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Tiragem: 91400 País: Portugal Period.: Semanal Âmbito: Lazer Pág: 93 Cores: Cor Área: 23,50 x 29,70 cm² Corte: 1 de 3 ID: 70224366 01-07-2017 | Revista E E 93 vícios “PESSOAS SEM VÍCIOS TÊM POUCAS VIRTUDES” Capulana, meu amor MÁRIO JOÃO Da tradição para o design. Nos motivos impressos nos panos africanos conta-se a história de um continente TEXTO ANA SOROMENHO*

ID: 70224366 01-07-2017 | Revista E Corte: 1 de 3 vícios · bolo de identidade o cial de Moçambique é feito por Samora Machel. ... São embrulhadas dentro de uma caixa so- sticada,

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Tiragem: 91400

País: Portugal

Period.: Semanal

Âmbito: Lazer

Pág: 93

Cores: Cor

Área: 23,50 x 29,70 cm²

Corte: 1 de 3ID: 70224366 01-07-2017 | Revista E

E 93

vícios“ P E S S OA S S E M V Í C I O S T Ê M P O U C A S V I RT U D E S ”

Capulana, meu amor

RIO

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Da tradição para o design. Nos motivos impressos nos panos africanos conta-se a história de um continente

TEXTO ANA SOROMENHO*

Page 2: ID: 70224366 01-07-2017 | Revista E Corte: 1 de 3 vícios · bolo de identidade o cial de Moçambique é feito por Samora Machel. ... São embrulhadas dentro de uma caixa so- sticada,

Tiragem: 91400

País: Portugal

Period.: Semanal

Âmbito: Lazer

Pág: 94

Cores: Cor

Área: 23,50 x 29,70 cm²

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Pegamos numa revista de moda e vemos Anna Wintour, a célebre diretora da “Vogue” norte--americana, com o seu eterno corte de cabe-

lo carré (com franja e corte direito a meio do pes-coço) e os óculos escuros da praxe, enfiada numa gabardina com desenhos africanos... Anna Win-tour vestida com um corte de capulana? A ima-gem causa impacto suficiente para seguirmos as pistas ditadas pelas inúmeras tendências de moda e constatarmos que nos últimos anos as inspirações captadas no movimento Black Power continuam. Ciclicamente, o african style ganha fôlego e rom-pe. E, de repente, os padrões dos panos africanos, inconfundíveis e exuberantes, são apropriados pe-los estilistas e surgem impressos nos vestidos dos desfiles internacionais, brilhando sumptuosos nos corpos das manequins.

Mas, antes de ser cortado e transformado em peça de vestuário ou em acessório cosmopolita, o pano africano tem uma personalidade forte e ine-quívoca. Na Tanzânia e no Quénia chamam-lhe ankara ou kanga; em Angola, pano do Congo; na Nigéria, lapa; em Moçambique, capulana. Capu-lana é também o termo genericamente conheci-do em toda a África subsariana para designar este pano transversal e multiúsos, estampado em toda a sua superfície, de corte retangular e impresso nos dois lados. Tradicionalmente, capulana é mapa e território. E na imensa diversidade dos seus pa-drões de cores vibrantes e desenhos irrepetíveis está traçado um mosaico de heranças identitárias.

NO ATELIÊ DE SOFIA“É o objeto africano que melhor traduz o femini-no. Uma capulana é oferecida como presente de casamento e pode passar de mãe para filha quan-do esta se casa. É uma herança cultural e íntima e um bem valioso. Antigamente, era o equivalente do ouro. Em sociedades poligâmicas, as mulheres eram trocadas por capulanas. Hoje, nas socieda-des mais tradicionais, ainda continua a ser a maior riqueza de uma mulher”, explica-nos Sofia Vila-rinho, designer de moda, responsável pelo Atelier Alfaiates Africanos (AAA), um projeto com sus-tentabilidade, feito em parceria com o Instituto de Moda Modatex, que integra imigrantes africanos no ofício da alfaiataria. O AAA foi criado em 2011 e desde então já formou 17 alfaiates. Alguns estão agora a trabalhar por conta própria, outros volta-ram a emigrar, formando uma rede de contactos dentro do métier. “É sobretudo um trabalho de re-vitalização social, com o objetivo de afirmar uma marca que se destina principalmente à aprendi-zagem do design e do corte destes panos, que têm as suas técnicas próprias e as suas especificidades. Quem nos procura são clientes direcionados para este tipo de vestuário, mas também podemos fazer roupas ocidentais”, sublinha a mentora do projeto.

A história de Sofia com o universo da manufa-tura das capulanas tem já alguns anos e começou com uma curiosidade: “Quando me formei, em 2005, tentei perceber como funcionava a moda africana. Percebi que tanto os estilistas africanos

como o panorama histórico e cultural estão total-mente fora do sistema. Como se não existissem.” E no entanto existem, como concluiu a designer, depois de uma longa conversa com Joaquim Pais de Brito, então diretor do Museu Nacional de Et-nologia. Foi a partir daí que se inteirou da história dos têxteis em África e que partiu para um traba-lho de investigação que a levou a fazer várias vi-agens a Moçambique e terminou com a sua tese

A Preta é uma loja com porta aberta ao público exclusivamente dedicada à venda de panos africanos

Rosario
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Page 3: ID: 70224366 01-07-2017 | Revista E Corte: 1 de 3 vícios · bolo de identidade o cial de Moçambique é feito por Samora Machel. ... São embrulhadas dentro de uma caixa so- sticada,

Tiragem: 91400

País: Portugal

Period.: Semanal

Âmbito: Lazer

Pág: 95

Cores: Cor

Área: 23,50 x 29,70 cm²

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MORADASAtelier Alfaiates AfricanosRua Jau, 11 A, 1300-311 Lisboa Tel. 914 273 116

PretaRua Rodrigues de Faria, 103, 1300 Lisboa Tel. 216 020 073

Tia Orlanda Rua das Taipas, 113, Porto. Tel. 222 085 710

Onlineretrosaria.rosapomar.com/collections/tecidos-africanos facebook.com/JoanaCapolanaStore

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de doutoramento em moda sustentável intitulado “Mozambique Capulana in a D4S Design Perspec-tive: Identity, Tradition and Fashion-able Chal-lenges in the XXI Century”. Foi neste trânsito que surgiu a marca AAA, que hoje tem loja e ateliê em Lisboa, no Alto de Santo Amaro, e também a Asso-ciação Moda Africana (AMA), que representa vá-rias marcas com o objetivo de criar sinergias cria-tivas entre Portugal e países africanos.

APROPRIAÇÃO E GRAFISMOUma capulana é confecionada com um tecido 100% de algodão, e os estampados são feitos atra-vés do tradicional processo de batik ou wax print. No sua forma original, usa-se o pano sem ser cortado, transformado em vestuário quando é drapeado com mestria e conhecimento. Dos vesti-dos e das saias aos turbantes e às blusas, uma capu-lana é enrolada no corpo e usada de múltiplas for-mas. Como objeto de uso quotidiano, também ga-nhou uma versatilidade incomparável, pois pode servir como saco para transportar bens e alimen-tos, esteira para proteger o corpo ou, principal-mente, cobertor para enrolar o bebé e colocá-lo às costas da mãe, que o carrega o dia inteiro. E neste gesto secular está impresso todo o movimento e a melodia de um continente.

Este têxtil complexo está intrinsecamente liga-do aos africanos desde meados do século XIX. Fo-ram os holandeses, inspirados nos panos das suas colónias na Indonésia, que se apropriaram das téc-nicas e de alguns desenhos feitos em processo ar-tesanal por várias comunidades do mar de Java e começaram a produzi-los na Holanda, de onde os exportavam para África. A primeira fábrica a in-dustrializar os panos foi a holandesa Vlisco, inau-gurada em 1846, que ainda hoje continua a ser uma das marcas mais importantes do sector. Ao longo do tempo, a Vlisco evoluiu e tirou partido do seu legado, trabalhando em colaboração com desig-ners africanos. Esta visão de cowork esteve sempre na origem do sucesso que as capulanas tiveram em África e foi praticada pelos holandeses quase desde o início. A história das capulanas começa em plena Revolução Industrial e coincide com os movimen-tos de abolição da escravatura. Este é um marco

muito importante, porque, ao iniciarem logo uma produção massiva, os holandeses conseguiram dar uma resposta em grande escala relativamente ao negócio dos tecidos manufaturados que chega-vam ao Norte de Moçambique pela Índia e ao Sul através dos árabes, no trajeto do Atlântico. Tudo isto irá definir traços, desenhos, cores, geometri-as, histórias.

“Começa por ser um negócio local, mas já com potencialidades industriais. O que os holande-ses fizeram de melhor foi, logo de início, usar ar-tistas tradicionais e locais para estamparem nos desenhos os ritmos e símbolos de África. É esta apropriação, que coincide com a abolição da es-cravatura, que os torna em panos africanos. Os escravos só podiam usar panos brancos, e o gran-de boom acontece com a possibilidade de usarem tecidos estampados, porque isto significa uma inclusão social. Este é o inicio da apropriação. O pano torna-se uma mensagem, porque o escra-vo era silenciado. Torna-se a voz do povo. Tudo o que se passa a nível das histórias e dos aconte-cimentos públicos e privados pode ler-se numa capulana, que, graficamente, estampa a atualida-de. Neste sentido, quase podemos dizer que é um pano literário. Quando existe um novo pano ou um novo design no mercado, ele é batizado localmen-te e começa logo a ter significado. Estes ciclos de moda fazem parte de um sistema de moda africa-no. Existem modas africanas, com os seus revi-valismos e os seus estampados de época”, explica Sofia Vilarinho.

O início da transformação da capulana em sím-bolo de identidade oficial de Moçambique é feito por Samora Machel. Seguiram-se todos os líderes africanos, que, após a descolonização, imprimi-ram o seu rosto nos panos como bandeira de poder e orgulho africano. A partir de então, a capulana voltou a ser de uso obrigatório em todos os acon-tecimentos de Estado.

NA LOJA PRETA...Em Lisboa, um dos locais de venda com porta aberta ao público (existem vários online) chama--se Preta e foi inaugurado no início deste ano na Lx Factory. Aqui podem-se encontrar-se panos

Mulheres da Ilha de Moçambique, numa fotografia cedida a Sofia Vilarinho por Jorge Almeida, e modelos num desfile

do Atelier Alfaiates Africanos no Moda África, em 2015

vindos de várias geografias de África, que se es-pelham numa variedade espetacular de padrões. Só se vendem tecidos sem ser cortados. Os donos — um casal, ele português, ela moçambicana — vieram de Moçambique para Lisboa, e a ideia de abrir uma loja de venda de capulanas em Portugal surgiu com a constatação de, apesar de haver uma grande comunidade africana a viver no nosso país, praticamente não existirem lojas onde se pudesse adquirir capulanas. O negócio foi pensado como um projeto afetivo, após o nascimento do primeiro filho, uma espécie de batismo simbólico e de liga-ção ao território materno.

Na Preta, as capulanas, segundo a tradição, são muitas vezes procuradas para ofertas em datas es-peciais. São embrulhadas dentro de uma caixa so-fisticada, feita em madeira, com desenhos pin-tados evocativos. Em todas elas está estampada uma andorinha, o mesmo pássaro que sobrevoa Lisboa depois de iniciar o seu trajeto de migração em Moçambique. Neste desenho do voo da andori-nha podemos intuir o gesto simbólico de imprimir nas capulanas o sinal de travessia e transmutação.

...E NO PORTO COM ORLANDAOrlanda tinha 14 anos quando deixou o Zambeze para viver no Porto. Já lá vão quase quatro déca-das, mas os cheiros e as cores ficaram-lhe tatuados no corpo, para sempre envolvido na tradicional capulana. Na Baixa da Invicta, ganhou fama pela cozinha de memórias que chega às mesas, vesti-das com os tradicionais panos moçambicanos de cores garridas, do restaurante Tia Orlanda, nome que se estende ainda à loja, ao lado, onde impera o artesanato da terra natal e as típicas capulanas, no original ou cortadas em vestidos, calças e tú-nicas, trajes prontos a envergar ou feitos à medida por encomenda.

A marca Tia Orlanda, graças a uma parceria com uma fábrica de São João da Madeira, figura ainda em sapatilhas, sapatos e carteiras, que mis-turam o cabedal com os seus tecidos de sempre, importados do mercado de origem. Num espaço sem fronteiras, a novidade deste verão é a bijuta-ria étnica da vizinha África do Sul. b

*Com Isabel Paulo, no Porto