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INTERNET: UMA NOVA POSSIBILIDADE PARA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS LIDIA HELENA MULLER ZART (MESTRANDA DO PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA APLICADA DA UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS- UNISINOS. E-MAIL [email protected] CO-AUTORIA: PROFª. DRª. DINORÁ MORAES DE FRAGA (PROFESSORA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇAO EM LINGUÍSTICA APLICADA DA UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS- UNISINOS. E-MAIL [email protected] RESUMO: Este artigo traz reflexões sobre a necessidade de se entender o ciberespaço na cultura do letramento digital, pontuando a autoria nesse novo espaço de produção de sentido. O estudo lingüístico do hipertexto se justifica pela necessidade de adequação a esse novo espaço de escrita, tomando a textualidade em seu processamento, sendo a novidade a explicitação da função dos hiperlinks na perspectiva da Linguística Aplicada. PALAVRAS-CHAVE: cibercultura, hipertexto, letramento digital, autoria. ABSTRACT: This article offers reflections on the necessity to understand the cyberspace culture in digital literacy while an area of authorship production of meaning. The linguistic study of hypertext is justified by the need to adapt to this new area of writing, taking textuality within its processing, having as news the explicitness for the role of hyperlinks in an Applied Linguistics perspective. KEYWORDS: cyberculture, hypertext, digital literacy, authorship. INTERNET: UMA NOVA POSSIBILIDADE PARA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS

Internet Uma Nova Possibilidade Para Construcao de Sentidos

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RESUMO: Este artigo traz reflexões sobre a necessidade de se entender o ciberespaço na cultura do letramento digital,pontuando a autoria nesse novo espaço de produção de sentido. O estudo linguístico do hipertexto se justifica pela necessidade de adequação a esse novo espaço de escrita, tomando a textualidade em seu processamento, sendo a novidade a explicitação da função dos hiperlinks na perspectiva da Linguística Aplicada.

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  • INTERNET: UMA NOVA POSSIBILIDADE PARA CONSTRUO DE SENTIDOS

    LIDIA HELENA MULLER ZART (MESTRANDA DO PROGRAMA DE PS-

    GRADUAO EM LINGUSTICA APLICADA DA UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO

    DOS SINOS- UNISINOS. E-MAIL [email protected]

    CO-AUTORIA: PROF. DR. DINOR MORAES DE FRAGA (PROFESSORA DO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAAO EM LINGUSTICA APLICADA DA

    UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS- UNISINOS. E-MAIL

    [email protected]

    RESUMO: Este artigo traz reflexes sobre a necessidade de se entender o ciberespao na

    cultura do letramento digital, pontuando a autoria nesse novo espao de produo de sentido.

    O estudo lingstico do hipertexto se justifica pela necessidade de adequao a esse novo

    espao de escrita, tomando a textualidade em seu processamento, sendo a novidade a

    explicitao da funo dos hiperlinks na perspectiva da Lingustica Aplicada.

    PALAVRAS-CHAVE: cibercultura, hipertexto, letramento digital, autoria.

    ABSTRACT: This article offers reflections on the necessity to understand the cyberspace

    culture in digital literacy while an area of authorship production of meaning. The linguistic

    study of hypertext is justified by the need to adapt to this new area of writing, taking

    textuality within its processing, having as news the explicitness for the role of hyperlinks in

    an Applied Linguistics perspective.

    KEYWORDS: cyberculture, hypertext, digital literacy, authorship.

    INTERNET: UMA NOVA POSSIBILIDADE PARA CONSTRUO DE SENTIDOS

  • A quais desafios estamos submetidos enquanto professores, quando colocamos

    nossos alunos diante do computador para produzir textos utilizando a Internet?

    1. Introduo

    Segundo Lvy (1993, p.7) novas maneiras de pensar e de conviver esto sendo elaboradas

    no mundo das telecomunicaes e da informtica. As constantes inovaes nos dispositivos

    informacionais de todos os tipos modificam as relaes entre o ser humano, o trabalho, a

    inteligncia.

    Lvy (1993) nos chama a ateno sobre o distanciamento entre a natureza dos problemas

    colocados coletividade humana (e por incluso a escola), causada pelo avano acelerado da

    tcnica e a falta do debate miditico necessrio. Os mtodos de ensino ainda refletem esse

    distanciamento, explicado pela razo histrica da filosofia poltica e a reflexo sobre o

    conhecimento ter se cristalizado em pocas, nas quais as tecnologias de informao e de

    comunicao se apresentavam relativamente estveis e evoluam de uma forma previsvel,

    distanciada da discusso educacional enquanto essa avanava muito lentamente na

    possibilidade de vnculo com as tecnologias da informao e da comunicao.

    Com o advento da tecnologia digital1, a prtica pedaggica em sala de aula se tornou um

    novo desafio: o de ensinar e aprender linguagem no chamado ciberespao2, produtor de uma

    cibercultura3. A cibercultura e o ciberespao se organizam atravs da linguagem digital.

    1 Entende-se por digital o conjunto de dados usados como uma contagem discreta. Atualmente, a palavra usada em computadores e em aplicaes eletrnicas, especialmente quando a informao do 'mundo-real' convertida num sistema binrio. 2 Lvy define ciberespao (tambm chamado de rede) o novo meio de comunicao que surge da interconexo mundial dos computadores. O termo especifica no apenas a infraestrutura material da comunicao digital, mas tambm o universo ocenico de informaes que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo (Lvy, Pierre. Cibercultura. 1. ed. So Paulo : Editora 34, 1999 . p. 17 ). 3 Cibercultura especifica aqui o conjunto de tcnicas (materiais e intelectuais), de prticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespao (Ibid p. 17).

  • Uma nova tecnologia surgida no contexto da cibercultura a Internet4, cuja cultura envolve a

    incluso digital ou infoincluso, que a democratizao do acesso s tecnologias da

    informao e comunicao (TICs), de forma a permitir a insero de todos na sociedade da

    informao. Para que essa insero ocorra, necessrio mais que um simples contato fsico

    com o computador, como ressalta Lvy (1999), deve haver a possibilidade de se participar

    efetivamente dos processos de comunicao e informao. A alfabetizao, a capacitao no

    uso do software5 e do hardware6, e a oportunidade de utilizao constante do aprendizado so

    essenciais a esse processo:

    (...) no basta estar na frente de uma tela, munido de todas as interfaces amigveis que se possa pensar, para superar uma situao de inferioridade. preciso, antes de mais nada, estar em condies de participar ativamente dos processos de inteligncia coletiva que representam o principal interesse do ciberespao (LVY, 1999. p.238)

    O ciberespao favorece o desenvolvimento da inteligncia coletiva, um conceito que surgiu

    com as discusses de Lvy a respeito das tecnologias da inteligncia. Caracterizado por um

    novo tipo de pensamento, viabilizado atravs das conexes sociais, que se realizam na

    utilizao das redes abertas de computador pela Internet. A inteligncia coletiva

    caracterizada pelo uso coletivo da interatividade, das comunidades virtuais, dos fruns, dos

    weblogs e wikis na construo e disseminao dos saberes, com base no acesso informao

    democratizada e sua constante atualizao.

    Este artigo procura propor alguns desafios a que estamos submetidos enquanto professores,

    quando colocamos nossos alunos diante do computador para produzir textos utilizando a

    Internet.

    2. A construo de sentidos

    4 Para Lvy 1999, o nome Internet vem de internetworking (ligao entre redes), o conjunto de meios fsicos (linhas digitais de alta capacidade, computadores, roteadores etc.) e programas (protocolo TCP/IP) usados para o transporte da informao. A Web (WWW) apenas um dos servios disponveis atravs da Internet, e as duas palavras no significam a mesma coisa (Ibid. p. 255). 5 Lvy define software como sendo um programa de computador. Consiste de um conjunto de instrues em linguagem de mquina que controlam e determinam o funcionamento do computador e de seus perifricos (Lvy, 1999, p. 258). 6 Hardware segundo Levy , qualquer componente fsico de um computador. A palavra hardware poderia ser livremente traduzida como equipamento. Na categoria de hardware enquadram-se monitores, teclados, placas-me, mouses, scanners, modems, discos rgidos etc. (Ibid. p. 258).

  • Na escola, com o acesso a Internet cada vez mais facilitado, o que se percebe de forma

    crescente o uso pelos professores dos laboratrios de informtica para realizar pesquisas e

    produes textuais com seus alunos nesse ambiente. Essa situao traz consigo alguns

    problemas, normalmente discutidos nas salas dos professores e em conselhos de classe: a

    cpia de textos da Internet e a apropriao de sua autoria pelos alunos. Isso pode ser

    evidenciado pelas respostas dadas por alguns colegas, atravs de e-mails, questionados sobre

    sua viso em relao a autoria nas produes feitas pelos alunos no computador, com o uso da

    Internet. (Ver nota ao final).

    Considerando que a mudana e o prprio processo de modernizao esto em ltima instncia

    no ser humano, que tem poder de deciso para assumir suas prprias construes, uma vez

    que ele se torna consciente da sua relao de reciprocidade com o social, percebe-se o

    surgimento de uma nova tecnologia que favorece a insero do ser nessa cultura: o hipertexto.

    Nesse meio os alunos esto construindo hipertextos, fazendo composies de textos atravs de

    textos que j existem, com o uso dos links e do procedimento conhecido como recorta e cola.

    Esse tipo de produo est sendo avaliada de forma generalizada pelos professores, por falta

    de suporte que lhes aponte outra direo para valorizar a atualizao que o uso do hipertexto

    pode pressupor num trabalho pedaggico orientado para a atualizao. esse fenmeno de

    produo textual, na escola, que est sendo entendido como desonesto.

    Na prtica percebemos que o aluno se utiliza muito da Internet para produo de vrios

    gneros textuais, em diversas disciplinas, mas o que tem predominado a produo de

    pesquisas, sem citao de fonte, procedimento sem dvida questionvel, na qual tambm

    observamos a reproduo de ideias, sem fazer referncia autoria. Para ilustrar, trazemos um

    excerto de um texto, parte de uma pesquisa, onde dois alunos, de forma distinta, individual e

    com o mesmo texto, definiram o termo mitologia chinesa, copiando a definio disponvel no

    site da Wikipdia e coincidentemente, disponvel de forma igual no Yahoo, sem fazer

    qualquer referncia fonte de consulta, como se o texto fosse originariamente de sua autoria.

    O acesso a essa fonte foi possvel atravs do software farejador de plgio denominado

    HTTrack Website Copier. A mitologia chinesa o conjunto de histrias, lendas e ritos passados de

    gerao para gerao de forma oral ou escrita. H diversos temas na mitologia chinesa, incluindo mitos envolvendo a criao e lendas e mitos a respeito da fundao da cultura chinesa e do Estado chins. Como em muitas mitologias, acredita-se que ela seja uma forma de rememorao de fatos passados. Os historiadores supem que a mitologia chinesa tem incio por volta de 1100 a.C. Os mitos e lendas foram passados de forma oral durante aproximadamente mil anos antes de serem escritos nos primeiros livros como o Shui Jing Zhu e o Shan Hai

  • Jing. Outros mitos continuaram a ser passados atravs de tradies orais tais como o teatro e canes, antes de serem escritos em livros como no Fengshen Yanyi. Disponvel em
  • Isso implica comearmos situando o contexto em que essa nova autoria se d, a cibercultura,

    como a cultura do letramento digital. Denise Braga (2005) pontua que as novas tecnologias,

    isoladamente no so responsveis pelo impacto causado sobre as formas de compreenso e

    experenciamento do letramento nesse ambiente. A autora retoma Warschauer (1999), para

    quem a interao das mudanas tecnolgicas com os fatores sociais, polticos e econmicos

    que vo determinar formas novas de prticas letradas. Persistindo na ideia de Warschauer

    (1999), Braga ainda traz a comparao do impacto da era Gutenberg no contexto da revoluo

    industrial, com a era comunicao on-line, vinculada a uma nova revoluo, agora centrada

    no controle da informao, do conhecimento e das redes de comunicao. o gerenciamento

    e a qualidade da informao, a tecnologia e a cincia que propiciam formas de comunicao e

    estilos de vida diferenciados dentro dessa nova estrutura social.

    A cibercultura se desenvolve no ciberespao. Lvy (1999, p. 92) define ciberespao como o

    espao de comunicao aberto pela interconexo mundial de computadores e das memrias

    dos computadores. Nesse espao de comunicao se inclui o conjunto de sistemas de

    comunicao eletrnicos, responsveis por transmitir informaes provenientes de fontes

    digitais ou destinadas digitalizao. Para Lvy (1999, p. 50):

    Digitalizar uma informao consiste transform-la em nmeros. Quase todas as informaes podem ser codificadas dessa forma. [...] As imagens e os sons tambm podem ser digitalizados, no apenas ponto a ponto ou amostra por amostra, mas tambm de forma mais econmica, a partir de descries das estruturas globais das mensagens iconogrficas ou sonoras.

    Assim, os usurios da cibercultura podem se apropriar das informaes codificadas

    digitalmente, por serem transmitidas e copiadas quase indefinidamente sem perda da

    informao, j que a mensagem original pode ser quase sempre reconstituda integralmente,

    apesar das degradaes causadas pela transmisso (telefnica, hertziana) ou cpia (LVY,

    1999. 51). Assim, esse dispositivo de comunicao ao mesmo tempo coletivo e interativo, nas

    palavras de Lvy (1999), uma forma de usar as infraestruturas existentes e de explorar seus

    recursos por meio de uma inventividade distribuda e incessante, que indissociavelmente

    social e tcnica.

  • nesse meio, usando mquinas, navegando entre informaes, materiais e programas

    disponveis que surge o nosso novo autor, escritor do hipertexto8. Aqui, escrita e leitura

    trocam seus papis, porque quem participa da estruturao do hipertexto, fazendo escolhas e

    criando significados um leitor. Aquele que atualiza percursos ou determinados aspectos da

    reserva documental, interage com a redao, se torna autor de um texto, finalizando

    temporariamente uma escrita interminvel, nessa nova prtica de letramento digital.

    Tomando a ideia de Kleiman (1998, p.181), que define letramento como as prticas e

    eventos relacionados com uso, funo e impacto social da escrita, devemos considerar que

    essas prticas sociais de leitura e escrita postas em ao, trazem efeitos para a sociedade,

    enquanto desempenham um papel de organizao e reorganizao dessas prticas. Lvy

    (1993, p.174) relaciona as tecnologias de escrita s tecnologias intelectuais responsveis por

    gerar estilos de pensamentos diferentes, no sentido de que estas no determinam, mas

    condicionam processos cognitivos e discursivos.

    O estudo das tecnologias intelectuais permite, ento, colocar em evidncia uma relao de encaixamento fractal e recproco entre objetos e sujeitos. O sujeito cognitivo s funciona atravs de uma infinidade de objetos simulados, associados, imbricados, reinterpretados, suportes de memria e pontos de apoio de combinaes diversas. Mas essas coisas do mundo, sem as quais o sujeito no pensaria, so em si produto de sujeitos, de coletividades intersubjetivas que as saturaram de humanidade.

    Michel de Certeau (1994) nos traz uma reflexo sobre a importncia de se observar o contexto

    cultural no qual est inserido o leitor e produtor de textos da cibercultura. Conceito muito

    importante para o letramento digital, conforme o conceito de letramento assumido a partir de

    Magda Soares e Warschauer, referendado por Braga (2005). Atravs da sua metfora da

    cidade sem muros, Certeau apresenta a figura do Voyeur: aquele que est no alto e consegue

    observar a cidade de cima. Como metfora dessa forma de construir sentido, traz a ideia de

    que do alto do World Trade Center, o voyeur, com olho celeste, se distancia da massa, tendo

    uma viso panormica da cidade. Essa atitude de quem est de fora observando pode ser

    comparada com a antiga concepo de escrita, de codificao e decodificao, de mero

    observador do texto.

    8 [...] um texto em formato digital, reconfigurvel e fludo. Ele composto por blocos elementares ligados por links que podem ser explorados em tempo real na tela. A noo de hiperdocumento generaliza, para todas as categorias de signos (imagens, animaes, sons etc...), o princpio da mensagem em rede mvel que caracteriza o hipertexto (LVY, 1999 p. 27).

  • Muda num contexto que se tem diante de si, sob os olhos, o mundo que

    enfeitiava e pelo qual se estava possudo. Ela permite l-lo, ser um Olho solar, um olhar divino. Exaltao de uma pulso escpica e gnstica. Ser apenas este ponto que v, eis a fico do saber (CERTEAU, 1994, p.170).

    J na concepo da produo de sentido como letramento, valendo-nos da cidade grande de

    Certeau, necessrio descer ao sombrio espao onde circulam multides que, embora visveis

    do alto, embaixo no se v como ato de observao porque dela se est fazendo parte. nesse

    espao, mais embaixo que vivem os praticantes ordinrios da cidade. Surge o pedestre, o

    caminhante, que vai andando pela cidade, escrevendo a sua trajetria com seu corpo,

    formando um texto urbano sem poder l-lo, no sentido tradicional de leitura como

    decodificao. Esses praticantes jogam e circulam por espaos que no se vem e do qual no

    tm conhecimento. Os caminhos, textos, escritos pelo entrelaamento desses caminhantes,

    so assinados por muitos outros. As prticas organizacionais da cidade habitada parecem

    tomadas por uma espcie de cegueira.

    As redes dessas escrituras avanando e entrecruzando-se compem uma

    histria mltipla, sem autor nem espectador, formada em fragmentos de trajetrias e em alteraes de espaos: com relao s representaes, ela permanece cotidianamente, indefinidamente, outra (CERTEAU, 1994, p.171).

    nesse espao que Certeau detecta prticas estranhas ao espao geomtrico ou

    geogrfico das construes visuais ou tericas, remetendo a uma forma especfica de

    operaes, como maneiras de fazer, a uma outra espacialidade, (uma experincia

    antropolgica, potica e mtica do espao) e a uma mobilidade opaca e cega da cidade

    habitada (Certeau, 1994, p. 172). Certeau (1994, p.174) ainda define cidade-conceito como

    lugar de transformao e transformaes, objeto de intervenes, mas sujeito sem cessar

    enriquecido com novos atributos: ela ao mesmo tempo a maquinaria e o heri da

    modernidade. Uma relao evidente entre essa metfora e o conceito de cibercultura

    desenvolvido por Lvy, assumido por ns nesse trabalho, como um conceito-chave para o

    letramento digital.

  • Na necessidade de melhor entender o ciberespao na cultura do letramento digital, enquanto

    um espao de produo de sentido, tomamos de Walter Benjamim, o personagem conceitual

    de Charles Baudelaire, para exprimir a mudana da paisagem contempornea, urbana ou no,

    como lugar de passagem, espao transitrio, para traar uma relao entre o hipertexto e as

    tecnologias digitais. Walter Benjamin (1989, p.187), atravs de Charles Baudelaire, utiliza a

    figura do Flneur: um ser tico por excelncia, que reinventa a paisagem urbana atravs de

    articulaes que invertem as relaes espao-temporais pela ao do flnerie, flanando

    livremente.

    Uma embriaguez acomete aquele que longamente vagou sem rumo pelas

    ruas. A cada passo, o andar ganha uma potncia crescente; sempre se torna a seduo das lojas, dos bistrs, das mulheres sorridentes e sempre mais irresistvel o magnetismo da prxima esquina, de uma massa de folhas distante, de um nome de rua. Ento vem a fome. Mas ele no quer saber das mil e uma maneiras de aplac-la. Como um animal asctico, vagueia pelos bairros desconhecidos at que, no mais profundo esgotamento, afunda em seu quarto, que o recebe estranho e frio.

    Em nosso entendimento, esse o momento da navegao na Web, constituidora da produo

    do sentido hipertextual. Dessa forma, seu pensamento ilustra as riquezas de possibilidades do

    cotidiano. Convida-nos a remover as distores atravs dos quais estamos acostumados a

    experimentar os espaos e eventos e substitu-las por novas, fazendo-nos pensar em

    estratgias de aproximao entre nossos problemas e nossas prprias interpretaes dos

    eventos. No ser esse o desafio a que estamos submetidos enquanto professores, quando

    colocamos nossos alunos diante do computador para produzir textos utilizando a Internet?

    Deleuze e Guattari teorizam sobre as mudanas da escrita nos espaos mltiplos, onde no

    tem qualquer importncia se dizer Eu, pois nesse espao j no somos mais ns mesmos, uma

    vez que fomos ajudados, aspirados, multiplicados, comparados estrutura de uma rvore que

    tem razes multiramificadas, capaz de estabelecer inmeras conexes ao mesmo tempo em

    diferentes direes. Os autores apresentam esses espaos de sentidos mltiplos como rizomas:

    [...] Num rizoma, ao contrrio, cada trao no remete necessariamente a um trao lingstico: cadeias semiticas de toda natureza so a conectadas a modos de codificao muito diversos, cadeias biolgicas, polticas, econmicas, etc, colocando em jogo no somente regimes de signos diferentes, mas tambm estatutos de estados de coisas (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p.15).

  • Outro princpio do rizoma o da multiplicidade. As multiplicidades se definem pelo fora:

    pela linha abstrata, linha de fuga ou de desterritorializao segundo a qual elas mudam de

    natureza ao se conectarem com as outras (DELEUZE e GUATTAI, 1995, p.17). Pensamos

    que a multiplicidade de conexes reside na pessoa do autor que a projeta nos textos, formando

    verdadeiras tramas. Essas tramas se realizam atravs dos links ou hiperlinks. Consideramos a

    flanerie e o rizoma como a cultura da produo do sentido da cibercultura includa no

    letramento digital, e o hipertexto, como a textualidade da resultante.

    Para a rea da Lingustica, no estudo do hipertexto, o conceito de hiperlink apresenta especial

    interesse, que na concepo de Ingedore Koch, so dispositivos tcnico-informticos que

    permitem efetivar geis deslocamentos de navegao on-line, bem como realizar remisses

    que possibilitam acessos virtuais do leitor a outros hipertextos de alguma forma

    correlacionados. ( KOCH ,2003, p. 64). J Cavalcante (2005, p.167) associa a arquitetura do

    hipertexto como um mapeamento de associaes possveis entre textos, funcionando como

    uma representao das redes de sentido estabelecidas durante a leitura, ligadas a ideia de

    autoria.

    Os links seriam as representaes dessas redes que o autor propositalmente apresenta ao leitor, como estratgia de marcar seu prprio percurso enquanto autor, seu estilo, sua histria, seu lugar de autoria, e delineando os caminhos que o leitor pode perseguir nesta(s) sua(s) leitura(s).

    Enquanto escreve um texto virtual, o autor vai demarcando, delimitando pontos que considera

    importantes para a construo do sentido, sem para isso precisar um caminho a seguir pelo

    seu leitor. O leitor do hipertexto experencia seu prprio caminho na construo do sentido,

    uma vez que no h um roteiro fixo a ser seguido ou uma progresso referencial, interna ao

    texto, relacionada ao contexto. Referimos, aqui, a relao da escrita com a cultura do flaneur. O que temos de fato o delineamento de um espao, demarcado por alguns pontos de referncia (links) que remetem a outros espaos (ns), como o mapa de uma localidade qualquer. Logo no h solda hipertextual na perspectiva do autor, apenas a disponibilizao de um certo recorte demarcador de possibilidade (CAVALCANTE, 2005, p.167).

    Cavalcante (2005) ainda pontua que no a virtualidade que modifica os lugares da autoria e

    da leitura, esse processamento apenas explicitado num outro suporte. Mesmo oferecendo

    muitas possibilidades de leitura, do ponto de vista fsico, restringe em sua prpria

  • materialidade, com os links, outras referncias de texto que o leitor poderia articular em

    relao ao hipertexto.

    Pierre Lvy (2007) pontua que o hipertexto digital pode ser definido como uma coleo de

    informaes multimodais dispostas em rede para navegao intuitiva e rpida, podendo assim,

    ser um espao de leituras atravs de textos que so acessados e relacionados

    instantaneamente. O leitor no se desloca mais fisicamente pelo texto, mas navega guiado

    pelos hiperlinks de leitura diante de um hipertexto que se desdobra e dobra-se vontade na

    sua frente. E para ele leitor todo aquele que participa da estruturao do hipertexto, do

    traado pontilhado das possveis dobras do sentido.

    Assim como Pierre Lvy, George P. Landow (1997, p.19), afirma que o hipertexto comparte

    com uma gran diversidad de clases de texto um rasgo fundamental, que hemos definido como

    no linealidad. O texto no linear, ou hipertexto, para Landow, tem sua importncia

    reconhecida nos meios digitais por permitir a interao do leitor. Esse pode participar da

    trama textual, adicionando comentrios, sugerindo, num processo de co-autoria e

    multiplicidade de vozes atravs dos diferentes recursos miditicos disponveis no ciberespao. La particular importncia de la textualidad em red es decir de La textualidad escrita, almacenada y leda em uma red informtica se manifiesta cuando La tecnologia convierte a los lectores em lectores-escritores o lectautores, ya que qualquier contribucin o cambio introducido por um lector pronto est al alcance de los dems lectores ( LANDOW, 1997, p.31).

    Segundo Landow, o termo hipertexto abarca uma diversidade de obras e objetos textuais da

    tecnologia e da imprensa, e inclui sistemas muito diferentes. Ao se considerar as implicaes

    e desafios do hipertexto para a teoria, deve-se levar em conta que este pode apresentar-se

    como sistema independente de redes ou como sistema de leitura de divulgao que permitem

    ao leitor estabelecer ligaes a breves anotaes que lhe possibilitam o mesmo acesso que o

    escritor.

    As perspectivas lineares e no-lineares so arbitrrias dentro do texto. Enquanto que aquela

    apresenta um objeto com autonomia sobre o leitor, nesta o sujeito mobiliza os textos, olhando

    de forma particularizada sobre a materialidade lingustica, fragilizando a supremacia do

    objeto.

  • 3. Concluso Entender essa nova forma de organizao do pensamento antes de mais nada, no ficar

    alheio s mudana que ela nos traz. Ser autor nesse espao criar sentidos novos, uma vez

    que tudo est dado no coletivo. As prticas escolares de produo textual em ambiente digital

    devem ser repensadas no sentido de considerar que, nesse espao, as marcas de um autor

    individual desparecem em favor de um auto coletivo, proporcionado pela produo

    hipertextual. No possivel conceber a produo textual sem discutir a autoria no ambiente

    digital com a mesma importncia como tem sido discutida na cultura impressa. Aqui os

    recursos, a prtica e a forma de organizao so outros e precisamos no mnimo, repensar

    nossa postura epistemolgica, terica e metodolgica diante dessa questo.

    4. Referncias BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lrico no auge do capitalismo. Traduo de Jos Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves. 1. ed. So Paulo : Brasiliense, 1989. (Obras Escolhidas ; v.3) BRAGA, B. Braga. A comunicao interativa em ambiente hipermdia: as vantagens da hipermodalidade para o aprendizado no meio digital. In MARCUSCHI, L. Antnio; XAVIER, Carlos (Orgs). Hipertexto e gneros digitais: novas formas de construo do sentido. MARCUSCHI. 2. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005. BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos por um interacionismo scio-discursivo. Traduo de Anna Rachel Machado e Pricles Cunha. So Paulo: Educ, 1999 CAVALCANTE, Marianne Carvalho Bezerra. Mapeamento e produo de sentido: os links no hipertexto. In MARCUSCHI, L. Antnio; XAVIER, Carlos (Orgs). Hipertexto e gneros digitais: novas formas de construo do sentido. MARCUSCHI. 2. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005. CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano. Artes de fazer. Petrpolis : Vozes,1994. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Flix. Mil Plats. Capitalismo e Esquizofrenia. So Paulo: Editora 34, 1995. Vol 1. KLEIMAN, A. Ao e mudana na sala de aula: uma pesquisa sobre letramento e interao. In: ROJO, R. (Org.). Alfabetizao e letramento: perspectivas lingsticas. Campinas: Mercado de Letras, 1998, p.173-203

  • KOCH, Ingedore G. Villaa. Desvendando os segredos do texto. 2. ed. So Paulo: Cortez, 2003. LVY, Pierre. O que virtual? So Paulo: Editora 34, 2007. ____. Cibercultura. 1. ed. So Paulo : Editora 34, 1999. ____. As tecnologias da Iteligncia. O futuro do pensamento na era da informtica. 1. ed.Rio de Janeiro : Editora 34, 1993. LANDOW, George P. Teora del hipertexto. 1. ed. Barcelona: Paids, 1997. SOARES, Magda. Novas prticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura. Educ. Soc. [online]. 2002. v. 23, n. 81, p. 143-160 WARSCHAUER, M. Eletronic Literacies: Language, Culture, and Power in Online Education. Mahwah, N. J., London: Lawrence Erlbaum Associates Publishers, 1999. 5. Notas

    Depoimento de professores sobre atividade de escrita de seus alunos na Internet. [...] ainda recebo muitas pesquisas de cpia pura da internet, leio e coloco observaes escritas para as crianas e reservo um momento para cham-los e conversar sobre como foi o desenvolvimento desta pesquisa, quem ajudou, o que entenderam, como poderia ficar melhor, o que esto levando pra vida, etc.,etc...e novamente oriento sobre ler e retirar o que realmente responde aos pedidos feitos, que escrevam o que entenderam do que encontraram, que sempre releiam o que escreveram...etc ,etc.. [...] Acredito que no sabem ao certo que a partir daquilo que eles escrevem passa a ser um pensamento ou algo produzido por eles mesmos, acho que no tem essa clareza e mais, eles tem preguia de ler a fica mais fcil copiar e colar, no importa se eles ou no que produziram, mas torno a dizer no claro que o que escrevem passa a ser de autoria deles. [...] Acredito que os alunos no associaram bem o bom uso da internet na construo do seu conhecimento. Eles utilizam a pesquisa na internet como forma de "economizar" tempo e no para se apropriar do conhecimento oferecido, como se eles tivessem escrito esse texto. Percebo que h grandes reprodues de pesquisas. Os alunos no informam de quem esto copiando as informaes e s vezes eles nem tem conhecimento do qu est sendo informado. Colocam os dados no trabalho, entregando ao professor e so

  • avaliados por isso. O mais chocante que ganham notas excelentes por este tipo de trabalho... Cabe ao professor orientar o aluno a forma correta de pesquisar na internet e avali-lo de uma forma que demonstre que este tipo de trabalho foi vlido e que houve aprendizagem. [...] No ensino fundamental, a cpia acontece esporadicamente, mas no mdio, chegam a combinar entre si quem far o suposto trabalho. Este passar para a turma e eles modificam a ordem dos ttulos e ou pargrafos. Tem alunos que, inclusive, copiam uma parte de cada colega, formando uma "colcha de retalhos". Como um texto requer treino, leitura, interesse, vontade... o adolescente, geralmente, no aprecia.Certa vez, um colega professor do tcnico marcou um trabalho de pesquisa no incio do ano letivo para ser entregue no final deste. A maioria deixou para a ltima hora, restando apenas "baixar", "copiar" e "colar". Porm, este professor, mais esperto que os seus alunos, no dia da entrega, promoveu perguntas especficas sobre o contedo da pesquisa, fazendo com que os estudantes respondessem e explicassem o seu trabalho.Por isso, estou evitando marcar pesquisas. Prefiro trabalhos curtos em aula, em que consigo visualizar o potencial de cada um e orientar para o crescimento individual. [...] O acesso ao recurso da informtica para pesquisas tem contribudo muito para que alguns alunos tomem essa prtica do "recorte" e "colagem", fazendo com que seus trabalhos se paream como uma colcha de retalhos. Que procedimentos so encaminhados ao solicitar um trabalho de pesquisa? Bem, fao uma orientao prvia de que pesquisar no copiar o que algum outro escreveu. necessrio que o aluno aprenda o que uma citao, que ele a identifique em seu material. Tambm faz-se pertinente levantar o assunto em sala de aula: o que plgio? uma prtica correta? condenvel ou no? Por qu? So questes fundamentais para uma reflexo e para se deixar claro que, se ocorrer cpia por parte do aluno, ele deve arcar com as consequncias. Os educandos nos tm como orientadores seus e nossa responsabilidade alert-los, conduzi-los a realizarem um trabalho que atinja os objetivos aos quais nos propusemos: aprendizagem, leitura, reflexo, anlise, escrita. Quando identifico, ento, que houve cpia, plgio, procuro chamar o aluno envolvido, mostrar o erro, dialogar sobre o porqu dessa atitude e proponho uma nova escrita. Se o aluno se negar a refaz-lo, sabe da reprovao do seu ato. Faz-se necessrio que a todo tempo e em qualquer oportunidade estejamos formando cidados ticos, bons profissionais, conscientes de seu papel na sociedade. [...] Ainda focando na graduao, possvel identificar em alguns trabalhos de concluso de curso, uma exigncia para obteno do ttulo, a produo feita atravs de cpia de textos pr-existentes fato que desqualifica o profissional e faz perder o sentido a exigncia acadmica. Passando para o nvel da Ps-Graduao, embora possa ser identificada esta prtica em alguns casos, o que preocupa o fato de muitos alunos basearem seus estudos e seus projetos cientficos, nesse tipo de material cujas informaes nem sempre so corretas. A possibilidade de ser ter acesso a informao quase que instantaneamente, em particular em termos de cincia, de inquestionvel valor. Basta fazer uma pequena retrospectiva sobre a produo cientfica no Brasil nas ltimas dcadas, mas tambm devemos ter um olhar crtico e fazermos uma reflexo sobre as conseqncias no que se refere ao desenvolvimento da linguagem e at mesmo cognitiva dos jovens expostos a estes instrumentos.