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II Congresso Nacional de Formação de Professores XII Congresso Estadual Paulista sobre Formação de Educadores
GÊNERO E SEXUALIDADE: PESQUISA INTERVENÇÃO COM PROFESSORAS DOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL
Kelly Cristina Brantes, Roberta Stangherlim
Eixo 2 - Projetos e práticas de formação continuada
- Relato de Pesquisa - Apresentação Oral
Este relato de pesquisa apresenta o percurso teórico-metodológico de um projeto de pesquisa e intervenção que busca investigar com professoras das séries iniciais do Ciclo I do Ensino Fundamental, num processo de ação-reflexão-ação, a temática da educação para a sexualidade, equidade de gênero e para a diversidade sexual.O conteúdo deste relato compõe a análise referente a um dos objetivos do estudo de mestrado, em andamento, qual seja: identificar que mudanças ocorrem na concepção e prática de professoras que vivenciam a experiência de formação continuada, por meio e um processo de investigação e intervenção, no horário de formação continuada em serviço, numa escola da rede estadual de ensino, localizada no município de Diadema-SP. Foram realizados cinco encontros mensais, no horário da Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo (ATPC), com quatro professoras dos anos iniciais do ensino fundamental de uma escola da rede pública estadual de São Paulo. Como resultados preliminares, constata-se que, de um lado, as professoras não se sentem preparadas para lidar com essa temática por conta da ausência desta temática no currículo dos cursos de graduação que realizaram e por não terem tido acesso ao tema nos cursos de formação continuada; por outro lado, as docentes valorizam e se sentem valorizadas quando compartilham experiências do cotidiano e a partir daí (re)significam suas práticas num processo de ação-reflexão-ação. A proposta de pesquisa intervenção na perspectiva da ação-reflexão-ação, realizado no espaço de formação continuada em serviço, contribuiu significativamente para a desconstrução de concepções cristalizadas, na cultura escolar e não escolar, sobre a temática “Gênero e Sexualidade”. Palavras-Chave: Ação-Reflexão-Ação; Gênero e Sexualidade; Formação Continuada.
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GÊNERO E SEXUALIDADE: PESQUISA INTERVENÇAO COM PROFESSORAS DOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL
Kelly Cristina Brantes; Profa. Dra. Roberta Stangherlim. UNINOVE, SP.
INTRODUÇÃO
Este relato de pesquisa apresenta o percurso teórico-metodológico de um
projeto de pesquisa e intervenção que busca investigar com professoras das séries
iniciais do Ciclo I do Ensino Fundamental, num processo de ação-reflexão-ação, a
temática da educação para a sexualidade, equidade de gênero e para a diversidade
sexual.
O conteúdo deste relato compõe a análise referente a um dos objetivos do
estudo de mestrado, em andamento, qual seja: identificar que mudanças ocorrem na
concepção e prática de professoras que vivenciam a experiência de formação
continuada, por meio e um processo de investigação e intervenção, no horário de
formação continuada em serviçoi
Para tanto, o percurso metodológico dos encontros de intervenção pautou-se
na perspectiva da “ação-reflexão-ação” tomando como base os pressupostos de Paulo
Freire, no qual a reflexão é um momento realizado entre o fazer e o pensar, entre o
pensar e o fazer, ou seja, no “pensar para o fazer” e no “pensar sobre o fazer”. Desta
forma, entendemos que a reflexão crítica permanente deve constituir-se como
orientação prioritária para a formação continuada dos professores que buscam a
transformação por meio de sua prática educativa:
, numa escola da rede estadual de ensino, localizada
no município de Diadema-SP.
“[...] a prática docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer.[...] O que precisa é possibilitar, que, voltando-se sobre si mesma, através da reflexão sobre a prática, a curiosidade ingênua, percebendo-se como tal, se vá tornando crítica.[...] A prática docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer[...]”.( FREIRE, 2001, p. 42-43).
Com base nessa compreensão, ao conceito de reflexão Freire (2001)
apresenta duas categorias: a crítica e a formação permanente, no qual a reflexão
crítica é resultante da transformação da curiosidade ingênua em curiosidade
epistemológica, enquanto que a formação permanente é resultado do conceito da
condição “de inacabamento do ser humano”.
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Conceber o horário de formação continuada em serviço como um espaço de
reflexão, - que por meio da práxis reflexiva pode oferecer às professoras
possibilidades de ampliar conhecimentos, rever o que já sabem, e o que ainda
necessitam para aprofundar os estudos e aperfeiçoar suas práticas -, significa assumir
que "o importante é que a reflexão seja um instrumento dinamizador entre teoria e
prática" (FREIRE, 2001, p.39).
A pesquisa-intervenção foi realizada na formação continuada em serviço que
na rede estadual denomina-se Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo (ATPC) com a
participação de cinco professorasii
Foram realizados cinco encontros mensais de formação, no período de agosto
a dezembro de 2013. As etapas e os procedimentos metodológicos do processo de
investigação e intervenção foram compostos de: i. leitura, estudo e análise para
seleção de materiais diversos (textos científicos e literários, vídeos, imagens dentre
outros) e posterior planejamento dos encontros; ii. registro audiogravado e transcrito
em diário de campo para posterior análise e reorientação do plano de formação para o
próximo encontro;iii. elaboração de proposta de intervenção para que as professoras
realizassem com os estudantes das salas de aula em que atuavam.
que atuam nos 1º e 2º anos dos anos iniciais do
ensino fundamental, sendo que três delas participaram com maior regularidade e as
outras duas tiveram sua frequência comprometida por motivos pessoais (uma das
professoras tirou licença gestante e a outra participou de dois do total de encontros
realizados).
Por fim, neste relato de pesquisa, busca-se destacar pelo menos dois aspectos
levantados no processo de análise preliminar do estudo em curso: a) dimensões que
abrangem possíveis fragilidades e potencialidades na formação de professores e que
podem ou não contribuir para a sua prática, tendo em vista a temática específica da
educação para a sexualidade, equidade de gênero e diversidade sexual nos anos
iniciais do ensino fundamental; b) avanços apresentados pelas professoras no que diz
respeito à valorização da formação para a reflexão sobre suas próprias concepções e
práticas docentes, tendo em vista a participação numa proposta de formação
continuada orientada por princípios da pesquisa e intervenção pautada na perspectiva
da ação-reflexão-ação, postulada por Paulo Freire.
PESQUISA-INTERVENÇAO COM BASE NA AÇÃO-REFLEXÃO-AÇÃO Um Projeto de Pesquisa e Intervenção, no Programa de Mestrado em Gestão e
Práticas Educacionais, deve articular o objeto de estudo às demandas concretas da
educação, nas esferas que compõem as linhas de pesquisa desse Programa quais
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sejam: Pesquisa e Intervenção em Gestão Educacional, Pesquisa e Intervenção em
Práticas Pedagógicas e Pesquisa e Intervenção em Práticas Político-Sociais (linha a
qual pertence esse Projeto de Pesquisa e Intervenção).
Assim, o principal foco da pesquisa intervenção são as práticas, tendo como
missão produzir conhecimentos que resultem em subsídios para o enfrentamento dos
problemas do cotidiano da escola. Especificamente, no caso deste estudo, as
concepções e práticas de gênero e sexualidade de docentes dos anos iniciais são o
objeto desta pesquisa e intervenção.
Desse modo, partimos das concepções que as professoras apresentavam
acerca da temática de gênero e sexualidade. Uma das estratégias utilizadas para
captar as concepções foi identificar os conceitos trazidos nas reflexões que as
docentes faziam diante de relatos de casos apresentados tanto pela pesquisadora
quanto por elas. Os casos relatados geralmente expressavam as curiosidades das
crianças sobre a temática, permitindo que as concepções fossem sendo reveladas por
meio do diálogo entre a pesquisadora e as professoras.
No contexto da pesquisa intervenção, evidenciamos o potencial criativo,
inovador e mobilizador de processos de mudança nas e pelas práticas, no espaço de
formação continuada em serviço. Cada vez mais se faz necessária a criação de
espaços em que os professores possam refletir sobre a sua própria prática,
considerando-os como sujeitos que constroem seus conhecimentos profissionais a
partir de sua experiência e saberes.
O potencial de reflexão é algo inerente a cada um de nós, no qual não há
modelo a ser seguido e, neste sentido, cada um tem um método, uma prática para
realizar seu registro. Para Freire (2001, p.39) “[...] o importante é que a reflexão seja
um instrumento dinamizador entre teoria e prática[...]” Assim,não basta apenas pensar
e refletir, é preciso que a reflexão possibilite leve às professoras à uma ação
transformadora, fazendo-os pensar sobre seus desejos, vontades, histórias.
O estudo da formação continuada no Brasil ganha força na década de 1990,
especialmente pelas contribuições de pesquisadores como Schön, Tardif, Nóvoa e
Zeichner.
Schön (1992) defende que o conhecimento que emerge em situações de
conflito, incertas e únicas de um modo espontâneo e que se não é capaz de explicitar
pode ser descrito, em alguns casos, por observação e reflexão sobre as ações.
Tardif (2002, p.36) define o saber docente como “[...] um saber plural, formado
pela amálgama, mais ou menos coerente, de saberes oriundos da formação
profissional e de saberes disciplinares, curriculares e experiências”. Ou seja, a relação
dos docentes com os saberes não é restrita a uma função de transmissão de
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conhecimentos já constituídos. A prática docente integra diferentes saberes e mantém
diferentes relações com eles.
Nóvoa (1991) considera três aspectos como fundamentais no processo de
viabilização de uma educação continua de qualidade, a saber: o pessoal, profissional e
organizacional. O desenvolvimento pessoal do professor mediante formação crítico-
reflexiva; o desenvolvimento profissional, ou seja, produzir a profissão docente
(identidade) a partir de questionamentos sobre a autonomia e profissionalismo do
professor face às regulações burocráticas do Estado; e o desenvolvimento
organizacional, no qual as inovações não ocorrem sem que ocorram as
transformações na organização escolar:
“[...] a formação deve estimular uma perspectiva crítico-reflexiva, que forneça aos professores os meios de um pensamento autônomo e que facilite as dinâmicas de autoformação participada. Estar em formação implica um investimento pessoal, um trabalho livre e criativo sobre os percursos e os projetos próprios, com vistas à construção de uma nova identidade, que é também uma identidade profissional.”(NÓVOA, 1991, p.25).
Zeichner (1997) destaca a questão da validade dialógica reflexiva, ou seja, a
capacidade de a pesquisa promover o diálogo, a reflexão entre os professores de abrir
espaços interativos para convivência crítica, para além da rotina e dos espaços
burocraticamente organizados.
No entanto, a formação continuada em serviço têm demonstrado fragilidades
no tocante à transformação dos professores em meros executores de programas
previamente elaborados por “especialistas”:
“[...] as instituições de treinamento de professor e as escolas públicas têm, historicamente, se omitido em seu papel de educar os docentes como intelectuais. Em parte, isto se deve à absorção da crescente racionalidade tecnocrática que separa a teoria e prática e contribui para o desenvolvimento de formas de pedagogia que ignoram a criatividade e o discernimento do professor.” (GIROUX, 1988, p. 23)
Desta forma, é evidente a falta de unidade entre os saberes docentes, gerando
uma prática pedagógica frágil, não crítica que, consequentemente não transforma, não
constrói, mas acaba por reproduzir as representações sociais de uma classe
hegemônica da sociedade.
Não obstante, Pimenta (2005) enfatiza que o saber docente não deve ser
formado apenas da prática, mas também nutrido pelas teorias da educação, no qual
ambas - teoria e prática - se resignificam mutuamente, dotando os sujeitos de variados
pontos de vista para uma ação contextualizada, oferecendo perspectivas de análise
para que os professores compreendam os diversos contextos vivenciados por eles.
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Enfatizamos a necessidade e a urgência de superação do modelo de
racionalidade técnicaiii
A estratégia metodológica da ação-reflexão-ação coloca em evidência a
contribuição da reflexão e da crítica no exercício da docência para a valorização da
profissão docente, dos saberes dos professores, do trabalho coletivo destes e das
escolas enquanto espaço de formação contínua. A pesquisa e intervenção, na
perspectiva da ação-reflexão-ação, reconhece o professor como investigador e
produtor do conhecimento. Cria-se, portanto, espaço para que o docente reflita sobre
sua própria prática, orientando-se por pressupostos teórico-metodológicos que
possibilitem a problematização e o (re) pensar sobre as práticas educativas, as quais
envolvem, no dizer de Paulo Freire (2005), "o saber da experiência feito”.
por uma racionalidade baseada em princípios que defendam a
emancipação e a autonomia na formação do professor, numa perspectiva crítica. Na
racionalidade crítica é possível compreender que a formação pessoal e profissional
caracteriza-se como um devir permanente, envolvendo as experiências de formação
inicial e continuada e as experiências no exercício da profissão.
Dessa forma, concordamos com as ideias de Paulo Freire quando rejeita o
“saber bancário” e o autoritarismo dos professores, e propõe substituir a sala de aula
da escola pelo “círculo de cultura”, e o professor pelo “animador”, cuja função seria
promover o “diálogo” com os educandos e entre eles. Para que isto ocorra é preciso
partir da realidade vivida, criticando-a e tendo em vista transformá-la. Daí a
valorização dos “saberes de experiência feitos” e a assunção da categoria práxis,
configurada em termos pedagógicos políticos.
A metodologia utilizada nos encontros de formação com as professoras foi
inspirada na proposta de Círculo de Cultura, proposta por Paulo Freire. Uma das
estratégias foi estimular a busca de respostas para os problemas da prática educativa
e a sua descoberta coletiva. Outro princípio metodológico adotado foi o incentivo à
curiosidade e a explicitação de conflitos para o enfretamento das contradições da
prática educativa, tendo como ponto de partida os temas geradores que pautaram
cada encontro de intervenção, quais sejam: diferentes configurações familiares;
gênero e sexualidade (leitura e relatos de casos); brincadeiras e culturas infantis;
gênero/sexualidade e práticas pedagógicas (estudos do meio, e outras possibilidades
de intervenção com os alunos).
Ao problematizar as diferentes configurações de família, em um dos encontros,
foram propostas as atividades de leitura e discussão de textos que tratavam dos
conceitos de família monoparental, família nuclear, família homoafetiva e sócioafetiva,
considerando sua contextualização histórica, buscou-se analisar como esses
conceitos de família foram se constituindo o longo do tempo. Alguns desses conceitos
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surgiram no contexto da luta do movimento das mulheres por seus direitos, como a lei
do divórcio, dentre outras conquistas.
Ao discutir o tema família, as professoras refletiram também sobre o papel da
escola na formação das crianças. A pesquisadora problematizou com o grupo de
docentes que a escola, juntamente com as instâncias jurídicas, faz parte da rede de
proteção à criança e para tanto deve cumprir também com o seu papel social nesta
rede de proteção e, por isso, é importante que professores e familiares tenham
conhecimento sobre como agir diante de situações em que há violação dos direitos da
criança.
Além de leitura e discussão de textos e estudo de casos foram exibidos vídeos
de um projeto intitulado "Educação para a Sexualidade, equidade de gênero e
diversidade sexual", produzido pela Universidade Federal do Mato Grosso em parceria
com a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério
da Educação- SECAD/MEC. O objetivo desse encontro foi possibilitar a reflexão e
análise por parte das professoras sobre a metodologia do "estudo do meio" na
abordagem da temática "gênero e sexualidade" com as crianças. Como exemplo foi
apresentado o "estudo do meio" realizado por meio de recortes de encartes de lojas de
brinquedos.
Em suma, um dos procedimentos adotados na pesquisa intervenção para a
sistematização dos dados foi a elaboração de texto-síntese com a transcrição das
falas das professoras de acordo com as reflexões dos temas geradores norteadores
de cada encontro para posterior leitura, análise e reflexão nos encontros seguintes.
Outra estratégia adotada para mobilizar e manter o grupo empenhado e comprometido
com as discussões foi o envio, com antecedência, via correio eletrônico, para as
professoras, do texto-síntese, da carta-convite e material para leitura com a
colaboração da professora-coordenadora da unidade escolar.
GÊNERO E SEXUALIDADE: CONCEPÇÕES E PRÁTICAS DE PROFESSORAS DOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL
Por meio da análise do percurso acadêmico das professoras participantes da
pesquisa, constatou-se que tanto em sua formação inicial quanto em sua formação e
continuada não tiveram acesso aos conteúdos relacionados com a temática "gênero e
sexualidade".
Um estudo diagnóstico dos currículos dos cursos de Pedagogia realizado pela
Organização não-governamental Comunicação em Sexualidade (ECOS), em 2008,
identificou que das 989 universidades pesquisadas que ofereciam o curso de
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Pedagogia, apenas 41 universidades contemplavam na grade curricular disciplinas
com a temática da sexualidade com conteúdos de gênero, corpo/corporeidade,
diversidade sexual, biologia/educação e saúde/educação. Na maior parte dessas
universidades, os cursos são optativos, ou seja, não integra a grade regular
obrigatória, o que talvez justifique a formação deficitária de profissionais da educação
na temática sobre gênero e sexualidade.
Em outro estudo sobre a formação de professores em cursos de Pedagogia,
Gatti et al (2010) que analisou projetos pedagógicos de 71 cursos de Pedagogia em
várias instituições de ensino superior no Brasil apontaram que, a formação inicial dos
professores, no ensino superior ocorre de forma fragmentada, ou seja, a formação
está dissociada do exercício da docência. A não integração entre ensino-pesquisa-
extensão presente nos cursos analisados contribui para tal dissociação.
No tocante à formação continuada, nos dias atuais têm sido ofertado uma
gama cada vez maior de cursos pautados no discurso da meritocracia, qualificação,
capacitação e aperfeiçoamento, com a mera finalidade de atender a exigência de
certificação dos profissionais da educação.
Neste contexto, a fragilidade da formação inicial e a pouca oferta nos cursos de
formação continuada em tratar da temática da educação para a sexualidade, equidade
de gênero e diversidade sexual é evidenciada no relato das professoras participantes,
bem como se apresenta no estranhamento que sentem em lidar com situações do
cotidiano escolar, ou, ainda, por se pautarem mais na experiência do senso comum do
que em leituras fundamentadas em produções científicas. Os relatos a seguir ilustram
o que se quer dizer.
Ao serem provocadas a se posicionarem se as questões de gênero e
sexualidade cabem à escola tratar, a docente Antôniaiv respondeu: “Sim, mas de uma
maneira superficial, pois cabe a responsabilidade maior aos pais
Durante as reflexões após a leitura de um relato de um caso que enfocava a
situação de uma aluna dos anos iniciais que trouxera um preservativo de casa, foi
proposto que as professoras relatassem como agiriam se a situação tivesse ocorrido
com um de seus alunos (as). De um lado, a professora Antonia disse: "Eu retiraria,
levaria para a coordenação resolver, pois minha função é alfabetizar!”; por outro lado,
a professora Raquel argumentou o seguinte: Eu explicaria para a criança para que
serve um preservativo, porque se a gente repreende até traumatiza a criança... eu
explicaria tudo direitinho, mas se ele perguntar o que é sexo, eu falaria que é um ato
”. (grifo nosso);
enquanto a professora Raquel disse o seguinte: “Sim, as questões de gênero e
sexualidade cabem à escola tratar, pois os pais sentem vergonha de comentar com os
filhos...
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de amor entre um homem e uma mulher, porque daí ele não vai perguntar mais
nada...”
Paulo Freire, em Pedagogia da Autonomia (2001, p.17), argumenta que
ensinar exige risco, aceitação do novo, e rejeição a qualquer forma de discriminação.
Se, de um lado, as falas das professoras traduzem o desconhecimento, a falta de
apropriação sobre o tema; por outro lado, é possível identificar significativas
potencialidades presentes no desejo que demonstram em aprender, buscando
valorizar o espaço de formação que foi sendo construído com elas por meio da
proposta da pesquisa intervenção. A manifestação de uma das professoras expressa a
satisfação de poder compartilhar com o grupo as experiências do cotidiano escolar e,
ao mesmo tempo, indica que o espaço de formação em serviço praticamente não é
ocupado para isso: “é muito bom discutirmos questões do cotidiano, pois na nossa
ATPC só discutimos coisas burocráticas, como registro, mapeamento, avaliações,
festas; é bom conversamos com nossas colegas de coisas que acontecem na nossa
sala de aula e que não comentamos nas reuniões.” (professora Raquel*).
No encontro sobre o tema “Configurações Familiares” foi proposto que as
professoras realizassem uma atividade de registro, por meio do desenho, com os
alunos, com o objetivo de identificar como as famílias das crianças estão
configuradas”. A professora Antonia enfatizou o cuidado ao tratar com a temática da
família com as crianças:
“.. quando a gente pergunta quem é a sua família? Eu já respondo que são as
pessoas que cuidam de você quem mora com você , pode ser o papai, a mamãe ou a
vovó e a mamãe, a gente tem que falar tudo isso , pode ser a titia ou titio que cuida,
porque se você joga aquela família , pai e mãe e tudo , porque eles se sentem assim
rejeitados”.
A professora Raquel destacou a importância da reflexão e discussão sobre as
diferentes configurações familiares, e também o quanto é importante o docente
conhecer melhor a família do aluno. Ela disse que ao propor aos seus alunos o
registro (desenho) de sua família pôde conhecer melhor qual a concepção que a
criança tem de família. Enfatizou que as discussões que têm ocorrido nos encontros
de ATPC com a pesquisadora têm despertado um novo olhar e um novo fazer
pedagógico de forma a problematizar com as crianças as diferentes configurações
familiares.
As professoras relataram que começaram a observar melhor o comportamento
das crianças com relação aos artefatos culturais expressos nas brincadeiras, nos
gestos, nas falas. Afirmaram, ainda, que se sentem mais preparadas para lidar com os
questionamentos que as crianças trazem acerca da sexualidade e que atribuem mais
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sentido ao ato de problematizar as questões sobre gênero e sexualidade com as
crianças, pois estão percebendo que estas questões estão fortemente presentes na
sociedade e que vão marcando corpos, comportamentos, estereótipos conforme
expresso na fala da professora Raquel:
“... esses dias, eu estava vindo para a escola, e reparei em um outdoor de uma
universidade, que trazia a imagem de um homem para a profissão de engenheiro e a
de uma mulher para a profissão de enfermeira, eu não tinha observado essas
questões, mas depois que estamos discutindo aqui na ATPC as questões de gênero e
sexualidade, pude perceber melhor como a própria sociedade determina por meio da
cultura profissões masculinas e femininas..”
No encontro sobre o tema "Brincadeiras e Brinquedos", as professoras
relataram que com relação às meninas parece não haver problemas em brincar de
carrinho, jogar bola e outras brincadeiras; entretanto, no caso dos meninos, afirmaram:
“...querer brincar de boneca, já é mais complicado, porque ele vai sofrer retaliação dos
coleguinhas...”. A pesquisadora, nesse momento, propôs diversas possibilidades
educativas para problematizar o brincar de boneca, dentre essas possibilidades,
destacou a confecção de bonecos, a produção de teatro de bonecos, leitura e releitura
da obra “ Menino brinca de boneca?” (RIBEIRO, 2001).
O caminho para uma educação para a sexualidade, equidade de gênero e
diversidade sexual, especialmente nos anos iniciais, ainda requer uma mudança de
paradigmas, valores, concepções, traduzidas nas falas de algumas professoras
quando dizem que não se sentem capazes de conduzir determinadas situações em
sala de aula, principalmente quando se trata da sexualidade. Há muitas formas de
desenvolver projetos sobre essas questões com as crianças. Entendemos que é
importante que essa temática faça parte da rotina e do planejamento da escola, e não
apenas colocado em evidência apenas em situações “emergenciais”, ou para “apagar
incêndios”, diante de alguma situação inusitada que ocorre na escola.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao propormos a pesquisa intervenção, no espaço de formação continuada em
serviço, fundamentada na perspectiva da ação-reflexão-ação, consideramos que
criamos possibilidades concretas às professoras de ampliar conhecimentos, rever o
que já sabem e o que ainda necessitam para aprofundar seus estudos teóricos e
aperfeiçoar a prática com relação a temática "Gênero e Sexualidade".
Mais ainda, para além das exigências que as professoras têm de cumprir
diante dos programas e projetos da rede estadual de ensino, verificamos que foi
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possível construir com elas, no espaço de ATPC, momentos de compartilhamento de
experiências, reflexão sobre as suas práticas. Com se vê na fala da professora
Antonia:
“...Os encontros foram ótimos.. acho que é uma atividade de pensar repensar o que a
gente faz em sala de aula. A cobrança é grande dos conteúdos, temos que dar
conta... Fora isso, tem os projetos que vem de fora, e a gente tem que se virar para
trabalhar os projetos...”
Essa avaliação da professora corrobora com as ideias de Contreras (2002)
que afirma que os professores vivenciam em seu cotidiano a separação entre a
concepção e a execução do ensino, tornando-se aplicadores de programas/pacotes
curriculares; o que para Gatti et al (2010, p.1360) impõe a necessidade de superação
da concepção do professor como técnico para “[...] adentrar a concepção de um
profissional que tenha condições de confrontar-se com problemas complexos e
variados, estando capacitado para construir soluções em sua ação, mobilizando seus
recursos cognitivos e afetivos”.
Em carta enviada, por meio de correio eletrônico, as professoras avaliam:
Só temos a agradecer a oportunidade de termos participado dos
encontros de formação. Foi interessante poder levar nosso universo para
lugares onde ainda não tínhamos chegado ou pensado em como agir. Pudemos
ampliar nossa visão com relação à sexualidade, levando a uma
ação-reflexão-ação, quando algo relacionado acontecia.
Foi desafiador encontrar maior número possível de casos nos quais até
então passaram despercebidos. Compartilhar essas experiências foi
gratificante”.
A proposta de pesquisa intervenção na perspectiva da ação-reflexão-ação,
realizado no espaço de formação continuada em serviço, contribuiu significativamente
para a desconstrução de concepções cristalizadas na cultura escolar e não escolar. O
percurso metodológico foi sendo construído pela pesquisadora com base nas
demandas que emergiam dos diálogos com as professoras, tendo como compreensão
que a profissão docente exige o compromisso com o conhecimento científico, com a
própria formação continuada, e com o ensinar e aprender.
i Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo (ATPC):formação continuada em serviço da Secretaria de Estado da Educação/SP. ii Os relatos e registros das professoras participantes foram gravados, transcritos e digitalizados mediante autorização prévia no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
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iii A racionalidade técnica é baseada no “treinamento das habilidades”, na qual o professor é um mero executor/reprodutor (“técnico”) de saberes produzidos por especialistas, em outras palavras, ele aprende o “suficiente” para conduzir o processo de ensino-aprendizagem. iv* Todos os nomes são fictícios. REFERÊNCIAS CONTRERAS, José. Autonomia dos professores. Tradução: Sandra Trabucco Valenzuela. 2 ed. –São Paulo: Cortez, 2002. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2001. GATTI, Bernadete. A formação de professores no Brasil: características e problemas. In: Educação e Sociedade., Campinas, v.31, n. 113, p.1355-1379, out-dez. 2010. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br, acesso em 19 de janeiro de 2014. GIROUX, Henri. A escola crítica e a política cultural. Trad. Dogmar M.L.Zibas. São Paulo: Cortez, 1988. NÓVOA, Antonio. A formação contínua de professores: realidades e perspectivas. Aveiro: Universidade de Aveiro, 1991. PIMENTA, Selma Garrido. O estágio na formação de professores: unidade teórica e prática.3 ed. São Paulo: Cortez, 2005. RIBEIRO, Marcos. Menino brinca de boneca? Ilustração Bia Salgueiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Salamandra,2001. SCHÖN, Donald A. Formar professores como profissionais reflexivos. In: NÓVOA, Antonio (coord.). Os professores e sua formação. Lisboa : Dom Quixote, 1992. TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 8ª.ed. Petrópolis: Vozes, 2002. ZEICHNER, Kenneth M. O professor reflexivo. In: Reunião Nacional da ANPED. Caxambu,1997.
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