29
714 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020. Helmut Renders**, Larissa Dantas Camargo Melo*** IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO ALTAR DOS SETE SACRAMENTOS ( 1445/1450 ) DE ROGIER VAN DER WEYDEN* DOI 10.18224/cam.v17i4.7489 Resumo: este artigo explora a linguagem visual da pintura “Altar dos sete sacramentos” (1445/1450) de Rogier van der Weyden e sua articulação da teologia sacramen- tal na transição da época medieval tardia à Renascença. Em sua organização acompanha o artigo as características composicionais do tríptico como seus principais motivos e sua interpretação inspira-se em aspectos dos métodos in- terpretativos de Heinrich Wölfflin e Erwin Panofsky. Palavras-chave: Linguagens religiosas. Cultura visual religiosa. Altar dos Sete Sacra- mentos. Rogier van der Weyden. Sacramentos. A cultura visual religiosa acompanha o cristianismo nos mais variados momentos da sua história. As imagens cristalizam e congelam experiências religiosas, afir- mam acentos doutrinários e conduzem gerações, transmitindo a quem às con- templa a sua mensagem em uma linguagem peculiar. Em seguida, interpretamos a pintura “Altar dos sete sacramentos”, criado entre 1445 e 1450 por Rogier van der Weyden. Ou seja, trata-se de uma pintura que representa uma das compreensões católicas dos sacramentos no início da Renascença no Norte da Europa. O artigo ini- ciou como relatório PIBIC que seguiu os três passos do método iconológico de Erwin Panofsky (1982, 2014). Começou com a descrição pré-iconográfica com a pergunta “o que está representado?” Seguia-se com a análise iconográfica ba- seado à pergunta “como se está representado?” e avançou à análise iconológica ––––––––––––––––– * Recebido em: 15.08.2019. Aprovado em: 17.03.2020. ** Doutor e mestre em Ciências da Religião (UMESP) com pós-doutorado em Ciência da Religião (UFJF). Doctor of Ministry (Wesley Seminary Washington, DC / EUA). Profes- sor no Programa da Pós-graduação em Ciências da Religião e na Faculdade de Teologia (UMESP). E-mail: [email protected] *** Graduanda em Teologia (UMESP). Bolsista de Iniciação Científica. E-mail: dantaslaris- [email protected]

IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

  • Upload
    others

  • View
    18

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

714 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

Helmut Renders**, Larissa Dantas Camargo Melo***

IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO ALTAR DOS SETE SACRAMENTOS (1445/1450)

DE ROGIER VAN DER WEYDEN*

DOI 10.18224/cam.v17i4.7489

Resumo: este artigo explora a linguagem visual da pintura “Altar dos sete sacramentos” (1445/1450) de Rogier van der Weyden e sua articulação da teologia sacramen-tal na transição da época medieval tardia à Renascença. Em sua organização acompanha o artigo as características composicionais do tríptico como seus principais motivos e sua interpretação inspira-se em aspectos dos métodos in-terpretativos de Heinrich Wölfflin e Erwin Panofsky.

Palavras-chave: Linguagens religiosas. Cultura visual religiosa. Altar dos Sete Sacra-mentos. Rogier van der Weyden. Sacramentos.

A cultura visual religiosa acompanha o cristianismo nos mais variados momentos da sua história. As imagens cristalizam e congelam experiências religiosas, afir-mam acentos doutrinários e conduzem gerações, transmitindo a quem às con-templa a sua mensagem em uma linguagem peculiar. Em seguida, interpretamos a pintura “Altar dos sete sacramentos”, criado entre 1445 e 1450 por Rogier van der Weyden. Ou seja, trata-se de uma pintura que representa uma das compreensões católicas dos sacramentos no início da Renascença no Norte da Europa. O artigo ini-ciou como relatório PIBIC que seguiu os três passos do método iconológico de Erwin Panofsky (1982, 2014). Começou com a descrição pré-iconográfica com a pergunta “o que está representado?” Seguia-se com a análise iconográfica ba-seado à pergunta “como se está representado?” e avançou à análise iconológica

–––––––––––––––––* Recebido em: 15.08.2019. Aprovado em: 17.03.2020.

** Doutor e mestre em Ciências da Religião (UMESP) com pós-doutorado em Ciência da

Religião (UFJF). Doctor of Ministry (Wesley Seminary Washington, DC / EUA). Profes-

sor no Programa da Pós-graduação em Ciências da Religião e na Faculdade de Teologia

(UMESP). E-mail: [email protected]

*** Graduanda em Teologia (UMESP). Bolsista de Iniciação Científica. E-mail: dantaslaris-

[email protected]

Page 2: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

715 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

em resposta da pergunta “por que se representa assim?”. Entretanto, observando esses passos, girou-se um texto de mais do que 30 páginas, o que o tornou inca-bível para o formato comum de uma revista científica. Decidimos, então, reor-ganizar o texto segundo a distinção de Heinrich Wölfflin entre o motivo central (Hauptmotiv) e os motivos secundários (Nebenmotive) (WÖLFFLIN, 1915, cap. 16) e integramos nessa composição tanto observações de detalhes formais como seus supostos significados. Com isso, focamos também naquilo que Panofsky designou como os passos pré-iconográfico e iconográfico. Com outras palavras, o nosso propósito é estudar as linguagens visuais encontradas nessa obra de arte como linguagens religiosas.

Assim, focamos, depois de uma breve introdução – Origem e composição da pintura Altar dos Sete Sacramentos –, nas partes essenciais da pintura. Primeiro, dedicamo-nos ao motivo central – A cena central do tríptico: O Cristo crucificado e a Eucaristia –, depois, aos motivos criados “ao redor” desse centro visual, a narrativa visual dos sete sacramentos – O primeiro grupo de motivos secundários: os sete sacramentos e o ciclo da vida. Ao final, exploramos um segundo motivo auxiliar, – O segundo grupo de motivos “secundários”: Os anjos como mensageiros entre as esferas divina e humana. Assim esperamos dar justiça à intenção original religiosa dessa obra magnífica e contribuir para a sua compreensão hoje em dia.

ORIGEM E COMPOSIÇÃO DA PINTURA ALTAR DOS SETE SACRAMENTOS

A pintura chamada “Altar dos sete sacramentos” do belga Rogier van der Wayden1 foi finalizada entre 1445 a 1450 (Figura 1). Segundo Max Jacob Friedlan-der, a pintura foi resultado de uma encomenda do bispo de Tournai, Jean Chevrot2, amigo do pintor e encontra-se atualmente no Museu Real de Be-las Artes da Antuérpia. Pintar obras religiosas sob encomenda significava na época que ela foi acompanhada por uma descrição detalhada do tema e da sua execução desejada, com outras palavras, esperava-se que a obra ia corresponder às expectativas estéticas e convicções religiosos do solici-tante3. Isso não significa que o artista foi desconsiderado. Segundo Ernst Gombrich (2018, p. 249),

[...] pintores como Jan van Eyck [...], Rogier van der Weyden [...] e Hugo van der Góes [...] eram famosos em toda a Europa. Esses artistas, pelo menos, que se esfor-çaram por absorver o Novo Saber, como Dürer fez na Alemanha, viam-se frequente-mente dilacerados entre a fidelidade aos velhos métodos e o amor aos novos.

Entretanto, era a sua técnica que os fez famosos, não a sua opinião religiosa pes-soal. De fato, como iremos ver mais para frente, retratou van der Wayden

Page 3: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

716 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

seu patrocinador na pintura, dando destaque a essa relação. Em seguida, iremos, então, interpretar a obra mais a partir de aspectos gerais e somen-te, pontualmente, a partir da observação dos aspectos mais individuais do artista.

Uma primeira análise da composição evidência uma estrutura clara, tanto em suas di-mensões horizontal como vertical. A pintura é desenvolvida dentro do formato de um tríptico que dá destaque à tábua central (Figura 1, seções 4A-4C), tanto pela sua localização como pelo seu tamanho, inclusivo pela dimensão das pes-soas retratadas nela. Supomos que se trata, no sentido da distinção de Wölfflin, da cena, do motivo ou da mensagem visual central da obra. Quanto à dimensão horizontal, as tábuas do lado esquerdo e do lado direito, são divididas em três motivos cada (Figura 1, seções 1-3C e 5-7C) que formam junto com a cena no fundo da tábua central (Figura 1, seções 4C) sete seções distintas. Chamamos esse grupo de cenas motivos o nosso primeiro grupo de motivos secundários (Figura 1, seções 1-7C).

Figura 1: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450Fonte: https://commons.wikimedia.org

Page 4: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

717 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

Quanto à dimensão vertical, identificamos duas esferas visivelmente distintas uma da outra: à primeira esfera (Figura 1, 1-7A), a esfera celestial, pertence ao rigor – da sua cabeça aos seus pés – somente o Jesus crucificado (Figura 1, 4A); à segunda esfera, à esfera terrestre (Figura 1, 1-7C), pertencem quarenta e nove pessoas. Vistos os números de modo teológico, cria a unicidade e singulari-dade da pessoa do crucificado a condição para que as pessoas ao seu redor acabam a pertencer à esfera do divino (sete x sete) e, literalmente, se tornam santos/as (aqueles que pertencem ao divino).

Entre estas duas esferas claramente distintas, há um terceiro grupo de sete anjos (Figu-ra 1 1-7B), uma Figura feminina, a Maria (Figura 1, 4B) e três Figuras mas-culinas. As asas do grupo dos anjos na tábua direita (Figura 1, 5-7B) chegam até na esfera “A” ou celestial; e as bandeirolas individuas com textos de todos os anjos alcançam a esfera “C” ou terrestre. Assim, os sete anjos, a pessoa da Maria – e os quatro evangelistas (podemos supor que atrás de uma coluna se esconde mais uma escultura) – são retratados como mediares/as entre as duas esferas celestial e terrestre, entre o céu e o mundo.

Figura 2: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450 Fonte: https://commons.wikimedia.org

Quanto ao tamanho das pessoas retratadas (Figura 1, 1-7C) há duas observações a fazer. Primeiro, em todas as sete seções as Figuras da frente são maiores do que as Figuras ao seu fundo, o que corresponde à noção renascentista da pers-pectiva e da dimensão da profundidade4; segundo, o grupo de cinco Figuras

Page 5: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

718 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

humanas na tábua central é relativamente maior do que as Figuras do mesmo plano das tábuas laterais, seja do seu lado esquerdo ou direto o que dá um destaque ao grupo que se encontra nessa tábua central (Figura 1, 4C). Que essas diferenças de escala também se observem comparando esse grupo com a representação do Cristo crucificado, parece-nos mais um problema da estética composicional geral do quadro. Um Cristo maior teria desequilibrado uma das regras clássicas da composição: a composição ad triangulum. Por um lado, o artista submete aqui a sua obra a essas regras clássicas, por outro lado, ele abre a possibilidade para dialogar, por meio da composição, com compreensões teológicas:• Primeiro, a ideia da trindade com um equilíbrio entre verticalidade e horizon-

talidade que aponta o aspeto da trindade como trindade econômico ou o seu propósito primeiro de administrar a salvação do mundo;

• Segundo, uma articulação sutil que ancora o aparente cristocentrismo da pin-tura numa teologia trinitária;

• Terceiro, seguindo as medianas do triângulo, relacionam-se as cabeças das quatro mulheres e do homem da cena central.

A CENA CENTRAL DO TRÍPTICO: O CRISTO CRUCIFICADO E A EUCARISTIA

O painel central do tríptico é dominado pela cena da crucificação que retrata na sua parte superior o crucificado (Figura 3 e Figura 1, 4A), na sua parte inferior, abaixo da cruz, quatro discípulas e um discípulo (Figura 3, e Figura 1, 4C). Já no plano do fundo do painel central encontram-se, na parte inferior, um padre no momento da celebração da eucaristia, acompanhado por mais uma Figura humana ajoelhada, e nas laterais da parte central, Figuras masculinas e entre elas uma Figura feminina (Figura 4, Figura 1, 4C). No plano superior da Figura 3, Cristo é retratado como um homem de cabelo médio, desvaído com braços abertos, pregados numa cruz alta, vestido apenas com um lenço branco na região do ventre; é a personagem retratada com menos vestes em toda a pintura ou a pessoa mais exposta (Figuras).

Page 6: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

719 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

Figura 3: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe: homem crucificado e persona-gens aos pés da cruz

Fonte: https://commons.wikimedia.org

Figura 4: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe: homem de costas que eleva um objeto, homem que segura a capa e Figura de veste verde com asas

Fonte: https://commons.wikimedia.org

Da fronte escorre sangue devido à uma coroa de espinhos (Figura 5). Ao redor da cabe-ça há traços dourados que parecem raios de luz, semelhantemente à mulher de

Page 7: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

720 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

vestido azul (Figuras 7 e 8). Na costela direita há um corte fundo que sangra; das mãos e pés escorre sangue devido aos machucados realizados por pregos que afundam na carne (Figura 5 e 7). O físico é magro, deixando à vista os ossos e nervos. Em relação ao restante da imagem, este homem se encontra mais à frente dos demais e é posicionado no ponto mais alto, sendo que acima dele não há presença de nenhuma outra criatura, como há nos outros setores. No geral, as roupas das pessoas são das mesmas cores que vestem as outras personagens da obra: vermelho, azul e verde; no entanto, chama a atenção o homem de veste vermelha, pois em toda a pintura, ele é o único homem de roupa monocromática e parece ser íntimo da mulher desfalecida (Figura 7).

Figura 5: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe: crucifixo. Fonte: https://commons.wikimedia.org

Figura 6: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe: grupo aos pés da cruz.Fonte: https://commons.wikimedia.org

Page 8: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

721 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

No plano inferior, encontram-se quatro mulheres, com posições e expressões que de-notam tristeza, fazendo uso de vestimentas parecidas, por serem todas longas e portarem lenços na cabeça, e um homem (Figura 6). A mulher de vestido vermelho, semi-ajoelhada, encontra-se de costas para o observador.

Figura 7: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe do setor D¹: semelhança de gestos e presença de halo (Jesus).

Fonte: https://commons.wikimedia.org

Figura 8: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe do setor D¹: semelhança de gestos e presença de halo (Maria).

Fonte: https://commons.wikimedia.org

Apesar de fazer uso do lenço na cabeça, deixa o pescoço nu e porta na mão direita um pano curto e branco que leva ao rosto; a mulher de vestido roxo e verde, ajoe-lhada atrás da cruz, se posiciona levemente encurvada, com as mãos abaixadas e entrelaçada, há lágrimas na face e o olhar é direcionado para cima; a mulher de vestes azul e lenço branco encontra-se com lágrimas na face, desfalecida (Figura 8) (semelhantemente ao homem pregado na cruz; Figura 7) sendo sustentada por

Page 9: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

722 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

um homem que chora, de vestes vermelhas atrás de si. No entorno da cabeça da mulher de veste azul, há traços dourados que lembram raios de luz, ao redor se sua cabeça. Por fim, ao lado direito da mulher de azul e do homem, encontra-se uma mulher de roupa verde e preta que segura a mão direita da mulher desfaleci-da com olhar para frente e com lágrimas escorrendo pela face. Como tudo, a cena retrata João 19,25-27 que fala da presença de quatro mulheres e de um homem a pé da cruz de Jesus. A Figura vestida de azul é Maria, a mãe de Jesus, e a cor uma referência ao céu (MANGUEL, 2006, p. 50); já o homem vestido de ver-melho é João Evangelista, o discípulo amado que se deita no peito de Cristo no momento da Santa Ceia e a cor como a cor do fogo e do sangue sinaliza o amor pela ação. De todas as representações humanas na imagem, a postura corporal e as expressões faciais de Maria são as mais semelhantes às configurações físicas de seu filho crucificado. Essa união é sublinhada pelo fato que ela é também a única personagem que possui halo5 ao redor da cabeça, simbolizando santidade e glória. As outras três mulheres são identificadas como as três Marias aos pés da cruz: Maria Madalena com o vestido vermelho, cor que recorda – entre muitos significados – a paixão e ao pecado da prostituição que o Papa Gregório Magno atribuiu à ela. Na imagem, sua personagem dá as costas ao observador – em sinal de vergonha – e deixa o pescoço descoberto, em contraste com as outras perso-nagens femininas desse painel. As outras duas mulheres são Maria de Cleofás, considerada tia de Jesus, e Maria Salomé, considerada mãe de Tiago e João.

O PRIMEIRO GRUPO DE MOTIVOS SECUNDÁRIOS: OS SETE SACRAMENTOS E O CICLO DA VIDA

Investigamos agora as sete cenas organizadas ao redor do motivo da crucificação e ini-ciamos, do lado esquerdo ao lado direto, com as três cenas que se situam no lado esquerdo do tríptico. Primeiro observamos uma semelhança entre todas as cenas. O desenvolver das imagens são similares, com grupos de indivíduos no eixo inferior (Figura 1, 1-7 C). Todas cenas se relacionam com uma fase da vida: depois do nascimento, o batismo; na fase infantil, a confirmação de votos; já na fase adulta, a confissão ou penitência que antecede a eucaristia. Em sequência, na maturidade, todos retratados na tábua do lado direito, en-contram-se a ordenação do sacerdote, o matrimônio e a extrema unção – hoje em dia a unção dos enfermos – último ato sacramental antes da morte. Como todo, trata-se da visualização do ciclo da vida padrão e seu acompanhamento pelos sete sacramentos, uma representação “ideal” da vida vivenciada por fiéis católicos no século XV. Ainda faz parte de cada cena uma específica forma da visualização da mediação da graça divina por meio de cada um dos sete sacramentos: acima de cada cena encontra-se um anjo, que por sua vez, vai al-

Page 10: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

723 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

terando a cor do sacramento (Figura 1, 1-7B), e abaixo deles, uma bandeirola dourada com uma frase em latim.

A primeira cena (Figura 1, 1C e Figuras 9 e 10) traz o motivo do batismo. A cena é composta pelo neném e cinco indivíduos adultos: três homens e duas mulheres são agrupados ao redor de uma bacia alta, dourada e ornamentada. Um homem de preto com chapéu preto e uma mulher de vestido azul parecem segurar o bebê (de sexo indefinido) de bruços.

Figura 9: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe: bebê, mãos e bacia.Fonte: https://commons.wikimedia.org

Figura 10: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe: conjunto de cinco pessoas.Fonte: https://commons.wikimedia.org

Nas mãos do homem de vestes branca com uma estola ao redor do pescoço, há um objeto pontudo e algo como uma caixinha; embaixo de seu braço esquerdo há um livro de capa marrom. As roupas de todas as personagens são detalhadas e aparentemente novas. As mulheres usam um ornamento pontudo e com véu em suas cabeças. As roupas são de cores sóbrias, mantendo-se basicamente numa única tonalidade. O neném está nu e a pedra batismal parece ter um di-âmetro ao redor de um metro.

Page 11: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

724 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

Figura 11: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe: a mãe do neném.Fonte: https://commons.wikimedia.org

Figura 12: Jan van Eyck, Retrato de Margaret van Eyck, 1439.Fonte: https://br.pinterest.com

O casal que segura o bebê é provavelmente os padrinhos do bebê, pois no rito a madri-nha segura a criança no momento do batismo e o padrinho fica ao lado, pois posteriormente, os padrinhos representam os “pais da fé” e exercem a função de colaborar com o ensino da fé na vida do afilhado/a. À esquerda dos padri-nhos encontram-se os pais assistindo a celebração. O padre ministra o batismo inclusive o uso de óleo para selar a criança. O tamanho da pedra batismal e a falta de roupa do neném remetem à uma prática batismal hoje em dia inco-mum: na época, a criança ainda foi mergulhada completamente numa bacia com água, assim como os ortodoxos o fazem até os dias de hoje. Baseado na semelhança física da pessoa e o uso de uma roupa idêntica, usada também em um outro retrato pintado pelo seu colega artista Jan van Eyck (Figuras 11 e 12), estima-se que a mulher seja Margaret van Eyck. Dessa forma, o pintor eternizou ela e sua família, e expressou ao mesmo tempo a concordância das pessoas retratadas com o conjunto dos ritos oferecidos.

Page 12: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

725 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

A próxima cena (Figura 1, 2C e Figuras 13 e 14) é composta por dois motivos. O pri-meiro motivo monstra dois meninos de frente para os homens, sendo que o primeiro, de roupa vermelha, está ajoelhado e o segundo, de roupa azul se en-contra de pé, enquanto o terceiro homem, de veste branca sem adereços sobre a cabeça, parece amarrar uma faixa ao redor da cabeça do menino. O segundo motivo apresenta um grupo de três jovens adolescentes. Todos estão de pé e têm uma faixa branca amarrada na testa, como um dos meninos mencionados anteriormente, ou seja, deve se tratar de um costume de sinalização do ato da confirmação.

Figura 13: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe: adultos e crianças.Fonte: https://commons.wikimedia.org

Figura 14: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe: jovens com faixas.Fonte: https://commons.wikimedia.org

Page 13: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

726 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

As cores das vestes de todos são sóbrias e variam entre preto, branco, azul, vermelho e ver-de. O homem do meio porta na mão direita um objeto pontudo e na esquerda, um potinho dourado. Trata-se do momento da confirmação, que segundo o rito católico requer o batismo anterior e sua vez é condição da eucaristia. Ela é celebrada por um bispo, identificado pela sua mitra que sua vez simboliza um capacete e com isso a função do bispo defender os fiéis contra os inimigos da verdade. Alguns dos inte-grantes da cena são conhecidos: o celebrante é o bispo Jean Chevrot (Figura 15). Amigo do pintor e patrocinador da obra, ele aparece também em outra pintura co-nhecida de van der Weyden, no quadro Lamentação de Cristo de 1460 (Figura 16).

Ao seu lado encontramos uma pessoa vestida totalmente em preto, inclusive usando um chapéu dessa cor, e uma outra pessoa, com uma manta branca, porém, sem ne-nhuma capa ou chapéu. Trata-se de um padre e um coroinha, que acompanham o ato e auxiliam o bispo.

Figura 15: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe: Bispo Jean Chevrot.Fonte: https://commons.wikimedia.org

Figura 16: Rogier van der Weyden. Lamentação de Cristo, 1460. Detalhe: Bispo Jean Chevrot.Fonte: https://fr.wikipedia.org/wiki

Page 14: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

727 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

No setor 3C (Figura 1, 3C e Figuras 17 e 18), que se encontra no interior do painel esquerdo, há três indivíduos: uma pessoa com vestes brancas e cabeça toda coberta por uma espécie de lenço; um homem de vestes verde e vermelha, ajoelhado de frente para a pessoa assentada na cadeira e uma pessoa de costas, ajoelhada no chão, com as mãos abertas e unidas, portando um longo tecido roxo que cobre uma peça vermelha por baixo e com um lenço branco na cabe-ça. Trata-se de uma cena de confissão.

Figura 17: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe: homem sentado e homem ajoelhado.

Fonte: https://commons.wikimedia.org

Figura 18: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe: mulher de lenço, ajoelhado e de costas.Fonte: https://commons.wikimedia.org

A mão do homem em branco está repousada sobre a cabeça do homem a sua frente no momento da benção, e os olhares entre as duas pessoas parecem diretas e abertas. Ao lado do homem que recebe o perdão espera uma mulher em uma postura de oração. No fundo do painel central, celebra-se a Santa Ceia (Figura 1, 4C e Figuras 19 e 20). As personagens são duas, um homem no centro, que faz uso duma veste longa e branca e por cima algo como uma capa com bor-

Page 15: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

728 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

das vermelhas e ornamentos dourados costas para o observador; ele eleva um objeto redondo e branco com ambas as mãos.

Em sua frente há um quadro ou alto-relevo com Figuras humanas entre colunas. Na mesa, temos do lado esquerdo, um livro aberto e do lado direito um castiçal com vela acesa. O segundo homem, de vestes bordô, ajoelhado nas escadas segura e eleva a capa do homem central, com o olhar virado para o alto. Acima dos homens há um altar com uma escultura de uma mulher de coroa, assenta-da, segurando um bebê.

Figura 19: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe: homem de costas que eleva objeto redondo.

Fonte: https://commons.wikimedia.org

Figura 20: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe: homem que segura a casula das vestes do padre.

Fonte: https://commons.wikimedia.org

Page 16: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

729 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

Durante a celebração desse rito o padre se posiciona versus Deum6, assim como toda a comunidade, semelhantemente a personagem no fundo do da seção 4C, que se posiciona virado para o altar enquanto eleva e consagra o elemento da hóstia. Reconhecemos o homem que pratica a ação como padre devido à ação em si que coincide com o ato de consagração do sacramento da Eucaristia e também às suas vestes, que simbolizam sua função clerical. Há em conjunto com a ação do padre de elevar a hóstia e recitar os versos, o movimento do homem que eleva a casula do padre. A casula simboliza o manto vermelho que os sol-dados vestiram Jesus e o ato de eleva-la simboliza o ato generoso de ajuda de Simão Cirineu, quando ele ajudou Cristo a carregar sua cruz.

O painel direito do tríptico apresenta também três cenas similares em sua estrutura com as cenas presentes no painel esquerdo e com o setor central, com grupos de indivíduos no eixo inferior representado no setor de número 1 e gravuras humanas, aladas e de vestes longas com rolos dourados, no eixo superior, re-presentado no setor de número 2. No setor 5C, encontramos um conjunto de seis homens, entre nos quais três parecem formar a cena principal: um ajoelha-do, com vestes brancas e mãos abertas para o homem que está à sua frente e o homem de pé que executa uma ação em relação ao homem ajoelhado, fazendo uso duma espécie de chapéu branco e pontudo com vestes brancas e túnica ornamentada e dourada com um broche segurando-a (Figuras 21 e 22).

Figura 21: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe: homem ajoelhado com vestes brancas.Fonte: https://commons.wikimedia.org

Page 17: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

730 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

Figura 22: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe: Bispo, de veste branca, seguran-do um objeto pontudo e um cálice.

Fonte: https://commons.wikimedia.org

Atrás dos dois há um terceiro homem de vermelho que segura um livro aberto. Ao redor deles, encontram-se as cabeças de mais três homens que parecem assistir a cena. Trata-se de uma cena de ordenação no momento da unção com óleo, mais, uma vez feita com um tipo de instrumento de madeira. O livro deve ser o ritual a ser lido nessa ocasião. Segue-se, então, estritamente, as novas regras afirmadas em 1439. Além disso, segura o bispo celebrante um cálice com uma tampa (o mesmo como na última cena 7C ou na Figura 26). Apesar de leves diferenças na vestimenta, pode se tratar de uma segunda representação do Bispo Jean Chevrot.

Figura 23: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe: homem e mulher de vermelho; homem de branco no meio.

Fonte: https://commons.wikimedia.org

Page 18: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

731 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

Figura 24: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe: mãos dadas e enlaçadas por faixa proveniente do homem de branco.Fonte: https://commons.wikimedia.org

No setor 6C (Figura 1, 6c e Figuras 23 e 24), há a presença de um homem e uma mu-lher, ambos de roupas vermelhas e entre eles, um homem vestido de branco. A mulher porta uma coroa sobre a cabeça e um broche no lado esquerdo do peito. As mãos direitas do homem e da mulher encontram-se unidas e enlaça-das por uma fita que o envolve o pescoço do homem de branco. O homem de vermelho parece olhar para a mulher, enquanto a mulher olha para baixo. O homem de branco faz uso da fita para enlaçar a mão do homem e da mulher de vermelho. Essa fita é dourada e contém desenhos em formato de cruz. Na se-quência da imagem, o penúltimo sacramento se identifica como o matrimônio. A imagem grave o momento no qual o sacerdote sela a união. Sabe-se que se trata de um casal nobre: o pintor retratou a união entre Isabela de Bourbon, a condessa de Charolais, e Carlos, duque de Borgonha, que ocorreu em 14547. Mas também o padre é uma celebridade: ele selou também o Tratado de Arras de 1535 entre França e Borgonha. Com isso, o pintor estende o tema do matri-mônio em si e demostra, realisticamente, que enquanto se fala de casamentos de nobres, a dimensão política tem um peso importante. No setor 7C temos a presença de uma Figura humana com asas e vestes azuis. No último setor, no eixo 1G, há a presença de quatro indivíduos. Um homem de vestes brancas com bordas azuis que se encontra ajoelhado segura uma bacia dourada com a mão direita e uma espécie de algodão com a esquerda, que eleva até o homem de pé, que segura um copo dourado na mão esquerda e um objeto pontudo na direita. Este homem de pé veste uma túnica branca e faz uso de uma faixa dourada com cruzes desenhadas.

Page 19: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

732 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

Figura 25: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe: homem deitado com padre ministrando a extrema unção e eucaristia.

Fonte: https://commons.wikimedia.org

Figura 26: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe: Instrumento não identificado e cálice nas mãos do padre.Fonte: https://commons.wikimedia.org

Na cama, aparentemente de madeira, um homem de aparência doentia e magra, sem blusa, está deitado, com um pano que envolve a parte superior da cabeça. Atrás da cama, há a presença duma mulher com roupa verde e lenço sobre a cabeça, que segura uma vela comprida e acesa. Sua expressão denota tristeza e compaixão, com olhar de súplica. A cena representa o sacramento da extrema unção, em combinação com a celebração da eucaristia. O cálice com tampa – ou seja, feito para ser levado consigo –, nas mãos do padre pode indicar que a celebração da extrema unção era normalmente feita fora do prédio da igreja,

Page 20: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

733 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

ou na casa da pessoa, ou num hospício, uma instituição nas cidades medíveis que acolheu quem estava morrendo (essas instituições, entretanto, eram pré-dios autônomos não vinculados estruturalmente com as igrejas ou catedrais). Assim, representa a transposição da cena para a igreja ou catedral uma decisão artística com intenção teológica, não de uma práxis comum.

Com essa sétima cena finaliza o ciclo dos setes sacramentos, na sequência como eles idealmente acompanham a vida, um conjunto de motivos que nos classifica-mos como primeiro grupo de motivos secundários, por estarem em dependên-cia direta do motivo central, o Cristo crucificado, organizado ao redor dele, usando se a ideia dos espaços de uma catedral para a sua visualização. Já mencionamos por acaso da sétima cena que o lugar da celebração desse sacra-mento não era o interior das igrejas. Quanto às outras celebrações, podemos observar que o batismo foi feito na época ou em casa ou numa capela ao lado esquerdo da entrada da igreja (onde se até hoje encontram as pedras batismais nas igrejas coloniais até o início do século 19). A confirmação, a confissão, a eucaristia, a ordenação e o casamento, geralmente, foram feitas nas igrejas, porém a confissão em partes laterais e não em frente do altar.

Em seguida, fazemos observações referente a um segundo grupo de motivos, classifi-cados por nós como segundo motivo secundário.

O SEGUNDO GRUPO DE MOTIVOS “SECUNDÁRIOS”: OS ANJOS COMO MENSAGEIROS ENTRE AS ESFERAS DIVINA E HUMANA

Da Figura 27 à Figura 33, todas as personagens possuem aparência humana e portam asas. As diferenças se dão no campo das cores das vestes e asas e as expressões corporais. Todas as personagens possuem a pele bem clara, cabelo castanho-claro e encaracolado, que chega aos ombros. As vestes são semelhantes: todas longas, volumosas e cobrem os pés. As Figuras deixam cair rolos dourados com escritos em latim, mantendo uma mesma formação em todas as cenas nas circunferências e centro: nos eixos inferiores ocorre uma cena, nos superiores há as Figuras aladas e entre uma cena e outra há os rolos dourados com frases em latim. Não há dúvida iconográfica que se trata de anjos.

O primeiro anjo (Figura 27), de veste e asas brancas está com as mãos levemente abertas ou fechando-as, eventualmente, para iniciar a intercessão para o recém-nascido, e observa a cena que ocorre abaixo dele. A cor remete a pureza e purificação, inocência e santificação. Sendo um mensageiro divino, conFigura essa linguagem das cores a pureza concedida mediante o sacramento do batismo ao batizado, inclusive a articulação do perdão dos pecados e do estabelecimento do seu novo estado como cidadão ou cidadã do Reino de Deus. A frase na bandeirola abaixo dele anuncia em latim: “Todos os que na

Page 21: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

734 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

água e no espírito são batizados / na morte de Cristo são renascidos, segundo Romanos 6”8. A frase em latim representa a língua comum da missa e da língua usada nas sete celebrações dos sacramentos.

Figura 27: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe: anjo branco.Fonte: https://commons.wikimedia.org

Figura 28: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe: anjo amarelo.Fonte: https://commons.wikimedia.org

Page 22: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

735 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

Figura 29: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe: anjo vermelho.Fonte: https://commons.wikimedia.org

O anjo de vestes amarelas encontra-se levemente encurvado (Figura 28) observando a cena que acontece abaixo dele. A mão direita, levantando, posicionada em frente ao rosto, eventualmente, para abençoar. Lê-se: “Pelo Crisma a fim de que seja unido pelo primeiro / em virtude da paixão de Cristo é confirmado no bem / em quatro sentenças”9. O anjo em vestes e asas vermelhas (Figura 29) eleva os olhos para cima com olhar de súplica, assim como as mãos que se encontram abertas em frente ao tronco: “O sangue de Cristo purificará nossas consciências / Enquanto pelo penitenciário (sacerdote) aplaca em si mesmo o débito (a dívida)”10. A cor parece sinalizar a cor de Cristo.

O anjo de vestes e asas verdes se encontra levemente encurvado em relação à cena que ocorre abaixo.

Page 23: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

736 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

Figura 30: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe: Maria e anjo verde.Fonte: https://commons.wikimedia.org

É o único anjo que divide seu espaço com um outro motivo, no caso, uma representação de Maria com o menino Jesus ao seu colo, ele mantido todo de ouro, ele, vestido de branco. O texto faz referência à pessoa de Jesus, sua concepção divina, seu sofrimento humano e sua identificação com o pão que parece em proximidade a bandeirola nas mãos erguidas do sacerdote (Figura 30) “Por este pão formado na virgem pela mão do Espírito Santo, cozido pelo fogo do seu sofrimento na cruz (Ambrósio no livro dos Sacramentos)”11. A cor verde da veste expressa esperança, mas, também humildade: o Deus que se fez carne e habitou entre nós. O anjo de vestes e asas bordô (Figura 31) está posicionado de maneira semelhante a personagem da Figura 33: corpo encurvado, mãos unidas com olhos que parecem observar a cena que ocorre do eixo inferior; representa futuro, sabedoria e esperança. A cor bordô ou lilás une as cores vermelho – o que representava na época o princípio masculino – e o azul – que sinalizava o feminino – formando uma síntese, referência ao celibato. Enquan-to a cor bordô remete ao carácter nobre, à concentração e seriedade. Aqui se fala sobre o sacramento, que é a descida do Espirito Santo com a ministração de seus dons. “Enquanto o Sumo Sacerdote Jesus na Santa [cidade?] entrou / Então o Sacramento da Ordem instaurou / Aos Hebreus IX”12.

Page 24: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

737 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

Figura 31: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe: anjo bordô.Fonte: https://commons.wikimedia.org

Figura 32: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe: anjo azul.Fonte: https://commons.wikimedia.org

Page 25: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

738 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

Figura 33: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhe: anjo preta.Fonte: https://commons.wikimedia.org

O anjo de veste e asas azuis (Figura 32) se posiciona de maneira ereta com as mãos elevadas, paralelas a face. A cor azul representa o céu, como nas vestes da Maria. Quanto ao casamento, seja talvez uma referência a um modelo de lar como lugar sob domínio específico da mulher, em contraste da ênfase das ati-vidades masculinas fora da casa. Também pode ser uma referência à Maria como modelo para as mulheres, santa e humilde. O olhar é posicionado para frente, de modo a transmitir a sensação de olhar o observador do quadro; “O casamento é recomendado por Cristo / com tanto que une o sangue da esposa na carne”13.

O anjo de veste e asas preta (Figura 33) se encontra de frente, com corpo ereto. A cor pre-ta lembra da morte e forma um contraste radical com a cor branca do primeiro anjo relacionado com o batismo. O olhar se direciona para baixo, o rosto leve-mente inclinado denotando expressão de misericórdia. As mãos encontram-se unidas apenas pelas falanges superiores dos dedos, em frente ao tronco. “Pelo óleo santo na alma e no corpo adoentado / pelo mérito do sofrimento de Cristo é sarado (curado) / em (no) último Jacó”14.

Page 26: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

739 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

Figura 34, 35 e 36: Rogier van der Weyden, Altar dos Sete Sacramentos, 1445/1450. Detalhes: na Figura 34 o discí-

pulo Pedro [com atributo hagiográfico da chave], na Figura 35 o apóstolo Paulo [com atributo hagiográfico da espada] e na Figura 36 o discípulo João com atributo hagiográfico do cálice].

Fonte: https://commons.wikimedia.org

Talvez seja um dos elementos mais surpreendentes da pintura o que ela não articula ou menciona: a mediação por Santos e Santas e a sua intercessão a favor dos seus veneradores e veneradoras não é sequer visualizado.

Existe, porém, uma sutil exceção enquanto a esfera dos mediadores. Localizado nas laterais de Maria com o menino Jesus (Figura 1, 4b; Figura 31 e Figuras 34-36) encontram-se ao lado esquerdo da Maria o apostolo Pedro (Figura 34), e ao seu lado esquerdo, os apóstolos Paulo (Figura 35) e João (Figura 36), todos identificados pelos seus atribuídos hagiográficos clássicos, dando destaque ao papado (Pedro), a eucaristia (João) e a teologia paulina como padrão da teolo-gia salvífica (Paulo). Um detalhe interessante é que essas quatro Figuras bíbli-cas masculinas e a representação da Maria com o menino Jesus são do mesmo tamanho, ou seja, não há uma diferenciação entre esses “mediadores”15.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quanto ao carácter teológico da obra como toda, representa a encomenda dessa tela pelo bispo francês um passo de popularização de uma doutrina, na época só recente-mente oficializada pela Igreja Católica Romana (1439), mesmo que isso ocorreu em resposta às práticas estabelecidas sucessivamente desde o século XII. A criação da pintura entre 1445 e 1450, pelo então já famoso Weyden, faz parte da fase de se-dimentação visual do dogma novo, setenta e oito anos antes do início da Reforma.

Primeiro, concordamos com Gombrich que Weyden integra elementos contemporâneos, o que quer dizer, elementos artísticos que surgiram na época da sua criação, a renascença: ele aplica, mesmo que ainda parcialmente, as regras da perspectiva;

Page 27: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

740 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

além disso, ele dá destaque, ao lado de referências costumeiras a celebridades eclesiásticos e realezas como ao bispo de Tournai, Jean Chevrot e o casal real de Isabela de Bourbon, a condessa de Charolais, e Carlos, duque de Borgonha, à pessoas comuns como a sua própria família e o casal de amigos, o pintor Jan van Eyck e a sua esposa Margarete. Por último, talvez faz parte desse pensamento novo que a veneração de santos não faz explicitamente parte da iconografia da obra, numa época na qual o tema estava em todas as bocas. A mediação da graça de Deus para os seres humanos tem em seu centro a vida e morte de Jesus Cristo, o nosso motivo central quanto a composição e ao seu redor os sete sacramentos.

Ao lado desses elementos ‘modernos’, Weyden não abandona completamente elemen-tos mais clássicos. Primeiro, ele recorre à estética clássica greco-romana como o uso do formato de um triângulo perfeito; segundo, a menção identificável de reis e bispos administrando os sacramentos ou recebendo-os é um elemento clássico. Da mesma forma, são os tamanhos das Figuras não em todos os casos realistas, mas, teo-políticos, em especial, o destaque dado ao grupo de Figuras abaixo da cruz. Quatro, tanto a ênfase na mediação sacramental em si como a elaboração dos detalhes visuais na construção do argumento pro-sacramental são muito clássicos: ainda se cita o texto bíblico e as sentenças dos pais da igreja em Latim, como se pode verificar em cada bandeirola em proximida-de a um anjo. A missa, afinal, continua sendo celebrada exclusivamente em Latim, apesar de que já tinham acontecidas na época primeiras tentativas na Europa da tradução da Bíblia para línguas nacionais. Também é a composição do quadro de natureza simbólico ou teológico enquanto a ideia de localizar as celebrações de todos os sacramentos dentro do espaço de uma igreja. No caso da extrema unção, isso deve ter sido a grande exceção.

A linguagem visual como linguagem religiosa negocia, então, formalmente, com motivos novos ou os aspectos novos da sua representação, e, simbolicamente, com afir-mações doutrinárias católicas recente referente ao papel dos sacramentos. Além disso, demonstram alguns detalhes da pintura como o uso de objetos nas celebra-ções, em especial, o uso do objeto pontuado nas mãos do bispo ou do padre no momento de dar a benção usando óleo ungido, tanto na cena do batismo, como da ordenação e da extrema unção, práticas, posteriormente, abandonadas.

ELOQUENT IMAGE: THE VISUAL RELIGIOUS LANGUAGE OF ROGIER VAN DER WEYDEN´S ALTAR OF THE SEVEN SACRAMENTS FROM 1445/1450

Abstract: this article explores the visual language of the Rogier van der Weyden´s pain-ting “The Altar of the Seven Sacraments” (1445/1450) and his articulation of the sacramental theology in the transition from the late medieval time to the

Page 28: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

741 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

Renaissance. In his organization, the article accompanies the compositional features of the triptych including its main motives, and its interpretation is ins-pired by aspects of Heinrich Wölfflin´s and Erwin Panofsky´s methods.

Keywords: Religious languages. Religious visual culture. Altar of the seven sacraments. Rogier van der Weyden. Sacraments.

Notas

1 Rogier van der Weyden é o nome artístico assumido pelo pintor flamengo Rogier de la

Plasture (1400-1464).

2 Jean Chevrot (1395) foi um bispo francês que serviu como presidente do conselho da

Borgonha para Filipe o Bom, e Isabella de Portugal. Foi ordenado bispo de Tornai em 5 de

novembro de 1436 e se instalou na catedral em 12 de janeiro de 1440. Foi amigo de Rogier

van der Weyden, que o retratou em suas pinturas.

3 Há um número significante de obras inclusive de artistas famosas que no momento da sua

entrega não foram aceitas pelas pessoas ou pelas ordens religiosas que fizeram as enco-

mendas.

4 Entretanto, a perspectiva ainda não é “perfeita”: a parte central da nave a companha as

linhas da parte ao lado direito, mas, não do lado esquerdo. O que pode ser visto como falta

de habilidade interpretamos como uma possível mensagem teológica: para o pintor católico

o antropocentrismo da perspectiva humanista não deve dominar a obra. O olhar deve-se

submeter à perspectiva teocêntrica.

5 Halo: Aureola de luz que aparece sobre a cabeça duma pessoa santificada ou imagem sa-

grada. Muito comum na iconografia religiosa, principalmente na cultura visual cristã.

6 Versus Deum: padre e fiéis voltado para o altar.

7 Essa data seria então uma data post quem da sua criação, ou seja, a pintura seria, no mínimo,

de 1454, ou depois. Isso não coincide com a data de criação geralmente sugerida.

8 Omnes is aqua et pneumate baptizati / in morte Christi vere sunt renati / Ad Romanos VI.

9 Per Chrisma quo a praesule iunguntur / Vi passionis Christi in bono confirmantur / In quarto

sententiarum.

10 Sanguis Christi nostras conscientias emundabit / Dum poenitentiale debitum seipso mitigavit.

11 His panis, man sancti spiritus formatus in virgine, Igne passionis est decoctus in cruce/

Ambrosius in Libro Sacramentis.

12 Dum Summus Pontifez lesus in Sancta Intravit/ Tunc Sacramentum ordinis Vere Stauravit/

Ad Hebraeos IX.

13 Matimobium a Christo Commendatur/ Dum sponsa sanguinem in carne copulator/ Exodi

III Capitulo:

14 Oleo Sancto in anima et corpore infirmati/ Sanantur merito passionis Christi/ Jacobi Ultimo.

15 Maria, entretanto, aparece duas vezes na pintura.

Referências

EYCK, Jan van. Retrato de Margaret van Eyc”, 1439. Disponível em: https://br.pinterest.com.

Acesso em: 20 abr. 2019.

Page 29: IMAGEM ELOQUENTE: A LINGUAGEM VISUAL RELIGIOSA DO …

742 , Goiânia, v. 18, p. 714-742, 2020.

GOMBRICH, Ernst Hans. História de arte. 16. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2018.

MANGUEL, Alberto. Lendo Imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

PANOFSKY, Erwin. Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 2014.

PANOFSKY, Erwin. Estudos de Iconologia: temas humanísticos na Arte do Renascimento.

Lisboa: Editora Estampa, 1982.

WEYDEN, Rogier van der. Lamentação de Cristo, 1460. Detalhe: Bispo Jean Chevrot”. Dispo-

nível em: https://fr.wikipedia.org/wiki/Jean_Chevrot . Acesso em: 20 abr. 2019.

WEYDEN, Rogier van der. O Altar dos sete sacramentos. Disponível em: https://commons.

wikimedia.org/wiki/File:Seven_ Sacraments_Rogier.jpg . Acesso em: 20 abr. 2019.

WÖLFFLIN, Heinrich. Kunstgeschichtliche Grundbegriffe: das Problem der Stilentwicklung in

der neuern Kunst. München: Bruckmann, 1915.