130
Histórias de aprender-e-ensinar para mudar o mundo

Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Embed Size (px)

DESCRIPTION

www.bioma.org.br

Citation preview

Page 1: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Histórias deaprender-e-ensinar

para mudar o mundo

Page 2: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1
Page 3: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Organizadores:

Kleber Maia Marinho Valéria Viana Labrea

Histórias deaprender-e-ensinar

para mudar o mundo

Projeto Jovem Cidadão Amigo da Natureza – PJCAN

Paulínia, SP2007

Instituto BioMA

Page 4: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Copyright © Instituto Bioma 2007

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem prévia autorização, por escrito, da instituição resonsável.

Tiragem: 8.000 exemplares

Ilustração da capaLucas Félix Projeto Gráfico/ Editoração eletrônicaProjects Brasil Multimidia Ltda.

Impressão e acabamentoGráfica Brasil

Direitos reservados àInstituto Bioma - Associação de Preservação do Meio Ambiente Natural e Melhoria da Qualidade de Vida Avenida 9 de Julho, nº. 400 Bairro: Nova Paulínia Paulínia - SPCEP 13140-000Tel.: (19) 3844 - 8774

Endereço eletrônico: http://institutobioma.org.brCorreio eletrônico: [email protected]

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIPBibliotecária responsável: Thaís Moraes CRB-1/1922

Histórias de aprender-e-ensinar para mudar o mundo. Projeto Jovem

Cidadão Amigo da Natureza - PJCAN / Organizadores: Kleber Maia Marinho,

Valéria Viana Labrea. – Paulínia, SP: Instituto Bioma, 2007. 200 p. : il. color.; 21 x 28 cm.

Inclui bibliografia.ISBN

1. Meio-ambiente. 2. Cidadania. 3. Recurso natural. 4. Qualidade de vida. I. Título.

CDD – 333.7

Page 5: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério,

com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida,

destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transformar a sociedade,

sem ela tampouco a sociedade muda.

Paulo Freire

Não é deslocando a direção do nosso olhar

iludido que conseguimos torná-lo lúcido e calmo.

É criando em nós um novo modo de olhar e de sentir.

Fernando Pessoa

Page 6: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

“Um projeto dessa magnitude envolve muitos braços dedicados no seu fazer. Assim, preferimos deixar aqui expresso nosso imenso agradecimento a todas

as pessoas que estiveram e ainda estão envolvidas neste projeto”.

Page 7: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Sumário

ApresentaçãoPROJETO JOVEM CIDADÃO AMIGO DA NATUREZA: UM PROJETO EM PERMANENTE CONSTRUÇÃO .....9Aiêska Marinho Lacerda Silva e Luiz Carlos Palomar Fernandez

Parte 1 – Conhecendo o BioMA e o PJCANPROJETO JOVEM CIDADÃO AMIGO DA NATUREZA ............................................................. 13Luiz Carlos Palomar Fernandez

Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professoresPARA ENTENDER O PROCESSO .................................................................................... 19Valéria Viana Labrea

DIAGNÓSTICO VIVO ................................................................................................. 21Rita Mendonça

PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO: INSTRUMENTO DE GESTÃO DEMOCRÁTICA DA ESCOLA ............ 24Maria Marcia Sigrist Malavasi

SUSTENTABILIDADE, EDUCAÇÃO E SOBREVIVÊNCIA ........................................................... 31Dagoberto Lorenzetti

AS RELAÇÕES ENTRE A EDUCAÇÃO PARA A SUSTENTABILIDADE, TRANSDISCIPLINARIDADE E ORGANIZAÇÃO EM REDES SOCIAIS OU UMA OUTRA ESCOLA É POSSÍVEL .................................. 41Valéria Viana Labrea

HISTÓRIA ORAL – UMA ESTRATÉGIA A SER UTILIZADA NO DESENVOLVIMENTO DE PROJETOS EDUCACIONAIS. ...................................................................................................... 46Meire Terezinha Muller

Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da TerraUM ETHOS PARA SALVAR A TERRA ................................................................................ 55Leonardo Boff

A ECOPEDAGOGIA COMO PEDAGOGIA APROPRIADA AO PROCESSO DA CARTA DA TERRA ............... 66Moacir Gadotti

A CARTA DA TERRA COMO INSTRUMENTO EDUCATIVO E INSPIRADOR NA CONSTRUÇÃO DE SOCIEDADES SUSTENTÁVEIS ....................................................................................................... 77Mirian Vilela

Page 8: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 4 – Caderno de AtividadesINTRODUÇÃO ......................................................................................................... 83Aiêska Marinho Lacerda Silva

EDUCAR PARA REAPROXIMAR DA TERRA ........................................................................ 89Kleber Maia Marinho

REAPROXIMAR PELA ESPIRITUALIDADE .......................................................................... 96Denise Lopes de Souza

A CARTA DA TERRA E O EDUCAR PARA A IDENTIDADE TERRENA: PRINCÍPIOS E RUMOS Sementes de Esperança em Experiências Educacionais do Ensino Fundamental no Pontal do Paranapanema .....................................................................................................103José J. Queiroz

CUIDADO NA ERA DO DESCUIDO: O PROBLEMA DA LINGUAGEM............................................115Paulo Roberto Monteiro de Araujo

MEIO AMBIENTE, EDUCAÇÃO E CIDADANIA: DIÁLOGO DE SABERES E TRANSFORMAÇÃO DAS PRÁTICAS EDUCATIVAS – UMA REFLEXÃO SOBRE HISTÓRIAS DE APRENDER E ENSINAR ............................122Pedro Roberto Jacobi

AtividadesTitulo: Árvore do bem e do mal .................................................................................133

Título: É brincando que se aprende ............................................................................139

Titulo: Campanha do leite ........................................................................................147

Título: Carta ao inquilino .........................................................................................153

Título: Dengue .....................................................................................................161

Título: Identidade ..................................................................................................167

Titulo: Lugar de lixo é no lixo ...................................................................................173

Título: Diagnóstico Vivo – um pouquinho da nossa história ...............................................177

Título: Uma receita para o ambiente ..........................................................................185

Título: Reconstrução ..............................................................................................191

Título: Plante uma semente .....................................................................................197

Page 9: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Apresentação

PROJETO JOVEM CIDADÃO AMIGO DA NATUREZA:UM PROJETO EM PERMANENTE CONSTRUÇÃO

Mestre não é aquele que sempre ensina, mas aquele que de repente aprende. Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas

É muito difícil se fazer uma síntese ou comentar em poucas palavras o signifi cado deste livro. Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo não é uma obra de fi cção; muito pelo contrário, é o resumo da implantação de um projeto inovador de construção de conhecimento, desenvolvido por meio do Projeto Jovem Cidadão Amigo da Natureza – PJCAN, criado pelo Instituto BioMa1 e fi nanciado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, do Ministério da Educação – FNDE/MEC, visando promover ações relacionadas ao meio-ambiente e cidadania. Desenvolvido junto a escolas de ensino fundamental em 14 municípios do estado de São Paulo, o projeto envolveu mais de 16 mil alunos e 600 profi ssionais de educação.

O objetivo principal do projeto era implementar ações complementares de educação, envolvendo as escolas e a comunidade, assegurando que os princípios da inclusão, da humanização e da “cidadania ativa” fossem efetivamente praticados e disseminados.

Para tanto, o PJCAN estabeleceu uma estratégia de eleição das escolas como centro gerador, acumulador, propagador do conhecimento e catalizador das ações desenvolvidas na comunidade, promovendo um trabalho de capacitação de professores, alunos e comunidade na busca da cidadania, do desenvolvimento de espírito participativo e, em última instância, da qualidade de vida humana.

Era necessário garantir a continuidade do processo de construção do conhecimento, assim como a disposição para resolver problemas e, a partir deles, criar novos modelos e técnicas a serem aplicadas continuamente, dando andamento ininterrupto às ações iniciadas.

Desta forma, trabalhando com os princípios da Carta da Terra, o PJCAN buscou a construção do conhecimento dentro da comunidade, refl etindo o conceito de visão global e atuação local. Acreditando que todos os seres são interligados e cada forma de vida tem valor, independentemente de sua utilidade para os seres humanos, os participantes do projeto passaram a adotar uma visão mais sistêmica e integrada de Comunidade Planetária, buscando a administração e uso dos

1 Instituto BioMA é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – Oscip, fundada em 2002, voltada para o desenvolvimento Humano e Melhoria de Qualidade de Vida. Para saber mais, consulte o site www.bioma.org.br.

Page 10: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

recursos sem causar danos ao meio ambiente. Preservando a liberdade de ação de cada geração, mas condicionando esta liberdade ao direito das gerações futuras ao atendimento de suas necessidades, espera-se obter a construção de sociedades democráticas justas, participativas, sustentáveis e pacífi cas.

Mais do que garantir a qualidade de vida prevenindo o dano ao ambiente, o projeto procurou despertar nos participantes o desejo de adotar padrões de produção, consumo e reprodução que protejam as capacidades regenerativas da Terra (Reduzir, Reutilizar e Reciclar), os direitos humanos e o bem-estar comunitário, erradicando a pobreza e garantindo o acesso à água potável, ao ar puro e à segurança alimentar, entre outros.

Muito além de meramente um discurso, o projeto buscou oferecer meios de educação que garantam oportunidades para assegurar uma subsistência sustentável, reconhecendo os conhecimentos tradicionais em todas as culturas, trabalhando pela construção de uma fi losofi a de democracia, não-violência e paz.

Buscou, ainda, a defesa dos valores fundamentais do ser humano, o fortalecimento das comunidades locais, capacitando-as a cuidar dos seus próprios ambientes, por meio da construção do conhecimento coletivo com base na educação formal e não formal, não só preservando os ecossistemas onde interagem, como também estimulando e apoiando o entendimento mútuo, a solidariedade e a cooperação entre todas as pessoas, implementando estratégias amplas para prevenir confl itos e usar a colaboração na resolução de problemas.

Por intermédio das ofi cinas de capacitação onde se abordaram temas como Carta da Terra, Agenda 21 Escolar, Elaboração de Projetos, Trabalho em Rede, Diagnóstico Vivo (cartografi a social), Convivência Social, os profi ssionais de educação e o grupo de monitores (estagiários) adquiriram as ferramentas necessárias à execução do projeto e as propagaram nas comunidades com a participação ativa dos alunos de cada escola.

A construção do conhecimento nas escolas se deu através de uma abordagem transdisciplinar, que propõe a integração teórica e prática, numa perspectiva da totalidade, existindo cooperação e troca de informações na sala de aula, além de aberta ao diálogo e ao planejamento. As disciplinas interagem entre si em distintas conexões e estão ligadas à realidade concreta, histórica e cultural tendo como ponto de convergência as ações pré-estabelecidas por cada um dos projetos.

Este enfoque transdisciplinar, baseado na Carta da Terra, buscou conceitos originais, métodos e estruturas teóricas por meio da aglutinação dos conceitos, de metodologias e conteúdos das diferentes disciplinas e do conhecimento universal, ou seja, uma transmissão de conhecimentos não dividida em vários campos; aprende-se a toda hora, não apenas na sala de aula.

Parte-se do conceito que a relação com a aquisição do saber deve ser direta, participativa, pessoal e particular. O conhecimento é uma totalidade e o todo é formado pelas partes, mas não é apenas a sua soma; é maior e diferente das partes que o constitui. Aprendemos quando nos

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

Page 11: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Apresentação

envolvemos emocional e racionalmente no processo de reprodução e criação do conhecimento, na certeza de que aprendemos todos os dias ao longo da vida, em todos os lugares, com todos os indivíduos e transmitindo, também, a cada um, nossa própria vivência e experiência.

Este modelo de construção de conhecimento é uma forma de transformação orientada para o autoconhecimento e para a criação de uma nova forma de viver em sociedade. Seu objetivo é a compreensão do mundo presente, onde se busca a unidade do conhecimento, sem qualquer limite rígido entre as disciplinas e a construção de uma relação interpessoal, reciprocidade, eqüidade, cooperação e participação comunitária cujo fi m último é a solidariedade, o respeito à diversidade, a sustentabilidade e a justiça social.

O ponto de culminância de todo o trabalho desenvolvido pelo PJCAN foi a construção e execução, por parte da comunidade, de um projeto, escolhido entre muitos que surgiram durante a realização do diagnóstico vivo. Alguns deles estão ligados à competência local de agricultura, mais especifi camente a hortas orgânicas, ervas medicinais e pomares. Outros focaram problemas que envolvem a qualidade de vida, a convivência em sociedade e o respeito à diversidade, além daqueles que se voltaram a questões do meio ambiente. As comunidades desenvolveram parcerias com as prefeituras, universidades, comércio local e outras instituições para implementar os projetos escolhidos, sem depender de recursos públicos e contando com a participação dos pais, alunos e professores da localidade o que, em última instância, desenvolveu o sentimento de pertencimento e participação ativa na vida social e comunitária.

O grande mérito do PJCAN foi ter sido aceito e posto em prática como uma construção coletiva, em comunidades que difi cilmente têm a oportunidade de se fazerem representar, de participar, de criar e desenvolver ações em conjunto com seus fi lhos.

Desta forma, o que ora se apresenta neste livro é a síntese desse trabalho de quase dois anos, dividido em duas partes: A construção do conhecimento e as práticas desenvolvidas com os alunos em sua aplicação.

Acreditamos que mais que um simples relato, este livro serve para um momento de refl exão sobre os modelos de acúmulo, disseminação e prática do conhecimento humano. Uma nova forma de transformar a qualidade de vida através da educação, garantindo a construção de um planeta mais justo e sustentável para esta e para as gerações que estão por vir.

Aiêska Marinho Lacerda Silva Luiz Carlos Palomar Fernandez

Page 12: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Conh

Page 13: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

PROJETO JOVEM CIDADÃO AMIGO DA NATUREZA

Luiz Carlos Palomar Fernandez

Não se passa uma semana sem que eu tenha que explicar a alguém, conhecido ou recém-apresentado, o que é o Projeto Jovem Cidadão Amigo da Natureza – PJCAN. Quando conto o que estamos fazendo, através do Instituto BioMA, todos fi cam muito interessados pelo assunto, alguns até gostariam de participar e outros se dispõem a ajudar, desde, é claro, que não tenham que ir aonde vamos.

Acho que é por isso que esse projeto nasceu.

Quando falamos em baixo Índice de Desenvolvimento Humano – IDH, a primeira coisa que vem à cabeça de nosso interlocutor é o Nordeste. Sem sombra de dúvida, essa é uma realidade, porém, o estado de São Paulo também tem problemas, que não são poucos, mas, como somos conhecidos como a locomotiva que puxa o trem chamado Brasil, ninguém acredita que haja pobreza, ou pelo menos aquela “pobreza miserável”, que estamos acostumados a ver nos documentários da televisão.

Como membro do Instituto BioMA, transitamos pelo Pontal do Paranapanema desde 2002 e sabemos muito bem o que signifi ca estar no “interiorzão” de São Paulo. Primeiro porque, infelizmente, as cidades do eixo da Raposo Tavares aparecem na mídia sempre que acontece uma rebelião, fi cando conhecidas pelos seus presídios e seus “moradores” famosos, mas difi cilmente são divulgadas suas competências.

Desde que fomos para o Pontal para trabalhar no Programa de Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável, parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – Sebrae, encontramos várias pessoas que sonhavam, sonhavam, mas não colocavam seus planos em prática. A crença coletiva é que “foi assim, é assim, e será assim”.

Já naquela primeira oportunidade, conhecemos pessoas fantásticas, que descobriram que são donas de seu destino, seres capazes de transformar suas vidas e as comunidades onde vivem.

Conh

Parte 1 – Conhecendo o BioMA e o PJCAN

Page 14: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

14

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

Logo em seguida, ainda através do BioMA, fi zemos um novo projeto, também em parceria com o Sebrae, chamado Empreendedorismo Ambiental, voltado para ações de geração de trabalho e renda, cujo objetivo era a melhoria de qualidade de vida e preservação ambiental. Novamente, pessoas maravilhosas, que deixaram para trás o sonho vazio e passaram a trabalhar para a mudança do seu próprio futuro e, principalmente, de sua comunidade. Para muitos, o grande sonho era garantir uma boa educação para os fi lhos, de modo a dar-lhes oportunidades de trabalho, para que pudessem permanecer em seu canto e ser felizes, sem ter que abandonar a família buscando trabalho na Capital.

Depois de um ano de encerramento dos projetos, voltamos ao Pontal para ver o que tinha germinado de todo aquele trabalho. Não posso dizer que fi camos totalmente desanimados mas, sinceramente, não foi um resultado para nos deixar totalmente satisfeitos. Em que tínhamos errado? Por que quase tudo o que germinou morreu ou anda à velocidade de tartaruga? Por que as coisas não funcionaram tão bem quanto esperávamos? O que faltou para mudanças efetivamente acontecerem?

Foi então que nos demos conta de que estávamos cometendo os mesmos erros que ocorrem em tantos outros projetos: não tínhamos gerado a massa crítica para que andassem sozinhos. Quando nos afastávamos, a comunidade perdia a coesão e os projetos começavam a degringolar. Um ou outro membro dos grupos conseguia ir adiante, mas as difi culdades eram enormes e a chance de sucesso era pequena.

Precisávamos construir um outro modelo de participação. Precisávamos garantir a continuidade do processo de construção do conhecimento, assim como a disposição para resolver problemas e, a partir deles, criar novos modelos, novas técnicas a serem aplicadas continuamente, dando andamento ininterrupto às ações iniciadas. Mas quem seria o receptor desse processo? Quem seria o fi el depositário do conhecimento construído? Quem seria o parceiro para nos ajudar nessa empreitada?

Uma luz surgiu no fi nal do túnel quando percebemos que estivemos sempre ao lado da solução e não tínhamos percebido: as escolas. A comunidade escolar. Os formadores das futuras gerações. Era isso. Essa era a solução.

Assim, quando nos deparamos com o edital do FNDE que oferecia recursos para o desenvolvimento de ações complementares ao ensino fundamental, percebemos que poderíamos tentar acertar novamente. Mas, o que fazer com isso? Como o BioMa poderia participar? Qual poderia ser nossa contribuição? Tínhamos em mente o que não queríamos: colocar crianças desenhando micos-da-cara-preta, baleias e tartarugas. Não era isso que estávamos procurando, era algo maior, que desse uma nova dimensão ao tema transversal “meio ambiente” e que se confi gurasse como uma ação contínua e interiorizada por todos os participantes.

O projeto começou a ser concebido em março de 2005 em suas grande linhas e foi “costurado” e entregue ao FNDE em 29 de julho de 2006.

Page 15: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 1 – Conhecendo o BioMA e o PJCAN

15

Nossa inserção no Pontal do Paranapanema nos dirigia pra lá, mas o desejo de realizar o projeto também perto de nossa sede nos levou a consultar várias cidades da região de Campinas, sendo que apenas Sumaré se interessou em participar.

Assim, o projeto nasceu com 14 cidades participantes, formando um mosaico muito estranho, pois estávamos na região de Campinas, na Alta Paulista e no Pontal do Paranapanema. Apenas a título de localização, a distância representa 500 km de deslocamento só para chegarmos de Campinas ao Pontal e outros 100 km entre uma cidade e outra, em pontos extremos da região. Uma loucura total, mas de uma insanidade construtiva.

Enquanto esperávamos a resposta se havíamos ou não sido escolhidos para aplicação do projeto, estávamos trabalhando na sua estruturação. Por nossa conta e risco, contratamos doutores e mestres nas áreas de Pedagogia e Meio Ambiente para nos ajudar a formatar o projeto e a proposta pedagógica. Tivemos que fazer correções em nossa proposta inicial e fi camos aguardando o posicionamento do FNDE/MEC.

Por fi m, nos últimos dias de dezembro recebemos a informação: o projeto havia sido aprovado. Com cortes.

Terminado 2005, meados de janeiro de 2006, reunidos vários secretários e dirigentes de educação de municípios do Pontal do Paranapanema e Alta Paulista no auditório do Serviço Social da Indústria – Sesi, de Presidente Prudente, lá estávamos nós explicando o projeto, o que seria, qual o fruto esperado desse trabalho, qual seria a responsabilidade de cada um no transcorrer das atividades. Uma ansiedade enorme, um desejo de que acabasse logo e que todos aderissem ao projeto de corpo e alma. Mas não foi assim tão fácil. Era o nosso sonho, mas não era o sonho de todos. Tivemos desistências logo na primeira reunião; muitos que ali estavam não tinham certeza se o projeto chegaria a um fi m e muitos não tinham o poder de decisão para aderir defi nitivamente a ele. O grande consolo era que a maioria tinha gostado da proposta e o diretor do Sesi local estava nos apoiando, o que signifi cava um grande e poderoso aliado.

Inicialmente aderiram 12 municípios, sendo que Dracena, que originalmente não participaria do projeto, foi incorporado ao mesmo. Contando com a cidade de Sumaré, na região de Campinas, chegamos aos 14 municípios envolvidos: Sumaré, Platina, Dracena, Salmourão, Presidente Bernardes, Presidente Venceslau, Caiuá, Sandovalina, Alvares Machado, Mirante do Paranapanema, Regente Feijó, Presidente Epitácio, Pirapozinho e Martinópolis.

Começamos o trabalho pela seleção de estagiários, que seriam nosso ponto de apoio, atuando diretamente nas escolas com os professores e com os alunos. Era absolutamente necessário criar canais de comunicação, portanto os estagiários deveriam dominar ferramentas básicas de informática e ter acesso a computadores. Embora pareça simples, tudo foi muito complicado. Os estagiários tinham que aprender a usar ferramentas que nem sempre dominavam, as escolas tinham acesso limitado à internet e o acesso era por linha discada. Isso quando a escola tinha internet. O que fazer? Trabalhar com o possível. Deixar o impossível para depois.

Page 16: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

16

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

Nós tínhamos uma idéia do que poderia ser feito, mas cada escola tinha características diferentes e conseqüentemente demandas diferentes. Conseguimos concentrar todas as capacitações no Sesi de Presidente Prudente, o que nos permitiu racionalização do trabalho.

Os estagiários trabalharam como loucos para obter todas as informações necessárias para início das atividades. Os professores, diretoras e coordenadores ajudavam como podiam. Alguns digitavam os dados na escola, levavam para a faculdade e passavam os arquivos de lá para nossa sede. Outros entregavam em disquetes para nossa supervisora.

As capacitações começaram com uma sensibilização, passaram por uma avaliação da situação ambiental e qualidade de vida no mundo, avaliação e construção dos projetos político-pedagógicos e integração dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN com a metodologia do PJCAN.

Tudo o que era percebido como demanda para o andamento do projeto era providenciado: Ofi cinas sobre a Carta da Terra, Agenda 21 Escolar, Elaboração de Projetos, Trabalho em Rede, Diagnóstico Vivo (cartografi a social), Convivência Social, entre outros.

Tivemos a felicidade de poder contar com excelentes profi ssionais que nos ajudaram nesse processo de capacitação, com a participação de mais de 100 educadores de cada vez.

Nessa nossa jornada, encontramos pessoas fantásticas, que entenderam o espírito do projeto e nos ajudaram a desenvolver cada etapa do processo com muito trabalho e dedicação.

Às vezes não é fácil explicar para as pessoas que não estávamos trazendo um projeto pronto. Nosso objetivo era capacitar os professores e a comunidade local para que elas lidassem com sua problemática e encontrassem as suas soluções. Cada escola desenvolveria seus projetos e as crianças seriam o elemento de ligação entre a escola e as famílias, além de agentes da transformação.

Em alguns lugares, a proposta só começou a fazer sentido quando, após o diagnóstico vivo e a discussão dos princípios da Carta da Terra, com ampla participação da comunidade, os projetos começaram a tomar forma e as pessoas começaram a se sentir capazes de transformar a sua realidade.

Alguns projetos estão ligados à competência local de agricultura, mais especifi camente a hortas orgânicas, ervas medicinais e pomares. Outros projetos focaram problemas que envolvem a qualidade de vida, a convivência em sociedade e respeito à diversidade, além daqueles que se voltaram às questões do meio ambiente. Algumas escolas conseguiram parcerias com as prefeituras, universidades, órgãos públicos e já começaram a implementar os projetos escolhidos, sem depender de recursos públicos e contando com a participação dos pais, alunos e professores da localidade. Em maio de 2006, o projeto começou a ser implementado na cidade paulista de Sumaré e, com a experiência adquirida no Pontal, as difi culdades foram menores, porém, apareceram outras decorrentes de suas peculiaridades.

Page 17: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 1 – Conhecendo o BioMA e o PJCAN

17

Ao todo o PJCAN envolve quase 16 mil alunos, 600 profi ssionais de educação e 32 estagiários.

Quando olho para trás, não acredito em tudo o que passamos, mas quando olho para a frente vejo o muito que ainda tem que ser feito.

Acredito que criamos um novo referencial na forma de gerir e construir projetos e tenho a esperança de que, nas comunidades onde tivemos a honra de poder participar, as coisas nunca mais serão as mesmas e os sonhos serão, cada vez mais, projetos da realidade, mais justa e digna para todos.

Luiz Carlos Palomar Fernandez é engenheiro industrial, especialista em Gestão e Estratégia de empresas e engenheiro de Segurança do Trabalho, pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, gerente do Projeto Jovem Cidadão Amigo da Natureza junto ao FNDE, consultor do Sebrae, professor da Universidade São Marcos – Campus Paulínia, capacitador em Programas de Desenvolvimento Humano e Programas Educacionais por meio do Instituto BioMA e membro-fundador do Instituto BioMA.

Page 18: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Hist

ó

Page 19: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Hist

ó Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores

PARA ENTENDER O PROCESSO

Valéria Viana Labrea

Nada é impossível de mudarDesconfi ai do mais trivial, na aparência singelo.

E examinai, sobretudo, o que parece habitual.Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,

pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada,de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada,

nada deve parecer naturalnada deve parecer impossível de mudar.

Bertold Brecht

As ofi cinas de formação realizadas pelo Instituto BioMA ocorreram ao longo de 2006 e 2007 e tiveram a participação de cerca de 600 professores dos 14 municípios onde ocorreu o Projeto Jovem Cidadão Amigo da Natureza – PJCAN. O leitor observará que as diferentes capacitações adicionadas foram escolhidas para atender as especifi cidades do projeto e abordaram desde questões metodológicas e práticas – organização dos Projetos Políticos Pedagógicos – PPP, plano diretor da escola e o PJCAN – a questões mais abrangentes – organização em redes, educação e sustentabilidade, oralidade, Carta da Terra, Agenda 21.

Dessa aparente miscelânea é que nasce um diálogo entre saberes que vai dar sustentação aos futuros projetos de cada escola. O intuito era evitar as limitações da abordagem disciplinar, especializada mas fragmentada, que não dá conta dos diferentes níveis de realidade. Foi adotado nesse sentido um enfoque transdisciplinar, buscando criar uma visão coerente do problema a partir de modelos explicativos compartilhados e baseados em conceitos e teorias que integram várias disciplinas.

Page 20: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

20

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

Além disso, considerou-se em todo o processo as experiências da comunidade escolar, man-tendo uma escuta atenta aos desejos e aos saberes que carregam consigo. Todos os diferentes grupos foram ouvidos. As conversas com os professores, estagiários, merendeiras, coordenação e diretoria, alunos, pais e mães dos alunos, vizinhança, e com o poder público, enfi m com todos os diferentes componentes da comunidade escolar e local fez emergir um novo conhecimento integrador, resultado da fusão dos conhecimentos formais e saberes populares.

A busca como menciona Guattari (1990) é articular esses conhecimentos para contribuir na realização de um projeto societário ambientalista autônomo e libertário em três níveis: no plano mental (a relação do indivíduo consigo mesmo), no plano social (a relação com o outro, com a família e os sujeitos coletivos) e no plano ambiental (a relação indivíduo-natureza e sociedade-natureza).

O determinante para o sucesso dessa fase do projeto foi o desejo de aprender desses professores comprometidos com o PJCAN mas principalmente, comprometidos com seus alunos e uma visão de futuro onde, a partir de sua escola, um outro modelo de educação e gestão é possível.

Page 21: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores

21

DIAGNÓSTICO VIVO

Rita Mendonça

O Diagnóstico Vivo tem como objetivo despertar o olhar do educador em relação ao seu entorno, enriquecendo-o com elementos refl exivos e de imagem, para que ele possa ver além do costumeiro, transcender seus próprios condicionamentos, conhecer as relações e entrar em contato com a realidade viva que tem à sua volta. Esse trabalho começa com a percepção do próprio corpo, ele próprio formado por camadas de história, sentimentos, experiências e ações. Partimos da idéia de que a partir das condições iniciais de nascimento somos nós que moldamos nosso próprio corpo e somos responsáveis por ele. E que, ao tomarmos consciência e nos apropriarmos de nossa própria história, podemos compreender os mecanismos que podem nos levar a ser também os atores transformadores do mundo em que vivemos.

A percepção do vivo não é coisa fácil. Educados que somos no sistema mental linear, nos satisfazemos em descrever e classifi car as manifestações da vida, sem nos aproximar daquilo que põe os seres vivos em sintonia, ou seja, o pulsar da vida. Perceber o mais óbvio do óbvio é o primeiro passo para o transcendermos.

Certa vez fi z um passeio de balão. Além de ser uma experiência extraordinária, do silêncio e da visão do mundo de lá de cima, mas não de tão alto e fechado como a visão de dentro dos aviões, fi z uma descoberta de algo bem conhecido e evidente: o balão se desloca pelo vento; e quando estamos no vento, não o sentimos, ou seja, temos a impressão de que estamos parados. Podemos estar a mais de 100 km/hora e temos a sensação de estar parados. Esse passeio me trouxe a refl exão sobre a vida que desejo transmitir nos cursos do Diagnóstico Vivo: estamos vivos e por isso achamos isso óbvio! Não percebemos, não sentimos o pulsar da vida. Somente quando estamos doentes é que vislumbramos algo, ou quando acompanhamos e nos despedimos de quem está nos deixando nesta vida. No entanto, perceber a vida é essencial e, quando isso ocorre, a visão de mundo muda, as prioridades, as formas de organização cotidiana, as relações de trabalho, tudo muda. Perceber a vida é, desculpem o humor, vital!

O processo para chegar a essa percepção é essencialmente vivencial. São exercícios, sons e imagens que buscam conduzir os participantes no caminho do desenvolvimento da sensibilidade, até que possam perceber a unidade que existe entre suas próprias vidas e a vida do planeta, a vida de hoje, do passado e do futuro. Apenas após a experiência é que consolidamos a compreensão com fatos e dados para serem discutidos. O que cada um percebe e sente é sempre mais importante do que as informações prontas que eu possa preparar para eles.

O processo educativo vivencial considera os indivíduos de forma integral, incluindo e priorizando o aprendizado através do corpo, dos sentidos e da percepção mais sutil de si mesmos, dos outros, do mundo, da natureza, e dos processos vitais que dão origem e sustentam a vida,

Page 22: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

22

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

cuidando para que as informações científi cas não se interponham na interação de aprendizagem e mascarem ou inibam os processos de natureza mais delicada. O corpo é considerado um elemento muito importante para a aprendizagem. Isso pode parecer óbvio uma vez que a sede de nosso cérebro está no corpo e é nele que nossas memórias fi cam armazenadas.

Apesar dessa evidência, nosso cérebro é tão complexo que nos permite abstrair a realidade de forma que podemos percorrer enormes distâncias no tempo e no espaço sem nos deslocarmos fi sicamente. Podemos aprender na abstração, sem perceber a participação ativa e decisiva do corpo. “Usamos o cérebro para tornar nosso próprio corpo um objeto. Originalmente, esse processo de criação de imagens destinava-se a organizar a experiência. Agora, ele tomou o lugar da experiência corporal” (KELEMAN, 1999). Ou seja, temos tendência a não perceber a base física (das percepções, dos sentidos, das emoções que formam registros corporais) das experiências que temos e a viver baseados nas imagens que fazemos das coisas e não nas relações diretas que temos com elas.

Nossa educação tradicional é baseada nessa possibilidade que temos de conhecer sem vivenciar as informações e sem inseri-las num contexto, ou seja, sem se comprometer com o conhecimento e sem transformá-lo num saber. Podemos – e é o que mais fazemos - apreender conhecimentos revelados pela experiência de outras pessoas, mesmo que esse conhecimento não nos faça sentido. Assim, criamos um sistema educacional formal muito complexo e extenso em conteúdo. Na escola, alguns conhecimentos são verifi cados em aulas de laboratório; em outras situações são realizados estudos do meio, mas essas estratégias de ensino consideram o sujeito que aprende separado daquilo que é aprendido, que o conhecimento pode existir em separado daquele que aprende. Essa é a diferença fundamental entre o ensino convencional e o vivencial.

No aprendizado vivencial, é o corpo inteiro que aprende, não só o cérebro, e ele aprende porque interage com o que deve ser aprendido. As vivências permitem que a pessoa se aproxime de si mesma, fazendo com que o aprendizado se torne autêntico, pois é seu próprio corpo que vai produzir o conhecimento. Para realizar as vivências é preciso estar presente, sensível aos sinais de seu corpo, perceptivo ao que está acontecendo nos ambientes externo e interno, dando menos espaço às idéias e aos pensamentos e emoções difusos e esparsos que normalmente costumamos ter. Estando plenos no aqui e agora, saímos do mundo exclusivo das idéias e observamos as diferentes formas que um estímulo repercute em nosso corpo. Via de regra, essa repercussão no corpo é bem diferente da imagem que faríamos se estivéssemos imaginando apenas aquela situação. Como exemplo, a sensação térmica, tátil, olfativa e sonora ao realizar um exercício no meio de uma fl oresta tropical é fundamentalmente diferente da sensação que advém da imaginação da mesma situação. Os registros corporais são diferentes. O aprendizado sobre o fl uxo de energia e de matéria, sobre as relações ecossistêmicas, sobre a presença humana na natureza, sobre os contextos planetário e cósmico será diferente se tudo isso for “ensinado” na sala de aula.

Nesse caminho, depois do corpo vivo, a percepção da paisagem. Ao descortinar as diferentes possibilidades de interpretação da paisagem, o educador pode começar a sentir e visualizar as diversas camadas de história, as diversas infl uências sócio-econômicas contemporâneas e

Page 23: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores

23

vislumbrar algo sobre as possibilidades futuras do seu lugar. Estimular seu vínculo com seu próprio lugar, o lugar onde vive e trabalha, onde se relaciona e sonha, é essencial. Ele é estimulado a pesquisar sobre a água e seu caminho, como é que ela “passa” por seu lugar, sobre o solo, sobre os ventos, as sementes, as fl ores, os animais. As pessoas e suas capacidades de transformação da paisagem. As relações ecológicas que existem em todos os lugares. A movimentação da Terra em relação ao Sol e ao céu. As sombras, a percepção de nossa relação do que está além de nosso planeta. A observação de que o mundo de cada um é construído por cada um e que as coisas só passam a existir para nós à medida que as percebemos.

Por exemplo, somente percebemos os sons à nossa volta se paramos para ouvi-los. E quanto mais aquietamos nossa mente, mais conseguimos ouvir. Deixamos de ouvir nossos próprios ruídos para ouvir os do mundo, conectando-nos com eles. Os educadores, através dos exercícios, vão aprendendo a observar as próprias relações sistêmicas, tanto as físicas como as que ocorrem em suas mentes. Algumas vezes conseguem perceber que fazem parte da mesma dinâmica.

Essa formação destaca também as diferentes formas de conhecer: conhecer pelas informações (forma a que estamos mais acostumados) e conhecer pela experiência (forma mais rara e ainda menos valorizada). Como o próprio educador passa pela experiência, “conhece” a diferença e está apto a apropriar-se dela em seu trabalho na sala de aula. O aprendizado pela experiência pode não dar conta de toda a grade curricular a que o professor deve atender, mas promove uma compreensão que fi ca internalizada e vai infl uenciar nas suas formas de aprendizagem e relacionamentos futuros. Dessa forma, desestabiliza as estruturas convencionais de chegar ao conhecimento, abrindo espaço para outras formas de pensar e perceber o mundo em que vivemos.

Estimula também a consciência de que são formadores de opinião, pretendendo ajudá-los de alguma forma a superar eventuais mecanismos de apatia e acomodação face à difícil realidade a que têm que fazer face no cotidiano.

É uma grata satisfação poder compartilhar neste texto a concepção do Diagnóstico Vivo, uma vez que temos sabido de transformações importantes ocorridas nas atuações dos professores nas regiões em que pudemos trabalhar. Esperamos com isso despertar o interesse de um público crescente, dando-nos assim a oportunidade de participar da construção de um mundo mais participativo, mais estimulante, mais consciente e solidário.

Rita Mendonça é bióloga, socióloga e coordenadora no Brasil da Sharing Nature Foundation e diretora geral do Instituto Romã de Vivências na Natureza. Coordena as Caminhadas Ecológicas e Filosófi cas da Associação Palas Athena e o Grupo de Diálogo Filosofi as da Natureza.

Page 24: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

24

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO: INSTRUMENTO DE GESTÃO DEMOCRÁTICA DA ESCOLA

Maria Marcia Sigrist Malavasi

Refl etir sobre a importância e o papel do Projeto Político Pedagógico – PPP nas instituições de ensino de todos os níveis (desde a educação infantil até o ensino superior) continua sendo uma tarefa ao mesmo tempo importante e difícil. Importante porque esse é um instrumento que possibilita transformações no interior dos espaços educativos que buscam a melhoria de seu papel no âmbito do ensino e da sociedade. Difícil porque, analisando inúmeros PPPs3, encontramos visões bastante discrepantes acerca de sua defi nição e mesmo de sua função nas instituições de ensino.

Especialmente no âmbito escolar, o PPP tem sido mais utilizado como um documento solitário, produzido para gavetas e arquivos, esporadicamente apresentado a alguém que represente ofi cialmente órgãos educacionais. A escrita desse “documento”, na maioria das vezes, é feita por um gestor da escola (coordenadora pedagógica, orientadora educacional, supervisora de ensino, diretora) e ele não é facilmente disponibilizado para a comunidade ou qualquer outra pessoa que o requisite. Esses princípios se contrapõem frontalmente ao objetivo e à função de um verdadeiro PPP.

Mais do que um documento obrigatório e atualmente exigido em todos os espaços educacionais, o PPP é um documento de identidade da escola e deve apresentar a instituição escolar para toda a sociedade no que ela – escola - tem como função, objetivos, missão, concepções e decisões coletivas. Sua construção deve ser necessariamente coletiva para que possa garantir a participação de todos, inclusive representando a diversidade existente na realidade escolar. Deve ser um instrumento de melhoria da qualidade das instituições (escolas) entendida como um pressuposto a ser partilhado por todos, uma vez que:

A qualidade não é um produto, não é um dado. A qualidade constrói-se. Fazer qualidade é um trabalho que se desendera com o tempo, que não se pode dizer nunca que esteja concluído, que cresce em si mesmo com um movimento em espiral (BONDIOLLI, 2004, p.16).

Movimento esse que aponta soluções gestadas pela refl exão apresentada pelo PPP para os problemas enfrentados pela escola. Mas pode apontar também os problemas existentes que ainda não foram solucionados pela comunidade escolar. Elencá-los pode ser o “primeiro passo” para resolvê-los coletivamente. Nesse processo é esperado que o PPP sirva para provocar transformações no espaço escolar. Caso contrário, ele não terá signifi cado. Dessa forma, tomar a escola como lugar onde ocorre a construção coletiva de um importante instrumento como o PPP é um caminho de transformação. Mas se o PPP se confi gurar como um instrumento de imposição dos gestores da escola sobre os demais segmentos dela, certamente não produzirá

Page 25: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores

25

mudanças. Além disso, o PPP que não leva a mudanças também não é levado a sério pela comunidade. Pais, professores, funcionários, estudantes e gestores devem se constituir como um grupo que pensa a escola de maneira ampla, tendo sensibilidade para perceber quais são os problemas e onde residem as soluções para aquela comunidade escolar.

Sendo assim, alguns indicadores são importantes se desejamos investigar os processos de construção do PPP. Indagar sobre a forma escolhida pela escola nesse processo é um dos mais esclarecedores, pois esse caminho desnuda o tipo e o estilo de gestão implantada em seu interior. Outro importante indicador reside no grau de envolvimento e de defesa dos integrantes da escola acerca dela mesma construir seu próprio PPP e através dele gerar outros projetos importantes como o da avaliação institucional, enveredando pelas dimensões internas e externas a partir de indicadores de qualidade de ensino coletivamente propostos.

A gestão da escola também é um importante indicador a ser observado, pois dela dependem os rumos e processos decisórios que irão ser postos, possibilitando o avanço ou impondo o retrocesso no desenvolvimento do PPP.

O PPP indicando o perfi l do gestor

Muitos argumentos tentam desmobilizar as possibilidades da construção de um PPP e, vencida a primeira etapa - sua construção –, outros tantos argumentos apontam a impossibilidade dele possuir força de ação na comunidade. Dentre os argumentos destacam-se os de ser o PPP apenas um documento ofi cial que não guarda nenhum valor; não ser um instrumento respeitado pela comunidade escolar; não ter sido produzido coletivamente; não ter alcance signifi cativo; prestar-se apenas como documento formal e burocrático quando requisitado; não ser representativo de toda comunidade escolar, dentre outros. Esses mesmos argumentos podem ser utilizados, em sentido oposto, para fortalecer o grupo construtor de um projeto no interior da escola. Argumentos motivadores de mudanças operacionais que podem tornar esse instrumento um balizador e indicador da autonomia da escola, pois essa:

mais uma vez se apresenta como elemento indispensável na organização do trabalho pedagógico escolar e na participação efetiva das pessoas como resposta às imposições dos planejamentos tradicionais (MALAVAZI, 2003).

Além de indicador da autonomia escolar, o PPP pode operar como facilitador da organização de um currículo mais includente, transformando-o em um instrumento de ação forte, legítimo e motivador para os integrantes da instituição, contrapondo-se a todos os demais instrumentos legais e formais impostos externa e internamente.

As relações sociais existentes no interior da escola não podem ser entendidas como ingênuas e desprovidas de intencionalidade. Elas são, sobretudo, relações de poder, dominação e submissão que produzem decisões e podem se materializar no modelo de PPP construído pela escola. Se

Page 26: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

26

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

acreditarmos na possibilidade do PPP apontar sempre para essa direção, nos tornaremos reféns dessa possibilidade o que inviabilizaria a decisão de construí-lo. Segundo FREITAS (2003, p. 35):

...a “forma escola” constitui-se uma maneira de organizar o trabalho pedagógico a mando de funções sociais que são atribuídas à instituição escolar. Contrariar essa lógica é, no âmbito de nossa sociedade atual, um processo possível apenas como resistência. Isso não diminui sua importância como possibilidade, mas alerta para seus limites.

Muito mais apropriado acreditar nas potencialidades democráticas, participativas e coletivi-zadas desse instrumento e tentar construí-lo sobre essas bases.

A administração e a burocracia

Ao longo dos anos foram percebidas diferentes funções para a estrutura administrativa e burocrática da escola. Segundo TRATEMBERG (1982 p. 40):

...a conduta burocrática implica uma exagerada dependência dos regulamentos e padrões quantitativos, impessoalidade exagerada nas relações intra e extragrupo, resistência à mudança, confi gurando os padrões de comportamento na escola encarada como organização complexa. Em suma, o administrativo tem precedência sobre o pedagógico.

Nesse contexto é que se pensavam os planejamentos escolares, que representavam instrumentos técnicos sinalizadores da forma como a escola tratava e entendia sua própria função, ou seja, como controle e domínio. Em seguida, a burocracia e a administração foram vistas como ferramentas de apoio da estrutura escolar em toda sua complexidade. Entretanto, nos tempos modernos, quando a escola é instrumento de formação de mão de obra necessária ao mercado de trabalho, a lógica da burocracia e da administração também repete esse movimento e assume a função de impor, discriminar e alienar. A estrutura escolar não tem como base princípios formativos e humanitários.

Assim, o PPP da escola tanto pode ser um importante instrumento construído coletivamente, quanto pode ser um elemento de imposição escrito individualmente. Estudar os processos de construção do PPP das escolas e os estilos de gestão que a representam pode fornecer alguns indicadores que, categorizados, auxiliariam na construção de uma gestão democrática e autônoma para a escola.

O gestor tem, dentre outras funções, a de mediar e conduzir o processo de construção do PPP. Independentemente do seu perfi l, ele é um agente determinante no processo. Assim sendo, ele tanto pode assumir o papel de um gestor impositivo e autoritário, conduzindo o PPP nesse caminho, resultando em um instrumento de coerção utilizado para controlar os grupos no interior da escola; como pode assumir o papel de gestor democrático e participativo. Conduzindo o processo de construção do PPP por essa via, certamente contribuirá para que o mesmo seja representativo de toda a comunidade escolar. Ainda que possamos questionar a possibilidade de um só elemento (no

Page 27: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores

27

caso o diretor) possuir tanta força, sabemos que a estrutura hierarquizada que comanda as escolas básicas no país permite que um só elemento da escola, munido de força decisória e permissionária de instâncias superiores, possa manipular e controlar os demais grupos. Nesse sentido é possível que o resultado objetivado em um PPP não seja representativo do grupo totalitário da escola e assim as pessoas não se reconheçam nela. A marca de um projeto pode mostrar ou não a identidade de seus integrantes.

Gestão do PPP e o PPP como gestão: quem comanda o quê?

O PPP pode ser entendido como um “grande acordo coletivo que se faz no interior da escola” (MALAVAZI, 1995). Assim como a escola é uma instituição com uma dimensão política (é possível existir objetividade, mas não há neutralidade em educação), o PPP também possui uma dimensão política que, muitas vezes, precisa ser posicionada em função de seus objetivos. Daí a escola se organizar não sem confl itos e disputas inclusive na forma de orientar e reorientar seu PPP, pois “A escola não é, nem nunca foi, uma ilha isolada dos interesses políticos, sociais e econômicos na sociedade em que se insere, (SORDI, MALAVAZI, 2004).

Pensamos que o PPP deva ser um instrumento facilitador e aglutinador, propiciando uma refl exão permanente entre seus membros. Se o que chamamos de PPP propicia a refl exão e a escola é refl exiva, então estamos caminhando na direção de nossa crença premissa, ou seja, o PPP como instrumento de construção de uma escola democrática. Caso contrário, ou seja, se a escola não é facilitadora da refl exão e cada um de seus membros atua individualmente, mesmo anunciando seu desejo de construção de uma nova sociedade, será mais o alcance desse objetivo, uma vez que ele não atende à premissa básica de um PPP: ser coletivo e propiciador da refl exão. Assim, é preciso buscar objetivos afi nados com o projeto que se quer/pretende realmente implantar.

É importante lembrar que as formas utilizadas para a construção do PPP são importantes, mas, mais importante ainda, é a observação atenta da posição política dos atores que o constróem, pois os mesmos podem auxiliar a efetivação e consolidação de um PPP que representa os anseios de uma cultura dominante e podem organizar o currículo da escola com base nessa parcela da população, não levando em conta a realidade da comunidade em que a escola se insere. As decisões sobre o PPP devem ser de competência da própria escola e da comunidade na qual ela se insere. Sendo democrática e autônoma, não tem como base parâmetros externos de avaliação. As experiências realizadas não devem ser tomadas como modelos aplicáveis a todas as realidades. A autonomia da escola deve ter como pressuposto o atendimento ao grupo no qual ela se insere e seu PPP deve ser um instrumento coletivo norteador do trabalho docente, provisório e inacabado.

Evidentemente os atores internos à escola possuem visões diferenciadas do signifi cado de uma gestão e essas diferentes visões estarão expressas no PPP.

O PPP é também um instrumento catalizador das orientações externas “ofi ciais” e estas, via de regra, se cumprem de forma hierárquica. Mas o que diferencia uma instituição escolar de

Page 28: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

28

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

outra é, também, o grau de autonomia que ela constrói em relação aos órgãos externos ligados a ela. Quanto menor a autonomia da escola, mais se expressam no PPP as orientações recebidas hierarquicamente, como indicadores de modelos administrativos, de formação e de instrução a serem cumpridos por ela. Por outro lado, em direção oposta, quanto maior o grau de autonomia da escola em relação aos órgãos externos, expresso no modelo e no processo de construção do seu PPP, maior será sua independência para a tomada de decisões. Evidentemente, mesmo com esse grau de autonomia altamente demarcado, a escola sempre estará ligada às instâncias superiores que a regem, ainda que administrativamente falando.

Algumas questões importantes

Para efeito de análise e observação, algumas questões podem nortear nosso olhar indicando o grau de autonomia da escola e do PPP. São questionamentos aparentemente simples, mas que, ao serem efetivados, podem dar início a um novo movimento de transformação no interior da escola. Questões tais como:

Quais elementos indicam que o PPP foi construído pela comunidade?•

Quais elementos indicam que o PPP não é artifi cial para a comunidade escolar que ele • representa?

Quais elementos indicam que o PPP representa a posição da instituição como um todo • e não a visão particular ou parcial de poucos?

Quais elementos indicam que o PPP expressa o conjunto dos sujeitos envolvidos no • ambiente escolar?

Como o PPP expressa a avaliação institucional da escola (entendendo-a como Instituição)?•

Sabendo que as relações de poder tem repercussões importantes no cotidiano da • escola, como elas ocorrem no processo de construção do PPP?

Essas questões, iniciais, podem ganhar atributos importantes de acordo com a comunidade em que ele – PPP- esteja inserido. Além disso, são questões facilitadoras objetivando gerar novos questionamentos e permitir que a comunidade esteja permanentemente construindo e reconstruindo seu PPP a partir das suas necessidades locais.

Possibilidade de superação via PPP

Políticas educacionais apropriadas, nova administração do tempo e espaço escolares, melhor estrutura organizativa, avaliação do processo de aprendizagem progressivo e seqüencial,

Page 29: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores

29

organização do ensino em etapas de acordo com cada grupo costumam ser sinalizados após um processo maduro e responsável de construção do PPP. São questões mais abrangentes que têm repercussões diretas em todos os espaços escolares. Pela mesma via, acabam sendo contemplados e inseridos como objetivos a serem vislumbrados a longo prazo na construção de um PPP, pois, de forma geral, o ensino brasileiro atravessa uma grave crise de qualidade uma vez que:

Quanto mais parece que o direito de possuir é dado a todos, mais se ensina o dever de consumir e de aprender a consumir/desejar a partir do lugar social que ocupa. Assim, o direito à educação (inclusão em todos os níveis de ensino) contrapõe-se o dever de aceitar uma determinada concepção de qualidade de ensino, que oculta seus benefi ciários e que fabrica trilhas diferenciadas e meritocráticas de sucesso e de fracasso (exclusão por dentro) (FREITAS, L., SORDI, FREITAS, H., MALAVAZI 2004).

Importante registrar que, embora alguns setores ou grupos insista em anunciar o oposto, respaldados pelo número de estudantes matriculados nas escolas nos vários níveis de ensino, esta é uma realidade que deve preocupar a todos. Não se trata apenas de colocar todos na escola, como querem os liberais, mas de garantir uma escola de qualidade para todos. Buscar soluções rápidas, decretadas, mágicas e externas à instituição já mostrou ser um caminho de insucesso garantido. É preciso, então, que as propostas de transformação e qualidade de ensino partam do interior das escolas e tenham respaldo dos setores aos quais elas pertencem. Algumas experiências positivas já foram historicamente registradas e, caso não tivessem sido abortadas em seu processo de construção, poderiam servir como exemplo. De qualquer maneira os PPP podem sinalizar possibilidades de superação, uma vez que partem do diagnóstico de sua própria realidade e levam em conta as potencialidades da comunidade local. Não deve somente contemplar a instrução ou informação necessária ao estudante, mas deve levar em conta a formação que pretende e deve oferecer. Por isso, costumamos dizer que um projeto pedagógico deve tomar decisões coletivas que não são apenas técnicas ou acadêmicas, mas são também políticas. Por isso, não causa estranheza que, em todos os níveis de ensino, essa via de construção coletiva e democrática obtenha resistência; afi nal, ela rejeita internamente processos decisórios individuais e autoritários e, externamente, rejeita todos os mecanismos de imposição por decretos e leis que não a retratem. E esses processos não estão isentos de identidades. São pessoas, grupos, entidades, categorias que, por trás deles, procuram criar mecanismos para que a própria comunidade acadêmica desacredite dos processos decisórios internos, coletivos e educativos. Essa resistência tem sido percebida em muitas ocasiões, inclusive nos absurdos acordos e decisões que em nada auxiliam o verdadeiro ensino de qualidade do país. Mesmo conhecendo-os, é preciso continuar resistindo a eles, pois essa é a única forma de não permitir um avanço ainda mais irresponsável na área educacional e, ao mesmo tempo, é a forma de anunciar a crença na possibilidade de superação e avanço, na busca de melhores condições para a educação no Brasil.

Maria Marcia Sigrist Malavasi é professora e coordenadora associada do Curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp.

Page 30: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

30

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

Referências

BONDIOLI, A. O Projeto Político Pedagógico da creche e sua avaliação. Campinas/SP: Autores Associados, 2004.

FREITAS, L.C., SORDI, M.R.L.; FREITAS, H.C.L.; MALAVAZI, M.M.S. Dialética da Inclusão e da Exclusão: por uma qualidade negociada e emancipadora nas escolas. In: Geraldi, C.M.; RIOLFI, C.R.; GARCIA, M.F. (orgs). ESCOLA VIVA: elementos para a construção de uma educação de qualidade social. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2004.

FREITAS, L.C. Ciclos, seriação e avaliação: confronto entre duas lógicas. São Paulo: Moderna, 2003 (Coleção cotidiano escolar).

MALAVAZI, Maria Marcia Sigrist. PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO: uma construção possível. In: EVANGELISTA, Francisco, GOMES, Paulo de Tarso (Organizadores) EDUCAÇÃO PARA O PENSAR. Campinas: Átomo Alínea, 2003.

MALAVAZI, Maria Marcia Sigrist. A construção de um projeto político pedagógico: registro e análise de uma experiência. Dissertação de mestrado-Departamento de Metodologia de Ensino, UNICAMP, maio de 1995.

SORDI, Mara Regina Lemes, MALAVAZI, Maria Marcia Sigrist,. Avaliação do ensino e da aprendizagem: concepções e mitos. Série Acadêmica. Revista da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, nº 18, janeiro, 2004.

TRATEMBERG, M. Sobre Educação, Política e Sindicalismo. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1982. Cap. 1: A escola como organização complexa, p. 35 a 54.

Page 31: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores

31

SUSTENTABILIDADE, EDUCAÇÃO E SOBREVIVÊNCIA

Dagoberto Lorenzetti

“Aquilo que não tem solução, está resolvido” ditado popular

Vivemos hoje uma situação única na história da vida neste planeta. Não se trata apenas de mais um episódio de alteração climática e ambiental e uma conseqüente extinção em massa. A situação, conforme revela a maioria esmagadora da produção científi ca séria das últimas três décadas, tem pelo menos dois aspectos novos: sua velocidade e a participação ativa de nossa espécie como causa-raiz do problema.

A deterioração está se processando de maneira particularmente assustadora em países de desenvolvimento recente e nas regiões mais pobres do planeta. A região do Pontal do Paranapanema, assim como outras que tive a fortuna de conhecer ainda nos anos 50 do século passado, vem sendo modifi cada e depauperada em sua exuberância e diversidade. Grilagem, destruição, violência ambiental e social. Os problemas são muitos e a busca de soluções de desenvolvimento sustentável é um imperativo para a região.

Obviamente todos sabemos que a crise de sustentabilidade não se circunscreve ao Pontal. Ela é planetária. Na prática, desconhece fronteiras.

Esta crise demanda ação educacional célere, imediata e efetiva. Crise, na escrita ideográfi ca chinesa, é grafada com dois caracteres: um representa risco e outro, oportunidade. A educação, entendida como um processo de formação e informação através do qual as pessoas adquirem novos conhecimentos, desenvolvem novas habilidades e adotam novas atitudes, é instrumental adequado para o enfrentamento dos riscos e ao aproveitamento das oportunidades que se nos apresentam. Dirigentes e trabalhadores de todas as lides, adultos, jovens e crianças, todos, inclusive os professores, precisam aprender como enfrentar e como prosperar nestes novos tempos.

O momento presente demanda comprometimento de todos. Não há solução trivial. Não há solução individual. Há consenso que a crise é problema de todos. Sem um amadurecimento profundo, uma metanóia em escala planetária, que redunde na auto-regulação de ações individuais e coletivas, difi cilmente superaremos a crise.

Os cientistas e os mestres, de profi ssão e vocação, têm papel fundamental. Eles têm que mostrar o caminho. Eles têm que divulgar os diagnósticos. Eles têm que responder ou procurar respostas às perguntas.

Page 32: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

32

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

Vale aqui elencar pelo menos três. Onde estamos? Quem somos? Para onde vamos? No arrazoado que segue vou procurar respondê-las, discorrendo também sobre os caminhos que se abrem com desenvolvimentos recentes de princípios, abordagens e tecnologias que se pretendem sustentáveis.

Há centenas de bilhões de galáxias no Universo e há centenas de bilhões de estrelas na Via Láctea. O Sol é apenas uma delas. Em torno desta estrela, a uma distância de 150 milhões de km, gira nosso planeta, a terceira órbita, depois de Mercúrio e Vênus. Como a luz viaja, no vácuo, a 300 mil km por segundo, são necessários cerca de 500 minutos para a luz do Sol chegar à Terra. Assim, se o Sol “apagasse” agora, só saberíamos do ocorrido daqui a 8 minutos e 20 segundos! Se houvesse uma “estrada” para o Sol, levar-se-ia 176 anos para lá chegar, dirigindo a 80 km por hora.

A Terra, com seus 13 mil km de diâmetro tem, hoje, cerca de 70% de sua superfície coberta por água. A confi guração exata dos continentes, a proporção exata entre terras secas e água, há cerca de 3 bilhões e meio de anos, não é conhecida. Há evidências, entretanto, que foi nessa época que a vida se instaurou nos mares. Com o passar do tempo, ela se diversifi cou, gerou uma atmosfera protetora e povoou a terra, compondo a biosfera.

A biosfera é uma região especialíssima do Universo. É nela que estamos. É sensível e diminuta, em termos relativos. Para se ter uma idéia de seus limites, se num modelo em escala a Terra fosse representada por uma esfera com 1,3 m, equivalente aos seus 13 mil km de diâmetro, o Sol seria um edifício de 140 m de altura, a cerca de 18 km de distância.

A biosfera seria um verniz sobre aquela esfera de 1,3 m, com espessura pouco superior a 1 mm.

É aí que nós e a vida estamos.

A vida é uma ocorrência misteriosa e muito especial. Depois que o estudo do DNA revelou que todos os seres vivos são muito semelhantes e que os cogumelos estão mais próximos de nós do que da alface, é importante compreender o que somos. Nós somos a biosfera, nós e todas as demais espécies vivas com as quais coabitamos. Não existe uma biosfera “lá fora”. Nós somos a vida.

A Terra tem 4,5 bilhões de anos. Se este tempo fosse um ano calendário, a vida teria surgido em março e o homem teria aparecido nos últimos instantes do dia 31 de dezembro. Nossa espécie acabou de chegar para a festa da vida, tem “somente” cerca 1 milhão de anos de existência.

É um paradoxo, mas a história da vida sobre na Terra tem sido contada mais pelos mortos do que pelos vivos. A partir de estudos de fósseis e de rastros de atividades de espécies extintas, estima-se que 99,99% das espécies que já existiram sobre a Terra já desapareceram. A duração

Page 33: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores

33

típica de uma espécie está entre 2 milhões e 10 milhões de anos. Algumas espécies duram mais. Outras duram menos. Em média, são “apenas” cerca de 4 milhões de anos. Por cinco vezes, nos últimos 500 milhões de anos, processos de extinção em massa, devidos a causas variadas, praticamente varreram da face da Terra a maioria dos seres vivos.

A preocupação do homem com sua sobrevivência e bem-estar é, certamente, anterior ao surgimento das civilizações humanas. Os humanóides que nos antecederam aprenderam, através de processos que duraram gerações, a identifi car quais ervas ingerir quando uma refeição mais pesada, muitas vezes um ser de sua própria espécie, lhes causava desconforto. Ao longo dos milênios, muitas formas e fórmulas para cuidar da saúde apareceram. Em determinado momento, religião, medicina e magia se misturavam. Muitos vigários e vigaristas seguramente prosperaram. Marco importante foi o aparato conceitual, fi losófi co e razoavelmente formalizado que surgiu na ilha de Kós, na Grécia de Hipócrates, a quase cinco séculos antes de Cristo.

A percepção da essencialidade de condições “sanitárias” para se garantir a saúde pública também é antiga. A capacidade olfativa é um trunfo importante para a sobrevivência de muitas espécies, inclusive o homem. E a atmosfera, o recurso natural “ar”, é o componente da biosfera mais sensível a alterações. Além de ser extremamente tênue, a camada de ar que cobre a Terra é, em certo sentido, o elemento mais importante para nossa existência. Podemos sobreviver semanas sem comer, dias sem beber água, mas apenas quatro minutos sem ar.

Movimentos migratórios ocorreram por força do desconforto e da percepção de agravos à saúde devidos à degradação do meio circundante ao longo da Histórica e da Pré-História. Movimentos migratórios aqui mesmo em nossa Terra Brasilis podem ser atribuídos a secas, exaurimento de recursos locais, eras glaciais e ao mau cheiro gerado pelo acúmulo de lixo nas cercanias dos assentamentos primevos.

Na Babilônia de Hamurabi, já se faziam registrar a ocorrência de odores desagradáveis dezoito séculos antes de Cristo. Quase um milênio depois, o rei Tukulti, em visita a Hit, localizada a oeste de Babilônia, relatava o desconforto causado pelas emanações de rochas ricas em dióxido de enxofre e sulfeto de hidrogênio. Em 500 a.C, a Cloaca Maxima (a grande fossa) foi construída em Roma pelos etruscos e, imagina-se hoje, quão grande não terá sido o desconforto dos que residiam a barlavento. Platão (427-347 a.C) comparou os montes e montanhas gregos, depauperados por anos de extração, queima e destruição, aos ossos de um corpo aviltado e putrefeito. Sêneca, no ano 61 da Era Cristã, registrava sua alegria e melhora de saúde quando saía de Roma, contaminada pela fumaça e pelos odores fétidos. Os curtumes, não só em Roma, mas em outras cidades da Antiguidade, só eram permitidos em locais afastados.

Legislação promulgada pelo Rei Edward I, em 1272, proibiu a queima de carvão mineral marinho (sea coal), devido aos inconvenientes de sua fumaça. John Evelyn (1620-1706) publicou o Fumifugium – or The Inconvenience of the aer and smoak of London dissipated together with some remedies humbly proposed” (Fumifugium ou a inconveniência do ar e da fumaça dissipada de Londres junto a alguns remédio humildemente propostos).

Page 34: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

34

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

Foi bem mais tarde, no século XVII, que Bernardino Ramazini, na Itália, focalizou a doença e a saúde ocupacional. Um texto de 1844, editado em Paris 144 anos depois do De Morbis Artifi cum Diatriba (Doenças do Trabalho), intitulado “Du Climat et des Maladies du Brésil”2, descreve moléstias de índios, de negros e de mineiros, entre outras. A doença ocupacional, entre outras mazelas causadas pelo descaso com que se tratam as pessoas e o ambiente, ainda é um problema sério de saúde pública no Brasil de hoje.

O especialista em História Natural e professor de Biologia, Dr. Manuel Pereira de Godoi, de Pirassununga, já estudava o Rio Mogi-Guaçú e o corimba, nos anos 50. Recolhendo diligente e atentamente amostras de água contaminada pela lixívia lançada pelas indústrias e realizando experimentos para avaliar as conseqüências na população de corimbas e em outras espécies de peixes, tornou-se conhecido no mundo todo como importante ictiologista. Na cidade onde morava era reconhecido por seus alunos e pessoas de bem como uma sumidade ambiental engajada, ainda que esta expressão inexistisse à época. Por parte da parcela reacionária da população, era taxado de “comunista”, acusação grave e muito perigosa naqueles anos de chumbo.

Muitos outros pesquisadores, professores e cidadãos que se indignaram com a destruição e a pilhagem de nosso patrimônio comum, nossos recursos naturais, nestes anos de industrialização desavisada, fi zeram o que foi possível para denunciar problemas e encontrar respostas. Mas, a exemplo da garota surda em Húmulus, peça de Bertold Brecht, a sociedade demora muito a ouvir. Pode até escutar, mas a compreensão é por vezes tardia.

A grave crise ambiental e seus desdobramentos que ora enfrentamos está sendo causada, em sua maior parte, pela ação antrópica. O Homo sapiens medrou e proliferou. Os mais de 6 bilhões e 500 milhões de representantes de nossa espécie presentes hoje na biosfera, junto aos seus quase 800 milhões de veículos, aos mais de 90 milhões de barris de petróleo queimados por dia e outros dispositivos e atividade destruidoras, estão impondo às cerca de 30 milhões de outras espécies, que conosco formam a “teia da vida” na biosfera, uma taxa de desaparecimento 100 vezes superior ao que poderia ser chamado de “taxa natural”.

Para onde estamos indo?

Desmatamento e exploração mineral desmedidos, agricultura que empobrece e destrói matas e solos, exploração à extinção completa de espécies de valor comercial, introdução diuturna de grandes quantidades de antigas e de novas espécies químicas sintetizadas na ecosfera, além de outras ações predatórias compõem um quadro óbvio de destruição crescente e sistemática. Em nosso país esta destruição se faz mais cruel, dadas as condições desiguais que prevalecem ao longo dos séculos em uma economia que parece perseguir um ciclo de extração após outro. Até iniciativas que apresentam uma lógica ambiental e politicamente correta, como por exemplo o biodiesel e outras culturas focadas no seqüestro de carbono, tem alta probabilidade de criar miséria e destruição ambiental.

2 Ou “Do Clima e das Doenças do Brasil”. O texto encontra-se na Biblioteca do Museu da Faculdade de Medicina de São Paulo.

Page 35: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores

35

Em anos recentes certas discussões sobre temas ligados ao meio ambiente e à saúde pública têm fugido aos limites dos círculos de especialistas e chegado à grande mídia. Todos já ouviram falar da depleção da camada de ozônio, das epidemias virais e bacterianas fora de controle, das alterações climáticas e do efeito estufa. Ouve-se muitas vezes dizer que as opiniões divergem. E de fato isso ocorre e há uma razão. O ex-vice-presidente americano Al Gore publicou o seu Inconvenient Truth (Verdade inconveniente) e atuou no fi lme homônimo, recém lançado também em vídeo. Gore relata a resistência que tem encontrado ao longo da vida para ver apreciados temas ambientais e outras questões de importância global pelo “establishment” autista em seu país. Esta postura é encontrada em praticamente todos os países industrializados ou de industrialização recente. É como se a revolução industrial, a ciência, a tecnologia e as organizações humanas tivessem colocado nas mãos de determinadas pessoas um poder muito superior à sua capacidade crítica e de gerenciamento. Além disso, Gore mostra que as “dúvidas” a respeito de temas como os malefícios do tabaco e o efeito estufa têm sido, em grande parte, “plantadas” em órgãos de imprensa por grupos interessados em fazer as denúncias caírem em descrédito. Tal atitude, além de criminosa, é imoral. Revela um grau muito alto de egoísmo e ignorância.

É sempre importante lembrar e divulgar que a biosfera é, na prática, um sistema fechado. Os ecossistemas insulares confi guram uma boa aproximação do que seja um sistema fechado. Paul Hawken relata, em seu The Ecology of Commerce (A ecologia do comércio) o caso da Ilha de São Mateus, no Mar de Bering. Em 1944 foram importados 29 veados e zootecnistas calcularam que as características fi siográfi cas da ilha permitiriam acomodar entre 5 e 7 veados por km2 ou, seja, dada a área disponível, entre 1.600 e 2.300 animais. Em 1963 a população chegou a incríveis 6.000 cabeças, dada a inexistência de predadores. Não se pode abusar de um sistema fechado por tanto tempo, impunemente. O excesso de população levou a uma brutal destruição do habitat e a fome e a doença reduziram a população de veados para apenas 42 indivíduos em 1966. Voltando aos problemas que afl igem a humanidade e a renitência dos conservadores. “Deixar como está para ver como é que fi ca” é a pior das decisões. Ao fi nal, ninguém está a salvo das conseqüências. O sistema é fechado.

A saúde da nossa própria espécie, a exemplo de tantas outras e dos próprios veados da Ilha de São Mateus, está deteriorando. O Dr. Samuel Epstein, autoridade mundial em etiologia e prevenção de câncer, afi rma que um em cada dois homens e uma em cada três mulheres que vivem nos dias de hoje já tem um encontro marcado com a doença neoplásica. Mais do que isso, afi rma que esta verdadeira “epidemia de câncer” é devida, em larga medida, à ação irresponsável de grandes corporações transnacionais de capital aberto, gigantescas, verdadeiros leviatãs, que detêm a maior parcela de poder de fato no mundo moderno.

Joel Bakan publicou, em 2004, o livro The Corporation: the pathological pursuit of profi t and power (A Corporação: a busca patológica pelo lucro e pelo poder) e produziu, junto com Mark Achbar e Jennifer Abbott, o fi lme homônimo. Através de entrevistas e depoimentos de personalidades de expressão, de um amplo espectro ideológico, o autor mostra o passado, discute o presente e especula a respeito do futuro destas que são as instituições humanas mais poderosas sobre a Terra. Através das palavras e opiniões de baluartes da ortodoxia econômico-fi nanceira mundial, como o Nobel de Economia Milton Friedman, recentemente falecido, e expoentes intelectuais engajados no combate aos efeitos daninhos da globalização e das

Page 36: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

36

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

organizações transnacionais, como Noam Chomski e Vandana Shiva, é possível delinear um quadro bastante claro do papel que as organizações em geral e as grandes corporações de capital aberto em particular podem desempenhar em todos os quadrantes da vida contemporânea.

Uma constatação grave é que bem ou mal conduzidas essas organizações são máquinas externalizadoras. São desenhadas para maximizar receitas e minimizar custos, deixando, sempre que possível, custos ambientais e sociais de suas operações para serem pagos por terceiros. Por terceiros entenda-se a população em geral e sua parcela mais pobre em particular.

Assim, da mesma forma que um tubarão foi desenhado e está de certa forma “otimizado” para predar no mar, as corporações transnacionais de capital aberto foram desenhadas para externalizar e maximizar a riqueza dos acionistas, predando no ambiente dos negócios. Problemas de saúde e segurança ocupacional, problemas ambientais têm sido provocados por estas externalizações. E tem sido tratado de forma independente. Dividir para reinar.

O conceito de sustentabilidade teve o condão de aglutinar estas preocupações. O conceito decorreu de um processo evolutivo, parte do qual é comentado a seguir.

A primeira Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente foi realizada na cidade de Estocolmo em junho de 1972. Reuniu 1.200 representantes de 112 países e produziu um Plano de Ação para o Meio Ambiente. Constituiu-se em verdadeiro divisor de águas em assuntos ligados ao sistema global de produção e das relações do homem com o meio ambiente. Ali se argumentava que, para eliminar a ameaça prescrita, não bastaria limitar o crescimento das nações ora subdesenvolvidas. Era primordial que os países mais ricos se comprometessem em reduzir seu consumo de recursos e geração de poluição.

Como mencionado, as organizações humanas, em especial as voltadas para a consecução do lucro, em especial as grandes organizações de ação transnacional, são uma presença onipresente no planeta, pelo menos desde a virada do século XIX para o século XX. Têm grande dose de responsabilidade e um importante papel a desempenhar no contexto da sustentabilidade e da sobrevivência de nossa espécie e da vida no planeta, pelo menos da maneira como as conhecemos.

Ainda que seja possível identifi car alguns pioneiros anteriores à conferência de Estocolmo, a partir dela um número crescente de organizações, a maior parte organizações de vanguarda, em diferentes setores de atividade produtiva, começaram a incluir a variável ambiental em suas considerações, planejamento e políticas. Por outro lado, indivíduos e profi ssionais – religiosos, políticos, fi lósofos, economistas e a comunidade científi ca mundial – também manifestavam ciência a respeito da necessidade premente de um novo paradigma para o desenvolvimento.

A consciência em relação à gravidade dos problemas ambientais veio aumentando e a Comissão Brundtland acabou por defi nir, em 1987, desenvolvimento sustentável como “o uso de recursos para o atendimento de necessidades de hoje sem impedir que gerações futuras possam ter acesso a estes recursos para atender suas necessidades”.

Page 37: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores

37

Karl-Henrik Robèrt que, a exemplo da primeira-ministra sueca que emprestou seu nome à Comissão, dra. Grö Harlem Brundtland, é médico oncologista e, impressionado com a escalada do câncer, acabou por desenvolver um conjunto de princípios denominados The Natural Step (O Passo Natural).

Para Robèrt, o problema com o modelo de realidade vigente, no qual a organização é considerada uma “máquina”, é que há graves pontos cegos sociais, ambientais e pessoais. Há dois processos centrais, na abordagem do TNS.

O primeiro processo, de percepção da natureza insustentável da atual direção que a sociedade e os negócios estão tomando e da lógica da busca da sustentabilidade, e outro de compreensão das quatro condições sistêmicas para a sustentabilidade:

1) não submeter a natureza ao aumento sistemático das concentrações de substâncias extraídas da crosta terrestre;

2) não submeter a natureza ao aumento sistemático das concentrações de substâncias produzidas pela sociedade;

3) não submeter a natureza à degradação por meios físicos; e

4) nesta sociedade as necessidades das pessoas são atendidas em todos os lugares da Terra.

Propõe também um método denominado back casting (retro-concepção), através do qual indivíduos e organizações podem planejar a mudança. Assim que a demanda da sociedade aumenta por aumento populacional e sofi sticação de hábitos de consumo, a disponibilidade de recursos recrudesce. O processo pode ser associado à visão em corte de um funil. À medida que o tempo passa, a margem de ação vai fi cando mais estreita e pode chegar a um ponto em que os recursos serão insufi cientes.

Page 38: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

38

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

A idéia do back casting é planejar a partir de um determinado ponto no futuro e introduzir as mudanças necessárias de maneira a evitar um “choque” com a parede do funil em algum ponto de um futuro próximo.

No início da década de 90, acontecimentos relevantes para o desenvolvimento da gestão ambiental no âmbito empresarial tiveram lugar. Alguns fl agrantemente reativos. Ocorreu a 2ª Conferência Mundial da Indústria sobre Gerenciamento Ambiental, em Roterdam, no ano de 1991. Resultou uma “Carta” com 15 princípios fundamentais para a gestão ambiental nas indústrias.

Em 1992, vinte anos após a Conferência de Estocolmo, na cidade do Rio de Janeiro, teve lugar a segunda conferência da Organização das Nações Unidas - ONU sobre meio ambiente, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.

Nela emergiu um conceito mais sólido de desenvolvimento sustentável, incluindo a dimensão social de forma explícita na defi nição. Surgiu também um plano de sustentabilidade para o século XXI, formalizado no documento ofi cial desta conferência, conhecido como Agenda 21. Foram ali registradas explicitamente três dimensões sine qua non para o desenvolvimento sustentável: a econômica, a ambiental e a social.

Este tripé, conhecido pela sua denominação em língua inglesa como o triple bottom line, tem norteado as ações de organizações em todo o mundo. Encontra-se parafraseado, por exemplo, no relatório de sustentabilidade da empresa petrolífera anglo-holandesa Shell como os 3 Ps - people, planet, profi t (pessoas, planeta, lucro).

O pilar econômico representa a geração de riqueza pela sociedade através da exploração comedida e inteligente de meios de produção e de consumo duráveis. O ecológico é pertinente à conservação e ao adequado manejo dos recursos naturais. O social compete à eqüidade e à participação de todos os grupos sociais na construção e manutenção do equilíbrio do sistema, compartilhando direitos e responsabilidades.

É essencial buscar o equilíbrio entre estas três dimensões. E, importante enfatizar, o homem moderno é um “animal econômico”, como diriam Mark London e Brian Kelly.

Na prática, a dimensão ambiental está condicionada a considerações sociais . Em 1972, por exemplo, a declaração da primeira-ministra indiana, Indira Ghandi, reiterada pelo nosso ministro do Interior à época, general Costa Cavalcanti, de que a “pior forma de poluição é a da pobreza”, mostrou claramente que a visão predominante era a de que preocupações ambientais seriam um luxo que apenas os países avançados poderiam ter.

Também na prática os interesses, a distribuição desigual de poder e infl uência e os paradigmas cristalizados fazem com que a dimensão econômico-fi nanceira se imponha como a mais “coerente” e importante.

Page 39: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores

39

Da Rio-92 esperava-se que emergisse uma nova declaração de princípios e direitos sobre proteção ambiental e desenvolvimento sustentável, já recomendada pela Comissão Brundtland em 1987, que servisse de guia para todas as pessoas e nações. Esta Carta da Terra não se materializou por divergências relativas a seu conteúdo e, em seu lugar, foi aprovado um documento de certa forma menos assertivo, com 27 princípios, denominado Declaração de Princípios do Rio ou Declaração do Rio de Janeiro. Três anos depois, reuniram-se em Haia, em um seminário internacional, proponentes de uma Carta da Terra, onde se estabeleceram as necessidades, os elementos principais e a forma de elaboração da referida Carta. A versão atual do documento, com 16 princípios agrupados em quatro categorias (respeito e cuidado com a comunidade da vida, integridade ecológica, justiça social e econômica e democracia, não violência e paz) enfatiza a essencialidade de uma visão compartilhada e a adoção destes princípios como guia e referencial de avaliação da conduta de indivíduos, organizações, empresas, governos e instituições transnacionais.

O documento exorta a humanidade a reunir esforços para a “proteção da vitalidade, diversidade e beleza da Terra”, nosso lar, como um dever sagrado. Tece considerações a respeito da situação global, que pode ser revertida, cujos padrões atuais de produção e consumo são injustos e desavisados, estão levando à devastação generalizada da biosfera e a um agravamento do fosso existente entre ricos e pobres. Os desafi os ambientais, econômicos, políticos, sociais e espirituais que se apresentam formam um conjunto conexo e carece conceber e implementar soluções includentes.

As resistências à Carta da Terra, bem como a outras iniciativas sustentáveis, podem ser aquilatadas pelos mais de dez anos necessários para se chegar a um texto-base passível de aprovação. Muitas outras iniciativas, podendo-se imaginar até que, dentre elas, algumas destinadas a tirar o vigor e diminuir a importância dos 16 princípios, tiveram lugar desde então. Vale mencionar algumas muito positivas. As 8 Metas do Milênio, o Protocolo de Cartagena sobre a Biodiversidade, a Convenção Contra a Corrupção. O difícil avanço na última convenção sobre biodiversidade, marchas e contra-marchas na discussão e implementação da Agenda 21 Local, e a corrupção generalizada que se pode observar aqui e no mundo são provas cabais de que muito esforço ainda terá que ser empregado para a obtenção de resultados.

Há uma postura discutível, que é a do “se se deseja resultados e não se pode enfrentá-los, que tal juntar-se a eles?” O capitalismo ortodoxo é renitente e só ouve aquilo que lhe chega aos ouvidos em seu próprio jargão. Ativistas como Paul Hawken, Amory Lovin e L. Hunter Lovins escreveram o texto Natural Capitalism (traduzido como Capitalismo natural pela Cultrix)3, onde apresentam o que denominam quatro estratégias centrais do capitalismo natural. Estas estratégias têm tido aplicação prática em empresas de todo o mundo. Claro está que “uma andorinha não faz verão”, mas trata-se de um processo em curso. As estratégias são:

1) Resource Productivity (Produtividade dos Recursos): buscar a produtividade máxima no uso dos recursos escassos do planeta, não desperdiçar;

3 Além das quatro estratégias do “capitalismo natural”, apresentam o conceito de “capital natural” propriamente dito. Este seria o valor de todos os organismos e sistemas vivos que nos prestam serviços de despoluição atmosférica, limpeza da água, recuperação de solos e outros. Estes serviços, estima-se, valem, a cada ano, o equivalente a um “PIB Mundial”, algo na casa dos 40 trilhões de dólares, hoje. Se 40 milhões são o “juro” anual, o capital natural seria o “principal”, equivalente a, digamos, mais de dez vezes este valor, algo na casa de meio quatrilhão de dólares. Toda vez que se derruba mata nativa na Amazônia para plantar soja, está-se fazendo um saque no principal, não se está utilizando apenas o “juro”.

Page 40: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

40

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

2) Biomimicry (Biomimetismo): buscar inspiração nos organismos vivos e nos processos naturais;

3) Service and Flow (economia de serviços e fl uxo): onde empresas deixam de vender produtos que logo se deterioram e passam a fabricar para si próprias e alugar para usuários fi nais. Se a empresa produzir um produto, por exemplo, uma geladeira, que quebre facilmente, estará “dando um tiro no próprio pé”. A empresa não poderia vender a geladeira, somente alugá-la;

4) Investing in natural capital (Investir em capital natural): adotar uma abordagem que transcende a mera sustentabilidade e tenta ser restauradora.

Há métodos antigos que podem ser úteis, como a prática de certifi cação de conformidade com normas de gestão ambiental e tecnologias promissoras sendo desenvolvidas ou aperfeiçoadas nas mais variadas indústrias, em especial na de geração de energia e no setor de transporte. Trens magnéticos, veículos híbridos que funcionam a combustível fóssil e eletricidade consomem menos e se enquadram na estratégia 1. Biocombustível-elétricos, veículos à célula de combustível (pilha de hidrogênio), geração eólica, fotovoltaicas etc., são iniciativas sustentáveis ou quase sustentáveis. Novos materiais e soluções biomiméticas trazem grandes oportunidades e esperanças, mesmo que o uso intensivo de tecnologia contradiga, em certo sentido, o pensamento de Einstein, que afi rmava ser impossível resolver um problema usando-se o mesmo sistema de referências que o criou.

Se, por um lado, é verdade que a consciência a respeito dos graves problemas ambientais e sociais que vivemos cresce a cada dia, por outro a distância entre o que deve ser feito e o que efetivamente tem sido feito tem aumentado muito.

Há muito ainda por fazer. Carece especular. Carece educar. Dada a premência dos fatos, talvez, em especial, talvez, talvez careça educar primeiro nossa classe política, nossa classe empresarial e nossos dirigentes.

Ao refl etir sobre o tema da sustentabilidade me ocorre que talvez já tenhamos passado do “ponto de não-retorno”. Ratos, baratas e seres humanos são espécies bastante adaptáveis e, talvez, a nossa também possa escapar da extinção. De qualquer forma, o que não tem solução, resolvido está.

Dagoberto Lorenzetti é doutor em Administração pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo – FEA/USP, mestre pela The Johns Hopkins University, pós-graduado em Engenharia Nuclear pelo convênio da Escola Politécnica da USP – Instituto de Estudos Avançados – EPUSP-IEA, pós-graduado em Análise de Sistemas pela Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP e engenheiro pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA. É professor do POI (departamento de produção, operações em serviços e logística) da Escola de Administração de Empresas de São Paulo/Fundação Getúlio Vargas – EAESP/FGV.

Page 41: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores

41

AS RELAÇÕES ENTRE A EDUCAÇÃO PARA A SUSTENTABILIDADE, TRANSDISCIPLINA-RIDADE E ORGANIZAÇÃO EM REDES SOCIAIS OU UMA OUTRA ESCOLA É POSSÍVEL

Valéria Viana Labrea

A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para compreender, é essencial conhecer o lugar social de quem olha. Vale dizer: como alguém vive, com quem convive, que

experiências tem, em que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e da morte e que esperanças o animam. Isso faz da compreensão sempre uma interpretação.

Leonardo Boff

A educação para a sustentabilidade contempla não somente aspectos relativos ao meio ambiente, como também aqueles produzidos pelo nosso modelo civilizatório: pobreza, habitação, saúde, segurança alimentar, geração e distribuição de renda, matriz energética, passando pelos debates da sociedade, como democracia, questões de gênero, direitos humanos e paz, resultando em um imperativo moral e ético, no qual o conhecimento tradicional e as diferentes culturas devem ser respeitados. Essa postura supõe a crítica aos atuais modelos de produção e consumo e às relações sociais e suas construções simbólicas, imaginárias e materiais.

Educar para a sustentabilidade implica em formar e preparar cidadãos para a refl exão crítica e para uma ação social emancipatória e transformadora da sociedade e do sistema, de forma a tornar viável o desenvolvimento integral dos seres humanos, reconstruindo desejos e necessidades, estimulando a vida comunitária, processos autogestionários e descentralizados implicando integração de esforços e coordenação de setores fundamentais, rápidas e radicais mudanças de conduta e estilo de vida, bem como nos padrões de produção e consumo, impondo uma nova dinâmica nessa relação, pautada por uma nova consciência ecológica.

A partir da Carta da Terra e seus princípios, entende-se sustentabilidade considerando seus diferentes aspectos, um tema portador de um projeto social global e capaz de reeducar nosso olhar e todos os nossos sentidos, capaz de reacender a esperança num futuro possível, com dignidade, para todos (GADOTTI: 2003). Na perspectiva de educação, pensa-se hoje numa Pedagogia da Terra, uma pedagogia que inclui a necessária preocupação em inter-relacionar educação e sustentabilidade, a interdependência entre os seres, os valores para modifi carmos o sistema. A Carta da Ecopedagogia (1999) indica que a sustentabilidade deve ser transdisciplinar e a educação, o planejamento escolar, o projeto político-pedagógico devem ser reorganizados a partir desse novo paradigma e o trabalho da escola refl etir a preocupação com a formação de ecocidadãos.

As escola precisa conhecer a realidade da comunidade onde está inserida, deve ser um espaço de diálogo, de abertura. O desenvolvimento de um processo educativo implica que se realize logo de início um reconhecimento, por parte do educador, da realidade em que vive

Page 42: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

42

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

o educando: seus desejos, interesses, sonhos e aspirações, porque a partir do momento que ele o conhece pode estabelecer os objetivos educacionais a serem alcançados, relacionando os conhecimentos formais às suas outras necessidades. Uma educação transformadora envolve não só uma visão ampla de mundo, como também a clareza da fi nalidade do ato educativo, uma posição política - uma determinada concepção de homem e de mundo - e uma competência técnica para implementar projetos a partir do aporte teórico formador do profi ssional competente.

Educar para tornar possível mudanças desse porte requer uma nova abordagem, de caráter interdisciplinar, sustentada pelas informações e saberes acumulados, dispersos pelas diversas especialidades. Para que a educação para a sustentabilidade se efetive é necessário que conhecimentos e habilidades sejam incorporados e que atitudes sejam formadas a partir de valores éticos e de justiça social, pois são essas as atitudes que predispõe à ação. Cabe lembrar que consciência sem ação transformadora ajuda a manter a sociedade tal qual ela se encontra.

Ao tentar incorporar no trabalho e na vida valores e saberes, estes são ressignifi cados e adquirem uma dimensão que torna possível transcender o senso comum e perceber o homem, no dizer de Leonardo Boff (2000), como um projeto infi nito. Um ser histórico, que se faz a cada minuto, superando interditos, aberto, em processo, incompleto, sempre à procura, nunca pronto. Nossa educação nunca acaba, estamos sempre aprendendo e ensinando e esse olhar criativo, desafi ador, que não se deixa enquadrar ou limitar é, sem dúvida, nossa melhor qualidade. Vamos, assim, alimentando nosso horizonte utópico, sonhando e realizando.

Transdisciplinaridade

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo... Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer

Porque eu sou do tamanho do que vejo E não, do tamanho da minha altura...

Alberto Caeiro

A transdisciplinaridade é um esforço em articular saberes dispersos, diversos e adversos e ir além do enfoque estritamente disciplinar sem dispensar a contribuição específi ca de cada disciplina para o conhecimento. Tal superação requer uma postura essencialmente dialógica, tolerante, participativa e com pleno envolvimento, inserida no paradigma da complexidade porque simultaneamente separa e associa os conhecimentos, permitindo uma compreensão de outros níveis da realidade, sem os reduzir ou encapsular. Essa compreensão demanda a valorização da diversidade cultural, social e biológica, indicando para uma forma emergente de aprendizado, fundada na curiosidade do pensar, do experimentar, do criar e do ousar e para a humildade na aceitação das próprias defi ciências, a qual permite apreender e aprender com o olhar do outro, como nos ensina Paulo Freire.

Page 43: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores

43

E. Morin (2000) afi rma que a escola precisa se reorganizar e que essa reorganização não se refere simplesmente ao ato de ensinar, mas passa pelos defeitos que o sistema incorpora e passa a reproduzir. Um exemplo é o ensino de disciplinas separadas e sem comunicação entre si, o que acaba por produzir uma fragmentação e uma dispersão que nos impede de ver globalmente coisas que são importantes no mundo. Existem problemas centrais e fundamentais que permanecem completamente ignorados ou esquecidos e que são importantes para qualquer sociedade e qualquer cultura.

Educar no caminho da cidadania planetária exige novas estratégias de fortalecimento da consciência crítica. Essa refl exão crítica deve gerar a práxis, isto é, ação-refl exão-ação; para preparar homens e mulheres para exigir direitos e cumprir deveres. Paulo Freire, em Pedagogia do Oprimido (1992), complementa: o conhecimento mais crítico da realidade, que adquirimos através do seu desvelamento, não opera por si só a mudança da realidade... Ao desvelá-la, contudo, dá-se um passo para superá-la, desde que se engajem na luta política pela transformação das condições concretas em que se dá a opressão.

A escola, ao se reorganizar, tem na transdisciplinaridade uma abordagem que permite fazer a conexão entre os saberes das disciplinas e os saberes que cada sujeito carrega consigo, contextualizando e mostrando, nas palavras de Morin (1997), que temos em nós mesmo tudo aquilo que a escola quer separar e que o papel de cada indivíduo só se explica em relação ao outro.

Rede

Cada ser humano recebe a anunciação e, grávido de alma, leva a mão à garganta, em susto e angústia. Como se houvesse para cada um, em algum momento da vida,

a anunciação de que há uma missão a cumprir. A missão não é leve:

cada homem é responsável pelo mundo inteiro.Clarice Lispector

A organização em rede é baseada em princípios democráticos, inclusivos, emancipadores e que buscam a sustentabilidade. Trabalhamos com um conceito de rede que seja fundamentado em práticas e princípios democráticos, emancipatórios do ponto de vista político, inclusivos do ponto de vista social, sustentáveis do ponto de vista ambiental, abertos e polissêmicos do ponto de vista cultural. Criando conexões abre-se à nossa frente um enorme horizonte de possibilidades. Podem ser parcerias, trocas, amizades, afetos, novos valores e formas de convivência, criação de conhecimentos, aprendizados, apoios, diálogos, participação, mobilização, força política, conquistas e muito mais. A rede se apresenta como um projeto deliberado de organização da ação humana.

Page 44: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

44

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

A primeira e mais óbvia propriedade de qualquer rede é a sua não-linearidade – ela se estendem em todas as direções, são sistemas descentrados por defi nição, com capacidade de auto-organização e de operar sem hierarquia. Uma pré-condição da rede é a participação voluntária (MARTINHO: 2003). Aqui reside uma das razões mais simples da capacidade da rede de trabalhar sem hierarquia: pessoas participam da rede quando querem e porque assim o desejam. Elas não são obrigadas a fazê-lo; decidem compartilhar do projeto coletivo da rede porque acreditam e investem nele. O trabalho em rede depende, a todo momento, da ação autônoma de cada um. Em suma, depende de participação ativa, sem a qual nenhuma iniciativa vai adiante. A preservação da autonomia orienta o funcionamento e os relacionamentos no âmbito da rede.

Como decorrência, na medida em que os integrantes da rede são diferentes entre si, outro fundamento básico do modo horizontal de operação é o respeito à diferença. Ser autônomo quer dizer ser diferente, ter modos diferenciados de agir, pensar e existir. Autonomia e diferença são as duas faces de uma mesma concepção.

Uma rede surge no momento em que um grupo identifi ca entre si uma “capacidade de projeto comum”. Foi assim no projeto: uma descoberta espontânea no âmbito de dinâmicas coletivas de participação. Um desdobramento lógico da construção do projeto da rede é também uma pactuação sobre os princípios e valores orientadores da ação. Tais princípios e valores devem incorporar aqueles que fundamentam a prática das redes, tais como a cooperação, a democracia, a ausência de hierarquia, a isonomia, a desconcentração de poder, a multiliderança, o respeito à autonomia, o respeito à diferença.

Tecendo as relações

Por que, para que e, a mais importante, para quem, são as três perguntas fundamentais que deveríamos fazer

ao primeiro-ministro, ao professor, ao pai, ao fi lho, quase a propósito de tudo o que ocorre.

O problema é que isso dá um pouco de trabalho.

José Saramago

A idéia principal ao articular a ecopedagogia, a transdisciplinaridade e a organização em redes é propor uma mudança na fi sionomia da escola. Vale dizer, entender a sustentabilidade como o novo padrão civilizacional e a partir dessa compreensão fundar um outro espaço educativo onde se realize a autogestão, as responsabilidades sejam compartilhadas, os saberes sejam construídos a partir de um diálogo entre a academia a os saberes populares, onde são considerados os desejos da comunidade escolar, enfatizando as interconexões e interdependências como processos sistêmicos, mantendo a historicidade e as contradições e confl itos que permeiam os acontecimentos A escola, nessa perspectiva, passa a ser um pólo irradiador de conhecimento para toda a comunidade que ali se vê refl etida e fortalecida. A organização em redes, aliada ao pensamento complexo, permite que as pessoas se agreguem em função de desejos e aptidões.

Page 45: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores

45

Entendo que não exista uma fórmula a ser seguida, que a tendência a homogeneizar uma prática é nociva e impede o pensamento crítico. Somente exercitando uma prática diferente do formato atual, onde essas dimensões sejam contempladas, que cada escola pode desenvolver o seu projeto, único, ideal para sua comunidade, é que a escola vai encontrar o seu caminho. O importante é haver essa refl exão e uma abertura ao desconhecido, a curiosidade, tentar estabelecer relações, selecionar o que interessa do que nem tanto, hierarquizar e priorizar áreas e ações, articulando o que está dissociado e distinguido e de distinguir o que está indissociado.

Uma outra escola é possível, urgente e necessária. Essa utopia crítica, articulada e comprometida com um outro modelo civilizatório, é transformadora e a base da nova cidadania planetária.

Valéria Viana Labrea é educadora, coordenadora do Núcleo de Amigos da Infância e Adolecência – NAIA, entidade fi liada à Carta da Terra Internacional, no qual foi responsável pelo FórumZINHO Social Mundial, Encontro Vivemos Juntos – Conhecer e Viver a Carta da Terra. Desenvolve ofi cinas e projetos socioambientais, tendo como marco pedagógico a Carta da Terra e a ecopedagogia. Organizou a Carta da Terra para Crianças, disponível no site www.forumzinho.org.br e www.cartadaterra.com.br

Referências

ALVES, Rubem in: BRANDÃO, Carlos R. (org.). O educador: vida e morte – escritos sobre uma espécie em perigo. São Paulo: Brasiliense, 1982.

BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

GADOTTI, Moacir. Boniteza de um sonho: ensinar-e-aprender com sentido. Novo Hamburgo: Feevale, 2003.

MARTINHO, Cássio. Redes, uma introdução às dinâmicas da conectividade e da auto-organização. Brasília: WWF, 2003.

MORIN, Edgar. Entrevista à revista Thot, da Associação Palas Athena, nº. 66, São Paulo, agosto de 1997.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília: Unesco, 2000.

Page 46: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

46

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

4 Entendendo-se, aí, as fotografi as, fi lmes, iconografi a, cartografi a e outras formas de preservação física da memória e de fatos.

HISTÓRIA ORAL – UMA ESTRATÉGIA A SER UTILIZADA NO DESENVOLVIMENTO DE PROJETOS EDUCACIONAIS

Meire Terezinha Muller

Até os anos fi nais do século XIX, o estudo da História tinha um enfoque eminentemente político, sendo considerados “históricos” apenas os documentos concretos – escritos e imagéticos4. Os historiadores pertenciam às elites, às classes que governavam e que voltavam, evidentemente, seu interesse para o registro relativo às lutas pelo poder. Não mereciam atenção os problemas e a vida das pessoas comuns, dos trabalhadores, das mulheres, a não ser em tempos de crise ou quando algum evento especialmente inoportuno os envolvesse.

Mesmo que alguém quisesse escrever sobre esses anônimos das classes populares, teria encontrado muita difi culdade, pois os documentos não eram preservados ou, caso fossem, tinham acesso restrito, perdidos ou guardados em gavetas e arquivos mal conservados, quase sempre sem catalogação. Os registros de nascimento, casamento, históricos escolares, jornais, atas de reuniões, diários de bordo, de viagens e conquistas, dentre outros, eram produzidos pelos indivíduos letrados e representavam exclusivamente as classes dominantes. Quanto mais um documento fosse pessoal, menor o interesse nele despertado, menor a possibilidade de que continuasse a existir. Por outro lado, os papéis tidos como “ofi ciais” permaneceram, fazendo com que, nas palavras de Thompson (1992), a estrutura de poder funcionasse “como um grande gravador, que modelava o passado à sua própria imagem”.

Nesse universo, seria impensável o aproveitamento, como fonte de saber acadêmico, de dados colhidos através da oralidade, de entrevistas e de conversas com pessoas comuns sobre sua experiência de vida. As poucas biografi as até então existentes, na maioria sobre a vida dos reis ou dos santos, interessavam aos leitores apenas do ponto de vista literário e fi ccional, sem lhes ser atribuído valor histórico algum. Mas como separar ou ignorar a ligação, os elos indissolúveis entre memória e história?

Para alguns estudiosos, a memória não pode ser assim desprezada, já que a oralidade antecede a escrita, sendo uma forma de preservação da história muito mais antiga que esta. Desde tempos imemoriais, e ainda em nossos dias, existem povos sem um sistema de linguagem escrita, porém com uma grande riqueza cultural, transmitida oralmente de geração a geração, através do tempo, constituindo o que há de mais autêntico dentro daquele determinado grupo social: sua

Page 47: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores

47

memória e sua história. Mesmo na pré-história, acredita-se que pinturas rupestres tenham sido feitas a partir de relatos de caçadas e de situações vivenciadas por membros do grupo.

Quando o homem das cavernas deixou nas paredes desta fi guras que se supõe formarem um sentido, estava transmitindo um conhecimento que possuía e que talvez já tivesse recebido um nome, estando já designado por palavra. O fruto de suas descobertas estava assim concretizado e passava aos demais, inclusive aos pósteros (QUEIROZ, 1998).

Assim, nos parece que a História Oral pode contribuir para o desenvolvimento de projetos no Ensino Fundamental, sejam eles de que área forem, levando-se em consideração a estratégia de ouvir, recuperar, analisar e compilar dados que, por motivos vários, não existem em outro suporte. No desenvolvimento do Projeto Jovem Cidadão Amigo da Natureza – PJCAN, essa metodologia foi aplicada às atividades do Diagnóstico Vivo para o “levantamento da situação socioambiental local segundo percepção da coletividade e o percurso histórico que contribuiu para confi gurar a situação atual” (PJCAN – Metodologia).

Na Grécia Antiga, acreditava-se que a memória fosse pré-condição para o pensamento humano. No mundo mitológico grego, Mnemósine, a deusa da memória universal, teria gerado nove musas encarregadas de preservar os poderes criadores da mente: Clio (História), Euterpe (Música), Tália (Comédia), Melpômene (Tragédia), Terpsícore (Dança), Hérato (poesia lírica e erótica), Polimnia (Oratória), Urânia (Astronomia e Ciências Exatas) e Calíope (Poesia Heróica ou Épica). Para os gregos, Mnemósine era a única deusa que poderia contestar Cronos (o Tempo), ao preservar a matéria sobre a qual reina: a memória. Para o homem grego, só os mortais tinham necessidade de recorrer a Mnemósine, já que os deuses, por serem imortais, viviam num continuum que abrangia em si o passado, o presente e o futuro, realizados indefi nidamente num só tempo. Como forma de se apropriarem dessa circularidade imortal, os homens buscavam recuperar continuamente o passado para que este se perpetuasse no presente e se estendesse ao futuro, aproximando-os da imortalidade e afastando a idéia do fi m – da morte.

Hoje, a função da memória é o conhecimento do passado que se organiza, ordena o tempo, localiza cronologicamente. Na aurora da civilização grega, ela era vidência e êxtase. O passado revelado desse modo não é o antecedente do presente: é a sua fonte (BOSI, 1995).

Para estabelecer uma relação entre memória e história, voltamo-nos novamente para a Grécia, já que é aí que encontramos o primeiro esforço considerado consciente de se proceder à história como exercício reconstitutivo, por meio do registro de narrativas épicas.

Muito antes do surgimento da escrita, o relato oral constituiu-se na maior fonte humana de conservação do saber, sendo que a educação, através dos séculos, baseou-se principalmente na narrativa. Grandes obras hoje apresentadas em suporte escrito, como a Odisséia e a Ilíada (de Homero) e Eneida (Virgílio), foram transmitidas oralmente através das gerações até serem escritas muito tempo depois (QUEIROZ, 1998).

Page 48: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

48

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

Nos povos ágrafos, a memória é transmitida através de suas lendas, poemas, mitos e rituais, servindo para manter a própria estrutura grupal e preservar sua cultura, que depende exclusivamente do quanto conseguem transmitir às gerações vindouras para sobreviver como grupo social. Como não dispõem de registros “físicos” – escritos – para cristalizar os feitos transmitidos às futuras gerações, os indivíduos dessas sociedades não se preocupam em “conferir” ou “buscar provas” de veracidade dos fatos narrados. O que atesta a legitimidade e credibilidade das narrativas é a permanência do saber nela contido. Ao transmitir suas informações, o indivíduo seleciona ou omite dados, e essa seletividade ou omissão tem o seu signifi cado. A cada nova geração, a transmissão vai sendo enriquecida com a versão do então narrador, infl uenciado pelos fatos ocorridos no seu próprio tempo de vida, com sua visão subjetiva sobre os acontecimentos. A narrativa passa a ser uma composição social, representativa da coletividade que a mantém ao longo dos anos.

Entre o ouvinte e o narrador nasce uma relação baseada no interesse comum em conservar o narrado que deve poder ser reproduzido. A memória é faculdade épica por excelência. Não se pode perder, nos desertos do tempo, uma só gota da água irisada que, nômades, passamos do côncavo de uma para outra mão. A história deve reproduzir-se de geração a geração, gerar muitas outras, cujos fi os se cruzem, prolongando o original, puxados por outros dedos (BOSI, 1995).

Em sociedades sem escrita, evidentemente o poder fi ca associado ao saber e à capacidade de lembrar. Normalmente os mais idosos são os guardiães dos saberes da comunidade, uma vez que, tendo vivido muito, podem apropriar-se dos conhecimento de várias gerações. Isso não signifi ca que a função cabe apenas a eles pois, sendo idosos, por outro lado, resta-lhes pouco tempo de vida para transmitir aos demais. Assim, toda a comunidade é responsável por ouvir, saber, lembrar para, depois, transmitir.

O surgimento da escrita5 constituiu-se num avanço tecnológico sem precedentes. A partir dela, houve a possibilidade de se concretizar o saber, guardá-lo e dele se valer, legando-o aos descendentes. A escrita possibilita a materialização do presente, para ser consultado no futuro, oferecendo às novas gerações os dados e informações relativos ao grupo do qual se faz parte. Esses dados, guardados de forma concreta pelos documentos escritos, vão atestar e comprovar a existência do passado. Porém, até o advento da imprensa, era restrita a alguns poucos eleitos: a elite, que passou a registrar a sua história, a sua vida e a sua verdade.

Na Idade Média, a utilização da escrita restringia-se principalmente ao clero, havendo os “copistas” que transcreviam os textos sagrados para serem lidos apenas por outros clérigos, uma vez que o povo, na grande maioria, continuava ou iletrado ou sem acesso ao material escrito. Para gravar de maneira concreta os ensinamentos religiosos ao povo, a Igreja valia-se de elementos pictóricos, de modo a fi xar as narrativas bíblicas através de vitrais, afrescos, iluminuras, esculturas etc.

5 Segundo a Enciclopédia da Folha, a escrita alfabética é atribuída aos fenícios e teria aparecido em 1700 a.C. Entre os sumérios, havia já em 3400 a.C. um sistema de escrita a partir de pictogramas.

Page 49: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores

49

A arte da memória, tal como foi praticada no mundo antigo, era uma arte pictórica, enfocando imagens de preferência a palavras. Ela tratava a visão como primária. Punha o visual em primeiro plano. Sinais externos eram necessários se as memórias deviam ser retidas e recuperadas. A primazia do visual foi ainda mais evidente na Idade Média, quando as imagens eram sistematicamente mobilizadas (SAMUEL, 1997).

Nesse período, a oralidade ainda era extremamente útil na transmissão de conhecimentos. Trovadores e jograis percorriam os castelos e povoados medievais apresentando suas “cantigas”- poesias cantadas exaustivamente, com a fi nalidade de levar os ouvintes a decorarem as letras, divulgando-as. Há registros escritos das cantigas, mas muito posteriores à sua composição.

No Renascimento, o advento da imprensa, criada por Gutemberg por volta de 1442, deu início à “memória do papel”6, em que os fatos, para serem considerados verdadeiros e críveis têm que constar, por escrito, em algum documento. Estes passaram a ser vistos como objetos de culto, sendo-lhes imputada a capacidade de preservar a verdade, agora acessível a grande número de pessoas. Com a escrita, a memória que passa a ter importância é aquela anotada.

Antes de seu surgimento (imprensa), os registros escritos eram produzidos artesanal e artisticamente e, naturalmente, em pequeno número. Com a imprensa, a elaboração de manuscritos enquanto produção artística diminui sensivelmente, passando a restringir-se a pequenos círculos de erudição. A multiplicação do número de documentos escritos faz com que seja humanamente impossível a sua apreensão constante e imediata. O homem, a partir desse momento, não consegue mais fazer de sua mente o repositório de seu passado, tanto individual quanto coletivo (BRITO, 1989).

Diante da impossibilidade de assimilação de tamanho número de novas informações, a arte da memória declina inexoravelmente e tudo o que não for escrito vai cair no descrédito enquanto fonte de preservação da memória. Os iletrados começaram a ser discriminados e excluídos, como se suas lembranças não fossem reais nem historicamente importantes, por não constarem de documentos escritos. Os relatos orais foram então relegados à categoria de folclore ou lendas.

Para Raphael Samuel, em seu Theatres of Memory (1997), a memória é muito mais que simples receptáculo de lembranças do passado armazenadas; é, ao contrário, uma força ativa, dinâmica, que se altera ao longo do tempo, infl uenciada pelos acontecimentos pelos quais se desloca.

Ela porta a marca da experiência, por maiores mediações que esta tenha sofrido. Tem, estampadas, as paixões dominantes em seu tempo. Como a história, a memória é inerentemente revisionista, e nunca é tão camaleônica como quando parece permanecer igual (SAMUEL, 1997).

6 Cf. Leibniz, fi lósofo e matemático alemão do século XVIII.

Page 50: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

50

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

Marc Bloch e Lucien Febvre revolucionaram o conceito sobre os documentos históricos, no fi nal do século XIX, ao afi rmar que estes, tidos como “verdadeiros” e “reais” foram produzidos a partir da subjetividade e parcialidade de seu gerador7. O que eles defendiam é que esses documentos “relatam” a verdade, em especial, de um indivíduo, refl etindo seu lugar na sociedade à qual pertence e, por isso, devem ser lidos sob nova ótica, percebendo os objetivos do gerador, sua subjetividade, o implícito. A historiografi a passou, então, a valorizar não apenas documentos escritos, mas toda manifestação humana, incluindo, aí, a memória, que havia carregado por anos o rótulo de forma pouco segura e confi ável de preservação da história e dos conhecimentos adquiridos. Sob este novo olhar, à falta de documentos escritos sobre determinados assuntos, há como criá-los, buscando relatos da experiência pessoal, da vida de pessoas comuns, utilizando-se daquilo que se convencionou chamar de “história oral”.

A partir da década de 60, surgiram muitas instituições e pesquisadores preocupados em resgatar a importância dos relatos orais, revalorizando a memória como forma legítima de se entender a história, dando voz e vez aos esquecidos (idosos, iletrados e moradores da periferia das grandes cidades, por exemplo). Segundo Maria Isaura Pereira de Queiroz (1998).

História Oral é termo amplo que recobre uma quantidade de relatos a respeito de fatos não registrados por outro tipo de documentação, ou cuja documentação se quer completar. Colhida por meio de entrevistas de variada forma, ela registra a experiência de um só indivíduo ou de diversos indivíduos de uma mesma coletividade. Neste último caso, busca-se uma convergência de relatos sobre o mesmo acontecimento ou sobre um período de tempo. A história oral pode captar a experiência efetiva dos narradores, mas também recolhe destes tradições e mitos, narrativas de fi cção, crenças existentes no grupo, assim como relatos que contadores de história, poetas, cantadores inventam num momento dado. Na verdade tudo quanto se narra oralmente é história, seja história de alguém, seja história de um grupo, seja história real, seja ela mítica (QUEIROZ, 1998).

Portanto, atividades com história oral, quando desenvolvidas em escolas, são extremamente interessantes e, se bem preparadas e com objetivos vem defi nidos, podem surpreender pelos resultados8.

A técnica, relativamente simples, requer o levantamento dos critérios para escolha dos entrevistados. Normalmente orientam-se as crianças para optar por pessoas que possam contribuir com o trabalho que se pretende realizar, ou por terem participado de eventos considerados relevantes ao processo ou, mesmo, pela idade (acima de uma faixa etária estabelecida pelo grupo). Preferencialmente é interessante que disponham de um gravador, através do qual

7 Marc Bloch e Lucien Febvre fundaram, em 1929, a revista Annales d’Histoire Économique et Sociale, que deu origem ao que se convencionou chamar de Escola dos Annales.

8 THOMPSON, Paul dedica todo seu livro A Voz do Passado: História Oral a analisar e sugerir atividades com História Oral para crianças de Ensino Fundamental

Page 51: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores

51

possam gravar toda a conversa. As perguntas não precisam ser duramente seguidas, como num processo investigatório, devendo apenas servir como um roteiro para uma conversa tranqüila, descontraída e o mais informal possível, que possa levar às respostas. Ao fi nal da entrevista, pode-se perguntar se o depoente tem fotos ou documentos relativos ao assunto em questão, que enriquecerão e complementarão o depoimento e o resultado do trabalho. Toda entrevista deve ser transcrita, literalmente, para posterior análise e tratamento de dados.

Importante frisar que toda atividade com história oral pressupõe uma devolutiva aos envolvidos, ou seja, os depoentes devem assinar um termo concordando que sua entrevista seja utilizada e, mais importante, devem ser convidados para ver o resultado fi nal em que sua participação foi aproveitada. Essa devolutiva pode ser feita através da participação dos envolvidos no resultado do trabalho que ajudaram a construir, e que pode se expressar através de uma exposição, de um livro, de uma peça de teatro, um sarau, uma apresentação de canto, um fi lme ou qualquer outra forma que a professora defi na previamente com os alunos.

Do ponto de vista pedagógico, a história oral propicia o desenvolvimento de uma série de habilidades. Os envolvidos são levados, por exemplo, a desenvolver interesse por pesquisas. Na maioria das vezes, assim que defi nem o tema e começam a entrevistar os depoentes, as crianças sentem uma tendência natural a conhecer melhor o assunto pesquisado, buscando mais informações nas bibliotecas ou diferentes fontes. Outro aspecto incrementado em atividades de história oral são as habilidades lingüísticas, tanto em relação à fala quanto à escrita. Para conversar e, depois, transcrever, os entrevistadores interagem num processo de comunicação muito rico, uma vez que o vocabulário, as expressões, as gírias e o próprio registro lingüísticos são bastante diversos, pela própria diferença de idade e de vivência entre os interlocutores.

Há também o desenvolvimento de habilidades técnicas no manejo dos instrumentos necessários à coleta de dados, como o gravador, atualmente substituído por pequeníssimos aparelhos de MP3, e o computador para a transcrição, todos eles desejáveis mas não imprescindíveis.

Porém, o principal incremento nas habilidades adquiridas pelos envolvidos se dá no âmbito das relações humanas, sociais e no desenvolvimento da auto-estima: o entrevistador aprenderá a ter paciência ao ouvir, dando importância ao narrador, valorizando sua história de vida e respeitando o indivíduo idoso e seu conhecimento pessoal. Além disso, como o sucesso do trabalho dependerá da cooperação entre os colegas do grupo, a capacidade de trabalhar em equipe será também propiciada.

Meire Terezinha Muller é doutoranda em História da Educação – FE Unicamp e diretora do Campus Paulínia da Universidade São Marcos. Foi secretária municipal de Educação de Paulínia no período 1997–2000.

Page 52: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

52

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

Referências

AVANZI, Maria Rita, GODOI, Elisandra G. e COSTA-PINTO, Alessandra B. Projeto Jovem Cidadão Amigo da Natureza: Proposta metodológica. Instituto BioMA, 2005.

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de velhos. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 7ª edição, 1995.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega Volume I, Petrópolis: Ed. Vozes, 1997

BRIOSCHI, Lucila Reis e TRIGO, Maria Helena Bueno. Família, representações e cotidiano: refl exão sobre um trabalho de campo. São Paulo: CERU, 1989.

BRITO, Marilza Elizardo. Memória e Cultura. Rio de Janeiro: Centro de Memória da Eletricidade no Brasil, 1989.

FERNANDES, Florestan e GATTAS, Ramzia. A história de vida na investigação sociológica: a seleção dos sujeitos e suas implicações.

KENSKI, Vani Moreira. Memória e prática docente. Coleção SEMINÁRIOS.

LANG, Alice B.S. Gordo e CAMPOS, Maria C.S. Souza, DEMARTINI, Zeila de B. Fabri. História Oral e Pesquisa Sociológica: a experiência do Ceru. São Paulo: Humanitas Publicações.

MENESES, Adélia Bezerra de. Memória, Matéria de Mimese – Caderno “Seminários”.

PARK, Margareth Brandini. Memória, educação e cidadania: tecendo o cotidiano de creches e pré-escolas em Itupeva. Campinas: CMU/UNICAMP, 1996.

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Relatos Orais: do indizível ao dizível, in SIMSON, Olga R. de Moraes Von (Org). Experimentos com Histórias de vida: Itália-Brasil. São Paulo: Vértice, 1988.

ROCHA, Ana Luiza Carvalho da Rocha e ECKERT, Cornélia. O desterro das lembranças: memória, narrativa e as histórias do mundo. XXIII Encontro Anual da ANPOCS.

SAMUEL, Raphael. Teatros de Memória. Trad. RIBEIRO, Maria Therezinha Janini e MALUF, Vera Helena Prado. São Paulo: PUC-SÃO PAULO, 1997.

THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História Oral. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1992.

Page 53: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1
Page 54: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Hist

ó

Page 55: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

UM ETHOS PARA SALVAR A TERRA

Leonardo Boff

Entre os muitos ensaios sobre ética mundial, ressalta por sua abrangência, alcance e beleza aquele proposto pela Carta da Terra. Esta representa a cristalização bem sucedida da nova consciência ecológica e planetária, fundadora de um novo paradigma civilizatório.

A Carta da Terra, cujo surgimento e signifi cado relataremos logo a seguir, parte de uma visão ética integradora e holística. Considera as interdependências entre pobreza, degradação ambiental, injustiça social, confl itos étnicos, paz, democracia, ética e crise espiritual. Ela representa um grito de urgência face às ameaças que pesam sobre a biosfera e o projeto planetário humano e também um libelo em favor da esperança e de um futuro comum da Terra e da Humanidade.

Seus formuladores dizem-no claramente:

A Carta da Terra está concebida como uma declaração de princípios éticos fundamentais e como um roteiro prático de signifi cado duradouro, amplamente compartido por todos os povos. De forma similar à Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, a Carta da Terra será utilizada como um código universal de conduta para guiar os povos e as nações na direção de um futuro sustentável (La Carta de la Tierra. Valores y principios para un futuro sostenible, Secretaria Internacional del Proyecto Carta de la Tierra, San José, Costa Rica, 1999, 12).

O processo de elaboração da Carta da Terra

O texto da Carta da Terra madurou durante muitos anos a partir de uma ampla discussão em nível mundial.

Um nicho de pensamento se encontra no seio da ONU. Criada em l945, se propunha como tarefa fundamental a segurança mundial sustentada por três pólos principais: os direitos humanos, a paz

n

Hist

ó Parte 3 – Histórias de ensinar:a Carta da Terra

Page 56: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

56

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

e o desenvolvimento sócio-econômico. Não se fazia ainda nenhuma menção à questão ecológica. Esta irrompeu estrepitosamente em l972 com o Clube de Roma, o primeiro grande balanço sobre a situação da Terra, que denunciava a forma destrutiva dos meios de produção e propunha como terapia limites ao crescimento. Nesse mesmo ano a ONU organizou o primeiro grande encontro mundial sobre o meio-ambiente em Estocolmo, na Suécia. Aí surgiu a consciência de que o meio-ambiente deve constituir a preocupação central da humanidade e o contexto concreto de todos os problemas. Inarredavelmente o futuro da Terra e da humanidade depende das condições ambientais e ecológicas propícias à vida. Impõe-se desenvolver valores e propor princípios que garantam um equilíbrio ecológico, capaz de manter e fazer desenvolver a vida.

Em 1982, na seqüência desta preocupação ecológica, publicou-se a Carta Mundial para a Natureza. Em 1987, a Comissão Mundial para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Comissão Brundtland) propunha o motto que continua fazendo fortuna até os dias de hoje, o “desenvol-vimento sustentável”. Sugeria, outrossim, uma Carta da Terra que regulasse as relações entre esses dois campos, o meio ambiente e o desenvolvimento.

Em 1992 por ocasião da Cúpula da Terra, realizada no Rio de Janeiro, foi proposta uma Carta da Terra que havia sido discutida em nível mundial por organizações não governamentais, por grupos comprometidos e científi cos, bem como por governos nacionais. Ela deveria funcionar como o cimento ético a conferir coerência e unidade a todos os projetos dessa importante reunião. Mas não houve consenso entre os governos, seja porque o próprio texto não estava sufi cientemente maduro, seja porque faltava o sufi ciente estado de consciência por parte dos participantes da Cúpula da Terra que permitisse acolher uma Carta da Terra. Em seu lugar adotou-se a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Tal rejeição provocou grande frustração nos meios mais conscientes e comprometidos com o futuro ecológico da Terra e da Humanidade.

Surgiu, então, o segundo e decisivo nicho de pensamento e criação: duas organizações internacionais não governamentais, a saber, a Cruz Verde Internacional e o Conselho da Terra, com o apoio do governo holandês. Estas duas entidades assumiram o desafi o de buscar formas para se chegar a uma Carta da Terra.

Em 1995 co-patrocinaram um encontro em Haia, na Holanda, onde 60 representantes das mais diversas áreas, junto com outros interessados, criaram a Comissão da Carta da Terra, com o propósito de organizar uma consulta mundial durante dois anos, ao fi m dos quais dever-se-ia chegar a um esboço de Carta da Terra.

Ao mesmo tempo, foram recopilados os princípios e os instrumentos existentes de direito internacional, identifi cáveis na vasta documentação ofi cial sobre questões ecológicas. O resultado foi a confecção de um informe com o título Princípios de Conservação Ambiental e Desenvolvimento Sustentado: Resumo e Reconhecimento.

Em 1997, criou-se a Comissão da Carta da Terra, composta por 23 personalidades mundiais, oriundas de todos os continentes, para acompanhar o processo de consulta e redigir um primeiro

Page 57: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra

57

esboço do documento, sob a coordenação de Maurice Strong (do Canadá e coordenador geral da Cúpula da Terra, Rio-92) e Mikhail Gorbachev (da Rússia, presidente da Cruz Verde Internacional).

Em março de 1997, durante o Fórum Rio+5, a Comissão apresentou um primeiro esboço da Carta da Terra. Os anos de 1998 e 1999 foram de ampla discussão em todos os continentes e em todos os níveis (desde escolas primárias, comunidades de base até centros de pesquisa e ministérios de Educação) sobre a Carta da Terra. Cerca de 46 países e mais de 100 mil pessoas foram envolvidas. Muitos projetos de Carta da Terra foram propostos. Até que, em abril de 1999, sob a orientação de Steven Rockfeller, budista e professor de fi losofi a da religião e de ética, escreveu-se um segundo esboço de Carta da Terra, reunindo as principais ressonâncias e convergências mundiais. De 12 a 14 de março de 2000, na Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco, em Paris, incorporaram-se as últimas contribuições e se ratifi cou a Carta da Terra.

A partir de agora temos a ver com um texto ofi cial, aberto a discussões e a novas incorporações até que seja proposto ao endosso da ONU, após ampla discussão. Aprovou-se uma campanha mundial de apoio à Carta da Terra com o propósito de conquistar mais e mais pessoas, instituições e governos a essa nova visão ética e ecológica, capaz de fundar um princípio civilizatório benfazejo para o futuro da Terra e da humanidade. Depois de apresentada e discutida pela Assembléia da ONU – esse é o propósito -, terá o mesmo valor que a Carta dos Direitos Humanos, inicialmente, com lei branda, depois como lei de referência mundial, em nome da qual os violadores da dignidade da Terra poderão ser levados à barra dos tribunais.

Princípios e valores éticos da Carta da Terra

O mérito principal da Carta é colocar como eixo articulador a categoria da inter-retro-relação de tudo com tudo. Isso lhe permite sustentar o destino comum da Terra e da humanidade e reafi rmar a convicção de que formamos uma grande comunidade terrenal e cósmica. As perspectivas desenvolvidas pelas ciências da Terra, pela nova cosmologia, pela física quântica, pela biologia contemporânea e os pontos mais seguros do paradigma holístico da ecologia subjazem ao texto da Carta.

Ela se divide em quatro partes: um preâmbulo, princípios fundamentais, princípios de apoio e uma conclusão.

O preâmbulo afi rma enfaticamente que a Terra está viva e, com a humanidade, forma parte de um vasto Universo em evolução. Nessa afi rmação cuidadosamente formulada ressoa não só a teoria da Gaia proposta por James Lovelock e outros, mas também a crença ancestral dos povos segundo a qual a Terra é a Grande Mãe, geradora de toda a vida. Hoje esse superorganismo vivo está ameaçado em seu equilíbrio dinâmico devido às formas exploradoras e predatórias do modo de produção dos bens, modo esse mundialmente integrado.

Face a esta situação global, temos o dever sagrado de assegurar a vitalidade, a diversidade, a integridade e a beleza de nossa Casa Comum. Para isso, precisamos refazer uma nova aliança com

Page 58: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

58

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

a Terra e refundar um novo pacto social de responsabilidade entre todos os humanos, radicado numa dimensão espiritual de reverência face ao mistério da existência, de gratidão pelo presente da vida, e de humildade diante do lugar que o ser humano ocupa no conjunto dos seres.

Melhor do que resumir os conteúdos éticos, faríamos bem transcrever os 16 princípios fundantes do novo ethos mundial:

I. RESPEITAR E CUIDAR DA COMUNIDADE DA VIDA

1. Respeitar a Terra e a vida em toda sua diversidade.

a. Reconhecer que todos os seres são interligados e cada forma de vida tem valor, independentemente de sua utilidade para os seres humanos.

b. Afi rmar a fé na dignidade inerente de todos os seres humanos e no potencial intelectual, artístico, ético e espiritual da humanidade.

2. Cuidar da comunidade da vida com compreensão, compaixão e amor.

a. Aceitar que, com o direito de possuir, administrar e usar os recursos naturais vem o dever de impedir o dano causado ao meio ambiente e de proteger os direitos das pessoas.

b. Assumir que o aumento da liberdade, dos conhecimentos e do poder implica responsabilidade na promoção do bem comum.

3. Construir sociedades democráticas que sejam justas, participativas, sustentáveis e pacífi cas.

a. Assegurar que as comunidades em todos níveis garantam os direitos humanos e as liberdades fundamentais e proporcionem a cada um a oportunidade de realizar seu pleno potencial.

b. Promover a justiça econômica e social, propiciando a todos a consecução de uma subsistência signifi cativa e segura, que seja ecologicamente responsável.

4. Garantir as dádivas e a beleza da Terra para as atuais e as futuras gerações.

a. Reconhecer que a liberdade de ação de cada geração é condicionada pelas necessidades das gerações futuras.

b. Transmitir às futuras gerações valores, tradições e instituições que apóiem, em longo prazo, a prosperidade das comunidades humanas e ecológicas da Terra.

Page 59: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra

59

Para poder cumprir estes quatro amplos compromissos, é necessário:

II. INTEGRIDADE ECOLÓGICA

5. Proteger e restaurar a integridade dos sistemas ecológicos da Terra, com especial preocupação pela diversidade biológica e pelos processos naturais que sustentam a vida.

a. Adotar planos e regulamentações de desenvolvimento sustentável em todos os níveis que façam com que a conservação ambiental e a reabilitação sejam parte integral de todas as iniciativas de desenvolvimento.

b. Estabelecer e proteger as reservas com uma natureza viável e da biosfera, incluindo terras selvagens e áreas marinhas, para proteger os sistemas de sustento à vida da Terra, manter a biodiversidade e preservar nossa herança natural.

c. Promover a recuperação de espécies e ecossistemas ameaçadas.

d. Controlar e erradicar organismos não-nativos ou modifi cados geneticamente que causem dano às espécies nativas, ao meio ambiente, e prevenir a introdução desses organismos daninhos.

e. Manejar o uso de recursos renováveis como água, solo, produtos fl orestais e vida marinha de forma que não excedam as taxas de regeneração e que protejam a sanidade dos ecossistemas.

f. Manejar a extração e o uso de recursos não-renováveis, como minerais e combustíveis fósseis, de forma que diminuam a exaustão e não causem dano ambiental grave.

6. Prevenir o dano ao ambiente como o melhor método de proteção ambiental e, quando o conhecimento for limitado, assumir uma postura de precaução.

a. Orientar ações para evitar a possibilidade de sérios ou irreversíveis danos ambientais mesmo quando a informação científi ca for incompleta ou não conclusiva.

b. Impor o ônus da prova àqueles que afi rmarem que a atividade proposta não causará dano signifi cativo e fazer com que os grupos sejam responsabilizados pelo dano ambiental.

c. Garantir que a decisão a ser tomada se oriente pelas conseqüências humanas globais, cumulativas, de longo prazo, indiretas e de longo alcance.

Page 60: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

60

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

d. Impedir a poluição de qualquer parte do meio ambiente e não permitir o aumento de substâncias radioativas, tóxicas ou outras substâncias perigosas.

e. Evitar que atividades militares causem dano ao meio ambiente.

7. Adotar padrões de produção, consumo e reprodução que protejam as capacidades regenerativas da Terra, os direitos humanos e o bem-estar comunitário.

a. Reduzir, reutilizar e reciclar materiais usados nos sistemas de produção e consumo e garantir que os resíduos possam ser assimilados pelos sistemas ecológicos.

b. Atuar com restrição e efi ciência no uso de energia e recorrer cada vez mais aos recursos energéticos renováveis, como a energia solar e do vento.

c. Promover o desenvolvimento, a adoção e a transferência eqüitativa de tecnologias ambientais saudáveis.

d. Incluir totalmente os custos ambientais e sociais de bens e serviços no preço de venda e habilitar os consumidores a identifi car produtos que satisfaçam as mais altas normas sociais e ambientais.

e. Garantir acesso universal à assistência de saúde que fomente a saúde reprodutiva e a reprodução responsável.

f. Adotar estilos de vida que acentuem a qualidade de vida e subsistência material num mundo fi nito.

8. Avançar o estudo da sustentabilidade ecológica e promover a troca aberta e a ampla aplicação do conhecimento adquirido.

a. Apoiar a cooperação científi ca e técnica internacional relacionada à sustentabilidade, com especial atenção às necessidades das nações em desenvolvimento.

b. Reconhecer e preservar os conhecimentos tradicionais e a sabedoria espiritual em todas as culturas que contribuam para a proteção ambiental e o bem-estar humano.

c. Garantir que informações de vital importância para a saúde humana e para a proteção ambiental, incluindo informação genética, estejam disponíveis ao domínio público.

Page 61: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra

61

III. JUSTIÇA SOCIAL E ECONÔMICA

9. Erradicar a pobreza como um imperativo ético, social e ambiental.

a. Garantir o direito à água potável, ao ar puro, à segurança alimentar, aos solos não-contaminados, ao abrigo e saneamento seguros, distribuindo os recursos nacionais e internacionais requeridos.

b. Prover cada ser humano de educação e recursos para assegurar uma subsistência sustentável, e proporcionar seguro social e segurança coletiva a todos aqueles que não são capazes de manter-se por conta própria.

c. Reconhecer os ignorados, proteger os vulneráveis, servir àqueles que sofrem e permitir-lhes desenvolver suas capacidades e alcançar suas aspirações.

10. Garantir que as atividades e instituições econômicas em todos os níveis promovam o desenvolvimento humano de forma eqüitativa e sustentável.

a. Promover a distribuição eqüitativa da riqueza dentro das e entre as nações.

b. Incrementar os recursos intelectuais, fi nanceiros, técnicos e sociais das nações em desenvolvimento e isentá-las de dívidas internacionais onerosas.

c. Garantir que todas as transações comerciais apóiem o uso de recursos sustentáveis, a proteção ambiental e normas trabalhistas progressistas.

d. Exigir que corporações multinacionais e organizações fi nanceiras internacionais atuem com transparência em benefício do bem comum e responsabilizá-las pelas conseqüências de suas atividades.

11. Afi rmar a igualdade e a eqüidade de gênero como pré-requisitos para o desenvolvi-mento sustentável e assegurar o acesso universal à educação, assistência de saúde e às oportunidades econômicas.

a. Assegurar os direitos humanos das mulheres e das meninas e acabar com toda violência contra elas.

b. Promover a participação ativa das mulheres em todos os aspectos da vida econômica, política, civil, social e cultural como parceiras plenas e paritárias, tomadoras de decisão, líderes e benefi ciárias.

c. Fortalecer as famílias e garantir a segurança e a educação amorosa de todos os membros da família.

Page 62: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

62

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

12. Defender, sem discriminação, os direitos de todas as pessoas a um ambiente natural e social, capaz de assegurar a dignidade humana, a saúde corporal e o bem-estar espiritual, concedendo especial atenção aos direitos dos povos indígenas e minorias.

a. Eliminar a discriminação em todas suas formas, como as baseadas em raça, cor, gênero, orientação sexual, religião, idioma e origem nacional, étnica ou social.

b. Afi rmar o direito dos povos indígenas à sua espiritualidade, conhecimentos, terras e recursos, assim como às suas práticas relacionadas a formas sustentáveis de vida.

c. Honrar e apoiar os jovens das nossas comunidades, habilitando-os a cumprir seu papel essencial na criação de sociedades sustentáveis.

d. Proteger e restaurar lugares notáveis pelo signifi cado cultural e espiritual.

IV. DEMOCRACIA, NÃO VIOLÊNCIA E PAZ

13. Fortalecer as instituições democráticas em todos os níveis e proporcionar-lhes transparência e prestação de contas no exercício do governo, participação inclusiva na tomada de decisões e acesso à justiça.

a. Defender o direito de todas as pessoas no sentido de receber informação clara e oportuna sobre assuntos ambientais e todos os planos de desenvolvimento e atividades que poderiam afetá-las ou nos quais tenham interesse.

b. Apoiar sociedades civis locais, regionais e globais e promover a participação signifi cativa de todos os indivíduos e organizações na tomada de decisões.

c. Proteger os direitos à liberdade de opinião, de expressão, de assembléia pacífi ca, de associação e de oposição.

d. Instituir o acesso efetivo e efi ciente a procedimentos administrativos e judiciais independentes, incluindo retifi cação e compensação por danos ambientais e pela ameaça de tais danos.

e. Eliminar a corrupção em todas as instituições públicas e privadas.

f. Fortalecer as comunidades locais, habilitando-as a cuidar dos seus próprios ambientes, e atribuir responsabilidades ambientais aos níveis governamentais onde possam ser cumpridas mais efetivamente.

Page 63: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra

63

14. Integrar, na educação formal e na aprendizagem ao longo da vida, os conhecimentos, valores e habilidades necessárias para um modo de vida sustentável.

a. Oferecer a todos, especialmente a crianças e jovens, oportunidades educativas que lhes permitam contribuir ativamente para o desenvolvimento sustentável.

b. Promover a contribuição das artes e humanidades, assim como das ciências, na educação para sustentabilidade.

c. Intensifi car o papel dos meios de comunicação de massa no sentido de aumentar a sensibilização para os desafi os ecológicos e sociais.

d. Reconhecer a importância da educação moral e espiritual para uma subsistência sustentável.

15. Tratar todos os seres vivos com respeito e consideração.

a. Impedir crueldades aos animais mantidos em sociedades humanas e protegê-los de sofrimentos.

b. Proteger animais selvagens de métodos de caça, armadilhas e pesca que causem sofrimento extremo, prolongado ou evitável.

c. Evitar ou eliminar ao máximo possível a captura ou destruição de espécies não visadas.

16. Promover uma cultura de tolerância, não violência e paz.

a. Estimular e apoiar o entendimento mútuo, a solidariedade e a cooperação entre todas as pessoas, dentro das e entre as nações.

b. Implementar estratégias amplas para prevenir confl itos violentos e usar a colaboração na resolução de problemas para manejar e resolver confl itos ambientais e outras disputas.

c. Desmilitarizar os sistemas de segurança nacional até chegar ao nível de uma postura não-provocativa da defesa e converter os recursos militares em propósitos pacífi cos, incluindo restauração ecológica.

d. Eliminar armas nucleares, biológicas e tóxicas e outras armas de destruição em massa.

e. Assegurar que o uso do espaço orbital e cósmico mantenha a proteção ambiental e a paz.

f. Reconhecer que a paz é a plenitude criada por relações corretas consigo mesmo, com outras pessoas, outras culturas, outras vidas, com a Terra e com a totalidade maior da qual somos parte.

Page 64: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

64

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

A Carta expressa, como efeito fi nal, a confi ança na capacidade regenerativa da Terra e na responsabilidade compartida dos seres humanos de aprenderem a amar e a cuidar do Lar Comum. Só assim garantiremos um futuro comum e alcançaremos a paz tão ansiada, entendida como “a plenitude criada por relações corretas consigo mesmo, com outras pessoas, outras culturas, outras vidas, com a Terra e com a totalidade maior da qual somos parte”. Concluindo, podemos dizer: tudo o que precisamos para o atual estado da Terra, encontramos nesta proposta de ética mundial, seguramente a mais articulada, universal e elegante que se produziu até agora. Se esta Carta da Terra for universalmente assumida, mudará o estado de consciência da humanidade. A Terra ganhará, fi nalmente, centralidade junto com todos os fi lhos e fi lhas da Terra que se responsabilizam pelo futuro comum.

Nela não haverá mais lugar para o empobrecido, o excluído e o agressor da própria Grande Mãe. Mais e mais os seres humanos se entenderão como a própria Terra, que em seu lento e progressivo evoluir alcançou o estágio do sentimento, do pensamento, do amor, do cuidado, da compaixão e da veneração.

Três pontos relevantes na Carta da Terra

A Carta da Terra contém uma riqueza de conteúdo inestimável, cobrindo, praticamente, todas as áreas de interesse para uma vida harmônica na nave-espacial Terra. Três pontos, entretanto, cabe ressaltar.

O primeiro deles é a aura benfazeja que cerca todo o documento. Há a consciência da gravidade do estado da Terra e da Humanidade. Mas nem por isso prevalece o abatimento e a resignação. Antes, há lugar para a esperança, há confi ança na responsabilidade humana e há a certeza de um novo concerto cinegético e amoroso entre Terra e Humanidade. Deixa-se para trás a visão meramente positivista e mecanicista da natureza. Em seu lugar entra a concepção contemporânea que resgata a perspectiva ancestral que capta o caráter de mistério do Universo e da vida. Os valores da solidariedade, da inclusão e da reverência pervadem todo o texto.

O segundo ponto é a superação do conceito fechado de desenvolvimento sustentável. Esta categoria é ofi cial em todos os documentos internacionais. Foi a fórmula pela qual o sistema mundial imperante conseguiu incorporar as exigências do discurso ecológico. Mas ele é profundamente contraditório em seus próprios termos. Pois o termo desenvolvimento vem do campo da economia; não de qualquer economia, mas do tipo imperante, que visa a acumulação de bens e serviços de forma crescente e linear mesmo à custa de iniqüidade social e depredação ecológica. Esse modelo é gerador de desigualdades e desequilíbrios, inegáveis em todos os campos onde ele é dominante.

A sustentabilidade provém do campo da ecologia e da biologia. Ela afi rma a inclusão de todos no processo de inter-retro-relação que caracteriza todos os seres em ecossistemas. A sustentabilidade afi rma o equilíbrio dinâmico que permite todos participarem e se verem incluídos no processo global.

Page 65: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra

65

Entendidos assim os termos, vê-se que a expressão “desenvolvimento sustentável” se torna, na prática, inexeqüível. Os termos se contrapõem e não revelam uma forma nova e alternativa de relação entre produção de bens necessários à vida e à comodidade humana e natureza com seus recursos limitados.

A Carta da Terra, em suas redações iniciais, havia incorporado o termo “desenvolvimento sustentável” como seu eixo estruturador. Graças às acaloradas e minuciosas discussões internas, superou-se esta terminologia. Manteve-se a categoria sustentabilidade, como fundamental para o sistema-vida e o sistema-Terra. Mais que buscar um desenvolvimento sustentável, importa construir uma vida sustentável, uma sociedade sustentável e uma Terra sustentável. Garantida essa sustentabilidade básica, pode-se falar com propriedade de desenvolvimento sustentável. É dentro desta compreensão que na Carta da Terra se usa, às vezes, o termo, mas libertado de sua compreensão ofi cial.

O terceiro ponto reside na ética do cuidado. Já em 1991 a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e o Fundo Mundial para a Natureza (WWF) publicaram conjuntamente um dos textos mais articulados e práticos que levava como título programático “Cuidando do Planeta Terra. Uma estratégia para o Futuro da Vida (Caring for the Earth. A Strategy for Sustainable Living). O cuidado era a categoria que unia todas as práticas de preservação, regeneração e trato para com a natureza. O cuidado era apresentando como o valor principal de uma ética ecológico-social-espiritual.

Com isso se resgatava o cuidado em seu sentido antropológico e ético como uma relação amorosa para com a realidade, para além dos interesses de uso. O cuidado está ligado aos processos da vida, seja em sua manutenção e reprodução, seja em sua construção social. Pelo cuidado o ser humano pessoal e coletivo supera as desconfi anças, os medos e estabelece os fundamentos para uma paz duradoura.

Estas visões perpassam o texto da Carta da Terra e fazem dela uma das expressões éticas e espirituais mais acabadas dos últimos tempos.

Belamente conclui a Carta: “Que o nosso tempo seja lembrado pelo despertar de uma nova reverência face à vida, por um compromisso fi rme de alcançar a sustentabilidade, pela rápida luta pela justiça e pela paz, e pela alegre celebração da vida”.

Leonardo Boff é teólogo, representante brasileiro no Conselho da Terra, escreveu mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Filosofi a, Espiritualidade, Antropologia e Mística e recebeu, em 2001, o Prêmio Nobel da Paz Alternativo em Estocolmo. Este texto está disponível em http://www.leonardoboff.com

Page 66: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

66

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

A ECOPEDAGOGIA COMO PEDAGOGIA APROPRIADA AO PROCESSO DA CARTA DA TERRA

Moacir Gadotti

Três décadas de debates sobre “nosso futuro comum” deixaram algumas pegadas ecológicas, tanto no campo da economia, quanto no campo da ética, da política e da educação que podem nos indicar um caminho diante dos desafi os do século XXI. A sustentabilidade tornou-se um tema gerador preponderante neste início de milênio para pensar não só o planeta, um tema portador de um projeto social global e capaz de reeducar nosso olhar e todos os nossos sentidos, capaz de reacender a esperança num futuro possível, com dignidade, para todos.

O cenário não é otimista: podemos destruir toda a vida no planeta neste milênio que se inicia. Uma ação conjunta global é necessária, um movimento como grande obra civilizatória de todos é indispensável para realizarmos essa outra globalização, essa planetarização, fundamentada em outros princípios éticos que não os baseados na exploração econômica, na dominação política e na exclusão social. O modo pelo qual vamos produzir nossa existência neste pequeno planeta decidirá sobre a sua vida ou a sua morte e a de todos os seus fi lhos e fi lhas. A Terra deixou de ser um fenômeno puramente geográfi co para se tornar um fenômeno histórico.

Os paradigmas clássicos, fundados numa visão industrialista predatória, antropocêntrica e desenvolvimentista, estão se esgotando, não dando conta de explicar o momento presente e de responder às necessidades futuras. Necessitamos de um outro paradigma, fundado numa visão sustentável do planeta Terra. O globalismo é essencialmente insustentável. Ele atende primeiro às necessidades do capital e depois às necessidades humanas. E muitas das necessidades humanas a que ele atende tornaram-se”humanas” apenas porque foram produzidas como tais para servirem ao capital.

1- Pedagogia da Terra e educação sustentável

A sensação de pertencimento à Terra não se inicia na idade adulta e nem por um ato de razão. Desde a infância, sentimo-nos ligados com algo que é muito maior do que nós. Desde criança nos sentimos profundamente ligados ao Universo e nos colocamos diante dele num misto de espanto e de respeito. E, durante toda vida, buscamos respostas ao que somos, de onde viemos, para onde vamos, enfi m, qual o sentido da nossa existência. É uma busca incessante e que jamais termina. A educação pode ter um papel nesse processo se colocar questões fi losófi cas fundamentais, mas também se souber trabalhar ao lado do conhecimento essa nossa capacidade de nos encantar com o Universo.

Hoje, tomamos consciência de que o sentido das nossas vidas não está separado do sentido do próprio planeta. Diante da degradação das nossas vidas no planeta, chegamos a uma

Page 67: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra

67

verdadeira encruzilhada entre um caminho Tecnozóico, que coloca toda a fé na capacidade da tecnologia de nos tirar da crise sem mudar nosso estilo poluidor e consumista de vida, e um caminho Ecozóico, fundado numa nova relação saudável com o planeta, reconhecendo que somos parte do mundo natural, vivendo em harmonia com o Universo, caracterizado pelas atuais preocupações ecológicas. Temos que fazer escolhas. Elas defi nirão o futuro que teremos. Não me parece realmente que sejam caminhos totalmente opostos. Tecnologia e humanismo não se contrapõem. Mas, é claro, houve excessos no nosso estilo poluidor e consumista de vida e que não é fruto da técnica, mas do modelo econômico. Este é que tem que ser posto em causa. E esse é um dos papéis da educação sustentável ou ecológica.

O desenvolvimento sustentável, visto de forma crítica, tem um componente educativo formidável: a preservação do meio ambiente depende de uma consciência ecológica e a formação da consciência depende da educação. É aqui que entra em cena a Pedagogia da Terra, a ecopedagogia. Ela é uma pedagogia para a promoção da aprendizagem do “sentido das coisas a partir da vida cotidiana”, como dizem Francisco Gutiérrez e Cruz Prado em seu livro Ecopedagogia e cidadania planetária (São Paulo, IPF/Cortez, 1998). Encontramos o sentido ao caminhar, vivenciando o contexto e o processo de abrir novos caminhos; não apenas observando o caminho. É, por isso, uma pedagogia democrática e solidária. A pesquisa de Francisco Gutiérrez e Cruz Prado sobre a ecopedagogia se originou na preocupação com o sentido da vida cotidiana. A formação está ligada ao espaço/tempo no qual se realizam concretamente as relações entre o ser humano e o meio ambiente. Elas se dão sobretudo no nível da sensibilidade, muito mais do que no nível da consciência. Elas se dão, portanto, muito mais no nível da sub-consciência: não as percebemos e, muitas vezes, não sabemos como elas acontecem. É preciso uma ecoformação para torná-las conscientes. E a ecoformação necessita de uma ecopedagogia. Como destaca Gaston Pineau em seu livro De l’air: essai sur l‘écoformation (Paris, Païdeia, 1992), uma série de referenciais se associam para isso: a inspiração bachelardiana, os estudos do imaginário, a abordagem da transversalidade, da transdisciplinaridade e da interculturalidade, o construtivismo e a pedagogia da alternância.

Precisamos de uma ecopedagogia e uma ecoformação hoje, precisamos de uma Pedagogia da Terra, justamente porque sem essa pedagogia para a re-educação do homem/mulher, principalmente do homem ocidental, prisioneiro de uma cultura cristã predatória, não poderemos mais falar da Terra como um lar, como uma toca, para o “bicho-homem”, como fala Paulo Freire. Sem uma educação sustentável, a Terra continuará apenas sendo considerada como espaço de nosso sustento e de domínio técnico-tecnológico, objeto de nossas pesquisas, ensaios e, algumas vezes, de nossa contemplação. Mas não será o espaço de vida, o espaço do aconchego, de “cuidado” (BOFF, Leonardo, Saber cuidar, Petrópolis, Vozes, 1999).

Não aprendemos a amar a Terra lendo livros sobre isso, nem livros de ecologia integral. A experiência própria é o que conta. Plantar e seguir o crescimento de uma árvore ou de uma plantinha, caminhando pelas ruas da cidade ou aventurando-se numa fl oresta, sentindo o cantar dos pássaros nas manhãs ensolaradas ou não, observando como o vento move as plantas, sentindo a areia quente de nossas praias, olhando para as estrelas numa noite escura. Há muitas formas

Page 68: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

68

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

de encantamento e de emoção frente às maravilhas que a natureza nos reserva. É claro, existe a poluição, a degradação ambiental para nos lembrar de que podemos destruir essa maravilha e para formar nossa consciência ecológica e nos mover à ação. Acariciar uma planta, contemplar com ternura um pôr de sol, cheirar o perfume de uma folha de pitanga, de goiaba, de laranjeira ou de um cipreste, de um eucalipto... são múltiplas formas de viver em relação permanente com esse planeta generoso e compartilhar a vida com todos os que o habitam ou o compõem. A vida tem sentido, mas ele só existe em relação. Como diz o poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade: “Sou um homem dissolvido na natureza. Estou fl orescendo em todos os ipês”.

Isso Drummond só poderia dizer aqui na Terra. Se estivesse em outro planeta do sistema solar ele não diria o mesmo. Só a Terra é amigável com o ser humano. Os outros planetas são francamente hostis a ele, embora tenham sido originados na mesma poeira cósmica. Existirão outros planetas fora do sistema solar que abriguem a vida, talvez a vida inteligente? Se levarmos em conta que a matéria da qual se originou o Universo é a mesma, é muito provável. Mas, por ora, só temos um que é francamente nosso amigo. Temos que aprender a amá-lo.

Como se traduz na educação o princípio da sustentabilidade? Ele se traduz por perguntas como: até que ponto há sentido no que fazemos? Até que ponto nossas ações contribuem para a qualidade de vida dos povos e para a sua felicidade? A sustentabilidade é um princípio reorientador da educação e principalmente dos currículos, objetivos e métodos.

É no contexto da evolução da própria ecologia que surge e ainda engatinha o que chamamos de “ecopedagogia”, inicialmente chamada de “pedagogia do desenvolvimento sustentável” e que hoje ultrapassou esse sentido. A ecopedagogia está se desenvolvendo seja como um movimento pedagógico, seja como abordagem curricular.

Como a ecologia, a ecopedagogia também pode ser entendida como um movimento social e político. Como todo movimento novo, em processo, em evolução, ele é complexo e pode tomar diferentes direções, até contraditórias. Ele pode ser entendido diferentemente como o são as expressões “desenvolvimento sustentável” e “meio ambiente”. Existe uma visão capitalista do desenvolvimento sustentável e do meio ambiente que, por ser anti-ecológica, deve ser considerada como uma “armadilha”, como vem sustentando Leonardo Boff.

A ecopedagogia também implica uma reorientação dos currículos para que incorporem certos princípios defendidos por ela. Estes princípios deveriam, por exemplo, orientar a concepção dos conteúdos e a elaboração dos livros didáticos. Jean Piaget nos ensinou que os currículos devem contemplar o que é signifi cativo para o aluno. Sabemos que isso é correto, mas incompleto. Os conteúdos curriculares têm que ser signifi cativos para o aluno, e só serão signifi cativos para ele se esses conteúdos forem signifi cativos também para a saúde do planeta, para o contexto mais amplo.

Colocada neste sentido, a ecopedagogia não é uma pedagogia a mais, ao lado de outras pedagogias. Ela só tem sentido como projeto alternativo global, no qual a preocupação não está apenas na preservação da natureza (Ecologia Natural) ou no impacto das sociedades

Page 69: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra

69

humanas sobre os ambientes naturais (Ecologia Social), mas num novo modelo de civilização sustentável do ponto de vista ecológico (Ecologia Integral), que implica uma mudança nas estruturas econômicas, sociais e culturais. Ela está ligada, portanto, a um projeto utópico: mudar as relações humanas, sociais e ambientais que temos hoje. Aqui está o sentido profundo da ecopedagogia, ou de uma Pedagogia da Terra, como a chamamos.

A ecopedagogia não se opõe à educação ambiental. Ao contrário, para a ecopedagogia a educação ambiental é um pressuposto. A ecopedagogia incorpora-a e oferece estratégias, propostas e meios para a sua realização concreta. Foi justamente durante a realização do Fórum Global 92, no qual se discutiu muito a educação ambiental, que se percebeu a importância de uma pedagogia do desenvolvimento sustentável ou de uma ecopedagogia. Hoje, porém, a ecopedagogia tornou-se um movimento e uma perspectiva da educação maior do que uma pedagogia do desenvolvimento sustentável. Ela está mais para a educação sustentável, para uma ecoeducação, que é mais ampla do que a educação ambiental. A educação sustentável não se preocupa apenas com uma relação saudável com o meio ambiente, mas com o sentido mais profundo do que fazemos com a nossa existência, a partir da vida cotidiana.

2 – Consciência planetária, cidadania planetária, civilização planetária

A globalização, impulsionada sobretudo pela tecnologia, parece determinar cada vez mais nossas vidas. As decisões sobre o que nos acontece no dia-a-dia parecem nos escapar, por serem tomadas muito distante de nós, comprometendo nosso papel do sujeitos da história. Mas não é bem assim. Como fenômeno e como processo, a globalização tornou-se irreversível, mas não esse tipo de globalização – o globalismo – ao qual estamos submetidos hoje: a globalização capitalista. Seus efeitos mais imediatos são o desemprego, o aprofundamento das diferenças entre os poucos que têm muito e os muitos que têm pouco, a perda de poder e autonomia de muita Estados e Nações. Há pois que distinguir os países que hoje comandam a globalização – os globalizadores (países ricos) – dos países que sofrem a globalização, os países globalizados (pobres).

Dentro deste complexo fenômeno podemos distinguir também a globalização econômica, realizada pelas transnacionais, da globalização da cidadania. Ambas se utilizam da mesma base tecnológica, mas com lógicas opostas. A primeira, submetendo Estados e Nações, é comandada pelo interesse capitalista; a segunda globalização é a realizada através da organização da Sociedade Civil. A Sociedade Civil globalizada é a resposta que a Sociedade Civil como um todo e as ONGs estão dando hoje à globalização capitalista. Neste sentido, o Fórum Global 92 se constituiu num evento dos mais signifi cativos do fi nal de século XX: deu grande impulso à globalização da cidadania. Hoje, o debate em torno da Carta da Terra está se constituindo num fator importante de construção desta cidadania planetária. Qualquer pedagogia, pensada fora da globalização e do movimento ecológico, tem hoje sérios problemas de contextualização.

“Estrangeiro eu não vou ser. Cidadão do mundo eu sou”, diz uma das letras de música cantada pelo cantor brasileiro Milton Nascimento. Se as crianças de nossas escolas entendessem

Page 70: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

70

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

em profundidade o signifi cado das palavras desta canção, estariam iniciando uma verdadeira revolução pedagógica e curricular. Como posso sentir-me estrangeiro em qualquer território se pertenço a um único território, a Terra? Não há lugar estrangeiro para terráqueos, na Terra. Se sou cidadão do mundo, não podem existir para mim fronteiras. As diferenças culturais, geográfi cas, raciais e outras enfraquecem diante do meu sentimento de pertencimento à Humanidade.

A noção de cidadania planetária (mundial) sustenta-se na visão unifi cadora do planeta e de uma sociedade mundial. Ela se manifesta em diferentes expressões: “nossa humanidade comum”, “unidade na diversidade”, “nosso futuro comum”, “nossa pátria comum”, “cidadania planetária”. Cidadania Planetária é uma expressão adotada para indicar um conjunto de princípios, valores, atitudes e comportamentos que demonstra uma nova percepção da Terra como uma única comunidade. Freqüentemente associada ao “desenvolvimento sustentável”, ela é muito mais ampla do que essa relação com a economia. Trata-se de um ponto de referência ético indissociável da civilização planetária e da ecologia. A Terra é “Gaia”, um super-organismo vivo e em evolução, o que for feito a ela repercutirá em todos os seus fi lhos.

Cultura da sustentabilidade supõe uma pedagogia da sustentabilidade que dê conta da grande tarefa de formar para a cidadania planetária. Esse é um processo já em marcha. A educação para a cidadania planetária está começando através de numerosas experiências que, embora muitas sejam locais, nos apontam para uma educação para nos sentir membros para além da Terra, para viver uma cidadania cósmica. Os desafi os são enormes tanto para os educadores quanto para os responsáveis pelos sistemas educacionais. Mas já existem certos sinais, na própria sociedade, que apontam para uma crescente busca não só por temas espiritualistas e de auto-ajuda, mas por um conhecimento científi co mais profundo do Universo.

Educar para a cidadania planetária implica muito mais do que uma fi losofi a educacional, do que o enunciado de seus princípios. A educação para a cidadania planetária implica uma revisão dos nossos currículos, uma reorientação de nossa visão de mundo da educação como espaço de inserção do indivíduo, não numa comunidade local, mas numa comunidade que é local e global ao mesmo tempo. Educar, então, não seria, como dizia Émile Durheim, a transmissão da cultura “de uma geração para outra”, mas a grande viagem de cada indivíduo no seu universo interior e no Universo que o cerca.

O tipo de globalização de hoje está muito mais ligado ao fenômeno da mundialização do mercado, que é um tipo de mundialização. E mesmo esta mundialização, fundada no mercado, pode ser vista como uma globalização cooperativa ou como uma globalização competitiva sem solidariedade. Entre o estatismo absolutista e a mão invisível do mercado pode existir (e existe) uma nova economia de mercado (há mercados e mercados!) onde predomina a cooperação e a solidariedade e não a competitividade selvagem; uma economia solidária, a verdadeira economia da sustentabilidade. Por tudo isso, precisamos construir uma “outra globalização” (SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. São Paulo: Record, 2000), uma globalização fundada no princípio da solidariedade.

Page 71: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra

71

A globalização em si não é problemática, pois representa um processo de avanço sem precedentes na história da humanidade. O que é problemático é a globalização competitiva, onde os interesses do mercado se sobrepõem aos interesses humanos, onde os interesses dos povos se subordinam aos interesses corporativos das grandes empresas transnacionais. Assim, podemos distinguir uma globalização competitiva de uma possível globalização cooperativa e solidária que, em outros momentos, chamamos de processo de “planetarização”. A primeira está subordinada apenas às leis do mercado e a segunda se subordina aos valores éticos e à espiritualidade humana. Para essa segunda globalização é que a Carta da Terra, como um código de ética universal, deveria dar uma contribuição importante, não apenas através da proclamação que os Estados podem fazer, mas, sobretudo, pelo impacto que seus princípios poderão ter na vida cotidiana do cidadão planetário.

3 – Movimento pela ecopedagogia

Essa travessia de milênio caracteriza-se por um enorme avanço tecnológico e também por uma enorme imaturidade política: enquanto a internet nos coloca no centro da Era da Informação, o governo do humano continua muito pobre, gerando misérias e deterioração. Podemos destruir toda a vida do planeta. Quinhentas empresas transnacionais controlam 25% da atividade econômica mundial e 80% das inovações tecnológicas. A globalização econômica capitalista enfraqueceu os Estados Nacionais, impondo limites para a sua autonomia, subordinando-os à lógica econômica das transnacionais. Gigantescas dívidas externas governam países e impedem a implantação de políticas sociais eqüalizadoras. As empresas transnacionais trabalham para 10% da população mundial que se situam nos países mais ricos, gerando uma tremenda exclusão. Esse é o cenário da travessia, um cenário ainda mais problemático pela falta de alternativas.

Os paradigmas clássicos estão esgotando suas possibilidades de responder adequadamente a esse novo contexto. Não conseguem explicar essa travessia, muito menos passar por ela. Há uma crise de inteligibilidade diante da qual muitos falsos profetas e charlatães oferecem soluções mágicas. Uma nova espiritualidade surge muito bem aproveitada pelas mercorreligiões. A resposta dada pelo estatismo burocrático e autoritário é tão inefi ciente quanto o neoliberalismo do deus mercado. O neoliberalismo propõe mais poder para as transnacionais e os estatistas propõem mais poder para o Estado, reforçando as suas estruturas. No meio de tudo isso está o cidadão comum, que não é nem empresário, nem Estado. A resposta parece estar além destes dois modelos clássicos, mas certamente não numa suposta “terceira via” que deseja apenas dar sobrevida ao capitalismo, sofi sticando a dominação política, a exploração econômica e provocando enorme exclusão social. A resposta parece vir hoje do fortalecimento do controle cidadão frente ao Estado e ao mercado, a Sociedade Civil fortalecendo sua capacidade de governar-se e controlar o desenvolvimento. Aqui entra o papel importante da educação, da formação para a cidadania ativa.

Podemos dizer que há uma comunidade sustentável que vive em harmonia com o seu meio ambiente, não causando danos a outras comunidades, nem para a comunidade de hoje e nem para a de amanhã. E isso não pode constituir-se apenas num compromisso ecológico, mas ético-

Page 72: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

72

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

político, alimentado por uma pedagogia, isto é, por uma ciência da educação e uma prática social defi nidas. Neste sentido, a ecopedagogia, inserida nesse movimento sócio-histórico, formando cidadãos capazes de escolherem os indicadores de qualidade do seu futuro, constitui-se numa pedagogia inteiramente nova e intensamente democrática.

O Movimento pela Ecopedagogia ganhou impulso sobretudo a partir do Primeiro Encontro Internacional da Carta da Terra na Perspectiva da Educação, organizado pelo Instituto Paulo Freire, com o apoio do Conselho da Terra e da Unesco, de 23 a 26 de agosto de 1999, em São Paulo, e do I Fórum Internacional sobre Ecopedagogia, realizado na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, Portugal, de 24 a 26 de março de 2000. Desses encontros surgiram os princípios orientadores desse movimento, contidos numa “Carta da Ecopedagogia”. Eis alguns deles:

1. O planeta como uma única comunidade.

2. A Terra como mãe, organismo vivo e em evolução.

3. Uma nova consciência que sabe o que é sustentável, apropriado e faz sentido para a nossa existência.

4. A ternura para com essa casa. Nosso endereço é a Terra.

5. A justiça sócio-cósmica: a Terra é um grande pobre, o maior de todos os pobres.

6. Uma pedagogia biófi la (que promove a vida): envolver-se, comunicar-se, compartilhar, problematizar, relacionar-se, entusiasmar-se.

7. Uma concepção do conhecimento que admite só ser integral quando compartilhado.

8. O caminhar com sentido (vida cotidiana).

9. Uma racionalidade intuitiva e comunicativa: afetiva, não instrumental.

10. Novas atitudes: reeducar o olhar, o coração.

11. Cultura da sustentabilidade: ecoformação. Ampliar nosso ponto de vista.

As pedagogias clássicas eram antropocêntricas. A ecopedagogia parte de uma consciência planetária (gêneros, espécies, reinos, educação formal, informal e não-formal...). Ampliamos o nosso ponto de vista. Do homem para o planeta, acima de gêneros, espécies e reinos. De uma visão antropocêntrica para uma consciência planetária, para uma prática de cidadania planetária e para uma nova referência ética e social: a civilização planetária.

Page 73: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra

73

Não se pode dizer que a ecopedagogia representa já uma tendência concreta e notável na prática da educação contemporânea. Se ela já tivesse suas categorias defi nidas e elaboradas, ela estaria totalmente equivocada, pois uma perspectiva pedagógica não pode nascer de um discurso elaborado por especialistas. Ao contrário, o discurso pedagógico elaborado é que nasce de uma prática concreta, testada e comprovada. A ecopedagogia está ainda em formação e formulação como teoria da educação. Ela está se manifestando em muitas práticas educativas que o Movimento pela Ecopedagogia, liderado pelo Instituto Paulo Freire, tenta congregar.

O Movimento pela Ecopedagogia, surgido no seio da iniciativa da Carta da Terra, está dando apoio ao processo de discussão dessa Carta, indicando justamente uma metodologia apropriada que não seja a metodologia da simples “proclamação” governamental, de uma declaração formal, mas a tradução de um processo vivido e da participação crítica da “demanda”, como diz Francisco Gutiérrez.

A Carta da Terra deve ser entendida sobretudo como um movimento ético global para se chegar a um código de ética planetário, sustentando um núcleo de princípios e valores que faz frente à injustiça social e à falta de eqüidade reinante no planeta. Cinco pilares sustentam esse núcleo: a) direitos humanos; b) democracia e participação; c) eqüidade; d) proteção da minoria; e) resolução pacífi ca dos confl itos. Esses pilares são cimentados por uma visão de mundo solidária e respeitosa da diferença (consciência planetária).

O intercâmbio planetário que ocorre hoje em função da expansão das oportunidades de acesso à comunicação, notadamente através da internet, deverá facilitar o diálogo inter e transcultural e o desenvolvimento desta nova ética planetária. A campanha da Carta da Terra agrega um novo valor e oferece um novo impulso a esse movimento pela ética na política, na economia, na educação etc. Ela se tornará realmente forte e, talvez, decisiva, no momento em que representar um projeto de futuro, um contraprojeto global e local ao projeto político-pedagógico, social e econômico neoliberal, que não só é intrinsecamente insustentável, como também essencialmente injusto e desumano.

4 – A ecopedagogia como pedagogia apropriada ao processo da Carta da Terra

Precisamos de uma Pedagogia da Terra, uma pedagogia apropriada para esse momento de reconstrução paradigmática, apropriada à cultura da sustentabilidade e da paz, por isso, apropriada ao processo da Carta Terra. Ela vem se constituindo gradativamente, benefi ciando-se de muitas refl exões que ocorreram nas últimas décadas, principalmente no interior do movimento ecológico. Ela se fundamenta num paradigma fi losófi co (Paulo Freire, Leonardo Boff, Sebastião Salgado, Boaventura de Sousa Santos, Milton Santos) emergente na educação, que propõe um conjunto de saberes/valores interdependentes. Entre eles podemos destacar:

1) Educar para pensar globalmente. Na era da informação, diante da velocidade com que o conhecimento é produzido e envelhece, não adianta acumular informações. É preciso saber

Page 74: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

74

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

pensar. E pensar a realidade. Não pensar pensamentos já pensados. Daí a necessidade de recolocarmos o tema do conhecimento, do saber aprender, do saber conhecer, das metodologias, da organização do trabalho na escola.

2) Educar os sentimentos. O ser humano é o único ser vivente que se pergunta sobre o sentido de sua vida. Educar para sentir e ter sentido, para cuidar e cuidar-se, para viver com sentido em cada instante da nossa vida. Somos humanos porque sentimos e não apenas porque pensamos. Somos parte de um todo em construção.

3) Ensinar a identidade terrena como condição humana essencial. Nosso destino comum no planeta, compartilhar com todos sua vida no planeta. Nossa identidade é ao mesmo tempo individual e cósmica. Educar para conquistar um vínculo amoroso com a Terra, não para explorá-la, mas para amá-la.

4) Formar para a consciência planetária. Compreender que somos interdependentes. A Terra é uma só nação e nós, os terráqueos, os seus cidadãos. Não precisaríamos de passaportes. Em nenhum lugar na Terra deveríamos nos considerar estrangeiros. Separar primeiro de terceiro mundo signifi ca dividir o mundo para governá-lo a partir dos mais poderosos; essa é a divisão globalista entre globalizadores e globalizados, o contrário do processo de planetarização.

5) Formar para a compreensão. Formar para a ética do gênero humano, não para a ética instrumental e utilitária do mercado. Educar para comunicar-se. Não comunicar para explorar, para tirar proveito do outro, mas para compreendê-lo melhor. A Pedagogia da Terra funda-se nesse novo paradigma ético e numa nova inteligência do mundo. Inteligente não é aquele que sabe resolver problemas (inteligência instrumental), mas aquele que tem um projeto de vida solidário. Porque a solidariedade não é hoje apenas um valor. É condição de sobrevivência de todos.

6) Educar para a simplicidade e para a quietude. Nossas vidas precisam ser guiadas por novos valores: simplicidade, austeridade, quietude, paz, saber escutar, saber viver juntos, compartir, descobrir e fazer juntos. Precisamos escolher entre um mundo mais responsável frente à cultura dominante que é uma cultura de guerra, de competitividade sem solidariedade, e passar de uma responsabilidade diluída à uma ação concreta, praticando a sustentabilidade na vida diária, na família, no trabalho, na escola, na rua. A simplicidade não se confunde com a simploriedade e a quietude não se confunde com a cultura do silêncio. A simplicidade tem que ser voluntária como a mudança de nossos hábitos de consumo, reduzindo nossas demandas. A quietude é uma virtude, conquistada com a paz interior e não pelo silêncio imposto.

É claro, tudo isso supõe justiça e justiça supõe que todas e todos tenham acesso à qualidade de vida. Seria cínico falar de redução de demandas de consumo, atacar o consumismo, falar de consumismo aos que ainda não tiveram acesso ao consumo básico. Não existe paz sem justiça.

Diante do possível extermínio do planeta, surgem alternativas numa cultura da paz e uma cultura da sustentabilidade. Sustentabilidade não tem a ver apenas com a biologia, a economia

Page 75: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra

75

e a ecologia. Sustentabilidade tem a ver com a relação que mantemos conosco mesmos, com os outros e com a natureza. A pedagogia deveria começar por ensinar sobretudo a ler o mundo, como nos diz Paulo Freire, o mundo que é o próprio Universo, por que é ele nosso primeiro educador. Essa primeira educação é uma educação emocional que nos coloca diante do mistério do Universo, na intimidade com ele, produzindo a emoção de nos sentirmos parte desse sagrado ser vivo e em evolução permanente.

Não entendemos o Universo como partes ou entidades separadas, mas como um todo sagrado, misterioso, que nos desafi a a cada momento de nossas vidas, em evolução, em expansão, em interação. Razão, emoção e intuição são partes desse processo, onde o próprio observador está implicado. O Paradigma-Terra é um paradigma civilizatório. E como a cultura da sustentabilidade oferece uma nova percepção da Terra, considerando-a como uma única comunidade de humanos, ela se torna básica para uma cultura de paz.

O universo não está lá fora. Está dentro de nós. Está muito próximo de nós. Um pequeno jardim, uma horta, um pedaço de terra, é um microcosmos de todo o mundo natural. Nele encontramos formas de vida, recursos de vida, processos de vida. A partir dele podemos reconceitualizar nosso currículo escolar. Ao construí-lo e ao cultivá-lo podemos aprender muitas coisas. As crianças o encaram como fonte de tantos mistérios! Ele nos ensina os valores da emocionalidade com a Terra: a vida, a morte, a sobrevivência, os valores da paciência, da perseverança, da criatividade, da adaptação, da transformação, da renovação... Todas as nossas escolas podem transformar-se em jardins e professores-alunos, educadores-educandos, em jardineiros. O jardim nos ensina ideais democráticos: conexão, escolha, responsabilidade, decisão, iniciativa, igualdade, biodiversidade, cores, classes, etnicidade e gênero.

“Carta” signifi ca “mapa”, um mapa para nos guiar nessa travessia conturbada. A Carta da Terra, nesse sentido, precisa ser considerada como um código de ética planetária a nos guiar hoje para um mundo onde predominem os valores da solidariedade e da sustentabilidade, um projeto, um movimento, um processo que pode transformar o risco de extermínio em oportunidade histórica, transformar o temor em esperança. Adotar e promover a prática de seus valores não pode ser apenas o compromisso de Estados e Nações, mas de cada ser humano individual, pessoal, como sujeito da história, como vem promovendo o Manifesto 2000 da Unesco. Precisamos de uma cultura de paz com justiça social para enfrentar a barbárie. Se aceitamos a barbárie, acostumamo-nos a um cotidiano de violência e de insustentabilidade.

No nosso livro Pedagogia da Terra defendemos a necessidade de uma Carta da Terra associada a um processo de paz, a uma cultura de paz. E como a Carta da Terra é um documento ético, precisa da educação para tornar-se cada vez mais conhecido. Mas precisamos não só de mudança na consciência das pessoas. Precisamos de mudanças estruturais no campo econômico, como as propostas pela Agenda 21. A Carta da Terra precisa estar associada também à Agenda 21 e ter um grande suporte na sociedade civil. Os governos podem assinar tratados, podem adotar a Carta da Terra, mas não cumprirão suas promessas se a Sociedade Civil não estiver vigilante e não pressionar os governantes para que eles cumpram o que assumem. O que foi

Page 76: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

76

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

socialmente construído pode ser socialmente transformado. Um outro mundo é possível. Uma outra globalização é possível. Precisamos chegar lá juntos e, sobretudo, a tempo.

Moacir Gadotti é professor titular da Universidade de São Paulo, diretor do Instituto Paulo Freire e autor de várias obras, entre elas: História das idéias pedagógicas (Ática, 1993), Pedagogia da práxis (Cortez, 1994), Perspectivas atuais da educação (Artes Médicas, 2000), Pedagogia da Terra (Peirópolis, 2000) e Os Mestres de Rousseau (Cortez, 2004). O autor participou na Rio-92 (Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desen-volvimento), que elaborou e aprovou a Agenda 21, como representante de ONG (ICEA - Internacional Community Education Association). No Fórum Global-92, na mesma época, participou na coordenação da Jornada Internacional de Educação Ambiental, que elaborou o Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global. www.paulofreire.org

Page 77: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra

77

A CARTA DA TERRA COMO INSTRUMENTO EDUCATIVO E INSPIRADOR NA CONSTRUÇÃO DE SOCIEDADES SUSTENTÁVEIS

Mirian Vilela

O fato de que uma pessoa tenha recebido formação na escola ou universidade não necessariamente a transforma num cidadão comprometido em ajudar na resolução dos problemas da nossa sociedade. Muitas vezes são essas pessoas, que contam com um bom nível de instrução, as responsáveis por grandes injustiças, atrocidades, devastações e corrupções que afetam a todos, não somente a geração atual, mas também as futuras gerações.

Em parte, a causa disto é a ausência de uma educação baseada em valores que assegurem o bem comum e promovam a responsabilidade individual e coletiva. Refi ro-me a uma educação que aborde a ética do cuidado, a ética que nos faz refl etir sobre as conseqüências e o impacto dos nossos atos e decisões sobre o nosso entorno.

Uma educação que coloque a ética como um eixo central é de suma importância no processo de qualifi cação da cidadania. Falta, nos processos educativos, o desenvolvimento da sensibilidade e consciência ética em cada pessoa. Carecemos de uma educação que, no lugar de promover tanta competição e individualismo, invista na cooperação e sentido coletivos, assim como a interconexão entre diferentes saberes.

Precisamos repensar como reorientar os programas educativos para que promovam melhores sociedades. Isto deve ocorrer para que os interesses coletivos e do bem comum prevaleçam sobre os interesses individuais, da mesma forma que o respeito e cuidado à vida estejam refl etidos no estilo de vida de todos. Devemos lembrar que a meta da educação não é simplesmente preparar os estudantes para ter carreiras produtivas de sucesso profi ssional e fi nanceiro, mas também, e sobretudo, para que sejam capazes de contribuir para o melhoramento do bem-estar da humanidade e do bem comum.

O professor John Fien, da Austrália, levanta a seguinte pergunta: “Como levar esta mensagem aos estudantes que estão crescendo em um mundo orientado pelo consumismo e o materialismo, onde sua própria identidade esta defi nida não pelo que você é, mas pelo que você veste, pelo tipo de casa que você vive, pelo carro que você anda e pelo tipo de férias que você desfruta? O que está por detrás destes valores destorcidos?”

Nessa procura de uma base ética e princípios para construir uma melhor sociedade podemos encontrar na Carta da Terra um instrumento útil. No preâmbulo desta Carta encontramos a seguinte refl exão: “Devemos entender que, quando as necessidades básicas forem atingidas, o desenvolvimento humano será primariamente voltado a ser mais, e não a ter mais”.

Page 78: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

78

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

A Carta da Terra é uma declaração ou marco de valores e princípios que nos orientam a um mundo mais justo, sustentável e pacífi co. E é também uma iniciativa internacional que envolve indivíduos e instituições, que a utilizam de diferentes formas e a incorporam em seus trabalhos e atividades.

Para melhor ilustrar isto, imaginemos a Iniciativa da Carta da Terra como uma moeda: em um lado encontramos a teoria ou a base fi losófi ca que nos orienta, ou melhor, que nos dá a direção para onde ir. Do outro lado, temos a prática, as ações do cotidiano. Um lado não pode existir sem o outro, já que a teoria sem a prática é vazia e não tem sentido, da mesma maneira que a prática sem teoria não tem direção.

A legitimidade da Carta da Terra deriva do seu conteúdo (diverso, inclusivo e que, ao mesmo tempo, capta pontos chaves de documentos e declarações internacionais elaborados na década de 90), de seu processo de redação amplo e participativo; e do crescente movimento de indivíduos e organizações que a adotam como marco referencial e a aplicam em suas áreas de ação. A Iniciativa da Carta da Terra oferece um bom exemplo de movimento da sociedade civil que envolve indivíduos e organizações de todas a regiões do mundo e de várias áreas de especialidade (ciência, direito internacional, ética e teologia) que utilizam a Carta da Terra de várias formas criativas.

A Carta da Terra tem 16 princípios organizados em quatro partes, sendo estas: respeito e cuidado à comunidade de vida, integridade ecológica, justiça econômica e social e democracia, não violência e paz. Como documento, aborda temas chaves como: a necessidade de planejar a longo prazo; responsabilidade compartilhada; visão integral ou pensamento sistêmico.

Por isso a Carta da Terra pode ser percebida como um marco prático que integra os temas de justiça social, direitos humanos, proteção ambiental como partes de um todo, ou seja, com a visão sistêmica do desenvolvimento sustentável. Ela pode ser considerada como um mapa que nos orienta em direção à sustentabilidade, que nos indica onde estamos e qual o caminho que devemos tomar. É um marco que integra a agenda de paz e sustentabilidade, com a proteção ambiental, os direitos humanos e a justiça social, os quais muitas vezes são vistos de forma fragmentada ou desarticulada.

Entretanto, é importante reconhecer que existe uma certa confusão sobre o signifi cado do desenvolvimento sustentável. Todo o contexto do surgimento deste termo foi justamente gerado pela compreensão de que os recursos naturais são limitados (e não ilimitados como se achava), assim também como pela necessidade de ver as conseqüências de determinados problemas, como, por exemplo, do crescimento da pobreza no ambiente ou da degradação ambiental gerando confl itos. Quando se fala em desenvolvimento sustentável ou sustentabilidade, é importante entender o sentido de “desenvolvimento” não simplesmente como crescimento econômico, mas sim no sentido real de desenvolvimento, o qual busca, tendo em vista o futuro, assegurar a qualidade de vida, restaurar o sentido de cuidado e respeito a todos os seres vivos, assim também como incentivar o sentido de responsabilidade no uso racional de recursos naturais. É preciso recuperar o sentido completo de desenvolvimento como um processo social, econômico, político, cultural e ambientalmente integrado.

Page 79: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra

79

Especialmente o desenvolvimento sustentável requer a passagem de uma visão fragmentada, tradicional e limitada de cada questão para uma abordagem sistêmica ou integral, onde se permite ver a interdependência dos temas e problemas.

O tema da sustentabilidade envolve: a) qualidade de vida; b) processos participativos; c) interconexões entre o bem-estar social, a economia e o meio ambiente; d) responsabilidade compartilhada.

Por isso, para poder compreender melhor o que é desenvolvimento sustentável é preciso:

Distinguir entre desenvolvimento e crescimento econômico.•

Compreender as conseqüências a longo prazo de uma ação tomada hoje, ou seja, o • sentido de responsabilidade compartilhada com as gerações futuras.

Familiarizar-se com o conceito geral de “sistemas” (a relação entre diferentes partes, • temas e questões).

É justamente devido à necessidade de acelerar o processo de compreensão e implementação do desenvolvimento sustentável que se lançou a Década das Nações Unidas de Educação para o Desenvolvimento Sustentável (2005 – 2014). Esta década busca envolver a todos interessados para alcançar o objetivo geral de integrar os princípios, valores e práticas do desenvolvimento sustentável em todas as facetas da educação e aprendizagem. Um dos objetivos específi cos deste esforço é proporcionar oportunidades para afi nar e promover a perspectiva do desenvolvimento sustentável e a transição para o mesmo mediante todas as formas de educação. Além disto, a Unesco adotou, durante sua Conferência Geral em outubro de 2003, a decisão de “reconhecer a Carta da Terra como um instrumento educativo, especialmente no contexto da Década de Educação para Desenvolvimento Sustentável”.

Seria interessante notar que o México, a Costa Rica e a Argentina lançaram uma estratégia ou compromisso nacional para implementar esta Década de Educação para o Desenvolvimento Sustentável. No caso do México, diferentes instituições do governo federal, especialmente da Secretaria de Educação e Secretaria do Meio Ambiente, lançaram o Compromisso Nacional pela Década da Educação para o Desenvolvimento Sustentável. Este Compromisso procura tornar realidade o desenvolvimento sustentável no México; permitir aos cidadãos participar criticamente nas tomadas de decisões para defi nir a direção em que o desenvolvimento nacional deve seguir e gerar atitudes e as habilidades necessárias para confi gurar uma ação social bem informada, que incida na prevenção e solução dos problemas de cada grupo social.

No caso da Costa Rica o Compromisso Nacional pela Década da Educação para o Desenvol-vimento Sustentável foi assinado por todos os ministros do governo atual e pelo presidente da República como um compromisso que deve envolver os diferentes setores do governo. Neste documento se menciona, entre outros, os seguintes compromissos da Costa Rica: a) abordar de forma integral a Educação para o Desenvolvimento Sustentável, utilizando os princípios da

Page 80: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

80

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

Carta da Terra como marco de referência; b) promover o enfoque transdisciplinar e holístico da Educação para o Desenvolvimento Sustentável em todos os programas educativos, desde o nível pré-escolar até a educação superior; c) estabelecer projetos de educação formal, não formal e informal, sobre os temas relacionados com a Educação para o Desenvolvimento Sustentável.

É importante destacar estes compromissos, pois é essencial poder contar com políticas públicas que os assumam e os incorporem em atividades concretas guiadas por uma visão nacional, o que estimula a criação de projetos e ações.

Mas o que é Educação para o Desenvolvimento Sustentável? Entendemos que a Educação para o Desenvolvimento Sustentável deve promover mudanças de comportamento fundamentais e contar com várias perspectivas de todos os campos do desenvolvimento humano. Ela deve ser:

Participativa e inclusiva•

Interdisciplinária e contextual•

Transformadora•

Provavelmente, isso implica em uma necessidade de desenvolver uma abordagem pedagógica completamente nova. A proposta de incorporar o conceito de desenvolvimento sustentável de forma interdisciplinar nos processos educativos implica superar a abordagem tradicional, fragmentada da educação, mediante ação e refl exão que conduza a uma visão integral.

A Carta da Terra pode contribuir com o esforço da Educação para o Desenvolvimento Sustentável, já que esta oferece uma visão integral e aclara o signifi cado do que é desenvolvimento sustentável.

Como resultado de um fórum de discussão sobre o papel da Carta da Terra na educação identifi cou-se que ela pode ser utilizada para alcançar os seguintes objetivos educativos:

Conscientização – o primeiro desafi o da educação é motivar as pessoas a atuar de forma mais social e ambientalmente responsável. Para isto, é necessário um processo de sensibilização para a relação existente entre a problemática ambiental, social e econômica.

Conhecimento – oferece informação básica aos estudantes, o que permite formar critérios para maior compreensão dos conceitos relacionados à problemática atual e que, ao mesmo tempo, possam atuar como agentes de mudança.

Aplicação de valores e princípios – a parte principal da Carta da Terra está orientada à ação e pode funcionar como um guia para estilos de vida mais sustentáveis.

Um chamado à ação – a Carta da Terra conclui com um chamado à ação através de alianças entre governos, sociedade civil e o setor privado.

Page 81: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra

81

É preciso que os processos atuais de formação promovam valores, estilos de vida e compor-tamento ético necessários para um futuro melhor para todos. Devemos nos atrever e tomar este desafi o de reinventar nossos processos educativos e abordagens pedagógicas para assegurar a construção de sociedades mais justas e sustentáveis.

Referências

Levando a Sustentabilidade às Classes de Aula: Um Guia da Carta da Terra para Educadores

Década das Nações Unidas da Educação para o Desenvolvimento Sustentável: documento fi nal; Plano Internacional de Implementação 2005http://www.unesco.org.br/publicacoes/livros/decadaeducacao/mostra_documento

Mirian Vilela é diretora do Centro Carta da Terra de Educação para o Desenvolvimento Sustentável, na Costa Rica.

Page 82: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Hist

ó

Page 83: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Hist

ó Parte 4 – Caderno de Atividades

INTRODUÇÃO

Aiêska Marinho Lacerda Silva

A idéia de colocar neste livro um caderno que comentasse as atividades realizadas durante o Projeto Jovem Cidadão Amigo da Natureza – PJCAN foi para que outros educadores pudessem refl etir sobre suas práticas pedagógicas diárias, em meio aos problemas de todo ambiente (e não meio ambiente) vividos no planeta Terra neste inicio de século XXI. Compartilhar.

Quando começamos a construir o PJCAN, estávamos diante de um grande desafi o: fazer com que os participantes entendessem que ele não era um projeto “pronto”, acabado, mas sim algo a ser feito por muitas mãos: adultas e muitas vezes experientes, dispostas a ajudar, outras adolescentes, ávidas por realizar, e muitas mãos infantis que queriam e podem construir um novo futuro.

Por isso o caderno de atividades agora no fi nal do livro, e não no início do projeto como uma linha diretriz. Ele é um dos resultados obtido ao longo de muitos exercícios, de muitas refl exões e práticas diárias, vividas nas escolas envolvidas no projeto.

A intenção fi losófi ca e pedagógica do PJCAN ao capacitar os professores, as comunidades bem como os estagiários − nossos “braços a campo”, que estiveram durante todo o tempo com os alunos dentro de cada escola participante − era e é que todos pudessem experimentar e mudar sua ótica na prática de ensinar, que não replicassem fórmulas, mas, sim, construíssem saberes; que ao ensinar, discutir, e vivenciar os princípios da Carta da Terra conseguissem fazer refl exões e análises locais, as quais tivessem real signifi cado para cada comunidade, levando-se em conta todas as relações que nela acontecem, e que, a partir dessa prática se promovesse o impulso necessário para que cada cidadão tome para si o rumo do seu destino e do seu processo de construção de aprendizado a partir do lugar onde vive.

Era enfrentar o desafi o de aprender e ensinar de forma global, planetária, e alfabetizar para a vida.

Page 84: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

84

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

O resultado dessas atividades é fruto da construção dos estagiários e de todos os educadores (aqui incluídos absolutamente todos que fazem parte do quadro de funcionários e voluntários) das escolas envolvidas no PJCAN, as da região do Pontal do Paranapanema e as da cidade de Sumaré.

As atividades são parte do resultado do PJCAN, outras partes sabemos que serão agregadas pela concretização do projeto escrito e implantado por cada uma das escolas envolvidas, como “lição de casa, comprometimento e engajamento na ação”.

O processo de construção dessas atividades é legítimo e merece ser comentado para que se possa ter uma idéia do modo que foi percorrido.

Precisa e deve ser melhorado, recriado, acrescido e multiplicado, assim é viver a Carta da Terra – um mais um nunca é igual a dois, é sempre igual a muitos, principalmente quando se pensa em crianças e jovens que ainda não podem caminhar sozinhos e que dependem das nossas atitudes e ações para lhes indicar a direção, tornar o trajeto menos duro, e construir pontes, para que se possa fazer travessias e escolhas ao longo da vida.

Era preciso repensar a escola, pô-la em causa. A que existia não funcionava - os professores precisavam mais de interrogações do que de certezas. Concluímos que só pode haver um projecto quando todos se conhecem entre si e se reconhecem em objectivos comuns. Apercebemo-nos que um dos maiores óbices ao desenvolvimento de projectos educativos consistia na prática de uma monodocência redutora que remetia os professores para o isolamento de espaços e tempos justapostos, entregues a si próprios e à crença numa especialização generalista. Percebemos que se há alunos com difi culdades de aprendizagem, também os professores têm difi culdades de ensino. Obrigar cada um a ser um outro-igual-a todos é negar a possibilidade de existir como pessoa livre e consciente [...] 9

O processo de construção e integração das atividades à rotina das escolas

No meio do caminho tinha uma pedratinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedrano meio do caminho tinha uma pedra.

Carlos Drummond de Andrade

Uma das primeiras “pedras” a ser vencida foi fazer entender a professores e coordenadores que trabalhar por projetos não é “arrumar mais serviço para eles” – e, para assegurar nosso propósito, a cada escola disponibilizamos um estagiário.10

9 Escola da Ponte. Disponível em: http://www.eb1-ponte-n1.rcts.pt/html2/portug/historia/historia.htm. Acesso em: 15/06/07.

10 Estimou-se uma demanda de um estagiário para cada 300 crianças.

Page 85: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 4 – Caderno de Atividades

85

Outra foi mostrar que, ao se trabalhar por projetos, o professor exerce o papel de mediador, de intercessor das interações. Sua função maior é ser facilitador, o “despertador”, “o provocador da coceira da curiosidade” que resulta em querer pesquisar; o professor deve ser “ajudante” no resgate da cultura local, “aliciador” ao unir saberes, e “cúmplice” em viver a educação de forma humana e planetária.

Unir a prática do PJCAN, nos currículos e cronogramas das escolas num ano letivo já iniciado (2006) e mostrar que os princípios da Carta da Terra não são modismos temporais, mas sim uma ferramenta pedagógica, foi outra pedra a ser transposta. As escolas não conheciam a Carta da Terra.

Para começarmos as ações e aproximações, tomamos por base no início dos trabalhos fazer análises refl exivas e caracterizações das escolas, questionários sobre infra-estrutura e dinâmica das escolas, questionários para professores, e as análises dos PCNs realizadas pelos estagiários em cada escola.

Sabíamos que os conteúdos das disciplinas deveriam ser trabalhados de forma conceitual, atitudinal e procedimental. Partimos do pressuposto que a grande maioria dos professores dominava a forma de ministrar seus conteúdos conceitualmente.

Por que não se constatavam mudanças e busca por soluções diante das situações nas localidades que se agravava a cada dia? “Repetência, violência, desânimo, descrédito, abandono, falta de respeito mútuo, desinteresse, e desequilíbrio. O que era preciso ser repensado? Refl etido e colocado em prática?”. Uma pedreira inteira: afi nal como se ensina a mudar? Basta querer ensinar? Como é possível colocar as idéias a funcionarem, como é possível romper paradigmas de prática da educação formal tão arraigados decorrentes das formações que cada um de nós professores temos nas universidades? Qual é o Projeto Político Pedagógico – PPP dessa escola? Tem a “cara da escola?” Como construí-lo, reconstruí-lo de forma legitima? Como inserir o PJCAN no PPP da escola?

Pegamos todas a pedras do caminho e fi zemos um caminho. Construir.

A aplicação das atividades nas escolas e comunidades

A cada encontro mensal, discutiam-se de um a dois princípios da Carta da Terra para Crianças, adaptação feita pelo Instituto Naia para o público infantil, ferramenta utilizada como geradora para se começar a discutir as relações e práticas da construção do aprendizado nas escolas.

Vale lembrar que todos os princípios da Carta da Terra, seja ela a para “adultos” (original) ou para crianças (adaptada), estão interligados, não é mandatório ater-se à “ordem que são apresentados” (seqüência numérica). Pode-se trabalhar alternadamente, de acordo com a situação vivida no momento é possível trabalhar em conjunto com outro princípio, aliar e otimizar o conteúdo de toda e qualquer disciplina, de qualquer tema ou eixo transversal, basta para isso ter visão sistêmica, integrativa e criativa na sua utilização.

Page 86: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

86

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

Todas as observações feitas nas visitas às escolas durante a supervisão a campo, e as informações trazidas pelos estagiários de inúmeras situações acontecidas durante o processo de ensino nas escolas foram os subsídios para a construção das atividades.

Algumas das situações encontradas, debatidas e trabalhadas, que geraram as atividades aplicadas

Por que a merenda servida é desperdiçada? Por que há excesso de pombos em algu-mas das escolas?11 Por que há escassez de água em algumas escolas? Qual o caminho que essa água percorre para chegar à escola? E até as residências? Qual a situação dos rios locais? Por que o córrego que passa atrás da escola virou esgoto? Se a escola estava feia, maltratada, discutia-se quem é o responsável por isso. Como tornar o ambiente mais agradável, fisicamente e emocionalmente para todos?

Por que a erosão está levando o pátio da escola barranco abaixo? Por que não temos muitas árvores nas escolas? O que é o cuidado da coisa coletiva, da coisa pública, das nossas coisas? Quanto e quando a comunidade participa das coisas da escola?

Por que alunos pequenos são agressivos com professores? Por que as crianças não podem comer com talheres (garfo e faca) e com pratos de vidro? Por que todos têm de estar em absoluto silêncio e são instados a “calarem as vozes” quando o professor expõe o tema da aula? Quando e como se participa da vida em comunidade? Como meu bairro surgiu? Por que hoje ele está assim? Como é a história da minha escola? Por que ela tem esse nome? Onde ela começou?

Onde estamos localizados, como funciona a escola, o comercio, a prefeitura? O que eles têm a ver com a escola, como são as relações entre o entorno da escola e a escola? Afinal, que local é esse? Que país é esse? O que isso tem a ver comigo? Conosco? Com o planeta? O que é mais importante agora e que podemos fazer juntos?

Com isso, violência, exclusão, miséria, maus-tratos, ética, desestruturação familiar, degradação do ambiente, poluição, merenda de má qualidade, atitudes, valores e prin-cípios, foram discutidos, debatidos, entendidos, revistos e praticados.

Acordos e “combinados” foram colocados em prática e levados a termo por todos.

Problemas e soluções buscados, discutidos e esmiuçados; pais, mães, tios, avós, dire-toras, professoras e todo o corpo docente das escolas; moradores e vizinhos chamados a participar, a dar depoimentos, ensinar, compartilhar de suas experiências.

11 Descobrimos que os pombos ali estavam pelos restos de merenda desperdiçada e jogada pelo pátio da escola.

Page 87: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 4 – Caderno de Atividades

87

12 Títulos de atividades, encontradas adiante.

Recursos

Cada atividade foi construída de acordo com os recursos disponíveis na localidade, nas escolas, e com os ativos que muitas vezes, muito embora disponíveis, eram difíceis de ser enxergados: reuso de materiais, reciclagem de outros, redução do uso de bens naturais como a água. Uso parcimonioso e compartilhado de outros recursos.

Idéias eram trazidas pelos estagiários. É para aprender brincando, fantasiam-se de palhaços e se ensina brincando. É para tratar de desperdício, vamos fazer um fi lme que fale disso. É para abordar a situação do bairro, vamos trazer os moradores mais antigos para que nos contem a história de como esse bairro começou e como chegou até aqui. A questão era atitude, sujeira na escola, falta de cidadania, falta de lazer para todos do bairro, constroem-se parques ecológicos. É para reaproveitar, vamos utilizar jornal e confeccionar caixas e mesas, e que possam servir de fonte de renda para muitos pais. A cada problema levantado, estudo e apresentação de idéias criativas: ervas medicinais, pomares, núcleos de reestruturação familiar, hortas.

Toda situação em que se enxergava a possibilidade de aprendizagem e vivência, cada um dos alunos e seus professores tiveram a oportunidade de refl etir e repensar valores e atitudes, fazer refl exões e praticar novas ações.

Foi assim que começamos a falar de tudo, a falar da relação de cada um com o espaço onde morava, com a escola onde estudava, com os professores e coordenadores, com o mundo,

Foi o início da apropriação e do sentimento de pertencimento, de fazer parte do lugar onde se vive, de entender os porquês, e de começar a se discutir o que queríamos e poderia ser transformado, juntos. Foi reatar a capacidade e o direito de sonhar; a possibilidade de colocar em prática alguns dos sonhos de experimentar que somos capazes de realizar, através da Árvore dos Sonhos, e também de desabafar cada um dos descontentamentos no Muro das Lamentações12.

A cada um dos princípios da Carta da Terra abordado e a cada atividade realizada eram descortinados um mundo de outras novas possibilidades, de trabalhos e de novas atividades sobre todos os conteúdos, sempre um desafi o novo de mostrar que trabalhar assim era possível. Inter, multi e transdisciplinaridade. Era como se jogar pedras num lago: círculos e mais círculos se abrindo sem fi m.

A cada dia as descobertas vêm acompanhadas de um leque de novos questionamentos; pode-se discutir o todo e o tudo que acontece diariamente nas nossas vidas e no lugar onde vivemos e com as pessoas que nos cercam.

Isso acontece tão naturalmente que muitas vezes não é preciso papel e lápis, giz e saliva, fi lmes e livros complexos ou outros recursos tecnológicos sofi sticados; é preciso ouvir e observar e estar pronto a participar e a agir.

Page 88: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

88

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

Muitas vezes, de tão simples no modo de fazer, as atividades eram consideradas muito complexas de se entender. E como suscitavam mudanças, mais complexas ainda de se colocar em prática.

Segundo Celso Antunes, trabalhar e implantar projetos é buscar a qualidade e a essência é buscar caminhos.

A criança, o adolescente que aprende a trabalhar em projetos, não aprende apenas coisas, ele aprende a aprender. É possível afi rmar que uma pessoa bem sucedida é uma pessoa que tem projetos. E que, portanto, quando aquela escola onde cresce trabalha com projetos, ele aprende uma metodologia de ação que acaba ajudando-o a ser uma criatura mais completa, a desenvolver um trabalho com mais efi ciência. Enquanto escolas que trabalham saberes podem sentir a perenidade destes saberes, trabalhar por projeto não, porque o projeto envolve mais a compreensão do aluno em uma metodologia de ação diante do desafi o do que o acúmulo de conhecimentos; isto envolve este tipo de perenidade.

Asseguramos que todos os participantes foram provocados e instigados a pensar incessantemente e de formas diversas, a construir a partir dos princípios da Carta da Terra as atividades e outras tantas e diversas formas de abordagem e novas práticas de ensinar e aprender. Façamos uso delas.

As atividades apresentadas validam as experiências e fatos do dia a dia da maioria das escolas do Brasil. Em conjunto, todos os envolvidos trataram das questões universais e locais, abordados principalmente sob a ótica dos quatro grandes eixos da Carta da Terra: integridade ecológica, justiça econômica, justiça social e democracia, não violência e paz.

Desejamos que durante a leitura das atividades13 cada participante do PJCAN possa encontrar um pouco de si, um pouco da enorme contribuição que nos deu, amorosa e esforçadamente para que se chegasse até aqui.

Aos demais, esperamos que no dia a dia da sua prática educacional e de ser humano na essência, todas as experiências e conhecimentos aqui relatados possam ser úteis, que sejam enriquecidas com o acréscimo do saber de cada um, e que solidariamente possamos ajudar a construir um caminho melhor para todos que vivem nesse planeta chamado Terra.

Aiêska Marinho Lacerda Silva é pedagoga da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, especialista em Gestão Ambiental pela Universidade de Santo Amaro – Unisa, em Administração de Organizações do 3º Setor – USP, e em Programas de Desenvolvimento Local e Humano pela Organização Internacional do Trabalho/Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas – OIT/Pnud. Consultora de desenvolvimento local e territorial e para a área de estratégias da cultura da cooperação pelo Sebrae/São Paulo, é supervisora pedagógica e capacitadora de programas de desenvolvimento humano e programas educacionais por meio do Instituto BioMA.

13 Não pudemos colocar todas, por isso elegemos as de maior impacto de mudança e signifi cação, dentro dos contextos de cada escola e a cada período em que foram realizadas.

Page 89: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 4 – Caderno de Atividades

89

EDUCAR PARA REAPROXIMAR DA TERRA14

Kleber Maia Marinho

A princípio, a proposta parece clara e simples, mas, paradoxalmente, não deixa de ser complexa e laboriosa.

O uso do prefi xo “re” ligado ao verbo − “aproximar” − indica que em outro momento a Terra nos era próxima, ou seja, que já fomos íntimos. A escolha do verbo e não do substantivo − “reaproximação” − é proposital, pois à medida que este fecha, nomeia e, portanto conclui, aquele abre, atua variavelmente, fl exiona-se tal qual um camaleão que se adapta ao meio conforme a exigência plural de cada situação vivida.

Para entender o que ocorre com a Terra hoje, há de se retornar ao passado e refl etir sobre como se deu o desenvolvimento da consciência ao longo da história da humanidade. Impossível discriminar um do outro; aliás, nem haveria de ser diferente, pois foi justamente o processo de aquisição da consciência que nos tornou Homo sapiens sapiens, que, por sua vez, ironicamente, isso sim constitui um fato que nos discrimina do resto dos seres vivos.

Ao analisar desenhos, mitos de criação e todo registro histórico do humano primitivo, verifi ca-se a projeção de Deus sobre a fi gura de animais (lobo, urso e outros), bem como sobre elementos da natureza tal qual o Sol e a Lua. Ora seria, por exemplo, uma loba divina, que ao salvar os irmãos Rômulo e Remo origina o povo romano, ora um Deus Sol, que ao passear pelo céu em uma carruagem puxada por cavalos traz luz e vida para a Terra.

Portanto, nessa fase, o ser humano vivia em um estado de imersão, por assim dizer, com a Terra. Sendo assim, natureza e ser humano faziam parte de uma totalidade, na qual o último estava de fato incluído no primeiro e vice-versa. Não havia a separação comumente encontrada nos dias vigentes, possível de ser constatada ao indagar crianças e até adultos: “o que é natureza?” E, obter como resposta: plantas, bichos árvores, matas e, quase nunca: homem, mulher, ser humano, eu ou você. Entretanto, na época primitiva a natureza apresentava-se de forma anímica, fazendo-se próxima do humano em um convívio de totalidade, isto é, era parte infl uente e integrante do dia-a-dia do humano, fosse para caçar, celebrar, prantear, rezar, entre outras tantas atividades cotidianas.

Nesse sentido, é possível delinear um paralelo quanto ao desenvolvimento da consciência da criança em relação ao seu mundo circundante. No início da vida, não há uma autopercepção propriamente constituída por parte do bebê no tocante ao entorno universal. Para o recém- nascido, a mãe é sua principal fonte de referência e reconhecimento. Nesse estágio, a criança

14 Esta é a primeira parte de um texto escrito em duas partes - que virá a seguir -, por dois diferentes autores, cuja proposta fi nal une as idéias de ambos.

Page 90: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

90

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

está unida à mãe em um processo que a psicologia chama de simbiose, ou seja, seria como se a mãe, sua voz, seu rosto e tudo mais fosse uma extensão do bebê. Lacan (1998), usando o espelho como metáfora, explica que, nos primeiros meses de vida, a criança olha-se no espelho e percebe sua imagem como se fosse um outro corpo real, do qual tenta aproximação e até se apoderar. Nesse momento, ela não possui uma imagem da totalidade de seu corpo, o qual se confi gura despedaçado (corps morcelé). Aos poucos, percebe que o refl exo no espelho não é um ser real, mas uma imagem e, por isso, pára de procurá-lo atrás do espelho. E, fi nalmente, em uma última fase, reconhece que a imagem é o refl exo de si; ocasião em que se nota um grande interesse pelo movimento do corpo, pela ação e por brincar.

Resulta que somente após um processo lento e gradual a criança começa se aperceber no mundo como um ser autônomo, sendo que dependerá sobretudo da qualidade e do suporte do vínculo parental estabelecido para que ocorra o salutar desenvolvimento da autonomia com confi ança, equilíbrio e plenitude.

Poderíamos então notar que em ambos os casos mencionados, tanto o homem primitivo quanto o bebê pertenceram a um estágio de mergulho no inconsciente, isto é, estiveram imersos em um todo indiferenciado cuja discriminação inexiste. Não há constituição do ego/eu. Portanto, resguardadas as diferenças, podemos traçar uma analogia entre a passagem ao estágio de Homo sapiens sapiens15, pelo menos no que tange o desenvolvimento da consciência, como equivalente ao que ocorre com uma criança entre o nascer e os primeiros meses de vida.

Dessa forma, análogo à criança, o ser humano foi experimentando a vida e formando seu ego. Inevitavelmente, chamamos isso de “evolução”, o que, de certo modo, signifi ca dizer que atribuímos à evolução tudo que pertence à consciência, os aspectos formais, racionais e todos os códigos normativos, jamais aspectos do inconsciente como, por exemplo, a criatividade, o sentimento, a sensação ou a intuição.

Entender esse processo, ajuda-nos a compreender o caminho da história humana até chegar ao panorama atual.

Saímos de um estágio de vida planetária primitiva, indiferenciado e predominado pelo estado inconsciente, regido pelos instintos de sobrevivência cujo centro da vida era identifi cado na coletividade, sem discriminação ou noção de autonomia. Deu-se, por essa via, o processo histórico de mundo que hoje conhecemos. O ser humano então começa a ter consciência, experimentar o mundo, conhecer instrumentos, mecanismos e, fi nalmente, adquire conhecimento. Em seguida, inicia-se o processo de trabalho e o Homo sapiens é fragmentado, torna-se quase somente Homo faber,

15 Homo sapiens (homem sábio): nome da espécie homem na nomenclatura de Lineu, cunhado pela primeira vez na obra Sistema da Natureza, em 1735. Mais adiante a expressão foi retomada por Henri Bergson (2006) para indicar o homem, único animal inteligente em face aos demais.Homo faber (homem artífi ce): locução também empregada por Henri Bergson (2006) para designar o homem primitivo ante a neces-sidade de forjar ele próprio os utensílios indispensáveis à manutenção da vida. ARENDT (1991), ao retomar tal conceito, produz um bom apanhado crítico sobre o histórico do Homo faber.Homo ludens (homem lúdico): refere-se à importância do lúdico, inerente ao homem, nas realizações humanas, especialmente nas de caráter intelectual. O historiador holandês Huizinga (2001) foi um dos primeiros a enfatizar o termo, que deu origem a um movi-mento contracultural que se opõe ao Homo faber, isto é, aquele que faz.

Page 91: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 4 – Caderno de Atividades

91

deixando o Homo ludens à míngua. Partindo do Renascimento, passa-se pela Revolução Industrial e, enfi m, chega-se até a Revolução Francesa para defi nitivamente saudar a razão com luzes, êxtase e vibração. A partir de então, após esse longo caminho, o mundo não seria mais o mesmo. A construção epistemológica não teria outra chance, a não ser seguir a mesma trilha empirista, que nega a fé dos tempos teocêntricos com outra fé tão equivalente quanto aquela, cujo Deus trocava apenas seu nome para Razão, a qual, desta vez, aplicava toda Sua força à ciência monolítica.

Sobre esse ponto, faz-se interessante notar que a psique age por função compensatória, ou seja, busca o equilíbrio (homeostase) por meio de um princípio autônomo de auto-regulação (JUNG, 1984, 1991, 2000). Portanto, o fenômeno de fusão com o inconsciente que existia originalmente entre ser humano e mundo, verifi cado também entre indivíduo e grupo (NEUMANN, 1995), dirigiu-se ao seu oposto, que signifi ca a saída do ego de um núcleo, digamos, grupal, coletivo e inconsciente rumo ao nascimento da consciência, à conquista da individualidade. Assim, o ser humano que antes era parte integrante da psique coletiva do seu grupo, enveredou pelo caminho da unicidade constitutiva do indivíduo, que pode ser compreendida como uma busca psíquica compensatória natural. A questão crucial é o grau da medida, visto que não é possível residir em apenas uma das polaridades, pelo menos, sem que haja sérios agravos e danos.

Erro foi, nesse percurso, acreditar que o pensamento pré-logico constituía incapacidade de pensar logicamente. Contrário ao que a corrente racional tentou promover por ignorância ou preconceito, o ser primitivo − assim como, por exemplo, o índio − sempre foi capaz de tal atributo, mas, obviamente, inserido em uma cosmovisão orientada por uma logicidade diferente do ser humano secularizado, pois a orientação, antes imbuída pelo inconsciente, guiava-se por funções psicológicas esquecidas como o sentimento, a intuição, a sensação, e não meramente regida pela única e exclusiva lógica da consciência e do pensamento que sobrepuja qualquer outra forma de interação com o mundo (NEUMANN, 1995).

Desse modo, o ser humano foi fragmentado e se tornou um ser monolítico, surdo e insensível aos seus próprios recursos humanos, que continua a insistir em agir como se fosse possível compartimentar sentimento, sensação, intuição e pensamento e, ainda, como se não bastasse, consegue outra subdivisão de si em corpo e mente.

A visão compartimentada, cientifi cista, linear, cartesiana, estruturalista, piagetiana, vigostkiana, entre inúmeras modalidades construtivistas arraigadas nos discursos de métodos, louvados especialmente no século XVII, conseguiu fundar o ser humano disciplinar, socialmente enquadrado e regrado, que para dizer o mínimo, tornou-se monocular, senão defi ciente visual (D’AMBROSIO, 2001).

As fi chas foram apostadas no modelo binômico taylorista/fordista cuja estrutura de trabalho valorou o potencial humano como um produto fi nal da razão encontrada entre a relação: efi ciência e efi cácia, que, mais uma vez, fez-nos cindir, mesurando o humano em tempo produtivo e agente de ação técnico-linear; era o nascedouro do especialista.

Page 92: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

92

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

Nesse cenário, não fi ca tão difícil compreender qual rumo a concepção de propriedade tomou em nossa história. O ser humano antes coletivo não conseguia se diferenciar da coletividade, do seu meio, o qual o incorporava para si. Então, parte para o pólo oposto, individualiza cada vez mais sua ação e fragmenta seu ser em busca da amplitude do conhecimento, de novos valores e, por conseguinte, reconhecimento social. Ocorre, portanto, a inversão de uma ordem que outrora se estruturava em uma instância macro, para o universo micro.

A intenção é “reduzir”, não como se começa a apregoar na atualidade, em termos de estabelecer uma redução que pretende frear o consumo excessivo, economizar a fi m de evitar o esgotamento, para preservar, não!

A idéia é outra, a redução havia de ocorrer porque a construção epistemológica pautava-se exclusivamente no método cartesiano, que se não teve êxito em bem conduzir a própria razão e encontrar a Verdade nas ciências16, com certeza levou o humano à fragmentação que, por meio do processo de frenesi pela divisão do método científi co, conduziu sim o próprio pensamento ao seu menor grau de escala, ao direcionar o pensar sob a tutela da valoração do que se pretende conseguir a partir do secionamento, até chegar ao tamanho mínimo, e muito melhor se o resultado for obtido em tempo mínimo, adaptável ao menor espaço, com custo mínimo, tal qual se aprecia nos celulares, palmtops e afi ns. A isso, denominamos tecnologia. A tentativa é reduzir, por exemplo, os objetos para que caibam em qualquer lugar que estejamos, pois tudo deve se adequar à utilidade, ao nosso serviço e desejo − ao encontro do legado cartesiano. Na mesma vertente, há de se reduzir também o tempo de tudo, que por curiosa contradição, quando atingido, serve para que se obtenha mais tempo para fazer mais, nunca menos; uma lógica temporal inatingível. Vale aqui ressaltar que não se trata de consubstanciar uma crítica alicerçada em um pensamento nostálgico, purista ou ingênuo, que rema na contramão do progresso ou da tecnologia, a qual, diga-se de passagem, é extremamente útil e bem-vinda, mas a pretensão é refl etir sobre o ônus que nos acarretou esse mergulho da busca do conhecimento/consciência, pois ao que parece essa imersão, talvez, chegue − se já não estiver − em fundo equivalente àquele dos nossos antepassados, porém pelo lado inverso.

Submerso nessa condição, a visão de mundo do ser humano acabou também reduzindo seu olhar somente ao local setorial, voltado ao micro, sem fazer a ponte com o macro, pois em tal estado de fragmentação impossível seria sopesar o fi el da balança, o qual inevitavelmente pendeu apenas para um único lado. Longe da proposta de Pascal − que antecipava a transdisciplinaridade − de que “o todo está na parte e a parte está no todo” (PASCAL apud MORIN, 2000, p. 81). Não havia chance ao olhar holístico inserido em movimento espiral, mas somente o de estrutura piramidal que corria em lado único e exclusivamente vertical.

A “descoberta” colonizadora − melhor colocada sobre o termo “invasão” (GAMBINI, 2000) − soube instaurar os ensinamentos adquiridos desde os códigos romanos de propriedade, caracterizados pelo direito absoluto e pleno que davam garantias de poder de uso, gozo e disposição perpétua

16 Referência ao subtítulo da notória obra de Descartes Discurso [sobre o] do Método, conforme segue: “Para Bem Conduzir a Própria Razão e Procurar e Verdade nas Ciências” (DESCARTES, 1996, p. 61).

Page 93: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 4 – Caderno de Atividades

93

e exclusiva, a qual fazia o ser humano aderir ao espaço, tornando-o posse, inclusive dando-lhe o direito de reaver a propriedade ao detentor por diversas maneiras (D’AMBROSIO, 2001). Na idéia de “descoberta” − palavra cujo fascínio semântico tanto ludibriou −, imprime-se a posse do outro, a qual anula, despreza a origem e, ainda, consegue fazer incutir no “descoberto” a mesma crença. A isso, em outras palavras, Gambini (2000) coloca que a formação de nossa identidade já parte de uma história fantástica, a qual, à diferença de outros povos, surge como conseqüência de um feito extraordinário. Tal idéia:

[...] implica que tudo que estava ali apenas à espera de ser achado, como um tronco fl utuante que o mar traz até a praia, como se a vastidão toda fosse terra de ninguém. Quando um sujeito se apossa de um objeto não identifi cado, imediatamente surge a noção de que os habitantes dessa terra sem nome, sem dono e sem passado estavam ali como peças de cenário, desprovidos de qualquer direito, até mesmo o de poderem continuar sendo o que sempre haviam sido (GAMBINI, 2000, p. 21).

O tema da conseqüência da idéia de Paraíso que habitava a mente dos colonizadores europeus já foi exaustivamente discutido por autores como Bellah (1994), Gambini (2000), Holanda (1969), Junqueira (2001a, 2001b, 2003) e até, de certo modo, Tocqueville (1977).

Prevaleceu, nesse confl ito, a concepção do colonizador, do estrangeiro, do outro que fez com que a Terra e todos os recursos naturais, outrora bem comuns, fossem transformados e submetidos ao pensamento “lógico”, isto é, ao sistema cultural, sociopolítico e econômico da metrópole. Usurpou-se a identidade alheia e tudo nela envolvido, fazendo-nos um mal pior, crer que nossa era a identidade e desejo do outro. Construímos e incorporamos a identidade daquele que estabelecia uma relação apenas de uso para fi ns próprios de acúmulo de riqueza em forma de bens, sem que houvesse qualquer comprometimento com a Terra, pois não havia sentimento de pertença, ou identifi cação. As terras exploradas não pertenciam a ninguém, mas sim a quem as “descobrissem”; o outro que ali vivia era selvagem, fértil forma humana a serviço de projeções européias que ora o identifi cava como mal, ora como bon sauvage, tal qual Rousseau veio a propor mais tarde; porém, o que ninguém enxerga era o que ali factualmente estava. O sentimento de bem comum, preocupação ambiental ou respeito ao lugar do outro, as diferenças e valores semelhantes são invenções contemporâneas deveras incipientes, que só vieram à tona por questões emergenciais, falta de saída, medo e outros quesitos ainda impulsionados pela lógica individualista de uma política neoliberal que quer preservar para salvar o próprio pescoço ou, quando muito elaborado, de gerações ‘suas’ futuras...o outro? Quem é o outro?

Contudo, as atividades educacionais propostas que seguem neste livro com certeza não resolverão grandes questões ambientais ou salvarão o mundo, mas lançaram nas mãos de quem as fez, de quem participou delas e lançarão nas de quem agora nos lê sementes; um fi o de refl exão que poderá multiplicar uma idéia.

Já passa da hora de trabalhar, em escolas, a transdisciplinaridade, fundamentada em um pensamento que vê, quer e enxerga a vida de modo fl uido, sistêmico, interligado e relacionado

Page 94: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

94

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

por trocas. Não há mais como imaginar um campo disciplinar do saber e do conhecimento. O centro do saber e do conhecimento está em toda parte e com todos. Já é mais do que sabido que a construção científi ca não é puramente empírica e que a própria construção do saber e do conhecimento é axiomática, pois não há uma relação de inferência igual à outra no mundo, mesmo que seja observada sob conceito formal idêntico.

As proposições colocadas nos eixos transversais das atividades podem ser visíveis em qualquer ação cotidiana do indivíduo; por isso, uma vez refl etida na escola é possível que seja levada para a família, para a comunidade local e, com muita esperança e fé, chegue a mudar o pensamento futuro.

Impossível pensar a escola, a vida e o futuro do planeta sem considerar questões postas nos princípios e compromissos da Carta da Terra, já tão debatidos neste livro e ampliados nas es-colas com as crianças por meio das atividades “inter-trans-pluri-disciplinares” que trabalharam temas urgentes como ética, diversidade, multiculturalismo, intraculturalidade, transcultura-lidade, respeito às diferenças e às minorias, troca de saberes, resgate histórico, tradições, cultura popular, participação comunitária, cooperação, trabalho em rede, coletividade, cida-dania, conscientização ambiental, economia solidária, sustentabilidade, preservação do patri-mônio comum e do trabalho alheio, alteridade, identidade, saúde, gênero, desenvolvimento humano...e, se não esquecemos algum, com a vida.

Para terminar esta primeira parte, fi ca uma mensagem de Heidegger (1973, apud BUZZI, 2001, p. 197) sobre ensinar:

É bem sabido que ensinar é ainda mais difícil que aprender. Mas raramente se pensa nisso. Por que ensinar é mais difícil que aprender? Não porque o mestre deva possuir um maior acervo de conhecimentos e os ter sempre à disposição. Ensinar é mais difícil do que aprender porque ensinar quer dizer deixar aprender. Aquele que verdadeiramente ensina não faz aprender nenhuma outra coisa que não seja o aprender. É por isso que o seu fazer causa muitas vezes a impressão que junto dele nada se aprende. Isso acontece porque inconsideradamente entendemos por aprender a só aquisição de conhecimentos utilizáveis. O mestre que ensina ultrapassa os alunos que aprendem somente nisto: que ele deve aprender ainda muito mais do que eles, porque deve aprender a deixar aprender. O mestre deve poder ser mais ensinável [sic] que os alunos. O mestre é muito menos seguro do seu ofício que os alunos do seu. Por isso, no relacionamento do mestre que ensina e dos alunos que aprendem, quando o relacionamento for verdadeiro, jamais entram em jogo a autoridade de quem sabe muito nem a infl uência autoritária do representante magisterial.

Page 95: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 4 – Caderno de Atividades

95

Por causa disso é ainda uma grandeza ser mestre – que é bem outra coisa que ser professor célebre. Se hoje – onde tudo é medido sobre o que é baixo e conforme ao que é baixo, por exemplo, sobre o lucro – ninguém mais deseja ser mestre, isso é devido sem dúvida ao que esta grande coisa implica e a grandeza de si própria.

Kleber Maia Marinho é educador, coordenador pedagógico, autor de livros didáticos para o ensino médio, tradutor-intérprete, psicólogo e mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.

Page 96: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

96

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

REAPROXIMAR PELA ESPIRITUALIDADE17

Denise Lopes de Souza

A leitura do pensamento de Heidegger exposto no texto anterior permite interpretá-lo como uma representação da complexidade e da riqueza do que é ensinar. Felizmente já sabemos que a educação ultrapassa os limites técnicos e está sedenta por reaproximar-se não só do planeta, mas também do próprio fato de ser humano. A vida escolar não pode mais ser considerada como somente o ensino de disciplinas como matemática, português ou ciências, mas sim como a refl exão sobre o que somos na totalidade e do que precisamos para viver em harmonia.

Ao pesquisar o sentido etimológico da palavra “educar”, encontra-se a origem latina “educare” que signifi ca literalmente “conduzir para fora” (VALENTE, 1993), ou seja, desenvolver algo já latente. Assim, a educação deve assumir como objetivo a promoção do desenvolvimento prático das habilidades inatas no ser humano entre as quais está, naturalmente, a interação dos indivíduos com o meio em que vivem. A convivência comunitária das pessoas pode ser representada por uma complexa rede de inter-relações que abrange diversos aspectos: culturais, individuais, ambientais, sociais, étnicos, religiosos, psicológicos e espirituais. Em outras palavras, a educação deve tomar para si a preocupação em “conduzir para fora” aptidões inatas nos indivíduos que os permitam interagir harmoniosamente com os aspectos acima citados.

No entanto, o que temos visto em nosso processo educacional é tanto a fragmentação disciplinar que impossibilita o entendimento das coisas em sua complexidade e interação com o meio, quanto o foco da educação voltado para o pragmatismo. Conforme já abordado, a Revolução Industrial exerceu marcante infl uência na construção do pensamento moderno e, conseqüentemente, no processo educacional, o qual se desenvolveu direcionado exclusivamente para o mercado. Somos herdeiros de uma colonização que não passou de uma empreitada comercial, o que resultou na comercialização até de seres humanos. Tendo em vista este ambiente colonizador, “não teria sido possível um tipo de relações humanas que pudesse criar disposições mentais fl exíveis capazes de levar o homem a formas de solidariedade que não fossem as exclusivamente privadas” (FREIRE, 1967, p. 73). Conseqüentemente, tampouco teria sido possível o desenvolvimento de um sistema educacional que permitisse refl exões sobre a complexidade de “ser” humano. É possível que muito desse legado de fragmentação advenha do afastamento do humano daquele estado indiferenciado com o planeta, o qual concebia a vida em sua totalidade, tendo o respeito ao ambiente como um dado regente natural de seu comportamento, conforme já comentado.

Como herança de um processo pedagógico desfocado, que menospreza o ambiente e o humano como ser vivo nele integralmente inserido, enfrentamos atualmente diversos problemas, tais como injustiça social, degradação da fauna e da fl ora, fome, violência, falta de solidariedade e de ética.

17 Esta é a segunda parte do texto, escrita pela segunda autora.

Page 97: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 4 – Caderno de Atividades

97

Felizmente nasce uma “contracorrente, ainda tímida, de emancipação em relação à tirania onipresente do dinheiro, que se busca contrabalançar por relações humanas e solidárias, fazendo retroceder o reino do lucro”, bem como outra “contracorrente, também tímida, que, em reação ao desencadeamento da violência, nutre éticas de pacifi cação das almas e das mentes” (MORIN, 2001, p. 73).

Acredita-se que a busca desenfreada por lucro, a qual subestima a solidariedade, o respeito, a ética e a paz, esteja enraizada na desconsideração, durante o processo educacional, de questões integralmente humanas. Como conseqüência, a representação de “ser” humano perdeu sua importância na prática educacional diária e, por isso, não raramente nos deparamos em situações nas quais os ditos humanos se comportam como completamente dissociados da solidariedade, ética e respeito − habilidades que deveriam ter sido desenvolvidas no processo de educação do indivíduo, e que um dia fi zeram parte natural da convivência comunitária. Questões como quem somos? Onde estamos? De onde viemos? E, para onde vamos? (MORIN, 2001) são inseparáveis e devem, portanto, estar presentes no processo de desenvolvimento educacional.

O que se pretende com este texto, portanto, é a sugestão do resgate da refl exão sobre o processo de “ser” humano, a saber: tornar a espiritualidade participante ativa do processo pedagógico, ou seja, como disciplina curricular.

Sabemos que o conceito de “espiritualidade” é difuso no universo acadêmico, uma vez que não é de fácil defi nição. Por um outro lado, jamais deixou de se fazer presente na vida de qualquer cidadão, visto que é parte da natureza humana. Sendo assim, abandonaremos a conjectura retórica que insiste em defi nir as coisas em seus blocos paradigmáticos e aceitaremos o termo “espiritualidade” como o “contínuo desenvolvimento da identidade” (TISDELL e TOLLIVER, 2003, p. 374, tradução nossa). Esta será a defi nição norteadora deste texto. Entenderemos a espiritualidade como um processo contínuo de autoconhecimento, o que tem como conseqüência a interação com o meio em todos os aspectos: ambientais, culturais, étnicos, sociais, psicológicos, políticos. Contemporaneamente, “o holismo introduziu a idéia de espiritualidade não como religião ou crença em Deus, mas como busca permanente de sentido para a vida. A espiritualidade é algo pessoal, embora construída socialmente, que está presente no ser humano desde a infância” (GADOTTI, 2000, p.78). Portanto, a inclusão da refl exão sobre a espiritualidade no processo pedagógico requer fi rme consideração.

A falta de refl exão sobre o autoconhecimento durante a prática educacional cotidiana pode resultar em problemas, os quais, normalmente, não são associados a tal ausência. Difi cilmente conseguimos, por exemplo, reconhecer a violência mostrada pelo aluno em sala de aula como sintoma de uma possível crise de identidade do mesmo. “Parece não se acreditar que o jovem tenha angústias e incertezas existenciais. Não se percebe que muito do que não se admite – e mesmo se reprime – do comportamento juvenil está vinculado a crises de espiritualidade” (D´AMBROSIO, 2001, p.150) .

Page 98: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

98

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

Os principais referenciais teóricos pesquisados para este texto, felizmente, apontam para propostas pedagógicas fundamentadas no resgate do conhecimento do ser humano como um todo. Frente à miríade de conceitos que devem ser abordados no processo educacional, o que determina uma nova relação com o saber, propõe-se um abandono de paradigmas lineares, paralelos ou piramidais, os quais representam estruturas nivelares e hierárquicas, em substituição por um saber contínuo, em fl uxo, não linear, complexo (LEVY, 2000). O saber agora deve ser guiado por paradigmas tão fl exíveis e complexos, a saber, transdisciplinaridade, interdisciplinaridade, pluri/polidisciplinaridade, quanto a complexidade que enfrentamos no dia-a-dia. Esses referenciais teóricos apontam, acredita-se, para o resgate da espiritualidade:

As crenças nos deuses e nas idéias não podem ser reduzidas a ilusões ou superstições: possuem raízes que mergulham nas profundezas antropológicas; referem-se ao ser humano em sua natureza. Há relação manifesta ou subterrânea entre o psiquismo, a afetividade, a magia, o mito, a religião. Existe ao mesmo tempo unidade e dualidade entre Homo faber, Homo sapiens e Homo demens. E, no ser humano, o desenvolvimento do conhecimento racional-empírico-técnico jamais anulou o conhecimento simbólico, mítico, mágico ou poético (MORIN, 2001, p. 59).

Para Edgar Morin:

Educar para compreender matemática ou uma disciplina determinada é uma coisa; educação para a compreensão humana é outra. Nela encontra-se a missão propriamente espiritual da educação: ensinar a compreensão entre as pessoas como condição e garantia da solidariedade intelectual e moral da humanidade (MORIN, 2001, p. 93).

Moacir Gadotti, por sua vez, afi rma que atualmente estamos nos conscientizando que “o sentido de nossas vidas não está separado do sentido do próprio planeta (GADOTTI, 2000, p. 77, grifo do autor)”, ou seja, educar para a compreensão do planeta implica em educar também para o sentido de nossas próprias vidas, o que, conseqüentemente, implica na refl exão sobre a espiritualidade.

Faz-se necessário, entretanto, esclarecer que a sugestão pela refl exão sobre a “espiritualidade” no processo educacional não é o mesmo que sugerir “ensino religioso”, o que poderia, inclusive, resultar no desenvolvimento do temido fundamentalismo preconceituoso que considera o seu próprio ponto de vista como superior aos outros. Embora a inclusão da refl exão sobre a espiritualidade no processo educacional − o que provavelmente nos permitiria reaproximar do planeta − pareça algo utópico e inatingível, acreditamos válido insistir na consideração da problemática apresentada, uma vez que, inegavelmente, deparamo-nos diariamente com a violência, injustiça social, falta de solidariedade, problemas ambientais, que nos atingem direta ou indiretamente. Em outras palavras, não existe mais espaço para cruzar os braços e esperar que os problemas sejam resolvidos por outros. É hora de nos munirmos de nossos conhecimentos e boa vontade a fi m de trabalhar efetivamente pela mudança de paradigmas obsoletos, deixando de lado o temor à criatividade e abrindo corajosamente as portas para o novo. Alguns já se mostram altamente engajados com o processo de melhora e mudança

Page 99: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 4 – Caderno de Atividades

99

de nosso sistema pedagógico. Podemos mencionar as reformas curriculares na Espanha e no Brasil que reconhecem a importância de temas “transdisciplinares ou transversais como: ética, cidadania, diversidade cultural, meio ambiente, saúde, sexualidade, paz, não violência, trabalho e consumo” (GADOTTI, 2000, p. 93) no cotidiano escolar. O engajamento de algumas pessoas envolvidas com a educação já determina o primeiro passo para a mudança. Iniciativas como as do trabalho feito no Pontal do Paranapanema confi rmam a existência no Brasil da contracorrente comentada por Edgard Morin, que luta contra a injustiça, a degradação do ambiente, a desigualdade social, a violência, o preconceito, a fome, a tristeza, a crise espiritual que enfrentamos em nosso núcleo social.

Os educadores devem, entretanto, estar cientes que essa proposta de renovação de paradigmas é um processo lento. De qualquer forma, embora alguns conceitos demorem anos para “brotar”, bem sabemos que, uma vez enraizados, perdurarão por muitos anos, como têm perdurado os velhos conceitos de educação linear, hierárquica, dual e fragmentada, do tipo “eu ensino, tu aprendes”, com a qual convivemos atualmente. Com a nossa refl exão certamente podemos nos incluir entre aqueles participantes do processo de mudança que pedem seu espaço na prática pedagógica vigente. Ainda que não vejamos com nossos olhos um país onde a injustiça, a violência e o desrespeito não mais imperem, podemos estar certos que participamos da mudança. Talvez estejamos plantando as sementes de uma educação que substituirá o “eu ensino, tu aprendes” pelo “compartilhamos criativa e mutuamente ensino e aprendizagem de forma respeitosa, solidária e ética”.

Sugestão para reaproximar

Embora a questão da educação tenha sido exaustivamente discutida nos últimos anos, acreditamos que toda a refl exão seja válida no sentido de representar, pelo menos, uma reavaliação da prática exercida. Apoiamos a efetividade de todas as críticas, porém acreditamos que mais efi cazes são aquelas que apresentam uma proposta concreta de alteração do que já não mais surte o efeito que esperamos, ao contrário daquelas discussões retóricas que belamente apresentam o problema, mas raramente incorrem no risco de sugerir, de maneira prática, propostas de mudança. Considerando, portanto, a refl exão ora exposta, apresentamos uma proposta pedagógica objetiva: a inclusão da Carta da Terra e, conseqüentemente, a contemplação de seus princípios, como parte integrante da grade curricular escolar que, em última instância, visa tornar a espiritualidade diálogo constante e permanente no cotidiano escolar.

O que se propõe é, sobretudo, a prática da auto-refl exão e da busca pelo autoconhecimento, no cotidiano escolar, visto que “a incompreensão de si é fonte muito importante da incompreensão de outro” (MORIN, 2001, p. 97), e resulta em violência, preconceito e intransigência. É evidente que a sugestão tampouco deve ser compreendida como mais uma mera obrigação disciplinar, aquela que nos amarra aos conceitos pré-estabelecidos de avaliação e limita a criatividade do educador. Pretende-se, sim, que os princípios da Carta da Terra sejam fi lhos do uso autônomo e criativo do processo educacional por intermédio da refl exão sobre a espiritualidade e que essa

Page 100: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

100

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

se transforme efetivamente em projetos voltados ao benefício da comunidade, o que pode ser usado, inclusive, como forma de avaliação da disciplina. O intuito é que futuramente o educando seja capaz de alcançar um nível de desenvolvimento que espelhe a solidariedade, o respeito, em seu mais abrangente alcance, e a ética como partes integrantes de seu cotidiano.

As atividades conduzidas no Pontal do Paranapanema representam o início de uma refl exão que consideramos essencial no processo educacional vigente. Por isso, acreditamos que, da mesma maneira que os alunos têm em seu currículo escolar disciplinas como matemática, português, ciências, entre outros, também deveriam ter “aula de Carta da Terra”. Essa aula seria a oportunidade para a refl exão sobre os seguintes temas:

Ética• Diversidade• Multiculturalismo• Intraculturalidade• Transculturalidade• Respeito às diferenças físicas, étnicas, culturais e religiosas• Cidadania• Solidariedade• Cooperação• Conscientização ambiental• Trabalho em rede• Coletividade• Conceitos ligados à saúde• Troca de saberes• Resgate histórico• Cultura popular• Tradições folclóricas• Participação comunitária• Economia solidária• Consumo sustentável• Respeito às minorias• Preservação do patrimônio comum• Alteridade• Espiritualidade• Processos de sustentabilidade• Gênero• Desenvolvimento humano•

Page 101: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 4 – Caderno de Atividades

101

A liberdade de criar, principalmente no tocante aos temas a serem trabalhados, deve ser preservada em sala de aula. As atividades conduzidas no Pontal do Paranapanema representam um ótimo exemplo de como se trabalhar com tais temas, visto que a criatividade, a espontaneidade e a construção compartilhada foram eixos condutores da apresentação de temas complexos às crianças.

Acreditamos que tais atividades, entretanto, sempre serão melhores aproveitadas quando revertidas em projetos práticos voltados ao benefício ou à conscientização da comunidade, tal qual ocorre na atividade “Campanha do leite”, por exemplo. Sugerimos, portanto, que o parâmetro de avaliação da “disciplina Carta da Terra” seja construído por meio do resultado do envolvimento com a comunidade. Se possível, tornando os alunos responsáveis por suas próprias avaliações no desempenho de seus projetos, levando em conta o resultado que geraram de fato em termos de mudança e mobilização comunitária e/ou social ou por aquilo que tal projeto conseguiu trazer à tona enquanto iniciativa ou potencial, a despeito do resultado ter sido positivo ou não sob o ponto de vista prático, material ou concreto e, enfi m, promover a capacidade de percepção que vários aspectos são abordados quando se desenvolve uma atividade como esta. Ainda no caso da “Campanha do leite”, o educador poderia, por exemplo, trabalhar matemática ao contar as caixas de leite, geometria ao refl etir sobre o formato das caixas, noção de distância ao refl etir sobre o tempo gasto para se chegar ao local de distribuição, e assim por diante. Além disso, temas como solidariedade são claramente também trabalhados com tal atividade, por exemplo, princípios de participação e economia solidária. É evidente que tais refl exões devem ser adaptadas de acordo com a idade das crianças, utilizando-se de linguagem que favoreça a compreensão de que a convivência em comunidade é sinônimo de uma complexa rede de fatores que determinam seu funcionamento e, conseqüentemente, o mesmo ocorre com o aprendizado.

Denise Lopes de Souza é educadora, psicóloga e mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP

Referências

ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.

BELLAH, R. The broken covenant: American civil religion in time of trial. 2th ed. Chicago: The University of Chicago Press, 1994.

BERGSON, H. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

BETTO, F., MENESES, A. B. e JENSEN, T. (Org.). Utopia urgente. São Paulo: Casa Amarela, 2002.

BUZZI, A. R. Introdução ao Pensar: o ser, o conhecimento, a linguagem. 28. ed., Petrópolis: Vozes, 2001.

Page 102: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

102

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

D’AMBROSIO, U. Transdiciplinaridade. São Paulo: Palas Athena, 2001.

FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

GADOTTI, M. Pedagogia da Terra. 3. ed. São Paulo: Peirópolis, 2000.

GAMBINI, R. Espelho do índio: a formação da alma brasileira. 2. ed. São Paulo: Axis Mundi/Terceiro Nome, 2000.

HUIZINGA, J. Homo ludens: O Jogo como elemento da Cultura. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001.

HOLANDA, S. B. de. Visão de Paraíso. 2. ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1969.

JUNG, C. G. A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 1984. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 8/2)

______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 9/1)

______. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 1991. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 6)

JUNQUEIRA, M. A. Estados Unidos: a consolidação de uma nação. São Paulo: Contexto, 2001a.

______. Representações políticas do território latino-americano na Revista Seleções. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 21, n. 42, p. 323-342, 2001b.

______. O discurso de George W. Bush e o excepcionalismo norte-americano. Revista Margem: humanismo e barbárie, São Paulo, n. 17, p. 163-171, jun. 2003.

LACAN, J. Escritos, Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1998

LÉVY, P. Cibercultura. 2. ed. São Paulo: Ed. 34, 2000.

MORIN, E. Os sete saberes necessários à Educação do Futuro. 4. ed. São Paulo: Cortez/Unesco, 2001.

NEUMANN, E. História da origem da consciência. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1995.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. (Coleção Os Pensadores, v. 2) São Paulo: Nova Cultural, 1996.

TISDELL, E. J.; TOLLIVER, D. E. Claiming a sacred face. in: Journal of Transformative Education, v.1, n. 4, 2003.

TOCQUEVILLE, A. de. A democracia na América. 2. ed. São Paulo: Itatiaia, 1977.

VALENTE, J.P. Resgatando sentidos. In: MELO, J.A.C. (Org.). Educação: razão e paixão. Rio de Janeiro: ENSP, 1993.

Page 103: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 4 – Caderno de Atividades

103

A CARTA DA TERRA E O EDUCAR PARA A IDENTIDADE TERRENA: PRINCÍPIOS E RUMOS

Sementes de Esperança em Experiências Educacionais do Ensino Fundamental no Pontal do Paranapanema

José J. Queiroz

A Carta da Terra, em seus 16 princípios, constitui um extraordinário avanço em termos de declaração dos direitos humanos ao incluir, no seu texto “os direitos da Terra”, estabelecendo a vinculação inseparável do humano ao biológico e à Terra como ser vivo a ser respeitado, protegido, preservado e amado. A Carta pretende também ser um guia para ações efi cazes no intuito de garantir que esse direito ampliado seja posto em prática. No dizer de Leonardo Boff, a Carta “é uma proposta de ética mundial, seguramente a mais articulada, universal e elegante que se produziu até agora.” Mas o seu objetivo vai além, pois enuncia princípios que ela pretende sejam assumidos e realizados “nas instâncias de poder locais, nacionais e internacionais, nos sistemas educacionais e na aprendizagem que se faz ao longo da vida, integrando conhecimentos, valores e habilidades para um modo de vida sustentável” (Carta da Terra, Princípio 14).

Em um texto elaborado sob os auspícios da Unesco e do seu projeto transdisciplinar “Educar para um futuro viável”, publicado sob o título Sete Saberes necessários para a Educação do Futuro, Edgar Morin (2000) elabora, no dizer de Jorge Werthein, representante da entidade no Brasil, “eixos e, ao mesmo tempo, caminhos que se abrem a todos os que pensam e fazem educação e estão preocupados com o futuro das crianças e dos adolescentes” (WETHEIN, 2000: 12).

Em um dos eixos da obra, “Ensinar a identidade terrena”, Morin coloca a questão: “como os cidadãos do novo milênio poderiam refl etir sobre os seus próprios problemas e aqueles de seu tempo?”. Essa questão comporta, segundo Morin, a necessidade de se compreender não só “a condição humana no mundo” mas também “a condição do mundo humano” que, com o desenrolar da história moderna, tornou-se “condição da era planetária”, cujo início se deu a partir do século XVI e, na segunda metade do século XX, entra na fase de “mundialização” (MORIN, 2000: 65).

Neste “turbilhão em movimento”, que é o nosso planeta, faz-se necessário um “pensamento policêntrico”, multi e transdisciplinar, capaz de captar o seu universalismo e a um tempo a unidade/diversidade da condição humana, que se nutre das culturas do mundo. A educação do futuro requer que se trabalhe nesta visão de complexidade para suscitar a identidade e a consciência terrenas na era planetária. (cf. Ibid. 64-65)

Como quem usa um estereoscópio, pretendo, neste breve ensaio, rever os princípios da Carta da Terra e os indicativos do pensamento de Morin na obra citada e no Método 6, Ética (MORIN, 2005) para olhar as experiências educacionais do Pontal do Paranapanema no intuito de realçar os seus relevos e a sua profundidade.

Page 104: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

104

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

Em um prelúdio histórico, Morin indica como chegamos à era planetária, desde as origens da Terra até o aparecimento das nações modernas da Europa, que se lançaram à conquistas do globo, destroçaram ou dominaram as antigas civilizações, levando progresso e ruínas, até chegarmos ao século XX, com os horrores das duas guerras mundiais, as crises econômicas, a generalização da economia liberal que sustenta a infraestrutura da assim dita “ação civilizatória” do Ocidente. Essa conjuntura gera a interdependência global: “cada uma de suas partes tornou-se dependente do todo e, reciprocamente, o todo sofre as perturbações e imprevistos que afetam as partes. O planeta encolhe” (MORIN, 2000: 67). E o indivíduo também é afetado. Como um holograma em que cada parte contém a informação do todo, “cada indivíduo recebe ou consome informações e substâncias oriundas de todo o universo” (Idem, 67).

Surge, então, o caráter complexo da mundialização: une e ao mesmo tempo divide, gera confl itos:

Os antagonismos entre nações, religiões, entre laicização e religião, modernidade e tradição, democracia e ditadura, ricos e pobres, Oriente e Ocidente, Norte e Sul nutrem-se uns aos outros, e a eles mesclam-se interesses estratégicos e econômicos, antagonismos das grandes potências e das multinacionais voltadas para o lucro [...] Exasperam-se onde existem religiões e etnias misturadas, fronteiras arbitrárias entre Estados – exasperação de rivalidades e negações de toda ordem - como no Oriente Médio. [...] Dessa maneira, o século XX a um só tempo criou ou dividiu um tecido planetário único; seus fragmentos fi caram isolados, eriçados e intercombatentes. [...] O próprio desenvolvimento criou mais problemas do que soluções e conduziu à crise profunda de civilização que afeta as próprias sociedades do Ocidente (Ibid., 69).

Neste ponto, o autor, assim como o fazem Leonardo Boff e Valéria Viana Labrea em seus escritos neste livro, critica a noção de desenvolvimento sustentável, apontando a necessidade de uma “noção mais rica e complexa”.

Concebido unicamente de modo técnico-econômico, o desenvolvimento chega a um ponto insustentável, inclusive o chamado desenvolvimento sustentável. E´ necessária uma noção mais rica e complexa de desenvolvimento que seja não somente material, mas também intelectual, afetivo, moral...” (Ibid., 70).

Nesta mesma linha de pensamento, a Carta da Terra, embora ainda mantendo a mesma terminologia, dá-lhe outro signifi cado mais amplo pois, em seus 16 princípios, o desenvolvimento é entendido muito além do técnico-econômico e inclui necessariamente o respeito e o cuidado da comunidade da vida, a integridade ecológica, a justiça social e econômica com todas as exigências decorrentes desses temas.

O legado do século XX, diz Morin, é uma herança de morte, não só pela proliferação das armas nucleares e de outros veículos de extermínio em massa, mas também pela possibilidade que se avizinha da morte ecológica, pela crescente agonia da biosfera, pelo espalhar-se de vírus e bactérias mortíferas, pela investida da morte em nossas almas ocasionada pela consumo crescente e mundializado das drogas.

Page 105: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 4 – Caderno de Atividades

105

À vista desse panorama, conclui o autor: “se a modernidade é defi nida como fé incondicional no progresso, na tecnologia e na ciência, no desenvolvimento econômico, então esta modernidade está morta” (Ibid., 72).

Entretanto, no âmago das tragédias e do espectro de um fi nal trágico, brotam esperanças. Surgem as contracorrentes regeneradoras, que podem reagir contra as correntes mortíferas dominantes, desenvolver-se e mudar o rumo dos acontecimentos.

Chegado a este ponto, deixo o texto de Morin para retomá-lo mais adiante, porque é no âmbito dessas vias regeneradoras que focalizo as experiências educacionais do Pontal do Paranapanema.

O Caderno de Atividades traz inúmeras experiências. Limito-me a algumas, escolhidas apenas a título de exemplifi cação, sem nenhum critério específi co, pois todas são relevantes. Realizadas em escolas do Ensino Fundamental em um contexto de periferia e de pobreza, têm o objetivo de aplicar, em sala de aula, de modo concreto, interdisciplinar e transversal, os princípios da Carta da Terra.

Já os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental, na apresentação dos temas transversais para o campo da Ética, coloca como um dos objetivos desse nível de ensino “perceber-se integrante, dependente e agente transformador do ambiente, identifi cando seus elementos e as interações entre eles, contribuindo ativamente para a melhoria do meio ambiente” (Parâmetros, 2000 - Objetivos Gerais).

Mais adiante, focalizando diretamente o meio ambiente, os Parâmetros apresentam a vida na Terra como uma “trama, uma grande rede de seres interligados, interdependentes. Essa rede envolve conjuntos de seres vivos e elementos físicos ... que interagem por meio de relações de troca de energia” (Idem, 33). Esse conjunto de elementos, seres e relações constitui o meio ambiente. Ele não se restringe aos aspectos físicos e biológicos, mas engloba o ser humano com suas relações sociais, econômicas e culturais. “Faz-se necessário tomar decisões adequadas na direção de metas desejadas por todos: o crescimento cultural, a qualidade de vida e o equilíbrio ambiental” (Ibid., 33).

As experiências relatadas no Caderno vão além da educação ambiental, pois envolvem as preocupações mais amplas da Carta da Terra, que demandam uma educação para a sustentabilidade, nela incluindo o contexto das relações sociais, culturais, econômicas e políticas, que implicam não só o respeito à Terra e à vida em toda a sua diversidade, como também o cuidar da comunidade da vida com compreensão, compaixão e amor (Princípio 2), construir sociedades democráticas, que sejam justas, participativas, sustentáveis e pacífi cas, erradicar a pobreza como um imperativo ético, social e ambiental, afi rmar a igualdade e a equidade do gênero humano como pré-requisitos para o desenvolvimento sustentável e assegurar o acesso universal à educação, assistência à saúde e às oportunidades econômicas (Princípio 11).

Page 106: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

106

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

As atividades descritas no Caderno se desenrolam com uma dinâmica envolvente, constituindo um todo harmonioso. O espelho é sempre a Carta da Terra. Nos seus princípios refl etem-se a realidade local e o cotidiano da escola e daí nasce o tema gerador de cada atividade. Vejamos alguns deles.

Com o tema “Plantar uma semente” se pretende demonstrar a transformação social como resultado de um longo processo, cujo primeiro passo é o fundamento de toda e qualquer transformação. A atividade de plantar uma semente, dela cuidar, a expectativa e a alegria de vê-la germinar, acompanhá-la em seu crescer, simbolizam o ato educacional refl etindo o segundo principio da Carta: “cuidar da comunidade da vida com compreensão, compaixão e amor”.

“Uma receita para o meio ambiente” focaliza as ameaças ao planeta, desde o aumento vertiginoso da fome no mundo até a extinção das espécies e a elevação da temperatura global. Após a confecção de cartazes retratando essas ameaças, os alunos são convidados a elaborar uma receita, como as da culinária, para salvar o planeta. O texto da atividade traz uma delas, que expõe, com muita criatividade, os ingredientes, o modo de preparo e o modo de servir o “bolo” que poderá afastar as ameaças à Mãe Terra. E assim a tarefa desperta o respeito pela nossa morada terrena e pela vida em toda a sua diversidade (Princípio 1), incentiva o cuidar da comunidade da vida (Princípio 2) e a necessidade de construir a sociedade democrática, justa, participativa, sustentável e pacífi ca (Princípio 3).

“Identidade” relembra o “conhece-te a ti mesmo” socrático e convida à auto-refl exão, ao conhecimento de si, a pensar na vida, na existência e na história pessoal e no que estamos fazendo conosco. O auto-conhecimento é ensinado como um dos alicerces para o respeito ao ser humano e à vida em geral, sem o qual é impossível formar a identidade, pois requer o conhecimento da própria origem, da história de cada um, da sua tradição, dos seus valores familiares, para sentir-se alguém especial, importante, acolhido, amado, incluído na comunidade. Muito criativa é a atividade de construção de um livrinho, “O meu livrinho”, onde cada aluno registra a sua identidade, desde o seu auto-retrato desenhado até suas impressões digitais e o relato das coisas que mais gosta e que mais desgosta. O conhecimento de si e a construção da própria identidade é fundamental para o convívio comunitário e social. Sem essa identifi cação, frustra-se o terceiro principio da Carta, que aponta a necessidade de “proporcionar a cada um a oportunidade de realizar seu pleno potencial”. Nessa identifi cação, está presente também o plano da auto-ética, que será explicitado mais adiante, ao se retomar as refl exões de Morin.

“Dengue” é um tema que focaliza essa epidemia que se alastra pelo país. Mas o intuito é também informar sobre as demais doenças infecciosas e despertar para a obrigação de todo cidadão em combatê-las. Desenvolvendo-se pelo manuseio de materiais, que contribuem para a proliferação da epidemia, a atividade quer ensinar ao aluno a maneira prática de reconhecer e eliminar os focos de incubação do mosquito causador da doença, repassando os conhecimentos aos familiares, vizinhos e amigos desinformados. Entre os vários princípios da Carta espelhados nessa atividade, destaco o de número 14: “integrar na educação formal e na aprendizagem ao longo da vida os conhecimentos, valores e habilidades necessárias para um modo de vida

Page 107: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 4 – Caderno de Atividades

107

sustentável. Oferecer a todos, especialmente crianças e jovens, oportunidades educativas que lhes permitam contribuir efetivamente para o desenvolvimento sustentável”. O conhecimento das epidemias, preveni-las e enfrentá-las é tarefa imprescindível na luta pela preservação do planeta e da vida.

Em “A árvore do bem e do mal” os educandos, ao desenharem as duas árvores, exercem a capacidade de simbolizar valores éticos, sócio-culturais e religiosos, alguns deles julgados bons, outros maus, devido a uma formação pré-adquirida na família ou nas relações sociais. O intuito é de criar, no ambiente escolar, um espaço de convívio para aprender, assegurar, solidifi car e até mesmo questionar o que os alunos aprenderam até então. A formação da capacidade crítica sobre valores visa a superar aquela atitude que Morin, ao falar da auto-ética, qualifi ca de “moralina”, isto é, o julgamento com base em critérios exteriores e superfi ciais da moralidade (MORIN, 2005: 98). Ocorre superar os estigmas de bem e de mal, que contribuem para forjar o adulto intolerante, preconceituoso e não solidário, despertando o educando para pensar o que e para quem algo é bom e ruim. Muitas vezes, o que se pensa bom para si é nocivo para outrem e vice-versa.

Na atividade, vejo espelhar-se, de maneira nítida, o Princípio 16 da Carta: “promover uma cultura de tolerância, não violência e paz. Estimular e promover o entendimento mútuo, a solidariedade e a cooperação entre todas as pessoas, dentro das e entre as nações”

“É brincando que se aprende” encerra uma das mediações mais relevantes, e infelizmente pouco utilizada na aprendizagem, que é o lúdico, um aspecto fundamental para a saúde física e psíquica. Pelo lúdico, é possível adquirir a unidade entre a consciência corporal e os aspectos emocionais e intelectuais, o que possibilita um contato saudável com o outro, o diferente, com as volições ocultas ou explícitas. Brincar é um meio de recuperar valores culturais, de suscitar a noção de vínculo; no lúdico, estimula-se o corpo inteiro, questionam-se e promovem-se oportunidades de atitudes e comportamentos saudáveis. Além de trabalhar com materiais recicláveis para a confecção de brinquedos, a atividade encerra-se com a elaboração de um livro, “Nossas brincadeiras preferidas”. Vejo, no relacionamento lúdico, uma ocasião ímpar de aprender a viver na alegria, na solidariedade, na cooperação mútua e na paz, que é o grande desejo expresso no Princípio 16 da Carta.

Em “A campanha do leite”, questiona-se a sociedade de consumo, da ostentação e do desperdício, insufl ada pela mídia, o que leva amiúde à desqualifi cação do pobre frente aos mais aquinhoados e à competição para galgar o patamar dos privilegiados. “A campanha do leite” vai muito além de uma doação à Casa de Apoio a Pessoas com Câncer. Quer despertar para a necessidade de banir o preconceito e a diferença brutal e desumana da distribuição de renda no Brasil e estimular a solidariedade e a promoção de cidadãos íntegros, que busquem caminhos de ajudar os mais necessitados, contestando e evitando o mero assistencialismo. “A campanha do leite” ecoa o Princípio 9 da Carta: “erradicar a pobreza como um imperativo ético, social e ambiental. Reconhecer os ignorados, proteger os vulneráveis, servir àqueles que sofrem e permitir-lhes desenvolver suas capacidades e alcançar suas aspirações”.

Page 108: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

108

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

A “Carta ao inquilino” tem como material principal uma carta anônima em que a Terra relembra aos seus “inquilinos” as graves infrações que vêm cometendo contra o “contrato de aluguel” que ela estipulou com os seus moradores. A carta não termina com a ameaça de despejo, mas com um amoroso convite: “Você pode mudar? Aguardo respostas e atitudes”.

Além de centrar a discussão nessa carta e debater a degradação ambiental, o uso inadequado e descontrolado dos recursos naturais, a poluição, a fome e a extinção das espécies, os alunos são incentivados a responder à Terra com missivas contendo sugestões de novas atitudes e de soluções possíveis dos problemas identifi cados. A atividade sugere e incentiva experiências ambientais de culturas de subsistência, de plantio de hortas orgânicas, de ervas medicinais, de fl ores. Propicia o contato com as culturas de subsistência da região, almejando a valorização, o respeito e o resgate da cultura tradicional local, assim como o compartilhar saberes, promover a economia solidária, o respeito às minorias e à diversidade, o acesso a medicamentos de baixo custo e o melhoramento da qualidade de vida da população. São vários os princípios da Carta que podem ser relembrados nessa atividade. O Princípio 10 expressa a necessidade de “promover a distribuição eqüitativa da riqueza dentro das e entre as nações”. O princípio 8 quer que se “reconheça e se preserve os conhecimentos tradicionais e a sabedoria espiritual em todas as culturas que contribuam para a proteção ambiental e o bem-estar humano”. Enfi m, as missivas de resposta à carta da Terra contêm a preocupação geral do Princípio 1 “respeitar a Terra e a vida em toda a sua diversidade”.

São estes alguns exemplos colhidos do Caderno de Atividades. Importa agora apontar características comuns a todas, procurando olhar o alcance epistemológico, ético e educacional que elas encerram.

O primeiro traço comum das atividades, além do espelhar-se na Carta da Terra, é a preocupação em superar o âmbito de uma disciplina e envolver a comunidade aprendente em um patamar de inter e transdisciplinaridade. Em um trabalho recém publicado, Educar para a solidariedade. Princípios e rumos (QUEIROZ, 2006) tive ocasião de apontar, na Ética de Morin, as vias abertas para a solidariedade, articulando-as com os Parâmetros Curriculares Nacionais para e Ensino Fundamental, no que tange à Ética como tema transversal (Parâmetros, volume 8, 2000).Indiquei, então, que no pensamento de Morin a inter e a transdisciplinaridade contêm aspectos epistemológicos e também éticos, em especial, quando trata da “ética do pensamento” e distingue entre o “pensar mal” e o “pensar bem”. Essas refl exões corroboram a importância dada nas “Atividades” ao aspecto inter e transdisciplinar

Na ética do pensamento, Morin (2005: 60-66) estabelece a correlação entre “pensar bem” e “pensar mal”, apontando a íntima articulação entre o epistemológico e o ético. O oposto da inter e da transdisciplinaridade é a fragmentação e a atomização dos saberes. O autor discorre, de início, sobre as conseqüências do “pensar mal”. Um saber fragmentado impossibilita imaginar um todo com “elementos solidários”; por isso, quem pensa mal vê atrofi ar o conhecimento e a consciência da solidariedade e da responsabilidade (MORIN, 2005: 61-62). Outra conseqüência do “pensar mal” é a corrosão da ética em suas fontes, que são a solidariedade e a responsabilidade

Page 109: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 4 – Caderno de Atividades

109

pela incapacidade de ver o todo, de religar-se a ele. Por oposto, o “pensar bem” religa e leva a imaginar a solidariedade entre os elementos de um todo, o que desperta a consciência do agir solidário (MORIN, 2005: 62-63).

A ênfase em colocar a ética e o agir solidário no patamar da religação dos saberes, que é peculiar ao pensamento complexo, tem guarida nos Parâmetros... Eles sublinham que a realidade educacional, na qual o professor vai trabalhar os princípios e os rumos da ética em busca do agir solidário, há que ser vista sob o prisma da transversalidade e da interdisciplinaridade. Há, nessa indicação, uma clara opção por um pensar a educação que se aproxima e até inclui a epistemologia da complexidade. Assim, lemos: “Transversalidade e interdisciplinaridade se fundamentam na crítica de uma concepção de conhecimento que toma a realidade como um conjunto de dados estáveis, sujeitos a um ato de conhecer isento e distanciado” (Parâmetros, 2000: 40). É a mesma crítica que Morin estabelece quando tem em mira o pensamento linear.

Ao enveredarem pela transversalidade e interdisciplinaridade, os Parâmetros... mencionam explicitamente uma visão complexa da realidade, quando afi rmam que “ambas apontam a complexidade do real e a necessidade de se considerar teias de relações entre os seus diferentes e contraditórios aspectos” (Parâmetros, 2000: 40, grifos nossos). Embora não usem a palavra “transdisciplinaridade”, tema relevante na teoria da complexidade, possibilitam entender que ela está implícita no conceito de interdisciplinaridade, porquanto esta “questiona a segmentação entre os diferentes campos de conhecimento produzida por uma abordagem que não leva em conta a inter-relação e a confl uência e a infl uência entre eles – questiona a visão compartimentada (disciplinar) da realidade sobre a qual a escola, tal como é conhecida, historicamente se constituiu” (Parâmetros, 2000: 40).

A transdisciplinaridade aparece de maneira visível também nos objetivos da transversalidade, quando afi rmam:

a transversalidade promove uma compreensão abrangente dos diferentes objetos de conhecimento, bem como a percepção da implicação do sujeito do conhecimento na sua produção, superando a dicotomia entre ambos. Por essa mesma via, a transversalidade abre espaço para a inclusão de saberes extra-escolares, possibilitando a referência de sistemas de signifi cados construídos na realidade dos alunos (Parâmetros, 2000: 40).

Como tema transversal – e transdisciplinar, diremos nós –, a ética também permeia “necessariamente toda a prática educativa, que abarca relações entre os alunos, entre professores e alunos e entre diferentes membros da realidade escolar” (Parâmetros, 2000: 39). O enfoque no aspecto complexo da realidade suscita uma exigência ética fundamental para a escola, a de “desenvolver um projeto de educação comprometida com o desenvolvimento de capacidades que permitam intervir na realidade para transformá-la”, cuja diretriz, entre outras, é a de “posicionar-se em relação às questões sociais e interpretar a tarefa educativa como uma intervenção na realidade no momento presente” (Parâmetros, 2000: 27).

Page 110: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

110

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

Ao trabalhar o caminho que conduz do pensamento complexo à ética, o livro de Morin explicita princípios de notável relevância e complementa o que foi dito acima. Morin (2005: 64) afi rma que todo conhecimento pode ser posto a serviço da manipulação, “mas o pensamento complexo conduz a uma ética da solidariedade e da não-coerção”. Abrindo um panorama mais amplo, o autor afi rma que é possível imaginar uma ciência que possibilite o auto-conhecimento e abra caminhos para a “solidariedade cósmica” (MORIN, 2005: 64).

A antropologia complexa também tem vínculos com a solidariedade, pois “reconhece o sujeito na sua dualidade egocêntrica/altruísta, o que lhe permite compreender a fonte original da solidariedade e da responsabilidade”. Além de ir à fonte, o pensamento antropológico complexo indica os rumos para uma ética da responsabilidade, que implica no reconhecimento do sujeito relativamente autônomo, como também abre caminhos para uma ética da solidariedade, porquanto é um pensamento que religa. Mostra também que, quanto maior for a complexidade social e as liberdades, mais necessária é a liberdade para garantir o vinculo social (MORIN, 2005: 64-65).

Uma visão histórica, sociológica e antropológica da ética é desejo também dos Parâmetros Curriculares Nacionais:

A moralidade humana deve ser enfocada no contexto histórico e social. Por conseqüência, um currículo escolar sobre a ética pede uma refl exão sobre a sociedade contemporânea na qual está inserida a escola. Tal refl exão poderia ser feita de maneira antropológica e sociológica: conhecer a diversidade de valores presentes na sociedade brasileira (Parâmetros, 2000: 70).

Olhando as atividades, outra consideração é o aspecto da auto-ética que perpassa todas elas, embora apareça de modo mais explícito em “Identidades” e na “Árvore do bem e do mal”.

A auto-ética ou a ética individualizada comporta, segundo Morin, quatro instâncias: 1. a ética de si para si (auto-análise, autocrítica, honra, tolerância, prática da recursão ética, que signifi ca avaliar as nossas avaliações, luta contra a moralina, que é o julgamento com base em critérios exteriores ou superfi ciais da moralidade, resistência à lei do talião e ao sacrifício do outro e prática da responsabilidade); 2. a ética da compreensão (a consciência da complexidade e dos desvios humanos; a abertura à magnanimidade e ao perdão); 3. a ética da cordialidade (cortesia, civilidade); 4. a ética da amizade.

Morin (2005: 102) afi rma que “solidariedade, responsabilidade e auto-ética são termos, hoje, quase inseparáveis”. Voltando a enfatizar a ética da religação, diz ele que a ética altruísta religa e exige que se mantenha a abertura para o outro, salvaguardando o sentimento de identidade comum, consolidando e fortalecendo a compreensão do outro. Referindo-se ao “imperativo da religação”, o autor percebe que o excesso de separação entre os seres humanos é perverso quando não compensado pela união, solidariedade, amizade e amor.

Um tratamento especial é dedicado ao tema da “ética da compreensão”, no qual o autor destaca a necessidade de compreender a incompreensão (MORIN, 2005: 116-117) e diz que o

Page 111: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 4 – Caderno de Atividades

111

pensamento complexo comporta um metaponto de vista sobre as estruturas do conhecimento que possibilita compreender o paradigma da disjunção/redução dominante nos modos de conhecimento comum. Isso é muito importante, pois o princípio de redução, que limita o todo complexo a um dos seus componentes e elimina o contexto em que se dá o agir ético, produz incompreensão de tudo o que é global e fundamental. O princípio de disjunção, por sua vez, alia-se ao de redução para impedir a concepção dos vínculos e da solidariedade entre os elementos de uma realidade complexa, tornando inviável o que é global e fundamental.

Pode-se resumir a auto-ética em dois imperativos: disciplinar o egocentrismo; desenvolver o altruísmo.

A auto-ética é a mais individual possível, engajando a responsabilidade pessoal; ao mesmo tempo, é um ato transcendental, que nos liga às forças vivas da solidariedade, anterior às nossas individualidades, originarias da nossa condição social, biológica, física e cósmica. Une-nos ao outro e à nossa comunidade, mais amplamente ao Universo e, como tal, é ato de religação (MORIN, 2005: 142).

Vários tópicos da auto-ética são tocados nos Parâmetros..., tendo em vista o cotidiano escolar. Eles notam, “por vezes, no cotidiano, comportamentos incoerentes, contraditórios, distanciados das atitudes e valores que se acreditam corretos. Isso signifi ca que a coerência absoluta não existe, e na formação de atitudes vive-se um processo não linear.” (Parâmetros, 2000: 45)

A compreensão é um desafi o para o agir humano em geral e para a prática escolar. Para Morin (2005: 122), “a compreensão complexa comporta uma difi culdade terrível”. Isso acontece porque ela “enfrenta incessantemente o paradoxo da irresponsabilidade/responsabilidade humana”. Essa contradição é inevitável. “Pode-se somente tentar superá-la (superar signifi ca conservar aquilo que se supera) pela magnanimidade, pelo perdão” (MORIN, 2005: 122). Desse paradoxo nasce um grande desafi o, que é notado e realçado nos Parâmetros...: “Nas relações interpessoais, não só entre professor e aluno, mas também entre os próprios alunos, o grande desafi o é conseguir se colocar no local do outro, compreender seu ponto de vista e suas motivações no interpretar suas ações. Isso desenvolve a atitude de solidariedade e a capacidade de lidar e conviver com as diferenças.” (Parâmetros, 2000: 45)

Por essa razão, o diálogo aparece entre os conteúdos a serem trabalhados como instrumento para esclarecer confl itos e implica escutar o outro e compreender o sentido preciso da sua ação e do que ele quer dizer (Idem, 2000: 109-111). Atitudes como generosidade, compaixão, ajuda aos necessitados, confi ança, respeito mútuo, convívio são enfatizadas em vários tópicos do documento.

Mais um ponto forte a ser destacado é a presença explícita, nas atividades, do corpo e da corporeidade. O manuseio de objetos corporais, os subsídios áudio-visuais, o fazer em conjunto com o refl etir indicam o envolvimento de todos os sentidos, de tal forma que não se trata apenas de um educar para compreender e conscientizar, na esfera do entendimento, mas um “educar de corpo inteiro”, que constitui algo fundamental embora muito pouco praticado na

Page 112: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

112

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

relação pedagógica. Não há “pedagogia da Terra” sem uma “pedagogia do corpo”, que supere o dualismo razão/corpo e abra para a corporeidade o lugar que lhe cabe em todos os espaços educacionais (Cf QUEIROZ: 2001). Nessa linha relembro o pensamento enfático de Assman (1995: 113) “o corpo é, do ponto de vista científi co, a instância fundamental para articular conceitos centrais para a teoria pedagógica. Em outras palavras, somente uma teoria da corporeidade pode fornecer as bases para uma teoria pedagógica”.

As amostras de atividades que comentamos indicam o nascedouro de uma grande contracorrente de esperança, que pode obstar e mudar os rumos da trágica situação e das sombrias perspectivas para o planeta e para a humanidade. Aliadas aos macro-movimentos em âmbito local, nacional e internacional, as pequenas experiências no cotidiano escolar, em especial no Ensino Fundamental, no qual se lançam as sementes do futuro cidadão, carregam um grande potencial “de emancipação com relação à tirania onipresente do dinheiro, que se busca contrabalançar por relações humanas solidárias fazendo retroceder o reino do lucro” (MORIN, 2000: 73). Promissora é essa contracorrente que reage ao desencadeamento da violência, que germina da injustiça e da desigualdade e nutre “éticas de pacifi cação das almas e das mentes” (Idem, 73).

As atividades patenteiam um mundo pequeno e ao mesmo tempo imenso, porque apontam caminhos para aprender a “estar aqui” no planeta, que signifi ca aprender a viver, dividir, comunicar, comungar e transformar, como humanos da terra, inscrevendo em nós a consciência antropológica, ecológica, cívica terrena, social transformadora e espiritual.

Despertar a consciência de nossa unidade e responsabilidade planetária é a exigência racional mínima de um mundo encolhido e interdependente. Pequenas experiências educacionais que, ao contagiarem o cotidiano escolar, vão solidifi cando o comportamento planetário na luta pela vida, universal e singular, debelando as ameaças de morte. “Civilizar e solidarizar a Terra, transformar a espécie humana em verdadeira humanidade, torna-se o objeto fundamental e global de toda educação que aspira não apenas ao progresso, mas à sobrevida da humanidade” (MORIN, 2000:78).

Pequenas experiências lançadas no Pontal do Paranapanema, sementes de um futuro promissor. Oxalá cresçam e contagiem todo o nosso sistema educacional.

Peço licença, agora, para dizer o que eu sinto. Na singeleza e simplicidade que as caracterizam, vejo a beleza e o aroma de um “poema pedagógico” de amor à Mãe Terra e a seus fi lhos, construído e ainda em construção pela dedicação, amor e carinho de todos os envolvidos nessa na empreitada.

Finalizo dando voz ao poeta da esperança que, no exílio chileno, em tempos obscuros da repressão militar, cantava a madrugada e a aurora de um novo mundo.

Page 113: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 4 – Caderno de Atividades

113

Madrugada camponesa

Madrugada camponesa,faz escuro ainda no chãomas é preciso plantar.A noite já foi mais noite,a manhã vai chegar.

Não vale mais a cançãofeita de medo e arremedopara enganar a solidão.Agora vale a verdadecantada simples e sempre,agora vale a alegriaque se constrói dia-a-diafeita de canto e pão.

Breve há de ser (sinto no ar)tempo de trigo maduro.Vai ser tempo de ceifar.Já se levantam prodígios,chuva azul no milharal,estala em fl or o feijão,num leite novo minandono meu longe seringal.

Já é quase tempo de amor.Colho um sol que arde no chão,lavro a luz dentro da cana,minha alma no seu pendão.

Madrugada camponesa.Faz escuro (já nem tanto),vale a pena trabalhar.Faz escuro mas eu cantoporque a manhã vai chegar.

(THIAGO DE MELLO, 1980: 34)

Page 114: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

114

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

José J. Queiroz é graduado em Filosofi a, Teologia e Direito e mestre em Filosofi a e Teologia. Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Internacional Santo Tomás de Aquino de Roma, professor titular do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião da PUC/SP. professor-doutor do Mestrado em Educação do Centro Universitário Nove de Julho – Uninove. Coordenador do Grupo Interinstitucional de Estudos e Pesquisas Pós-religare – Pós-modernidade e religião da PUC/SP, e pesquisador do Núcleo Interinstitucional de Estudos da Complexidade.

Referências

ASSMAN, Hugo. Paradigmas Educacionais e Corporeidade. 3ª. Ed. Piracicaba: UNIMEP, 1995

BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Parâmetros Curriculares Nacionais. Volume 8. Apresentação dos Temas Transversais. Ética. 2ª. Ed. Brasília: 2000.

MELLO, Thiago de. Faz escuro mas eu canto. 6ª. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

MORIN, Edgar. Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro. São Paulo: Cortez/Unesco, 2000.

_____, O Método 6. Ética. Porto Alegre: Sulina, 2005.

QUEIROZ, José J. Educar para a Solidariedade. Princípios e Rumos. In ALMEIDA, Cleide e PETRAGLIA, Izabel (Org.). Estudos de Complexidade. São Paulo: Xamã, 2006.

_____, Redescobrir a Corporeidade. Parte IV. Revés do Avesso. São Paulo: Centro Ecumênico de Publicações e Estudos – CEPE. X (6):49-53, junho 2001.

WERTHEIN, Jorge. Apresentação. In MORIN, Edgar. Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro. São Paulo: Cortez/Unesco, 2000.

Page 115: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 4 – Caderno de Atividades

115

CUIDADO NA ERA DO DESCUIDO: O PROBLEMA DA LINGUAGEM

Paulo Roberto Monteiro de Araujo

Já é lugar comum falarmos da nossa Era como horizonte de práticas desumanizadoras, no entanto cabe insistir mais uma vez na mesma pergunta: como superar tais práticas?

Inicialmente, coube à Pedagogia, principalmente a partir do Iluminismo, que tinha como núcleo principal o conceito de autonomia racional dos indivíduos, a formação sistematizada do processo de aprendizado das novas gerações. As práticas que vimos ao longo dos últimos dois séculos (XIX e XX) em relação à formação educacional das crianças e jovens nos mostraram que o foco pedagógico quase sempre esteve calcado em uma forma de racionalidade procedimental, isto é, em uma racionalidade que se bastava a si mesma, separada das dinâmicas sociais, bem como das diversas formas de viver dos grupos humanos.

A linguagem educacional iluminista, apesar dos seus bons intentos em buscar a realização da autonomia nos indivíduos, esqueceu que a linguagem, como diria o fi lósofo canadense Charles Taylor, não possui um centro gravitacional em que podemos dar conta do que é o homem. Taylor, ao falar da não existência de um centro de gravidade da linguagem, procura mostrar que o homem é um animal que a todo instante está auto-interpretando a si mesmo. Por isso, a linguagem a cada momento se modifi ca, criando novos signifi cados para as práticas humanas. Cabe a quem está envolvido com atividades sociais, sejam elas pedagógicas ou não, ter o cuidado de desenvolver ações e atividades que não se tornem puras mecanizações lingüísticas que procuram dar conta dos objetivos sócio-pedagógicos por meio de fórmulas universais.

É evidente que para se desenvolver qualquer ação ou atividade é preciso que haja regras. Entretanto, elas não podem aparecer como simples fórmula que, ao ser usada, vá garantir o sucesso de aprendizado daquele que realiza a atividade proposta. Daí não basta somente propor atividades como meio ambiente, saúde, coleta de lixo, identidade pessoal, entre outros temas, se não houver um cuidado com a linguagem. O problema que surge, então, relaciona-se com os dois tipos de linguagem que se desenvolveram no Ocidente Moderno e Contemporâneo: a linguagem designativa e a linguagem expressivista. A primeira se refere a uma forma de defi nir as coisas de modo instrumental. Deste modo, a linguagem designativa se limita a servir aos propósitos de quem a utiliza para distinguir as idéias por meio de termos designados antecipadamente. Por isso, quem trabalha com atividades educacionais precisa ter o cuidado para não ver o outro como alguém que é defi nido como ignorante ou utilizar termos pré-estabelecidos pelo status quo sem considerar as particularidades culturais do grupo com o qual irá desenvolver uma determinada atividade. Já para segunda, a linguagem não é um simples envelope exterior do pensamento, nem um instrumento que poderíamos a princípio dominar e apreender integralmente. A preocupação da linguagem expressivista é possibilitar que o homem expresse a si mesmo, isto é, o seu modo de ser.

Page 116: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

116

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

Ao trabalharmos com a linguagem expressivista deixamos de querer controlar as coisas, os homens e o ambiente em que estamos, pois o que interessa é permitir que as pessoas e os grupos com os quais trabalhamos educacionalmente compreendam e expressem o que elas são em suas identidades culturais. É na e pela linguagem, sem o seu caráter instrumental, que o homem ganha a capacidade de expressar a si mesmo, isto é, a sua identidade como aquilo que lhe é mais próprio. A linguagem é o elemento estratégico para se compreender a construção das articulações signifi cativas que constituem a tomada de decisão de um agente humano diante das questões ético-políticas que ocorrem no espaço público. Deste modo, as atividades educacionais desenvolvidas no âmbito da interdisciplinaridade precisam estar ajustadas com a fi nalidade de formar cidadãos que aprendam a expressar os seus posicionamentos políticos a partir das suas identidades sócio-lingüístico-culturais.

A questão do cuidado com a linguagem é de suma importância, pois ela está relacionada diretamente com o poder de expressão humana na esfera das ações no espaço público. A linguagem leva ao problema da ação. Esclarecer as determinações da linguagem torna-se crucial para se entender a ligação entre expressão e ação.

As teorias cientifi cistas não se preocupam com o problema da linguagem no que se refere diretamente à expressão e à ação. A questão da linguagem não é posta por elas. Para Charles Taylor, ao não se explicitar o problema da linguagem, na verdade, não se está abrindo a discussão para a questão da natureza humana. Desenvolvendo uma antropologia fi losófi ca como introdução ao seu pensamento político, Taylor tenta esclarecer os fundamentos da natureza humana. Eis o motivo do seu interesse pela linguagem. Para ele, o homem, ao ser um animal expressivo, tem como determinação a linguagem. É na e pela linguagem que o homem pode expressar a sua presença no mundo, bem como dar sentido a este. Neste aspecto o pensamento de Taylor se aproxima do de fi lósofos como Ernst Cassirer, no sentido de que ambos têm a preocupação com as formas lógicas das diversas construções simbólicas elaboradas pelo homem. Especifi camente, Cassirer se volta para o problema do formato lógico-expressivo das diversas elaborações simbólicas feitas pelo homem por meio do seu desenvolvimento cultural (o mito, a religião, a arte, a ciência como formas simbólicas).

Já Taylor analisa a expressividade da linguagem naquilo que o homem procura analisar a si mesmo como possibilidade de construir a sua identidade com o propósito de confi gurá-la no mundo. Para que ocorra essa confi guração da sua expressão, o homem precisa entrar na perspectiva lingüística. É com Herder que Taylor consegue apreender as condições essenciais da linguagem:

Uma criatura opera na dimensão lingüística quando pode usar signos – e a eles responder – em termos de sua verdade, ou justeza descritiva, do poder de evocar algum estado de espírito, recriar uma cena, exprimir alguma emoção, veicular alguma nuança de sentimento ou ser de algum modo le mot juste. Ser uma criatura lingüística é ser sensível a questões irredutíveis de justeza18.

18 Charles Taylor. A Importância de Herder. In: Argumentos Filosófi cos. Tradução brasileira. Ed. Loyola, p. 98.

Page 117: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 4 – Caderno de Atividades

117

O problema da justeza entre aquilo que se quer dizer e aquilo que é expresso, traz em si um problema da compreensão subjetiva. A justeza da linguagem é o modo pelo qual o indivíduo procura confi gurar a si mesmo no espaço público com o intuito de expressar signifi cativamente a sua identidade ou aquilo que ele percebe ao seu redor. Deste modo, por mais ‘inconsciente’ que esteja aquilo que o indivíduo expressa, a sua atitude deve refl etir o que ele quer dizer publicamente. O que Taylor capta de Herder é a sua noção de Besonnenheit (refl exão)19. É a refl exão que possibilita o indivíduo ser capaz de expressar aquilo que ele sente signifi cativamente, bem como elaborar distinções dos objetos percebidos. Assim, a justeza lingüística desenvolvida pelo homem por meio da refl exão serve para que este construa signos individuais, cuja função é permitir que as expressões sejam reconhecidas e distinguidas no espaço público sem terem um caráter reifi cado. A linguagem é remodelada a todo instante pelos diversos modos de ser do homem no mundo. Ela nunca pode ser dominada, pois o seu centro de gravidade20 jamais é alcançado. “No que se refere à linguagem, somos tanto construtores como construídos”21.

Ao tirar de Herder a idéia que o homem é ao mesmo tempo construtor e construído pela linguagem, Taylor consegue relacionar sentimento e linguagem.

A idéia revolucionária implícita em Herder foi a de que o desenvolvimento de novas modalidades de expressão nos capacita a ter novos sentimentos, mais potentes ou mais aprimorados, e por certo mais autoconscientes. Ao serem capazes de exprimir nossos sentimentos, damos-lhes uma dimensão refl exiva que os transforma. O animal lingüístico pode sentir não só raiva como indignação, não só amor como admiração22.

É essa capacidade de expressão que faz com que o homem possa viver as suas emoções exprimindo-as, sem a necessidade de descrevê-las em si. A linguagem permite ao homem criar formas lingüísticas que realizam a justeza daquilo que ele quer expressar sentimentalmente. Expressando isso que ele sente o homem remodela a língua, criando as suas próprias formas, no sentido de se fazer presente no mundo. Eis por que Herder diz que se cria assim um novo idioma.

Num dado indivíduo há uma palavra que se esvazia, mas que permanece. Uma que se afasta do seu sentido principal por causa de pontos de vista secundários, outra em que o espírito do sentido principal se modifi ca com a própria seqüência temporal. E assim surgiram, em termos pessoais, fl exões, derivações, modifi cações, prefi xos e sufi xos, deslocamentos e supressões de parte do sentido ou da totalidade do sentido das palavras: um novo idioma! E tudo isto tão naturalmente quanto é natural no homem o fato de a língua constituir o sentido da sua alma23.

Para Herder, a língua, ao estar em constante transformação, faz surgir sempre uma nova língua em cada novo mundo, língua nacional em cada nação. Sendo assim, “a linguagem é um Proteu sobre

19 Id. A Importância de Herder, 102.20 O tradutor de A Importância de Herder usa a expressão pano de fundo para centro de gravidade. 21 Idem, 111.22 Idem, 112. 23 Herder. Ensaio sobre a origem da linguagem. Tradução José M. Justo. Ed. Antígona (1987), 148.

Page 118: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

118

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

a superfície curva do planeta”24. Taylor analisa essa estrutura auto-transformadora da língua, que faz brotar de si mesma novas formas de linguagem, com o propósito de desenvolver uma Política do Reconhecimento, em que as diferentes formas de expressão humana possam ser compreendidas em sua reivindicações sócio-político-culturais. A teoria herderiana da linguagem possibilita abrir os horizontes teóricos no que se refere à origem das expressões humanas como manifestação signifi cativa das suas identidades. Eis o motivo de o educador, ao estar desenvolvendo as suas práticas pedagógicas, considerar lingüisticamente às manifestações signifi cativas das identidades de seus alunos. É a partir das expressões dos alunos que o educador pode ajudá-los em relação à justeza daquilo que eles querem expressar para terceiros no espaço da convivência.

É a linguagem que constitui as articulações emocionais e é por isso que as ações realizadas pelo aluno por meio da sua auto-referência emocional se apresentam como boas ou más. O Bem e o Mal estão na esfera da linguagem, daí ela ser a base sobre a qual as nossas atitudes se mostram imbuídas de signifi cações. Interpretarmo-nos signifi ca justamente avaliar as nossas articulações emocionais no plano da linguagem. A linguagem e a emoção estão entrelaçadas de modo que não é possível se referir a uma sem considerar a outra. Além disto, a linguagem possibilita a própria forma das nossas emoções. Não é à toa que um novo vocabulário pode modifi car a forma anterior de articulação das nossas emoções25. O que tinha um determinado sentido emocionalmente ganha um outro formato no processo temporal interpretativo lingüístico26. Assim, o que era considerado anteriormente vergonhoso para uma pessoa passa não ter mais sentido ou ganha uma outra reformulação signifi cativa.

A mudança do vocabulário signifi ca tanto o aprofundamento como a transformação da nossa interioridade emocional ou eu-emocional. A interpretação do eu-emocional passa por constantes trans-avaliações do vocabulário que, a cada mudança, reestrutura o modo de sentir e de vida do indivíduo, principalmente quando esse está no processo de ensino/aprendizagem. Os novos vocabulários são incorporados às referencias do eu-emocional do indivíduo, que modifi cam toda a maneira de o eu se situar tanto emocionalmente como cognitivamente. A linguagem, ao concretizar-se por meio das diversas formas de vocabulário, articula discernimentos (insights) ou os torna possíveis no plano emocional-cognitivo do indivíduo. Deste modo:

Dizer que a linguagem é constituída pela emoção é dizer que experimentar uma emoção implica essencialmente em verifi car se certas descrições ajustam-se; ou que uma dada emoção implica algum (grau de) discernimento27.

Os discernimentos (insights) que ocorrem em nossa articulação emocional signifi cativa tornam possível a compreensão dos sentimentos no que se refere às suas avaliações. Neste aspecto, as avaliações são a própria refl exão interpretativa do eu. Ocupando-se daquilo que o sujeito

24 Idem, 150. 25 Podemos nos referir ao processo psicanalítico que possibilita ao analisado rever as signifi cações das suas articulações emocionais criando, assim, condições para transformá-las.26 Taylor dá um exemplo sociocultural destas modifi cações com a expressão – black is beautiful. Self-interpreting animals, 69.27 Charles Taylor. Self-interpreting animals, 71.

Page 119: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 4 – Caderno de Atividades

119

sente, a avaliação busca, por meio dos insights, esclarecer as estruturas signifi cativas com a intenção de possibilitar ao eu situar-se no seu processo de experimentação dos sentimentos. Experimentar os sentimentos é avaliá-los dentro de um quadro signifi cativo que, em última instância, faz com que o sujeito esclareça para si o que ele está sentindo, superando, assim, as confusas articulações signifi cativas.

Superar as confusas articulações signifi cativas representa experimentar de um modo adequado aquilo que, no processo de avaliação, o eu antes sentia desordenadamente. Sentindo as coisas de uma forma adequada, o modo de avaliar do sujeito também muda. Desta maneira, a linguagem assume um papel fundamental para a redefi nição signifi cativa das articulações emocionais e cognitivas do eu; ela articula os nossos sentimentos, tornando-os mais claros e mais defi nidos. O motivo pelo qual reconhecemos as expressões ‘Eu a amo’ ou ‘Eu estou ciumento’ altera a emoção que se mostra nessas articulações do eu, possibilitando, assim, o esclarecimento signifi cativo do tipo de amor e de ciúme que estamos sentindo28. O reconhecimento é fundamental para tornar clara a constituição signifi cativa dos nossos sentimentos. Reconhecer os motivos que levam o eu a articular estruturas de linguagem para expressar os sentimentos é esclarecer o que signifi ca os termos empregados pelo indivíduo. A frase ‘Eu a amo’ pode ter signifi cados diferentes entre os sujeitos que a empregam nas suas falas. Como salienta Taylor, nós não experimentamos as mesmas coisas, nós não temos os mesmos sentimentos29. Por isso, quando estamos desenvolvendo alguma atividade sobre meio ambiente, artes, coleta de lixo, política etc., o que cada aluno sente não é igual ao outro. O educador deve estar atento ao eu-emocional de cada aluno para ajudá-lo a articular signifi cativamente o que ele sente em relação à atividade proposta. É a partir da estruturação signifi cativa do que o aluno sente que o mesmo pode formular o seu vocabulário de valor em relação aos temas que lhe são propostos nas atividades educacionais.

A partir do reconhecimento das signifi cações construídas internamente pelas articulações emocionais, os indivíduos passam a compreender as diversas formas lingüísticas que são elaboradas pelo eu. Reconhecer as possíveis formas elaboradas no espaço íntimo-existencial dos indivíduos é reconhecer não só a identidade do eu, mas também as diversas identidades que diferenciam os homens entre si. Na sua identidade própria, cada um articula as emoções em um plano vocabular que faz o indivíduo, por exemplo, ter um tipo de amor ou ciúme de acordo com a sua articulação. Este caráter articulador da vida emocional dos seres humanos propiciou que as diferentes culturas trouxessem à baila vários tipos de vocabulários signifi cativos. Além disto, mesmo no bojo de uma cultura as pessoas elaboram diferentes vocabulários que as fazem ter diferentes experiências. Sendo assim:

Considerem-se duas pessoas, uma com uma única dicotomia amor/luxúria para os tipos possíveis de sentimento sexual; a outra com um vocabulário muito diversifi cado de diferentes espécies de relações sexuais. Será diferente a experiência das emoções dessas duas pessoas30.

28 Quando eu reconheço o motivo, isto é, a articulação signifi cativa, que altera a minha emoção na frase Eu a amo, logo o signifi cado de amor é alterado emocionalmente em mim.29 Op. cit., 71.30 Op. cit., 71.

Page 120: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

120

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

Os indivíduos sempre experimentam de forma diferente os objetos ou os assuntos que aparentemente possuem signifi cados iguais. Seguindo esta linha raciocínio, Taylor argumenta que isto acontece por causa da nossa capacidade de trans-avaliar (transvaluation) aquilo que nos é colocado lingüisticamente. Nós transpomos outras avaliações de acordo com as nossas articulações emocionais, no sentido de expressar o que tem importância signifi cativa para a nossa identidade.

O processo de transpor outras avaliações no interior das sensações do eu traz à tona a possibilidade de o indivíduo reordenar, isto é, reinterpretar a si mesmo por meio do universo lingüístico. A linguagem permite ao indivíduo reordenar toda a sua sensação após avaliar aquilo que ele sente em sua experimentação. Deste modo, os termos do vocabulário empregados anteriormente à experiência do agente se modifi cam, expressando outra articulação signifi cativa das suas sensações. O eu está em constante transformação de si mesmo como possibilidade de se auto-esclarecer e de adquirir outras formas de expressão de si mesmo.

Nós podemos dizer que o eu está sempre em um movimento de reestruturação tanto emocional como cognitivamente na sua atividade experimental. O eu é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto de si mesmo, situação esta que o leva a todo instante a se interpretar por meio das suas trans-avaliações. Estando no fl uxo das trans-avaliações, o sujeito, ao adquirir uma nova forma de auto-entendimento (self-understanding), passa a ter também outro modo de experimentar as suas emoções. Ao nos articularmos lingüisticamente, articulamos as nossas emoções, no sentido de dar-lhes novos signifi cados. Daí a nossa preocupação com a linguagem, ou melhor ainda, de como o educador, que desenvolve atividades interdisciplinares, precisa compreender a linguagem não como simples instrumento, mas como expressão signifi cativa dos seus alunos.

Paulo Roberto Monteiro de Araujo é professor do Programa de Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Referências

TAYLOR, Charles. Sources of The Self – The Making of the Modern Identiy. Cambrigde: Harvard University Press, 1996 (oitava edição).

______. As Fontes do Self – A construção da identidade moderna. (trad. Adail U. Sobral e Dinah de Azevedo de Abreu). São Paulo: Edições Loyola, 1997.

______. Philosophical Arguments. Cambrigde: Harvard University Press, 1995 (Segunda edição).

______. Argumentos Filosófi cos. (trad. Adail U. Sobral). São Paulo. Edições Loyola, 2000.

Page 121: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 4 – Caderno de Atividades

121

______. Human Agency and Language – Philosophical Papers 1 Cambrigde: Cambridge University Press, 1996.

______. Philosophy and The Human Sciences – Philosophical Papers 2. Cambrigde: Cambridge University Press, 1995.

______. Multiculturalism. New Jersey: Princeton University Press, 1994.

ABBEY, Ruth. Charles Taylor. Princeton: Princeton University Press, 2000.

ARAUJO, Paulo R. M. Charles Taylor: para uma ética do reconhecimento. São Paulo: Ed. Loyola, 2004.

______. Identidades Contemporâneas – criação, educação e política. Porto Alegre: Ed. Zouk, 2006.

CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o Homem. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1994.

______. A Filosofi a das Formas Simbólicas. I – A linguagem. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2001.

FOUCAULT, Michel. Problematização do Sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.

______. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2002.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método – Traços fundamentais de uma hermenêutica fi losófi ca. Petrópolis: Editora Vozes, 1997.

HERDER, Johann G. Ensaio sobre a origem da Linguagem. Lisboa: Edições Antígona, 1987.

Page 122: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

122

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

MEIO AMBIENTE, EDUCAÇÃO E CIDADANIA: DIÁLOGO DE SABERES E TRANSFORMAÇÃO DAS PRÁTICAS EDUCATIVAS – UMA REFLEXÃO SOBRE HISTÓRIAS DE APRENDER E ENSINAR

Pedro Roberto Jacobi

Nosso Planeta requer mudanças

O século XXI inicia-se em meio de uma emergência socioambiental que promete agravar-se, caso sejam mantidas as tendências atuais de degradação; um problema enraizado na cultura, nos estilos de pensamento, nos valores, nos pressupostos epistemológicos e no conhecimento que confi gura, o sistema político, econômico e social em que vivemos. Uma emergência que, mais que ecológica, é uma crise do estilo de pensamento, dos imaginários sociais e do conhecimento que sustentaram a modernidade, dominando a natureza e multiplicando a lógica de mercantilização e consumo planetários.

Vive-se um crise do ser no mundo, que se manifesta em toda sua plenitude nos espaços internos do sujeito, nas condutas sociais auto destrutivas; e nos espaços externos, na degradação da natureza e da qualidade de vida das pessoas (Beck, 1992).

A humanidade chegou a uma encruzilhada que exige examinar-se para tentar achar novos rumos, refl etindo sobre a cultura, as crenças, valores e conhecimentos em que se baseia o comportamento cotidiano, assim como sobre o paradigma antropológico-social que persiste em nossas ações, no qual a educação tem um enorme peso.

Atualmente, o avanço rumo a uma sociedade sustentável é permeado de obstáculos, na medida em que existe uma restrita consciência na sociedade a respeito das implicações do modelo de desenvolvimento em curso. A multiplicação dos riscos, em especial os ambientais e tecnológicos de graves conseqüências, é elemento chave para entender as características, os limites e as transformações da nossa modernidade. É cada vez mais notória a complexidade desse processo de transformação de uma sociedade crescentemente não só ameaçada, mas diretamente afetada por riscos e agravos sócio-ambientais.

Nesse sentido, o conjunto de experiências aqui apresentadas, que têm como referência a Carta da Terra, como movimento e proposta que nos mobiliza para um agir em direção a uma concepção de sustentabilidade e diálogo com a natureza, abre um estimulante campo de refl exão e atuação em direção ao fortalecimento do que o Leonardo Boff defi ne como comunidade de vida.

As possibilidades que a Carta da Terra e tantos outros documentos e propostas visam promover e avançar rumo a Sociedades Sustentáveis têm como premissa a democratização do conhecimento, do

Page 123: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 4 – Caderno de Atividades

123

acesso e a multiplicação de todo tipo de práticas articuladoras e colaborativas visando sensibilizar, integrar, divulgar, compreender e fortalecer a necessidade de um outro olhar e agir.

O conjunto de histórias de aprender-e-ensinar elaborados por educadores engajados em um projeto de educação para a sustentabilidade, em comunidades pobres da região do Pontal do Paranapanema, é um forte estímulo à refl exão sobre as estimulantes e criativas possibilidades de avançar rumo a uma sociedade mais comprometida com a proteção dos recursos naturais, numa perspectiva que sensibiliza para um olhar e agir ético, integrador e abrangente. Os textos nos trazem ao contato com práticas socioambientais e educativas que procuram integrar e reforçar a importância de compreender as interdependências entre pobreza, degradação ambiental, injustiça social, confl itos étnicos, paz, democracia, ética e crise espiritual. As onze experiências, com vibrante e provocativa criatividade, desenvolvem movimentos que buscam articular idéias, práticas e referenciais de conhecimento e imagéticos para promover refl exões e ações em torno das ameaças que pesam sobre a biosfera, a multiplicação dos problemas ambientais do presente e a sua diminuição no futuro.

A ênfase em práticas que estimulam a interdisciplinaridade e a transversalidade revela o fantástico potencial que existe para sair do lugar comum e o trabalho com temáticas que estimulam mudanças no comportamento tais como reciclagem, a relação lixo e meio ambiente, responsabilidade social e ética ambiental, possibilita um outro olhar. Trata-se da importância de compreender a complexidade envolvida nos processos e o desafi o de ter uma atitude mais refl exiva e atuante e, por conseguinte, tornar-se mais responsáveis, cuidadosos e engajados em processos colaborativos com o meio ambiente.

Práticas Educativas para o Desenvolvimento Sustentável

O caminho para uma sociedade sustentável se fortalece na medida em que se desenvolvam práticas educativas que, pautadas pelo paradigma da complexidade, aportem para a escola e os ambientes pedagógicos, uma atitude refl exiva em torno da problemática ambiental e os efeitos gerados por uma sociedade cada vez mais pragmática e utilitarista, visando traduzir o conceito de ambiente e o pensamento da complexidade na formação de novas mentalidades, conhecimentos e comportamentos (LEFF, 2001). Isto implica na necessidade de se multiplicarem as práticas sociais baseadas no fortalecimento do direito ao acesso à informação e à educação em uma perspectiva integradora.

Trata-se de promover o crescimento da consciência ambiental, expandindo a possibilidade da população participar em um nível mais alto no processo decisório, como uma forma de fortalecer sua co-responsabilidade na fi scalização e no controle dos agentes de degradação ambiental (JACOBI, 2003).

Nessa direção, a problemática ambiental constitui um tema muito propício para aprofundar a refl exão e a prática em torno do restrito impacto das práticas de resistência e de expressão das demandas da população das áreas mais afetadas pelos constantes e crescentes agravos ambientais.

Page 124: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

124

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

As práticas educativas devem apontar para propostas pedagógicas centradas na conscientização, mudança de comportamento e atitudes, desenvolvimento de competências, capacidade de avaliação e participação dos educandos. Isto desafi a a sociedade a elaborar novas epistemologias que possibilitem o que Morin (2003) denomina de “uma reforma do pensamento” (FLORIANI, 2003:116). No novo contexto do conhecimento do qual emergem as novas epistemologias sócio-ambientais, plurais e diferenciadas, Capra representa a busca da unifi cação do conhecimento com a natureza e a sociedade, Morin pensa a complexidade como referencial principal para explicar os novos sentidos do mundo, e Leff, uma nova racionalidade ambiental, capaz de subverter a ordem imperante entre as lógicas de vida e o destino das sociedades (FLORIANI e KNECHTEL, 2003: 16). Assim, o conceito de ambiente situa-se numa categoria não apenas biológica, mas que constitui “uma racionalidade social, confi gurada por comportamentos, valores e saberes, como também por novos potenciais produtivos” (LEFF, 2001: 224)

Uma mudança paradigmática implica numa mudança de percepção e de valores, e isto deve orientar de forma decisiva para formar as gerações atuais não somente para aceitar a incerteza e o futuro, mas para gerar um pensamento complexo e aberto às indeterminações, às mudanças, à diversidade, à possibilidade de construir e reconstruir num processo contínuo de novas leituras e interpretações, confi gurando novas possibilidades de ação (MORIN, 2001; CAPRA, 2003; LEFF, 2003).

Os principais referenciais teóricos apontam para matrizes alternativas de integração do co-nhecimento que superem o paradigma dualista e enfatizam a complexidade e a interdisciplina-ridade como elemento constitutivo de um novo pensar sobre as relações sociedade-natureza. A premissa que norteia o paradigma proposto é o diálogo de saberes e uma orientação para formar as gerações atuais, não somente para aceitar a incerteza e o futuro, mas para gerar um pensamento complexo e aberto às indeterminações, às mudanças, à diversidade, à possibili-dade de construir e reconstruir em um processo contínuo de novas leituras e interpretações, confi gurando possibilidades de ação para a emancipação.

Meio Ambiente e diálogo de saberes – atores e práticas

As práticas educativas articuladas com a problemática ambiental não devem ser vistas como um adjetivo, mas como parte componente de um processo educativo que reforce um pensar da educação e dos educadores orientados para a sustentabilidade. Isto nos permite enfatizar que este processo educativo deve ser capaz de formar um pensamento crítico, criativo e sintonizado com a necessidade de propor respostas para o futuro, capaz de analisar as complexas relações entre os processos naturais e sociais e de atuar no ambiente em uma perspectiva global, respeitando as diversidades socioculturais. O objetivo é o de propiciar novas atitudes e comportamentos face ao consumo na nossa sociedade e de estimular a mudança de valores individuais e coletivos (JACOBI, 2005). Assim a educação ambiental precisa construir um instrumental que promova uma atitude crítica, uma compreensão complexa e a politização da problemática ambiental, a participação dos sujeitos, o que explicita uma ênfase em práticas sociais menos rígidas, centradas na cooperação entre os atores.

Page 125: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 4 – Caderno de Atividades

125

Na ótica da modernização refl exiva, a educação ambiental tem de enfrentar a fragmentação do conhecimento e desenvolver uma abordagem crítica e política, mas refl exiva.

Portanto, a dimensão ambiental representa a possibilidade de lidar com conexões entre diferentes dimensões humanas, possibilitando entrelaçamentos e múltiplos trânsitos entre múltiplos saberes. Atualmente o desafi o de fortalecer uma educação para a cidadania ambiental convergente e multirreferencial se coloca como prioridade para viabilizar uma prática educativa que articule de forma incisiva a necessidade de se enfrentar concomitantemente a crise ambiental e os problemas sociais. Assim, o entendimento sobre os problemas ambientais se dá através da visão do meio ambiente como um campo de conhecimento e signifi cados socialmente construído, que é perpassado pela diversidade cultural e ideológica e pelos confl itos de interesse (JACOBI, 2005).

Os educadores(as) devem estar cada vez mais preparados para re-elaborar as informações que recebem, e dentre elas as ambientais, para poder transmitir e decodifi car para os alunos a expressão dos signifi cados em torno do meio ambiente e da ecologia nas suas múltiplas determinações e intersecções. A ênfase deve ser a capacitação para perceber as relações entre as áreas e como um todo enfatizando uma formação local/global, buscando marcar a necessidade de enfrentar a lógica da exclusão e das desigualdades. Nesse contexto, a administração dos riscos sócio-ambientais coloca cada vez mais a necessidade de ampliar o envolvimento público através de iniciativas que possibilitem um aumento do nível de consciência ambiental dos educadores garantindo a informação e a consolidação institucional de canais abertos para a participação numa perspectiva pluralista.

Considera-se, portanto, como parte ativa de um processo intelectual, enquanto aprendizado social, baseado no diálogo e interação em constante processo de recriação e re-interpretação de informações, conceitos e signifi cados, que se originam do aprendizado em sala de aula ou da experiência pessoal do aluno. A abordagem do meio ambiente na escola passa a ter um papel articulador dos conhecimentos nas diversas disciplinas, no contexto onde os conteúdos são re-signifi cados. Ao interferir no processo de aprendizagem e nas percepções e representações sobre a relação indivíduos - ambiente nas condutas cotidianas que afetam a qualidade de vida, a educação ambiental promove os instrumentos para a construção de uma sociedade sustentável.

A ótica inovadora refere-se à forma como se apreende o objeto de pesquisa e à dinâmica que se estabelece com os atores sociais que propõem uma nova forma de integração e articulação do conhecimento ambiental. Esta abordagem busca superar o reducionismo e estimula um pensar e fazer sobre o meio ambiente diretamente vinculado ao diálogo entre saberes, à participação, aos valores éticos como valores fundamentais para fortalecer a complexa interação entre sociedade e natureza. Nesse sentido, o papel dos professores é essencial para impulsionar as transformações de uma educação que assume um compromisso com o desenvolvimento sustentável e também com as futuras gerações.

Isto nos leva à refl exão sobre a necessidade da formação do profi ssional refl exivo para desenvolver práticas que articulem a educação e o meio ambiente numa perspectiva de sustentabilidade.

Page 126: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

126

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

A inserção da educação para a cidadania ambiental numa perspectiva crítica ocorre na medida em que o professor assume uma postura refl exiva. Entende-se a educação ambiental, sob a ótica de uma “educação para a cidadania ambiental”, como uma prática político-pedagógica. Assim sendo, representa a possibilidade de motivar e sensibilizar as pessoas para transformar as diversas formas de participação em potenciais fatores de dinamização da sociedade e de ampliação da responsabilidade socioambiental. Trata-se de criar as condições para a ruptura com a cultura política dominante e para a construção de uma nova proposta de sociabilidade, baseada na educação para a participação. Esta se concretizará principalmente pela presença crescente de uma pluralidade de atores que, através da ativação do seu potencial de participação, terão cada vez mais condições de intervir consistentemente e sem tutela nos processos decisórios de interesse público, legitimando e consolidando propostas de gestão baseadas na garantia do acesso à informação e na consolidação de canais abertos para a participação (JACOBI, 2005).

As experiências interdisciplinares são recentes e incipientes inclusive em nível de pós- graduação. Existem, segundo Tristão (2002:173-181), quatro desafi os da educação ambiental que, entrelaçados, estão associados ao papel do educador na contemporaneidade. O primeiro desafi o é o de “enfrentar a multiplicidade de visões”, e isto implica na preparação do educador para fazer as conexões (CAPRA, 2003:94-99) e articular os processos cognitivos com os contextos da vida. Assim, entender a complexidade ambiental, não como “moda” ou “reifi cação” ou “utilização indiscriminada”, mas como construção de sentidos fundamental para identifi car interpretações e generalizações feitas em nome do meio ambiente e da ecologia. O segundo desafi o é o de “superar a visão do especialista”, e para tanto o caminho é ruptura com as práticas disciplinares. O terceiro desafi o é “superar a pedagogia das certezas”, e isto converge com as premissas que norteiam a formação do “professor refl exivo”, o que implica em compreender a modernidade e os “riscos produzidos” e seu potencial de reprodução e desenvolver, no espaço pedagógico uma sensibilização em torno da complexidade da sociedade contemporânea e das suas múltiplas causalidades. O quarto desafi o, de superar a lógica da exclusão, soma ao desafi o da sustentabilidade a necessidade da superação das desigualdades sociais.

O momento atual é o de consolidar práticas pedagógicas que estimulem a interdisciplinaridade na sua diversidade.

O desafi o da interdisciplinariedade é enfrentado como um processo de conhecimento que busca estabelecer cortes transversais na compreensão e explicação do contexto de ensino e pesquisa, buscando a interação entre as disciplinas e superando a compartimentalização científi ca provocada pela excessiva especialização.

Enquanto combinação de várias áreas de conhecimento, a interdisciplinariedade pressupõe o desenvolvimento de metodologias interativas, confi gurando a abrangência de enfoque, contemplando uma nova articulação das conexões entre as ciências naturais, sociais e exatas.

A preocupação em consolidar uma dinâmica de ensino e pesquisa a partir de uma perspectiva interdisciplinar enfatiza a importância dos processos sociais que determinam as formas de

Page 127: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 4 – Caderno de Atividades

127

apropriação da natureza e suas transformações através da participação social na gestão dos recursos ambientais, levando em conta a dimensão evolutiva no sentido mais amplo, incluindo as conexões entre as diversidades biológica e cultural, assim como as práticas dos diversos atores sociais, bem como o impacto da sua relação com o meio ambiente.

Assim, a ênfase na interdisciplinariedade na análise das questões ambientais deve-se à constatação de que os problemas que afetam e mantêm a vida no nosso planeta são de natureza global e que suas causas não podem restringir-se apenas aos fatores estritamente biológicos, revelando dimensões políticas, econômicas, institucionais, sociais e culturais.

Para isso não é sufi ciente reunir diferentes disciplinas para o exercício interdisciplinar, mas deve apoiar-se em trocas sistemáticas e no confronto de saberes disciplinares que incluam não apenas uma problemática nas interfaces entre as diversas ciências naturais e sociais. Isto só se concretizará a partir de uma ação orgânica das diversas disciplinas, superando a visão multidisciplinar.

Posto que os problemas ambientais transcendem as diferentes disciplinas, tanto o aprofundamento disciplinar quanto a ampliação do conhecimento entre as disciplinas são elementos fundamentais, porém de grande complexidade quanto à sua implementação.

A complexidade da questão ambiental abre um espaço para, não só estimular a interdisci-plinariedade, mas criar condições para promover um efetivo diálogo de saberes que possibilita, não apenas a união de diferentes disciplinas para abordar um problema comum, mas que tem como objetivo mais desafi ador contribuir como um processo produtor de novos conhecimentos.

O desafi o de ampliar um novo olhar e agir

A necessidade de uma crescente internalização da questão ambiental, um saber ainda em construção, demanda um esforço de fortalecer visões integradoras que, centradas no desenvolvimento, estimulam uma refl exão em torno da diversidade e da construção de sentidos nas relações indivíduos-natureza, dos riscos ambientais globais e locais e das relações ambiente-desenvolvimento.

Nestes onde a informação assume um papel cada vez mais relevante (ciberespaço, multimídia, internet) a educação para a cidadania representa a possibilidade de motivar e sensibilizar as pessoas para transformar as diversas formas de participação na defesa da qualidade de vida.

Assim, a problemática ambiental urbana constitui um tema muito propício para aprofundar a refl exão e a prática em torno do restrito impacto das práticas de resistência e de expressão das demandas da população das áreas mais afetadas pelos constantes e crescentes agravos ambientais. Mas representa também a possibilidade de abertura de estimulantes espaços para implementar alternativas diversifi cadas de democracia participativa, notadamente a garantia do acesso à informação e a consolidação de canais abertos para uma participação plural.

Page 128: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

128

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

Os impactos negativos do conjunto de problemas ambientais resultam principalmente da precariedade dos serviços e da omissão do poder público na prevenção das condições de vida da população. Porém, são também refl exo do descuido e da omissão dos próprios moradores, inclusive nos bairros mais carentes de infra-estrutura, colocando em xeque aspectos de interesse coletivo.

Isso traz à tona a contraposição do signifi cado dos problemas ambientais urbanos e as práticas de resistência dos que “têm” e dos que “não têm”, representados sempre pela defesa de interesses particularizados que interferem signifi cativamente na qualidade de vida da cidade como um todo.

A postura de dependência e de desresponsabilização da população decorre principalmente da desinformação, da falta de consciência ambiental e de um défi cit de práticas comunitárias baseadas na participação e no envolvimento dos cidadãos, que proponham uma nova cultura de direitos baseada na motivação e na co-participação da gestão ambiental das cidades.

A relação entre meio ambiente e educação para a cidadania assume um papel cada vez mais desafi ador, demandando a emergência de novos saberes para apreender processos sociais que se complexifi cam e riscos ambientais que se intensifi cam.

Quando nos referimos à educação ambiental, a situamos num contexto mais amplo, o da educação para a cidadania, confi gurando-se como elemento determinante para a consolidação de sujeitos cidadãos. O desafi o do fortalecimento da cidadania para a população como um todo, e não para um grupo restrito, concretiza-se a partir da possibilidade de cada pessoa ser portadora de direitos e deveres, e se converter, portanto, em ator co-responsável na defesa da qualidade de vida.

O principal eixo de atuação da educação ambiental deve buscar, acima de tudo, a solidariedade, a igualdade e o respeito à diferença, através de formas democráticas de atuação baseadas em práticas interativas e dialógicas. Isto se consubstancia no objetivo de criar novas atitudes e comportamentos face ao consumo na nossa sociedade e de estimular a mudança de valores individuais e coletivos.

E como se relaciona educação ambiental com a cidadania? Cidadania tem a ver com o pertencimento e identidade numa coletividade. A educação ambiental, como formação de cidadania e como exercício de cidadania, tem a ver com uma nova forma de encarar a relação do homem com a natureza, baseada numa nova ética, que pressupõe outros valores morais e uma forma diferente de ver o mundo e os homens.

A educação ambiental deve ser vista como um processo de permanente aprendizagem, que valoriza as diversas formas de conhecimento, e forma cidadãos com consciência local e planetária. As práticas inovadoras aqui apresentadas refl etem, na sua diversidade, uma convergência em conceitos, eixos transversais e enfoques interdisciplinares centrados numa preocupação de incrementar a co-responsabilidade das pessoas em todas as faixas etárias e grupos sociais quanto à importância de formar cidadãos cada vez mais comprometidos com a defesa da vida.

Page 129: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

Parte 4 – Caderno de Atividades

129

A educação para a cidadania representa a possibilidade de motivar e sensibilizar as pessoas para transformar as diversas formas de participação em potenciais caminhos de dinamização da sociedade e de concretização de uma proposta de sociabilidade baseada na educação para a participação.

O complexo processo de construção da cidadania no Brasil, num contexto de agudização das desigualdades, é perpassado por um conjunto de questões que necessariamente implicam na superação das bases constitutivas das formas de dominação e de uma cultura política baseada na tutela.

O desafi o da construção de uma cidadania ativa se confi gura como elemento determinante para constituição e fortalecimento de sujeitos cidadãos que, portadores de direitos e deveres, assumam a importância da abertura de novos espaços de participação.

O desafi o é fortalecer a importância de garantir padrões ambientais adequados e estimular uma crescente consciência ambiental, centrada no exercício da cidadania e na reformulação de valores éticos e morais, individuais e coletivos, numa perspectiva orientada para o desenvolvimento sustentável.

Nesse sentido, a dimensão cotidiana da educação ambiental leva a pensá-la enquanto somatória de práticas e, conseqüentemente, entendê-la na dimensão de sua potencialidade de generalização para o conjunto da sociedade. Entende-se que esta generalização de práticas ambientais só será possível se estiver inserida no contexto de valores sociais, mesmo que se refi ra a mudanças de hábitos cotidianos.

A problemática socioambiental, ao questionar ideologias teóricas e práticas, propõe a questão da participação democrática da sociedade na gestão dos seus recursos atuais e potenciais, assim como no processo de tomada de decisões para a escolha de novos estilos de vida e a construção de futuros possíveis sob a ótica da sustentabilidade ecológica e a equidade social.

Para tanto, é muito importante que se consolidem novos paradigmas educativos centrados na formulação de novos objetos de referência conceituais e principalmente a transformação de atitudes.

A complexidade da questão ambiental abre um espaço para não só estimular a interdisciplinariedade, mas de criar condições para promover um efetivo diálogo de saberes que possibilita, não apenas a união de diferentes disciplinas para abordar um problema comum, mas que tem como objetivo mais desafi ador contribuir como um processo produtor de novos conhecimentos.

A necessidade de uma crescente internalização da questão ambiental, um saber ainda em construção, demanda um esforço de fortalecer visões integradoras que centradas no desenvolvimento, estimulam uma refl exão em torno da diversidade e da construção de sentidos nas relações indivíduo-natureza, dos riscos ambientais globais e locais e das relações ambiente-desenvolvimento.

Pedro Roberto Jacobi é professor titular da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo.

Page 130: Historias de Ensinar e Aprender Parte 1

130

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo

Referências

BECK, Ulrich. Risk Society. London: Sage Publications, 1992

BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano, compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999.

BOFF, Leonardo. Um ethos para salvar a Terra. In: CAMARGO, Aspásia et al. Meio ambiente Brasil: abanicos e obstáculos pós Rio-92. São Paulo: Estação Liberdade/ISA, 2002. p. 49-56.

CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas. São Paulo: Cultrix, 2003.

FLORIANI, Dimas. Conhecimento, Meio Ambiente e Globalização. Curitiba: Juruá Editora, 2003.

FLORIANI, Dimas e KNECHTEL, Maria do Rosário. Educação Ambiental, Epistemologia e metodologias. Curitiba: Vicentinas, 2003.

GADOTTI, Pedagogia da Terra. São Paulo: Peirópolis, 2000.

GIDDENS, Anthony. Conseqüências da Modernidade. São Paulo: Editora da Unesp, 1991.

JACOBI, Pedro Roberto. Educação ambiental, cidadania e sustentabilidade. In: Cadernos de Pesquisa. São Paulo: Autores Associados, 2003, nº. 118: 189-205.

JACOBI, Pedro Roberto. Educação ambiental: o desafi o da construção de um pensamento crítico, complexo e refl exivo. In: Educação e Pesquisa, vol.31/2, maio/agosto 2005. São Paulo: FEUSP, p. 233-250.

LEFF, Enrique. Epistemologia Ambiental. São Paulo: Cortez Editora, 2001

LEFF, Enrique. Pensar a complexidade Ambiental. In: LEFF, Enrique (Org.). A Complexidade Ambiental. São Paulo: Cortez Editora, 2003.

MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil,2002.

MORIN, Edgar et al. Educar na era planetária. São Paulo: Cortez Editora, 2003.

TRISTÃO, Martha. As dimensões e os desafi os da educação ambiental na sociedade do conhecimento. In: RUSHEINSKY, Aloísio (Org.). Educação Ambiental- Abordagens Múltiplas. Porto Alegre: Artmed, 2002.