa perspectiva, cabe introduzir o estudo de José Tengarrinha sobre o problema

social agrário português. Embora preocupado com a segunda metade do século XVIII, as

questões que levanta têm forte relação com o problema das sesmarias analisado por Rau

para o período que finda no século XV. Paradoxalmente, cabe salientar de início que,

diferentemente do caso da América portuguesa, o estudo em questão não faz menção ao

termo sesmaria.

Contrapondo-se à tradição historiográfica de que não teria havido movimentos

15 Espécie de avença mediante a qual os mercadores vizinhos de determinadas povoações se podiam eximir à solução do imposto de portagem. Consistia no pagamento de um soldo. Sendo a portagem um dos tributos que mais oneravam o comércio, fácil é compreender como a soldada, possibilitando a sua isenção, deve antes ser considerada uma regalia e não como um encargo. 16 Essa tentativa de exercer um controle social pelo governo assemelha-se, mesmo tendo o objetivo contrário, ao processo de formação do exército de mão de obra livre na Inglaterra do século XVIII. Os cercamentos das terras comunais concentraram a propriedade de terra nas mãos da gentry e da burguesia mercantil, mas não absorveram essa mão-de-obra "livre", criando um contingente de trabalhadores expropriados que não tinham outra mercadoria para vender senão sua força de trabalho. Contudo, não é correto afirmar que essa massa de trabalhadores tenha se dirigido espontânea e imediatamente para os centros urbanos. Para que isso ocorresse, teve muita importância um conjunto de leis, conhecido como Legislação Sanguinária, que punia violentamente as pessoas despossuídas encontradas sem trabalho. Dessa forma, pode-se dizer que o Estado inglês desempenhou um papel de grande importância no processo de ordenação e de submissão da massa trabalhadora inglesa. Para esta questão ver: MARX, 1975, Livro 1, Cap. XXIV e HOBSBAWM, 1978.

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sociais rurais em Portugal no período chamado Antigo Regime, José Tengarrinha (1994)

desenvolve o estudo dos movimentos sociais rurais portugueses da segunda metade do

século XVIII, registrando diferentes tipos de movimentos: contra as instituições; anti-

senhoriais; e, pela terra, totalizando 361 movimentos, entre protestos, resistências, levantes

e motins.

Os movimentos agrários, mesmo com suas especificidades e ritmos, se inseriram na

conturbada dinâmica econômica do período, fragilizada pelos privilégios, isenções e

benefícios fiscais, usufruídos pela nobreza senhorial, mercê de uma administração

obsequiosa: as fortes altas de preços em 1768-1771 e em 1789; e o aumento da opressão

senhorial e explosão antifiscal, sobretudo contra a sisa, no período 1751-1770. Esses

movimentos de contestação ao sistema instituído revelavam uma fraqueza da monarquia,

uma crise geral do Estado que, na verdade, ainda pode ser visualizada como confronto do

poder regional17 com o poder central.

Em resposta, a renovação do esforço centralizador ocorreu com o alvará de 15 de

julho de 1744, quando "nos raros casos em que a legislação régia tentou impor limites a

actuações desregradas das governanças locais, foram evidentes as dificuldades para a levar

a prática" (Tengarrinha, Op. cit. 56). Os casos mais significativos consistiam de negociatas

e de aproveitamentos pessoa is em que se envolviam os vereadores com os pastos e baldios

concelhios. "As medidas de D. João V marcando os locais de pastagem dos gados e a

impossibilidade de estes serem possuídos por quem estava na governança não haviam sido

cumpridas. (...) Não era fácil, também, a intervenção do poder central através dos

corregedores nas eleições municipais, quer para conseguir resultados que pretendia quer

evitar irregularidades cometidas por poderosos locais, que se perpetuavam no poder"

(Tengarrinha, Op.cit. loc. cit). Assim, infere-se do relato de Tengarrinha, que as próprias

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funções judiciais e administrativas confundiam-se com a autoridade local e a administração

da justiça continuava a se caracterizar por grande complexidade.

Numa perspectiva abrangente, vislumbra-se aqui a continuidade das duas dinâmicas

conflitantes já identificadas, cuja origem remonta à época da constituição do reino de

Portugal. A primeira, de cunho centralizador, tendente à unidade administrativa e judicial

do corpo da administração do Antigo Regime 18, com várias medidas <<referentes à

uniformização das regras e à limitação do foro privilegiado da nobreza e do clero>>, cuja

retomada constituirá o cerne da reforma do governo pombalino até 1760. Já a segunda, de

natureza local, impulsionada pe la defesa de privilégios e autonomia do poder político

administrativo municipal, tinha como base de sustentação dos interesses locais dos grandes

proprietários, criadores e negociantes e da pequena nobreza.

É a permanência da natureza ambivalente do poder e de seus reflexos problemáticos

na administração da justiça local que continuou a contextualizar a dinâmica rural

portuguesa no século XVIII.

Desse modo, mesmo com o aumento da atuação dos juízes de fora e dos

corregedores, o direito consuetudinário ainda estava presente na sociedade rural portuguesa

do oitocentos. A permanência do direito costumeiro, teria suscitado o alto grau de

marginalidade no mundo rural, pela resistência à legislação do poder central que tentava se

firmar, pois essas “normas reguladoras das localidades, tendo um caráter normalmente

conservador e sendo cristalizadas pelos interesses que delas se serviam, mostravam-se cada

vez mais desajustadas das novas dinâmicas e novas exigências do mundo rural”

(Tengarrinha, Op.cit., 58).

Essa evolução denota um claro antagonismo entre o direito popular e erudito.

17 Termo do autor. 18 Esta problemática é analisada profundamente por Hespanha. (1989 e 1998).

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Ademais, o autor recorda que apenas 35% dos juízes eram letrados e ressalta o fato como

um avanço considerável. Contudo, Tengarrinha não vê na relativa autonomia dos órgãos

periféricos um fator de instabilidade e da quebra da unidade do poder, tendo em vista que os

próprios órgãos periféricos estavam imbuídos de responsabilidades que o poder central não

atingia. O problema real era o “da conservação da unidade do Estado dentro da diversidade

de poderes” (Tengarrinha, id ibid, loc. cit).

A fiscalidade do Estado teria sido reorganizada/revisada após a crise econômica e

financeira de 1768-1771, com a criação do erário Régio (22/12/1761) e a reforma do

Conselho da Fazenda. Porém, a reorganização dos mecanismos de recolhimentos das

receitas públicas esbarravam na alarmante insuficiência burocrática do Estado.

Nessa época, a sisa teria retornado a ser a principal fonte de receita do Estado e

incidia bastante no mundo rural, sendo, inclusive, no século XVII, fonte de tensões e

conflitos. A contestação antifiscal ergueu-se contra a perpetuação de privilégios. Algumas

revoltas das comunidades rurais eclodiam quando algum poderoso conseguia isenções,

mesmo que na forma de privilégios. Este aspecto é inerente numa sociedade que se

“assentava na desigualdade das pessoas perante a lei e o fisco”(Tengarrinha, Op.cit., 61).

Um grande número de beneficiados era isento pelo lugar que ocupavam na sociedade, seja

pela nascimento, seja pela função. Entretanto, essas isenções não eram claramente

definidas, abrindo espaço para comportamentos oportunistas e aproveitamentos abusivos. A

situação dos agricultores agravava-se já que a sisa sobre a terra praticamente teria impedido

a alienação das terras, ou seja, a sua mobilidade, reforçada por uma absurda variação do

tributo na relação tamanho/valor do imposto. Nas instruções de 18 de outubro de 1762,

foram diminuídos os encargos e impostos sobre as terras exploradas pelos próprios

proprietários. Foram reduzidas a metade a décima sobre os seus rendimentos, exceto as

produções de trigo e azeite.

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Dessa forma, o que se percebe é uma persistência do quadro tradicional iniciado no

final da época medieval. Não houve uma política agrária pombalina. Nenhuma mudança

significativa ocorreu na mobilidade da terra, no redimensionamento da exploração, no grau

de propriedade sobre a terra por parte do cultivador e no sistema de culturas.

Paralelamente, assemelhando-se ao quadro dos séculos XIV e XV, são registradas

no século XVIII, recla mações acerca da falta de braços para a lavoura, bem como a sua

carestia nas cortes, embora a taxação dos soldos rurais dessa vez, diferente do que estava

nas ordenações, não fosse atrelada à taxação dos preços para evitar desequilíbrios, tendo em

vista que os preços encontravam-se estáveis.

Enfim, permaneceram também as dificuldades do senhorio e o seu controle por

parte do poder régio. Quando era pedida a certidão de forais, os senhorios alegavam não

terem cópia e que o original estaria na Torre do Tombo. A situação era pior quando se

tratava de forais cedidos por senhores de terra e donatários da Coroa. Muito se reclamava da

falta de clareza dos forais. Da mesma forma, os tombos, inventários dos bens de raiz com

todas as demarcações, eram feitos para atua lizar limites de propriedade e confirmar títulos

de posse19.

A questão central para o desenvolvimento da agricultura de cunho capitalista

comercial era a da propriedade da terra pelo seu explorador direto, só isto permitiria a

acumulação de capital no mundo agrário. Com o apoio e o fundamento em legislação então

promulgada e o crescente o interesse pelo cultivo de terras, até o momento, não utilizadas

ou insuficientemente aproveitadas, era iniciada, assim, a ferida sobre o regime de posse

comum que, pela tradição, as populações rurais mantinham de algumas terras. Um direito

19 Houve muitos protestos nos séculos XVI e XVII, quando os tombos foram modificados em favor dos senhorios, mudando as obrigações dos agricultores. “Contratos enfitêuticos secularmente estabelecidos eram, assim, ultrapassados com exigências que os tombos reconheciam, na base dos quais se elaboravam depois novos contratos”. (Tengarrinha. Op. cit. 113).

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vindo de longínquo tempo era agora abalado e comprometido. Eram agora apropriadas

terras que sempre haviam sido abertas e coletivas, transformadas em propriedade individual

num processo crescente. O autor apresenta várias reclamações de aforamento de baldios

concelhios que se acentuaram no período pós- 1789.

A lei de 22 de dezembro de 1761, já mencionada, favorecia os exploradores de

terras da Coroa para que fossem os arrematantes das respectivas rendas. A estabilização da

situação do explorador direto através da carta de 9 de setembro de 1769, estimulava a

realização de benfeitorias sobre a terra, estabelecendo a renovação do contrato enfitêutico a

favor dos descendentes, ascendentes e herdeiros colaterais até o quarto grau, acabando

assim o limite para os emprazamentos em três anos.

O conceito desta legislação era incompatível com a situação dos agricultores e, em

conseqüência, os seus efeitos foram muito limitados. A insuficiência de capital inicial dos

produtores diretos tornava quase impossível a aquisição da propriedade sobre a terra que

trabalhavam. Esta insuficiência permaneceu ao longo dos séculos, em função da excessiva

carga tributária, incluindo o dízimo, que afetara todas as atividades, quer as mais rentáveis

(vinho, gado), quer as menos rentáveis (trigo).

Também as freqüentes atuações arbitrárias e opressivas das justiças locais

provocaram, por vezes, protestos populares, como ocorrido em Vale de Canas, Concelho de

Coimbra, entre 1776 – 1777 contra o juiz vinteneiro acusado de espalhar o temor aos

moradores com extorsão de dinheiro através de condenações e prisões arbitrárias.

Do mesmo modo que Rau, Tengarrinha também apresenta inúmeros exemplos como

o caso de Gatões, pertencente ao concelho de Montenor-o-Velho, onde o rico e influente

capitão-mór do concelho Roque de Macedo, através de seu empenho e suborno na Câmara,

conseguiu, em 1772-1773, aforar, por apenas 1200 réis anuais, quando o poderia ser por 45

000, mais de 200 jeiras de terras que pertenciam ao concelho. Os bons pastos eram sempre

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usados pela população de forma comunal, sendo de grande utilidade para os seus gados e

produção de adubos para suas fazendas. “Impotentes perante a influência do capitão-mór,

que fez atrasar vários anos os pedidos de embargos dirigidos às autoridades, os agricultores

ficaram em situação tão difícil que muitos tiveram de abandonar as terras” (Tengarrinha,

Op.cit., 157-158). Já em São Martinho de Sande, concelho de Guimarães, seus moradores

protestaram no ano de 1774 contra a redação de um terreno baldio, que era de propriedade

do agricultor Bernardo Machado. O provedor de Guimarães foi ao local ouvir as queixas.

Nesse mesmo ano, nas várias localidades do concelho de Condeixa-a-Nova,

ocorreram protestos contra um advogado residente na vila, que usou de sua influência para

aforar os baldios concelhios. Os agricultores alertavam que isso provocaria a sua ruína, pois

os baldios eram indispensáveis para pastagem de seus gados e para conseguir estrumes, sem

os quais as terras pouco produziriam. “Também a tentativa de aforamento individual de um

baldio no lugar do Braçal (concelho de Torres Vedras) levantou, por volta de 1776, o

protesto dos moradores, que alegavam servir-se dele como pastagem dos seus gados e para

o estrume das suas terras” (Tengarrinha, id ibid, 158).

Novamente em São Martinho de Sande ocorreriam protestos, entre 1777 e 1780,

dessa vez contra a “tentativa de aforamento de uma parte do baldio (...) pelo abastado

lavrador Manuel José Mendes, que gozava de proteção da Câmara”. Também esse baldio

era utilizado como pasto para o gado.

Os agricultores do reguengo do Seixo no concelho de Montenor-o-Velho

protestaram em 1778, “contra a pretensão de alguns indivíduos poderosos, de fora da

localidade, de aforarem os baldios do reguengo” colocados como indispensáveis para o

gado para os primeiros A pretensão sobre os baldios, as melhores terras dos agricultores,

afetava de sobremaneira a estes, diminuindo sua capacidade de produção. Apresentavam,

então, os agricultores um requerimento à Coroa, onde demonstravam que tinham alguma

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disponibilidade econômica para cultivar as terras do reguengo. Nessa atitude ímpar, pediam

preferência de aforamento aos que já cultivavam naquelas terras.

Já no terceiro período, entre 1789 – 1807, Tengarrinha destaca como aspecto central

a mudança da finalidade da terra. Antes essa luta se caracterizaria por assegurar a

subsistência de quem trabalhava nela. Porém, aos poucos, as novas dimensões que surgiam

indicavam uma luta por meio de produção com vista ao lucro, a partir dos finais da década

de 1780 em Portugal, acompanhando as mudanças da agricultura internacional. 20

Notava-se também o declínio senhorial. “As lutas anti – senhoriais, que vimos

dominarem o período anterior, favoreceram a intensificação da dinâmica capitalista

incipiente sobre a posse e a exploração da terra” (Tengarrinha, Op.cit., 194).

A lei de 19 de julho de 1790 foi a primeira medida no sentido de aumentar as rendas

da Coroa, através do fomento da agric ultura para atenuar as revoltas no campo, atingindo,

assim, os direitos e prerrogativas senhoriais. Ela foi justificada pelas mudanças no tempo, o

incremento populacional, a complexidade seus interesses e dos donatários. Foram extintas

as ouvidorias e as isenções da correição.

Isto abalou o poder senhorial e a parcialidade, como também os poderes excessivos

dos juízes ouvidores, quase semelhante aos dos corregedores, em uma época onde eram

intensos os conflitos judiciais. Apesar disso, o poder senhorial enc ontrou formas de obstruir

através de desentendimentos de interpretações, que dificultaram sua aplicação. O alvará de

7 de janeiro de 1792 assim o demonstra.(Apud Tengarrinha, id. Ibidem, 198). Esta

resistência dos senhores, porém, conviveu ainda durante 30 anos, até a Revolução de 1820,

com as queixas dos agricultores contra os arbítrios cometidos pelos ouvidores.

Apesar de tudo, durante este período não desapareceu a influência senhorial na

20 Mesma data que Ferlini (1988) aponta para mudanças econômicas na América portuguesa que também levariam ao recrudescimento da luta pelo acesso a terra. Retornar-se-á a esta discussão noutro capítulo.

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justiça, principalmente devido ao fato de que a legislação de D. Maria I não havia

extinguido o direito que os donatários tinham e exerciam de propor “juízes de fora e

sancionavam os juízes ordinários” (Tengarrinha, id ibid, loc.cit.).

O conjunto de leis de 24 de outubro de 1796 teve um alcance mais significativo em

ferir os interesses senhoriais, conforme Tengarrinha. Foram extintos então os privilégios de

isenção das sisas e da décima dos rendimentos anuais de que gozavam eclesiásticos e

cavaleiros das ordens militares. Vale lembrar que já em 1763 e 1764, a décima havia sido

suspensa para os bens religiosos.

Estas leis de 1796 agravavam também as contribuições dos donatários para a Coroa

com o quinto dos rendimentos desses bens doados, além da décima que pagavam para os

seus outros bens. Foram suspensos também os privilé gios sobre alistamento militar e foi

sublinhada a precariedade da administração dos bens da Coroa pelos donatários.

A alta dos preços ocorrida entre 1789 e 1790 e a diminuição do poder senhorial

configuraram o desenho da crise estrutural do regime senhoria l. Ademais, o processo de

pauperização dos pequenos agricultores criou condições para uma maior mobilidade da

propriedade da terra.

O que autor tentou fazer foi uma história da dinâmica da propriedade no processo

crescente de mercantilização da terra, leva ntando dois problemas básicos: alguns posseiros

eram julgados como posseiros ilegítimos das terras, as quais já tinham sido demarcadas por

outro juiz e, tributos cobrados em excesso pelos contratadores. Contudo, o elemento

relevante desse processo foi o aumento da entrada dos camponeses nos meandros judiciais.

Em suma, o estudo de José Tengarrinha é elucidativo para mostrar a permanência de

duas lógicas de propriedade e exploração da terra, em Portugal, desde o século XIII até o

XVIII, mostrando a vitória da lógica mercantil ao findar o século XVIII. O mecanismo

central destacado pelo autor foi o avanço da justiça local na divisão de terras “abandonadas”

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e de terras concelhias, o que significava terras comuns. Encerrou-se, assim, a passagem do

princípio que orientara a legislação sesmarial, do cultivo para o objetivo precípuo de

sustentar a produção alimentar, para um princípio de cultivo com vistas ao lucro.

Para viabilizar a análise pretendida, torna-se necessário explicitar melhor os

pressupostos teóricos desse trabalho que servirão de base para problematizar o objeto de

estudo para o caso da América portuguesa.

Hespanha observa a necessidade de se atentar para a existência de um conflito

latente e efetivo entre duas sociedades na época do Antigo Regime: uma onde há um pólo

centrípeto, caracterizando o poder central e, outra, centrífuga, configurando o poderio local

em contraponto à centralização. Esse conflito latente, o qual pôde ser visualizado através da

análise das obras de Rau e Tengarrinha, se traduziria na própria construção das instituições

do governo centralizadas, ou em processo de centralização da Coroa e outras paralelas,

instituições descentralizadas em vários poderes locais, processo que desembocaria na

formação do Estado Moderno, somente a partir do século XVIII (Hespanha, 1989 e s/d).

A justiça é definida como um campo de atividades de poder. E, sendo uma prática

de poder tem que construir alicerces na comunidade para se legitimar. Assim, justiça e

governo são atividades de poder exercidas pe lo príncipe, cabendo a sua figura esta virtude.

No entanto, a própria justiça limitava sua ação. A idéia dominante recomendava que o

príncipe não podia exercer poder arbitrário sobre os súditos.

A justiça é a atividade que consiste na resolução de uma questão envolvendo

direitos distintos e contraditórios, de modo a atribuir a cada um o que lhe é de direito,

pressupondo uma investigação, para saber quem tinha o direito. Dessa forma, no Antigo

Regime, a justiça é a primeira e única atividade de poder.21

21 Em Portugal, somente com o Império, a justiça se separa do governo e quando se diferenciaram, coube ao governo também aplicar justiça.O governo iria, progressivamente, se tornando poderoso ao fazer e aplicar a lei.

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O autor distingue o poder da justiça sobre questões econômicas e políticas. As

econômicas seriam aquelas vinculadas a particulares e as questões políticas concernentes a

esfera pública. Acrescenta o conceito da graça, sendo esta um débito moral. A introdução

da graça no âmbito da própria justiça acaba diluindo as fronteiras entre o público e o

privado, entre o político e o econômico. Rigorosamente, porém, a graça é um ato que se

insere na esfera do econômico, pois a sua finalidade última é distribuir bens, favorecendo

uns em detrimento de outros e atribuir direitos para administrar bens que geram renda ou

proveito.

Em outro trabalho de Hespanha, escrito em parceria com Ângela Barreto Xavier

(Hespanha & Xavier, 1998), é utilizado o conceito de “economia moral” para dissertar

sobre o dom.A economia do dom pode ser conceituada como a instituição de dar e retribuir.

Insere-se, dessa forma, no campo dos poderes informais, da pluralidade de relações sociais

baseadas na lealdade, na amizade e na personalização das relações, que favorecem e cobram

lealdade, modernamente identificada como clientelismo. O objetivo dos autores é decifrar

tanto os diferentes níveis de poderes informais, quanto os mecanismos de instauração da

ordem nas sociedades pré-modernas.

Procuram buscar, além do universo jurídico, as formas informais e pouco visíveis de

ordenação. “Esta ordem normativa (...) constituía(m) o universo mental que condicionava as

representações e práticas sociais” (Hespanha & Xavier, Op. cit., 389). Assim, esse

ordenamento inf ormal estaria permeado por critérios de ordem pessoal, tais como o de

amizade, o de parentesco, e o de fidelidade. Esta lógica clientelar acabaria por instituir o

sistema de mercês aos mais próximos nas situações cotidianas.

A economia do dom seria o caso exemplar mais paradoxal: atos beneficiais que

estruturam as relações políticas. Dessa forma, a economia do dom encarnava estas práticas

informais de poder, ou seja, as redes clientelares, configurando as relações sociais e,

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conseqüentemente, as relações políticas, tornando-as públicas.

“Assim, era freqüente que o prestígio político de uma pessoa estivesse estreitamente

ligado à sua capacidade de dispensar benefícios, bem como a sua fiabilidade no modo de

retribuição dos benefícios recebidos” (Hespanha & Xavier, id ibid, 340). A economia do

dom apresenta-se, então, como uma economia de favores.

Desse conjunto de práticas deriva a possibilidade de estruturar alianças a partir de

uma reciprocidade entre os aliados, capitalizando este tipo de comportamento para objetivos

políticos específicos. Nesse sentido, estabelecem-se “redes de interdependência”. A

formação dessas redes pode ser vista como forma de resistência ao poder central.

Assim, esmiuçar as relações sociais e os interesses presentes em cada caso,

oferecerá um painel no qual o “universo constituído por pessoas que se movem, sobretudo,

em função de relações de proximidade clientelar” (Hespanha & Xavier, id ibidem, loc. cit) é

crucial, magnificando a prática cuja motivação se distancia da “razão do Estado”. A

desigualdade dos níveis de amizade é que estabelecerá as relações de poder entre ao homens

livres e as suas estratégias.

Hespanha também apresenta o conceito de deontologia, designando o estudo dos

princípios, da moral, como valores que estabelecem a diferença entre o campo da justiça e o

da administração. A superioridade da justiça sobre a administração está dentre estes valores.

Esta superioridade da justiça acarreta em duas conseqüências. A primeira é que toda decisão

política deve ser legitimada. A segunda, a ciência das coisas do governo, ou seja, a

prudência, opõe-se ao arbítrio, pois deve seguir regras estabelecidas, porém ainda tendo

como base o “dom”. O príncipe deve seguir os critérios do bom governo que deve conter o

justo e o útil. É este termo útil que o Iluminismo vai levar ao extremo.

Hespanha, tomando Portugal como referência empírica de sua teoria mostra como a

evolução do campo jurídico tornou-se um monopólio, reforçando o caráter hermético do

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saber jurídico especialista, processo que or iginaria a distinção entre a scientia legalis e o

conhecimento espontâneo do direito (os idiotae). No campo do saber jurídico especialista

forma-se uma nobreza de doutores e advogados, contendo aspectos morais para manter a

dignidade do ofício.

Dessa forma Hespanha conclui:

“O mundo judiciário de Antigo Regime, em Portugal como no resto da Europa Central e ocidental da época moderna, é um mundo fragmentado. Cada um de seus setores vive a sua própria tradição jurídica, cria o seu próprio pessoal, seleciona o seu domínio de objetos (de conflitos a resolver), prossegue as suas estratégias de composição. Existem, é certo, mediadores (advogados, escrivães) e vias de contato (nomeadamente, o recurso do tribunal local para o central). Mas as relações são, apesar disso, conflituais e refratárias. A plena comunicação de um mundo judicial transparente e universal, baseado na universalidade das normas jurídicas, na igualdade perante a lei e no saber profissionalizado de um corpo de juristas letrados, está ainda longe de se poder considerar adquirida” (Hespanha, s/d, 443).

A discussão conceitual ora resenhada contem aportes extremamente válidos para o

estudo da aplicação da lei de sesmarias por Portugal em sua colônia na América, em

especial para explicar a diversidade de conflitos que advém desta instituição. Poder-se-ia

identificar vários apontamentos da literatura discutida, tais como: a tentativa regulatória da

administração colonial na aplicação das sesmarias, sob a forma de suas diversas agências; a

real prática e derivação da nomeação e distribuição de competências, no estabelecimento

dos interesses dos que detinham o direito de regulação. Em outras palavras, os fatores

explicativos da transformação do Antigo Regime podem contribuir para entender o processo

de distribuição de sesmarias e suas decorrências, tendo como objetos principais o discurso

da lei e sua aplicação e a formação de redes de poder que se desenvolveram em torno da sua

administração.

Objetivando estudar o processo de institucionalização das sesmarias por parte da

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coroa portuguesa na sua colônia da América, seria interessante tentar identificar as

especificidades deste processo, analisando as formas de legitimação do domínio sobre a

terra e o processo de distribuição de sesmarias. Nesse sentido, a discussão historiográfica

recente sobre o Estado absolutista oferece um painel que permite visualizar o papel das

sesmarias no processo de ocupação das terras coloniais portuguesas na América em sua

dimensão econômica, social e política.

Por outro lado, a literatura referida permitiria analisar os meios de distribuição dos

lotes e as contradições provenientes desta prática jurídica, tornando possível enfocar

conflitos potenciais decorrentes das relações sociais estabelecidas entre os agentes da

administração colonial através de seus governantes.

Para uma concepção jurídica da terra que necessariamente busca definir os critérios

legais para estabelecer a diferença entre posse e propriedade e, mais, para diferenciar,

institucionalmente, aqueles que serão detentores do principal meio de produção da

agricultura e os despossuídos de terra, é profícuo explorar o papel ordenador ou

desordenador da administração colonial.

Em conseqüência, todas as possíveis relações entre a formação do corpo

administrativo colonial e a aplicação da Lei de Sesmarias na América portuguesa,

amparadas no levantamento e análise do corpo documental, encontram na historiografia

recente sobre o Antigo Regime alicerces indiscutíveis. Nesta perspectiva, seria possível

avaliar o impacto do esforço de institucionalização legal da posse e/ou propriedade no

universo rural em tela.

O tema das sesmarias afigura-se, então, como problema a ser melhor explorado,

pelas adaptações da administração colonial, em particular as dificuldades de

institucionalização das doações de sesmarias na colônia luso-americana por parte da

metrópole como hipóteses explicativas deste problema.

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CAPÍTULO 2

2. AS SESMARIAS NA AMÉRICA PORTUGUESA

Este capítulo tem como objetivo, em sua primeira seção, tratar a historiografia

brasileira sobre a questão de terras e sua relação com o processo de formação da sociedade

colonial. Em sua segunda seção, a partir da própria legislação, serão apresentados alguns

casos com base em documentos oficiais publicados nos Anais da Biblioteca Nacional,

Consultas ao Conselho Ultramarino depositadas no Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro, no sentido de ilustrar os diversos problemas decorrentes da ação embrionária de

gestão da América portuguesa e as novas situações que surgiram. Finalmente, na terceira

seção, é apresentado um novo conjunto de fontes que permite introduzir nova luz no estudo

da questão agrária no período colonial.

2.1 Colonização e colonos

Para o desenvolvimento deste trabalho tem-se como ponto de partida uma questão

fundamental, a colonização e os participantes desta. Embora se trabalhe com a terra, a

análise encontra-se diretamente ligada a quem estava produzindo e quem detinha a posse

desta: o colono que veio para esse território.

Um dos estudiosos que marcou a historiografia brasileira sobre colonização foi

Sérgio Buarque de Holanda. Em sua obra Raízes do Brasil diferenciou de duas formas os

europeus que vieram para o Brasil: o trabalhador e o aventureiro. O primeiro seria:

"... aquele que enxerga primeiro a dificuldade a vencer, não o triunfo a

alcançar. O esforço lento, pouco compensador e persistente, que, no entanto, mede todas as

possibilidades de esperdício e sabe tirar o máximo proveito do insignificante, tem sentido

bem nítido para ele seu campo visual é naturalmente restrito" (Holanda, 1995, 44).

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O segundo seria o aventureiro, que via nos obstáculos um trampolim para vencer as

dificuldades. Na visão de Holanda, os europeus que vinham para a América portuguesa

eram os aventureiros, pois “o que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas

riqueza que custa ousadia, não riqueza que custa trabalho” (Holanda, 1995, 49).

A imagem do colono como um explorador aventureiro, que veio para o território

português da América com o objetivo apenas da exploração, mas sem a motivação de

desenvolvimento do trabalho é marcante na obra do escritor.

Na mesma linha de pensamento de Holanda, na década de 1940, outro autor veio a

deixar seu legado. Caio Prado Jr. Ao estudar detalhadamente a economia colonial e os

portugueses que vieram para o Brasil ponderou em uma de suas mais importantes obras,

“Formação do Brasil Contemporâneo”:

Já vimos (...) o tipo de colono europeu que procura os trópicos e nêle permanece. Não é o trabalhador, o simples povoador; mas o explorador, o empresário de um grande negócio. Vem para dirigir: e se é para o campo que se encaminha só uma emprêsa de vulto, a grande exploração rural em espécie e em que figure como senhor, o pode interessar.(Prado Jr.,1965, 114).

Ora, tendo como base para seu estudo a economia de plantantion, o autor afirma ter

sido esse o motivo principal para não terem vindo colonos pobres, posto que não dispunham

de cabedais para a exploração, ou seja, em virtude de ser a montagem de um engenho

dispendiosa, somente podia vir para essas terras quem tivesse condições para a construção e

manutenção da produção. Portanto, o autor descarta a possibilidade da vinda de colonos

sem cabedais. A exploração do Brasil teria se dado por um explorador aventureiro, mas

associado ao trabalho, posto que este vinha para ser dirigente de produção. Trabalho esse

destinado para a colônia seguir o sentido da colonização, que seria apenas a de ser um

território onde a função era o enriquecimento da metrópole. Nas palavras do autor:

Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns

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outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois, algodão, e em seguida café, para o comércio europeu (Prado Jr., Op. cit, 26).

Quando o tema de referência é colonos, outra discussão conceitual deve ser

considerada: o significado de ser colono. Já foi apresentada a visão da historiografia

clássica sobre o colono como um aventureiro ou, um visionário, grande empreendedor que

veio à saga de riqueza. Um interessante conceito do “ser colono” foi abordado na obra de

Ilmar Rohloff de Mattos, no livro O tempo Saquarema (1994), onde o autor diferencia os

colonizadores, colonos e os colonizados. Os colonizados eram “aqueles ligados à esfera

administrativa; se leigos encarregados precipuamente do fiscalismo; se eclesiásticos,

empenhados na monopolização das almas” (1994, 21). Os colonos, por sua vez, estavam

relacionados com o domínio colonial, ou seja, com a posse da propriedade. E, além desses

grupos, existiam os pobres que se ligavam aos colonos através do trabalho.

Enquanto Mattos diferencia em três camadas os habitantes da colônia, Novais

propõe a existência de duas, entre os colonos e nativos, e posteriormente a inserção do

elemento africano que a dividiu em três.

Por definição, as gentes na colônia se dividem entre os colonizadores e os nativos (...) essa diversidade se acentuou com o tráfico negreiro, que acarretou para o Novo Mundo os contigentes de africanos” (Novais, 1993, 22-23).

Concorda-se com Mattos quando argumenta que existiam colonos e colonizados e

acredita-se que o elemento nativo, bem como os negros que foram trazidos na condição de

escravos, eram os colonizados. Contudo, é difícil crer que existisse alguma diferença entre

colonos e colonizadores.

É admissível que desde o mais rico europeu que veio para essa região, assim como o

mais pobre, fossem colonos/colonizadores. No momento que chegaram a essa parte do

Império, os portugueses recriavam laços distintos daqueles existentes em Portugal. Mas, de

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alguma forma, se tornaram semelhantes aqui do que nunca seriam na metrópole. A

similitude entre os vindos da Europa deu-se a partir de três atributos distintos: o primeiro

era o fato do ser católico cristão, depois o de ser branco e, por último, o de ser súdito

português.

A primeira diferença entre os europeus dava-se então pela religião. Posteriormente,

a questão da cor influía sobremaneira, uma vez que a escravidão e a subjugação dos povos

dava-se pela cor.

Ora, embora se encarassem de maneira distinta entre si no momento que chegaram

aqui, fosse o degredado, fosse um administrador, já se defrontavam com dois grupos

“diferentes e inferiores”, embora demograficamente superiores: os indígenas e os negros.

Portanto, quando se afirma da existência apenas de colonos/colonizadores e

colonizados cabe remeter-se a uma distinção que se dava, não no campo econômico, mas

sobretudo nas relações sociais, que traduziam o dia-a-dia relacional dessa sociedade.1

Pode se considerar que todos os colonos/colonizadores, a exceção do degredado que

vinha para saldar sua dívida com a sociedade portuguesa, estavam a procura de

enriquecimento e para isso deveriam explorar, pelo trabalho, a terra, e a enorme fronteira

aberta tornou-se uma das maneiras de se tentar o enriquecimento.

2.2 A historiografia sobre sesmarias na América portuguesa

Autores considerados clássicos enfatizam, por caminhos teóricos distintos, como

quadro característico da dinâmica sócio -econômica e cultural do Brasil colonial, a

predominância da classe dos proprietários rurais, com seu séqüito de escravos, ambos os

elementos dando suporte a um ideal de nobreza que se tornaria símbolo da identidade social

dos senhores de terras (Prado Jr, Op. cit. e Freire, 1977). 1 A esse respeito ver: FOUCAULT, 1990. No capítulo intitulado Prosa do mundo o autor trabalha com quatro níveis de similitude, e a partir desse estudo é que tiramos nossa conclusão acerca do colono e do colonizado.

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A sociedade dos senhores de terras e escravos emergente desta interpretação pode

ser desdobrada nos seguintes elementos definidores: 1) franca bipolaridade ou dualismo

social do Brasil colonial, anulando ou, no mínimo, reduzindo drasticamente a existência de

outros segmentos sociais (feitores, libertos, comerciantes, lavradores, etc.); 2) a hegemonia

exclusiva da elite proprietária rural no universo colonial brasileir o, reduzindo ao extremo a

presença de outros tipos de proprietários e detentores de riquezas (grandes e pequenos

comerciantes, exportadores e importadores, intermediadores financeiros, etc.); e 3) o

predomínio do patriarcalismo nas suas dimensões sociais e culturais é inerente a essa visão

historiográfica, apoiado na idéia de que o senhor de terras acumulava, de maneira exclusiva,

as atribuições de proprietário, legislador, magistrado, juiz, verdugo, estendendo seu reinado

sobre a família, escravos e agrega dos.

Este conjunto de elementos, acima sumarizados, converge para um padrão

interpretativo que, para além da historiografia clássica, tornou-se dominante no tocante ao

mundo colonial do Brasil. A versão econômica desta leitura está representada pelo modelo

"plantation", segundo Freire, e alicerçada na simplificada relação de apropriação explícita

do excedente gerado, conforme Prado Júnior, na colônia, pela metrópole.

Contudo, em relação aos mecanismos de acesso ou apropriação de terra, os

elementos levantados são muito poucos. Tanto Freire quanto Prado Júnior destacam a

divisão das grandes propriedades com os filhos de mestiços, legítimos e não legítimos,

como fator explicativo na fragmentação da "força das sesmarias feudais" e dos latifúndios.

Sobre a peque na propriedade, Freire menciona variações devido tanto a diferenças de clima,

quanto a contrastes psicológicos.

Ao utilizar a expressão "colônia em plantação", Freire aponta para a colonização

como uma "técnica econômica e uma política social", ambas inovadoras.

"A primeira: a utilização e o desenvolvimento de riqueza vegetal pelo capital e pelo esforço do particular; a agricultura; a

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sesmaria; a grande lavoura escravocrata. A segunda; o aproveitamento da gente nativa, principalmente da mulher, não só como instrumento de trabalho, mas como elemento de formação da família" (Freire, Op. cit., 120).

Nestas análises, a sesmaria continua, tal como no documento do século XVIII

apresentado na introdução, sendo vista como "instrumento para forçar o investimento

particular na colonização", investimento este que "dispôs-se a vir povoar e defender

militarmente (...)"(Freire, id ibid, loc. cit.), ou seja, não há questionamento quanto aos

mecanismos legais e/ou reais de funcionamento do sistema de sesmarias e, menos ainda,

sobre possíveis conflitos, convergindo para uma história reduzida a uma relação de dois

pólos: senhor de engenho versus escravos.

O processo de apropriação ou apossamento da terra não foi levantado pelos autores

em tela. Mais complicado, talvez, é o fato de sempre fazerem referência às grandes

propriedades rurais, levando a crer que havia títulos de propriedade. Porém, a carta de

sesmaria diferia da propriedade, pois era um título de posse que dava direito ao usufruto da

terra. Em Portugal, também não havia títulos de propriedades. As terras eram da coroa. Ao

longo do processo de conquista do território, o rei dava o direito de posse aos senhores da

nobreza que participaram do processo de expulsão dos mouros, estabelecendo uma relação

que pode ser designada de propriedades eminentes2, e que continuou ao longo da época

moderna. Assim, deve-se ter como referência de origem o feudalismo, evitando a

consideração de que o Antigo Regime tenha simplesmente rompido com essas práticas.

Enfim, os autores clássicos, ao colocarem o patriarcalismo no centro das relações sociais,

poderiam ter alargado sua importância ao tentar mostrar uma das ações materializada na

figura do senhor de terras: a distribuição de novos lotes a seus pares.

2 A única que registrava suas posses era a Igreja com a preocupação de mantê-las e também pelo domínio do latim. Cf. Oliveira Marques, 1987.

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Apoiando-se em Prado Jr., o histor iador Fernando Novais (1993) mostrou que a

colônia tinha como "sentido" a exportação de matérias-primas para a metrópole. Em recente

trabalho, o autor reafirma sua concepções iniciais, porém absorvendo às críticas que foram

feitas ao seu estudo,

[...]procuramos, em trabalho anterior, articular a exploração das colônias ao processo de formação do capitalismo; disso resultava que a colonização tinha um caráter essencialmente comercial, voltada para fora, mas, para além disso, compunha um mecanismo de estímulo à acumulação primitiva de capital mercantil autônomo ao sistema. A externalidade da acumulação aparece, pois, nesta análise, como estrutura básica, no plano econômico, definidora da colonização" (Novais, 1997, 31).

Mesmo tendo absorvido parte das críticas feitas ao seu trabalho anterior, o autor

continua dando pouquíssima importância a acumulação interna, ou seja, para Novais o

modelo que permeia o seu estudo é justamente o que Prado Jr. mostrou na década de 1940,

da colônia como fornecedora de produtos para a metrópole.

Concorda-se que foi a partir do objetivo de obtenção de riquezas para a

metrópole, que se estabeleceram as bases da colonização. Desejo esse que era corroborado

pelo próprio sistema econômico da época, o mercantilismo. Esse sistema longe de ser um

estágio de transição, possuía uma dinâmica própria, e assim foram direcionadas as práticas

econômicas portuguesas durante praticamente três séculos e através dessas que as colônias

foram geridas.

Os autores aqui apresentados como leitura obrigatória para se entender a sociedade

colonial, relegaram a segundo plano a diversidade dos estratos sociais que estruturavam

essa sociedade, ou seja, uma sociedade que encontrava-se completamente hierarquizada,

tanto em relação aos naturais da terra e aos negros, quanto aos próprios europeus.

Diversidade esta que se dava nas relações cotidianas da população. Essa questão, sobre a

qual este estudo se debruça é fundamental pois, uma parte do trabalho de dedica a uma

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camada da população que, sem condições de se tornarem dirigentes de produção, inseriram-

se na formação colonial e acabaram por encontrar formas para garantir a sobrevivência.

Uma das primeiras obras a fazer críticas a Prado Jr. e seus seguidores foi a de Ciro

Flamarion Cardoso; trabalhando com o marxismo histórico, corrente que norteou várias das

produções acadêmicas desde meados dos anos de 1960, lançou a teoria do escravismo como

modo de produção para o Brasil. Nessa obra, o autor procura explicar uma outra relação de

produção que teria se dado na colônia brasileira, onde os escravos garantiam sua

subsistência a partir de plantações feitas nas terras do respectivo proprietário (Cardoso,

1987).

Seguindo os passos de Cardoso, surgiu, na década de 1970, outra obra marxista, a de

Jacob Gorender. Essa propunha a tese de uma economia bissegmentada, ou seja, a colônia

teria um setor mercantil e um setor natural, este último responsável pela produção

alimentícia.

...a produção para consumo doméstico se processava necessariamente, em grande proporção, sob forma de economia natural dentro da própria plantagem, isto é, como produção de autosubsistência da unidade produtora (1978, 220).

No entanto, Gorender continuou a dar excessiva ênfase a saídas de cabedais em

detrimento da acumulação interna deste , estando mais preocupado com a economia

mercantil do que com o setor da economia natural. 3 É certo que não se pode fazer uma

crítica pelo que o autor deixou de abordar. Contudo, o que se ressalta é que a falta de

pesquisa sobre da economia interna, acabou por comprometer os sistemas criados para a

explicação da dinâmica colonial, pois se acredita que ambos estão intrinsecamente

relacionados.

3 Para um detalhado estudo sobre economia natural ver: SILVA, 1990, Cap. III.

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As obras de Stuart Schwartz (1987) e Vera Ferline (1988) sobre o nordeste

açucareiro nos mostraram haver, na socie dade escravista, uma camada intermediária de

homens pobres e livres. Esses foram os que se dirigiram para a colônia por variados

motivos, mas que chegando no território encontravam dificuldade em manterem-se

economicamente, e a única maneira de garantir a sobrevivência era logrando trabalho. É

importante lembrar que, a partir da década de 1980, alguns estudos de caso começaram a

analisar mais de perto a questão da produção e a questão da mão de obra, verificando que

para além do trabalho escravo existia uma enorme diversidade na população trabalhadora.

Os vários estudos de caso4 nos propiciaram a abordagem de um novo enfoque sobre a

colonização e a produção alimentícia.

Percebe-se que os modelos clássicos criados para explicar a economia e sociedade

negligenciaram a elasticidade do tecido social em formação na colônia, acabando por

relegar a um segundo plano aspectos fundamentais da dinâmica social, que, por certo,

comprometeram a análise econômico-social. Acredita-se que a análise foi feita de fora para

dentro, ou seja, com uma visão da metrópole para a colônia. Procurou-se estabelecer as

bases da economia colonial a partir de algumas teorias do mercantilismo, e perdeu-se de

vista a dinâmica econômica interna e, conseqüentemente, a social.

Neste estudo, entende-se a colônia como extensão diferenciada, mas não oposta, do

território português, que necessitava se sustentar para enviar o excedente à metrópole, não

desconsiderando que a colônia foi o lugar por excelência de exploração. Porém, isso não

impedia a acumulação interna de cabedais, pelo contrário, a necessidade de auto-sustento

leva a suposição lógica de que desde o primeiro momento existisse uma acumulação de

riqueza por parte dos colonos. A historiografia recente percebe uma acumulação interna de

4 São estudos importantes entre outros: MOTTA, 1989 e SILVA, Op.cit.

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cabedais, porém esses trabalhos estão delimitados nos séculos XVIII e XIX, dentre outras

obras podemos citar: Manolo Florentino e João Fragoso (1993).

A visão dominante sobre o Brasil colonial, vem sendo relativizada por pesquisas

mais recentes, que evidenciam a existência, neste período, de uma dinâmica social mais

complexa do que a sugerida pela interpretação clássica.

Estas novas leituras, embora não neguem a importância da economia agrária

escravista, enquanto referência de base da dinâmica econômica que vincula a colônia à

metrópole e, sobretudo, o caráter pilar de natureza social e cultural representado pelo

mundo patriarcal oriundo do latifúndio agrário escravista, o universo da riqueza no Brasil

colonial, documentado por estas últimas interpretações pouco tinha de homogêneo.

Sem querer esgotar o assunto, Silva (1990), ao estudar os problemas de

abastecimento e as crises de subsistência na colônia, mais especificamente na Bahia e no

Rio de Janeiro, dedica um capítulo à estrutura fundiária. Ao quantificar as cartas de doações

no Rio de Janeiro, constata uma primeira grande ocupação das terras na região em volta do

recôncavo fluminense logo na sua fundação, entre 1568 e 1620. A segunda grande ocupação

teria ocorrido em fins do século XVII e começo do XVIII na atual região de Campos e Cabo

Frio. Finalmente, após 1711, com a descoberta das minas, ultrapassando a Serra do Mar e a

abertura do Caminho Novo, existiu uma nova fase da ocupação das terras no que é hoje o

estado do Rio de Janeiro.

Ao comparar a concentração fundiária entre estes dois estados, verificou que o Rio

de Janeiro teve um perfil menos concentrador de terras, a julgar pelas dimensões das áreas

doadas em sesmaria. Mesmo assim, o crescimento das extensões de terra de alguns colonos

foi motivo de grande preocupação por parte da coroa que, através de vários alvarás e ordens

régias, principalmente ao longo do século XVIII, tentou "inquirir" os títulos de alguns

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grandes posseiros e, "não os possuindo, caberia ao poder real legitimá-los ou redistribuí-los

para outros" (Silva, Op. cit., 336).

Contudo, o que o autor chama de grande propriedade ainda é caracterizada como

elemento estrutural da colônia. A questão para Silva é por que foram doadas dimensões tão

vastas desde os primórdios da colonização, tentando buscar explicações para a "voracidade"

com que se monopolizou as terras. Aponta, primeiramente, a necessidade da reserva de

energia. Grandes extensões de terra abrangeriam mais florestas e conseqüentemente mais

madeira. Mas, para este historiador, a possibilidade de arrendamento realizado pelos

grandes possuidores de terras é o que explicaria esta questão. Desse modo, introduz um

novo elemento social na colônia: o "arrendante"5. Os possuidores de grandes lotes

asseguravam, assim, a ocupação destes, além de garantir um foro. Ademais, para explicar a

origem destes procedimentos recorre a dois institutos jurídicos típicos da península ibérica

ao final da Idade Média: a noção de senhorio enquanto detentor de uma jurisdição sobre

uma porção de terras, e o arrendamento como um "prazo", ou seja, a cessão de uma porção

de terras em troca de determinadas obrigações.

Silva, no entanto, ao finalizar a análise da questão da posse da terra, adverte que :

"o alcance dos conflitos coloniais por terras é de grande importância, principalmente quando envolve rendeiros, para matizar, suavizar, a versão da facilidade de acesso à terra através da posse intrusiva. Se, como pensamos, o monopólio da terra é um elemento estrutural do sistema agrário e pilar da estrutura de poder e prestígio da sociedade colonial, a defesa da posse sesmarial e a necessidade do contrato, escrito ou não, é um dado fundamental para a compreensão do funcionamento desta sociedade"(Silva. Op. cit., 355. Grifo nosso).

Desta forma, o autor tem o grande mérito de propor novas interpretações sobre o

problema do acesso à terra dentro da historiografia nacional, apesar de não aprofundá-lo.

5 Segundo SILVA, a Igreja tinha o costume de comprar terras vizinhas visando o seu aforamento. "A prática de estabelecer foreiros nas terras recebidas não era uma característica dos grandes domínios laicos mas, uma prática colonial generalizada" (Silva. Op. cit., 348).

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Dois estudos recentes relativos às possibilidades de deslocamento da fortuna,

sugerem que o estrato mercantil detinha o controle de uma atividade bem mais lucrativa do

que a agricultura, mas que, no final, optava por adquirir terras (ou imóveis urbanos), em

função de um "projeto arcaico" de ser senhor de terras, este sim, no "topo da hierarquia

social"(Fragoso e Florentino, 1993, 71-100; Faria, 1998).

Nesse sentido, a preeminência da classe mercantil corresponderia ao papel

nevrálgico desempenhado pela atividade comercial - interna e externa - enquanto alavanca

da economia colonial: a atividade agrária na economia colonial. Essa, precisava ser irrigada

pela reposição permanente de mão de obra escrava, de crédito e financiamento, dependendo

de uma vasta rede de agentes de comércio interno e externo. A conexão externa, por

requerer vultosos capitais para enfrentar as flutuações do comércio negreiro, do comércio de

exportação de produtos agrícolas em grande escala e do comércio de importação de

equipamentos e implementos agrícolas de porte, concentrava a riqueza e detinha o

verdadeiro controle da economia. No comando da cadeia de endividamento típica da

economia do Brasil colonial, a elite mercantil conduzia assim, os mecanismos de

reprodução dinâmica da estrutura colonial.

O mundo dos de baixo reservava o último degrau da escala social aos escravos.

Contudo, configurava-se um mundo social intermediário entre o universo escravo e os

vários segmentos sociais proprietários. Embora, a divisão social do trabalho fosse frágil,

havia já não desprezível contingente de libertos vivendo no entorno das propriedades rurais.

Ademais, havia um conjunto importante de portugueses que introduziam-se de preferência

nas atividades de comércio que movimentavam a circulação interna de mercadorias entre

regiões. Este mundo, em particular, reunia pequenos mercadores (vendeiros, mascates,

pequenos lojistas), negociantes de fazendas, financistas usurários.

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A este mundo intermediário não estava vedada a possibilidade do acesso modesto ao

controle dos fatores de produção (terras, mão-de-obra, alimentos). Embora os autores desta

corrente considerem que a margem de mobilidade fosse nessa sociedade muito restrita, o

panorama oferecido por estas interpretações admite a possibilidade real, por parte dos mais

pobres da estrutura social, de algum horizonte de acumulação (Fragoso e Florentino, Op.

cit, 79). Com relação ao mundo dos menos pobres, pesquisa documentada de Faria (1998)

mostra evidências para a região de Campos (antiga Capitania da Paraíba do Sul) da

passagem móbil na linha comerciante/ lavrador/senhor de engenho. Ainda que esta

mobilidade fosse longa e não automática, a autora evidencia que processos reais de

acumulação de riquezas se processavam através de casamentos entre comerciantes

portugueses e filhas de proprietários de terras (Faria, Op. cit., 125).

Faria também discute o fato de a pobreza presente na hierarquia da colônia ter

acarretado na promoção de fluxos geográficos, ou seja, deslocamento de moradores de uma

região para outra, o que teria ocasionado o surgimento de conflitos pela terra. A autora, a

partir de histórias de vida, mostra que famílias pobres residentes na Capitania da Bahia e do

Espírito Santo, movidas pela pobreza, eram expelidas da região por não terem terras.

Um estudo recente particularmente relevante no que diz respeito às preocupações

deste trabalho é Nas Fronteiras do Poder de Márcia Maria Menendes Motta (1998), onde a

autora se questiona sobre

"a maneira pela qual estes indivíduos [homens livres e pobres presentes no universo rural escravista] procuraram assegurar o seu acesso à terra ou a forma pela qual eles se relacionavam com os grandes fazendeiros, no jogo da luta pela posse de uma parcela" (Op.cit., 8).

Nesse sentido, destaca, a partir da discussão sobre a Lei de Terras de 1850, como

esta lei teria vindo para complicar o já complexo processo legislativo sobre o mundo rural.

Apesar de se tratar do século XIX, se remete ao tempo das sesmarias para buscar a origem

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dos problemas que teriam corroborado para os problemas fundiários brasileiros, tanto na

legislação anterior - as Ordenações - quanto na Lei de Terras, relacionando os processos de

apropriação territorial às formas pelas quais estes agentes sociais teriam buscado legitimar

sua ocupação.

Na procura da origem e subseqüente extensão dos domínios coloniais e tendo como

base a visão de Thompson sobre a lei como um espaço de conflito, mostra em seu trabalho

como os fazendeiros - os quais, segundo os as expressões de época, denomina senhores e

possuidores de terras - consolidavam seu poder e prestígio, ao forjar títulos de propriedade

"falseando nos cartórios locais, com a conivência de tabeliões e testemunhas" (Motta, 1998,

106). Inovando nas fontes - Processos de Embargo, de Despejo e de Medição de Terras além

dos Registros Paroquiais de Terras - realiza um mapeamento dos conflitos no campo jurídico

entre os posseiros, grandes e pequenos, no atual município de Paraíba do Sul, para entender

"por que as medições e demarcações das terras de sesmarias feriam os interesses dos grandes

fazendeiros, fazendo com que eles insistissem em descumprir as Ordens Reais" (Motta, id

ibidem, 40), concluindo que:

"para os fazendeiros, ser senhor e possuidor de terra implicava a capacidade de exercer o domínio sobre as suas terras e sobre os homens que ali cultivavam (...). O que importava pois para os fazendeiros não era a medição e demarcação tal como o desejavam os legisladores. Medir e demarcar, seguindo as exigências da legislação sobre as sesmarias, significava, para os sesmeiros, submeter-se à imposição de um limite a sua expansão territorial, subjugar-se - nestes casos - aos interesses gerais de uma coroa tão distante" (Motta, Op. cit. 42-43).

Assim, este último trabalho é notável por discutir a questão do exercício da lei e do

domínio da lei e as possibilidades dos agentes sociais recorrerem à justiça pelos seus

direitos. Mesmo com o aparecimento de novos estudos sobre a sociedade e a riqueza

colonial, no entanto, a questão da estrutura agrária e sua legitimação no período colonial

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continua por ser melhor explorada. Nesse sentido, um esforço alternativo de análise, indica

a necessidade de recorrer à matriz dos juristas para verificar a abordagem acerca do assunto.

2.3 A contribuição dos juristas

Costa Porto e Ruy Cirne Lima, a partir de suas obras Estudo do sistema Sesmarial e

Pequena História Territorial do Brasil: sesmarias e terras devolutas, respectivamente,

retomam as mesmas indefinições legais e os problemas decorrentes da aplicação do

exercício da Lei de Sesmarias e o seu domínio já assinalados no registro de Teixeira

Coelho6. A ausência, em todas as suas edições7, de definição do tamanho dos lotes a serem

doados é enfatizada por Costa Porto como fato singular na legislação, relatando que "não

determina a lei a área das datas, fixando, apenas, este princípio básico" (Porto, 1965, 37). O

princípio básico era o cultivo. No enunc iado da lei a tônica do tamanho é relativa: "serão

avisados os sesmeiros que não dêem maiores terras a uma pessoa que as que

razoavelmente parece que no dito tempo as poderão aproveitar" (Ordenações Manuelinas.

Livro IV, Título LXVII).

Enfim, destacam um ponto em comum entre Portugal e as terras na América: "a

existência de solo sem cultura"(Porto, Op. cit., 52). Porém, a imprecisão legal da lei de

Sesmarias torna-se elemento importante que foi "transplantado" para a América portuguesa,

estabelecendo como diferentes as causas, os objetivos e os métodos de fiscalização

vislumbrados na lei.

Em primeiro lugar, diferenciam as causas, afirmando que:

6 Vide introdução. 7 A lei de 1375 foi incorporada pelas Ordenações Afonsinas (1446), Manuelinas (1511-12), Filipinas (1603)bem como na recompilação realizada no período da Restauração, com algumas mudanças ao longo dos tempos. Na sua primeira edição, não há referência alguma às palavras sesmaria ou sesmeiro. Estes termos vão aparecer nas Ordenações Manuelinas que se iniciam conceituando nosso objeto de estudo: " Sesmarias são propriamente aquelas que se dão de terras, casas ou pardieiros, que foram ou são de alguns senhorios, e que já em outro tempo foram lavradas e aproveitadas, e agora o não são, as quais terras, e os bens assim danificados e destruídos, podem e devem ser dados de sesmarias pelos sesmeiros que para isso forem ordenados.

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"no Reino, a incultura resultando do descaso dos senhorios que, indolentes, nem o trabalhavam, nem deixavam que outros o cultivassem, donde o remédio drástico do confisco, para redistribuição entre os que não tinham terras; no Brasil, decorrência da carência de braços, da falta de população, pois a conquista se apresentava um deserto humano" (Idem).

Com relação aos objetivos, estes também seriam distintos. Enquanto em Portugal

"distribuía-se o solo a fim de possibilitar a produção e, com ela, assegurar o

abastecimento; no Brasil, visava-se, de certo, à produção, mas tendo-se em vista, de

maneira precípua, o povoamento, mesmo porque não havia população para abastecer"(Id.

Ibidem). Aliás, a análise da prática da distribuição de sesmarias enquanto política de

povoamento é a grande contribuição dos juristas brasileiros estudiosos do direito agrário do

século XX. Na perspectiva de aprofundar o tema, o estudo de Fragoso sobre a formação de

cabedais, atribui às sesmarias, enquanto política de colonização, serventia qualitativamente

nova na sociedade colonial em formação: como forma de distribuição de mercês,

assegurando ao rei a sua rede clientelar (Fragoso, 2002).

Finalmente, sobre a fiscalização, Porto afirma que, pelo fato de as autoridades

envolvidas no processo de doação e medição de sesmarias residirem nas vilas, ficavam

impotentes ao ignorar o que se passava no interior. Nesse intuito, utiliza como argumento a

exegese das Ordenações, mostrando o não cabimento de sua aplicação no Brasil. Tendo em

vista que em Portugal as terras dadas em sesmaria eram, anteriormente, terras de um senhor

que não estavam lavradas, no caso da América portuguesa, não havia senhores e muito

menos terras que estivessem lavradas. Da mesma forma, o sesmeiro não podia saber de

quem eram as terras, visto que não pertenciam a ninguém. Assim, Costa Porto critica o fato

de a lei de sesmaria ser tão evasiva.

Já o problema da administração não seria devido, somente, à falta de pessoal em

geral, mas à de pessoal especializado, sobretudo letrado. Entretanto, Costa Porto levanta

uma observação que merece reflexão. "Enquanto, no Portugal de D. Fernando, de D. João e

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de Duarte, a distribuição de terras de sesmaria gerou, em regra, a pequena propriedade, no

Brasil foi a causa principal do latifúndio" (Porto, Op. cit., 59-60). Dessa forma, pelo fato de

a lei não prescrever as dimensões dos lotes a serem dados em sesmaria, somado à carência

de fiscalização, o jurista Costa Porto aponta a sesmaria como origem do latifúndio no

Brasil.

"Em si mesmo, sem dúvida, o sesmarialismo mostrava-se 'polivalente', tanto podendo levar à pequena, como à média ou à grande propriedade, porque não havia, na lei, nenhuma fixação objetiva das extensões das áreas a distribuir, tudo reduzido ao critério, vago, das possibilidades do aproveitamento. Desta sorte, se o pequeno lavrador recebia courelas miúdas, outro, de maiores recursos, poderia receber porção maior, bastando pudesse cultivá-la" (Idem).

Contudo, os últimos estudos da historiografia se distanciam do determinismo

geográfico explicativo do sucesso ou do fracasso relativo das sesmarias apontado por Porto

e têm mostrado a comple xidade do problema agrário colonial, complexidade que não se

limita ao tamanho dos lotes. Não é a lei de sesmarias per se o fator determinante desta

complexidade. Na realidade, os conflitos gerados na América portuguesa ultrapassavam as

contingências e os mecanismos de administração previstos na aplicação da legislação

sesmarial, estando também presentes outros elementos da dinâmica social que

transformaram a problemática das sesmarias. Esta proposição se tornará mais clara no

capítulo 3, onde o contexto e o relato analítico das marchas e contramarchas de um conflito

fundiário são resgatados mostrando os interesses envolvidos numa disputa judicial.

2.4. A documentação sobre terras para a América portuguesa.

O objetivo desta seção é apresentar um levantamento de um conjunto de

documentos referente à legislação e outros problemas no tocante à terra. A leitura da

legislação possibilita verificar a diversidade de temas, questões e decisões tomadas por

autoridades diante de casos específicos. Contudo, os problemas apresentados nessa

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documentação não permitem, ainda, a generalização das situações. Apesar de coloquial, a

expressão muito utilizada no Brasil "cada caso é um caso", é de grande utilidade para

explicitar a idéia. Para um estudo dos reais problemas fundiá rios na América portuguesa

haveria a necessidade da contextualização dos casos específicos encontrados nas fontes, já

que é este o método que definiria e problematizaria, da maneira mais correta, cada questão

apresentada na documentação. Uma síntese viria logo a seguir. A contextualização é que

possibilita apresentar o fato de as diversas áreas coloniais serem díspares. Da mesma forma,

a legislação está aberta à margem da temporalidade e da espacialidade, sendo redefinida

localmente. A apresentação de situações específicas que foram geradas em diferentes

regiões, por leituras diferentes da lei, permitem instigar futuros pesquisadores para se

debruçar sobre a riqueza da documentação e encorajá -los a estudar tais casos, contribuindo

para uma melhor compreensão da nossa história. Não é, portanto, objetivo elucidar cada

caso aqui apresentado. No capítulo 3, foi escolhido um caso que será minuciosamente

analisado.

2.4.1. Sesmarias Primordiais na América portuguesa

É recorrentemente apresentada na historiografia como o primeiro documento

referente à América portuguesa que trata de sesmarias a carta de foral dada pelo rei a

Martim Afonso de Souza em 1532. Este capitão donatário foi a primeira pessoa habilitada a

doar terras em sesmaria para efetuar o povoamento da colônia. Em sua carta o rei ordenava:

"Por esta minha carta lhe dou poder para que elledito Martim Affonso de Souza possa dar às pessoas que consigo levar, e às que na dita terra quizerem viver e povoar, aquela parte das ditas terras que bem lhe parecer, e segundo lhe o merecer por seus serviços e qualidades, e das terras que assim der será para elles e todos os seus descendentes, e das que assim der às ditas pessoas lhes passará suas cartas, e que dentro de dous annos de data cada hum aproveite a sua e que se no dito tempo assim não fizer, as poderá dar a outras pessoas para que as aproveitem com a dita condição; e nas ditas cartas que assim der irá trasladada esta minha carta de poder para se saber e todo o tempo como o fez por meu mandado,

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e lhe será inteiramente guardada a quem a tiver" (Apud Miranda, 1983, 9-13).

Sob a autoridade dessa carta régia foram concedidas de sesmaria por Martim

Afonso de Souza terras na ilha de Guaíbe, em 1531 a João Ramalho e a Braz Cubas, em

Piratininga, 10 de outubro de 1532.

A par dessa carta régia, outras duas foram passadas a Martim Afonso de Souza,

a primeira autorizando-o a tomar posse das terras que descobrisse e a organizar o

respectivo governo e a administração civil e militar e a segunda conferindo-lhe os

títulos de capitão-mor e governador.

Com relação ao povoamento da Capitania do Rio de Janeiro, na primeira carta de

sesmaria registrada, Diogo de Oliveira, escrivão da Câmara da cidade do Rio de Janeiro,

dirigia a petição ao rei solicitando que os enormes rocios que ha viam ao redor de onde se

instalaria a vila, esperando já que fosse bastante povoada "e alem dos moradores que ora

tem, virem muitos do Reino, e de outras partes viver a esta terra", fossem dados de

sesmaria para pastos de gados e agricultura, podendo ser 3 léguas pouco mais ou menos.8

Já na primeira tentativa de estabelecer a vila, o procurador do "Conselho"9 e os

demais oficiais da Câmara da Cidade requeriam a imediata medição e demarcação das terras

do "Conselho" para assegurar as ditas terras, argumentando que eram muito necessárias

para a sua conservação. Ainda nesta petição, referiam-se a S. Majestade como Sesmeiro e a

função "q he dar e conceder de sesmaria toda a terra", apesar de Rau ter indicado que em

Portugal do século XVI já não se fazia referênc ia ao termo.

As terras que estiverem dentro dos termos e limites da Cidade de São Sebastião, que

eram 6 léguas para cada banda, que não forem dadas a pessoas que as aproveitem ou posto

que fossem para as tais pessoas a que se deram e não aproveitaram ou para outra qualquer

8 Primeira carta de sesmaria do Rocio concedida ao conselho do Rio de Janeiro, em 10 de outubro de 1567. IHGB. Lata 42, pasta 11. 9 Este conselho é o mesmo é o mesmo concelho, representativo da municipalidade.

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que estiverem vagas poderiam dar de Sesmaria a quem, lembrando que não se desse a cada

um mais terra daquela que pode aproveitar

"com as condisoes e obrigasoens do foral dado as suas terras

de minha Ordenasaõ do [2o] 4o Titulo das Sesmarias, e com tal

condisaõ q a tal pesoa ou pesoas vivaõ e rezidaõ na Capitania, outras

q asim lhe forem dadas ao menos 3 anos, e q dentro no tempo as naõ

posaõ vender nem a (?), e se alguma pesoa aquem forem dadas terras

no termo e limite da Cidade as tiverem perdidas pelas naõ

aproveitarem e volas tornarem a pedri Vós lhas podereis dar de novo

com as condisoens e obrigasoens".

As terras não poderiam ser vendidas sem licença do Governador. Após os três anos,

tendo eles feito algum proveito e plantando alguns mantimentos as poderiam vender, dar, e

doar, e fazer tudo o que bem lhes parecesse como "de couza fica propria q he livre e

izenta". Contudo, já em 1571, o rei reduziu o prazo de três anos para um, talvez como

expressão da preocupação de tornar a ocupação e povoamento mais rápido e eficaz.10

Na mesma época, para a região nordeste da América portuguesa, nas primeiras

concessões de sesmarias, mesmo havendo a confirmação pelo cultivo, não havia a medição,

já que nesse tempo não era necessária, como visto numa carta régia 11 de 1570 que dizia:

“...Faço saber aos que esta Carta de Confirmação dadas das

terras de sesmarias virem que por parte de Simão da Gama

d’Andrade Fidalgo de minha casa me foram apresentadas dois

instrumentos de dada sesmaria para sempre de umas terras (...) tinha

feito na dita terra, que lhe foi dado de sesmaria um engenho

d’assucar o melhor que havia nas ditas terras (...) lh’o confirmo, e hei

10 "Trenslado de um alvará do rei de Portugal, ordenado a Cristovão de barros, que está enviando por Capitão ao rio de Janeiro, para conceder terras de sesmaria aos moradores de São Sebastião do rio de Janeiro". De 27/10/1571. IHGB, Lata 768, pasta 1. Col. Enéas Martins Fº. Original encontra-se no AHU, códice 112, Conselho da Fazenda, Livro 1, fl. 216. 11 “Carta Régia de 27 de março de 1570 de confirmação de sesmaria”. In: Documentos para a história do açúcar, 1954, 227.

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por confirmadas, e mando, que se cumpra, e guarde inteiramente

para sempre ao dito (...)”.

Já em 1590, foi emitido o alvará12 para que o governador D. Francisco de Souza, em

benefício da povoação e lavoura, doasse terras de sesmarias a todos as pessoas que com sua

mulher e filhos viessem para qualquer parte do Brasil, ou seja, os novos povoadores que

tivessem família:

“Eu El-Rey, Faço saber aos que este meu Alvará virem, que

pela informação que tenho do grande benefício (...) lhes sejam dadas

terras de sesmarias, para nellas plantarem seus mantimentos e

fazerem roças de canaviaes para sua sustentação, as quaes terras hei

por bem que se repartam com as taes pessoas, por D. Francisco de

Sousa (...) cumpra e guarde este meu alvara inteiramente como nelle

se contem, o qual quero que valha como Carta (...)”.

Ainda em 1677, num regimento ao governador do Estado do Brasil, a questão do

povoamento através das sesmarias estava presente, até porque a colônia apresentava pouca

população, e segundo o documento, "aquelle estado hé de terras novas a maior parte muito

futil, e convem para se aumentar e povoar, tratarse da povoação dellas". Era

responsabilidade do governador incentivar a edificação de novos engenhos de açúcar,

através de privilégios ou isenções, obrigando os que tiverem terras a povoarem de sesmaria

e os que não cumprissem se lhes tirassem as mesmas e as dessem a quem as cultivasse na

forma do regimento das sesmarias.13

Em data posterior, o rei reclamava numa carta escrita em Lisboa a 7 de dezembro de

1697, apresentando alguns requerimentos, que algumas pessoas solicitavam em Portugal a

confirmação de datas de terras de sesmarias concedidas com excesso na quantidade de

12 “Alvará de 8 de dezembro de 1590 sôbre doação de sesmarias a todas os novos povoadores com família”. In: Documentos para a história do açúcar, 1954, 377. 13 "Regimento, do governo do Estado do Brasil (23/01/1677)". In: Index. Livro I.

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léguas e, ainda, sem sitio determinado impossibilitando a cultura das ditas terras com

semelhantes datas. O rei advertia, então, que somente fossem concedidas sesmarias de três

léguas em comprido, e uma de largo, que era o que se entendia, podia uma pessoa cultivar

no termo da lei, porque o mais era impedir que outros a povoassem a que os que pediam, e

alcançando não cultivam. 14

No ano seguinte, o rei enviou uma carta a Artur de Sá e Menezes em resposta à que

ele havia escrito sobre não conceder as sesmarias mais do que três legoas de cumprimento,

e uma de largo,

"pelos inconvenientes que de contrario se tem experimentado, e vós me reprezentais de novo, para achardos que muitas terras que vossos antesseçorez derão de sesmaria estão sem, se cultivarem, passandoçe annos inumeraveis, por se darem a pessoas que não tem peçoes para as cultivar, e as que tem possibilidades se acharem sem ellas do que se segue grande prejuizo a minha [do rei]fazenda".

Para evitar o dano da disparidade de terras de sesmaria, ordenava lançar bando, para

que todos apresentassem em termo conveniente as suas sesmarias, sob pena de passado o

termo as perderem, e se derem a outros, e apresentando-as,

"e não mostrando que as tem povoadas, e cultivadas se lhes asignem dous annos para as cultivarem, ou venderem a quem as cultive com denegação nesta parte de se lhes não dar mais tempo, e faltando a esta alternativa se julgue por devoluta para se darem a quem tiver cabedal para as cultivar, e se houver data por cultivar de mais de tres legoas de cumprido e hua de longo que é o que hum morador pode cultivar no termo de ley tendo poçes, a este donatario se lhe deixará esta quantia para a cultivar, ou a vender nos dous annos referidos, e a mais se repartará a quem cultive". Escrito em Lisboa a 22 de outubro de 1698. 15

14 "Carta regia, para senão dar mais terras por sesmaria, que tres legoas de cumprimento, e hua de largo". In: Index . Livro 1. 15"Carta para o governor do Rio de Janeiro fazer (cansar) bando para todos os que tivessem sesmarias as aprezentarem, e as que fossem aprezentadas, e se os demos não mostrassem as tinhão povoadas, e cultivadas se lhes assignassem dous annos para o fazerem, ou venderem a quem as cultivasse, e que faltando a esta alternativa, se julgasse por devoluta para se darem a quem as podesse cultivar, e na mesm apena incorriao os que tendoas as não aprezentassem". In: Index. Livro 1.

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Em outra carta dirigida a Artur de Sá e Menezes, o rei avisava que estava informado

pelo ouvidor geral da comarca de Sergipe de El Rey, em carta de 20 de junho de 1698, de

que constava que nos distritos de sua comarca eram dadas muitas datas de terras de

sesmarias de léguas excessivas. Para evitar o dano "aos meus vassalos moradores nesse

estado da dezigualdade desta repartição, e ainda ao prejuizo que della se segue a minha

fazenda" , ordenava o cumprimento das ordens que se tinham passado nesta matéria,

estabelecendo que os capitães mores que eram subordinados ao governador fizessem o

mesmo, e que nas datas sesmarias que daqui em diante se derem se declare que serão

obrigados a pedirem confirmação ao rei. Escrita em Lisboa a 23 de novembro de 1698. 16

Em 1702, nova carta escrita pelo rei e dirigida a Artur de Sá e Menezes, ordenando

a execução de um edital em todas as capitanias da jurisdição desse governo, para que todos

os sesmeiros ou donatários que tivessem datas de terras nas tais capitanias, apresentassem,

dentro de seis meses, as confirmações e cartas ou documentos legais que deles tiverem, e a

notificação de donatários e sesmeiros, daqueles que não tivessem ainda documentação legal,

para que dentro de dois anos, fossem demarcadas judicialmente pelo ministro. Conservava

ainda a posse daqueles em que estiverem em terras, e os donatários ou sesmeiros que não

apresentassem os títulos delas poderiam dar a quem estivesse ocupando efetivamente.

Escrita em Lisboa a 3 de março de 1702. 17

Dirigindo-se ao governador Luiz Vahia Monteiro, em 15 de março de 1731, que em

18/04/1730, passou a informação que recebera do governador de São Paulo, Antonio da

Silva Caldeira Pimentel, acerca das sesmarias que o rei confirmara naquela capitania serem

16 "Carta regia ao governador do Rio de Janeiro para que hajão de serem confirmadas as cartas de sesmaria por S. Magestade concedendo se para esse efeito os annos que forem conveninetes, conforme a distância." In: Index. Livro 1. 17"Carta regia para o governador do Rio de Janeiro mandar por hum edital em todas as capitanias da jurisdição de seu governo para as sesmarias, e donatários e aprezentarem dentro em seis mezes as confirmaçõens e cartas delles; e as que estiverem correntes, senão notificados seos donnos para as fazer demarcar juducialmente no termo dos dous annos pelo ministro que sua magestade lhe conceder, e que no interim, serião conservados na posse em que estivessem; e ficarião privados dellas os que sem aprezentrem em título fizerem as tres mediçoens". In: Index. Livro 2. Há uma cópia no IHGB, Coleção Enéas Martins Filho. Lata 772, pasta 39.

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só de meia légua, apesar de que os governadores tenham dado extensão aos sesmeiros, e

acusavam os prejuízos que a estes se seguia desta restrição, a qual somente podia ter lugar

no caminho das minas.

Ordenava, assim, que as sesmarias que se houverem de dar nas terras donde havia

minas, e nos caminhos para elas seja somente de meia légua em quadra, e que no mais

sertão seja de três léguas como está determinado, e que para ditas sesmarias se concederem

sejam também as câmaras avisadas e as que se deram nas margens dos rios caudalosos, que

se forem descobrindo por esses sertões e necessitam de barca para se atravessarem não deis

sesmarias, mais que de uma só margem do porto, e que da outra reserveis ao menos meia

légua para ficar em publico. 18

O rei Dom João avisava a Luis Vahia Monteiro, governador da capitania do Rio de

Janeiro, que estava informado de que alguns donatários estavam usando da jurisdição das

suas terras sem terem cartas de doações, o que era contra o real serviço e nesta consideração

ordenava mandar por em seqüestro as que se achavam possuídas sem título legítimo,

tomando-se posse delas por parte da coroa. Lisboa a 10 de fevereiro de 1737. 19

Já o rei dom José, ao responder uma petição de confirmação de sesmaria, chamava

atenção para a demora dessa confirmação. Segundo o solicitante, Miguel de Oliveira, ele

ocupara terras no termo da vila de São Jose do Rio das Mortes, em 1748. O pedido da

confirmação só aconteceu em 1757, nove anos depois da ocupação. O rei indagava sobre a

18 "Ordem de S. Magestade pelo conselho ultramarino, pela qual ordenna o mesmo senhor que as sesmarias que se haverem de dar nas terras onde haverem minnas, e nos caminhos para ellas, seja somente de meia légua em quadra, e que no mais certão sejão de tres leguas, como estava determinado, e que para as ditas sesmarias serem concedidas, sejão também ouvides as cameras dos resoectivos destritos; e as que se derem nas margens dos rios caudalozos, que se fossem descobrindo pelos certoens, de barca para se vadearem, senão daria sesmaria mais que de hua só margem do porto, rezervando da outra ao menos meia légua para ficarem beneficio publico". In: Index. Livro 3. 19 "Ordem do concelho ultrmarino porque S. Magestade determinna ao governador do Rio de Janeiro mande por em sequestros, e tomar posse por parte da coroa das terras dos donatarios que não tiverem carta de doação dellas." In: Index. Livro 2.

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demora, e no caso de haver cultivo se a terra fora dada a outra pessoa, como a lei

determinava.20

2.4.2. Índios e sesmarias: uma relação especial

Uma das primeiras tentativas de atrair os índios para incorporá-los aos interesses da

Coroa portuguesa, foi um alvará de 1587, ordenando que se dessem terras de sesmarias para

aqueles índios que "desceram" os sertões para que pudessem fazer as suas lavouras.21 Não

era estabelecido limite, porém as áreas cedidas deveriam ser medidas e lançadas nos livros

das câmaras. O que diferenciava esta doação de sesmaria das outras era a não determinação

de prazos para a lavoura. As terras cedidas ao gentio eram doadas "para todo o sempre e não

podem ser tomadas em tempo algum".

Ainda no século XVII, esta matéria estava contida no regimento do governador do

Estado do Brasil, datado de 1677. Segundo o regimento, a principal causa de se mandar

povoar partes do Brasil foi possibilitar que o gentio viesse ao conhecimento da "santa fé

católica", e solicitava um "particular cuidado" repartindo-lhe as terras, conforme as leis que

costumeiramente tinham sobre sua liberdade, "de maneira que entendão que em se fazerem

christãos não somente ganhão o espiritual, mais também o temporal", sendo exemplo para

outros se converterem; da mesma maneira os gentios deviam ser favorecidos.22

Para a Capitania do Rio de Janeiro, o regimento do governador Manoel Lobo, de 1679,

mantinha a decisão de conceder terras ao gentio, principalmente pelo fato de que estavam se

tornando cristãos:

"A principal cauza que obrigou aos senhorez reys meus predecessorez que mandarão povoar aquella capitania, e as mais do estado do Brazil foi a reducção do gentio dellas, a nossa Sta. Fé Cathollica, e

20 "Ordem Real ao Governador do rio de janeiro para que informa sobre a situação da terra doada a Miguel R. de Oliveira: se foi doada a outro sesmeiro por falta de confirmação, caso contrario que se lhe passe a carta de sesmaria com os limites certos". 1757. IHGB, Lata 772, pasta 56. 21 "Alvará ao provedor da Fazenda, para que se dê terras de sesmarias ao gentio que desceu do sertão para fazer suas lavouras". De 21/08/1587. In: Manuscritos relativos ao Estado do Brasil. Coleção feita por ordem de Sua Magestade Imperial. Conselho Ultramarino, p. 73. 22 "Regimento, do governo do Estado do Brasil (23/01/1677)". Op.cit.

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asim vos encomendo facais guardar aos novamente convertidos os prevellogioz que lhe são concedidoz repartindo lhes terras conforme as leys que tenho feito sobre sua liberdade, e fazendo lhe todo o mais favor que for justo de maneira que entendão que em se fazerem christãoz, não somente ganhão o yspiritual, mas também o temporal, e seja exemplo para outros se converterem com seuz agravos, e vexaçoenz provereiz conforme minhas leys, e provizoenz, dandome conta do que se fizerm como tambem as aldeaz que há quem administrar, no esperitual, e temporal, e se o faz de modo que vão em augmento, e não em diminuhição".23

Com relação à falta de terras que dessem sustento aos indígenas, o rei ordenava aos

donatários e sesmeiros que possuíssem terras nos sertões, que cada missão cedesse uma

légua de terra em quadra para sustentação dos índios, e missionários, com declaração que

cada aldeia devia se compor ao menos de cem casais "porque pertençe aos indios",

estabelecendo também a fundação das igrejas que

"se fação nas terras das sesmarias, e donatarios, conforme o bispo entender, que convem para a cura das almas, e para se lhe administrarem os sacramentos, dando conta no tribunal a que pertencer, e os taes parochos se darão aquelas porções de terra que correspondão, as que ordinariamente tem qualquer dos moradores, que não são donatarios, ou sesmarias, e que possão ser logradouros das cazas que tiverem para que possão crear comodamente as suas galinhas, e vacas, e ter as suas egoas, e cavallos sem os quais nenhum podera perder o certão",

sendo esta lei de responsabilidade dos ouvidores gerais que deviam determinar o distrito e a

medição das ditas terras. O rei alertava também que se admitiriam as denúncias contra

aqueles donatários, ou sesmarias que depois da repartição feita, impedissem aos índios, o

uso delas, ficando aos denunciadores por premio a terça parte, não passando esta de três

léguas de cumprido e uma de largo. Escrita a 23 de novembro de 1700. 24

23 "Regimento dirigido a D. Manoel Lobo, governador da Capitania do Rio de Janeiro". In: Index. Livro I. 24"Alvará em forma de ley em que se determina as terras que se hão de dar para se situarem as aldeas das missõens e para sustentação dos messionarios: Que as fundaçõens das igrejas se fação nas terras dos sesmeros, e donatarios, conforme o bispo entender; e que aos tais parochos se darão aquellas porçõens de terra que correspondão as que ordinariamente tem qualquer dos moradores que não são donatarios, a sesmarias". In: Index. Livro I.

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Da mesma forma, a luta contra os indígenas revela a dificuldade de instalação,

situação já mencionada por Faria (1996) como no caso do Regimento25 de Luiz Alvaris, que

indicava a ida de soldados para uma serra onde encontravam-se os tapuias com a intenção

de expulsá-los para instalação de famílias no local:

“(...) se mandem para o sítio das dos Tapuiyas do orobó, que ora mando destruir; por serem inimigos nossos, e dos mesmos Payayases (...) me pediram lhes mandasse dar vinte cinco Infantes para com os seus soldados penetrarem aquele sertão e se defenderem dos Tapuyas, que estão na dita serra, para onde pretendem levar suas famílias (...) assim pó haverem sido terras suas (...)”.

2.4.3 Sesmarias e acumulação de ganhos: surgimento de conflitos

O primeiro documento encontrado por esta pesquisa que estabelece a cobrança de

dinheiro pela carta de sesmaria, foi o "Regimento do Secretario do governo do Rio de

Janeiro dado a Francisco Monteiro Coelho" de 1689. Entre outros documentos com seus

respectivos valores, estava que

"De cada carta de sesmaria oito mil e trezentos e sesenta reis dos quais tirara seis contos e corenta reis para dito official, com declaração que havendo as ditas sesmarias, e tendo escrivão que a elle toca escrever em todos os despachos tocantes a ellas, e não ao dito secretario".26

2.4.4. Sesmarias nas áreas das minas

A abertura do caminho novo por Garcia Rodrigues Pais para a região das minas bem

no início do século XVIII, levou a uma demanda por terras que visavam abastecer as tropas

que transportavam gêneros para os povoamentos em formação. Conseqüentemente, ocorreu

um enorme aumento nos pedidos e na concessão de sesmarias, como também uma grande

ocupação "não-oficial". Essa abrupta migração ao longo do caminho novo acarretou em

problemas de disputa por áreas. Alguns desses possuidores de terras no caminho do Rio de

25 “Regimento que se passou ao Ajudante Luiz Alvaris para ir passar as Aldeias da Jacobina para a serra de Orobó” de 21/12/1657. In: Documentos Históricos, 1928, 57. 26 In: Index. Livro I.

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Janeiro para as minas, na picada que abriu Garcia Rodrigues Pais, requeriam ao rei para que

na medição se privilegiassem os mais antigos, sendo concedidas e confirmadas sesmarias. A

preocupação desses possuidores estava na facilidade com que se tinham concedido datas de

terra,

"que realmente não cabem na extensão do dito caminho por serem mais as Sesmarias que as léguas que há de uma e outra parte" e alegavam que todos poderiam caber se os novos tivessem agido de boa fé, já que "os mais modernos sem impedimentos dos mais antigos sesmeiros, pois como todos estavam sem demarcação certa, nenhum podia assinalar o que pertencia à sua data"

e assim foram todos alargando suas terras.

Denunciavam, então, que vários sesmeiros ocupavam áreas que iam além de suas

lavouras e também que alguns dos ma is antigos tentavam expulsar os recém estabelecidos.

Reafirmavam que aqueles que estavam cultivando na área havia mais de 20 anos já tinham

adquirido "perfeito domínio" e não consideravam justo que depois de terem feito

consideráveis despesas ao cultivar as terras e beneficiar os caminhos, outros viessem se

assenhorear dessas terras que não as cultivaram, "utilizando-se assim do trabalho e despesa

alheia sem nunca a fazerem própria". Lembravam que a lavoura era cultura dirigida ao bem

público e utilidade da real fazenda com o acréscimo do dízimo. A solução estaria na

redução das testadas de frente para o caminho novo, pois "muitos os Sesmeiros resulta

serem mais as lavouras e, em consequência muito acrescentados os dízimos".27

Já em 1711, o Conselho Ultramarino, ao analisar a carta do Governador do Rio de

Janeiro, Francisco de Castro Moraes, sobre as terras dadas aos moradores, ratificava que

nenhum morador pudesse ter mais que duas roças em terras de sesmaria, com objetivo de

haver muitos mantimentos e moradores, tornando o caminho mais tratável.

27 "Requerimento dos proprietários de terras no caminho do Rio de Janeiro para as minas, na picada que abriu Garcia Rodrigues Pais, para que, na medição que ora se faz a pedido dos mais antigos, seja considerado que, tendo sido concedidas e confirmadas sesmarias que não cabem no dito caminho, seja estas reduzidas em suas testadas, completando-se a mesma legua de terra para as ilhargas do sertão". IHGB, Lata 772, pasta 66. Coleção Enéas Martinhs Filho.

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Informando-lhe que supostamente tais pessoas possuíam terras por títulos de

sesmarias que receberam dos governadores e adquiriram o domínio

"d’ellas de sorte, que sem tacto seu lhe naõ podem ser tiradas, nem diminuidas ainda em utilidade publica salvo (...) em dous cazos; o primeiro tendo mais terra do que as ordens de Vossa Magestade facultavaõ, porque o resto se poderia dar a outro; o segundo se se naõ achavaõ confirmadas ou cultivadas no termo que se lhes assignou, porem n’este caso deviaõ ser ouvidos os possuidores e convencidos e assim lhe parecia".28

Dessa maneira, era evidente a preferência por sesmarias de pequena extensão por

parte da Coroa portuguesa, geralmente uma légua em quadra. Era, segundo a administração

metropolitana, o suficiente para uma pessoa cultivar. Além do que sesmarias com grandes

extensões poderiam causar grande inconveniente, tendo em vista que com o "tempo, em que

haja senhores taõ grandes e poderozos que naõ so vexem os pobres, mas que se atrevaõ a

levantar o cólo contra Vossa Magestade".

Com a consulta ao Conselho Ultramarino, mais uma vantagem era apontada para

incentivar o maior número de povoações: "a necessidade que há em haver neste caminho

muitas e repetidas povoações, para se facilitar melhor a communicaçaõ, e serem mais

baratos os mantimentos, pois quantos mais houver mais baratos serão". Assim, o

barateamento dos gêneros alimentícios também fazia parte de um plano estratégico na

distribuição de sesmarias ao longo do caminho novo.

Da mesma forma, consagravam que uma pessoa poderia ter apenas uma sesmaria,

ordenando aos funcionários da administração colonial que, ao fazer o controle da medição,

verificassem quais títulos os possuidores dessas terras apresentavam e, caso o possuidor

quisesse ter mais terras, "poderá ter outras, ou por compras ou por heranças", jamais por

sesmarias, apesar de reconhecerem que "por este modo se viria a recahir no mesmo danno

28 "Sobre o que escreve o Governador da Capitania do Rio de Janeiro, acerca da forma com que se devem dar as terras de sesmaria no Caminho das Minas, e que as prossa dar até os Campos, e vae a carta que se acusa ". Lisboa, 08/05/1711. IHGB, Arq. 1.2.24 - Volume 24, pp. 30-32.

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que se procura evitar, fazendo-se mui poderosos em grande prejuizo daquelles moradores, e

do serviço de Vossa Magestade".

Há também uma carta régia datada 7 de maio de 1703 e endereçada a Dom Alvaro

da Silveira e Albuquerque ordenando para que essa capitania, e as mais do sul abundassem

em gados, e podendo-se prover com eles as minas sem lhes ser necessário abrir porta dela

para a Bahia, e se evitar os descaminhos que desta comunicação podiam ocorrer aos quintos

do ouro. Ordenava, assim, que desse em sesmaria a maior parte que fosse possível das terras

dos campos das minas que se estendiam para a ponte dessa capitania até junto a Serra dos

Órgãos a que mais perto fosse do Rio de Janeiro, com obrigação de cada um dos donatários

pôr um curral de gado dentro de dois a três anos no sítio que se lhe desse.29

O rei, ao ouvir seu conselho ultramarino, determinou que as terras em que

houvessem minas e nos caminhos para elas, fossem somente de meia légua em quadro. E

que no sertão fossem de três léguas como estava determinado. E para as ditas sesmarias ser

concedidas, elas tivessem que passar nas Câmaras dos sítios a que elas pertencem para

serem ouvidas. E as que dessem nas margens dos rios, tinham que ter uma embarcação para

navegar de uma margem a outra, ou se fosse somente de uma margem do rio, a outra tinha

que se reservar meia légua para ficar em público.

As sesmarias que não passassem em suas respectivas câmaras, não seriam

concedidas e para saber se isso estava sendo cumprido, mandava registrar nos Livros da

Provedoria.

Também sobre o tamanho das terras nas áreas de minas, há uma carta do vice-rei

para o Conselho Ultramarino, apresentando suas preocupações com o tamanho das dadas de

29 "Carta regia em que ordenna sua magestade se dê de Sesmaria a maior parte que for possível das terras dos Campos das Minnaz que se estendem para a parte da capitania do Rio de Janeiro, te junto à Serra dos Órgãons, a que mais perto for, com obrigação da cada hum dos donatarios por hum curral de gado dentro de dous té tres annos no sitio que se lhe dar." In: Index. Livro 2.

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terras doadas aos descobridores30. O rei escreveu sobre a conquista no sertão daquela

capitania feita pelo vice-rei do Brasil, Vasco Fernandes César de Meneses e com as

descobertas de ouro e sua cobrança em forma de quinto:

“... a disposição destas minas se deve cometer provisionalmente ao vice-rei, mandando-se-lhe declarar que não é conveniente tenham efeito as datas de que fez mercê aos dois descobridores porque pode suceder que seja tanta extensão de terra que se sigam gravíssimos prejuizos de se engrossar tanto em cadedal um só homem quanto mais que ficando estes senhores de todas as terras de que fizeram descobrimento ... e se deve escrever ao vice-rei que a estes descobridores possa fazer mercê de uma sesmaria na forma das ordens de Vossa Majestade a respeito da Capitania da Bahia, que são três léguas de comprido e uma de largo, cada sesmaria, com declaração que se no distrito das ditas sesmarias se houver erigir alguma vila, serão obrigados a largar o sítio necessário para ela e seus logradouros, o qual se lhes compensará em outra parte”.

Já na área das minas na região de Cuiabá, o Provedor e Intendente da Fazenda Real,

Manoel Rodrigues Torres, na ausência do governador, em 1741, apontava um

"desgoverno", já "que cada um toma as terras que lhe parece", sem que fosse através do

instituto das sesmarias, titulo que justamente dava o direito de as possuir. Relatava um caso

de habitante com dois currais com poucos gados ter se apossado de 20 léguas. Acusava que

principiavam a fazer fazendas de gados, havendo dúvidas entre os fundadores dessas

fazendas, "por que cada um quer ser senhor de meio mundo para trazer os seus gados, e

naõ daõ logar para que se façam mais fazendas".

Solicitava que cada um fosse conservado nas terras apossadas que pudessem

cultivar, e que fossem medidas, para se lhe passarem as cartas, por onde constasse o

domínio e posse delas. Requeria também que para os gados não se concedesse sesmaria a

uma pessoa com mais de duas léguas em quadra. No caso de não ser para o gado, que fosse

30 “Carta do vice-Rei do Brasil, a respeito das descobertas de minas de ouro, cobrança dos quintos e remessa de amostras” de 08/07/1728. In: Documentos Históricos, 1950, 161.

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de apenas uma légua para assim "se acommodar mais povo". Todas deveriam ser

confirmadas em três anos.31

2.4.5 Domínio útil e domínio efetivo: o cultivo legitimando o pedido

O instituto das sesmarias criava a possibilidade da legitimação da posse pelo

cultivo, ponto certamente, mais importante dessa legislação. Muitos habitantes da colônia

faziam primeiro as suas lavouras e diante do argumento da terra cultivada, princípio básico

da lei de sesmarias, requeriam a carta de sesmaria da área lavrada, bem como a sua

confirmação, como mostra o documento cedido a Marcos da Costa Castelo Branco, no ano

de 1708, em reposta a sua petição de umas terras no caminho para a região das minas, onde

"mandou fazer uma roça, para que o caminho se freqüentasse com mais brevidade, tendo nele os Mineiros os mantimentos necessários, de que resulta o aumento da Fazenda de Sua Majestade, (...) e quer ele suplicante que Vossa Senhoria lhe conceda uma data de terras de Sesmaria, no lugar da dita roça",

sendo atendido já que aquelas terras estavam devolutas e não haveria prejuízo de terceiros.

As suas terras deveriam ser confirmadas em dois anos.32

Dessa forma, a posse com cultivo era legitimada, no sentido de corroborar com os

princípios básicos da lei de sesmaria. Afinal, o objetivo era povoar e lavrar as terras. Não

havendo outros impedimentos para a doação da terra, o rei fornecia o documento oficial

sobre a terra.

2.4.6. Dificuldades do controle régio

31 "Dá conta o Provedor e indendente da Fazenda Real das Minas do Cuiabá, Manoel Rodrigues Torres, do incomodo que se segue aos ministros e oficiais d’ellas não serem pagos por aquella Provedoria e do abuso de tomarem os moradores para si as terras que lhes parece’ sem as pedirem de sesmarias." Lisboa, 09/02/1741. IHGB, Arq. 1.2.2 - Volume 31, pág. 219v. 32 "Teor da Carta de Sesmaria concedida ao Capitaõ Marcos da Costa Castelo Branco por D. Fernando Martins Mascarenhas de Lancastro aos 10 de maio de 1708, no Rio de Janeiro." (Cópia do Arq. Publico do Império). (Lata 772, pasta 36 - Coleção Eneas Martinhs Fo, 2p)

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A Coroa sempre tentava regular os abusos, apesar da grande barreira geográfica. No

caso da Capitania do Maranhão, foram dirigidas três cartas régias ao mesmo governador

geral do Maranhão Antonio d’Albuquerque Coelho de Carvalho, com o mesmo conteúdo

em menos de um ano 09/01/1697, 07/12/1697 e 10/12/1698.

Na primeira carta, acusava que já em vinte de junho de 1696 dava conta de o

governador ter dado várias sesmarias a algumas pessoas, moradores na Bahia, Rio de São

Francisco e outras povoações das terras descobertas pelas tropas desse Estado. 33

Lembrava que tinha determinado a obrigação de pagarem os dízimos nessa

Capitania, e as terras seriam para a criação de gados. E na dada destas terras devia seguir o

que estava ordenado e não estender a jurisdição ao que não lhe tocasse e as sesmarias não

deveriam exceder três léguas de comprido e uma de largo, devendo ser cultivadas no termo

da lei.

Na segunda carta, advertia ter ciência de que o governador estava concedendo terras

de sesmarias com excesso na quantidade das léguas e, ainda, sem sitio determinado,

impossibilitando a cultura das ditas terras; relembrava que somente concedesse sesmarias

de três léguas de comprido e uma de largo que era o que se entendia que podia uma pessoa

cultivar no termo da lei "porque o mais he impedir que outros povôem os que podem e

alcançaõ naõ cultivaõ".34

A terceira carta foi motivada por uma resposta a uma suposta dúvida do governador,

enviada em 14/07/1697 sobre as datas das terras de sesmarias que eram para estabelecer

currais de gados e cavalos, que careciam de quatro léguas em quadra. Ademais as ditas

terras não eram capazes de outra cultura por serem desertas e distantes dos povoados.

Contudo, o rei insistia na medida original de três léguas por uma. Como solução, dada por

33 "Carta régia ao governador geral do Maranhão Antonio d’Albuquerque Coelho de Carvalho, sobre as datas das terras de sesmarias se lhe ordena as deve dar na forma que lhe está ordenado." Lisboa, 09/01/1697.IHGB, Arq. 1.2.24 - Tomo V, pág. 213 v. 34 "Carta Régia ao Governador Geral do Maranhão. Sobre se não concederem mais que tres leguas de terra de sesmaria em comprido e huma de largo". Lisboa, 07/12/1697. IHGB. Arq. 1.2.24 - Tomo V, pág. 219 v.

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possibilidade que se dessem sesmarias com duas léguas de largura e duas de comprido que

faziam quatro léguas quadradas.35

Da mesma forma, o Sr. Pedro da Mota e Silva, em 12/03/1755, que ocupava algum

cargo importante da Capitania do Piauí, ao remeter os contratos dos dízimos foi consultado

sobre a distribuição de sesmarias na região, tendo em vista que ao Secretario d’Estado dos

Negócios da Marinha e Ultramar, Diogo de Mendonça Costa Real, não foi apresentado um

parecer sobre a consulta, sendo obrigado a suspender a distribuição das terras. Contudo,

essa autoridade informava que já se estavam fazendo as vistorias para regular de acordo

com a lei. 36

2.4.7. Conflito de competência

Na documentação impressa na coleção Documentos Históricos da Biblioteca

Nacional encontra-se um parecer do Conselho Ultramarino, respondendo sobre um

problema de jurisdição de uma causa, envolvendo disputa de terras que esbarraria no

conflito de competência. Maria Ferreira denunciou Manuel de Moura Brito por ter tomado

posse indevidamente de uma porção de terra. O réu, ao perder a causa recorreu ao Tribunal

da Relação, alegando que o caso fora julgado por um Juiz Conservador das Madeiras que

não tinha alçada para resolver o caso. O Conselho Ultramarino respondeu que como o

ouvidor o nomeara para o cargo sem distinguir-lhe qual a sua alçada, o que deveria ter sido

feito, estava aberta uma jurisprudência. Dessa forma, o Conselho Ultramarino pedia ao

35 "Carta régia ao governador geral do Maranhão. Sobre a duvida que se lhe ofereceu a praticar-se a resolução que tomou acerca das datas de terras de sesmarias." Lisboa, 10/12/1698. IHGB. Arq. 1.2.24 - Tomo V, pág. 229v. 36 "Carta de Pedro da Motta e Silva ao Marquês de Peralva, remetendo os últimos contratos dos dizimos do Piauí e sobre as consultas tocante as sesmarias do mesmo estado." Lisboa, 12/03/1755. Arq. 1.2.10 - Tomo 2, p. 298.

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ouvidor que regularizasse a situação do Juiz Conservador para que esse tivesse a mesma

alçada dos ouvidores da comarca da cidade do Rio de Janeiro.37

Em 13/03/1731, o Rei Dom João passou ordem régia, através de seu representante

Gregório Dias da Silva, que fosse nomeado no lugar do Ouvidor Geral da Capitania de são

Paulo, para a resolução de um problema entre governadores da capitania do Rio de Janeiro e

São Paulo, e os Padres da Companhia que tomaram umas terras, mudando uma estrada que

foi danoso aos povos 38. Ou seja, a máxima autoridade régia nomeava uma terceira pessoa

para resolver um problema, aparentemente simples.

Verifica-se também na documentação, a associação entre poder e bens materiais.

Em 29/10/1751 gerou-se um conflito envolvendo o patrimônio das câmaras das vilas de

Russas, Icó e Aracati na Capitania de Pernambuco e do Ceará que, na verdade, refletia a

disputa pela possibilidade de conseguir cargos políticos 39:

“Para satisfazer o Conselho a esta real ordem se viu nele a representação dos ditos oficias da câmara da vila do Aracati em que se queixam do procedimento com que o ouvidor daquela capitania Alexandre de Proença lemos os constrangeu a desistirem da causa que corria com o sargento-mor Matias Ferreira da Costa, sobre a meia légua de terra de que Vossa Majestade lhe fez mercê na criação da mesma vila para patrimônio daquela câmara e repetem a súplica que seus antecessores já haviam feito pedindo para têrmo da dita vila a freguesia de Russas”.

“... a dita súplica se havia ordenado ao governador da Capitania de Pernambuco, por Provisão de 17 de julho do ano próximo passado, informasse com seu parecer ouvindo por escrito o ouvidor do Ceará, que ouviria também por escrito a Câmara a que pertence a dita freguesia...”.

“... assim enquanto se não fizer a referida divisão dos termos, os moradores que habitarem na distância que há de nove léguas entre

37 “O ouvidor geral do rio de Janeiro dá conta a respeito de se haver determinado na relação daquela cidade em uma causa que para ela fora por apelação e corria perante ele como juiz conservador das madeiras da mesma cidade, não ter alçada alguma aquêle lugar, e representando as razões que lhe obstam para observar esta determinação para Sua Majestade determinar qual seja a sua alçada e vão as certidões que se acusam” de 09/01/1754. In: Documentos Históricos, 1929, Vol. 94., p. 265. 38 “Diligência sobre terras que tomaram os padres da Companhia”. In: Documentos Históricos, 1928. Vol. 1. p. 178-179. 39 “Parecer do Conselho sobre a divisão dos têrmos e terras das freguesias das Russas, Iço e Aracati, para que suas Câmaras possam ter o número de pessoas para o desempenho de funções” de autoria do Conselho Ultramarino, de 29/10/1751. in: Documentos Históricos, 1951

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a nova vila do Aracati e a freguesia de Russas possam ser eleitos para os cargos da Câmara da dita nova vila...”

Ainda no Ceará, o capitão-mor, Antonio Jose Vitoriano Borges da Fonseca,

solicitava ao rei que se fundassem vilas nos sertões “na falta de observância das leis e

ordens de Vossa Majestade e que seria muito conveniente ao bem comum daqueles

povos”.40 A criação de vilas sugeria a instalação de uma administração pública ou que

houvesse juizes ordinários “para se refrearem os excessos e insolências dos facinorosos”

(DH, 1933, 113). Da mesma forma, solicitava maior criação dos cargos de “ministros de

letras, ou para juizes de fora, ou para ouvidores melhor utilidade resultaria à administração

da justiça e à paz pública nos sertões do Brasil” (Idem, 113).

Dessa forma, o Conselho Ultramarino indicava que para cada distrito se desse a

extensão de quatro léguas ou mais de terra, conforme a qualidade e extensão das mesmas.

As despesas para a instalação das vilas poderiam ser pagas com o rendimento dos

aforamentos das terras, sempre se respeitando proporcionalmente a possibilidade de cultivo

e número de moradores. Deveriam ser assinalados os termos e divisões pelo ouvidor da

comarca. Contudo, as terras que ficassem dentro de sesmarias, seriam confiscadas em

benefício do bem público.

2.4.8 Ideogenia e idiossincrasia da legislação sesmarial: distribuição régia de mercês e

rede clientelar

O rei, numa carta régia de 174441, destinada ao provedor da fazenda real da

Capitania de São Paulo, concedeu o aumento de algumas sesmarias, tendo em vista o fato

de que o governador cedia sesmarias com poucas terras. Justamente porque o rei só

40 Documentos Históricos, 1933, Vol. 92. p 111. 41 “Condições para a concessão de datas de terra de sesmaria” de 16/04/1744. In: Documentos Históricos, 1928. p. 467 a 469.

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concedia nesta capitania meia légua, e mesmo que outros governadores aumentassem por si

próprios as léguas dos sesmeiros, se seguia em prejuízos com esta restrição real.

Numa carta de sesmaria 42 concedida ao governador-geral Luiz de Brito de Almeida,

em Pernambuco, o tamanho chegava a 12 léguas. Tal doação era em retribuição aos

serviços feitos por ele:

“Registo da Carta de sesmaria de doze léguas, de terra de Luiz de Brito Governador que foi destas partes. (...) que havendo respeito aos serviços, que me tem feito Luis de Brito de Almeida do meu Conselho, e ao que espero, que me faça nas partes do Brasil onde ora o envio por governador (..) faço por esta presente carta (...) doação de doze léguas de terra nas diatas partes do Brasil (...) (...) quer as ditas doze léguas de terra com toadas as confrontadas dellas, o qual auto elle terá com esta carta para seu título...”

É notório o fato da distribuição aos colonos de sesmarias na região onde se formara

o Quilombo de Palmares, ao sul de Pernambuco. Aqueles que se destacaram na campnha

militar foram beneficiados com enormes extensões.

O mesmo governador Luiz de Brito recebeu ordens diretamente do rei para doar

terras a determinadas pessoas, como se vê neste alvará43 que o próprio rei afirma ter força

de carta de sesmaria:

“Registro de doze léguas de terra de Duarte Dias. Faço saber a Vós Luiz de Britto do meu Conselho, que ora envio por governador das partes do Brasil que eu hei por bem (...) deis a Duarte Dias Fidalgo de minha casa e me secretario doze leguas de terra (...) e este alvará quero que valha, e tenha força e vigor, como se fosse carta feita em meu nome por mim assignada (...)”.

No próprio regimento do governador do Rio de janeiro, Manuel Lobo, de 1679, foi

ordenado que todos os soldados que serviam ao rei na dita capitania e todos os seus

moradores cultivassem e povoassem, fazendo cultivar as terras, e que se edificassem novos

engenhos, e aos que de novo reedificassem dessem-se privilégios, e aqueles que tivessem

42 “Carta Régia de 23 de janeiro de 1573 de doação de sesmaria ao governador geral do Brasil”. In: Documentos para a história do açúcar, 1954. p. 251 43 “Alvará de 2 de janeiro de 1573 ao governador geral do Brasil para doar uma sesmaria”. In: Idem, 1954. p. 249.

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terras de sesmarias e não as cultivassem na forma da ordenação, fossem confiscadas e

reorientava não dar mais terras de sesmarias que aquelas que cada um puder cultivar.

Ordenava também que os governadores e ministros de justiça, guerra e fazenda não se

metessem nos negócios mercantis e nos contratos, proibindo-os de terem lojas públicas em

suas casas, por ser tudo isto um dos grandes inconvenientes e danos. Havia o medo, por

parte da coroa, de um crescimento de poder por parte daqueles que administravam a

América. 44

Há uma carta régia em que o rei português Dom João, por intermédio do governador

da Capitania das Minas do Rio de Janeiro, concedeu uma carta de sesmaria ao provedor da

fazenda real da Capitania de São Paulo. O interesse real de conceder essa carta de sesmaria

era de se fazer caminho junto a ponte de Taubatinguara e juntamente a isso, continuar a

estrada que daria em Cruz das Almas e buscar o rio de Tamandoatihy para fazer a divisa da

terra devoluta. Nesse espaço de terra concedida havia que se fazer caminhos públicos para

particulares suprirem necessidades diversas, como por exemplo, pontes, fontes, portos e

pedreiras.

Contudo, o Conselho Ultramarino confirmou que as terras que ficavam próximas a

cidade não se davam por sesmaria, só de aforamento “quando não podem servir ao

público”.45

2.4.9 Regimentos específicos e locais

O capítulo 24 do regimento de Roque Barreto informa a respeito da cultura das

terras, e estabelecimento de novos engenhos:

“E porque aquelle Estado é de terras novas a maior parte muito fértil, e convem para se augmentar, e povoar tratar-se da povoação delas com particular cuidade encommendo ao governador

44 "Regimento dirigido a D. Manoel Lobo, governador da Capitania do Rio de Janeiro". Op.cit. 45 “Carta de data de sesmaria de 4000 braças de terra principiando junto a ponte de Tabatinguera”, de 06/09/1725. In: Documentos Históricos, 1928. p. 110 e 111.

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que assim o faça, e que procure por todos os meios que lhe parecer necessário que as terras se vão cultivando, e edificando novos Engenhos de assucar, fazendo guardar aos que de novo reedificarem, ou renovarem os desbaratados seus privilégios e isenções, obrigando aos que de novo tirarem terras as vão cultivando de sesmarias, e as povoem, e aos que não cumprirem, se lhes tirarão, e darão a quem as cultive, e povoem na forma do regimento das Sesmarias, e Ordenação, e na Repartição das Sesmarias se fará guardar o Regimento para que se não dê a alguma pessoa tanta quantidade de terras que não podendo cultival-a redunde em damno do bem publico, e augmento do Estado”. 46

Miguel Soares Neves (sem data, mas é no tempo do vice-rei Vasco Fernandes César

de Meneses) perdeu sua sesmaria quando a Capitania, no século XVIII, foi retomada pelo

rei e pedia justamente a carta de confirmação. 47 Nessa época, com a reforma pombalina que

acabou com as capitanias hereditárias, justificando a preocupação de Miguel que ficara

temeroso dessa reforma.

“Diz o capitão Miguel Soares, morador na Capitania do Espírito Santo, que pelos traslados de sesmarias que oferece é o suplicante senhor e possuidor por si e se antepassados há muitos anos de uma pescaria e algumas terras na barra da vila do Espírito Santo, as quais principiam na dita Barra e correm até a barra do Juru, e porque a dita Capitania era do donatário Antonio Luiz Gonçalves da Câmara Coutinho no tempo que ele deu a sesmaria visto estar de posse delas há muitos anos”. Na margem diz que não teve efeito porque fora registrada em outra folha.

Contudo, foi localizada mais adiante a confirmação de sua sesmaria, mesmo com a

substituição do donatário pelo padre Mauricio Ferreira Graces. Justamente era seu temor

que ao mudar o donatário ele viesse a perder as terras.

Na resposta do rei estava clara a confirmação da doação da área que ele tivesse

cultivado, “não entrando nas praias do mar, porque estas não se devem dar de sesmaria” e

também não podia alienar as ditas terras. A região de pescaria que se tornava um problema,

pois esta área sendo de uso comum não poderia ser dada senão por arrendamento ou

46 “Regimento dado ao governador Roque Barreto”. In: Documentos Históricos, 1928. p. 297. Original está na BN, no Códice I –5,2,27, vol. 6. p. 361. 47 “Carta de Confirmação de Sesmaria por sua Majestade concedida a Miguel soares Neves”. In: Documentos Históricos, 1929, Vol. 75. p. 44. Sem data específica.

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aforamento. Dessa forma, apenas as terras seriam dadas em sesmaria, não excedendo porém

de uma légua de largo e três de comprido “na forma das ordens do dito senhor”. Caso o

solicitante passasse as terras para outra ordem religiosa, a mesma ficava obrigada a pagar o

dízimo à ordem de Cristo. Ademais devia cultivá-la no tempo determinado na lei e não

podia passar o domínio para outrem sem tê-las aproveitado, nem sem expressa ordem de

Vossa Majestade, sob pena de se darem, neste caso, a outra pessoa. Era obrigado ainda a dar

caminhos públicos e particulares para rios, fontes, pontes, portões e pedreiras.

Caso tivesse alguma aldeia de índios nas terras, não seria senhor delas. Pede que a

confirme dentro de um ano. Pede para citar os confinantes, para que lhe desse “posse real,

efetiva e atual demarcando-se logo”.48 A carta na verdade acabou se transformando em um

alvará, na medida em que continha uma série de determinações. Ademais, ha via um monte

de quantias pagas relativos a registros, o que mostra alguns custos em garantir a

documentação real.

2.4.10. Avanços na regulamentação corrigindo lacunas ostensivas: o Alvará de 1795

Este alvará foi o primeiro regulamentando todo o processo de doação de sesmarias.

No preâmbulo do alvará e nos seus 29 artigos cabe salientar alguns aspectos relevantes. Em

primeiro lugar, destaca-se o título

"Alvará de 3 de maio de 1795, em consulta do Conselho Ultramarino em que S. Magestade a Rainha, reprovando e corrigindo os abusos, irregularidades e desordens, a que tem dado causa a falta de regimento das sesmarias do Estado do Brasil, e servida ordenar uma impreterível forma das suas datas, confirmações e demarcações, dando a respeito dellas, invariaveis regras para se processarem as causas destas".49

48 “Carta de confirmação de data de sesmaria de data de sesmaria, por Vossa majestade, concedida a Miguel Soares Neves”, de 05/04/1728. In: Documentos Históricos, s/d, Vol.75. p. 51-56. 49 "Sesmarias do Rio de Janeiro: textos de concessão, confirmação e regulamentação das doações de sesmarias no Rio de Janeiro. (Séc. XVIII) copiados nas Seções Histórica e Administrativa do Arquivo Nacional e no Arquivo de Prefeitura do antigo Distrito Federal". Em 16 cadernos manuscritos. [Lata 765, pasta 3]. Existe uma cópia publicada na RIHGB.

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Segundo o documento, vinha para consertar os abusos "sobre o melindroso objecto

de suas sesmarias, não tendo estas até agora regimento próprio, ou particular, que as

regulei quanto as suas datas". O resultado da falta da legislação e de providencias

acarretava em prejuízos e gravíssimos danos aos direitos da Real Coroa, "e por outra parte

consequencias não menos dannosas offensivas do publico benefício da igualdade com que

se deve, e deviam ser em todo o tempo distribuida as mesmas terras pelos seus moradores".

Este documento reconhecia o estado de irregularidade na distribuição a que muitos

moradores se submetiam, ao não conseguir as sesmarias por mercê da rainha ou dos

governadores e capitães generais. Era comum terras apossadas sem mercê e sem licença

legítima, e mesmo a maior parte das sesmarias, ainda que autorizadas com as competentes

licenças cartas e confirmações jamais chegavam a ter divisões e limites certos por

demarcação judicial, como eram obrigados por muitas e repetidas ordens. Da mesma forma,

destaca ainda em seu preâmbulo a infalível ruína de uns que não tinham forças e nem

posses para "manterem largos annos e com onerosas despezas uma demanda muitas vezes

imposta e sustentada outras tantas vezes por odio, opinião e capricho e querendo eu o

socorrer a todos estes incovenientes" diante de abusos de pessoas mais aquinhoadas.

Este alvará foi retirado no ano seguinte, talvez diante das pressões por parte das

autoridades.

Não há dúvida que, apesar de ta ntos problemas apresentados ao longo dos trezentos

anos da colonização, o instituto das sesmarias foi o principal instrumento dessa colonização.

Perdurou até o século XIX, como mostra este decreto de 1805, que mudou a

responsabilidade da confirmação dos lotes doados para a Mesa do Desembargo do Paço,

mas mantinha o instituto.

Sobre Sesmarias

(Decreto de 22 de junho de 1805)

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DECRETO

SENDO-ME presente, que se não tem continuado a conceder Sesmarias nessa Corte, e Provincia do Rio de Janeiro, que até agora erão dadas pelos Vice-Reis do Estado do Brazil; e que muitas outras já concedidas pelos Governadores, e Capitães Generaes de diversas Capitanias estão por confirmar por cauza da interrupção de communicação com o Tribunal do Conselho Ultramarino, a quem competia fazello: e desejando estabelecer regras fixas nessa importantes materia, de que muito depende o aumento da Agricultura, e Povoação, e segurança do Direito de Propriedade: Hei por bem Ordenar, que daqui em diante continuem a dar as Sesmarias nas Capitanias desse Estado do Brazil, os Governadores, e Capitães Generaes dellas; devendo os Sesmeiros pedir a competente confirmação á Meza do Desembagro do Paço, a quem Sou Servido Authorizar para o fazer e que nessa Corte, e Provincia do Rio de Janeiro conceda as mesmas Sesmarias a referida Meza do Desembargo do Paço, precedendo as informações, e diligencias determinadas nas Minhas Reaes Ordens; fixando as Cartas de concessão, e de confirmação dellas dependentes da Minha Real Assinatura. A Meza do Desembargo o tenha assim entendido, e o faça executar.50

O fim das sesmarias ocorreu em 1822. Atribui-se ao seu fim o enorme número de

reclamações por parte dos habitantes da colônia que requeriam as sesmarias e não eram

atendidos, bem como também o número de reclamações pela falta de demarcações.

2.5. Os processos judiciais da Corte de Apelação no Rio de Janeiro.

Na motivação de encontrar fontes que mostrassem conflitos latentes pela terra,

descobriu-se uma documentação de processos ligados a litígios fundiários , que foram

julgados pelo tribunal da Corte de Apelação ou Tribunal da Relação, dos quais há uma

cópia no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro. Esses processos judiciais são a base para

trabalhar o conflito de terra ao invés da documentação apresentada no capítulo anterior,

tendo em vista que os elementos apresentados nos processos permitem uma melhor análise

dos problemas fundiários na América portuguesa, completando o esforço de comprovação

das hipóteses levantadas. Foram encontrados processos judiciais, não somente do século

50 "Sobre sesmarias e decreto de 22 de junho de 1805, por Antonio Borges Sampaio." IHGB, Lata 7, pasta 18.

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XVIII, mas também, dos séculos XVII e XVI, no Arquivo Nacional, na cidade do Rio de

Janeiro. Ao todo são 16 processos, dos quais, apesar de terem fichas no catálogo referentes

à Corte de Apelação, seis estavam interditados para restauração51. Pelas fichas, pode-se

agrupar os processos de seguinte forma: um do século XVI, 4 do século XVII e 11 do

século XVIII.

A qualidade das informações contidas nesses processos não é homogênea. Muito

pelo contrário, às vezes refere-se apenas à transcriç ão da escritura de um lote de terra,

enquanto poucos realmente permitem verificar a existência de uma luta judicial pela terra,

fosse por posse ou por confrontação. Ademais, visualizar os reais interesses imbricados em

uma determinada ação, fato já bem difícil para o mundo contemporâneo, é extremamente

penoso em se tratando do período colonial. Afinal, não basta juntar as peças de um "quebra-

cabeça", mas primordialmente trata-se de encontrá-las.

Para examinar a profundidade dos conflitos que podem estar caracterizados em cada

solicitação à justiça com vistas à confirmação de escrituras de venda ou de medição, poder-

se-ia acolher a sugestão metodológica de Carlo Ginzburg em O nome e o como, ou seja,

realizar a investigação histórica tendo como ponto de partida o nome de uma pessoa, para

verificar “as linhas que convergem para o nome e que dele partem, compondo uma espécie

de teia de malha fina” (1989, 175) do tecido social onde o indivíduo está inserido. Contudo,

iniciar uma investigação histórica com base num nome, em se tratando de período colonial,

transforma-se numa tarefa árdua e às vezes, lamentavelmente, inútil.

Cruzar todos os nomes de um processo para verificar a existência de laços de

parentesco ou de amizade requereria que os estudos genealógicos para a região do Rio de

Janeiro estivessem mais avançados. Para realizar a penosa tarefa, recorreu-se aos clássicos

Belquior (1965) e Rheingantz (1965). De fato, alguns nomes foram encontrados permitindo

51 O Arquivo Nacional entregou uma carta lamentando o fato da interdição desses processos.

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confirmar a existência dessas pessoas e a constituição de suas famílias. Também foi feito

um levantamento completo na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, bem

como nos índices dos códices relativos às correspondências dos vice-reis que se encontram

nas publicações do Arquivo Nacional, tendo-se um relativo sucesso na complementação de

algumas trajetórias. Porém, como apenas cerca de 20% dos nomes envolvidos nos processos

apareceram em outras fontes, reconstituir o “tecido social” tornou-se muito mais

complicado e tarefa inadequada para o fôlego de uma dissertação de mestrado, embora,

quando possível disponibilizar-se-ão todas as informações levantadas.

Do conjunto de 16 processos, dez foram manuseados. Desses, dois estavam em

condições muito precárias, semidestruídos pelas traças, além da tinta ter passado para o

verso da folha, tornando-os de difícil legibilidade. Dessa forma, apenas os oito restantes

foram analisados e seis serão apresentados sucintamente nesta seção, embora não

representem conflitos latentes pela terra, deixando a análise substancial para os dois

últimos.

Os processos de número 3 e 4, ainda que envolvendo pessoas da mesma família,

referiam-se basicamente a Escrituras de Venda. O primeiro deles52 é uma escritura de venda

de 500 braças de terras realizada por Manoel de Siqueira e seus irmãos a Belchior da

Fonseca Dória 53, em 1686. Já o segundo, 54 consiste em uma escritura de venda de 220

braças de terras feita por Ignacio Ferreira Funchal55 a D. Marianna de Vasconcelos, viúva

de Belchior da Fonseca Doria. A venda foi realizada em 11 de julho de 1707, envolvendo a 52 AN. Corte de Apelação. Processo nº 3, caixa 1146, galeria A. 53 No processo aparece claramente o nome de Belchior, mas no estudo de RHEINGANTZ, aparece como Belcior da Fonseca Doria. Há um homonim, mas os outros dados não correspondem. Assim, Belcior da Fonseca Doria era casado com D. Mariana de Vasconcelos e juntos tiveram uma filha, Antonia de Vasconcelos, nascida em Guaratiba, mesma região da venda concretiza, e que casou , em 1729, na capela de N. S. do Desterro, com o ajudante Antonio de Carvalho Lucena, nascido na Freguesia da Sé(RJ), filho do sargento-mor e tenente general com o mesmo nome e de D. Mariana de Mendonça Soutomaior. Antonia e antonio tiveram três filhos: Francisca Vitória, Mariana e Antonio, nascidos respectivamente em 1730, 1733 e 1736. 54 AN. Corte de Apelação. Processo nº 4, caixa 1146, galeira A. 55 Inácio Ferreira Funchal era natural do Rio, filho de Pedro Luiz Ferreira e Helena Pacheco, nascido em 1669. Casou na igreja de São José na Fregues ia da Sé, em 1699 com D. Josefa de Oliveira, também do Rio. Sua esposa faleceu no ano seguinte ao casório e Inácio contraiu segundas núpcias, em 1703, com D. Maria Doria, filha de Jose de Siqueira Rendon e D. Maria da Fonseca. O casal teve três filhos. Cf. RHEINGANTZ

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terra conhecida como Engenho Novo da Guaratiba. Na verdade, esses processos revelam

somente o crescimento do patrimônio da família de Belchior da Fonseca Dória, através da

aquisição, mediante compra, de novas terras. Porém, como não é objeto principal desta

dissertação a acumulação de riquezas, esses processos tornaram-se de menor importância

para nosso estudo.

Outro exemplo está numa composição amigável feita no ano de 1628,56por Manoel

Vellozo Espinha 57 e o réu Jeronimo Velos o Cubas que eram irmãos, da divisão da Sesmaria

deixada por morte de seu pai Manoel Vellozo Espinha, situada em Guaratiba. No

documento produzido em 26 de abril de 1628, onde estabeleceram que "os mais bens que

tinhão e possuião por morte, de seus Pays era huma sorte de terras sitas na Guaratiba a

saber três léguas por osta eseis para o Sertão, que partem e correrão por costa onde os

Reverendos Padres da Campanhia acaba, etem marco". Em seqüência, o documento define

que as terras de Jerônimo Vellozo ficara correndo deste digo marco dos Padres, que he de

uma Ilha ondeachamão guaraquesaba athe o Rio destamanduarte por ... comtodo o Sertão

que a dittta terra tem de bandar do dito ... para lá. Já as terras de Manoel Velloso partiriam

do dito rio (...) edeclarão mais que o dito Rio fica por marco.58.

Esse processo tem apenas duas páginas e praticamente todo seu conteúdo está aqui

transcrito. Apesar do português arcaico, revela a dificuldade na determinação das terras e

seus limites, bem como no próprio tamanho dos lotes. Recordando o trabalho de Márcia

Mota, aqui cabe o comentário de se esta "dificuldade" em determinar os limites seria no

sentido de abrir a possibilidade de estendê-los, observando-se uma outra estratégia adotada

56 AN. Corte de Apelação. Processo nº 2, caixa 1146, galeria A 57 Não encontrei informações sobre esses nomes em RHEINGANTZ, mas há um Manuel Veloso Espínola que teve o seu casório em 1696, havendo uma diferença de 68 anos entre o casamento e a assinatura do documento. Penso em não ser o mesmo home, pois a filiação não aparece e sabe-se que eram filhos de Brás Cubas. 58 Além disso, os envolvidos na composição amigável decidiram que em "todas as vezes que cada qual deles quizer fazer serco de peixe, terão obrigação avizar se hum o outro ao outro, e em tempo conveniente. Enfim, concordaram também que havião as partilhas por feitas e acabadas de hoje para todo sempre sem nenhum delles vir com Embargos alguns, por si nem por intrepostas pessoas, porque só esta escriptura querião tivesse força evigor".

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que será analisada com mais cuidado noutro processo. Ademais, leva-se em conta nesse

processo, que são dois irmãos em negociação pela herança de seu pai. O litígio se mostra

principalmente pela abertura do processo, que embora conste como “composição

amigável”, é também indicativo da necessidade de consagrar a divisão das terras por

documento judicial.

No processo nº 14,59 encontra-se o relato de uma medição feita em 6 de novembro

de 1790 por dois pedreiros, Manoel Ignacio de Faria Mestre e Manoel Dias Mendes,

nomeados pelo senado como avaliadores de Casa e de tudo o que seu oficio pertence. O

documento consta apenas de meia página:

Certificamos que fomos medir e avaliar hua parede nas Casas do Capitam André Alves Pereira Vianna60 que partem com Casas de Graniel Gonçalves de trás do Carmo, cuja parede de tem de comprido sento e sete palmos e meio e de alto dezasete palmos e meio, com dois e meio de groso que soma cuatro mil setecentos e três palmos que em porta noventa e cuatro mil e sessenta reis que partido ao meio todo e cada metro correntro e sete mil e trinta reis que deve pagar ao dito Graniel Gonsalves ao dito Capitão André Alves Pereira Viana, ficando Senhor de toda a meia parede no seu comprimento e altura por estar já paga a mais que segue para baixo por hua sentença que de nos aprezentou e por nos ter pedida esta [apelamos?] de Baixo Juramento que em Câmara nos foi dado.

O documento é assinado por Manoel Ignácio de Faria, o pedreiro mestre, e aponta

como objeto de disputa uma parede, talvez delimitadora de dois espaços. Pode-se

conjecturar que na verdade foi um acordo estabelecido entre as partes, a partir do momento

em que André Luis construiu uma parede no terreno de Graniel Gonçalves e, ao pagar

determinada quantia ficava com direito sobre a parede e outro abria mão dela.

59 AN. Corte de Apelação. Processo n º 14, maço 2254, galeria A. 60 Em RHEINGANTZ há uma André Alves Pereira Viana (OBS), nascido em 1727, em André de Vitorino das Piaes (OBS), com o título de coronel e morte em 1803 na Freguesia da Candelária. Era filho de Alexandre Rodrigues Airão e Teresa Álvares de Araújo. Casou-se com D. Eugenia Teresa de Figueiras (OBS), nascida em Inhomirim, em 1750. O casório foi em 1776.

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Outro se refere à medição realizada em todo os lados de um terreno após uma

compra efetuada na Serra de Gericinó61, atual bairro de Campo Grande. Esse processo

mostra minuciosamente como foi operada a medição das terras compradas, através do Piloto

de Cordas que, como o nome indica, utilizava uma corda para medir as distâncias,

designando marcos como árvores, pedras, rios e quaisquer elementos da natureza passível

de servir como marco delimitador.

O processo nº 332262 tem como autor Francisco da Costa Teixeira e o réu Maurício

Nunes. O autor alega que, no ano de 1724, parte das suas 125 braças de terras na paragem

chamada Gipoya, na Ilha Grande, as quais teriam sido compradas do Padre Salvador Garcia,

foram invadidas pelo réu. Na sua defesa, o autor apresentava vasta documentação, inclusive

provas de uma medição que já teria sido feita. O processo está incompleto, mas até a última

página que consta, a Justiça foi dando ganho de causa a Francisco da Costa Teixeira.

Através desse processo, já se pode constatar o fato de que alguns grandes posseiros

recorriam aos meios judiciais para resolver problemas.

Tais processos não configuram conflitos latentes pela posse da terra, a exceção do

último. Para atingir os objetivos propostos no trabalho, foram escolhidos dois processos

judiciais, envolvendo as mesmas pessoas, tentando identificar os pontos de litígio, os

agentes envolvidos, seus argumentos e a documentação apresentada e cruzar todas as

informações possíveis de se levantar com outras fontes, como as cartas de sesmarias, ordens

régias e correspondência dos vice-reis entre outras. Os processos selecionados referem-se a

um mesmo problema entre um morador da Freguesia de Nossa Senhora da Guia de

Mangaratiba e os índios da aldeia de mesmo nome.

A análise desses processos permitirá a discussão das principais questões que

permeiam a dissertação, principalmente levantar problemas que tratem de temas próximos à

61 A grafia varia bastante ao longo do processo. Na grafia atual é Jericinó. 62 AN. Corte de Apelação. Processo nº 3322, caixa 424, galeria A. Lamentavelmente, quando retornei a esse processo, o mesmo também não fora reencontrado pelos funcionários do Arquivo Nacional.

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questão da terra, oferecendo um painel que permita visualizar o papel das sesmarias no

processo de ocupação das terras coloniais portuguesas na América em sua dimensão

econômica, social e política, bem como contribuir para a discussão entre cultura política e

prática na época colonial brasileira. Nesse intuito, serão analisados os meios - legais ou não

- de distribuição dos lotes e as contradições provenientes desta prática jurídica, enfocando

os possíveis conflitos daí ocasionados, através do estudo das relações sociais e a formação

de redes de poder envolvendo os segmentos da administração colonial que aplicavam a

justiça.

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CAPÍTULO 3

3. A DISPUTA ENTRE ÍNDIOS PELA TERRA ATRAVÉS DA JUSTIÇA.

3.1. A disputa judicial entre Pedro Alexandre Galvão e os índios da Aldeia de

Mangaratiba.

No ano de 1785, Pedro Alexandre Galvão, assistente no distrito da Vila de Ilha

Grande, entrou com um pedido de embargo contra os índios da Aldeia de Mangaratiba,

alegando que suas terras haviam sido por eles invadidas a mando do Capitão-mor da

referida aldeia, Bernardo de Oliveira. Na invasão, ocorrida em 5 de abril do ano citado, os

embargados havia m cortado grossas madeiras e paus, além de destruir as suas terras. O

autor da ação solicitava que se suspendesse o estrago.

Este processo1, com cerca de 75 páginas manuscritas, é constituído de 31

documentos entre escrituras, pedidos, relatos e pareceres e não se tem a data precisa de

quando foi iniciado. O último documento, datado de 23 de julho de 1785, é um parecer

favorável aos índios.

Assim, quando tudo parecia finalizado no âmbito legal, a julgar por esse processo,

verificou-se a existência de outro, agora de autoria dos índios contra Pedro Alexandre

Galvão, datado de 17922. Mais completo, relata os fatos acontecidos imediatamente após a

conclusão do primeiro, em 1785, e consta de 156 documentos distribuídos em suas 516

páginas manuscritas, inclusive de alguns já mencionados no primeiro, porém em melhores

condições de legibilidade.

A partir desses dois processos, percebe-se a tentativa de convencimento acerca da

verdade das partes, para que se julgue a contenda com justiça. E o instrumento inicial

utilizado para concretizar o objetivo foi a construção da origem histórica da ocupação

1 AN. Corte de Apelação. Processo nº 3891. 2 AN. Corte de Apelação. Processo nº 707.

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daquela região, à luz de escrituras de doação e de venda das terras, licença para a venda de

bens no caso de religiosos, cartas de sesmarias, testamentos, a própria memória e aspectos

costumeiros, entre outros como se observa na documentação ora examinada. Era importante

reconstituir ou reinventar a origem histórica, ressaltando alguns aspectos e "apagando"

outros.3

A riqueza desses processos, porém, não se apresenta somente pela possibilidade da

reconstituição histórica da ocupação territorial num nível local, mas também pela

possibilidade de examinar os argumentos utilizados e as estratégias de reafirmação do poder

pelas partes envolvidas, que remetem a um conjunto de pessoas relacionadas através das

negociações no tocante à compra e venda de terras.

Numa perspectiva mais ampla de análise, um dos objetivos centrais do exame

desses processos é analisar a questão social decorrente do encaminhamento dado pela

metrópole com relação à administração colonial, em particular no tocante à posse da terra.

Sobretudo, perceber como essa disputa pela terra se insere no próprio contexto histórico da

região, revelando as transformações econômicas e sociais que a América portuguesa estava

sofrendo em vários níveis, no final do século XVIII, sobretudo a região de Mangaratiba,

situada na Capitania do Rio de Janeiro.

3.2. A costa verde entre o mar e as montanhas: a região de Mangaratiba

A região onde se localizava a Freguesia de Mangaratiba, correspondente, hoje, ao

município de mesmo nome, situa-se na parte sul da Capitania do Rio de Janeiro e tem suas

terras imprensadas entre o mar e a Serra do Piloto. Possui litoral extremamente recortado e

poucas planícies litorâneas passíveis de grandes ocupações. A região tem seus primeiros

registros de ocupação quando Martim de Sá, ao retornar da Bahia, trouxe inúmeros índios.

3 Nos processos de embargo, medição e de confirmação utilizados por Motta (1998), encontra -se a utilização do mesmo instrumento.

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Segundo Monsenhor Pizarro, a ocupação da área teve como origem a proteção dos índios

descendentes dos Tupinambás, transportados de Porto Seguro por ordem do governador

Martim de Sá e instalados na praia de São Braz, perto do rio Ingaíba (Araújo, 1820, p.38,

vol. 4). Essa praia, atualmente, é ocupada pelo hotel Portobello e pela Fazenda Ingaíba.

Ainda segundo Pizarro, esse fato teria ocorrido após 1620, tendo como base a carta

de sesmaria passada por Gonçalo Correia de Sá, a pedido de seu irmão Martim de Sá, a seu

filho Salvador Correia de Sá e Benavides e sua irmã Dona Cecília de Benavides e

Mendonça, como também para os índios João Sinel e Diogo Martins. A sesmaria começava

na região de Iuna (ou Yuna), em Itaguaí, correndo para o sul, concluindo-se na praia de São

Braz. Martim de Sá teria demarcado meia légua desde a Ponta de Mangaratiba, também

conhecida como Ponta das Laranjeiras, até o adentramento do Saco de Mangaratiba para os

índios estabelecerem-se e poderem cultivá-las.

Formava-se, então, uma aldeia de índios trazidos por Martim de Sá. Segundo Maria

Regina Celestino de Almeida,

"são razões suficientes para se acreditar que aldear-se podia significar para os índios a opção pelo menor diante da opressão e violência da conquista e da colonização. Ao aldearem-se, os índios tornavam-se súditos cristãos e buscavam adaptar-se a um novo espaço físico e social, onde aprendiam novas regras e comportamentos que lhes permitiam novas estratégias de luta e sobrevivência no mundo colonial em formação" (Almeida, 2000, p. 92).

Como se sabe, no período em tela, a administração colonial praticava, a grosso

modo, duas políticas diferentes para os grupos indígenas. Uma, para os aldeados e outra,

para os que resistiam e acabavam sucumbindo à escravidão. Os índios aldeados, apesar das

condições limitadas e opressivas características do trabalho compulsório, eram sujeitos a

uma legislação especial que lhes facultava algumas garantias. Inicialmente, junto com os

padres, e depois, por conta própria, esforçaram-se em se defender, tanto “juridicamente

como pelas armas" (Idem,Ibidem.).

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O aldeamento de índios tornava-se um negócio para os colonos, já que descer4

índios para constituir aldeias significava a possibilidade de ter controle sobre um grande

contingente de nativos, como também privilégio na repartição dessa força de trabalho. O

aldeamento indígena, principalmente no século XVII, era praticado quando o preço do

escravo africano ainda era extremamente caro. Dessa forma, eram freqüentes os pedidos de

permissão para realizar descimentos com vistas à repartição de contingentes de índios. A

força de trabalho dos índios aldeados era destinada, desde o século XVI, à construção de

obras públicas, tais como fortes, pontes e estradas, a serviços agrícolas e ao corte da

madeira (Almeida, Op. cit., p.103). Enfim, a constituição de aldeias indígenas tornava-se

um instrumento que possibilitava o acesso à terra, já que era necessário uma área para

estabelecê-la.

O próprio Martim de Sá fundou a aldeia de Mangaratiba com índios que ele próprio

descera de Porto Seguro, visando obter uma aldeia para controle sobre os mesmos a serem

ali estabelecidos, sendo favorecido ainda pelo fato de que Mangaratiba não contou com

presença missionária até o século XVIII, dado que teve sua igreja paroquial erigida apenas

em 1764, data que marca o aumento da presença de brancos no local. Em 1802 foi

desanexada do termo da vila de Ilha Grande, passando a fazer parte da vila de Itaguaí.

(Almeida, op. cit., p.179-180).

Uma economia com um ínfimo mercado e uma baixíssima taxa de acumulação fazia

com que no século XVII, as elites do Rio de Janeiro lançassem mão do endividamento

crônico como for ma de acumular (Fragoso, 1995, p.53). A relação com o poder e a

possibilidade de ocupar importantes cargos de comando na colônia, garantiam o direito de

obter terras e homens, isto é: doação de sesmarias, de índios cativos que, somados ao acesso

ao crédito, dava base à formação das fortunas senhoriais daquela época. Para Fragoso, a

4 A expressão "descer" índios tinha o significado de trazer índios do sertão.

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127

conquista de novos espaços dos gentios era mecanismo fundamental na formação do

esquema produtivo colonial. A instituição das ordenanças, já decadente em Portugal,

constituiu-se nas bases da defesa militar com seu transplante para o Brasil. Seria o caso de

Martim de Sá e sua família.

O relacionamento dos índios da aldeia de Mangaratiba com a família Sá é exemplar

para ilustrar a natureza das relações de interdependência que se estabeleciam entre

dominados (os índios) e dominantes (a família Sá).

Pelo fato das terras da aldeia terem sido dadas aos índios em sesmaria por Salvador

Correia de Sá, com a mudança do governador, estes últimos alegavam que só obedeceriam

ao comando da família Sá, afrontando o poder de Francisco Souto Maior, novo governador

da Capitania, sendo então nesta revolta protegidos pela família Sá.5

Os índios viam na família Sá um poderoso aliado e protetor, permitindo a troca de

favores mútuos, como por exemplo a grande benesse que significava para os índios não

terem a obrigatoriedade de contar com religiosos residentes na aldeia, o que lhes permitia

viver em liberdade de costume. Ao afirmar sua obediência exclusiva à família Sá, os índios

deixavam bem claro o nível do compromisso da aldeia com a referida família, o que reforça

a tese das relações particulares permeando o espaço público. Esse exemplo sugere relações

de controle dos moradores sobre os índios em suas casas, fazendas ou nas próprias aldeias,

caracterizando uma situação de domínio. (Almeida, op.cit., p.192).

Em 1645, o governador Francisco Soutomaior queixava-se do principal da aldeia de

Mangaratiba que lhe recusava os índios solicitados, alegando este só obedecer ao general

Salvador Correa de Sá. Na carta do governador Luiz César de Menezes para o Rei, de 1691,

5 Apud Almeida, Op.cit., p. 192. Carta do Governador Soutomaior. 1645. Ms. AHU, RJA, caixa 2, doc. 57. Os três parágrafos seguintes referem-se a esse documento.

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afirma que a aldeia de Mangaratiba contava apenas com 20 casais de índios, quase

despovoada. (Almeida, op. cit., p.215).6

Havia, segundo Almeida, uma especialidade de cada aldeia e, no caso dos índios de

Mangaratiba, estes “deviam prioritariamente prestar serviços nas terras de Martim de Sá e

sua família, contíguas à aldeia, dadas as circunstâncias de fundação da aldeia e a já citada

resposta do principal quando solicitado a recrutar seus índios para o serviço público. Ao

afirmar que só obedecia ao General Salvador Correa de Sá, o índio deixava bem claro o

nível de envolvimento que ele e sua aldeia tinham com a poderosa família, reforçando a

idéia (...) de se estar diante de um caso de administração particular". (Idem, Ibidem)

Logo após o primeiro estabelecimento na praia de São Braz, houve a mudança da

aldeia para o local onde se originaria o atual município, diante do reconhecimento da

impropriedade do sítio por estar exposto a ressacas, pela falta de cachoeiras próximas e por

se prestar a acolhida de desertores favorecidos pelos aldeados. Dessa forma, a aldeia foi

transferida “para uma planície, circulada de montes e junto do promotório onde finaliza o

saco, o qual divide a baía de Angra dos Reis em duas partes". Do exposto deduz-se que as

terras onde se estabeleceu a aldeia não foram as mesmas solicitadas em nome dos índios, o

que não impediu passassem elas a fazer parte do seu patrimônio, mantido até pelo menos,

quando a Câmara Municipal esforçava-se por apropriar-se dele (Silva, 1854, p.231).

Um dos principais rendimentos dos aldeados era o aforamento das terras. Apesar de

conflitos gerados pela tendência dos foreiros em aumentar a área que lhes cabia, por sua

própria conta, sempre havia esse interesse por parte dos índios (Almeida, Op. cit.,p.244). Na

medida em que a colônia se desenvolvia, o número de colonos aumentava e as terras

tendiam a escassear, tornando-se objeto de disputas cada vez mais acirradas.

6 ANRJ, Códice 77, vol. 3, fl. 48.

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Originalmente uma região meramente habitada por índios a serem utilizados como

mão de obra repartida ou "escrava" de uso quase exclusivo de um conjunto de famílias

durante o século XVII, Mangaratiba, juntamente com as outras áreas que compõem a

chamada costa verde, a vila de Angra dos Reis da Ilha Grande e a vila de Parati dos

Remédios, transformou-se em importante região econômica, sobretudo na produção de

aguardente, no último quartel do século XVIII.

A Freguesia de Nossa Senhora da Guia de Mangaratiba, ainda pertencente ao

distrito da vila de Angra dos Reis da Ilha Grande em fins do século XVIII, não era a região

mais importante da Capitania do Rio de Janeiro do ponto de vista econômico. Contudo, os

dados que serão apresentados mostram a sua importância crescente na produção de

aguardente, voltada tanto para o mercado interno, quanto para ser utilizado na troca por

escravos africanos no mercado atlântico. Inserida na Capitania do Rio de Janeiro que se

tornara recentemente capital da colônia, teve sua importância aumentada em fins do século

XVIII, o que levou a um maior incremento da produção.

Em 1796, saía do porto do Rio de Janeiro cerca de 18.747 caixas de açúcar

produzidos na Capitania do Rio de Janeiro para as cidades de Lisboa, Porto, Faial e Viana.

Já pipas de aguardente eram cerca de 4345, no valor de 124:931$500, sendo levados

inclusive para outras capitanias do Brasil e África, além das cidades portuguesas. Já a

produção de arroz, em arrobas, representava o equivalente a 176.302 (111:431$800). 7

Dezessete anos antes, em 1779, entre abr il e dezembro, saiam somente 470 pipas de

aguardente, e mais tarde, um total de 1231 pipas, de acordo com o levantamento feito por

Luiz de Vasconcellos. A partir desses números verifica-se o crescimento da exportação e,

conseqüentemente, da produção de aguardente. Essas informações, embora precárias,

poderiam indicar que outros artigos também tiveram sua produção aumentada entre os anos

7"Produtos exportados da cidade do Rio de Janeiro no anno de 1796". In: RIHGB. Tomo 46. vol. 66, 1883. 1ª parte. p. 197

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de 1779 e 1796, o que sugere a crescente importância econômica da região e da Capitania

nesses últimos 17 anos. 8

Os levantamentos feitos pelos mestres de campos para serem entreguem ao Marquês

de Lavradio permitem visualizar a produção por distrito:

Tabela 1 – Dados numéricos por Distrito

Freguesia Fogos Engenhos Engenhocas Caixas de Açúcar Pipas de Aguardente Escravos Distrito de Ilha Grande e Mangaratiba

808 109 82 222 1030 2865

Parati 560 5 67 73 1554 1727 Campos10 1883 1761 400 109,5 5010 Distrito de Guaratiba 1242 33 4 740 472 1753 Distrito de Irajá 1054 27 5 540 297,5 1045 Distrito de Inhomirim 1201 6 4 55 48 224 Distrito de Cabo Frio 1029 8 10 117 78 470 Distrito de Marica 1026 30 2 551 318 874 Distrito de Niteroy 1309 26 623 465 1191 Distrito de Cachoeira 913 17 2 361 70 619 Total 11025 1923 176 3682 4442 15778

Fonte: RIHGB, 76 (127): 285-360, 1913.

A partir dessa tabela podemos destacar determinados aspectos sobre Mangaratiba.

Por um lado, cabe salientar que são raros os dados que mostram a freguesia destacada de

sua vila, aparecendo sempre como parte integrante do distrito da vila de Ilha Grande.

O distrito era um dos menores em termos de fogos e, conseqüentemente, população

nas regiões extra-muros. A visualização deste aspecto é facilitada a partir do gráfico a

seguir, onde a maior concentração encontra-se na região de Campos e de Niterói, apesar de

não haver grandes contrastes que mereçam análise destacada:

8 "Memórias publicas e econômicas da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro para uso do vice-rei Luiz de Vasconcellos por observação curiosa dos annos de 1779 até o de 1789". In: RIHGB. Tomo 47. vol. 68, 1884.p. 26-51. O restante dos produtos está em arrobas. Doravante " Memórias". 9 Na listagem nominal dos proprietários aparecem apenas 9. 10 Distrito de campos, composto por 06 freguesias: de São Salvador, com 1064 fogos; de São Gonçalo, com 506 fogos; de Santo Antonio de Guarulhos, com 110 fogos;; de São João da Barra, com 105 fogos; de Nossa senhora do desterro de Capivari, com 90 fogos; e de Nossa Senhora das Neves e Santa Rita, com 8 fogos.

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Gráfico IFogos por Distrito

12%

9%

9%11% 10%

8% 7% 5%18%

11%

MangaratibaParatiCamposGuaratibaIrajáInhomirimCabo Frio

MaricaNiteroyCachoeira

Fonte: Ibidem.

Com relação ao número de engenhos e produção de caixas de açúcar, a região de

Campos era consideravelmente maior, concentrando cerca de 91% do número de engenhos

de toda a Capitania, porém em termos de produção, era responsável por apenas 11%. O

conjunto representado pelos distritos de Ilha Grande e Parati que fazem parte do mesmo

quadro geográfico de Mangaratiba, somavam apenas 1% dos engenhos, representando

míseros 2% na produção açucareira, como visualizado nos seguintes gráficos:

Gráfico 2Engenhos por Distrito

1%

91%

8%

Distrito de IlhaGrande,Mangaratiba eParatiCampos dosGoytacazes

OutrosDistritos

Fonte: Ibidem.

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132

Fonte: Ibidem.

A importância econômica de Mangaratiba, englobada no eixo distrital Ilha Grande-

Parati provinha da produção de aguardente. Realmente se destacava como a principal região

produtora desse produto, sendo responsável por 58% da produção de aguardente de toda a

Capitania, com cerca de 85% do total de engenhocas. O maior número de engenhocas e de

produção de aguardente de todos os distritos da Capitania sugere que a região estava

envolvida com o mercado interno e o tráfico de escravos no Atlântico sul.

De fato, o número de escravos presentes em Mangaratiba, representava o segundo

maior contingente de todo o Estado, perdendo apenas para a região de Campos.

Gráfico 4Engenhocas por Distrito

15%

38%

47%Ilha Grande eMangaratiba

Parati

OutrosDistritos

Fonte: Ibidem

Gráfico 3Caixas de Açúcar por Distrito

20%

11%

2%6%

10%

15%1%3%

15%

17%

MangaratibaParatiCamposGuaratibaIrajáInhomirimCabo FrioMaricaNiteroyCachoeira

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Gráfico 5Produção de Pipas de Aguardentes

por Distrito

42%

35%

23%

Ilha GrandeeMangaratibaParati

OutrosDistritos

Fonte: Ibidem.

Mangaratiba não estava entre os distritos de maior produção de gêneros

alimentícios, porém tinha a sua importância, estando numa posição intermediária, ainda

mais se considerarmos a geografia da região que tem poucas planícies imprensadas entre o

mar e a serra.

Tabela 2 – Produção por Distrito

Freguesia Farinha/ alqueire

% Feijão/ alqueire

% Milho/ alqueire

% Arroz/ alqueire

%

Distrito de Ilha Grande e Mangaratiba

25736 10,9 1485 3,3 951 1,6 2923 6,9 Parati 14533 6,1 2208 4,8 952 1,6 1302 3,1 Campos11 28312 12 9277 20,2 7152 10,6 132612 3,2 Distrito de Guaratiba 45978 19,4 6520 14,3 4169 6,8 24631 58,1 Distrito de Irajá 25760 10,9 2394 5,3 2328 3,9 5470 12,9 Distrito de Inhomirim 13120 5,5 2080 4,6 24600 39,9 3760 8,9 Distrito de Cabo Frio 35000 14,8 7000 15,3 4000 6,6 2000 4,7 Distrito de Marica 34456 14,5 11901 26 15629 25,3 4069 9,5 Distrito de Niteroy 13800 5,8 2800 6,2 2161 3,6 1150 2,7 Total 236695 100 45665 100 61942 100 42406 100? Fonte: Ibidem.

11 Distrito de campos, composto por 06 freguesias: de São Salvador, com 1064 fogos; de São Gonçalo, com 506 fogos; de Santo Antonio de Guaralhus, com 110 fogos;; de São João da Barra, com 105 fogos; de Nossa senhora do desterro de Capivari, com 90 fogos; e de Nossa Senhora das Neves e Santa Rita, com 8 fogos. 12 Este distrito produzia também algodão (2050 arrobas) e anil (3 arrobas).

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A tendência ao aumento da produção é também sugerida pelos dados apresentados

por Jose Antonio Soares de Souza para os anos 1800 e 1801, sobre a vila de Ilha Grande de

Angra dos Reis, onde estava compreendida a Freguesia de Nossa Senhora da Guia de

Mangaratiba. A vila tinha para o ano de 1800 uma receita no valor de 515$127, isto é,

apenas 3,2% da receita de toda a Capitania. Já para o ano de 1801, apresentava uma receita

de 554$747, representando apenas 2,5% da receita total da Capitania (Idem, Ibidem).

Com relação às despesas, no ano de 1800, estas totalizaram 392$245 em ordenados,

festas, obras, recrutas, diligências e devassas feitas por tabeliães, azeite para guardas13 e

miúdas. No ano seguinte, o gasto total foi de 573$520. Em ambos os anos, o gasto com

festas foi enorme, representando 187$635 em 1800 e 258$290 no ano de 1801. Em segundo

lugar, ficavam os ordenados. Perdia apenas para a cidade do Rio de Janeiro, no valor gasto

neste aspecto. As obras públicas nunca tiveram destaque nas despesas. Houve um saldo de

104$109, segundo o autor, representativo do equilíbrio e da modéstia da câmara.

Tabela 3 - Receita das vilas e cidades

Cidade ou vila 1800 % 1801 % Cidade do Rio de Janeiro 9:439$619 57,9 15:119$170 69 Cidade do Cabo Frio 446$578 2,73 449$205 2 Vila de Santo Antonio de Sá 1:424$950 8,73 1:360$000 6,1 Vila de Magé 210$700 1,3 222$100 10 Vila de São João Del-Rei 147$600 0,9 123$120 0,6 Vila de Ilha Grande 515$127 3,2 554$747 2,5 Vila de Parati 690$406 4,2 678$510 3,1 Vila de Resende 3:435$361 21 3: 412$962 15,6 Total 16:310$341 100 21:919$814 100?? Fonte: Souza, 1958, p. 346.

As vilas de Parati e de Ilha Grande, região do complexo da aguardente, ocupavam,

respectivamente, a 4ª e 5ª posição nas receitas da capitania.

13 Utilizado para a iluminação, sobretudo das celas prisionais. Apenas nas vilas de Ilha Grande e de Parati, havia este elemento destacado nas despesas. Souza, 1958, p. 360.

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Com relação aos dados de mográficos apresentados pelo vice-rei Luiz de

Vasconcelos, a população de um total de 874 habitantes em Mangaratiba estava assim

distribuída:

Tabela 4 – Demografia de Mangaratiba

Homens livres 226 Mulheres livres 202 Total de livres 428 Homens escravos 292 Mulheres escravas 152 Total de escravos = 444 Total da população em N. S. da Guia de Mangaratiba 872 Fonte: "Memórias". In: RIHGB, Tomo 47. Vol. 68, 1884. p. 26-51.

Portanto, conforme tabela acima, Mangaratiba possuía muito menos população que

a freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Ilha, sede da vila de Angra dos Reis de Ilha

Grande, que tinha no total 877914 habitantes. Logo, Mangaratiba concentrava apenas 10%

da população do distrito. Cerca de 50% dessa população era escrava, o que significa que a

produção de aguardente possibilitava a obtenção de riqueza suficiente para permitir a

compra de escravos. A diferença entre homens e mulheres cativos indica que a região tinha

recursos para substituir seus escravos através do tráfico atlântico. Caso se compare o

número de escravos com os que existiam nas outras regiões comprova-se que a produção de

aguardente era uma atividade lucrativa, possibilitando a compra de escravos.

Entretanto, sugere-se também que a grande escravaria era voltada para a produção

de gêneros para o mercado interno, pois ao cruzar-se o número de escravos com o número

de engenhocas e de engenhos, verifica-se que os escravos estariam distribuídos entre a

produção de aguardente para o Império português, sendo uma área vincula da às rotas do

tráfico de escravos do Atlântico sul e a produção voltada para o mercado interno, onde

14 "Memórias". In: RIHGB. Tomo 47. vol. 68, 1884.p. 26-51.

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ocupava uma posição intermediária na produção de alimentos, conforme os dados da tabela

2.

A geografia recortada das vilas de Mangaratiba e de Angra dos Reis não

propiciavam o desenvolvimento extensivo da lavoura canavieira e, portanto, a fixação e o

adensamento demográfico. Esta ocorrência foi característica nas áreas mais planas da região

de Campos, seguida de Santo Antonio de Sá e de Inhomirim, como se observa na tabela 5.

Tabela 5 - Demografia por distrito Villa de Angra dos Reis de Ilha Grande 9053 Villa de Paraty 8025 Villa de Magé (Inhomirim) 14824 Vila de Macacú (Santo Antonio de Sá) 17460 Villa de São José (aldeia indígena de S. Barnabé). 332 Cidade de Cabo Frio 6429 São Salvador dos Campos dos Goitacases 20105 São João da Barra 1814 Total15 78042 Fonte: "Memórias". Op. Cit.

Essa distribuição é melhor apreciada no gráfico 5.

Gráfico 5População por Vilas

0

5000

10000

15000

20000

25000Ilha Grande

Parati

Inhomirim

Macacu

São Barnabé

Cabo Frio

Campos

São João da Barra

Fonte: "Memórias". Op. Cit.

15 Não estão incluídos os moradores das freguesias intramuros.

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Enquanto no século XVII, a região era apenas uma aldeia indígena marcada por uma

fragilidade demográfica, visitada ou mantendo contatos com os conquistadores pela

necessidade desses em negociar com os índios a defesa da Capitania e a própria obtenção de

mão-de-obra, no século XVIII a região adquire importância fundamental no conjunto da

Capitania.

No decorrer do seu desenvolvimento, percebe-se a complexificação das relações

sociais no âmbito colonial, tendo em vista que Mangaratiba, ao se inserir economicamente

na estrutura da colônia, passaria a ser palco de disputa por terras, bem como os índios

fariam parte dessa transformação. Dessa forma, ao observar como Mangaratiba fora

ocupada no século XVII e sua importância geo-econômica ao final do século XVIII,

percebe-se que a região sofreu grandes transformações estruturais. A disputa de terras no

local foi resultado do próprio adensamento da tessitura econômica e social original, através

das forças produtivas e relações sociais que Mangaratiba, como parte integrante da colônia,

passou a viver na segunda metade do século XVIII. Essa breve introdução sobre a Freguesia

de Nossa Senhora da Guia de Mangaratiba possibilita melhor visualizar a área do conflito

que consta dos dois processos judiciais selecionados.

O intuito principal é expor os fatos ocorridos numa disputa judicial por terras e o

seu processo histórico, como pano de fundo para analisar a forma de resolução do

problema, investigando os encaminhamentos, os argumentos e as relações sociais

estabelecidas durante o processo judicial, abrindo novas questões e possibilidades de

reflexão.

Para esclarecer a apresentação dos processos, inicialmente será exposta a versão de

cada parte, para a posteriori, fazer-se as devidas considerações.

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138

3.3 A versão e os documentos apresentados por Pedro Alexandre Galvão.

Pedro Alexandre Galvão, morador do distrito de Ilha Grande e assistente local, de

origem indígena, tinha escravos e foreiros e era "possuidor" do sítio, de cerca de meia légua,

de nome Mangaratiba, resultado de uma compra efetuada com três religiosos. De início,

relata a ordem sucessória dos anteriores possuidores daquela área. Assim, o primeiro

possuidor, Bartolomeu Antunes Lobo, teria recebido a terra havia mais de 160 anos, através

de uma carta de sesmaria. Por ser o primeiro registro de ocupação, tal título aparece com a

referência de sesmaria primordial. Em todo o material analisado, não foi possível

confirmar se esta denominação era consagrada a toda primeira ocupação ou registro da

ocupação através de carta de sesmaria.

Sobre Bartolomeu Antunes, conseguiu se averiguar que havia recebido uma carta de

sesmaria, com cerca de 750 braças de testada e mil para o sertão, na região entre de Itinga e

a ilha da Conceição, doada em 8 de fevereiro de 156816. Essas duas localidades com suas

respectivas denominações não foram localizadas nos mapas. Porém, há, ainda hoje, uma

praia chamada Conceição de Jacareí, há uns 15 quilômetros de Mangaratiba, onde em frente

há uma ilha.

Nos processos, encontra-se transcrita cópia de uma carta de sesmaria concedida por

Gonçalo Correia de Sá, Capitão Mor e provedor Capitania de São Vicente e de Santo

Amaro, na verdade para Dona Vitória de Sá e Bartolomeu Antunes Lobo, na cidade de

Santos, por Vasco Mota, em 18 de abril de 161817. A justificativa para a "dada de terras e

sesmaria deste dia para todo sempre" a Bartolomeu Antunes Lobo e Dona Vitoria de Sá foi

que eram

16 Bartolomeu Antunes e seu filho Manuel Antunes, receberiam outras terras na região do Gandu e da serra de Yoyororo, em 14 de abril de 1588. Da mesma forma, teve uma sesmaria confirmada em 02/05/1609, porém não constam nem a quantidade de braças, nem o local. Essas informações foram extraídas de Araújo, 1900. In: RIHGB. 63 (101):93-153. 1900. 17 Nessa época a região era ainda pertencente à capitania de São Vicente e Santo Amaro. A carta original encontrar-se-ia na Comarca de São Paulo e foi mandada buscar pelo despacho de Juiz de Fora do Rio de Janeiro, Lourenço José Vieira Souto.

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139

"terras por o fazerem engenhos e que eram [antigamente] terras para suas lavouras e por estarem devolutas umas terras na Angra dos Reis na costa braba aonde chamam Mangaratiba da qual terra a pediam da Ponta da dita Mangaratiba começando de onde estava uma laranjeira da banda do Nordeste athe intestar com Tapanhoacanga".18

Segundo Gonçalo Correia de Sá, o governador Antonio Salema mandou que se

citassem as pessoas para saber se já havia alguém cultivando aquelas terras conforme

provisão do rei e mandava confirmar a sesmaria após a verificação para que as terras

possam ser cultivadas povando as em sesmaria visto estarem devolutas e estarem perdidas

(...) para nelas fazer engenho e outras fazendas (...) para eles e seus herdeiros ascendentes

e descendentes". Atente-se a um primeiro problema que é a ausência da medida de terras,

como também a limitação espacial não é claramente definida e entre as duas extremidades

há por volta de 8 quilômetros, cerca de 3 léguas.

Do ponto de vista geográfico, podemos visualizar o seguinte esquema, com base na

carta apresentada à justiça19:

18 Processo nº 3891. 19 Os esquemas apresentados têm como fonte original a "Carta Topográfica da Capitania do Rio de Janeiro feita por ordem do Cõde de Cunha Capitão General e Vice-Rey do Estado do Brazil" de 1773. BN. Secção de Cartografia. Arc. 25-11-5-19. Doravante "Carta Topográfica"

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Figura 1

Localização da Sesmaria de Bartolomeu Antunes Lobo e de Vitória de Sá

Fonte: Elaboração própria com base na "Carta Topográfica".

Nessa carta de sesmaria a Ponta de Mangaratiba é indicada pela localização de uma

laranjeira. Na Carta Topográfica da Capitania do Rio de Janeiro feita por ordem do Cõde

de Cunha Capitão General e Vice-Rey do Estado do Brazil, desenhada em 1773, existe uma

saliência que aparece com a denominação Ponta das Laranjeiras. Foi desse indício que se

esquematizou o mapa acima. Até hoje aquele local é conhecido com este nome e também

como Ponta do Bispo. Já sobre o outro marco, a Ponta de Tapanhoacanga, não se tem

nenhuma referência. Porém, no Plano da Capitania do Rio de Janeiro capital do estado do

Brasil levantado no ano de 1784, e copiado por Jozé Fernandes Portugal, em Pernambuco.

Anno de 1803 existe um marco denominado Tapinhaacanga, o que, pela semelhança gráfica,

permite-se conjecturar que seja o mesmo.

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Figura 2

Detalhe do Plano da Capitania do Rio de Janeiro

Fonte: AHEx 05.01.901.

Dessa maneira, expõe-se a primeira ocupação da região, através de uma carta de

sesmaria onde está registrado o pedido solicitado pelos requerentes mediante uma

justificativa e a concessão feita pelo capitão-mor da Capitania. Essa carta de sesmaria não

foge a regra dos pedidos de sesmaria do período. Deve-se ressaltar a imprecisão dos

marcos, algo comum na época colonial e no século XIX, sobretudo até 1850,e o tamanho da

sesmaria, que indica três léguas, Pela esquematização da Figura 1 feita, a distância entre os

marcos é bem maior que as três léguas, cerca de nove quilômetros.

Saliente-se que, a essa época, a região não era densamente ocupada sequer pelos

índios, já que, segundo Monsenhor Pizarro, a ocupação da área teve como origem a

proteção dos índios descendentes dos Tupinambás, transportados de Porto Seguro, tal como

visto anteriormente.

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Caso o posicionamento dos marcos esteja de acordo com a denominação dos locais,

tem-se aí um primeiro problema. A sesmaria de Salvador Correia de Sá teria se sobreposto a

de Bartolomeu Antunes Lobo que é anterior em dois anos.

Figura 3

Sobreposição da sesmaria dos Antunes e da área destinada aos índios

Fonte: Elaboração própria com base na "Carta Topográfica".

A esse respeito, o próprio Pedro Alexandre Ga lvão apresentou à justiça um

documento de escritura de venda e troca de engenhos realizada entre o general Salvador

Correa de Sá e Benavides, filho de Martim de Sá, e o capitão José Rendon, ambos

moradores da cidade do Rio de Janeiro, em 08 de junho de 1652, portanto, cerca de 32 anos

após a concessão de sesmaria. O objetivo da sua apresentação era mostrar que as terras de

Salvador

"ocupam aquela costa desde o marco dos Reverendos Padres da Companhia athe a Ponta da Mangaratiba e suposto que as terras

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virão athe o Saco e meia legoa que ha de mais a mais para dentro do dito Saco ficão reservadas e fora deste contracto para os índios".20

Assim, as terras cedidas a Salvador terminavam na ponta de Mangaratiba, mas

ficava reservado para os índios uma área que ia além do marco apresentado. O general

trocava seu engenho pelo engenho do capitão D. José, localizado na Freguesia de Irajá,

termo da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Pedro Alexandre Galvão tentava

convencer de que as terras onde estava assentado não eram aquelas doadas aos índios e

explorava o fato de que, pelo documento, não ficava claro que as terras não pertenciam a

Salvador. Pelo contrário, a palavra suposto, que aparece no documento, causava estranheza,

já que estava se aventando apenas a hipótese de que as terras chegariam até o Saco de

Mangaratiba.

Figura 4

Localização da área envolvida na troca de engenhos entre Salvador C. de Sá e D. José Rendom

Fonte: Elaboração própria com base na "Carta Topográfica".

20 Processo nº 3891. Este Salvador Correa de Sá e Benevides aparece casado com Catharina de Velasco, diferente daquele que recebeu a sesmaria.

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Na dificuldade de entender a contenda, sobretudo por não compreender como duas

sesmarias foram cedidas na mesma região, a descoberta da carta de sesmaria dada a

Salvador Correia de Sá, citada por vários livros, porém não transcrita, tornava-se um

elemento fundamental. Quando acreditava que não se encontraria seu paradeiro, pois do

primeiro processo não constava e já estava se chegando ao final do segundo, eis que ela

fazia parte das suas últimas páginas. Assim, pôde se tirar a dúvida de quais reais marcos

apresentava a sesmaria de Salvador Correia de Sá.

A carta de sesmaria, na verdade dirigida a Martim de Sá e seus filhos Salvador

Correia de Sá e Dona Cecília de Benavides e Mendonça e os seus parentes índios 21, como já

informara Pizarro, era datada de 4 de janeiro de 1620 e mostra que algumas terras eram

solicitadas por serem devolutas e, por isso, serviriam para que a família do pedinte pudesse

lavrá-las. A área pretendida começava "de donde acabão os Padres da Companhia de

Jezus, correndo pela Costa adiante para o Sul, a [entestar] com a ponta da Mangaratiba,

que esta de fronte de sua Ilha". De fato, a sesmaria terminava na Ponta de Mangaratiba,

onde em frente se encontra a ilha de Guaíba Grande. Não foram encontrados documentos

sobre pedidos de Martim de Sá para o estabelecimento dos índios que trouxera da Bahia. Há

a hipótese de que ao perceber que aquelas terras não eram cultivadas ou estavam

desocupadas, Martim de Sá delas tenha se apossado para instalar os índios 22.

Retornando à documentação do processo, não se faz, num primeiro momento, a

conexão entre Bartolomeu Antunes Lobo e o possuidor seguinte. Contudo, no segundo

21 Nas diferentes versões sobre esta carta de sesmaria passada a Salvador Correia de Sá, segundo alguns, e para Martim de Sá, segundo o documento do processo, é constatado, porém nunca discutido, que além de Salvador Correia de Sá e Cecília de Benavides, ambos irmãos, aparecem no documento os índios João Sinel e Diogo Martins, ambos índios que aparecem apresentados como parentes. Deve se indagar o fato de eles serem parentes do Martim de Sá, já que era comum a união entre os primeiros colonizadores e mulheres índias, mas, pode se indagar também a possibilidade, apesar da grafia não deixar claro, que pudessem ser índios já merecedores da confiança de Martim de Sá e de suas mercês, que este doou parte da sesmaria para os índios e seus parentes, ou seja os parentes desses índios. Talvez fosse inclusive a área doada a esses índios a origem da fundação da aldeia de Mangaratiba. 22 Almeida (2000) reforça com documentos retirados do Arquivo Histórico Ultramarino o domínio da família Sá sobre os índios aldeados em Mangaratiba, como foi apresentado no item 3.2 desse capítulo.

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processo consta uma escritura de doação que fez o Padre Anacleto Lobo de Oliveira à índia

Ines Sardinha e a seu neto Francisco de Oliveira e sua mulher Tereza de uma légua de terras

na Mangaratiba feita em nove de dezembro de 1671, mas que não indica a localização das

terras.

A escritura foi encontrada no Inventario por falecimento do Capitão Francisco de

Oliveira Gayo e afirmava que o Reverendo Padre Coadjutor Anacleto Lobo de Oliveira

possuía terras em Mangaratiba, uma légua pouco mais ou menos por costa e duas "de

certão", que eram do patrimônio do dito Padre por herança de seu pai o Capitão Bartolomeu

Antunes Lobo, e devido a sua ausência, seus irmãos teriam fraudulentamente vendido as

terras a Inês Sardinha. Dessa forma, anulava a venda por ser irregular23 e lhe doava as

terras, podendo, após sua morte, ficar com seu neto Francisco de Oliveira Gayo e seus

netos. O que se subentende é que Inês Sardinha teria sido ludibriada pelos irmãos de

Anacleto Lobo de Oliveira ou obrigada a pagar para permanecer nas terras, e este, para

repará-la, doou as terras que lhe restaram na partilha. Contudo, se em 1671, o Padre

Anacleto Lobo de Oliveira estava repassando para outras pessoas as terras que herdara de

seu pai, Bartolomeu Antunes Lobo, isto significa que as terras eram ocupadas realmente.

Não há nos processos documentos referentes à partilha ou à herança, bem como à

transmissão da terra de Inês Sardinha ao segundo possuidor. Também não foram

encontrados vestígios dessas pessoas em outra documentação, a exceção do Padre Anacleto

que se tornou vigário em Parati.

23 Também consta do documento a declaração de que o padre “demitia de si todo o direito e posse que tinha das ditas terras e as trespassava nos ditos dotados e porquanto a dita Ines Sardinha achava em sua consciencia que as ditas terras eram do patrimonio e dote do dito Padre e que lhas venderam maliciosamente disse que conhecia ate este tempo ao dito Padre por verdadeiro senhor delas e que sempre lavrou nelas com seu consentimento e agora as aceitava de sua mão com as ditas declarações e que se entenderá somente na parte que direitamente cabem ao dote do dito Padre que aquele não toca e pertencia aos ditos irmãos ao comprou em boa fé”. Processo nº 3891.

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O segundo possuidor apresentado pelo embargante era Nicolau Baldim de

Alvarenga 24, morador do Rio de Janeiro. Ele teria herdado as terras de seu avô homônimo,

Nicolau Baldim. De fato, a informação da existência de dois homens chamados Nicolau

Baldim é confirmada pelo estudo de Rheingantz. O primeiro Nicolau Baldim era pai de

Manuel da Costa, casado com Maria de Alvarenga. O casal tivera cinco filhos, entre eles

um Nicolau, que obviamente juntando os sobrenomes, tornou-se Nicolau Baldim de

Alvarenga, mesmo nome que aparece no processo. Este segundo Nicolau nasceu por volta

de 1630, na freguesia da Sé, na cidade do Rio de Janeiro. Nada mais se encontra no estudo

de Rheingantz e na procura por inventários no Arquivo Nacional, o nome em questão não

foi localizado. Porém, seu pai recebera outra área em sesmaria, com 1500 braças, na região

de Suruhy (atual Magé), em 22/10/1614 (Araújo, 1900, p.116).

Entretanto, consta do processo, com data ilegível, a escritura de transferência de

terras feita por Nicolau Baldim a Manoel Pavão, o possuidor subseqüente. Nicolau Baldim

de Alvarenga possuía meia légua de terra nas paragens de Ma ngaratiba, partindo do rio do

Saco da Mangaratiba até a Aldeia dos Índios. Alega que as recebeu por herança de seu avô

homônimo e logo as vendeu a Manoel Pavão, morador de Mangaratiba, pelo preço de 20

mil réis. Pelo fato de Manoel Pavão não saber escrever, fez-se o sinal de uma cruz. Esse

documento é o primeiro que designa um marco divisório claro nos mapas, o rio do Saco,

que se encontra a oeste da aldeia de Mangaratiba e a própria aldeia. Fato interessante é

apontar que Manoel Pavão e sua esposa eram índios25, confirmando a existência da venda

de terras aos índios por parte dos colonizadores. A venda de terras não era um negócio

apenas entre "brancos", ou entre índios vendedores e brancos compradores, mas também

entre brancos vendedores e índios compradores.

24 A grafia deste nome também aparece como Nicolao Baudim. 25 Essa informação depreende-se do relato do capitão-mor Bernardo de Oliveira. Quanto à mulher, no próprio processo nº 3891 é indicada sua condição de índia. Ademais, Manoel Pavão assinara a escritura com uma cruz, sinal geralmente utilizado pelos índios que não eram alfabetizados.

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Figura 5

Área pertencente a Nicolau Baldim de Alvarenga transferidas a Manoel Pavão

Fonte: Elaboração própria com base na "Carta Topográfica".

Em 1707, data próxima provável da morte de Manoel Pavão, a índia Maria Garcia 26,

sua viúva, chamou o tabelião e o ouvidor da Capitania, Jerônimo de Souza de Brito para

demarcar as suas terras de meia légua. No mesmo ano, em 19 de fevereiro foi feito o auto

de Medição que estabelecia

"as ditas terras começando de uma pedra chata e larga que tem outras mais pequenas em cima a qual leva esta junto de hum [jequitibá] pela parte que confrontam com os índios os quais foram notificados e por não aparecerem se mediu (...) a meia legoa que reza a escriptura na borda do dito rio donde se mediu o marco junto a um Jequitibá que está perto de dois mais dos quais um é de figueira grosso".

Era, efetivamente, a mesma área que pertenceu a Nicolau Baldim de Alvarenga, pois, apesar

de os marcos serem os mais imprecisos possíveis, fica claro que as terras saiam da aldeia

26 Aparecem também escritos na forma Manoel Pavam e Maria Gracia.

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dos índios e iam pelo menos até o rio do Saco. Na medição, tendo em vista que os índios

foram citados e não compareceram, a mesma foi feita a revelia deles.

Com a morte de Manoel Pavão, encontravam-se, num primeiro momento, como

herdeiros, José Coelho Braga e outros que nomearam como procurador Domingos Dias dos

Santos. Constavam também da procuração os seguintes casais: José Esteves Loreno e

Beatriz Alvez da Silva; Manoel Alvez dos Santos e sua mulher, onde apenas o sobrenome

está legível, Borges; Antonio Pimenta e sua mulher Airez de Jesus; Joaquim Garcia e

Ângela Maria Bernardo Alvez; Roque da Gama Cruz e Josefa Ferreira Barbosa; Francisco

Manoel e Joana Souza, como também do solteiro João da Fonseca.

Estas pessoas não eram herdeiras diretas de Manoel Pavão, pois na sentença de

partilha e repartição do inventário que consta do processo, concluído em 16 de maio de

1705, aparecem cinco herdeiros além da esposa: os filhos Vicente Alvares, Pedro Alvares

de Ido, Lucia Cabral, Izabel de Oliveira e Maria Garcia.

As três filhas eram casadas respectivamente com Manuel Coelho, Manuel Martins e

Roque da Gama. Desses nomes, apenas o que coincide com o grupo anterior é o de Roque

da Gama, mas os sobrenomes e os nomes das esposas eram diferentes.

Como aos três genros a índia Maria Garcia devia o dote do casamento de 180 mil

réis, foi indicado no processo que os bens herdados fossem todos “penhorados” ou vendidos

para que se pagasse a dívida.27 Ao lançar mão de práticas sociais como o dote, esta

informação revela o quanto essa índia estava inserida na sociedade colonial.

Já o filho herdeiro Vicente Alvres foi o único que de fato recebera bens:

"cento e sete mil quatrocenteos e setenta reis, haverá o herdeiro Vicente Alvres centro e cincoenta braças de terras em trinta mil reis. Havera de canoa de voga de Giquetiba de seis braças de comprido, e quatro palmas de boca em bom uso com quatro remos, e

27 "aos ditos seus tres genros deve em dote de casamento 180 mil reis com que deviam entrar acusação neste inventario; e com efeito, os fizera notificar para que entrasse acusação com a metade dos dotes que sendo assim notificados, entraram com efeito com 90 mil reis que é a metade dos ditos dotes para se inventarem a soma de monta mor dos mais bens que se derem a inventarem".

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sua vela em coarenta mil reis. Havera dezoito braças e meia de rede de malha em nove mil dozentos e sinconeta reis. Havera desasseis braças de rede de barbante dobrado em dez mil, dozentos e coarenta réis. Havera sincoenta e uma braças de rede de barbante singelo em dezaseis mil, trezentos e vinte réis". 28

Contudo, na sentença de partilha, as terras discriminadas não tiveram sua

localização citada, apesar de garantir ao próprio o seu direito à posse e, de fato, a justiça da

Vila de Angra dos Reis, local onde foi produzido o documento, ordenara que se façam

entregar ao dito herdeiro Vicente Alvres todos os bens moveis, e de raiz e todo mais

declarado nesta minha folha de partilha, a qual entrega façam logo.29

Os bens vendidos ou cedidos à justiça, no caso das filhas e genros, ou as terras

herdadas por Vicente Alvres ou pela própria índia Maria Garcia, ao que parece, foram parar

nas mãos do grupo de José Coelho Braga, não somente pela análise cronológica dos dados

documentais, mas também pela conexão que se estabelece entre o religioso Diogo de Sobral

Teixeira e José Coelho Braga, naquele primeiro conjunto de pessoas. José Coelho Braga,

casado com Ana Maria de Jesus, foi quem passou a certidão de escritura de venda de terras

ao padre Diogo de Sobral Teixeira, tendo como seu procurador Domingos Dias dos Santos.

Com relação aos religiosos, o primeiro processo informa, em seguida, que o Cônego

Cura Antônio José Malheiros, sobrinho do Cônego Diogo de Sobral Teixeira, alegou que

recebera as terras em doação feita pelo Bispo Antonio do Desterro30 e doara, em seqüência

sua parte ao Vigário de Aguassu Amador dos Santos e ao Vigário de Porto Seguro, Lucas

Antônio de Araújo Neiva, para que pudessem constituir seu patrimônio31. Juntamente com o

28 Processo nº 3891. 29 Processo nº 3891. 30 Seu nome aparece em meio ao processo, mas de uma forma meio confusa. Inclusive o Arquivo Nacional fez uma das entradas das Fichas Catalográficas do processo judicial por ele. No ano de 1761, ele realmente era o Bispo do Rio de Janeiro de acordo com cartas assinadas que se encontram na "Correspondeência do bispo do Rio de Janeiro com o governador da metrópole nos anos de 1754 a 1800". In: RIHGB, 63 (101): 39-92, 1900. 31 Não se tem referência porque o Bispo tinha aquelas terras e porque teria doado a Antonio José Malheiros.

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Padre Diogo de Sobral Teixeira, aqueles dois últimos religiosos haviam vendido a meia

légua de terra há 24 anos justamente para Pedro Alexandre Galvão32.

Essa negociação é comprovada na Escritura de Venda, anexada ao processo, a qual

confirma que o Cônego Diogo de Sobral Teixeira33 e os padres Lucas Antônio de Araújo

Neiva e Amador dos Santos passaram a posse para Pedro Alexandre Galvão, em 7 de abril

de 1761. Na escritura afirmam que possuíam meia légua de testada, que se defrontava com a

Aldeia dos Índios também chamada Mangaratiba pela margem do rio do Saco e, do outro

lado, com terras de um Manoel da Costa. De fato, através da observação do mapa feito pelo

Conde da Cunha em 1773, verifica-se a existência da aldeia já instalada onde atualmente

encontra-se o município de Mangaratiba. Na figura 5, pode-se observar o rio do Saco, que

funcionaria como marco delimitador, de acordo com a Escritura de Venda encontrada no

processo34.

32 O nome de Frei Antônio do Desterro não foi mais mencionado. 33 Em 28 de março de 1761, os padres Lucas Antonio de Araújo Neiva e Amador dos Santos encaminharam um pedido de licença ao Bispo para vender as suas terras, tendo em vista que as terras eram longe, dificultando a sua conservação. No dia 3 de abril de 1761, não só é concedida a licença para a venda da meia légua de terra, mas também das benfeitorias encontradas lá, o que incluía casas de venda coberta de telhas, senzalas, uma pequena capela ornada, olaria para fazer telha, louça e tijolos com selos, cabeças de gado vacum, entre bois e vacas, bezerros, cavalos e éguas, panelas, canoas, machados, foices e enxadas, além de cinco escravos: Paulo e sua mulher, Gracia Cezilia, viúva, Caetano, solteiro e Manuel Oleiro. Estranho é que a licença para a venda solicitada ao Bispo antecede a Escritura de Doação que o Cônego Cura Antonio José Malheiros fez em nome do padre Amador dos Santos e do padre Lucas Antonio de Araújo Neiva da metade de sua fazenda, documento datado de 28 de março de 1761. Nesse registro, as confrontações são as mesmas apresentadas na primeira escritura. Porém, são listadas também as benfeitorias da fazenda: 4 escravos, sem citação de nomes, 37 cabeças de gado vacum, 1 lancha, são as especificidades detalhadas, continuando as mesmas construções aparecendo. Além disso, Antonio José Malheiros informa que recebeu a terra por doação do Cônego Bispo do Bispado do Rio de Janeiro, mas não menciona o nome. Processo nº 3891. 34 O preço estipulado na concretização da venda foi o de 4 mil e 500 cruzados e a forma de pagamento seria a de 200 mil réis por ano "em dinheiro contado", sob a condição de que Pedro Alexandre Galvão deveria fazer um inventário dos bens encontrados na fazenda e entregar o rol aos vendedores. Para garantia do pagamento, o comprador apresentou como fiador Antonio Alves de Oliveira. Processo nº 3891.

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Figura 6

Área vendida a Pedro Alexandre Galvão pelos religiosos

Fonte: Elaboração própria com base na "Carta Topográfica".

A primeira questão que se verifica é a grande dificuldade de estabelecer marcos

divisórios, haja vista as divergências nos próprios documentos apresentados por Pedro

Alexandre Galvão, já que a escritura de Nicolau Baldim de Alvarenga estabelece sua terra

na margem direita do rio do Saco, enquanto na escritura dos religiosos, a terra em litígio

ultrapassaria a margem esquerda.

Dessa forma, o conjunto de documentos encontrados no primeiro processo dá conta

da transmissão da posse da meia légua por parte dos religiosos a Pedro Alexandre Galvão.

Embora não esclarecedora na sua totalidade, permite uma primeira verificação do que alega

o Embargante. Ressalte-se ainda o fato de que Pedro Alexandre Galvão só fora "molestado"

24 anos após ter se instalado, ou seja, adquirindo as terras desde 1761, somente em 1785 é

que os índios da aldeia "invadiram" suas terras.

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3.4 A versão dos fatos, segundo Bernardo de Oliveira, capitão-mor da aldeia.

Do outro lado da contenda encontravam-se os índios, representados pelo capitão-

mor Bernardo de Oliveira, mestiço de origem indígena 35. O capitão-mor, segundo Almeida,

era geralmente o Principal, líder do aldeamento, devendo pertencer ao grupo dominante à

época do estabelecimento da aldeia (Almeida, op.cit, p.160).

A defesa empregada pelo capitão-mor dos índios da aldeia de Mangaratiba baseava-

se na alegação de que os argumentos do suplicante eram falsos, fato inclusive que teria

levado ao pedido da prisão do mesmo. Dessa forma, seguiu como estratégia a

desqualificação dos argumentos e, principalmente, dos documentos do autor.

Os índios aldeados se declaravam extremamente injustiçados por terem sido

embargados de imediato, sem que houvesse a verificação da alegação do suplicante e, muito

menos, o julgamento da contenda. Afirmaram também que estavam prestes a desistir da

aldeia por não terem terras para plantar, não tendo o que comer. Essa situação teria se

agravado quando da chegada dos índios de Taghauy36, mandados para a aldeia de

Mangaratiba por ordem do Vice-rei, Marquês do Lavradio, alegando que se encontravam

privados de fazer "culturas nos matos da mesma aldeia onde haviam principiados a

derrubar", enquanto Pedro Alexandre Galvão, trabalhando em conjunto com seus foreiros,

estaria alongando cada vez mais as suas posses.37

O Marquês de Lavradio, efetivamente, enviara parte dos índios que se encontravam

na aldeia de Itaguaí para a de Mangaratiba, apresentando-se como um segundo ponto

relevante. Dado de que o próprio Pedro Alexandre Galvão teria se instalado em tal área

havia 24 anos e só agora era molestado, caberia questionar se a pressão demográfica e a

35 Conforme os documentos apresentados por Silva, op. cit. 36 Daqui em diante Itaguaí, pela correspondência atual. 37 Almeida, em seu estudo, sustenta que houve um aumento da presença de estranhos, ou de não-índios, nos aldeamentos, por iniciativa e interesse dos próprios índios e padres, no caso de aldeias com presença missionária, já que um dos principais rendimentos dos aldeados era o afo ramento das terras. Apesar dos conflitos gerados pela tendência dos foreiros em aumentar a área que lhes cabia por sua própria conta, sempre havia interesse por parte dos índios (2000, p. 244).

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decorrente falta de recursos econômicos é que teriam motivado os índios de Mangaratiba a

se incomodarem, pedindo a retirada de Pedro Alexandre38. Assim, o crescimento geral -

econômico e demográfico - da capitania do Rio de Janeiro, gerou esse deslocamento da

aldeia de Itaguaí e outras áreas, acentuando os problemas fundiários.

A aldeia de Mangaratiba estava pressionada pela imigração de mais índios,

resultando num aumento demográfico, mas também pelo crescimento da riqueza de alguns

estratos da antiga população indígena, indicando o nível de hierarquização a que estava

chegando a sociedade colonial, entre grandes e pequenos detentores de terra. A aldeia,

portanto, pressionada pela dinâmica da sociedade colonial, ou seja, o crescimento da

atividade produtora, no caso de Mangaratiba, de aguardente, resultando no aumento da

demanda por terras e mão-de-obra, apresentava como agentes dessa mudança os próprios

índios. Tanto Pedro Alexandre Galvão quanto os índios aldeados, são protagonistas que

surgem dessas mudanças. Verificar até que ponto Bernardo de Oliveira não adentrou no

mecanismo da sociedade colonial ou como essas mudanças o teriam afetado são esforços de

fôlego maior, que requerem estudos com base na etno-história, inviáveis no momento de se

realizar. Embora não seja objetivo desse trabalho, é importante salientar.

Os índios, através do seu representante, Bernardo de Oliveira, prosseguiram

protestando, principalmente contra o requerimento encaminhado por Pedro Alexandre

Galvão, no qual acusava os índios de terem bloqueado a estrada que ligava sua posse à vila

de Ilha Grande (atual Angra dos Reis) com paus e madeiras da própria derrubada a qual 38 Ester Boserup, em seu estudo Evolução Agrária e Pressão Demográfica, aborda o problema de quais os efeitos das mudanças populacionais acarretam sobre a agricultura. Boserup acredita que o crescimento populacional é uma variável independente, sendo o principal fator determinante nas mudanças da agricultura. Mesmo a terra não cultivada, tem a sua lógica econômica social: a maior parte do solo adicionada à área cultivada à medida que a população aumenta já terá sido utilizada seja como área de pousio, como campo de caça, como pastagem, etc.. Esta nova abordagem do desenvolvimento agrícola baseada no conceito de freqüência do cultivo tem como eixo central de sua lógica “os efeitos prováveis das mudanças ocorridas na densidade da população sobre a tecnologia agrícola”. Ou seja, o aumento da população faz ela buscar novas tecnologias para aumentar a produtividade. Assim, coloca a tecnologia agrícola como fator dependente da dinâmica populacional. Este ponto serve para este trabalho, ao pensar-se no caso da América portuguesa, a visualização das terras virgens como propulsoras para o deslocamento extensivo. Contudo, trata portanto somente de homens brancos. Ver Boserup (1987).

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embargou, tendo Galvão afirmado que na estrada, em condições "normais", passavam

carros (carroças puxadas por bois ou cavalos). No entanto, os índios argumentavam que

havia unicamente um "caminho de pé" e de cavalo, aberto por ordem do Marquês de

Lavradio. A única pessoa da região que teria carro seria o próprio Pedro Alexandre Galvão,

utilizando-o para levar o resultado da colheita até a sua casa, fato que indica o grau de sua

riqueza frente aos outros habitantes da região.

Configura-se, então, a denúncia dos índios de que Pedro estaria fazendo tal

requerimento com o objetivo de obrigá-los a fazerem a estrada de carro "com o seu suor", já

que a estrada inicial fora imediatamente desocupada quando terminaram de contar e separar

os paus, "deixando livre e desimpedido" o caminho. Reclamavam os índios também que o

suplicante estaria utilizando a madeira por eles cortadas como lenha, com o argumento de

que "ao suplicante não deve ser prometido o que é proibido ao suplicado". Ora, utilizar a

denúncia de que havia uma estrada que teria sido destruída pelos índios, e forçar a justiça a

adotar meios de obrigá-los a "reabrir" a estrada, mostra a utilização, por parte de Pedro

Alexandre Galvão, de estratégia óbvia de enriquecimento usando o trabalho alheio gratuito,

por meio da artimanha jurídica. Essa manipulação da justiça evidencia a utilização do bem

público para o proveito privado na sociedade colonial.

Desse modo, também pediam o embargo da cultura do suplicante e seus foreiros,

"notificando a todos com penas de prisão" e solicitavam que fosse logo decidida a contenda

para que pudessem fazer cultura nas capoeiras39.

O que se encontra no documento seguinte, porém, é um segundo mandato para a

execução do levantamento do embargo das terras embargadas a pedido de Bernardo de

Oliveira, Capitão-mor da Aldeia dos Índios de Mangaratiba, ou seja, nada fora feito pela

justiça, além do embargo inicial, configurando-se como outra questão a ser destacada.

39 Capoeiras são os terrenos em que o mato foi roçado e/ou queimado para o cultivo da terra, podendo também ser para outro fim.

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Tal pedido foi renovado por uma terceira vez, para que Pedro Alexandre Galvão

também fosse notificado do embargo do cultivo das terras, enquanto não houvesse decisão

judicial. Nesse último pedido, houve a radicalização da citação que possibilitava a prisão do

mesmo, tendo em vista o interpelado ter desprezado as notificações anteriores,

caracterizando desobediência aos mandatos. Esse fato evidenciaria uma desobediência e

conflito entre níveis de autoridade de hierarquia local e a coroa.

Tal desobediência pode ser entendida como uma suposta lógica da própria

administração da justiça na América portuguesa, sempre aguardando que as partes

envolvidas encontrassem um modo "espontâneo" de "negociar" ou "consertar". A lógica da

administração poderia já estar compromissada com Pedro Alexandre Galvão, tendo em vista

que era um importante produtor da região considerada, figurando na lista nominal dos

possuidores de engenhocas feita pelos mestres de campo para o Marquês de Lavradio. No

levantamento, indica que Pedro tinha 14 escravos e a sua produção anual de aguardente era

de 7 pipas. (RIHGB, 76 (127): 348, 1913).

Apesar do suplicante também ter sido embargado, embora não cumprido a decisão

judicial, o capitão-mor Bernardo de Oliveira também recebeu uma notificação para que

apresentasse todos os títulos de terras e da aldeia ao escrivão, no Rio de Janeiro, para

"conhecer-se a justiça". Porém, o capitão-mor não ser possível

"saber onde param os ditos títulos pela antiguidade deles, e omissão dos antecessores (...) que não os puseram em segurança por não terem vizinhos que o inquietassem na sua posse, e que sempre se conservaram na liberdade de fazerem as derrubada e culturas que lhe eram necessárias, e facultarem as derrubadas e culturas que bem lhe pareciam os sítios que lhe pediram para neles viverem e trabalharem por tanto tempo, quanto lhes permitisse os índios e os seos capitães mores".40

Com efeito, outro ponto relevante é que toda a defesa encaminhada por Bernardo de

Oliveira foi realizada sem a apresentação de qualquer documentação, apesar de os índios

40 Processo nº 707.

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terem como característica guardar os documentos, sobretudo por precaução. Assim, o

capitão-mor queria que se chegasse à verdade através dos próprios documentos

apresentados pelo suplicante e no relato do próprio Bernardo de Oliveira.

Iniciando pelo título primordial, ao fundamentar sua queixa nas escrituras, alega que

a sesmaria de Bartolomeu Antunes Lobo, ao pedir terras que se achavam devolutas na costa

brava de Angra dos Reis no lugar chamado Mangaratiba, "principiando na ponta da mesma

Mangaratiba até intestar com a outra ponta de Tapanhoacanga", sendo este título

primordial de que quer se valer Pedro Alexandre Galvão para persuadir a justiça o legítimo

domínio e posse, era falso. Apresentou como versão que a Ponta de Mangaratiba, localizada

ao nordeste que o documento fazia referência não era aquela, mas outra localizada ao

sudoeste. Caracteriza-se, então, que á época, segundo o capitão-mor, haveria duas

localizações geográficas com a mesma denominação.

Figura 7

Saco de Mangaratiba, supondo suas duas pontas com a mesma denominação

Fonte: Elaboração própria com base na "Carta Topográfica".

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Ademais, ao longo do processo, do título de posse teria se passado para um

documento de Escritura, onde as confrontações seriam muito distintas das do título

primordial. A Escritura de Venda colocava a terra dentro do Saco de Mangaratiba,

juntamente com a aldeia dos índios. Segundo o capitão-mor, o governador da cidade

Salvador Correia de Sá e Benavides teria declarado aquele espaço como reserva para os

mesmos índios, com meia légua de terra. Esta área teria sido comprada de D. José Rendom,

desde os marcos da Companhia de Jesus, até a ponta de Mangaratiba. Dessa forma, não

situava a sesmaria de Martim de Sá como primeira origem do aldeamento indígena, cerca de

1620, mas apenas a troca de engenhos, feita 32 anos depois.

Contestava também que o suplicante não apresentou todos os documentos e títulos,

embora os índios aldeados em nenhum momento também o fizera, confirmando as vendas

da terra em litígio, nem compreendiam como Pedro Alexandre foi se alongando na sua

posse, até ter o direito de embargar a cultura e derrubada dos índios, já que reconhecia o

fato de que os índios teriam a meia légua de terra por doação e reserva de Salvador Correia

de Sá e Benevides.

Afirma que caso fosse feita a vistoria do terreno, se veria a distância enorme

existente entre a ponta de Mangaratiba ao sudoeste e a terra de Tapanhoacanga, segundo

Bernardo de Oliveira, área do título primordial de Bartolomeu Antunes Lobo.

Nesse conjunto de argumentos, apontam-se dois elementos. Em primeiro lugar,

Bernardo de Oliveira estaria mudando a localização da Ponta de Mangaratiba para outra

área, desqualificando e descartando o documento da sesmaria de Bartolomeu Antunes Lobo,

como documento que referendaria a origem histórica daquela ocupação, conforme figura 7.

Em segundo lugar, acusou Pedro Alexandre Galvão de ter aumentado suas posses,

considerando, então que ele até tinha posses naquela região, mas sua ilegalidade residiria na

usurpação de uma área pertencente aos índios.

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Com relação ao possuidor seguinte, Manuel Pavão, o capitão-mor arrazoou que a

terra cultivada por ele fora cedida por um antigo capitão-mor dos mesmos índios, chamado

Manoel Esteves, pai de sua esposa, Maria Garcia. Assim, seu sogro teria consentido em que

o casal indígena ocupasse as terras. Quando da morte de Manoel Pavão, a índia viúva teria

feito a partilha das terras com suas filhas, fato injusto, tendo em vista que a terra era

“própria” dos índios, além do agravante de as mesmas terem sido vendidas sem “título

algum de domínio que pudesse fazer valida a venda”. Dessa forma, Pavão não era senhor e

só cultivava por consentimento do dito capitão mor dos índios Manoel Esteves, seu sogro.

Dessa forma, outro elemento apontado por Bernardo de Oliveira é quanto à

legitimidade da suposta venda que a índia Maria Garcia teria feito, já que ela não poderia

ser considerada como a detentora do domínio efetivo daquelas terras. A questão da posse e

da propriedade ou do domínio útil e do domínio efetivo ou natural levanta várias

conjecturas. Márcia Motta já iniciara a discussão ao afirmar que "do ponto de vista jurídico,

ter o domínio sobre a terra significava, então, ter a capacidade de podê-las 'vender, alhear e

escambar livremente', como se dela tivesse título". Contudo, enquanto na discussão

apresentada por essa autora, sua documentação do século XIX levou-a a utilizar os termos

posse e domínio, este processo judicia l do século XVIII refere-se aos termos domínio útil e

domínio efetivo41, mesma terminologia utilizada em Portugal nos séculos XIV e XV,

conforme capítulo 1 (Motta, 1998, p. 99).

Realmente, o que se encontra na argumentação de Bernardo de Oliveira é o fato de

que pessoas se "apropriavam" das terras indígenas e as vendiam, como se tivessem direito

de fazê-lo. Lembra-se aqui, a importância das terras do distrito da Ilha Grande dentro da

capitania Rio de Janeiro, como importante produtor de aguardente, derivando desse

contexto o fato de os índios do aldeamento serem extremamente prejudicados com as

41 Os termos posse e domínio são um equivalente posterior para os termos domínio útil e domínio efetivo, respectivamente para o caso colonial.

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mudanças estruturais ocorridas entre o início do século XVII e o final do XVIII, expostas

no item 3.2.

A indagação relevante que esta disputa judicial coloca, é saber o grau em que os

índios da aldeia de então percebiam as mudanças. È claro que havia eventos que tornavam

essa percepção direta e crua, na medida em que se deparavam com a iminência da perda de

suas terras, confirmado pelo fato de entrarem na justiça contra Pedro Alexandre, em 1792,

na tentativa de debelar essa perda. Inseridos na tessitura das redes locais e na configuração

de poder dos detentores de riqueza e prestígio, os índios aldeados eram conduzidos a buscar

argumentos de sobrevivência, estratégia analisada no item seguinte.

A estrutura fundiária da área se modificava com o aumento do número de engenhos

e, sobretudo, a proliferação de engenhocas. Ainda no final do século XVIII, o rei fazia

doações de terras em sesmarias. Em 1790, Pedro Gomes Jardim recebia terras na região

costeira de Mangaratiba e Antonio Mendes Monteiro, em 1799, recebia terras no ribeirão do

saco de Mangaratiba, no caminho para São João Marcos.42 Acompanhando tal processo de

complexificação da realidade sócio-econômica, as possessões indígenas igualmente se

modificaram e alguns dos agentes desta mesma transformação foram os próprios índios,

representados aqui nesse estudo por Pedro Alexandre Galvão. Trata-se de um morador que

possui foreiros e escravos e, ademais, pretende tomar terras dos próprios índios aldeados,

utilizando estratagemas para atingir seus objetivos, como tentar usar da “gratuidade” do

trabalho indígena ao forçá-los construir uma estrada.

Ao se queixar, Bernardo de Oliveira não se refere em momento algum à questão de

terem sido feitos atos possessórios, pois talvez, para o seu entendimento, de modo algum,

alguém poderia vender aquelas terras que pertenciam a um grupo maior43.

42 AN. Códice 64, livro 21, p. 7v e livro 25, p. 25v, respectivamente. 43 O princípio de que os nativos teriam direito "natural" à propriedade das terras onde viviam está em várias leis e segundo Beatriz Perrone-Moisés, as terras das aldeias foram garantidas desde o início, com a utilização da expressão senhores das terras das aldeias, como o são na serra aparecendo já pela primeira vez no Alvará de 26/07/1596 e sendo retomada nas Leis de 1609 e 1611. Perrone-Moisés In: CUNHA, 1992, p. 119. Ver Também Almeida, 2000, p. 175.

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Por outro lado, afirmavam os índios terem estabelecido a aldeia havia duzentos anos

mais ou menos, "com terras suficientes para as suas culturas por ordem real, dentro das

quais se introduziu um Pedro Alexandre Galvão, não só ele senão outros foreiros querendo

tomar a posse da terra que ocupam" .44 Porém, como já visto, a região sofreu

transformações que acabaram por resultar em problemas para os seus ocupantes que não se

inseriram nessas mudanças ou mesmo aqueles que a elas resistiam. Acusavam Pedro

Alexandre Galvão de ter maquinado contra os suplicantes indo contra as determinações da

lei do primeiro de Abril de 1680, sendo as terras necessárias para a cultura dos índios 45.

Enfim, invocou-se aqui a idéia de posse imemorial, originalmente encontrada no

direito costumeiro analisado por Thompson, que Márcia Motta também analisou baseando-

se nas argumentações dos advogados do século XIX. Os advogados acabavam usando na

defesa de seus clientes o conceito de posse imemorial para a terra "aquela que ninguém sabe

o princípio, nem pelo ter visto, nem ouvido a quem o visse e ouvisse”. Segundo Motta, os

advogados até retiravam esse conceito das Ordenações Filipinas, mas não estava

relacionado a ato possessório ou de domínio da terra e sim à administração das capelas.

Assim, Bernardo de Oliveira afirmava que aquela terra era ocupada pelos índios havia

muito tempo, fato que substituiria qualquer documento oficial. (Motta, Op. cit. , p.98).

3.4.1 O argumento de posse imemorial

A idéia de posse imemorial vinha para substituir juridicamente a "força do título",

conferindo igual legalidade à prova documental. A sapiência em usar o conceito de posse

imemorial em detrimento de posse natural era a que consagrava a posse como um domínio.

(Motta, Op. cit., p.110-111). O sentimento de injustiça dos índios não era nenhuma

44 Processo nº 707. 45 A Lei de 1º de Abril de 1680 trata em grande parte da escravização dos índios, não mencionando sobre as terras que ocupavam ou deveriam ocupar. Não fica claro ao longo do processo a argumentação utilizada para citar esta lei em defesa dos índios, tendo em vista que se trata de uma suposta ocupação territorial dos índios e não de escravização indígena.

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abstração teórica sobre o seu direito à terra. Era resultado de uma certeza, dificilmente

questionável. Ao tornarem-se súditos cristãos do reino português, na acepção de Almeida,

seu direito àquela terra estava assentado em uma realidade vivida no cotidiano de sua luta

pela sobrevivência.

Embora o enfoque desse trabalho privilegie a questão agrária no desenvolvimento

do processo colonizador e não a preocupação com a dimensão cultural do conflito, pode-se

verificar como aqueles índios percebiam as relações sociais em que estavam inseridos e

porque resistiam, da forma como resistiram, às mudanças ocorridas no final do século

XVIII.46

As reflexões de Thompson acerca dos costumes de camponeses no século XVIII na

Inglaterra indicam diversos aspectos que contribuem para a compreensão desse processo.

Nesse sentido, o conceito de costume é primordial.

"O costume agrário nunca foi fato. Era ambiência. Talvez seja mais bem compreendido com a ajuda do conceito de habitus de Bourdieu – um ambiente vivido que inclui práticas, expectativas herdadas, regras que não só impunham limites como revelavam possibilidades, normas e sanções tanto da lei como das pressões da vizinhança." (Thompson, 1998, p.91)

Percebe-se, assim, em que medida o discurso utilizado no processo judicial e o

próprio processo representam a resistência de grupos sociais à destruição de relações sociais

consideradas justas, porque costumeiras, no sentido thompsoniano. Tal abordagem, de

analisar conflitos de terra decorrentes da defesa de posses em outros momentos da história

brasileira, não é de todo inovadora e original.

Além do estudo de Motta, já bastante apresentado, que analisa os conflitos agrários

no Vale do Paraíba no século XIX, na perspectiva de perceber as diferentes visões do

46 Neste aspecto, a análise mereceria, como ensinado por Peter Burke, de "tradução cultural da linguagem do passado para a do presente, dos conceitos da época estudada para os de historiadores e seus leitores", de modo a tornar a "alteridade" do passado visível e inteligível para os contemporâneos, evitando lhe atribuir o olhar atual, porém, resgatando o contínuo de sua humanidade fundamental. Burke, 2000, p. 245-246.

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direito à terra presentes nos processos e também na legislação agrária do período,

especialmente a Lei de Terras de 1850, há o trabalho de Margarida Maria Moura que, a

partir de processos judiciais, procurou analisar como camponeses moradores do Vale do

Jequitinhonha em Minas Gerais, na década de 1970, valiam-se de um direito costumeiro

para resistir à expulsão e também como argumentos de defesa nos processos aos quais eram

submetidos (Moura, 1988). A defesa dos costumes é, muitas vezes, a defesa de elementos

tradicionais e as vezes conservadores. Na introdução de seu livro Costumes em Comum:

estudos sobre a cultura popular tradicional, Thompson apresenta uma discussão

fundamental na tentativa de definir os costumes dentro desta perspectiva.

"Temos assim um paradoxo característico daquele século: uma cultura tradicional que é, ao mesmo tempo, rebelde. A cultura conservadora da plebe quase sempre resiste, em nome do costume, às racionalizações e inovações da economia (tais como os cercamentos, a disciplina de trabalho, os “livres” mercados não regulamentados de cereais) que os governantes, os comerciantes ou os empregadores querem impor. A inovação é mais evidente na camada superior da sociedade, mas como ela não é um processo tecnológico/social neutro e sem normas (“modernização”, “racionalização”), mas sim a inovação do processo capitalista, é quase sempre experimentada pela plebe como uma exploração, a expropriação de direitos de uso costumeiro, ou a destruição violenta de padrões valorizados de trabalho e lazer. Por isso a cultura popular é rebelde, mas o é em defesa dos costumes. Esses pertencem ao povo, e alguns deles se baseiam realmente em reivindicações muito recentes. Contudo, quando procura legitimar seus protestos, o povo retorna freqüentemente às regras paternalistas de uma sociedade mais autoritária, selecionando as que melhor defendam seus interesses atuais" (Thompson, 1998, p.19).

Esse aspecto do costume baseado na práxis e na sobrevivência da comunidade, é

ressaltado por Thompson em outro texto, Senhores e Caçadores:

"Pouco era o dinheiro que circulava entre os habitantes da floresta; para a carne, não iam ao açougueiro. Os confrontos entre eles e os guardas eram tão implacáveis porque lutavam, não por coisas de luxo, mas pela sua subsistência.

Mas essa subsistência dependia de direitos de uso pré-capitalistas sobre a terra e de uma forma de organização social (como a que contava com antigos tribunais florestais, Oficiais Judiciais e Observadores) que pudesse reconciliar pretensões

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conflitantes a direitos de uso sobre a mesma terra e madeira." (Thompson, 1987, p.325)

Para Thompson, o século XVIII significaria a derrocada dessa “economia moral”, a

partir das sucessivas decisões judiciais que modificavam ou desconsideravam os costumes

dos pobres, a partir da consagração das formas capitalistas de propriedade na lei. No Brasil

do final do século XVIII a tradição “legalista” inglesa estava muito distante, mas

certamente pode-se pensar nos argumentos utilizados no processo como muito próximos das

intenções dos magistrados ingleses47.

Em um outro aspecto surge a semelhança entre os motivos que levaram a tentativa

de supressão desses direitos costumeiros na Inglaterra e no processo de transformação

econômica que está na origem do conflito dos índios. Esses conflitos se tornavam mais

violentos à medida que a oferta de terras escasseava ou aumentava o seu valor comercial.

Thompson chega a afirmar: “Enquanto as terras incultas se mantiveram extensas e

irrestritas, os proprietários e os commoners podiam coexistir sem definições precisas dos

direitos” (Thompson, 1998, p. 111).

Não se pretende afirmar que essa situação é “típica” ou “universal” entre os

camponeses, até porque os índios não são camponeses. É o próprio Thompson quem alerta

que o costume é muitas vezes tão distinto de uma comunidade para outra como as

características geográficas:

"O direito comum é um vocabulário sutil e às vezes complexo de usos, reivindicações de propriedade, hierarquia e acesso preferencial a recursos, adaptação às necessidades, que, sendo lex loci, deve ser investigado em cada localidade e não pode ser jamais tomado como 'típico'." (Thompson, 1998, p.124)

Mesmo não sendo considerado “típico”, porém, o direito de uso comum em terras

indígenas parece estar presente em outros tempos e espaços e pode, por isso, ser

47 Mesmo Thompson estar pensando na transição de uma sociedade pré-capitalista para a sociedade capitalista em formação e o nosso objeto de estudo estar situado em duas sociedades pré-capitalistas, uma delas ainda de caráter comunitário, acredita-se ser possível a adaptação dos aportes desse autor.

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visualizado como um conceito muito esclarecedor para se entender os conflitos do século

XVIII.

Nesse sentido, é preciso verificar que o final do século XVIII foi um momento

decisivo na história da exploração e expropriação das terras coloniais. Vera Ferlini, embora

estudando o nordeste açucareiro, afirma que nesse período, as transformações ocorridas na

Europa com o incremento do processo industrial, foram marcantes para o acirramento da

problemática da concentração fundiária senhorial, visando o aumento de

produção/exportação na América portuguesa. (Ferlini, 1988)

Assim, como os cercamentos na Inglaterra, a produção de aguardente e de gêneros

para o próprio mercado interno, os projetos de colonização e a regulamentação fundiária

moldaram um rico processo de aprendizado na vida daqueles índios, fazendo cair o véu da

opressão a que estavam submetidos. A “liberdade relativa” em que os índios viviam ou

acreditavam viver foi sendo destruída pela penetração das relações sociais dos “brancos” na

região. É nessa perspectiva que a luta desses agentes acontecia com o objetivo de preservar

costumes que lhes mantinham, muitas vezes, presos a relações de dominação, mas que

também lhes garantiam um mínimo de sobrevivência.

No entanto, um novo conjunto de documentos que será apresentado abre novas

possibilidades de interpretação. Será que ao utilizar o conceito de posse imemorial,

Bernardo de Oliveira estaria efetivamente tentando defender costumes tradicionais dos

índios? Ou seria apenas uma estratégia encobrindo o verdadeiro problema: a luta pelo poder

interno da aldeia?

Como se verá ao final do capítulo, apesar de algumas vezes o processo dar mostras

de que estava realmente em andamento, havia uma demora ostensiva nos procedimentos

que poderiam pôr fim a contenda.

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Enquanto Pedro Alexandre tentava protelar uma decisão judicial, provocando

propositadamente uma lentidão processual, o aspecto notável é a tentativa dos índios em

buscar sua defesa na invocação do costume. No próprio parecer final do primeiro processo,

apelando para um passado perdido, o desembargador afirmou que os índios eram os

“primeiros, naturais senhores”. Contudo, seria pertinente indagar até que ponto os índios

realmente estavam empenhados na defesa de seus antigos costumes como instrumento de

uma identidade primordial? Ou, alternativamente, em que grau seus esforços estavam

direcionados para uma maior inserção na nova formação social?

3.5. O resultado do final do primeiro processo e o verdadeiro conflito: índios versus

índios.

O primeiro processo terminou em 23 de julho de 1785 e durou cerca de quatro

meses, com o ganho da causa em favor dos índios. Caso apenas o primeiro processo tivesse

sido analisado, poderia se afirmar que tudo havia terminado e supor-se-ia, ainda, que de fato

a sentença teria sido cumprida por parte da justiça colonial.

Concluído com o parecer do desembargador Francisco Luiz Álvares da Rocha a

pedido de Luís de Vasconcelos Souza, Vice-rei, e deferido pelo mesmo, o parecerista

justificou que iniciaria seu comentário a partir de “o direito das partes as vista dos

documentos que ambos produziram na hipótese”. Este requerimento, como outros futuros,

solicitado pelo Vice-rei, sinaliza o fato de o processo ter superado a esfera local,

considerando a hierarquia da autoridade envolvida. A intromissão da autoridade superior

pode ser indicativa, por um lado, de que a administração "local" tentava evitar, acobertar, ou

até mesmo adiar uma decisão final, no acirramento das disputas para que, por outro lado,

não se tivesse a interrupção da atividade econômica que as terras em disputa propiciavam.

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A documentação encontrada e "historiada" dificilmente aporta elementos que

envolvam áreas de disputa de influência ou poder. O material judicial coloca em foco áreas

de disputa por recursos produtivos ou potencialmente produtivos, capazes de gerar riqueza.

O que pode ser aventado, no entanto, é que as partes em disputa utilizavam o

recurso a pessoas ou a uma "rede" de pessoas influentes, que se relacionavam com juízes ou

autoridades da coroa com capacidade de inverter a decisão judicial favoravelmente à(s)

parte(s) interessada(s). Os conflitos implícitos assumiam cursos longos e complexos e

recorriam a terceiros, caso da esfera central, compondo estas redes relacionais que

favoreciam o não resultado prático, havendo uma permanência da situação anterior.

No caso do Antigo Regime, o bem comum propagado pelos preceitos da realeza

levaria em consideração a situação dos índios. A preservação do bem público levaria a

sentença judicial a dar o ganho da causa aos índios, senhores originais da terra, considerado

o espírito e os desígnios fundamentais da legislação régia apresentada no capítulo 2.

Contudo, o que se verifica é justamente essa oposição entre o bem público e o bem privado,

colocando Pedro Alexandre Galvão como o representante dessa transformação. A

administração e a justiça coloniais, na época em tela e a legislação utilizada nesse estudo

permitem visualizar uma brecha para respeitar a ideogenia e a idiossincrasia da justiça local,

abrindo a possibilidade de negociação política.

Comprovar uma rede é quase impossível, porém pode-se indicar que ela funciona,

pois Pedro Alexandre Galvão conseguia protelar a decisão de maneira a proteger a

continuidade de seus ganhos produtivos, obtendo, dessa forma, uma vitória de fato.

Retornando ao ano de 1785, ano de início da batalha judicial entre Pedro e os índios,

em 21 de agosto, portanto um mês após a decisão final do parecerista, tem-se a convocação

do piloto de cordas da Comarca da Vila de Ilha Grande, funcionário responsável pela

medição das terras, e de juiz competente para executar a medição.

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Com relação ao suplicante, Pedro Alexandre Galvão, ao alegar o fato de os índios

terem saído de sua meia légua e entrado nas suas terras, o parecerista afirma que essa

questão só poderia ser melhor analisada, “despida de prejuízo e corrupção”, através dos

mapas, instrumento que não possuíam. Aliás, talvez o principal elemento que dificulte a

análise “correta” dos fatos com base na documentação pode ser considerada a imprecisão,

devido à época estudada, resultando em sérios obstáculos para o entendimento "geográfico"

da disputa. Apesar da existência dos mapas de 1773 e 1784 que esclarecem a localização de

alguns pontos, outros não aparecem, dificultando a visualização das posses em litígio.

O desembargador, supondo verdadeira a alegação de Pedro Alexandre Galvão,

afirma que as confrontações e a posição geográfica da terra de Bartolomeu Antunes Lobo

seriam muito diferentes da região em litígio, indo de encontro à afirmação do capitão mor

Bernardo de Oliveira. O problema estava na localização da “Ponta de Mangaratiba”, pois a

terra dos índios, segundo o capitão-mor, principiava na Ponta da Mangaratiba que fica ao

sudoeste correndo ao mesmo rumo por parte da Ilha Grande e não tinha principio na ponta

da Mangaratiba que ficava ao nordeste, vide figura 7. O que se configura, como já dito, é a

existência de dois pontos com a mesma denominação, Ponta de Mangaratiba, o que trazia

complicações para o entendimento da querela, pois se realmente houvesse duas pontas de

Mangaratiba, aquela área que era apresentada no primeiro documento, a sesmaria dos

Antunes, futura posse de Pedro Alexandre estaria fora dos limites da extensão dada por

Salvador de Sá aos índios. Reafirma-se que durante a pesquisa, em nenhum momento as

fontes registravam duas regiões com a mesma denominação. Apenas a Ponta de

Mangaratiba original, ao nordeste do saco.

Deve-se aventar a hipótese de que um dos dois estaria "deslocando" a posição

geográfica do local denominado "Ponta de Mangaratiba", como já foi apontado

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anteriormente. No campo jurídico, apesar de não tentarem invalidar o próprio processo,

verifica-se a busca de desqualificação das versões dadas pelas partes.

O desembargador, pelo seu relatório, acredita na versão de Bernardo de Oliveira, já

que aceita o fato de haver duas localidades com o mesmo nome, fato que em nenhum

momento foi apontado por Pedro Alexandre Galvão, talvez na tentativa de realmente

estender a área da sesmaria de Bartolomeu Antunes.

Contudo, relembra o desembargador-parecerista, Pedro Alexandre Galvão mostrou

farta documentação para tentar provar o seu direito àquela terra, a qual segundo o

desembargador, apesar de ser aceita na sua argumentação, consiste, em boa parte, apenas de

documentos de transferência de posse

“sem direito de transferir dominio o qual da mesma sorte se não tem transmitido nem derivado ao Suplicante apesar dos diversos títulos, alias capazes de transferir dominios: porque a posse do Suplicante e de seus antepossuidores ainda que centenaria, não é fundada mais que em nenhum titulo colorado”. 48

É possível apontar, apesar de proibido juridicamente, o fato de que as pessoas

vendiam terras sem terem o direito de fazê-lo, pois apesar de deterem a posse, ou seja, o

domínio útil, não tinham o domínio efetivo, o que caracteriza que na América portuguesa as

pessoas costumavam requerer ou receber terras, principalmente pelo sistema de sesmarias e,

cultivando-as ou não, as revendiam. Tal fato remonta à questão da transição entre posse e

propriedade na colônia. Não havendo real controle sobre as terras cultivadas e face à

dificuldade desse próprio controle, ocasionada pela falta de pessoal na administração

colonial ou desinteresse por parte dos administradores locais em não controlá -la, abria -se a

possibilidade para os moradores da América portuguesa de constituírem um patrimônio

material "privado" que era cedido pela Coroa e, sendo vendido, transformava-se num início

de formação de capital. O próprio desembargador confirma que "são capazes de transferir

48 Em toda a pesquisa realizada, lamentavelmente não foi possível verificar o significado da expressão "título colorado". Processo nº 3891 e 707.

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domínio" talvez respaldado no que acontecia na colônia, tornado um costume 49. Porém, se

reclamado por alguém, poderia haver a retirada do domínio. Exatamente o que estava

acontecendo no processo em foco.

Assim, mesmo o suplicante apresentando os documentos relativos à compra feita

junto a Nicolau Baldim, que herdara de seu avô, o qual, por sua vez supostamente, herdara

de Bartolomeu Antunes Lobo, a venda de uma porção de terras por parte de Nicolau era

ilegal já que o mesmo também não teria direito de transferir domínio da região requerida

por Pedro Alexandre Galvão. Essa autoridade argumenta ainda que os fatos circunstanciais

“não aparecem assim no caso presente contra os índios primeiros, naturais senhores e com as qualidades de pessoas miseráveis. Depois disso, o suplicante não tem posse; pois que aonde estão matos virgens, sem dúvida que não ha athos possessórios”. 50

Dessa forma, o parecerista direciona seu posicionamento para o fato de que Pedro

Alexandre Galvão não poderia ser senhor daquelas terras, por não ter realizado "atos

possessórios". Porém, tanto nos documentos de transferência da terra entre os padres e

destes para Pedro Alexandre Galvão, são descritas muitas benfeitorias, indicando atos

possessórios, como também os próprios índios, ao reclamarem da estrada de carro,

argumentavam que o único que a utilizava era Pedro para uso de sua colheita, confirmando,

então, que Pedro realmente cultivava aquela terra. Lembra-se ainda que não fora feita

nenhuma vistoria. Sendo assim, nenhum oficial de justiça poderia afirmar se havia

benfeitorias ou não.

Em contraste, os índios, já classificados como "pessoas miseráveis" pelo

desembargador e o capitão mor, não apresentaram nenhum documento que comprovasse a

doação de terras feita por Salvador Correia de Sá. Porém, na linha de argumentação do

49 Essa discussão também foi analisada por Márcia Motta e apresentado no capítulo anterior. Ademais, foi mostrado que num conjunto documental referente ao Espírito Santo, de concessões de sesmarias em forma de alvarás, que as mesmas não poderiam ser vendidas ou transferidas sem a permissão expressa do rei. Caso contrário seriam retomadas para o poder régio. Já para o caso do Rio de Janeiro, as sesmarias deveriam ser confirmadas em 3 anos e após esse prazo, os sesmeiros estavam livres para aliená-las ou vendê-las. 50 Processos nº 3891 e nº 707.

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parecerista seguia o problema da sobrevivência dos índios, bem como da forma como

deviam ser tratados, forjando um interesse que tinha sentido racional: o de preservar uma

reserva de braços para a produção relacionada com o objetivo de ocupação produtiva das

terras.

Prosseguiu, nesse sentido, comparando os índios aos menores, que deveriam ser

protegidos pela Lei Pátria, concluindo no seu parecer, através da

“Lei do 1 de abril de 1680, suscitada pela de 6 de junho de 1755, sendo as terras primeiras para a cultura dos índios principalmente por terem passados por essa Aldeia os de Taghuay, deve o suplicante, não so desembaraçar o passeio aos índios nos matos, que derrubaram para as suas lavouras; mas de toda a meia legoa que ali possui”.51

Assim, a pressão demográfica exercida pela chegada dos índios de Itaguaí também

foi determinante para salvaguardar as terras dos aldeados de Mangaratiba. Finaliza

sugerindo que poderiam ser dadas outras terras devolutas ao suplicante e que o mesmo

devia utilizar seus direitos para ir contra os vendedores52. Logo, o magistrado deslocou o

problema da "propriedade" dos índios para o de sua sobrevivência, invocando a Lei de

1680. Dessa forma, justificaria a necessidade de as terras retornarem a quem de fato delas

precisava.

Bastante interessante é o fato de Pedro Alexandre Galvão ter vendido a fazenda e

terras que confrontavam com as terras da Aldeia dos índios a Antonio Gomes da Silva em

1º de agosto de 1788, o que indica que ainda estava de posse daquelas terras e até então

nada fora feit o pela justiça. Pedro Alexandre "que era senhor possuidor de uma fazenda

cita no dito Disctrito da ilha Grande e paragem de Mangaratiba com meia legoa de terra

de testada, e o sertão que lhe pertencer", apresentava como marcos delimitadores os

mesmos que foram apresentados anteriormente: "testada como Rio chamado do Saco e por

51 Processos nº 3891 e nº 707. 52 Cabe salientar que no parecer nada é mencionado sobre os religiosos.

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um lado com terras dos índios que ficam da parte de Leste, e pelo outro com terras de João

de Matos".53

Retorna-se aqui à questão sobre posse e domínio. A noção de que Pedro Alexandre

era senhor e possuidor, lhe era tão clara que o possibilitava vender as terras, transferindo os

mesmos ideais contidos na relação. Ora, como Pedro Alexandre Galvão poderia vender uma

terra que estava claramente em litígio? Pior, terra que havia perdido na justiça.

A escritura fora passada na Vila de Nossa Senhora da Conceição de Angra dos Reis

da Ilha Grande pelo tabelião Diogo Pires de Oliveira Lara. Seria possível que esse

funcionário não soubesse do litígio de três anos antes, já que a venda fora realizada em 1788

e o primeiro processo finda, mesmo que não cumprido judicialmente, em 1785? Contudo,

ou a venda não foi concretizada por desistência do comprador ou por alguma ação judicial

que não consta dos processos, pois Pedro Alexandre Galvão continuou respondendo pelas

terras no segundo processo, como se verá. Enfim, pode-se pensar na tentativa de Pedro

livrar-se do problema que aquelas terras estavam representando ao vendê-las.

3.5.1 A invasão das aldeias indígenas

Antes de analisar o segundo processo é necessária a apresentação de outra fonte

onde foi possível cruzar alguns dados sobre os agentes que permeiam o objeto. Tal atitude

não fora tomada inicialmente, no intuito de deixar para que o próprio leitor chegasse a

algumas conclusões. Como já dito, por se tratar do período colonial, no qual muitas

pesquisas ainda estão por se fazer, encontrar uma fonte que contemple o mesmo palco e

atores que a pesquisa em curso é uma dádiva. No levantamento feito na revista publicada

pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, foi encontrado artigo de Silva que, além de

53 Processo nº 707.

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trazer uma narrativa sobre cada aldeamento indígena da Capitania do Rio de Janeiro,

incluindo a aldeia de Mangaratiba, traz em seus anexos vasta documentação54.

A primeira informação relevante já adiantada mas talvez não tenha se fixado na

memória do leitor é a de que Pedro Alexandre Galvão também era índio. Por isso não foi

iniciada uma discussão entre grandes e pequenos posseiros, a exemplo do que Motta

encontrou junto à documentação do século XI X em Paraíba do Sul, tendo em vista que se

tratava de pessoas da mesma origem étnico-social Interessante notar que em ambos os

processos, em nenhum momento, tal informação fica clara. Ao ler apenas os processos

judiciais, poderia se ter a impressão de que Pedro Alexandre Galvão era, de fato, um

grande senhor, branco e que teria usurpado a terra dos índios. Lembra-se também que Pedro

Alexandre figura na lista nominal apresentada ao Marques do Lavradio entre os 72

proprietários de engenhocas de Mangaratiba.

Tal informação torna ainda mais complexa a análise do conflito. Os índios faziam

parte importante no processo de compra e venda de terras, bem como de aforamento, vide a

índia viúva Maria Garcia e o próprio Pedro Alexandre Galvão. A hierarquização social da

sociedade colonial penetrou na organização social indígena, mesmo havendo ainda

elementos de permanência da sua tradição organizacional. Novamente a dúvida é até que

ponto houve essa penetração da sociedade colonial na aldeia de Mangaratiba. Além da

compra da terra efetuada por Galvão, ele havia adquirido escravos. Ou seja, o material

documental da pesquisa revelou um índio senhor de escravos. Estes, portanto, acumulavam

riquezas, mostrando que nem todos haviam sido reduzidos ou transformados em "escravos".

A tese de doutorado de Maria Regina Celestino de Almeida já aponta para essa

relação. A autora afirma que os índios tinham papel importante no mercado de terras, pois

era a partir delas que os índios conseguiam a maior parte dos seus rendimentos. Desde cedo

54 SILVA, 1854. Lamentável é que não há indicação de onde essa documentação foi tirada.

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os índios perceberam a necessidade de garanti-las através de títulos legais, principalmente

nas negociações feitas, como forma de defender os territórios recebidos para os

aldeamentos, utilizando-se da legislação e do processual jurídico português inerente a essas

relações, principalmente as cartas de sesmarias e as demarcações. (Almeida, op. cit., p.225)

É sobretudo essa inserção que os coloca no palco dos conflitos eminentes o que demonstra

cabalmente a própria fonte jurídica utilizada nesse capítulo. 55

Todas essas contribuições podem ser colocadas sob nova perspectiva, como um

fator importante no processo de ocupação produtiva no território da colônia. Essa ocupação

produtiva colonial teve como agentes os próprios índios, também fazendo parte da nova

lógica que se apresentava, a da dominação por posse, domínio útil, seguida da apropriação

ou assenhoreamento, tornando-se senhores de terras, a partir do domínio efetivo e da

legitimação documental. Os habitantes da colônia se apossavam de determinadas terras e

iam construindo seu prestígio e sua legitimidade, seja através do poder econômico advindo

da produção, seja pelo poder político das relações estabelecidas com as autoridades locais,

promovendo "automaticamente" suas posses em domínios senhoriais.

Essa fonte jurídica mostra que os índios da aldeia de Mangaratiba já teriam tido suas

terras invadidas. A esse respeito há, no segundo processo, uma documentação referente a

um problema de terra com os índios aldeados no ano de 1770. A função deste documento no

processo foi o de mostrar que aquela terra em litígio já pertencia àqueles índios e acabava

comprovando como, de fato, havia o costume de pessoas se introduzirem nas aldeias

pertencentes aos índios com o objetivo de se apossar de suas terra.

A carta vocatória escrita na Comarca do Rio de Janeiro referia -se ao problema dos

índios da Vila de Angra dos Reis da Ilha Grande, e ao fato de que a vila deveria cumprir as

55 As datas dos requerimentos dos documentos que eram apresentados por Pedro Alexandre Galvão, salvo algumas exceções, tinham data bem anteriores ao início do processo, confirmando sua preocupação em deter essa documentação caso algo viesse a acontecer.

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ordens do Dr. Antonio Pinheiro Amado, tendo em vista que pertencia ao desembargo de S.

Majestade, sendo então responsável pelos índios em questão.56

Ordenara ao Juiz Ordinario da Vila de Angra dos Reis da Ilha Grande já que foi

representada por requerimento ao vice-rei Marques de Lavradio, a posse de uma légua de

terra por concesssão de Sua Majestade, em que os índios se estabeleceram com suas

culturas e lavouras, dentro da qual se quis introduzir um Padre Jose Antonio. Mandava-se

restituir aos "nativos" a posse de suas terras e lavouras em que sempre se confinaram.

Qualquer problema deveria ser remetido ao juízo do Dr. Antonio Pinheiro Amado por ser o

Juiz Privativo e Conservador dos mesmos índios, contra quem nenhuma outra pessoa

poderia proceder por causa alguma.

Essa carta vocatória é datada de 14 de agosto de 1770, bem anterior ao conflito com

Pedro Alexandre Galvão, o que mostra que o problema da demarcação de terras indígenas já

era problema judicial. Dessa forma, exigiu -se que se cumprisse a carta vocatória seis dias

após.57

Algo semelhante aconteceu em São Barnabé. Almeida descreve um problema

idêntico que acontecera nessa aldeia, onde tanto índios quanto padres insistiam na execução

das medições. Um padre, administrador dos índios, em 1753 teria solicitado as demarcações

das terras indígenas, já que pelo fato de não serem demarcadas, eram usurpadas e alheadas

por outros moradores que viviam perto das supostas confrontações. Com base em

documentação depositada no Arquivo Histórico Ultramarino, o parecer para que se fizesse a

medição foi favorável. Porém, não foi cumprido, já que um ano depois, os índios pediam

novamente a medição e demarcação das duas léguas concedidas em sesmaria. Ainda em

56 Era “Ouvidor Geral e Corregedor da Comarca com Alçada no Cível e no Crime nesta Cidade do Rio de Janeiro e mais capitanias de sua Repartição, Provedor dos bens e fazendas dos defuntos e ausentes, Capelas, Resíduos, Juiz Conservador dos Moedeiros e mais privilegiados da Real Casa da dita Cidade, dos índios da Aldeia de São Barnabé, São Lourenço, São Pedro, e de Cabo Frio, São Francisco Xavier e da Taghuay, e da Nossa Senhora da Guia de Mangaratiba”. Processo nº 707. 57 Processo nº 707. Com relação a esse fato não se têm mais notícias.

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1746, os índios afirmavam ao Rei terem recorrido á justiça recorrentemente, mas nada

tinham conseguido, já que um dos confinantes era um homem poderoso, senhor de engenho,

Diogo de Azevedo Coutinho, e estava sendo acusado de ter vendido ilegalmente terras que

não eram dele e o comprador, apesar da ilegalidade da venda, se tinha assenhoreado das

terras. Alegavam que necessitavam das terras para sobreviver e utilizavam como argumento

os vários serviços prestados ao rei (Almeida, 2000, p.250-251).

Apesar de o problema ocorrido em 1770 não ser com Pedro Alexandre Galvão, o

litígio envolvendo os índios de Mangaratiba e Galvão não era um fato isolado.

Segundo Almeida, a maioria das aldeias de índios do Rio de Janeiro foi formada

através de terras concedidas em sesmarias. Sobre a definição da área para o estabelecimento

da de Mangaratiba, utiliza os mesmo dados oferecidos por Pizarro acerca da sesmaria

concedida a Salvador Correa de Sá e Benavides em 1620 e da demarcação de meia légua

feita por seu pai Martim de Sá para que os índios a cultivassem, área localizada entre a

Ponta de Mangaratiba e o saco. Como não era objetivo principal da autora, nem possuía

outra documentação, não faz nenhuma discussão sobre quais seriam os reais limites da

aldeia.

Mas, no relato de Jacyntho Alves Teixeira58, contido em Silva, o autor foi bem

cuidadoso ao afirmar sobre a origem da meia légua destinada à aldeia. Para ele, não está

claro se a meia légua que ocupavam os índios foi dada por Martim de Sá ou por Salvador

Correa de Sá, ou se era a parte referente que cabia a João Sinel e Diogo Martins, ambos

índios, que constam na sesmaria concedida, segundo os documentos encontrados, no

primeiro processo. Da mesma forma, recorda que na escritura de venda de seu engenho, em

1652, Salvador Correa de Sá reservou realmente meia légua "de que mais havia, para os

índios" (Silva, 1854, p.391). Questiona, então, se essa meia légua fazia parte das terras de

58 No relato não consta nenhuma data, contudo deve ser do início do século XIX.

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Salvador ou se ele concedera essa meia légua, sem se importar em saber se já havia algum

sesmeiro naquela área. Porém, segundo Teixeira, os índios estariam de posse daquelas terras

havia muitos anos e relata também que as terras saíam do rio Sahi-pequeno (ou Iri-mirim) e

entestavam com as terras do cônego Diogo, que as vendeu a Pedro Alexandre. Dessa forma,

reconheceu como confrontante da aldeia dos índios Pedro Alexandre Galvão.

3.5.2. O conflito no interior da aldeia

A segunda informação relevante é que o capitão-mor Bernardo de Oliveira e Pedro

Alexandre Galvão, não diretamente, mas seu pai, já haviam se confrontado, dez anos antes,

em 1775, numa clara disputa pelo poder político na aldeia, relacionado com a importância

dos nativos na ocupação efetiva e produtiva do território, o que configura que a luta no

interior da aldeia começou bem antes da disputa judicial.

Assim sendo, não se pode visualizar Pedro Alexandre como um índio totalmente

aculturado que deseja retirar terras de seus pares. Era um índio, senhor e possuidor de terras

e escravos, de certa maneira inserido na sociedade colonial, mas que lutava pelo poder

interno da aldeia, permanecendo nele a sua identidade original.

Bernardo de Oliveira foi a primeira pessoa nomeada para o cargo de capitão-mor.

Tinha, segundo Silva, "nascido entre elles", tendo sangue também de português e africano.

Ele teria encontrado a aldeia num estado deplorável, com muita prostituição, onde índias se

ofereciam aos moradores e a embriaguez era a causa de rixas e distúrbios diários (Silva,

1854, p.162).

Na tentativa de resolver a situação, obrigou-os ao trabalho na Igreja ainda não

finalizada e parecendo estar em ruínas. Como os índios não obedeceram, impôs-lhes severo

castigo corporal. Neste relato há indícios de que a socialização de Bernardo de Oliveira

havia internalizado métodos "convincentes" de comando da sociedade "branca" ou colonial

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em formação, já que impôs castigo corporal aos seus "companheiros", tendo chamado a

milícia ou contado com a ajuda de seus aliados. Da mesma forma, cabe questionar porque

os índios não o teriam obedecido, já que como líder da aldeia, devia gozar de certo

prestígio. A questão de obrigar os índios a trabalhar suscita outra pergunta: trabalhar para

quem? É claro que os índios trabalhavam, afinal precisavam sobreviver. Seria o pároco da

igreja um dos aliados do capitão-mor, solicitando a mão-de-obra indígena para finalizar a

igreja?

Em resposta às ações de Bernardo de Oliveira, os índios se organizaram, liderados

por Manoel Jozé , o velho, pai de Alexandre Galvão. Ainda segundo Silva, Manoel Jozé

ambicionava o cargo de capitão-mor e teria redigido uma representação ao vice-rei contra

Bernardo de Oliveira, tentando derrubá-lo59. Uma das acusações feitas a Bernardo de

Oliveira era o qualificativo de indigno ao posto de capitão-mor por ser mestiço e não apenas

índio. Porém, os depoimentos dos índios seriam falsos de acordo com levantamentos

posteriores, pois teria havido exagero nos relatos.

Manoel Jozé, pai de Pedro Alexandre, foi preso e enviado para o Rio de Janeiro com

pena a cumprir em trabalhos nas galés. O capitão-mor teria se compadecido de sua desgraça

e pediu ao vice-rei seu perdão, desde que não voltasse à aldeia, estabelecendo-se na ilha de

Jagoanon, perto de Mangaratiba. Mas, assim que Bernardo de Oliveira morreu,

provavelmente em 1804, e com a mudança de vice-rei, Manoel Jozé retornou à aldeia 60.

O fato de o próprio Bernardo de Oliveira ter solicitado o perdão de seu inimigo,

pode significar que o capitão-mor não conseguiria governar a aldeia, buscando este

subterfúgio no sentido de conseguir a paz e amenizar o desgaste frente aos aldeados. Se o

59 Nos documentos arrolados por Silva, encontra-se a "Representação de muitos índios em 1775". In: Silva, 1854, p. 396-398. 60 Provavelmente no ano de 1804. Infelizmente não se tem a data precisa, nem da morte de Bernardo de Oliveira nem dessa segunda representação. Em alguns documentos temos a data de 1804 e 1806. Almeida, analisando os mesmos documentos, também acredita que os eventos citados tenham acontecido na mesma época.

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inimigo continuasse preso, havia a possibilidade de o conflito se perpetuar. Esta

possibilidade é aventada ao considerar que um dos principais componentes das relações

sociais entre os índios era a vingança61. Assim, o próprio processo judicial poderia ser

interpretado como uma vingança de Pedro Galvão contra o capitão-mor.

O cargo foi sucedido por Jozé de Souza Vernek, que enfrentou os mesmos

problemas da “falta de vontade” dos índios em trabalhar, novamente sem esclarecer quem

seria o beneficiário dos frutos desse trabalho. Ademais, o novo capitão-mor tinha bem mais

idade que o anterior e como não conseguia liderar seus índios, "entregou-se ao vício da

embriaguez". Os índios juntaram-se novamente, já no século XIX, agora na tentativa de

nomear como capitão-mor Pedro Alexandre Galvão. Juntamente com seu pai Manoel José,

o velho e seu irmão Manoel Jozé, o moço, foram responsáveis pela turbulência na aldeia.

Esse grupo de índios fez várias representações ao vice-rei D. Fernando Jozé de Portugal e

este, passando pela hierarquia do ouvidor e conservador dos índios, ordenou que o capitão-

mor Jozé de Souza Vernek se apresentasse imediatamente, entregando a patente.

Já uma outra parte dos índios, influenciada pelos habitantes da região, ficou

temerosa de Alexandre Galvão ocupar o cargo de capitão-mor e dirigiu várias queixas ao

juiz conservador Jozé Albano Fragoso. Não há referência de quem seriam tais habitantes, se

outros foreiros, ou párocos interessados num capitão-mor que submetesse os índios aos

trabalhos forçados para usufruto da igreja ou outro beneficiário.

O medo dos índios estava em serem expulsos da aldeia, conforme Silva. O juiz, sem

saber da decisão que tomara o vice-rei em retirar do cargo de capitão-mor Jozé de Souza

Vernek, ao ser noticiado pelos índios aldeados se sentiu profundamente ofendido e entregou

o cargo. Reclamava que o vice-rei não teria confiado nele, já que não lhe dera a ordem de

61 Sobre a vingança, ver Almeida, op. cit. p.32.

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execução de tirar o capitão-mor do cargo, bem como nada fora mandado registrar no livro

da aldeia.

O juiz Fragoso continuou a se referir a essa "estranha ingerência" já que estavam

sendo utilizados todos os meios legais cabíveis para dirimir os conflitos, tais como câmaras,

justiças locais, militares e reafirmava que o juiz e ouvidor geral do crime no caso do réu ser

índio aldeado lhe competia. Estimando sua autoridade contestada, Jozé Albano Fragoso

solicitava sua "expulsão" da conservatória de Mangaratiba, nomeando outro juiz. A data da

carta é de 16 de fevereiro de 1804.

A reclamação por parte de outro conjunto de índios aldeados foi considerada

procedente e Jozé de Souza Vernek reassumiu o cargo. Os índios que haviam se posto

contra ele, liderados por Galvão, ficaram quietos por um período. Já o juiz Jozé Albano

Fragoso foi substituído pelo desembargador Jozé Barrozo Pereira, provavelmente pela

audácia de contestar uma decisão do vice-rei.

O novo juiz conservador tentou, como os capitães-mores anteriores, realizar o

projeto de obrigar os índios ao trabalho e, mais uma vez, os índios se puseram contra essa

autoridade. Dessa vez, a reação foi mais violenta e chegaram a destruir algumas casas. Em

13 de outubro de 1806, o índio Valério de Lima, juntamente com outros, destruiu uma casa

que ainda estava em construção pertencente a Jozé de Araújo, morador recente na aldeia.

Dez dias antes, por volta das 15:00 horas, liderados pelos irmãos Pedro Alexandre

Galvão e Manoel Jozé, o moço e o pai, Manoel Jozé, o velho, um grupo de índios resolveu

atacar o capitão-mor, indo à sua residência na localidade de Praia Mansa, há uma légua da

aldeia, todos armados. O capitão implorou por sua vida e os índios recuaram. Mas ao

retornarem à aldeia destruíram mais casas, entre as quais uma que pertencia ao capitão-mor,

construída por um Antonio Joaquim, habitante da Freguesia e amigo do capitão.

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O ódio dos índios referia -se às relações estabelecidas entre o capitão e os demais

habitantes da aldeia. Ameaçavam expulsá-los se persistissem a construir casas na região.

Haveria, segundo Silva, por trás dessa reação, o medo que tivessem o mesmo fim que a

aldeia de Itaguaí. Já Almeida aponta essas reações como uma tentativa de preservar a

dignidade dos índios e sua vida social e comunitária. Pode se supor também que a presença

de estranhos tivesse ultrapassado o limite tolerável estabelecido pelos índios.

Agora, já no século XIX, data posterior aos processos judiciais, novamente

Alexandre Galvão e os demais índios redigiram representação em que reclamavam dos

procedimentos do capitão-mor Jozé de Souza Vernek e de alguns habitantes da Freguesia.

Acusavam-no de "privar os índios de suas terras para dal-las aos brancos, e

principalmente as da estradas (sic)" (Silva, 1854, p. 258). Além das terras, reclamavam

também das estradas que possuíam seu valor econômico, já que facilitavam e possibilitavam

o controle do escoamento da produção.

Pediam também a destituição do capitão-mor, o fim das tavernas e a expulsão de

Antonio Joaquim e João Luiz, amigos de Jozé de Souza Vernek por "seduzirem as moças

donzelas" e cometerem furtos. (Idem, Ibidem). Tentaram expulsar todos os oficiais de

vintena 62 enviados pelo juiz conservador Jozé Barroso Pereira, justamente para manter a

ordem.

Contudo, os dois fugiram. O juiz de vintena Ignácio Antonio de Freitas, em 30 de

novembro de 1806 teve sua casa invadida pelo índio Felisberto Francisco que o atingiu com

um machado, só não morrendo porque seu irmão viera em seu socorro. Fugiram ambos para

Ilha Grande. O escrivão Pedro Jozé Moreira, sabendo do atentado, tomou o mesmo destino.

O capitão-mor se livrou dos acusados na devassa feita, principalmente pelo

depoimento do vigário Joaquim Jozé da Silva Feijó. Cabe registrar que foi este padre jesuíta

62 São oficiais locais a serviço da justiça.

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que conseguiu concluir os trabalhos da igreja, em 1795. A construção do templo tinha se

iniciado sob coordenação do vigário Salvador Francisco da Nóbrega Fernandes em

03/07/1785, mesmo ano que começou o processo judicial. 63 Teria essa construção sido

finalizada pelos índios? Acredita-se que a resposta é positiva.

Mesmo assim, o vice-rei, Conde dos Arcos, resolveu tomar medidas rigorosas. O

ouvidor geral da comarca Jozé Barrozo Pereira, dirigindo-se ao juiz ordinário da vila da Ilha

Grande Luiz Rodrigues de Miranda pediu todas as informações sobre a aldeia e despachou

concessão de licença para a construção de casas.

Os índios contestavam tal concessão respondendo que não haviam dado

consentimento e também não permitiam a presença de oficiais de vintena e reclamavam da

demora em nomear-se novo capitão-mor.

O cargo foi passado para Pedro da Mota, irmão do falecido Bernardo de Oliveira,

apontado pelos moradores locais como o único capaz da dignidade do cargo. 64Apenas uma

pessoa entre esses moradores é identificada, o padre Joaquim Jozé da Silva Feijó,

responsável pelo término da igreja local.

Claro que os índios não o reconheceram, promovendo novos tumultos. Pedro da

Mota prendeu os revoltosos 65 e os enviou para o Rio de Janeiro, onde foram forçados a

trabalhar em obras públicas. Segundo Silva, houve um período de paz nas três décadas

seguintes, o número de habitantes voltou a crescer, elevarem-se edifícios e fez-se um

arruamento. Desenvolveu-se também o comércio e a agricultura. O aumento populacional

fez com que os índios que restaram ficassem mais temerosos.

De fato, a própria Câmara Municipal,66 anos mais tarde, reclamava a propriedade

das terras indígenas e os foros que lhes deveriam. Segundo a Representação da câmara

63 ANS. Série Inventário. Cx. 393, pasta 1516. 64 Novamente não há a tipificação desses moradores. 65 Não se tem o nome dos revoltosos. 66 Mangaratiba tornara-se vila em 1831.

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municipal de Mangaratiba em sessão ordinária de 09/03/1847, assignada pelos vereadores

Miguel Antonio da Silva, Jozé Eloi da Silva Passos, João Alves Rubião, Joaquim Jozé Faria

de Matos, João dos Santos Breves, Jozé de M. Vasconcellos Castro, os índios possuíam

meia légua que lhes tinha sido dada e outra meia légua que eles tinham se apoderado e

"estavam de posse" (Silva, 1854, p. 417-420).

Almeida analisou bem o caso da aldeia de Mangaratiba e o da aldeia de São Pedro

(Almeida, 2000, p.169 e segs.). Pelo exposto no texto da autora, depreende-se que os índios

aparentavam ter um sentido de vida comunitária e de resistência às lideranças que não

correspondiam às suas expectativas. Isto, apesar de não serem alfabetizados nem terem

sofrido influência de missionários residentes.

Afirma que os revoltosos, liderados por Pedro Alexandre Galvão, questionavam a

violação de seus direitos com base no costume, recorriam a justiça e quando perdiam

voltavam a recorrer. Baseando-se num inquérito efetuado no Peru nos anos 1580, no qual os

índios demonstravam consciência das mazelas trazidas pelos colonizadores, vendas de

bebidas, consumo de coca desenfreado, além da imposição dos limites na prática das suas

tradições, provocando desagregação social e alta mortalidade entre eles, Almeida afirma

que o mesmo ocorreria em Mangaratiba: reivindicações que apontam no sentido de

preservar a dignidade dos índios e de sua vida social e comunitária, acusando mesmo o

capitão-mor de alcoolismo e exigindo a designação de um líder digno e respeitado pela

comunidade.

Esta situação e outras que são narradas por Almeida, revelariam e afirmariam o

sentido de vida coletiva dos índios aldeados de Mangaratiba, mesmo quando apresentavam

petições de interesse particular, a maioria das quais eram de interesse coletivo,

demonstrando um grande sentimento de identificação com o grupo que, ademais, era

condição básica para os direitos aos quais faziam jus. Trataria -se , então, de dois "modus

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vivendis", o do conjunto dos índios e o da sociedade colonial hierarquizada com os índios já

inseridos nesse processo.

Contudo, as duas tentativas de ser nomeado, uma por parte do pai de Alexandre

Galvão e outra por ele próprio, mostram o interesse pessoal pelo cargo de capitão-mor da

aldeia e são expressivas de uma personalidade cuja liderança conflitava profundamente com

a tradição coletiva (tribal) dos índios.

O processo judicial pela disputa de terra apresentado neste trabalho, envolvendo em

ambas as partes índios ou mestiços de origem indígena poderia, na verdade, estar

mascarando essa luta pelo poder interno, caracterizando a preocupação dos índios em aliar,

por um lado, o poder político a um poder econômico, expresso na vontade de assenhorear-

se das terras para aforá-las. Ao mesmo tempo, a disputa judicial também envolvia a

motivação política e social, ao possibilitar um controle sobre o restante dos indivíduos

aldeados.

Sugere-se, na realidade uma disputa de parentelas pelo poder político da aldeia. Não

é que a inserção do índio na vida social do Antigo Regime tenha despertado tal egoísmo.

Afirma-se que os índios aprenderam a lidar no novo cenário apresentado pela própria

política da coroa portuguesa de tornar os índios em novos súditos cristãos, na expressão de

Almeida. A disputa interna de duas parentelas não fica evidente no processo. Contudo, a

documentação analisada permite levantar a hipótese de que a origem do conflito fundiário

residiria na questão parental.

Dessa forma, a lógica contratual das sesmarias implicaria numa individualização da

posse, diferenciando-se, estruturalmente, da comunidade dos índios e sua visão sobre a

terra: a de posse coletiva. O que se observa é a erosão dos valores societais fundadores e

tradicionais dos nativos, fruto da necessidade de sobreviver, tornando-os agentes atuantes

da lógica colonial, de certa forma imprevisível para a Coroa portuguesa. A complexidade

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nas relações coletivas é fruto do processo de hierarquização através do enriquecimento e

diferenciação social que ocorreu nas aldeias, colocando os índios como agentes no processo

colonizador.

3.6. O problema da documentação, os argumentos apresentados no segundo processo e

o não-fim da contenda.

No segundo processo no 70767, datado de 1792, sete anos após o primeiro, ocorreu

uma inversão dos papéis no novo processo judicial, embora o objeto da disputa fosse o

mesmo. Os autores da ação passaram a ser os índios aldeados de Mangaratiba, ou seja, os

suplicantes, e o suplicado passou a ser Pedro Alexandre Galvão. A julgar pela existência

desse segundo processo, pode-se afirmar obviamente que nada fora feito, ou talvez, agora

os índios realmente quisessem avançar sobre as terras de Pedro Alexandre Galvão.

Caracteriza-se, portanto, a protelação de disputas pela "não ação" judicial e reabertura de

processo anterior como um "novo" processo.

Esse processo encontra-se mais rico em documentação e se estende até o ano de

1811. Não será objeto nesta seção a análise factual dos sucessivos posseiros da região,

tendo em vista que já foi feito nas seções anteriores. Aqui, apresentar-se-ão alguns

problemas suscitados no geral e novos elementos presentes no segundo processo judicial.

O Capitão Mor da Aldeia de Nossa Senhora da Guia de Mangaratiba, juntamente

com os índios, pedia ao Conde de Rezende, Vice Rei do Estado que lhe passasse o mandado

de posse que fora feito no tempo do Desembargador Francisco Luiz Alvres da Rocha,

ouvidor e Conservador dos índios e o parecerista do primeiro processo. Tal mandado de

posse se originou por ordem de Luiz dos Vasconcelos e Souza que então era Vice Rei

67 Arquivo Nacional, caixa 1431, gal. A.

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dando posse aos suplicantes das terras no Saco da Mangaratiba que partem de uma banda

com terras de Pedro Alexandre Galvão, e de outras com terras da Aldeia.

Esse requerimento dos índios foi feito em setembro de 1792, em audiência pública,

nos Passos do Conselho na Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, através de seu

procurador que visava o cumprimento do mandado de reintegração de posse que fora

proferido em agosto de 1785, sete anos antes. Agora, os documentos referentes à justiça

colonial eram assinados e conduzidos pelo Dr. Ouvidor Corregedor da Comarca Jose

Antonio Valente, não mais por Francisco Luiz Álvares Rocha 68.

Como que prosseguindo o andamento do primeiro processo, porém iniciando-se

outro, foi mandado apregoar pelo Porteiro do Juízo a ordem de apresentação dos títulos por

parte de Pedro Alexandre Galvão, como o Mandado de Ratificação de Dominio e posse em

que estavão os Índios da Aldeia da Mangaratiba das suas terras.69 Mesmo ainda podendo

mostrar, mais uma vez, na justiça, os documentos que pudessem prolongar a contenda, nem

Pedro Alexandre nem seus procuradores compareceram.

De fato, o primeiro conjunto de documentos que integram esse segundo processo

refere-se a alguns mandados de reintegração de posse expedidos logo após o término do

primeiro, durante todo o mês de agosto do ano de 1785, todos expedidos pelo mesmo

desembargador que dera ganho de causa aos índios, Francisco Luiz Álvares Rocha. Porém,

parece que não foram cumpridos. Dessa forma, tentava-se ainda fazer cumprir mandados de

1785, no ano de 1792.

Ao longo dos meses de setembro, outubro e novembr o, alternaram-se os mandatos

ora em favor de Pedro Alexandre Galvão, ora em favor dos índios aldeados. A cada

68 Francisco Luiz Álvares da Rocha no "Almanaque da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro: 1799" de autoria de Antonio Duarte Nunes, ainda aparece como desembargador da Relação. A sua substituição pode ter sido feito coincidentemente pela distribuição dos processos judiciais aos desembargadores, a semelhança do que ocorre hoje. Porém, pode se aventar a hipótese de uma mudança política. RIHGB, 267: 93-214, abr./jun. 1965. 69 Processo nº 707.

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mandado enviavam meirinhos e porteiros para efetuar os "mandados de posse de domínio e

ratificação da terra".

Contudo, ficaram os índios temerosos de alcançar um mandado de despejo contra

Pedro Alexandre Galvão e, ao mesmo tempo, conseguir a restituição da posse das terras

sem procedimento da vistoria, dando a possibilidade de o suplicado fazer algum

requerimento sinistro. Com efeito, aquele temor era procedente, pois além da volta ou

permanência dos foreiros, Pedro Alexandre Galvão refutou o embargo de despejo, tendo em

vista que ainda a vistoria não ocorrera, ganhando mais uma vez na justiça o direito de ficar

nas terras.

Ao que tudo indica, houve um atraso na vistoria pelo impasse na indicação dos

nomes ou mesmo nunca chegou a ser realizada. O processo, após essa documentação

apresentada, dá um salto para o ano de 1800, perdurando até 1803. Contudo, quem aparecia

no centro das alegações nesse momento era Antonio José Pimentel, um agregado de Pedro

Alexandre, recomeçando mais uma vez todo o ritual processual já realizado em 1785 e

1792, embora não configurasse novo processo. Não fica clara a mudança de pessoa jurídica.

Pode ser que Antonio Jose tenha herdado as terras de Pedro Alexandre, ou mesmo

arrendado-as, se tornado uma espécie de titular da posse, ou mesmo ser uma estratégia de

transformar o agregado em arrendatário ou cessionário70, objetivando prolongar o processo

judicial.

Assim, em 18 de julho de 1800, em nova audiência pública nos Passos do Conselho

o corregedor da Comarca, Jose Albano Fragoso71, funcionário de outra instância jurídica,

pedia para rever a habilitação das terras de Antonio Jose Pimentel, funcionário de Pedro

Alexandre Galvão, que afirmava ter ganhado a causa contra os índios e pedia para dar o seu

devido cumprimento.

70 Termo que aparece no processo: secionario. 71 É o mesmo que pediu demissão ou um homônimo.

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Dessa forma, mais uma vez foram citados os índios Jose de Souza Vernek, agora

capitão-mor dos índios da Aldeia de Mangaratiba em virtude do falecimento de Bernardo de

Oliveira, Elias Jaques, Jacinto Verneque, Manoel do Nascimento, Felizberto Francisco,

Manoel Joze, Balthazar Pinheiro, Daniel Pereira. Gabriel Pimenta, e Faustino Correia,

expedido pelo Juizo do Ouvidor da Comarca para os autos da Villa da Ilha Grande. Para

defendê-los foi nomeados o Doutor José Bernardes de Castro Juiz de Fora do Geral.72

Também foram apresentados os artigos de habilitação de Antonio Jose Pimentel

para prosseguir respondendo no processo que Pedro Alexandre Galvão contendia com os

Índios da Aldeia de Mangaratiba, principalmente com relação ao procedimento da vistoria.

Ao que tudo indica, até aquele ano não fora realmente feita.

Novos documentos, alguns sem data, nos quais Antonio José Pimentel solicitava o

procedimento da vistoria “e athe agora V. Mercê não tem podido fazela, e (...) lhe cauza

grave prejuizo essa demorar”. E novamente pedia para marcar o dia para a medição, e caso

não pudesse fazer em virtude das ocupações do juiz “e ser longe o lugar renomeie Juiz para

ao fim atendendo ao prejuizo, qu experimenta tanta demora como na precisão das terras q

lhe fazem”. 73

De fato, parece que a distância e problemas com saúde eram a justificativa para a

não realização da vistoria, como se depreende da carta destinada ao Procurador Geral da

Comarca de um juiz, lamentavelmente não identificado, no qual alega que, apesar

“da honra que V. Mercê me faz com ano menção não me posso aproveitar porque padeço molestias que não podem sofrer viageum tão dilatada, o que sendo mesmo juizo e atendendo a V. Mercê haver por bem [escusar-me], mandando o que for servido”. 74

72 Servia "de Corregedor da Comarca com alçada no civel e crime nesta Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, e nas mais Capitanias de Sua repartição Provedor dos bens e Fazendas dos Defuntos (ausentes) capelas e residuos, Orphãos e (?) em toda a sua Comarca o Juis Conservador dos numaro dos privilegiados da Real Casa da Moeda desta Cidade e dos Índios da Aldea de S. Lourenço, S. Pedro de Cabro Frio, Saco de S. Francisco, Xavier de Taguaí, da N. S. Da Guia de Mangaratiba como também dos privilegiados do Santo Ofício". Processo nº 707. 73 Processo nº 707. 74 Processo nº 707.

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Finalmente, a medição foi executada. Contudo, os índios imediatamente pediram

para torná-la sem efeito, sob seguintes argumentos:

1) A medição não teria como principiar já que não se tinha certeza do local

de onde deveria se principiar, haja vista a discordância dos marcos e

questionava-se o marco designado, a casa de um índio chamado Antonio

Caetano e uma laranjeira, considerados marcos arbitrários.

2) Na medição, só foi contada a meia légua de terra definida com clareza na

declaração de troca de engenhos entre Salvador Correia de Sá e

Benavides e D. José Rendon, pois "suposto as terras verião athe o Saco,

a meia Legoa q havia de mais para dentro do Saco (?) reservada para os

Índios para a sua administração".

3) Retomavam o argumento da sobrevivência dos índios através do Alvará

de 23 de Novembro de 1700, ordenando que se desse uma légua de terra

em quadra para a sustentação de cada aldeia e no caso da referida aldeia

haveria cem casas, o que justificaria a concessão.

4) Da mesma forma, remontavam à antiguidade do seu estabelecimento que

teria mais de cem anos.

Essa estratégia dos índios de atrasar a vistoria, mesmo sabendo que a ação de

despejo só poderia ser efetuada mediante tal procedimento, sugere o medo de perderem de

vez as suas terras, já que enquanto as terras estivessem sendo objeto de disputa judicial,

Pedro Alexandre não poderia vendê-las.

A última página do segundo processo tem apenas uma frase: "Tendo os Supes hum

mandado de notificação do dominio de posse das terras da Aldea de Mangaratiba, q consta

a p. 25 e efectuou-se”. Por ela, novamente se pensaria na vitória final do índios. Porém, toda

a batalha travada na justiça não permite essa afirmação, principalmente pelo fato de existir a

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informação de que Pedro Alexandre teria vendido suas terras à uma Joana Roza, (Silva,

1854, p. 413).

Do ponto de vista da justiça, esse processo revela todas as dificuldades encontradas

pelos habitantes de Mangaratiba. Dificuldades oriundas de vários fatores, dentre os quais, os

principais seriam a falta de clareza de uma legislação específica para a terra e a falta de

pessoas para trabalhar na administração judicial da colônia. Apesar da clareza relativa

mostrada pela legislação referida aos índios, ao longo do processo, o que se revelou foi a

falta de respeito em relação a ela, sempre sobrepujada por outros interesses.

A exaustiva apresentação dos elementos encontrados no processo comprova os

aspectos que a dissertação pretendia, de fato, demonstrar. Para tanto, é possível dividir o

processo nos seguintes aspectos:

1) Recurso à desqualificação dos argumentos das partes contrárias;

2) Desqualificação do próprio sistema judicial, utilizando artimanhas e

subterfúgios como visto na ordem de despejo e no problema levantado na

vistoria;

3) A falta de clareza do conjunto da legislação que acirrava conflitos originados

por fatores sócio -econômicos por sua vez agravados também pelo desinteresse

da administração colonial e pelo distanciamento do controle real.

Dessa forma, os conflitos não se originavam estritamente dos fatores já destacados,

porém foram agravados por esses, sendo o contexto histórico específico da região decisivo

para melhor compreender as disputas fundiárias locais.

Este conjunto de questões permeou a análise do andamento do processo que durou

em torno de 26 anos, passando por dois réus, Pedro Alexandre Galvão e Antonio José

Pimentel, dois vice-reis e várias autoridades que faziam parte da administração colonial,

ponto que não foi explorado no momento.

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Enfim, caberia destacar o tempo cronológico da não ação (cerca de 26 anos) ou não

decisão como um modo de processo decisório implementatório (político, executivo ou

judicial) privilegiado para o encaminhamento dessa disputa.

Do ponto de vista histórico-antropológico, abriram-se questões, originalmente não

previstas nesta dissertação. Por um lado, um índio inserido no contexto de uma sociedade

colonial em formação que apresentava características bem diferentes da sua organização

social original, senhor e possuidor de terras e escravos, mas que, por outro lado, continuava

lutando pelo poder interno da aldeia, mantendo suas relações sociais originais.

Rigorosamente, o conflito pela terra iniciado quando da decisão de Pedro Alexandre

Galvão entrar na justiça e iniciar um processo apresenta dois aspectos a serem refletidos:

1) interesse próprio do Galvão em se tornar senhor, motivado pela sua

inserção no contexto da sociedade colonial;

2) disputa pelo poder interno da aldeia, através de canais providos pela

própria sociedade colonia l em formação.

Finalmente, esse conflito tornou-se extremamente refinado e complexo, na medida

em que sugere disputas de grupos ou de facções, em seu sentido mais amplo, ou até mesmo

de parentesco. Este último aspecto é sugerido como um campo em aberto, apenas

apresentando-se o problema.

O que se pode afirmar é que se tratava de grupos organizados que construíam seus

argumentos e sabiam que tipo de subterfúgios utilizar na disputa, ou seja, reconheciam a

complexidade de mudanças pelo qual estavam passando. Concretamente, se por um lado

Bernardo de Oliveira mudou a localização de uma região, por outro lado Pedro Alexandre

Galvão vendeu as terras em litígio. Os processos judiciais em tela, talvez, tenham sido

apenas um dos meios, entre outros, através dos quais fluíam disputas e conflitos no interior

da própria comunidade dos índios aldeados.

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CONCLUSÃO

A análise sobre as questões da terra, tema central da dissertação, levou a caminhos da

pesquisa inadvertidamente a tratar da inserção dos índios no processo de colonização. Embora

não fosse objetivo desta pesquisa demonstrar os índios integrados à colonização, acredita-se

que sua contribuição principal foi apresentar a situação do índio não podendo ser vista

homogeneamente.

Da mesma forma, em se tratando especificamente da lei de sesmarias, esta contemplava

em si própria toda hermenêutica possível, caracterizada pelo Direito. Ao ter como princípio

filosófico básico a garantia da terra pelo cultivo, abria espaço para a sua leitura de diversas

maneiras.

Até a promulgação da Lei de Terras de 1850, ocorreu um longo percurso entre domínio

útil, caracterizado pela posse, e domínio efetivo, caracterizado pela titulação regular, ou seja, a

propriedade. A questão da posse e da propriedade ou do domínio útil e domínio efetivo ou

natural possibilitou a visualização no aspecto jurídico, de que ter o domínio, útil ou efetivo

sobre a terra, muitas vezes significou ter a capacidade de podê-las vender, alhear e escambar.

Também foi possível apontar, mesmo que não sendo possível juridicamente, o fato de que as

pessoas vendiam terras sem terem o direito de fazê-lo, pois apesar de terem a posse, ou seja, o

domínio útil, não tinham o domínio efetivo, caracterizando que, na América portuguesa, as

pessoas tinham o costume de requerer ou receber terras, sobretudo pelo sistema de sesmarias e,

mesmo cultivando-as ou não, as revendiam.

Tal fato remonta à discussão do tema da transição entre posse e propriedade na colônia.

Não havendo real controle sobre as terras cultivadas, pela dificuldade associada à falta de

pessoal na administração colonial ou, simplesmente, desinteresse por parte dos administradores

locais, abria-se a possibilidade para os moradores da América portuguesa de constituírem um

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patrimônio material que era cedido pela Coroa e, sendo vendido, transformava -se num início de

formação de capital.

Estas contribuições podem ser colocadas em nova perspectiva, como um fator importante no

processo de ocupação produtiva no território da colônia, já que teve como agentes os próprios

índios, também fazendo parte da nova lógica que se apresentava, a da dominação por posse,

domínio útil, seguida da apropriação ou assenhoreamento, tornando-se senhores de terras, a

partir do domínio efetivo e da legitimação documental. A categoria dos índios do período

colonial não pode ser apenas diluída entre escravizados ou despossuídos, embora a sua situação

pós-chegada dos portugueses representou uma grande dizimação indígena. Mesmo os índios

aldeados mostravam-se bastante diferenciados de acordo com o seu grau de inserção na

sociedade colonial em formação.

Ao longo dos processos judicia is, pôde-se perceber um índio que adquiriu posses, ou

seja, Pedro Alexandre Galvão apresentava-se na categoria de senhor e possuidor de terras e

escravos, indicando a que nível de diversidade de hierarquização a sociedade colonial teria

chegado. Ao mesmo tempo, este índio alargou suas posses indo em direção às terras dos índios

da Aldeia de Mangaratiba, entrando em conflito direto com eles através da justiça colonial. Ao

longo das petições e testemunhos, verificou-se que também pretendia utilizar-se do trabalho

forçado dos índios, “seus companheiros”, já que Pedro Alexandre era também remanescente

daquela aldeia.

Ao cruzar com outros relatos, percebeu-se que havia uma disputa pelo poder interno da

aldeia justamente entre a família de Pedro Alexandre Galvão e o capitão-mor da Aldeia dos

Índios de Mangaratiba. Este fato novo levou a conjeturar a possibilidade do problema judicial

estar escondendo o verdadeiro conflito que seria uma disputa entre parentelas pelo poder

político dos índios.

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Com relação aos discursos e estratégias utilizados, nota-se que de certa forma eram

beneficiados pela dificuldade de estabelecer certos marcos. Contudo, o problema da

administração das sesmarias está inserido no problema da administração como um todo. Em

todas as instâncias, faltavam pessoas que trabalhassem na administração da justiça. A

dificuldade de locomoção e de informações poucos precisas, característico da época,

dificultavam os processos decisórios quando instaurados.

O assenhoreamento das terras, mais do que o apossamento das terras, era o fenômeno

que traduzia o fato de que pessoas se apossavam de determinadas terras, cultivavam-nas e já

incorporavam seus status de senhor de terras.

A pesquisa conclui-se com vários questionamentos. As lacunas são grandes, como

visto, e algumas indagações permanecem indecifráveis. As relações entre os diversos agentes,

no caso índios talvez plenamente ajustados à economia colonial, mas ainda arraigados a

algumas tradições, e índios aldeados que permanecem unidos resistindo à incorporação

imediata na sociedade colonial, merecem maiores reflexões. As identificações e diferenciações

dos vários grupos no interior das aldeias, bem como de suas aproximações e os critérios de

mistura ou de separação constituem outro ponto nebuloso dessa pesquisa.

Ao concluir essa pesquisa, é necessário reconhecer que as evidências empíricas

relacionadas às novas concepções teórico-metodológicas da Antropologia e da História

contribuíram para nortear o princípio de alguns esclarecimentos de uma realidade pouco

conhecida sobre os conflitos de terras envolvendo índios da Capitania do Rio de Janeiro do

século XVIII, possibilitando a abertura de uma gama de questões cujos desdobramentos ainda

devem ter muito a revelar.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FONTES CARTOGRÁFICAS:

Carta Topográfica da Capitania do Rio de Janeiro feita por ordem do Cõde de Cunha Capitão General e Vice-Rey do Estado do Brazil, 1773. Biblioteca Nacional. Seção de Cartografia. Arc. 25 – 11 – 5 – 19.

Plano da Capitania do Rio de Janeiro capital do estado do Brasil levantado no ano de 1784, AHEx. 05. 01. 901.

MANUSCRITOS

ARQUIVO NACIONAL. Corte de Apelação

Códice 64, livro 21, p. 7v e livro 25, p. 25v, respectivamente.

Processo nº 3, caixa 1146, galeria A.

Processo nº 4, caixa 1146, galeira A.

Processo nº 2, caixa 1146, galeria A

Processo n º 14, maço 2254, galeria A.

Processo nº 3322, caixa 424, galeria A.

Processo nº 3891, maço 1747, galeria A.

Processo nº 707, caixa 1431, galeria A.

BIBLIOTECA NACIONAL:

"Alvará em forma de ley em que se determina as terras que se hão de dar para se situarem as aldeas das missõens e para sustentação dos messionarios: Que as fundaçõens das igrejas se fação nas terras dos sesmeros, e donatarios, conforme o bispo entender; e que aos tais parochos se darão aquellas porçõens de terra que correspondão as que ordinariamente tem qualquer dos moradores que não são donatarios, a sesmarias". In: Index. Livro I.

"Carta regia, para senão dar mais terras por sesmaria, que tres legoas de cumprimento, e hua de largo". In: Index. Livro 1.

"Carta para o governor do Rio de Janeiro fazer (cansar) bando para todos os que tivessem sesmarias as aprezentarem, e as que fossem aprezentadas, e se os demos não mostrassem as tinhão povoadas, e cultivadas se lhes assignassem dous annos para o fazerem, ou venderem a quem as cultivasse, e que faltando a esta alternativa, se julgasse por devoluta para se darem a quem as podesse cultivar, e na mesm apena incorriao os que tendoas as não aprezentassem". In: Index. Livro 1.

"Carta regia em que ordenna sua magestade se dê de Sesmaria a maior parte que for possível das terras dos Campos das Minnaz que se estendem para a parte da capitania do Rio de Janeiro,

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te junto à Serra dos Órgãons, a que mais perto for, com obrigação da cada hum dos donatarios por hum curral de gado dentro de dous té tres annos no sitio que se lhe dar." In: Index. Livro 2.

"Carta regia ao governador do Rio de Janeiro para que hajão de serem confirmadas as cartas de sesmaria por S. Magestade concedendo se para esse efeito os annos que forem conveninetes, conforme a distância." In: Index. Livro 1.

"Carta regia para o governador do Rio de Janeiro mandar por hum edital em todas as capitanias da jurisdição de seu governo para as sesmarias, e donatários e aprezentarem dentro em seis mezes as confirmaçõens e cartas delles; e as que estiverem correntes, senão notificados seos donnos para as fazer demarcar juducialmente no termo dos dous annos pelo ministro que sua magestade lhe conceder, e que no interim, serião conservados na posse em que estivessem; e ficarião privados dellas os que sem aprezentrem em título fizerem as tres mediçoens". In: Index. Livro 2.

"Ordem de S. Magestade pelo conselho ultramarino, pela qual ordenna o mesmo senhor que as sesmarias que se haverem de dar nas terras onde haverem minnas, e nos caminhos para ellas, seja somente de meia légua em quadra, e que no mais certão sejão de tres leguas, como estava determinado, e que para as ditas sesmarias serem concedidas, sejão també m ouvides as cameras dos resoectivos destritos; e as que se derem nas margens dos rios caudalozos, que se fossem descobrindo pelos certoens, de barca para se vadearem, senão daria sesmaria mais que de hua só margem do porto, rezervando da outra ao menos meia légua para ficarem beneficio publico". In: Index. Livro3.

"Ordem do concelho ultrmarino porque S. Magestade determinna ao governador do Rio de Janeiro mande por em sequestros, e tomar posse por parte da coroa das terras dos donatarios que não tiverem carta de doação dellas." In: Index. Livro 2.

"Regimento do Secretario do governo do Rio de Janeiro dado a Francisco Monteiro Coelho".In: Index. Livro1.

"Regimento, do governo do Estado do Brasil (23/01/1677)". In: Index. Livro I.

"Regimento dirigido a D. Manoel Lobo, governador da Capitania do Rio de Janeiro". In: Index. Livro I.

REIS, Manoel Martins do Couto. “Memória acerca dos meios de facilitar e ampliar a civilização dos indígenas que habitam as margens do Rio Paraíba do sul e seus confluentes; do expediente mais racional para tratar o estabelecimento de uma navegação pelo mesmo rio e do modo mais próprio de arranjar serrarias, corte e fabrico de madeiras a coberto das invasões indígenas” . Biblioteca Nacional, seção de manuscritos. Ms 7, 4, 10. nº 2.915 do Extrato.

INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO

"Sesmarias do Rio de Janeiro: textos de concessão, confirmação e regulamentação das doações de sesmarias no Rio de Janeiro. (Séc. XVIII) copiados nas Seções Histórica e Administrativa do Arquivo Nacional e no Arquivo de Prefeitura do antigo Distrito Federal". Em 16 cadernos manuscritos. [Lata 765, pasta 3].

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"Dá conta o Provedor e indendente da Fazenda Real das Minas do Cuiabá, Manoel Rodrigues Torres, do incomodo que se segue aos ministros e oficiais d’ellas não serem pagos por aquella Provedoria e do abuso de tomarem os moradores para si as terras que lhes parece’ sem as pedirem de sesmarias." Lisboa, 09/02/1741. IHGB, Arq. 1.2.2 - Volume 31, pág. 219v.

"Teor da Carta de Sesmaria concedida ao Capitaõ Marcos da Costa Castelo Branco por D. Fernando Martins Mascarenhas de Lancastro aos 10 de maio de 1708, no Rio de Janeiro." (Cópia do Arq. Publico do Império). (Lata 772, pasta 36 - Coleção Eneas Martinhs Fo , 2p)

"Carta régia ao governador geral do Maranhão. Sobre a duvida que se lhe ofereceu a praticar-se a resolução que tomou acerca das datas de terras de sesmarias." Lisboa, 10/12/1698. IHGB. Arq. 1.2.24 - Tomo V, pág. 229v.

"Carta de Pedro da Motta e Silva ao Marquês de Peralva, remetendo os últimos contratos dos dizimos do Piauí e sobre as consultas tocante as sesmarias do mesmo estado." Lisboa, 12/03/1755. Arq. 1.2.10 - Tomo 2, p. 298.

"Carta régia ao governador geral do Maranhão Antonio d’Albuquerque Coelho de Carvalho, sobre as datas das terras de sesmarias se lhe ordena as deve dar na forma que lhe está ordenado." Lisboa, 09/01/1697.IHGB, Arq. 1.2.24 - Tomo V, pág. 213 v.

"Carta Régia ao Governador Geral do Maranhão. Sobre se não concederem mais que tres leguas de terra de sesmaria em comprido e huma de largo". Lisboa, 07/12/1697. IHGB. Arq. 1.2.24 - Tomo V, pág. 219 v.

"Ordem Real ao Governador do rio de janeiro para que informa sobre a situação da terra doada a Miguel R. de Oliveira: se foi doada a outro sesmeiro por falta de confirmação, caso contrario que se lhe passe a carta de sesmaria com os limites certos". 1757. IHGB, Lata 772, pasta 56.

Primeira carta de sesmaria do Rocio concedida ao conselho do Rio de Janeiro, em 10 de outubro de 1567. IHGB. Lata 42, pasta 11.

"Requerimento dos proprietários de terras no caminho do Rio de Janeiro para as minas, na picada que abriu Garcia Rodrigues Pais, para que, na medição que ora se faz a pedido dos mais antigos, seja considerado que, tendo sido concedidas e confirmadas sesmarias que não cabem no dito caminho, seja estas reduzidas em suas testadas, completando-se a mesma legua de terra para as ilhargas do sertão". IHGB, Lata 772, pasta 66. Coleção Enéas Martinhs Filho.

"Sobre o que escreve o Governador da Capitania do Rio de Janeiro, acerca da forma com que se devem dar as terras de sesmaria no Caminho das Minas, e que as prossa dar até os Campos, e vae a carta que se acusa ". Lisboa, 08/05/1711. IHGB, Arq. 1.2.24 - Volume 24, pp. 30-32.

"Trenslado de um alvará do rei de Portugal, ordenado a Cristovão de barros, que está enviando por Capitão ao rio de Janeiro, para conceder terras de sesmaria aos moradores de São Sebastião do rio de Janeiro". De 27/10/1571. IHGB, Lata 768, pasta 1. Col. Enéas Martins Fº.

FONTES IMPRESSAS

"Almanaque da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro: 1799" de autoria de Antonio Duarte Nunes, ainda aparece como desembargador da Relação. A sua substituição pode ter sido feito coincidentemente pela distribuição dos processos judiciais aos desembargadores, a semelhança do que ocorre hoje. Porém, pode se aventar a hipótese de uma mudança política. RIHGB , 267: 93-214, abr./jun. 1965.

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“Carta do vice-Rei do Brasil, a respeito das descobertas de minas de ouro, cobrança dos quintos e remessa de amostras” de 08/07/1728. In: Documentos Históricos. Rio de Janeiro, Biblioteca nacional, 1950. Vol. 90. p 161.

“Alvará de 8 de dezembro de 1590 sôbre doação de sesmarias a todas os novos povoadores com família”. In: Documentos para a história do açúcar. Vol. 1 Legislação. Rio de Janeiro, SEDH, 1954. p. 377.

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“Diligência sobre terras que tomaram os padres da Companhia”. In: Documentos Históricos. Rio de Janeiro, Baggio e Reis, 1928. Vol. 1. p. 178-179.

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“Carta Régia de 23 de janeiro de 1573 de doação de sesmaria ao governador geral do Brasil”. In: Documentos para a história do açúcar. Vol. 1 Legislação. Rio de Janeiro, SEDH, 1954. p. 251

“Alvará de 2 de janeiro de 1573 ao governador geral do Brasil para doar uma sesmaria”. In: Documentos para a história do açúcar. Vol. 1 Legislação. Rio de Janeiro, SEDH, 1954. p. 249.

“Carta de data de sesmaria de 4000 braças de terra principiando junto a ponte de Tabatinguera”, de 06/09/1725. In: Documentos Históricos. Rio de Janeiro, Braggio e Reis, 1928. p. 110 e 111.

“Carta de data de sesmaria de 4000 braças de terra principiando junto a ponte de Tabatinguera”, de 06/09/1725. In: Documentos Históricos. Rio de Janeiro, Braggio e Reis, 1928. p. 110 e 111.

“Carta de Confirmação de Sesmaria por sua Majestade concedida a Miguel soares Neves”. In: Documentos Históricos. Rio de Janeiro, TAHB, 1929. Vol. 75. p. 44.

“Carta de confirmação de data de sesmaria de data de sesmaria, por Vossa majestade,

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concedida a Miguel Soares Neves”, de 05/04/1728. In: Documentos Históricos. Rio de Janeiro, TAHB, s/d. Vol.75. p. 51-56.

“Parecer do Conselho sobre a divisão dos têrmos e terras das freguesias das Russas, Iço e Aracati, para que suas Câmaras possam ter o número de pessoas para o desempenho de funções” de autoria do Conselho Ultramarino, de 29/10/1751. in: Documentos Históricos. Rio de janeiro, Biblioteca Nacional, 1951

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Ordenações Afonsinas. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, s/d.

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