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0 UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ CRISTIANE SOARES FERNANDES INFLUÊNCIA DAS VANGUARDAS EUROPÉIAS NA ESTÉTICA DO FILME LIMITE DE MÁRIO PEIXOTO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso Superior de Cinema da Universidade Estácio de Sá, Campus Rebouças, como parte dos requisitos para conclusão do curso. Orientador: Prof. Marcelo Augusto Pinto Teixeira Rio de janeiro, RJ 2009

Influência das vanguardas européias na estética do filme Limite de Mário Peixoto

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Estudo acerca da incorporação de elementos estéticos apreendidos das vanguardas européias por Mário Peixoto na estética de Limite (1931), e de como a síntese desses elementos resulta em um filme fundamentalmente brasileiro, que, ao mesmo tempo em que inaugura possibilidades inovadoras, também encerra um ciclo estético no cinema silencioso.

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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ

CRISTIANE SOARES FERNANDES

INFLUÊNCIA DAS VANGUARDAS EUROPÉIAS NA ESTÉTICA DO FILME LIMITE DE MÁRIO PEIXOTO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso Superior de Cinema da Universidade Estácio de Sá, Campus Rebouças, como parte dos requisitos para conclusão do curso.

Orientador: Prof. Marcelo Augusto Pinto Teixeira

Rio de janeiro, RJ 2009

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho à minha querida mãe, Célia Paradela, por seu amor e apoio

incondicionais, - mas também pela natureza exigente de seu amor, que nunca deixou de me

impor rígidos limites - sem os quais, eu não teria me tornado quem sou.

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AGRADECIMENTOS

Ao Hernani Heffner, que despertou em mim a o fascínio e a curiosidade de ver Limite pela

primeira vez.

A Saulo Pereira de Mello e D. Ayla, pelas agradáveis tardes que dedicaram a me revelar

nuances e minúcias de Limite e de Mário Peixoto.

A Marcelo Augusto, mestre dileto e orientador, que me instruiu e incentivou a investigar mais

profunda e apaixonadamente o filme e seu criador.

A Marcio Paes, por seu apoio, fundamental – e pela inestimável ajuda ao proporcionar-me

fontes preciosas de pesquisa de imagem.

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Poderei renascer todas as manhãs (...) desde que não me torne possível

num reflexo de receio... Ignoro quem sou

– como sei o que desejo.

(Mário Peixoto)

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Sumário

Introdução 4 1 Sobre Limite 6 2 Influências Estéticas 11 2.1 Expressionismo 15 2.2 Montagem intelectual 20 2.4 Decadentismo (Simbolismo) 21 3 Escrituras decadentistas na obra de Mário Peixoto 24 4. Conclusão 30 5. Anexos 31 5.1 Fotogramas de Limite 31 5.2 Entrevista: Saulo Pereira de Mello 35 5.3 Além do Limite 38

6. Referências 39 6.1 Referências Bibliográficas 39 6.2 Outras Fontes 41 6.3 Referências Fílmicas 41

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INTRODUÇÃO

Esse estudo propõe demonstrar a incorporação de elementos estéticos apreendidos

das vanguardas européias por Mário Peixoto na estética de Limite (1931), e de como a síntese

desses elementos resulta em um filme fundamentalmente brasileiro, que, ao mesmo tempo

em que inaugura possibilidades inovadoras, também encerra um ciclo estético no cinema

silencioso.

Considerado o primeiro filme de avant-garde brasileiro, Limite combina e transforma

em seu campo estético elementos presentes nas cinematografias de vanguarda, das quais esse

estudo destacará o expressionismo alemão por sua fotografia e o cinema soviético por sua

montagem. É notável também uma referência ao cinema-olho de Vertov na construção de

alguns planos de paisagens e uma forte influência do cinema americano na proposta da

direção de atores, por excelência, griffithiana, mas que não se relaciona com o objeto deste

estudo.

Cabe ressaltar a dificuldade de conhecer de modo integral o contexto social e cultural

no qual Limite estava inserido, pois não havia então, variedade de estudos mais amplos ou

registros teóricos sobre o cinema brasileiro produzido na época, cuja relevância tenha

garantido destaque ou mesmo sua preservação até o presente momento. As fontes regionais

mais fidedignas do período são oriundas das discussões e estudos do Chaplin Club e dos

ensaios publicados na revolução revista o Fan.

Através de novos trabalhos de historiadores e analistas culturais, reafirma-se a

possibilidade de se produzir conhecimentos não-dogmáticos sobre o mundo

histórico, enfim, a possibilidade de se sustentar uma visão teleológica, ideológica,

norteando um projeto, uma proposta, frente à sociedade. (...) Essas conquistas e

confrontos foram e são vividos de forma própria na errática, mas progressiva,

elaboração de uma História do Cinema Brasileiro. De início, os setores cultos

simplesmente ignoravam os filmes brasileiros, com parcas exceções como o Chaplin

Club, cujo pensamento vai mais tarde repercutir em Paulo Emílio Salles Gomes, que

é no país uma figura-chave na criação de condições técnicas e materiais para a

produção de um pensamento sobre nosso cinema. De fato, o próprio Movimento

Modernista não viu o Cinema Brasileiro passar1.

1 MOURA, Roberto. Cinema Brasileiro: atualidades e reminiscências inspiradoras. In Cinemais n. 10, p. 176.

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Ainda que construído a partir de referências estrangeiras, o cinema de Limite

apresenta linguagem e estética singulares; suas imagens de virtuosa plasticidade são

inegavelmente constituídas por inúmeros elementos particulares da cultura pictórica

brasileira, possibilitando, desta forma, situá-lo no movimento modernista, a despeito de se

encontrar muitos depoimentos contrários a esta hipótese.

Uma investigação mais meticulosa dos expoentes modernistas no Brasil conduz esse

estudo a uma vertente do movimento que não viria a obter grande expressão nas publicações

da época, as quais, deram maior ênfase ao modernismo paulista – solar e bem-humorado, que

ao carioca, soturno e existencial – ressonância do movimento decadentista que eclodira na

Europa na virada do século.

Através da análise dos componentes estéticos da imagem moderna, – cuja dinâmica,

derivativa da relação entre metrópole e colônia, elabora a maneira pela qual a colônia engole,

devora e recapitula a dimensão da presença do dialeto da metrópole, transportando-o para a

realidade nacional – busca-se definir o contorno desses processos no cinema de Limite, e de

como Mário Peixoto absorveria essas influências e as traduziria em uma obra-prima sem

precedentes na história do cinema e com potência estética maior que a encontrada na matriz

européia.

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1. SOBRE LIMITE

Obra única de Mário Peixoto, Limite surpreende por construções imagéticas

extremamente elaboradas e impregnadas de significado e pelo uso de linguagem altamente

sofisticada para a época, o que faz deste um filme anômalo na cinematografia brasileira, por

diversas características, como montagem não linear, ausência de narrativa e até mesmo de

diegese. Sua grande força está exatamente na ausência de narrativa.

Mário Peixoto se utiliza de imagens extremamente realistas, mas não trata da

realidade - a única realidade apresentada é o barco.

Limite não possibilita uma mera tradução em palavras, transcendendo o conceito

aplicável de cinema não-literário – podendo-se mesmo dizer que se trata de um filme

aliterário – verdadeira demonstração de que o cinema pode explorar em sua linguagem a

supressão da palavra para privilegiar a essência da imagem, cuja síntese resulte cinema em

estado puro.

Quando o cinema falado já começava a dominar o mercado brasileiro, registrou-se

uma interessantíssima experiência de vanguarda, profundamente influenciada pelas

investigações do avant-garde francesa, com muito do seu pessimismo e sua

morbidez. [...] O artista era um jovem diletante, que estudara na Inglaterra e visitara

muitas vezes Paris em plena efervescência da avant-garde e da revelação do cinema

soviético. Seu principal colaborador fora o grande diretor de cinegrafia Edgar Brasil

– alemão de nascimento, [...] um dos mais completos e brasileiros de nossos

cineastas2.

Para discorrer sobre a linguagem e refinamento estético de Limite há que se ater

brevemente às inovações e inventivos recursos técnicos empregados em sua produção.

Embora todos os enquadramentos tenham sido pensados pelo diretor, a sofisticação estética

deve-se em grande parte à aposta sensível e generosa do fotógrafo Edgar Brasil em Mário

Peixoto que percebendo a genialidade do jovem cineasta, lançou mão de todos os meios

possíveis para realizar as imagens por ele propostas. Além de técnico excepcional em

fotografia, laboratório e até desenho, Edgar Brasil era possuidor de grande talento mecânico,

tendo construído traquitanas que permitissem filmar os planos imaginados por Mário Peixoto,

2 VIANY, Alex. Introdução ao Cinema Brasileiro, p. 44-45.

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impensáveis para o cinema da época. Na finalização, Edgar também manipulou os

fotogramas na própria película, outra grande inovação naquele tempo.

Muito embora este estudo se concentre na construção imagética de Limite a partir de

múltiplas referências do cinema europeu, é válido abordar seu caráter atemporal e sua

temática tão humana que faz dele um filme universal. É assombrosa a universalização

atingida por Mário Peixoto através do pictórico, e que ainda assim fala a cada espectador de

forma tão sucinta e particular que não pode ser traduzida senão como poesia. A linguagem

poética permeia cada plano de Limite, à guisa de narrativa, conferindo sentido profundo às

imagens.

"Não há, quando Limite é visto adequadamente, o distanciamento entre espectador e

filme, mas uma fusão entre eles — o que permite que o filme seja vivido. Nada em

Limite é apresentado, apontado, mostrado ao espectador: ele é levado a viver o tema

nas sucessões das imagens. Sai, portanto, do âmbito do particular para o do

universal, da alegoria para o do símbolo — a outra maneira, porém, é propriamente

a da natureza da poesia: ela exprime um particular sem pensar no universal ou aludir

a ele. E assim é que quem capta vivencialmente este particular, recebe com ele o

universal sem se dar conta ou só mais tarde” 3.

Limite provoca em quem o assiste reações apaixonadas, sensações que vão do êxtase

ao choque, como testemunha Cacá Diegues, em depoimento ao documentário Onde a Terra

Acaba (2001):

Quando eu vi Limite a primeira vez, pra mim, foi um choque: o filme do Mário me

dava a exata dimensão de para onde teria ido o cinema se o som não tivesse

acontecido. Aquele filme é uma estranha síntese... Eu até hoje não consegui

entender... (...) Como é que aquele menino, acompanhado de Edgar Brasil,

conseguiu fazer de repente, num país que não tinha tradição cinematográfica, um

filme que fosse tão a síntese de tudo que tava acontecendo, e mais do que tudo que

tava acontecendo, a direção para onde o cinema iria naturalmente, se não tivesse

3 MELLO, Saulo Pereira de. “Limite, de Mário Peixoto”, In Revista Brasil.

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sofrido aquela interrupção no seu avanço. O cinema de Limite é um cinema que vai

ficar perdido no tempo, como uma possibilidade que o cinema não realizou4.

Lamentavelmente, parece muito pouco provável que venham a ser encontradas

ressonâncias expressivas de Limite no cinema brasileiro. Talvez tenha servido de inspiração

para Terra Estrangeira (2006), de Walter Salles e é certo que possa ter influenciado

indiretamente uma latente sensibilidade estética em alguns dos cineastas da nova geração que

tiveram acesso a sua versão restaurada, por obra e graça de Plínio Sussekind e Saulo Pereira

de Mello. Mas mesmo sendo considerado, por duas vezes, o filme mais importante do cinema

brasileiro, Limite nunca foi exibido comercialmente. Ainda inacessível, circunscreve seu

alcance a um restrito raio de cinéfilos e uns poucos estudantes de cinema: os que persistem à

primeira impressão de tratar-se de um filme lento, tedioso e de difícil compreensão, ou ainda,

os que não consideram como opinião final a dura crítica de Glauber Rocha ao filme, em sua

Revisão crítica do Cinema Brasileiro.

Controversamente à repercussão que obtém, Limite é, de fato, uma obra de não

muito fácil assimilação, por sua linguagem e ritmo incomuns, que exigem do espectador, mais

que inteligência, alguma sensibilidade para captar o sentido da obra. É também, uma

experiência de abstração do tempo e da realidade. O público brasileiro de cinema da década

de 30 não estava preparado para um filme de tamanha complexidade, o que justifica suas

poucas exibições e difícil recepção, como relata Otávio de Faria em carta a Mário Peixoto:

“Não o foi, naturalmente por aqueles que podiam entender o filme. O grande público

– senhoras gordas e meninotes fluídicos – esses naturalmente tinham que ficar em

branca nuvem. Já foi muito que não se levantassem no meio da sessão. As exceções

é que surpreenderam. A maioria não entendeu, não foi sensível ao valor rítmico do

filme – mas percebeu que era cinema puro. (...) Uma nota constante essa de pessoas

que procuravam mostrar que tinham percebido que havia arte, mas que confessava

humildemente não ter educação e conhecimento suficiente de cinema para entender

bem o filme desse ponto de vista artístico. Isso, naturalmente, de permeio com

observações gozadíssimas, de cavalgaduríssimas senhoras sobre ‘excesso de

natureza’, ‘água em demasia’, etc. De uma ouvi uma frase que resumia a história de

um homem casado, a mulher e a amante que apareciam presos num mesmo bote.

Como o filme deve ter parecido simples a essa milionária de espírito!... Mas, em

4 Transcrição do depoimento do cineasta Cacá Diegues ao documentário Onde a Terra Acaba, de Sérgio Machado.

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oposição, há os que entenderam. E, creia você, foram bastantes. (...) Foi um sucesso

– entre os iniciados – mas um sucesso. ”5

De fato, o valor de Limite foi amplamente reconhecido pela intelectualidade da época

e em exibições internacionais, alcançando status de lenda do cinema brasileiro. Em torno da

lenda, muitas histórias, nem todas comprovadas, como da elogiosa crítica de Eisenstein a

Limite. Não foram poucos que duvidaram de que o cineasta russo tenha sequer assistido ao

filme; sobre o ensaio crítico, Saulo Pereira de Mello garante ter sido escrito pelo próprio

Mário Peixoto, segredo que este lhe confidenciaria pouco antes de sua morte. Todavia,

sucesso comprovado e documentado foi a sessão organizada por Vinicius de Moraes,

especialmente com o intuito de mostrar o filme ao cineasta americano Orson Welles, que se

encontrava em temporada no Rio de Janeiro por ocasião das filmagens de It’s All True – que

não chegaria a ser concluído – e sobre a qual o poeta tece afetivo registro em crônica para o

Jornal A Manhã.

“Posso assegurar que uma vez acesas as luzes, senti a grande impressão que o filme

tinha feito em todos. Orson Welles deu-me particularmente sua opinião, que foi a

melhor. E pude ver-lhe a sinceridade do que dizia nos olhos. Carpeaux soprou-me

nos ouvidos: ‘Mas é poesia pura’... Maria Rosa Olivier não escondeu sua preferência

pela fotografia magnífica e pela grande pureza cinematográfica da sucessão.

Frederic Fuller estava assombrado. Tinha visto um dos maiores filmes da História

do Cinema”.6

Mário Peixoto não realizou um segundo filme, mas deste único deriva uma série de

obras cinematográficas e literárias para o estudo e aprofundamento de Limite. Após sua

restauração, Saulo Pereira de Mello viria a dissecá-lo, fotograma por fotograma, processo que

finalizou em 1970 e que chamou de “mapa de Limite”, posteriormente editado com o título

Limite – filme de Mário Peixoto; além de escrever inúmeros ensaios sobre o cineasta e sua

obra e um roteiro em parceria com ele, intitulado Outono – O jardim petrificado, publicado

em 2000; também recolheu vasto material de pesquisa para a biografia Mário Peixoto: esboço

de um retrato, descrita na relação do acervo como “um pequeno livro a ser distribuído pelo

Arquivo Mário Peixoto”.

5 CASTRO, Emil de. Jogos de Armar, p. 70-71 6 Crônica de Vinicius de Moraes para o Jornal A Manhã, em 30 de julho de 1942, apud CASTRO, Emil de. Jogos de Armar, p. 89

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Limite é citado e tem sua importância enaltecida em numerosa bibliografia sobre o

cinema brasileiro e foi objeto de monografias e teses nos mais variados campos de estudo.

Curioso também que a cinematografia sobre Mário Peixoto supere, em número, a obra

que realizou, sendo estes, um longa e dois curta metragens documentais: O Homem e o Limite

(1975), de Ruy Santos e O Homem do Morcego (1980), de Ruy Solberg, o qual viria a

fornecer preciosos depoimentos do cineasta para o documentário de Sérgio Machado, Onde a

Terra Acaba.

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2. INFLUÊNCIAS ESTÉTICAS EM LIMITE

Alguns teóricos do cinema brasileiro vão discordar de qualquer tentativa em destacar

grandes influências de outras cinematografias em Limite.

Para Saulo Pereira de Mello – inquestionável figura de autoridade quando o assunto é

Limite – que participou da primeira restauração da única cópia do filme, em avançado estado

de deterioramento, e viria a dedicar-se por toda a vida ao estudo, publicação e conservação da

obra de Mário Peixoto, Limite é uma obra única e sem precedentes.

“Carlos Scliar desenhou uma árvore do cinema. O grande tronco era Griffith, o

cinema soviético, o cinema americano, o cinema alemão, etc. E quando ele quis

botar o Mário Peixoto, ele não encontrou lugar. Então, ele botou uma pomba

voando. O Mário Peixoto é uma pomba. (...) Ele não tem lugar no cinema brasileiro.

Ele esvoaçou em volta7.

Ernani Heffner, conservador da Cinemateca do MAM, compartilha da opinião de

Saulo Pereira de Mello e considera Limite um filme “muito particular na história do cinema

brasileiro e mundial”, conforme expressa em entrevista a Sabrina Gregori para a publicação

quinzenal da PUC do Rio de Janeiro.

A grande questão é com que ele dialoga. Ele dialoga com o modernismo, dialoga

com uma forma cinematográfica mais contemporânea. Mário é um artista moderno,

antimoderno, revoluciona o próprio cinema ou dá um passo adiante do próprio

cinema? Não é mais ponto de discussão se Mário Peixoto realizou um grande filme.

Isso já é ponto pacífico8.

Emil de Castro vai enfatizar que o período em que esteve na Inglaterra teria sido

fundamental para a formação do jovem cineasta:

O cinema alemão que se expande da realidade para o fantástico e o cinema russo,

com as presenças de Eisenstein, Vsevolod Pudovkin e Dovchenko iriam exercer

7 “O Limite de Mário Peixoto”. in Jornal da PUC-Rio. 8 “O Limite de Mário Peixoto”. in Jornal da PUC-Rio.

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forte influência na formação do jovem estudante da Hospedene School, despertando

nele a vocação para a arte cinematográfica. O Manifesto Futurista, de Marinetti, a

Semana de Arte Moderna de 22, a avant-garde francesa, o “Cinema-olho” e o

“Cinema-verdade”, a pintura cubista, enfim, toda essa revolução cultural

proporcionaria uma mudança no mundo da arte e neste contexto nasceria o cineasta

Mário Peixoto, que se utilizaria do olho mágico da câmera para mostrar as

limitações do ser humano, leitmotiv de Limite.9

É importante estabelecer que, qualquer análise estética torna-se inevitavelmente

derivativa de referenciais anteriormente estabelecidos à visão da obra, de modo que seja

natural que ocorram associações, mas também cabe considerar-se a possibilidade de uma

obra de arte dialogar com expressões artísticas desconhecidas por seu criador.

Situando historicamente essa experiência tipicamente brasileira, entre a precariedade

das limitações técnicas impostas por um meio cinematográfico ainda em desenvolvimento e a

experimentação proposta pelo modernismo, pode-se dizer de Limite, que é a única obra

cinematográfica pré-cinemanovista a embasar preceitos do movimento modernista no Brasil,

e em especial, de uma vertente do modernismo carioca de inspiração decadentista, depressivo

e soturno, verdadeira antítese do modernismo paulista.

A inibição visual ao modernismo no Rio de Janeiro vai caracterizar

predominantemente, e não poderia ser de outra maneira, a pintura, a arte de maior -

já convencionado - prestígio. Logo, as experiências inaugurais da mais pura e

radical visualidade moderna do Rio de Janeiro vão se dar tardiamente, apenas nos

anos 30 e fora do âmbito da pintura: Limite, o filme único e extraordinário de Mário

Peixoto - visualidade pura - e os também extraordinários desenhos e gravuras de

Oswaldo Goeldi. Cinema e desenho, meios desconsiderados pelo prestígio das

letras, o que explica a existência quase clandestina da obra dos dois artistas. Em

oposição ao modernismo solar, antropofágico e tropical da Semana de 22, esse é um

modernismo não-doutrinário [...], existencial, angustiado e sombrio, alegórico e

simbolista, subterrâneo, para resumir numa palavra, o que caracteriza o modernismo

no Rio de Janeiro. [...] Por outro lado, fundamentalmente visuais, o que são o

casarão abandonado dos desenhos e gravuras de Goeldi e o barco à deriva de Limite

de Mário Peixoto senão expressões visuais dessas mesmas "totalidades

existenciais”? 10

9 CASTRO, Emil de. Jogos de Armar, p. 60 10 NOBRE, Ana Luiza. Um modo de ser moderno, p. 256.

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Em sua biografia sobre Mário Peixoto, Emil de Castro o descreve com todas as

nuances com que se pode pintar um artista decadentista:

Era um sensível senhor da solidão da sutileza, um amielesco, um proustiano por

excelência, com o desassombro de um Oscar Wilde de A tragédia de minha vida, ao

se revelar nas suas confissões do “Caderno verde” nº 2, que somente devem ser lidas

pelas pessoas de sensibilidade e no silêncio da reflexão.11

E o insere entre esses taciturnos modernistas de inspiração decadentista, tidos como

introspectivos.

Mário era um introspectivo, uma alma poética, encerrado no seu casulo, à espera de

sua transformação, de sua metamorfose numa crisálida e depois num novo ser. (...)

Mário Peixoto é um desses artistas fatalizados, como Lúcio Cardoso, Cornélio Pena,

Walmir Ayala e Otávio de Faria. Todos são de um mesmo círculo: a geração dos

introspectivos, dos que se conheceram e identificaram com a mesma busca. E por

serem íntimos, se entendiam e se comunicavam. Trocavam experiências,

sentimentos, dores e espantos. Nenhum deles se preocupava com o lado puramente

social de suas obras. Tocavam o social, mas não assumiam outra posição que não

fosse a do artista preocupado com o processo de criação. A beleza como finalidade

única e razão de ser. “A beleza está intimamente ligada ao sofrimento, àquele

sofrimento que nos fere no instante exato em que unificamos a euforia”, diria Lúcio

Cardoso nas anotações para seu diário.12

Limite representa uma estética da ruptura com que se caracterizam as vanguardas do

século XX, tributárias de um processo do qual se deve relativizar o próprio conceito de

ruptura. Como Marcel Duchamp, que não chega a romper com o cânone moderno, sendo na

verdade, mais um capítulo deste cânone, autofágico por definição. Como mote estético,

Limite se apropria da linguagem apreendida das vanguardas européias para traduzi-las em

arte absolutamente brasileira.

11 CASTRO, Emil de. Jogos de Armar, p. 132 12 CASTRO, Emil de. Jogos de Armar: a vida do solitário Mário Peixoto, Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 2000. p.132, 133

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Tudo é puro Brasil - Mangaratiba, brejo, lodo, praia, mata. Estas ruínas, de

vegetação pendente; estes muros manchados; este céu branco; este cemitério lodoso:

é o Brasil. A eles os personagens se ligam de maneira trágica, se incorporam à

paisagem e, através dela, se "exprimem". Essa paisagem, trágica como Limite, é uma

das grandes forças do filme.13

13 MELLO, Saulo Pereira de. Ver “Limite”. In Revista USP nº 4 , p. 86.

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2.1 Expressionismo

O termo expressionismo é cunhado originalmente em francês e usado pela primeira

vez em 1901, em Paris, atribuído a um conjunto de oito quadros expostos no Salon dês

Indépendants pelo pintor Julien August Hervé, para conceituá-los como obras de estética

diametralmente oposta ao impressionismo. Nessa primeira década do séc. XX, a expressão

viria a ser largamente utilizada para designar a estética presente em uma infinidade de obras

que cobrem uma série de campos da arte, com maior ocorrência na literatura, mas ainda

assim, recorrente nas artes plásticas e cênicas e no cinema, podendo ser encontrada até mesmo

na arquitetura.

No cinema, o termo viria a ser escolhido para classificar certos filmes produzidos no

pós-guerra, cuja característica mais marcante era o uso de luz e sombra contrastantes na

fotografia e de uma estética de deformidade e exagero nos cenários, aliadas a uma mise en

scène rebuscada, que visava uma maior facilidade de compreensão da expressão do ator, que

não podia, no cinema mudo, valer-se da palavra para interpretar.

Cabe ressaltar, que em razão do surgimento ainda muito recente do cinema no campo

da arte, seus fundamentos encontravam-se em desenvolvimento e sua linguagem ainda não

tinha sido apreendida pelo público, que assistia aos filmes mais por curiosidade que por

apreciação (o cinema era, a princípio, considerado não mais que um brinquedo ótico, atração

de feiras e salão de novidades, ou quando muito, uma invenção tecnológica que se erigia

amparada nas linguagens de outras artes, como o teatro, a literatura e as artes plásticas).

Quando enfim, alcança uma dimensão na qual vai dar início aos contornos de sua

atuação no cenário cultural e no mundo das artes, e delinear os princípios de sua linguagem, o

cinema torna-se objeto de uma vasta discussão teórica, onde figuram inúmeras percepções e

opiniões confrontantes sobre o valor ou não-valor do filme como forma de expressão artística.

Referente à exploração do novo medium, percebem-se, no geral, duas tendências

básicas, uma que enfatiza a referência externa e a outra, a auto-referência ou a

exploração dos potenciais deste. Fala-se logo em duas formas ou tendências

fílmicas, a de Lumière e seus registros de cenas do cotidiano e a de Méliès,

explorando as possibilidades técnicas do novo medium. Em análises posteriores,

nota-se a mesma divisão: André Bazin faz uma distinção, referente ao cinema dos

anos 1920 a 1940, entre diretores que “acreditam na imagem e outros que acreditam

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na realidade”; Truffaut constata duas linhas do cinema: o “realismo e o esteticismo”;

e Kraucauer identifica tendências “realistas e formalistas”.14

No artigo supracitado - no qual Michael Korfmann analisa as intersecções entre O

gabinete do Dr. Caligari (1920) e Limite – o autor discorre acerca da discussão que confronta

o cinema tradicional, de tendências narrativas literárias (com claro objetivo de atrair um

público já cativo da literatura e atribuir ao cinema um caráter de credibilidade artística) em

contraposição ao cinema de vanguarda, que vai considerar esses filmes de narrativa literária

um obstáculo ao desenvolvimento pleno de uma linguagem própria do cinema, de natureza

ótica, cujo pilar fundamental seja a imagem e suas ressonâncias.

No seu artigo intitulado “Eu creio na imagem”, publicado pelo jornal do Chaplin Club

em 1929, Octavio de Farias trava um embate contra o uso da palavra na linguagem

cinematográfica em favor da imagem, à qual atribuía uma forma nova e inovadora de

expressão do pensamento, cuja natureza era livre da imprecisão e insuficiência da palavra.

Octávio de Faria sempre parte da linguagem cinematográfica e, defende que o

cinema deveria prescindir da palavra. Octávio de Faria se identificava bastante com

o cinema expressionista alemão e apostava em uma estética de planos longos, que

priorizasse o mundo interno dos personagens em suas narrativas. Compreende a

imagem em oposição à palavra, considera-as inconciliáveis, como declara na grande

maioria de seus artigos publicados pelo jornal do Chaplin Club.15

Constança Hertz vai observar que os movimentos da vanguarda pretendiam um

distanciamento do cinema tradicional de maneira a alcançarem maior liberdade para a

experimentação, que propiciaria material para enfim se estabelecer uma linguagem própria do

cinema.

No início da história do cinema, a experimentação foi muito importante, já que a

busca por uma linguagem própria e por um modo de narrar era premente. O cinema

encontrava bastante repercussão, já conquistara um público considerável e, segundo

Ben Singer, não era de se espantar que as vanguardas modernistas se interessassem

pelo cinema, pois este, desde seu início, foi visto como “um emblema da

descontinuidade e da velocidade modernas”. A partir do final da década de 1910, já

14 KORFMANN, Michael. Romântico, expressionista e colorido: O gabinete do Dr. Caligari, p. 34 15 HERTZ, Constança. Imagem e palavra: a teoria do Chaplin Club, p. 1

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havia espaço para um cinema independente e experimental. Entre 1918 e 1933, o

cinema teve ao menos três movimentos de vanguarda – o impressionismo francês

(1918-1929), o expressionismo alemão (1920-1933) e a escola soviética de

montagem (1925-1933). As tendências estéticas que marcaram a primeira metade do

século XX voltaram-se para o cinema, que deixou de ser visto como uma descoberta

científica, e passou a ser compreendido como um rico manancial para novas

possibilidades formais e narrativas16.

Essas vanguardas que buscavam o desenvolvimento de uma linguagem puramente

fílmica e defendiam o ideal de um “cinema absoluto”, cujo produto fosse o “filme puro”, eram

o epicentro das discussões do Chaplin Club, que configuraram importantes fontes de

referência teórica para Mario Peixoto. Conforme relatado por Constanza, “Absolutamente

voltados para questões estéticas, (...) os participantes do Chaplin Club inauguraram a crítica

cinematográfica no Brasil (...) com discussões voltadas especificamente àquele momento

cinematográfico entre as décadas de 1928 e 1930”. O grupo de freqüentadores costumava se

reunir para assistir aos filmes da época, em especial, os alemães expressionistas e americanos

(sobretudo os de Griffith). Se ainda não tinham acesso às produções soviéticas, essas já eram

objeto de suas discussões sobre os ensaios que liam nas publicações internacionais.

Inserido nesse contexto, fica fácil concluir as razões da presença fluida dos elementos

estéticos componentes da estética dessas vanguardas em Limite. O que pode nos levar a crer

que, sendo tão jovem, e na qualidade de diretor estreante, Mario possivelmente não o faz de

modo intencional ou pretenso, mas sim, como expressão espontânea da forte influência

sofrida pelos meios intelectuais que freqüentava, sobretudo, dos freqüentadores do Chaplin

Club.

No artigo "Eu creio na imagem", publicado pelo jornal do Chaplin Club em 1928,

Octavio de Faria deixa ainda mais claras algumas questões que fizeram parte das

discussões deste grupo que se mostrava muito distante da forte corrente regionalista

que predominava no modernismo brasileiro das décadas de 1920 e 1930, tanto na

estética cinematográfica, quanto na literatura. O Chaplin Club, como suas

publicações confirmam, apresenta discussões estéticas pouco usuais no Brasil de

então e Limite (1931), o filme de Mário Peixoto, está muito próximo das discussões

estéticas deste grupo que formava o clube de cinema, mas também, a obra literária

de Mário Peixoto, cineasta e poeta, revela possuir muitas afinidades com esta busca

16 HERTZ, Constança. Do grupo de cinema à teoria literária: O debate do Chaplin Club.

Page 20: Influência das vanguardas européias na estética do filme Limite de Mário Peixoto

19

por novas possibilidades estéticas, pois também apresenta uma profunda

desconfiança em relação à palavra em sua produção literária17.

É notório que Mario Peixoto, em sua breve permanência na Europa, teve acesso a

filmes expressionistas e oportunidade de se inserir nos ambientes de onde emergiam as

produções da vanguarda. No diário que manteve durante sua permanência na Inglaterra, relata

com entusiasmo ter assistido à Metropolis (1927), de Fritz Lang. Na qualidade de admirador

da arte cinematográfica, o futuro cineasta possivelmente assimilaria, ainda que de forma

diletante, os princípios estéticos e fundamentos da linguagem expressionista. Importante

destacar que a estética de Limite se aproxima mais da vertente realista do expressionismo,

conhecida por “kammerspiel”, onde observa-se uma estética eqüidistante às deformações

clássicas do caligarismo – que vai ser inaugurada nos filmes de Friedrich Murnau.

Os dez anos mais fecundos do cinema alemão, que se estendem de 1917, com a

criação da U.F.A., até os primeiros filmes históricos de Lubitsch (...) coincidem com

o período em que Mário Peixoto se encontrava estudando na Europa, como anotaria

no “Diário da Inglaterra”. O futuro autor de Limite ainda era bastante inexperiente,

mas estava munido de seu instrumental de trabalho, pois certamente, teria adquirido

as lições que H.A. Potenkk aponta como qualidades que contribuíram para o

desenvolvimento da arte cinematográfica universal: 1ª, integração da luz, da direção

artística e do relato; 2ª, desenvolvimento do tema nas narrações particulares; 3ª,

premeditação da película; 4ª, efetiva submissão do autor; 5ª, consideração da câmera

como o instrumento mais importante, e 6ª, fiscalização e disciplina, amadurecimento

do autor, construção da película, já não como fotografia em movimento, senão como

“visão interrompida”.18

De modo que, se a estética expressionista que tanto se faz presente, ou mais facilmente

identificável, em Limite – através do uso de cenas fora de quadro (sugeridas por meio de

vazios), enquadramentos opressivos, bem como da direção de cena minimalista e comedida,

focada em uma expressão psicologizada das personagens (muito característica dos filmes

kammerspiel), isso pode ser atribuído, em parte, ao fato da natureza poética de Mário Peixoto

identificar no expressionismo uma forma igualmente poética de expressão visual, pois não

17 HERTZ, Constança. Do grupo de cinema à teoria literária: O debate do Chaplin Club.

18 CASTRO, Emil de. Jogos de Armar, p. 36

Page 21: Influência das vanguardas européias na estética do filme Limite de Mário Peixoto

20

tinha como objetivo a representação de uma realidade puramente concreta, mas sim, de

emoções e reações subjetivas que objetos e eventos nele suscitavam e que o jovem cineasta

tratou de expressar por meio do amplo uso do simbolismo, como veremos mais à frente.

O Kammerspiel, embora seja uma vertente da vanguarda expressionista alemã, prima

pelo realismo e por inovações narrativas e visuais, onde privilegia-se os movimentos da

câmera bem como dos elementos constituintes da cena, o que é bastante evidenciado em

Nosferatu (1922). A construção do espaço cênico pretende uma representação fiel do mundo

real.

Contudo, esse naturalismo é envolvido pela combinação de inúmeros recursos

visuais, como simbologias, representações oníricas, fusões, enquadramentos inusitados e

cenas fora do quadro, bem como de movimentos de câmera pouco usuais no cinema da época

– no qual o uso expressivo da câmera, pode tanto utilizar o contra-plongé para evidenciar a

altivez de um personagem, como o plongé para representar sua humildade. O termo

kammerspiel, que pode ser traduzido como “câmera desvencilhada” é alusivo a este

movimento de câmera, muito característico desses filmes: uma câmera sempre dinâmica a

explorar minuciosamente o espaço cênico e os aspectos psicológicos da mise em scène,

conferindo maior intensidade e fluidez à narrativa.

É notável também o uso expressivo de movimento de objetos em cena - como o

botão que cai do uniforme, motivo de orgulho e símbolo de status, do orgulhoso porteiro de A

Última Gargalhada (1924), ao saber ter sido rebaixado a zelador de banheiro (a queda do

botão representa sua própria queda). O resultado é visualidade elevada à terceira potência,

como observa Paulo Ricardo de Almeida:

O cineasta abusa do movimento, tanto dos elementos plásticos que

constituem o plano – a cidade pulsante em Aurora, a seqüência em que os

habitantes da ilha, na praia, lançam-se ao mar, enquanto o vento balança as

folhas das árvores e precipita as ondas na areia, em Tabu – quanto da

câmera – o travelling que desce com o elevador e avança pelo salão do

hotel em A Última Gargalhada, a panorâmica que acompanha a empregada

pela escada em Tartufo, o travelling, ponto de vista da canoa do herói, que

vislumbra o barco do homem branco em Tabu. (...) O que dizer dos

prodigiosos planos ponto de vista em Tartufo e em Tabu, pulverização dos

olhares dentro da narrativa que influencia o cinema desde então? Ou da

técnica de pixialization (filmar atores quadro a quadro), hoje corrente na

animação, em Nosferatu? Ou, ainda neste filme, do impacto dramático da

Page 22: Influência das vanguardas européias na estética do filme Limite de Mário Peixoto

21

viragem vermelha, índice sanguinolento de Conde Orlok? Ou do trabalho

com o fora-de-campo, das entradas e saídas de quadro (o navio que avança

pelo plano em Nosferatu ou a mão que, na cena capital de Tabu, surge para

romper, com a faca, a corda na qual se agarra o protagonista)? Ou das

estonteantes fusões de imagens em Aurora e em Fausto?19

É válido enfatizar a originalidade dos roteiros que vão retratar de forma muito

autêntica, temas raramente mencionados no cinema até então - angústia, loucura, depressão,

frustração ou o insólito presente no cotidiano, sempre pontuados por um olhar crítico e muitas

vezes, irônico, da sociedade que retratava. Mas a ousadia dessa linguagem vai além das

inventividades na narrativa e do uso de enredos elaborados. O experimentalismo dessa

vanguarda em especial deu uma contribuição muito rica à construção da linguagem

cinematográfica, chegando a se utilizar até de recursos metalingüísticos, um conceito muito

moderno pra época: em Tartufo (1925), Murnau explora a presença de um filme dentro do

filme e quebra a convenção do cinema clássico-narrativo, onde os atores devem ignorar a

presença da câmera, além de executar com maestria os planos subjetivos dos personagens.

2.2 Montagem Intelectual

A montagem de Limite tem referência no cinema soviético, sobretudo nos filmes

realizados por Pudovkin, e é justamente a montagem que confere tamanho vigor dramático ao

filme. Mário Peixoto apropria-se com maestria da montagem intelectual, justapondo planos

significativos e utilizando imagens metafóricas – como a proto-imagem da mulher de olhar

penetrante tendo à frente duas mãos masculinas algemadas, que nada mais é que uma alegoria

da limitação – e conferindo-lhe estilo singular, imprime o ritmo como uma espécie de chave-

mestra para a compreensão da trama de imagens que, a um olhar mais descuidado, podem

parecer aleatórias e confusas.

A verdadeira estrutura do filme é garantida pelo ritmo do conjunto, que se baseia em

montagem de rara precisão. Mas, ao mesmo tempo, encerra, no terreno da

compreensão da ação, um desenvolvimento perfeitamente lógico. (...) A

compreensão da história ou das histórias contadas, é inseparável da sensibilidade,

sob o ritmo da construção da obra. (...) Às vezes, dois planos muito afastados no

19 ALMEIDA, Paulo Ricardo de, Inocência do Olhar e Artificialismo Social, in Contracampo – Revista de Cinema, n º. 66

Page 23: Influência das vanguardas européias na estética do filme Limite de Mário Peixoto

22

tempo devem associar-se, e essa associação é obtida graças a uma duração

absolutamente idêntica dos dois planos em questão e sensivelmente diferente dos

demais. Depois de sentir esse ritmo é que se tem consciência de que existe também

um laço racional entre os dois planos, que são duas expressões de um mesmo tema20.

Não há como ver Limite alheio ao ritmo visceral de sua montagem ou despido do

sentido de contemplação da poesia que impregna os fotogramas. O ritmo estabelecido pela

montagem serve ao estado psicológico de cada personagem e convida o espectador a

vivenciá-lo, como na seqüência em que se vê a mulher fugitiva na máquina de costura, onde

os elementos da ação se alternam em movimento cadenciado de modo a exprimir tédio e

monotonia, num crescente que culmina em sua fuga definitiva. Ou na rigidez dos longos

planos fixos do barco que permitem a fluidez do desespero de uma personagem em franca

agonia em contraposição ao alheamento da outra, que já se entregou e queda-se prostrada com

o olhar perdido no infinito.

2.3 Decadentismo (simbolismo)

Incrustando suas raríssimas formas na noite dos tempos estéticos, o esteticismo

firma-se enquanto estética da estética (la crême de la crême), no século XIX, quando

surge uma constelação de estetas, que esplendem, desde então, nos céus da Arte e da

cultura como um todo. De origem definitivamente francesa, essa estética

finissecular designa-se, nos textos e nas obras que atravessam mundo afora, pelo

emblema l’art pour l’art, criado pelo filósofo francês Victor Cousin.21

Originário no discurso poético de Baudelaire, o decadentismo é um movimento

artístico que vai configurar uma ruptura com o naturalismo e com os ideais burgueses. Suas

primeiras manifestações se dão no final do século XIX em oposição ao realismo e ao

naturalismo. A origem do termo apresenta um cunho deveras pejorativo, usado pra designar

os intelectuais franceses cuja produção artística aludia a uma visão pessimista do mundo com

forte inclinação à estética subjetivista. Os expoentes desse movimento viriam a ser chamados

20 VIANY, Alex. Introdução ao Cinema Brasileiro, p. 45.

21 MUCCI, Latuf Isaias. Walter Horatio Parter & A Febre do Esteticismo, in O labirinto finissecular e as idéias do esteta, p. 15

Page 24: Influência das vanguardas européias na estética do filme Limite de Mário Peixoto

23

de Dândis, expressão usada pela primeira vez por Baudelaire, na segunda metade do século

19, a quem se atribui a primeira descrição do que seria um dândi. “O modelo do dândi

finissecular busca-se em Baudelaire, que poetizou a tragédia da existência, criando um

dandismo filosófico e literário. Trágico, fatal, o novo dândi - o dândi do fim do século beira

os abismos”.22

Segundo Baudelaire, "o dandismo não é um deleite excessivo com roupas ou elegância

material. Para o dândi perfeito, essas coisas nada mais são do que o símbolo da superioridade

aristocrática de sua mente"23. Latuf Isaias Mucci endossa e complementa: “Esse avatares

abrigam cuidadosamente uma essência, (…) um significado que aponta, com insistência, um

significante, rebelde a um significado, ou conceito fixo”.24

Os primeiros expoentes do decadentismo surgem entre 1880 e 1890,

predominantemente na França e na Inglaterra, convertendo-se em uma espécie de fenômeno

cultural na Europa, e que em Portugal, chega a se prolongar até meados da década de 1920,

com ocorrências pontuais na poesia de Fernando Pessoa e Florbela Espanca. Arautos de uma

expressão da vida interior através da linguagem poética, sobretudo na poesia simbolista,

cultuando temas soturnos e sombrios, a introspecção e a morte, o movimento decadentista se

galga na crítica do estilo de vida burguês e numa incessante busca por afrontá-lo. De essência

simbolista e grandíloqua, dialoga com o hedonismo e flerta com o fúnebre. Despreza a ordem

burguesa estabelecida e a imagem da mulher subserviente e maternal. A representação

admitida do feminino é a mulher fatal e seu perigoso poder de sedução, simbolizado pelo mito

de Salomé. A personagem bíblica torna-se um arquétipo da arte decadentista, representada na

pintura, por Gustave Moreau e no drama poético de Oscar Wilde, traduzido para o português

por João do Rio.

Prezando, no hedonismo do inútil, manobras do discurso alternativo contra a voz da

doxa, o figurino nostálgico de Soirées de Paris se mostra prescrito, ao menos em

parte, na sintaxe desafiadora emitida pelo dandy decadentista que, a partir das

relações entre dandismo e escritura, consignadas por Baudelaire, cortejou a excessão

e o paradoxo, exibindo – como pose do deslizamento finissecular – uma impostação

22 MUCCI, Latuf Isaias. Ruína e simulacro decadentista, p. 10 23 BAUDELAIRE, Charles. Escritos sobre Arte, p. 71 24 MUCCI, Latuf Isaias. Walter Horatio Parter & A Febre do Esteticismo, in O labirinto finissecular e as idéias

do esteta, p.15

Page 25: Influência das vanguardas européias na estética do filme Limite de Mário Peixoto

24

próxima da proposta de perseguir, nas miragens do texto, a utopia da ‘isenção de

sentido’.25

Cabe talvez classificar o decadentismo como uma releitura do romantismo, em reação

ao cientificismo que emerge do desenvolvimento da sociedade industrial da segunda metade

do século XIX. Confrontando as inclinações naturalistas e as associações vulgares entre arte,

objeto e técnica, os decadentistas almejam um ideal estético construído através da expressão

poética e lírica: "Rompendo com a estética realista-naturalista, o Decadentismo inaugurou um

novo código simbólico, um sistema novo de sinalizações do real em realidades, a partir do

qual se teceram e se trocaram representações".26

A pintura simbolista inaugura o decadentismo nas artes visuais, em contraposição ao

neo-impressionismo cientificista de Georges Seurat e de Paul Signac - fundamentado sobre

princípios da ótica - e apresenta uma tentativa de superação da pura visualidade defendida

pelos impressionistas, numa linha espiritualista e anticientífica, onde a arte não tem

compromisso com a mera representação da realidade, mas busca revelar, através de símbolos

e personagens arquetípicos, uma realidade além da consciência, através da apreensão de

valores transcendentes, como o Bem, o Belo, o Verdadeiro, o Sagrado e o Profano - que se

encontram no pólo oposto ao da razão analítica.

Com efeito, o esteticismo articula o jogo dos significantes, sem prestar atenção aos

significados, aos conceitos, aos preconceitos, aos preceitos, enfim, a uma ideologia

burguesa, mercantil, capitalista em seu nascedouro, sob o signo do total e

avassalador utilitarismo, que os estetas todos combatem até a morte (e não se

configura nenhuma hipérbole quanto a esse combate até a morte, na medida em que

os estetas – os verdadeiros estetas – morrem por seu ideal da arte pela arte,

cumprindo o primeiro aforismo de Hipócrates, traduzido em latim por ars longa,

vita brevis, que, na clave puramente esteta, significa ser a arte mais ampla do que a

própria vida).27

25 BOUÇAS, Edmundo. Formas e Truques de um Écrivain-Dandi, in O labirinto finissecular e as idéias do esteta, p.187-188 26 MUCCI, Latuf Isaias. Ruína e simulacro decadentista, p. 25 27 MUCCI, Latuf Isaias. Walter Horatio Parter & A Febre do Esteticismo, in O labirinto finissecular e as idéias do esteta, p.15

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25

3. ESCRITURAS DECADENTISTAS NA OBRA DE MÁRIO PEIXOTO Encontramos em Limite, uma série de características das obras decadentistas:

alegorias, simbologias, arquétipos e o preciosismo na forma de enquadramentos e

movimentos de câmera ricamente elaborados. E na personalidade de Mário Peixoto, muito do

que se pode ser atribuído à figura de um dândi: o distanciamento e a polidez de seu discurso,

que revela questões existenciais e um acentuado inconformismo intelectual, bem como a

tentativa de domínio do sentido de sua obra. E não raro, os processos falsicantes presentes em

sua biografia, que constituem um labirinto de informações controversas.

Mário José Rodrigo Peixoto era seu nome completo. Nasceu no Rio de Janeiro, em

25 de março de 1908. Ele, porém, insistia em afirmar que nascera em Bruxelas.

Não há evidências concretas, no entanto, que isso seja verdade. A data de seu

nascimento também foi motivo de muita dúvida. (...) Afirmava durante a vida inteira

ter nascido em 1918, como, aliás, aparece na sua carteira de identidade, cujos

assentamentos parecem avivados, para não dizer adulterados. (...) As informações

que obtivemos no próprio Instituto Félix Pacheco, foram no sentido de que o correto

seria 1908. (...) Mário criava sempre pistas falsas, com o objetivo de manter uma

atmosfera de mistério em torno de sua vida.28

Quando se trata de perfazer uma biografia de Mário Peixoto a partir de tantos dados

esparsos e controversos, extraídos de seu diário pessoal, cartas e relatos daqueles que o

conheceram, sempre envoltos em uma atmosfera mítica, é necessário muito discernimento e

persistência para separar o mito da história. É o que sugere Emil de Castro, na biografia de

sugestivamente intitulada “Jogos de Armar”, onde afirma que “toda sua vida é construída de

recortes de um puzzle difícil de ser montado”29.

É esta mais uma peça do jogo de armar do seu aniversário. Mário completou 15

anos, (...) no Rio de Janeiro, em 1923; 19 anos em 1927, na Inglaterra, onde se

encontrava estudando e 20, novamente no Rio, em 1928, quando havia retornado da

Inglaterra. No “Diário da Inglaterra”, ele já havia esclarecido esse ponto

controvertido de sua biografia. (...) É neste mesmo diário que forjaria a última peça

28 CASTRO, Emil de. Jogos de Armar, p. 29 29 CASTRO, Emil de. Jogos de Armar, p. 163

Page 27: Influência das vanguardas européias na estética do filme Limite de Mário Peixoto

26

que completaria esse jogo de armar de sua data de nascimento. O puzzle a que se

refere em carta que escreveu a Saulo Pereira de Mello.

25 de março de 1927.

“Um ano mais! Pensar que nunca, nunca mais terei 19 anos outra vez.”

Era o jogo do tempo que sempre foi sua maior preocupação, mesmo antes de sê-lo.30

A síntese dessa questão a que se refere o biógrafo é dada por Mário Peixoto em uma frase,

extremamente simbólica, encontrada no mesmo diário: “Todo dia que passou tem para mim o

valor de uma pérola arrancada de um colar.”31

Para traçar um perfil do dândi Mário Peixoto, não é preciso aprofundar-se em

sua personalidade conturbada, ou ater-se ao seu comportamento taciturno, sempre predisposto

ao isolamento e à introspecção. Mesmo uma observação superficial, seja sobre seu modo de

vestir, sempre elegante, ou os maneirismos de sua oratória e gestual, sugerem a personificação

exata da mais rica descrição dos legítimos dândis europeus.

“A alma do dândi (re)veste-se de signos de denúncia. Revolucionário e ilusionista,

habitante dos ‘palácios das ilusões e dos reflexos’, em busca essencial da beleza

externa e interna, o dândi decadentista aprendeu, em Baudelaire, uma ética e uma

estética epitomadas desse fragmento de Mon coeur mis à nu (‘Meu coração

desnudo’): ‘O dândi deve aspirar a ser sublime sem interrupção; ele deve viver e

dormir diante de um espelho’. Como para Narciso, tudo se torna espelho ao redor

do dândi: os outros, a cena social, o palco da história, a escritura. O texto

decadentista – mimesis-dândi – contempla-se a si mesmo, num exercício autotélico,

tautológico, ad infinitum, exibindo seus ornamentos, suas jóias, sua singularidade,

sua provocação. Texto esfíngico, prescinde da decifração, porque vive de suas

máscaras. Ser e parecer se confundem e na gramática vivencial do dândi, que opera

a prestidigitação, o truque do simulacro, através de uma tensão inexaurível”.32

Pode-se perceber muito claramente essa preocupação de Mário Peixoto com a própria

imagem, pelo menos em seus depoimentos filmados: na maneira como se posiciona

elegantemente e fita a câmera com assaz naturalidade, como se essa fosse seu próprio espelho, 30 CASTRO, Emil de. Jogos de Armar, p. 47 31 apud Jogos de Armar, p. 45 32 MUCCI, Latuf Isaias. Ruína e simulacro decadentista, p.52

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27

para só então, falar, em português sempre corretíssimo, e com eloqüência admirável. Seu

biógrafo também vai relatar essas particularidades de Mário, num capítulo que chama de

Modos de ser.

Vestia-se como um lorde inglês, não se descuidava de um mínimo detalhe na sua

indumentária. Vestia-se, não como a maioria de seus amigos brasileiros, mas trajava-

se como um dândi, um verdadeiro almofadinha. (...) Não só o vestir, mas todos os

seus atos, Mário procurava fazê-lo com excessiva formalidade, como se tudo fosse

medido, milimetrado. Cada gesticulação, cada trejeito do rosto, cada piscar de olhos,

o pegar nos talheres, o sentar-se à mesa, nos bancos de jardim, nada acontecia por

acaso. Na mesa, dispunha as guarnições como mandava a boa etiqueta. Era servida à

francesa. (...) Só jantava de blazer, colarinho engomado, de linho. Usava um

bonezinho.33

A combinação desses fatores confere a Limite e a seu realizador uma aura de mito e

excentricidade que também pode ser interpretada como uma tentativa de resguardar sua

individualidade e mascarar uma personalidade deveras conturbada. É nítida em sua obra,

filmada ou impressa, uma cifra catártica, necrótica e visceral – e algumas obsessões como o

tempo, a morte e uma busca incessante da perfeição e da originalidade.

O Homem do Morcego, carinhoso documentário realizado por Ruy Solberg, traz

imagens intimistas, filmadas na Ilha Grande, onde Mário Peixoto discorre acerca da idéia

original de Limite e recorda, saudoso, a “aventura” que foi produzi-lo, sendo ainda tão jovem

e inexperiente. Fala da morte do amigo Plínio Sussekind, com ar solene que não disfarça

certo fascínio e até intimidade com o tema. Mas é ao descrever, com riqueza de detalhes, um

trecho do roteiro “A Alma segundo Salustre”, no qual narra a morte do personagem César,

sugerindo imagens extremamente complexas, de natureza poética, permeadas por símbolos e

movimentos de câmera virtuosos, que se pode ver com clareza o perfil de verdadeiro dândi,

na altivez de seu discurso, de norma culta impecável, e na grandiloqüência impressionante,

que revela nas entrelinhas, o culto ao fúnebre e à beleza, fenecida na juventude.

O guri do teatro aparece na frente de César trazendo a capa, o forro da capa é de um

tecido brilhante e ofusca um pouco César; ele não reconhece bem o rapaz. Mas uma

voz, sendo dele (...) lhe diz longínqua: “Eu sou a sua mocidade. O que fez você da

sua vida? Esquece a velhice”. César, então, vai como para enfiar um braço na

33 CASTRO, Emil de. Jogos de Armar, p. 50-51.

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28

manga da capa, mas se sente mal e cai no chão. Aí, todo mundo se aglomera, pra ver

o que houve. A câmera, que também é uma personagem, (...) procura como que um

lugar também, e por sua vez, se aproxima lentamente do rosto de César, que

adquiriu o aspecto de uma mascara mortuária. E vai penetrar num dos globos

oculares, que justamente se apresenta agora vazio; ela penetra ali, se escuta o ruído

de uma água, como que se fosse o interior de uma gruta, com aquela ressonância, e

umas algas indistintas. A câmera recua novamente, levanta, sai, começa a subir, a

subir, a subir... As paredes são revestidas; repentinamente tornam-se de pura pedra e

lá em cima, então, é a noite estrelada, não tem nada. A câmera vira, para a praia. Lá

embaixo tem uma onda no momento de deflagrar, ela está parada e trêmula, como

que à espera. Um braço surge no canto esquerdo do quadro, é o braço de César, e

com o indicador ele aponta como se ordenasse, a onda então desaba e se desagrega e

a tela se enche de pequenas partículas d’água, como se fossem pequenos átomos

brilhantes34.

O preciosismo obsessivo de Mário Peixoto talvez tenha sido o grande obstáculo, ou

quem sabe, o artifício35, que o impediria de realizar outros filmes, denotando um possível

receio de não conseguir superar a própria escritura; ou ainda, da impossibilidade de repetir a

liberdade artística alcançada em seu primeiro filme, financiado com recursos próprios e apoio

de seu tio, sem prazo estipulado para finalização. O que parece tê-lo de tal modo oprimido,

que o levaria, por fim, a um total isolamento no sítio do Morcego, de onde, segundo relatos de

seus empregados, muito raramente saía e evitava receber visitas. Latuf Isaías (1990) justifica

a condição de isolamento tão comum aos decadentistas europeus de maneira tão abrangente

que acaba por fornecer uma muito apropriada descrição do período de voluntária reclusão de

Mário Peixoto:

O isolamento altivo do decadentista originou-se de sua sensibilidade aguçada, uma

hipersensibilidade tangida de neurose. Vivendo uma situação insular e tendo

consciência da falência das cosmovisões tradicionais, o decadentista procurou

elaborar uma nova imago mundi, um mundo novo criado na arte e pela arte, lugar de

refúgio de sua angústia metafísica.36

34 Transcrito de seu depoimento ao documentário O Homem do Morcego. 35 Em depoimento ao documentário Onde a Terra Acaba, Ruy Solberg relata as dificuldades que Mário Peixoto

impôs às suas tentativas de realização de A alma segundo Salustre, tendo chegando a exigir por protagonistas

Roberto Carlos e Brigitte Bardot. 36 MUCCI, Latuf Isaias. Ruína e simulacro decadentista, p. 31

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29

O período no qual Mário Peixoto isolou-se no Sítio do Morcego teria sido o mais

produtivo de sua literatura, na qual se pode vislumbrar um belo trabalho de construção de

imagens através das palavras, muitas das quais, remetem a Limite. Analisando sua obra

cinematográfica e literária como um todo, pode-se ter a interessante conclusão de indiscutível

homogeneidade: assim como Limite é um filme de imagens extremamente poéticas, a poesia

de Mário Peixoto é absolutamente visual.

São três horas; saio no mormaço indeciso, dessa tarde,

abraçado no íntimo à umidade do arvoredo,

e despedindo-me sem querer, do último

pingo que desprendeu-se de uma folha,

para riscar, a frio, minha face que se vincou.

Enxugo o rosto com o dorso da mão e caminho:

a bagagem nem me pesa

como se pesasse mais a areia postiça

que vai pegando-se inerte à sola molhada dos calçados...

Todo o tempo apreendo o mar

como uma respiração pulsando;

em mente, marés confusas

de conchas folgadas, praias, e partidas;

(...) Nem vejo o primeiro raio de sol

Que se embrenha na coroa das ramas e de lá

Ressalta no macio das pegadas

Para o encalço dos meus passos.37

Não obstante as referências de vanguarda presentes no filme – vanguardas, estas, que

viriam a romper com o realismo-naturalismo – ao buscar uma estética mais próxima do

naturalismo, Limite alcança em seu campo imagético um grau de realismo impressionante,

ainda que se utilize do simbolismo para forjar inúmeras significações. Se nos fixarmos no

conceito de Decadentismo "enquanto código de ruptura e inovação”38 temos em Limite uma

representação perfeita de obra decadentista, posto que, destacou-se, tanto no período, como na

cinematografia brasileira, por suas inovações estéticas e pela ruptura com um cinema

prosaico, de narrativa linear. A temática de Limite também nos fala da decadência humana

em vários aspectos, através de personagens depressivos – que padecem de doença, de 37 PEIXOTO, Mário. Poemas de permeio com o mar, p. 79 38 MUCCI, Latuf Isaias. Ruína e simulacro decadentista, p. 26

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angústias e desilusão, e que estão em fuga, mas não têm para onde fugir – em sua condição de

náufragos à deriva, que, embora tenham um horizonte infinito como perspectiva, não possuem

referências de terra firme e encontram-se limitados à circunscrição do pequeno barco, para

somente na morte encontrar a redenção - uma alegoria para a limitação humana. Toda essa

tessitura fatalista de Limite aponta para o desfecho fúnebre, um tema recorrente nas obras

decadentistas.

Mário Peixoto vale-se do simbolismo para dar significação a imagens por primazia

subjetivas, conferindo-lhes um caráter poético indissociável para a compreensão do filme,

ainda que subentendido ou inconsciente, tornando-o impassível de interpretação vulgar.

Tome-se, por exemplo, as formas e movimentos circulares incessantemente presentes no

filme, provável evocação da irreversibilidade. As ações se iniciam e findam sem que as

personagens progridam a outro estado. O próprio filme se conclui com a cena inicial.

As imagens se concatenam mais como metamorfoses da imagem proteica do prólogo

do que narrativamente, as três histórias alinhadas em duração e complexidade crescentes

tornam clara essa metamorfose sucessiva de imagens profundamente afins e dão-nos a

vivência da trágica limitação humana que as instauram. Neste sentido, Limite não é

mais do que uma vasta e contínua "reiteração" da imagem proteica do prólogo: a da

mulher e das mãos algemadas39

39 MELLO, Saulo Pereira de. Ver “Limite”, p. 87.

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4. Conclusão

Limite contém em profusão e profundidade tantos significados e tendências estéticas,

que pode-se dizer que para ele convergiu tudo que acontecia de mais expressivo no cinema

mundial da época. A visão poética e a imaginação visionária de Mário Peixoto produziram

essa síntese de modo ímpar, através de enquadramentos extremamente plásticos, movimentos

de câmera e mise en scène moderníssimas, resultando em uma obra-prima no sentido mais

abrangente da palavra.

A despeito de ter sido produzido no Brasil, Limite apresenta ainda incontestáveis

pontos de contato com o movimento decadentista europeu. De modo que, se o movimento

decadentista foi o prefácio do modernismo europeu, pode-se dizer de Limite, que foi o

prefácio de um cinema modernista no Brasil que não chegou a se consolidar.

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5. ANEXOS

5.1 – Fotogramas de Limite

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5.2 – Entrevista de Saulo Pereira de Mello ao Jornal da PUC

O Limite de Mário Peixoto Sabrina Gregori

Numa viagem a Paris, Mário Peixoto viu num quiosque a revista Vu. Na capa, o rosto de uma mulher de frente com um olhar fixo e duas mãos masculinas algemadas em primeiro plano. Era o início do filme Limite. Sensibilizado após uma briga com o pai, Mário viu "um mar de fogo, um pedaço de tábua e uma mulher agarrada a ela". Era o final do filme considerado uma das obras-primas do cinema brasileiro. Se estivesse vivo, Mário completaria cem anos no dia 25 de março, mesma data em que David Lean - diretor que mais admirava - tinha nascido. Limite é o único filme de Mário Peixoto.

Para Hernani Heffner, conservador da Cinemateca do MAM, Limite é um filme muito particular dentro do cinema brasileiro e mundial. "A grande questão é com que ele dialoga. Ele dialoga com o modernismo, dialoga com uma forma cinematográfica mais contemporânea. Mário é um artista moderno, antimoderno, revoluciona o próprio cinema ou dá um passo adiante do próprio cinema? Não é mais ponto de discussão se Mário Peixoto realizou um grande filme. Isso já é ponto pacífico", diz Heffner.

Mário fez o filme entre amigos. Raul Schnoor, ator principal, e Brutus Pedreira, que cuidou da parte musical, eram seus amigos de teatro. Edgar Brazil, fotógrafo, e Rui Costa, assistente, se tornaram também grandes amigos de Mário. Limite foi um dos últimos filmes silenciosos no Brasil. Ficou pronto em janeiro de 1931, já em vigor sonoro. O longa-metragem estreou por intermédio do Chaplin Club, fundado por seus amigos de infância, entre eles, Octávio de Faria, seu consultor teórico de cinema, e Plínio Süssekind Rocha, responsável pela primeira restauração da película na década de 60. Limite jamais teve exibição comercial.

Na verdade, Limite só chegou até nós graças a Edgar Brazil. Toda vez que um pedaço do filme deteriorava, Mário o chamava para reproduzir o pedaço e o substituía. Depois da morte de Edgar, Plínio, que se aproximara de Mário na década de 40, passou a exibir o filme na Faculdade Nacional de Filosofia, onde era professor, inclusive de Saulo Pereira de Mello que o ajudou no processo. Hoje, Limite passa por outra restauração, movida pela ONG de Martin Scorcese World Cinema Foundation.

A vida de Mário foi marcada por diversos projetos cinematográficos mal-sucedidos. Um dos mais famosos foi o scenario (roteiro) de Onde a Terra Acaba, em parceria com Carmen Santos, atriz e produtora que ele conheceu na montagem de Limite. O filme, caro e amplamente anunciado na imprensa, foi deixado por Mário por um desentendimento com Carmen. Outros vieram, como Inconfidência Mineira, projeto feito novamente em parceria com Carmen, numa reconciliação, e Maré Baixa, com Pedro Lima, seu amigo, que também não foi à frente por desavenças antigas de Pedro com Adhemar Gonzaga, grande incentivador do cinema brasileiro na época, convidado por Mário para ajudar no filme.

Capa da revista 'Vu' que inspirou Mário e o close inicial do filme

Edgar Brazil e Mário Peixoto nas filmagens de Limite (1930)

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O criador de Limite vivia da herança da família rica e nunca trabalhou. Mário não queria ser cineasta. Na verdade, queria ser escritor. De fato, como escritor teve mais obras concluídas e publicadas. Publicou em 1931, Mundéu, livro de poemas que foi criticado por Octávio de Faria, Manuel Bandeira e Mário de Andrade. Escreveu contos e até uma peça de teatro. Em 1933, Mário publicou um volume de O inútil de cada um. Até pouco antes de morrer, em 1992, ele havia expandido de um para seis volumes esse mesmo livro, acrescentando outros poemas e escritos. Desses, somente o primeiro foi publicado. Outra obra importante de Mário, A alma segundo Salustre, é um roteiro cinematográfico. Essa obra, que já teve os nomes de Maré Baixa e Sargaço, passou por quatro versões. A última ganhou uma edição da Embrafilmes, em 1983. Os scenarios existentes e demais documentos e livros de Mário estão no Arquivo Mário Peixoto, fundado em 1996 por Walter Salles. Mário morreu em seu apartamento em Copacabana, recebendo ajuda financeira do próprio Walter Salles.

Obra sem precedentes O encontro de Saulo Pereira de Mello com Limite e Mário aconteceu na Faculdade Nacional de Filosofia, onde ele é formado em Física e Filosofia. Apesar de dar todo o crédito pela primeira restauração de Limite a Plínio Süssekind Rocha, seu professor e amigo de Mário, sem Saulo Limite não teria chegado aos dias de hoje. Saulo fala um pouco para o JORNAL DA PUC sobre o filme de Mário e como isso chegou em sua vida.

JORNAL DA PUC: Como Mário está inserido na história do cinema brasileiro?

Saulo Pereira de Mello: Vinícius de Moraes uma vez escreveu um artigo, numa revista chamada

Renovação, para o qual Carlos Scliar desenhou uma árvore do cinema. O grande tronco era Grifith, o cinema soviético, o cinema americano, o cinema alemão, etc. E quando ele quis botar o Mário Peixoto, ele não encontrou lugar. Então, ele botou uma pomba voando. O Mário Peixoto é uma pomba. Não que ele seja o Espírito Santo. Ele não tem lugar no cinema brasileiro. Ele esvoaçou em volta. Você não encontra nenhum outro filme anterior a Limite que prepare a chegada dele, em que você pode dizer "Olha, Limite está chegando".

JP: Quais as influências cinematográficas de Mário?

Saulo: O Mário, como todo artista extremamente talentoso, sofria pouca influência. Não que não houvesse. Você está inserido num meio que aquilo entra pelos seus olhos. Mas ele tinha uma inabilidade, quem dizia isso era o Paulo Emílio Salles Gomes, tinha uma inabilidade de copiar. Mas ele sempre proclamava que o cinema alemão era muito chegado a ele. Filme alemão silencioso, é claro. Era o cinema que ele mais gostava, mais via. Mas do cinema americano ele não pode ter fugido à influência, porque era o cinema que todos nós víamos. Era o cinema que dominava o mercado totalmente.

JP: Limite só foi possível graças às amizades de Mário?

Saulo: Limite só foi possível, em primeiro lugar, porque ele tinha talento e muito talento. Em segundo lugar, ele tinha dinheiro. Em terceiro lugar, ele tinha uma sorte, nasceu virado para a lua, porque encontrou na vida dele um cara chamado Edgar Brazil. Na confluência dessas três coisas ele fez o que quis, sem que ninguém enchesse a paciência dele. O Edgar Brazil era um homem talentosíssimo. Era alemão, desenhista, mecânico, homem de laboratório, fotógrafo. Tem lá no arquivo Mário Peixoto, um desenho dele, em plano médio, do Mário feito a carvão, por Edgar Brazil, que é um primor. Mecânico, inventava aquelas traquitanas para a câmera fazer assim e assado. Ele fazia tudo que podia para que a idéia de Mário pudesse ser realizada. Isso demonstra primeiro a grandeza do caráter e, segundo, a compreensão cinematográfica do Edgar Brazil. Ele sabia que aquilo era um menino de 22 anos, mas não era um idiota. Ele leu o roteiro e percebeu que tudo aquilo tinha sentido.

Saulo Pereira de Mello (Reprodução TV PUC)

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JP: Por que Mário não queria dirigir o próprio scenario (roteiro)?

Saulo: O Adhemar Gonzaga dizia que o Mário era perseguido pelo demônio do tédio. Ele precisava ter alguém que fosse o "espírito de orelha". O cara que fala "Vai!’, "Vamos, levanta!". Que desse entusiasmo: "Você é bom! Porque você está aí?!" Esse homem era Brutus Pedreira, que, não literalmente, pegava ele pela orelha e obrigava a trabalhar. Se ele pudesse, delegava tudo para todo mundo. Delegou o próprio dinheiro e ficou pobre. E outro espírito de orelha que ele queria era eu (no roteiro de Jardim Petrificado). Ele queria que eu fosse, simultaneamente, o Edgar Brazil, o Brutus Pedreira e sei lá quem mais.

JP: Por que Limite se chama Limite?

Saulo: Eu perguntei isso pra ele. Ele disse "Eu vi aquelas imagens e me deu aquela sensação de limitação humana. Tudo preso, tudo limitado. Só podia ser Limite."

JP: O que você diz da narrativa e da plástica de Limite?

Saulo: A plástica é muito bonita, mas é menor. Muito bonita, mas como contribuição ao filme é menor. Narrativa quase não existe. Aí você me pergunta "O que sobrou?". O ritmo. A direção dos atores. A sucessão de imagens. A montagem.

JP: Como você começou a restaurar Limite?

Saulo: Um dia, Plínio exibiu Limite, na FNF, sem as três primeiras partes porque estavam se deteriorando. Plínio veio até mim e disse "Se nós não fizermos alguma coisa, esse filme vai se perder. Você vai deixar isso acontecer, Saulo?" Eu disse "Olha, professor, eu não sei, mas nós juntos podemos tentar". Tentamos e conseguimos. Mas depois o filme começou a ter a síndrome do vinagre. A hidrólise estava formando ácido acético no filme de acetato. Mas aí eu tinha um trunfo que era o Walter Salles. E é ele quem está salvando Limite pela segunda vez. A minha colaboração foi mais técnica e estética também porque eu sabia o quer era um contraste e tinha que manter isso para conservar a textura do filme. Plínio era um homem catedrático que queria um garoto de 17 anos na tarefa. Ele me dava algum valor. Mas foi Plínio quem mobilizou todo mundo.

Edição 198 Publicada em: 29/04/2008

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5.3 – Além do Limite

Um texto pessoal, onde descrevo minhas primeiras impressões

sobre Limite, que ainda reverberam até o presente momento em

meu estudo sobre a obra.

A primeira vez que vi Limite, fiquei maravilhada, embora confesse, não ter entendido

muita coisa. Apenas do pouco que pude apreender – da narrativa, ou da ausência dela –,

causou-me algum estranhamento. E a beleza da sucessão de imagens que se passara diante

dos meus olhos, um profundo êxtase. Não estava preparada para a profusão de

significados que impregnam aqueles fotogramas, nem a maneira como reverberariam em

minha sensibilidade anestesiada na era do videoclipe. Hoje, entreguei-me inconsciente...

Então pude sentir a película permeada de poesia. Um tempo único de narrativa poética. O

kine-poema de Vertov era inteiro sobre Limite, na exata proporção em que Limite é inteiro

sobre o ser humano. O ser humano dilacerado, à deriva com seus medos e culpas, remando

em círculos com um único remo. Limite é todo sobre a inexistência do tempo. Essa ilusão

rítmica a que a humanidade se agarra como que a um último remo, como se sempre

tivéssemos uma última chance. E nos ensina que o andamento do tempo pode ser diferente

pra cada um. Muitos podem não entender o andamento de Limite, mas ainda que não

entendam, certamente encontram familiaridade - porque trata de um tempo orgânico,

visceral e alheio a relógios, impossível de fracionar, posto que não pode se contar em

segundos. Para ver Limite é preciso abraçar a afirmação tácita da não existência de tempo.

O tempo nada mais é que um fator de pressão e coação, nossas algemas imaginárias, sem

chaves pra redenção. A humanidade vive sob o jugo do tempo algoz que inventou. O

tempo, que não passa de uma inconcretude metafísica, é esse Limite que nos impomos.

Faz de nossas vidas nau à deriva, sem fuga possível... Impossível um mergulho impune:

captar a essência de Limite é um despertar da consciência. Limite é uma advertência.

Tarde de 21 de janeiro de 2007, após exibição de Limite na Caixa Cultural/RJ. Publicado no blog Caixa de Palavras: www.caixa-de-palavras.blogspot.com

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6. REFERÊNCIAS 6.1 Referências Bibliográficas

ANDRADE, Oswald de. Estética e Política. São Paulo: Globo, 1992. BAUDELAIRE, Charles. Escritos sobre Arte, organização e tradução de Plínio Augusto Coêlho. – São Paulo: Imaginário – Editora da Universidade de São Paulo, 1991. BRADBURY Malcom e MCFARLANE James. Guia geral do Modernismo (1890-1930), São Paulo: Editora Schwarcz, 1999. CASTRO, Emil de. Jogos de Armar: a vida do solitário Mário Peixoto, Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 2000. COUTINHO, Edmundo Bouças; CORRÊA, Irineu E. Jones. O labirinto finissecular e as idéias do esteta (ensaios críticos). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004. EISNER, Lotte H. A Tela Demoníaca: As Influências de Max Reinhardt e do Expressionismo, tradução de Lúcia Nagib. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. FARIA, Octavio. Eu creio na imagem. In: O Fan, nº 6. Rio de Janeiro, 1929 apud HERTZ, Constança. Do grupo de cinema à teoria literária: O debate do Chaplin Club. GIANNINI, Napoli. Storia del Cinema Muto (A. Camusso, Trad.) Buenos Ayres: Editorial Universitária de Buenos Ayres, 1967. KORFMANN, M. Romântico, expressionista e colorido: O Gabinete do Dr. Caligari. Fragmentos (Florianópolis), v. 19, p. 97-112, 2006. MELLO, Saulo Pereira de. Mário Peixoto; Catálogo. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1996. __________. Limite. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. __________. Limite, de Mário Peixoto. In Revista Brasil – A poesia em 1930 – Ano 5, nº.11 Rio de Janeiro: RioArte /Fundação Rio, 1930. __________. Mário Peixoto: escritos sobre cinema. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2000. __________. O Fan, o Chaplin Club e Limite. In Revista O Percevejo, n. 5º , ano 5. __________. Ver “Limite”. Revista USP nº 4, dez/jan/fev de 1978.

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MORAES, Vinicius de. O Cinema de meus olhos. Organização, introdução e notas: Carlos Augusto Calil – São Paulo: Companhia das Letras, 1991. MOURA, Roberto. Cinema Brasileiro: atualidades e reminiscências inspiradoras. Cinemais, nº10, Rio de Janeiro, março/abril de 1998. MUCCI, Latuf Isaias. Figurações Intersemióticas De Salomé, Mito Decadentista Par Excellence – apresentado ao XI Congresso Internacional da ABRALIC: Tessituras, Interações, Convergências, USP – São Paulo, Brasil, 2008. __________. Ruína e simulacro decadentista: uma leitura de Il Piacere, de D’Annunzio. – Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1994. MUKAROROVSKY Jan, Escritos sobre estética e semiótica de arte. Lisboa: Editorial Estampa, 1979. NOBRE, Ana Luiza. Um modo de ser moderno, São Paulo: Cosac & Naify, 2007. PEIXOTO, Mário. O inútil de cada um. Volume 1. Rio de Janeiro: Record, 1984. __________. Limite: “scenario” original. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996. __________. Poemas de permeio com o mar. Rio de Janeiro: Aeroplano editora, 2002. PESSOA, Ana. Carmen Santos: o cinema dos anos 20. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. RODRIGUES, Constança Hertz. Correntes Submersas: um modernismo expressionista no Rio de Janeiro. Projeto de Pesquisa – (Programa de pós-graduação em Ciência da Literatura) – Faculdade de Letras - UFRJ, Rio de Janeiro, 2007. __________. Do grupo de cinema à teoria literária: o debate do Chaplin Club. In: VIII Congresso Internacional da Abralic - Mediações, 2002, Belo Horizonte. __________. Imagem e palavra: a teoria do Chaplin Club (1928-1930 - RJ). __________. Mário Peixoto: imagens de permeio com o mar. Poesia Sempre, Rio de Janeiro, v. 14, p. 199-210, 2001. __________. O Chaplin Club e a crítica de cinema no Brasil. Cultura Crítica (Apropuc - SP), v. 1, p. 15-19, 2006.

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ROIZMAN, Geraldo Blay. Mário Peixoto, um olhar fenomenológico, 2003. Dissertação – (Mestrado em Artes Visuais) – Instituto de Artes Visuais Universidade Paulista – UNESP, São Paulo, 2003. SARAIVA, Francisco José Coelho. O cinema no Limite: a máquina de espaço-tempo de Mário Peixoto, Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) – Universidade de Brasília. Orientador: Prof. Dr. Ismail Xavier. – UNB, Brasília, 2000. VIANY, Alex. Introdução ao Cinema Brasileiro, Rio de Janeiro: Revan, 1993.

6.2 OUTRAS FONTES

Estudos sobre Limite de Mário Peixoto. Laboratório de Investigação Audiovisual-LIA da

Universidade Federal Fluminense; CD-ROM (2000).

Site The Internet Movie Database: <http://www.imdb.com>

ALMEIDA, Paulo Ricardo de, Inocência do Olhar e Artificialismo Social, in Contracampo – Revista de Cinema, n º. 66 Disponível em:< http://www.contracampo.com.br/66/focomurnau.htm> Acesso em: 04/08/2009. CAETANO, Daniel. (2006). O Velho + O Novo. Contracampo Revista de Cinema, n º. 85 Disponível em: <http://www.contracampo.com.br/85/artigos.html> Acesso em: 11/03/2009. PAPOULA, Talita. Entre dândis e decadentistas, uma possível Salomé: uma leitura de A confissão de Lúcio, de Mario de Sá-Carneiro, v. 2, p. 5, 2008. Disponível em: <http://www.fw.uri.br/publicacoes/literaturaemdebate/literaturaemdebatev2n3/index.html> Series: 3; ISSN/ISBN: 19825625. RODRIGUES, Constança Hertz. Do grupo de cinema à teoria literária: O debate do Chaplin Club. Disponível em: <http://www.alfredo-braga.pro.br/ensaios/literatura-cinema.html> Acesso em: 28/05/2009.

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6.3 REFERÊNCIAS FÍLMICAS

Limite (Brasil, 1931. Drama, 120 minutos: 35 mm, PB, mudo). Roteiro, Direção, Produção e Montagem: Mário Peixoto

Direção de Fotografia: Edgar Brasil

Assistência de Câmera: Ruy Santos

Assistência de Direção: Ruy Costa e Brutus Pedreira

Montagem: Mário Peixoto

O Homem do Morcego (Brasil, 1980. Documentário, 20 minutos: 35 mm, PB).

Direção, Produção e Montagem: Ruy Solberg

Texto: Cláudio Mello e Souza

Direção de Fotografia: Fernando Duarte

Som: Zé D’Alice

Montagem: Mair Tavares

Onde a Terra Acaba (Brasil, 2001. Documentário, 75 min.: Cor/PB, som estéreo)

Roteiro e Direção: Sérgio Machado

Produção executiva: Mauricio Andrade Ramos

Direção de Fotografia: Antonio Luiz Mendes

Musica Original: Ed Cortês Antonio Pinto

Edição: Isabelle Rathery

Direção de Arte: Cassio Amarante / Mônica Costa

Produção: Raquel Freire Zangrandi

Assistência de Direção: Alexandra Maia

Edição de Som: Denilson Campos / Aloisio Compasso

Produção: Videofilmes.