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LICENCIATURA EM CIÊNCIAS · USP/ UNIVESP Química 1 Ana Cláudia Kasseboehmer INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS DE QUÍMICA 1.1 Introdução 1.2 O que é Química? 1.3 Níveis de representação em Química 1.4 Modelo científico: idealização das teorias na Ciência 1.5 O método Científico: As etapas fundamentais da construção de conhecimento na Ciência 1.6 Psicologia Científica Referências

Introdução Aos Estudos Química dE QuímICA · Existe um único método que norteia o trabalho dos cientistas? Gil Pérez e colaboradores (2001) explicam que, se não é possível

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Licenciatura em ciências · USP/ Univesp

Quím

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Ana Cláudia Kasseboehmer

Introdução Aos Estudos dE QuímICA

1.1 Introdução1.2 o que é Química?1.3 níveis de representação em Química1.4 modelo científico: idealização das teorias na Ciência1.5 o método Científico: As etapas fundamentais da construção

de conhecimento na Ciência1.6 Psicologia Científicareferências

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O material desta disciplina foi produzido pelo Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada (CEPA) do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) para o projeto Licenciatura em Ciências (USP/Univesp).

Créditos

Coordenação de Produção: Beatriz Borges Casaro.

Revisão de Texto: Marina Keiko Tokumaru.

Design Instrucional: Érika Arena, Juliana Moraes Marques Giordano, Maria Angélica S. Barrios (estagiária), Melissa Gabarrone, Michelle Carvalho e Vani Kenski.

Projeto Gráfico e Diagramação: Daniella de Romero Pecora, Leandro de Oliveira, Priscila Pesce Lopes de Oliveira e Rafael de Queiroz Oliveira.

Ilustração: Alexandre Rocha, Aline Antunes, Benson Chin, Camila Torrano, Celso Roberto Lourenço, João Costa, Lidia Yoshino, Maurício Rheinlander Klein e Thiago A. M. S.

Fotografia: Jairo Gonçalves.

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Química

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1.1 IntroduçãoO objetivo desta aula é propiciar uma visão geral da Ciência Química e sobre como o

conhecimento é construído em ciência. Dessa forma, esperamos que você reconheça a Química

como uma ciência teórica e prática e inicie seus estudos sobre outro objetivo importante desta

disciplina: compreender sobre a natureza das ciências.

1.2 O que é Química?Na história, podemos encontrar referências à Química desde a época dos filósofos gregos,

quando se buscava compreender a composição da matéria criando algumas teorias como a

dos quatro elementos ou do atomismo. Mais tarde, surgiram os alquimistas que, com seus

objetivos específicos, realizavam experimentos e construíam diversas vidrarias, várias delas

utilizadas até hoje pelos químicos. Em nenhum desses períodos, porém, essas atividades foram

caracterizadas como Ciência Química.

A Ciência Química surge quando o ser humano associa teoria e prática em uma relação

dialética. A Química é geralmente conhecida como uma “ciência experimental”, o que pode

remeter à ideia de que realizar experiências é a atividade principal de um químico. Entretanto,

a Química é uma ciência que procura explicar o mundo macroscópico utilizando-se das teo-

rias e modelos reconhecidos no mundo científico. Sendo a Química uma ciência de natureza

teórico-prática, ela acontece pela observação de um fenômeno pelos cientistas, que, por sua

vez, elaboram uma teoria que tenta explicar determinada situação, podendo ou não esta teoria

desencadear novos experimentos, caracterizando assim a relação dialética.

Como se sabe, diversas são as áreas que têm como foco de interesse a natureza, o meio

ambiente, o Universo. Cada área, como a Física e a Astronomia, por exemplo, em uma

perspectiva diferente, procura montar o “quebra-cabeça” que é a natureza.

Mas o que compete à Química? Como essa área da ciência pode ser definida e diferenciada

das outras?

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Na Figura 1.1 encontramos as subdivisões da matéria desde o nível macroscópico – visível

a olho nu: matéria, materiais e substâncias – até o nível submicroscópico – partículas e átomos

criados teoricamente para explicar o mundo macroscópico. O foco de interesse dos químicos

é a substância. Podemos definir Química como uma área das Ciências Naturais que estuda as

substâncias: sua constituição, suas propriedades e as suas transformações.

O trabalho do químico em relação às substâncias pode ocorrer de quatro diferentes maneiras:

1. Extrair dos materiais da natureza as substâncias químicas úteis ao ser humano, geral-

mente de interesse para a indústria. Por exemplo, temos a extração de óleos essenciais de

plantas para fabricação de fragrâncias. Podemos inferir, então, que é interesse do químico

conhecer e desenvolver novas estratégias de separação de misturas;

2. Utilizar as diferentes substâncias extraídas dos materiais da natureza para produção de

novos materiais. Para exemplificar, podemos tomar a fabricação de um perfume, que

requer a mistura de óleos essenciais, algum álcool e outras substâncias. Essas substâncias

químicas precisam estar discriminadas nos rótulos dos produtos comerciais;

3. Sintetizar (produzir) substâncias que podem ser encontradas na natureza, mas o são em

quantidades muito pequenas, o que inviabiliza a sua exploração comercial;

Matéria: tudo o que tem massa e ocupa lugar no espaço

encontrada na forma de

são constituídos por diferentes

constituídas por apenas um tipo de

é formada por

Materiais: porções de matéria com propriedades específicas. Ex.: madeira, metal etc.

Substâncias: conceito fundamental da Química; pode ser atribuída uma fórmula. Ex.: água (H2O); Ferro (Fe)

Partícula: quanto ao tipo de ligação química, podendo ser composto iônico, molécula etc.

Átomos

Figura 1.1: Formas de apresentação da matéria.

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4. Sintetizar substâncias químicas que não existem na natureza e que são planejadas e

obtidas a partir de pesquisas na área de síntese. Muitos remédios hoje disponíveis no

mercado foram produzidos dessa forma como fruto de anos de pesquisa em laboratórios.

Para empreender esses trabalhos, os químicos então estudam as substâncias em três diferentes

aspectos (Figura 1.2).

As substâncias químicas são estudadas quanto às propriedades que apresentam em diferentes

condições e quais transformações físicas e químicas podem ocorrer, dadas determinadas

condições reacionais. Os químicos necessitam também construir modelos e teorias para explicar

do que são feitas essas substâncias e por que apresentam determinadas propriedades. Além

disso, esses modelos e teorias são também úteis para prever e explicar por que determinadas

transformações ocorrem e outras não.

Podemos perceber que, apesar de a experimentação ser uma componente forte do trabalho

do químico, a teorização anterior e posterior à realização dos experimentos é fundamental.

E é essa relação dialética – em que a teoria é utilizada para planejar experimentos e os resul-

tados experimentais, por sua vez, podem modificar teorias consolidadas – que caracteriza a

Química como Ciência.

1.3 Níveis de representação em QuímicaO estudo da Química ocorre em três diferentes níveis de representação (veja a Figura 1.3).

Substância

Constituição

Propriedades

TransformaçõesFigura 1.2: Focos de interesse da Química. / Fonte: modificado de Machado e MortiMer, 2007

submicroscópico

macroscópico

simbólicoFigura 1.3: Níveis de representação em Química.

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O nível macroscópico refere-se àquilo que é observável: os fenômenos da natureza. É de

onde surgem os problemas sobre os quais os cientistas se debruçam para compreender. Nesse

contexto, é importante compreender a diferença entre fenômeno e fato.

O nível submicroscópico compreende as interações em nível de átomos e moléculas. Não

é possível visualizá-los a olho nu, nem com a ajuda de algum aparelho. Por isso, esse nível

compreende os modelos teóricos construídos sobre a constituição da matéria.

A constituição de um átomo e todas as teorias desenvolvidas para explicar os fenômenos da

matéria em nível submicroscópico, como qualquer teoria científica, não pode ser tomada como

verdade incontestável e continua sendo foco de estudos e novos questionamentos. A definição

de modelo será discutida a seguir.

Finalmente, as substâncias químicas bem como as transformações podem ser representadas

com a simbologia característica da área de Química.

Na Figura 1.4, à esquerda há uma representação de um

cilindro com gás oxigênio armazenado, o que é observado

em nível macroscópico. No lado direito, as moléculas

dessa substância estão representadas utilizando-se bolinhas

verdes. Podemos ainda representar a substância em nível

simbólico, pois, uma vez que consideramos que é uma

substância, significa que ela é constituída por um único

tipo de partícula, que, neste caso, são moléculas de oxigênio

e a fórmula atribuída à substância é O2.

• Fenômeno: ocorrências do meio e que podem ser percebidos pelos sentidos. Por exemplo, ferrugem, chuva etc.

• Fato: recorte de um fenômeno tomado como objeto de estudo pelos cientistas, geralmente, é extraído na forma de um problema. Por exemplo, “em quais condições ocorre a ferrugem?”; “a chuva da Região Sudeste é ácida?”.

Figura 1.4: Representação macro e submicroscópi-ca da substância oxigênio. / Fonte: modificado de Banco de Imagens LENAQ/UFSCar.

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Em outro exemplo, a Figura 1.5 representa a subs-

tância água em nível macroscópico – copo com água à

esquerda – e em nível submicroscópico – representação de

moléculas à direita. Em nível simbólico, podemos atribuir

a fórmula H2O, pois a substância é constituída por um

único tipo de partícula – as moléculas de água.

Na Figura 1.6, a molécula de água está constituída

por uma bolinha vermelha, que representa o átomo de

oxigênio (O), e duas bolinhas brancas, que representam os átomos de hidrogênio (H). É disso que

é derivada a fórmula H2O.

Vale a pena, assim, aprofundarmos um pouco mais na definição de modelo científico.

1.4 Modelo científico: idealização das teorias na Ciência

De acordo com Gilbert e Boulter (citado por Ferreira e Justi, 2008, p. 32),

um modelo pode ser definido como uma representação parcial de um objeto,

evento, processo ou ideia, que é produzida com propósitos específicos como, por

exemplo, facilitar a visualização; fundamentar elaboração e teste de novas ideias;

e possibilitar a elaboração de explicações e previsões sobre comportamentos e

propriedades do sistema modelado.

Figura 1.5: Representação macro e submicroscópica da substância água. / Fonte: modificado de Banco de Imagens LENAQ/UFSCar.

Índice “2” significa que há 2 átomos H na molécula

H2OSem índice significa que há um átomo O na molécula

Figura 1.6: Molécula de água.

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Assim, os entes átomos, íons, substâncias puras, equação química etc. têm existência no campo

ou no sistema conceitual que se chama Química. Eles não são objetos. São os “objetos teóricos

que permitem construir conhecimento intelectual sobre os objetos concretos” (Maldaner,

2003, p. 105). Os modelos são, então, idealizações do real, aos quais os objetos concretos são

aproximados ao serem conhecidos.

Os modelos não são de uso exclusivo da ciência e são utilizados no dia a dia como, por

exemplo, o modelo de pai e mãe, o modelo de um prato saudável etc. No caso dos modelos

científicos, eles não são cópia nem explicação incontestável da realidade. Eles são representações

que explicam algo que não é visível a olho nu e que são aceitos pela comunidade científica

como satisfatórios e coerentes, satisfazendo uma necessidade. Os processos de pesquisa em

Química são dependentes dos modelos e, portanto, o “saber ciência” implica a compreensão

dessa questão do universo dos modelos.

Na maioria dos casos, ao se “fazer Química” dois processos são fundamentais: a teorização

e a experimentação. Mas como o conhecimento científico é construído? Existe um único

método que norteia o trabalho dos cientistas?

Gil Pérez e colaboradores (2001) explicam que, se não é possível caracterizar de maneira unificada “o que é ciência”, existem algumas “visões deformadas” que não se associam de maneira adequada a esse tipo de atividade. Todavia, elas podem estar presentes no ensino e, se não forem consideradas, podem gerar concepções distorcidas sobre a natureza das ciências. Segundo eles, as “visões deformadas” sobre a natureza das ciências são as seguintes:a. concepção empírico-indutivista e a teórica: compreensão na qual se consi-

dera que a experimentação tem um “papel neutro”; não se percebe que o ato experimental é precedido de hipóteses e conhecimentos teóricos que orientam as atividades. Essa visão está relacionada à ideia de uma descoberta inesperada bastante divulgada pela mídia, especialmente na literatura das histórias em quadrinhos;

b. concepção rígida: percepção do método científico como uma sequência de etapas definidas e exatas, descartando-se o papel da criatividade, das tentativas e da dúvida;

c. concepção aproblemática e a-histórica: visão adquirida com o tratamento dos conteúdos desvinculados dos problemas que os originaram e das dificuldades encontradas na construção do conhecimento;

d. concepção exclusivamente analítica: compreensão decorrente do tratamento excessivamente fragmentado do saber, considerando que áreas científicas específicas não dialogam entre si;

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1.5 O método Científico: As etapas fundamentais da construção de conhecimento na Ciência

Retomemos algumas informações contidas no vídeo BBC - História das Ciências, a que

assistimos na disciplina Evolução da Ciência I.

I. O jornalista explica que o astrônomo Tycho Brahe, após a construção de um observatório,

observou o Céu por mais de vinte anos, buscando compreender o movimento dos planetas;

II. Johannes Kepler, para explicar o movimento de Marte, realizou cálculos matemáticos

por mais de cinco anos. Sua hipótese inicial era a de que a Terra e Marte viajavam em

órbitas circulares em torno do Sol. Dada a impossibilidade de explicar matematicamente

essa hipótese, ele elaborou outra - a de que a órbita desses planetas era elíptica e, partindo

desse pressuposto, foi possível conciliar os cálculos matemáticos com as observações de

Tycho Brahe;

III. Isaac Newton, procurando explicar por que os objetos sempre caem para baixo,

elaborou a hipótese da lei da gravidade e uma experiência – a da bola de canhão sobre

a Terra em diferentes velocidades – que expressava o seu raciocínio.

Esses exemplos podem ilustrar que não existe um método único ou uma sequência de etapas

rígidas, que os cientistas devem seguir, que culminam na construção de novos conhecimentos.

Enquanto as contribuições de Brahe ocorreram através de observações sistemáticas, Kepler

e. concepção acumulativa de crescimento linear: visão de conhecimento científico como produto da acumulação linear de conhecimento sem, então, perceber que essa produção envolve controvérsias e confronto de teorias opostas;

f. concepção individualista e elitista: consideração de que a ciência é obra de gênios, os quais, isolados ou em uma única equipe, podem construir sozinhos toda uma teoria;

g. concepção socialmente neutra da ciência: visão que entende os cientistas como pessoas “acima do bem e do mal” (p. 133), que não se deixam influenciar pelas relações entre ciência, tecnologia e sociedade.

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apoiou-se em cálculos matemáticos e Newton sugeriu uma experiência. Ao mesmo tempo, é

possível levantar alguns pontos comuns às ciências.

Um conhecimento científ ico surge de um problema, um questionamento sobre algo

observável, sobre o qual os cientistas se debruçam à procura de uma explicação; por exemplo,

“o que é o Céu?”; “como é o movimento de Marte?” ou “por que os objetos sempre caem para

baixo?”. A partir desse problema, é necessário que se crie uma provável explicação – ou hipó-

tese – que explique, de maneira coerente, o problema inicial. Segue-se então para a elaboração

de estratégias, sejam cálculos matemáticos, experiências etc., que validem ou derrubem essa

explicação. Finalmente, outros cientistas e a sociedade precisam ser convencidos daquela ideia.

Podemos caracterizar o conhecimento científico, então, como um fruto de trabalho social,

no qual pensamentos divergentes são questionados, e da validação social de uma hipótese, o que

confere à teoria o status de ideias que encontraram consenso entre os pares. No caso específico

da Química, denominada ciência empírica, Popper (1972) define a área como aquela em que

cientistas formulam hipóteses ou sistemas de teorias e as submetem a testes, nos quais elas são

confrontadas com observações e experimentos.

Podemos, então, sugerir que a prática científica se alicerça sobre três pilares: a criação, vali-

dação e incorporação de conhecimentos.

Com relação ao primeiro pilar, Praia e colaboradores (2002) explicam que, enquanto, na

perspectiva empirista, a hipótese é pouco valorizada, na concepção racionalista contemporânea

ela ocupa papel central. E apresenta a definição extraída de uma enciclopédia:

aquilo que hoje em dia, no discurso científico classificamos de hipótese, apenas

pode ser considerado como uma paragem provisória do pensamento, seja por

conjecturar um facto descrito de modo a ser suscetível de ser estabelecido ou

refutado no quadro dos termos que o definem, seja por propor um conceito que

justifique provisoriamente a sua coerência e eficácia no raciocínio explicativo dos

fenômenos observados ou provocados (Praia et al., 2002, p. 254).

Os autores acrescentam que o processo de elaboração de hipóteses é complexo e pode ter

origem em uma imaginação fértil ou em ideias especulativas, as quais se apoiam em um fundo

reflexivo. A hipótese articula teorias e norteia a pesquisa.

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Não pretendendo defender uma abordagem empirista de ciência, uma vez criadas, as ideias

precisam ser validadas. A experimentação é assim desenvolvida não para provar hipóteses, mas

para retificar erros nelas contidos. O pesquisador observa os resultados, questionando-os em

busca de respostas não definitivas. Nesse caso, razão e experiência encontram-se intrinsecamente

entrelaçadas, sendo a razão aquela que procura desaprender através de uma metodologia cons-

ciente e a experiência científica, aquela que busca desmentir as conclusões do senso comum.

A experiência científica é norteada pela teoria que, com seus olhos, dialoga com o fenômeno e

o questiona, buscando respostas que não são definitivas ou suas representações fiéis, mas projeções

de possíveis modelos interpretativos do mundo. Os autores chamam a atenção para o fato de a

experiência dificilmente provar as ideias, sendo muito mais fácil falseá-las. Nesse aspecto, uma

hipótese é corroborada enquanto resistir aos testes de validação, os quais devem ser severos para

que a teoria siga compatível com os enunciados sobre os quais ela foi elaborada.

Segue-se, então, o terceiro pilar da prática científica, no qual as construções são ref letidas

sistematicamente e as ideias produzidas são confrontadas entre os pares para, então, serem aceitas

pela comunidade científica. Isso implica que a atividade científica, sendo essencialmente humana,

está permanentemente sujeita às interferências sociais, econômicas e políticas.

Aprender sobre uma ciência não implica somente adquirir os principais conceitos que

constituem o conhecimento da área. Significa também ter consciência de como esse conheci-

mento é construído e saber fazer uso dele.

As três etapas fundamentais ao trabalho do cientista podem ser assim sintetizadas:a. elaboração de hipóteses: consideradas como ideias transitórias construídas

para a solução de um problema de maneira coerente e com suporte teórico;b. elaboração de estratégias para verificar a coerência das hipóteses: temos

o planejamento de experimentos para falsear ou provar a veracidade da ideia inicial, o que pode acabar suscitando novas hipóteses e novos experimentos;

c. discussão coletiva: as hipóteses elaboradas são apresentadas e difundidas para a comunidade, produzindo uma discussão que leve à aceitação ou à sua refutação.

Problemas de aprendizagem relacionados a conceitos fundamentais em Química como, por exemplo, elemento químico, substância e formas de representação, geram concepções alternativas e outras dificuldades tanto na aprendizagem de outros conceitos quanto no ensino de Ciências na Educação Básica.

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Uma particularidade interessante é como os cientistas expressam suas teorias e argumentam

em ciências. Uma delas é a questão do sujeito. Machado e Mortimer (2007, p. 34) explicam que

enquanto no dia a dia expressamos um fato utilizando os sujeitos em primeira pessoa, na linguagem

científica, o sujeito é suprimido de modo a caracterizar uma lei ou uma teoria. Veja o exemplo:

Ao nos referirmos a como o aumento de temperatura afeta a dissolução de

açúcar em água no nosso cotidiano, normalmente falamos: quando colocamos

açúcar em água e aquecemos, conseguimos dissolver uma maior quanti-

dade do que em água fria. Na linguagem científica, expressaríamos esse mesmo

fato de uma forma diferente: o aumento de temperatura provoca um

aumento da solubilidade do açúcar.

1.6 Psicologia CientíficaRetomando novamente o vídeo BBC - História das Ciências, onde foi visto o acaso, a

intuição e a busca por poder são fatores que podem ser encontrados na história da ciência.

A compreensão da subjetividade na ciência pode ser útil, não apenas como um alerta para o

seu potencial de interferência. Nouvel (2001) aposta que a unidade que não pode ser encon-

trada na caracterização de um método científico universal pode estar presente na psicologia

científica. A motivação que impele o pesquisador à profissão, a que o autor chama de ‘a arte

de amar a ciência’, traz revelações interessantes e que podem ser aproveitadas para o ensino de

Ciências, mesmo porque é sugestiva a defesa do autor de que a reverenciada racionalidade quase

desaparece por completo quando os cientistas são observados em sua individualidade.

Nouvel (2001) explica que o cientista se dedica à pesquisa porque ela é interessante, e não

por buscar a verdade. Ela é atraente porque é perpassada por uma sensação de aventura, mistério

e imprevistos – visto ser necessário elaborar hipóteses, debruçar-se sobre elas por um período

que talvez não resulte em sucesso – que a distanciam da rotina e abrem oportunidade para “uma

liberação da mentalidade artista do cientista (...) que quer produzir grandes pensamentos” (p. 95).

Além disso, outras características compõem a psicologia científica: a influência do sentimento,

a vontade de ter razão e o prazer que se sente ao presenciar o nascimento de um conceito.

O sentimento influencia intrinsecamente a atividade científica e conduz o pensamento para

uma direção em detrimento de outra, pois permite que o cientista seja tomado pelo problema

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e nele fixe seu pensamento. Nessa imersão, o pesquisador pode sentir tudo o que irradia do

problema e dos fatos que o acompanham, seu pensamento é cativado por uma ideia que o

leva a ter a audácia de elaborar hipóteses que, aparentemente, não estão sob o olhar rígido da

razão. A maneira como o cientista se comporta diante de um problema é bem caracterizada

na narrativa de James Watson, um dos descobridores da estrutura do DNA: “Mesmo durante

os bons filmes me era impossível esquecer as bases. É essa emoção que constitui a disposição

psicológica favorável à descoberta: uma vontade de ter razão toma conta de seu objeto, e dele

se apropria de maneira exclusiva, possessiva” (p. 91).

O cientista é uma pessoa que experimenta constantemente o gosto pelo sucesso, uma

vontade de ter razão, que torna a espera por um resultado um processo afetivo, não teórico,

e transforma o exercício científico numa atividade competitiva. Se sua hipótese é derrubada,

o pesquisador prova uma forte sensação de decepção. Se é aceita pela comunidade, “o moral

vai lá em cima. Um sentimento de ter razão brilha de repente” (nouvel, 2001, p. 62),

alegria essa que é também fruto da percepção da infinitude do pensamento, cujo poder extra-

polou as limitações de raciocínios que se haviam tornado costumeiros:

Seu futuro depende das indicações que você é capaz de dar provando que você

pode fazer alguma coisa por você mesmo. É simples assim. A competição é de

longe o traço dominante. É a principal emoção própria deste domínio. A segunda

é que você tem que provar para você mesmo o que você é capaz de fazer – e na

realidade é a mesma coisa (Watson, citado por nouvel, 2001, p. 52).

Finalmente, a arte de amar a ciência pode ser percebida quando da concepção de um novo

conceito do ponto de vista do sentimento. A emoção que embala o nascimento de uma nova

ideia cria uma sedutora ilusão de que a verdade pode ser encontrada, e

Que um sentimento de alegria surja quando do nascimento de um conceito no

pensamento, que nessa ocasião o pensamento se encontre como que alçado fora da

massa indiferenciada do sentimento, da emoção (que agia sem ver, sem se perceber

como agente), e então talvez encontraremos a ocasião de perceber alguma particu-

laridade relacionada ao nascimento do conceito. Alguma coisa que era conhecida

sem ser nomeada irá encontrar seu nome. Essa alegria é a alegria de um primeiro

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encontro. O primeiro encontro da palavra com o que ela designa, o reconheci-

mento do que é designado pela palavra. Alegria de assistir ao desenvolvimento da

potência do conceito com essa maneira de ave de rapina que ele tem de capturar

no chão um animal quase impossível de distinguir da massa confusa do solo e de

elevá-lo nos ares, tornando-o bem visível, destacando-o do meio indistinto onde

sua existência não era nomeada (nouvel, 2001, p. 183).

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GlossárioEmpirismo: Doutrina ou sistema que só conhece a experiência como guia seguro. Fonte: Dicionário

Priberam. Disponível em: <http://www.priberam.pt/DLPO/default.aspx?pal=empirismo>. Acesso em 07/2012.