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Introdução 1. Dualismo do direito patrimonial privado de Macau. 1.1. O direito comercial no âmbito do direito objectivo. A classificação tradicional do direito objectivo em direito público e direito privado corresponde a uma divisão da realidade social em dois grandes sectores: o primeiro, delimitado pelo Estado e pelos entes que o integram, no exercício da sua autoridade e das suas funções, em defesa dos seus fins próprios e dos interesses gerais da comunidade; o segundo, delimitado pela pessoa, como membro da comunidade, no exercício das suas actividades, em defesa dos seus fins e interesses particulares. Dentro do direito privado, considera-se direito patrimonial a parte que regula a pessoa como sujeito económico e as suas relações no exercício da actividade económica (produção, distribuição, atribuição, gozo e consumo de bens e serviços). A esfera patrimonial constitui uma projecção da pessoa no sistema económico, um âmbito de actuação inerente a toda a pessoa e necessário para a realização dos seus fins. No direito privado de Macau, o direito patrimonial encontra-se dividido em dois ramos: o direito civil patrimonial e o direito comercial. A relação entre ambos corresponde à que existe entre direito comum e direito especial: o direito civil patrimonial constitui o tronco comum de todo o direito patrimonial privado, regulador de toda vida económica da pessoa em geral; o direito comercial é um ramo especial, que contém normas, distintas das comuns, para disciplinar uma concreta matéria, determinadas instituições e relações. A definição de direito comercial há-de efectuar-se pois com base na matéria que regula; e, para determinar a sua razão de ser, teremos que nos perguntar porque é que esta matéria requer uma disciplina distinta da que decorre do direito comum. As respostas a estas questões não podem ser absolutas nem perpétuas, porque a questão dos ramos de direito objectivo coloca-se em relação

Introdução · A definição de direito comercial há-de efectuar-se pois com base na matéria que regula; e, para determinar a sua razão de ser, teremos que nos perguntar porque

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Introdução

1. Dualismo do direito patrimonial privado de Macau.

1.1. O direito comercial no âmbito do direito objectivo.

A classificação tradicional do direito objectivo em direito público e direito

privado corresponde a uma divisão da realidade social em dois grandes sectores:

o primeiro, delimitado pelo Estado e pelos entes que o integram, no exercício da

sua autoridade e das suas funções, em defesa dos seus fins próprios e dos

interesses gerais da comunidade; o segundo, delimitado pela pessoa, como

membro da comunidade, no exercício das suas actividades, em defesa dos seus

fins e interesses particulares.

Dentro do direito privado, considera-se direito patrimonial a parte que

regula a pessoa como sujeito económico e as suas relações no exercício da

actividade económica (produção, distribuição, atribuição, gozo e consumo de

bens e serviços). A esfera patrimonial constitui uma projecção da pessoa no

sistema económico, um âmbito de actuação inerente a toda a pessoa e necessário

para a realização dos seus fins.

No direito privado de Macau, o direito patrimonial encontra-se dividido

em dois ramos: o direito civil patrimonial e o direito comercial. A relação entre

ambos corresponde à que existe entre direito comum e direito especial: o direito

civil patrimonial constitui o tronco comum de todo o direito patrimonial privado,

regulador de toda vida económica da pessoa em geral; o direito comercial é um

ramo especial, que contém normas, distintas das comuns, para disciplinar uma

concreta matéria, determinadas instituições e relações.

A definição de direito comercial há-de efectuar-se pois com base na

matéria que regula; e, para determinar a sua razão de ser, teremos que nos

perguntar porque é que esta matéria requer uma disciplina distinta da que decorre

do direito comum. As respostas a estas questões não podem ser absolutas nem

perpétuas, porque a questão dos ramos de direito objectivo coloca-se em relação

a categorias históricas, que por sua própria natureza são contingentes e

mutáveis1.

Mais especificamente, o direito comercial é o conjunto de normas que

disciplinam a actividade de uma particular categoria de pessoas: os empresários.

Nessa medida, o direito comercial é o direito da produção porque se ocupa da

regulamentação das relações de troca de bens e serviços e ainda da disciplina das

obrigações e da responsabilidade dos sujeitos que participam na produção.

Antes é no direito comercial que encontramos a definição e a disciplina

particular do sujeito que organiza a produção, i.e. o empresário comercial.

O direito comercial regula a actividade dos empresários, sejam

empresários individuais (pessoas humanas), sejam empresários colectivos (v.g.

sociedades).

Na medida em que a actividade empresarial supõe um risco (o de não

conseguir colocar no mercado o resultado do processo produtivo e logo de não

criar receitas que permitam a satisfação das responsabilidades incursas na

organização do processo produtivo), o direito comercial ocupa-se também da

crise da empresa a fim de evitar que a situação de insolvência se alastre a outros

empresários. O empresário insolvente é sujeito a um processo concursual a

benefício dos credores, o processo falimentar, cujo escopo é assegurar o princípio

da igualdade creditória, par conditio creditorum.

O empresário para o exercício da sua actividade utiliza um complexo

organizado de bens materiais e imateriais, a empresa ou estabelecimento

comercial. Enquanto unidade produtiva criadora de riqueza, o direito comercial

disciplina a sua protecção e a sua transmissão com normas especiais. Protege

também alguns bens específicos como a firma, o nome e a insígnia do

estabelecimento e a marca.

Os empresários desenvolvem a sua actividade defrontando-se no mercado,

o que reclama um conjunto de normas que disciplinem a concorrência

sancionando a concorrência desleal.

1 Cfr. Manuel Olivencia Ruiz, Concepto del derecho mercantil, p. 37, in “Lecciones de derecho mercantil”, coordenaçao de Guillermo J.Jiménez Sánchez, Tecnos, 1992.

O direito comercial compreende ainda a disciplina dos contratos que

supõem (v.g. contratos bancários) ou pressupõem (v.g., contrato de transporte)

uma empresa.

Engloba também o direito comercial uma particular fonte de obrigações:

os títulos de crédito; instrumentos essencialmente utilizados para a troca de

riqueza e financiamento da produção e do consumo2.

1.2. Origem e evolução histórica.

«A aplicação do método histórico ao direito comercial demonstra: a) que

nem sempre existiu o direito comercial como um ramo de direito especial do

direito privado patrimonial; b) que, quando existiu, a delimitação da sua matéria

nem sempre correspondeu aos mesmos critérios, pois varia ao longo do tempo e

de uma ordem jurídica para outra3.

A dualidade existente no direito patrimonial privado de Macau, enquanto

direito de matriz portuguesa, tem a mesma origem histórica da dualidade (direito

civil/direito comercial) do direito patrimonial português o direito da Baixa Idade

Média. O direito romano não conhecia o direito comercial4 como um ramo de

direito privado especial. O direito comercial nasce, por volta do séc. XII, da

inadaptação do Ius Civile a uma nova realidade patrimonial, caracterizada pelo

“florescimento de uma economia urbana, mercantil, monetária e creditícia, que

tem como palco a cidade e a feira; como actores os mercadores; como actividade

o comércio; como objecto as mercadorias, o dinheiro e o crédito”5.

Na época imediatamente precedente, a feudal, com uma economia

fundamentalmente imobiliária e agrária, baseada na auto-suficiência, as trocas

entre os vários pontos de um país eram muito limitadas. Depois do ano 1000,

assiste-se a um renascer económico e cultural, porquanto a produção agrícola, em

particular, aumentou consideravelmente graças à utilização de novas técnicas de 2 Cfr. F. Reberschegg, A. Tondo, S. Torcinovich, Corso di diritto commerciale, 1999, pp. 1 e 2. 3 Cfr. M.Olivencia Ruiz, ibidem. 4 Cfr. Francesco Ferrara jr., Francesco Corsi, Gli imprenditori e le società, 30 ed.ª, Giuffrè editore, Milão, 2006, pp. 3 e 4. 5 Cfr. M.Olivencia Ruiz, ibidem.

cultivo, permitindo assim, por um lado, a libertação de mão de obra dos campos,

por outro, a criação de excedentes que era necessário trocar. Este processo

conduziu ao repovoamento das cidades e ao desenvolvimento das actividades

artesanais que se apoiavam na força de trabalho imigrada do campo, em virtude

da degradação das condições de vida e de trabalho ali verificadas em

consequência das inovações produtivas6.

A economia feudal fundava-se no gozo dos fundos imobiliários, que eram

a principal fonte de riqueza, estruturada num sistema jurídico de base

consuetudinária, mas cujos institutos fundamentais derivavam do direito romano,

dirigido preferencialmente à conservação e gozo dos bens imobiliários7.

Na cidade, onde se encontravam os mercados aparece uma nova figura, o

mercador, cuja função era justamente adquirir os bens móveis ao produtor, o

artesão, e vendê-los onde os mesmos fossem necessários. O mercador geria as

necessidades, adquirindo onde os bens eram abundantes e colocando-os onde os

mesmos escasseavam, criando assim uma utilidade e apropriando-se da diferença

de preço que o mercado comportava.

A classe mercantil para tornar seguras as trocas tinha necessidade de um

sistema jurídico que estivesse conforme à sua visão da riqueza, não como meio

de satisfazer necessidades imediatas, mas sim como meio de criar nova e maior

riqueza. O mercador reinvestia o resultado da sua actividade de intermediação

entre o produtor directo e os consumidores para ter sempre mais bens para

revender, por forma a aumentar incessantemente os seus lucros.

O mercador torna-se rapidamente a figura central do novo sistema

económico, porquanto sem a sua intervenção intermediadora entre a produção e o

consumo, não era possível ao artesão continuar a produzir, por não saber o

quanto, nem o escoamento dos excedentes agrícolas, que sem a intervenção do

mercador estariam condenados a apodrecer8. A função do mercador era, então

como hoje, a de gerir os interesses da produção e os do consumo: verificar onde

se produzem os bens que escasseiam noutro lugar, deslocando-os do primeiro 6 Cfr. F.Reberschegg, outros, 1999, p. 2. 7 Ibidem. 8 Cfr.F.Reberschegg, outros, 1999, p. 3.

para o segundo, com o consequente aumento do bem estar das populações de

ambos os locais.

Percebe-se assim que frente ao sistema feudal, a cidade medieval surja

como centro de vida política e de organização social, baseada no trabalho livre, e

de uma economia caracterizada pelo comércio, actividade profissional de

intermediação lucrativa na circulação dos bens móveis entre produtores e

consumidores, que utiliza como instrumentos o dinheiro (medida de valor e meio

de pagamento) e o crédito9.

Foi a inadequação do velho direito a estas novas realidades que deu

origem ao direito comercial, nascido como especial para atender às exigências

que colocava este segmento da actividade económica. Com efeito, com o advento

da Idade Média o ius commune, por um lado, fragmentado em múltiplas

legislações particulares e, por outro, não dispondo da figura do Pretor órgão de

aplicação e interpretação do direito, deixou de ter a ductibilidade necessária para

dar resposta às novas necessidades surgidas no tráfico10.

O direito comercial surge historicamente como o direito de uma classe de

pessoas, os comerciantes, e, em parte, também dos artesãos, em consequência do

superamento da economia feudal e da criação nas cidades de fortes organizações

corporativas das várias profissões (mesteres). Foram os comerciantes que, para

suprir e corrigir as insuficiências do direito comum, que, pensado para a

protecção da propriedade, essencialmente imobiliária, carecia dos instrumentos e

normas adaptados para a tutela da circulação da riqueza em que se baseava a

actividade de intermediação das trocas, criaram uma nova disciplina dos

contratos e das obrigações adaptada às especificidades da matéria regulada

(celeridade nas transacções; segurança e firmeza nas transacções; mobilidade dos

créditos; rigor no cumprimento das obrigações; uniformidade das normas

aplicáveis a uma actividade que, como o comércio, tem uma vocação

internacionalística): um direito especial11.

9 Cfr. M.Olivencia Ruiz, ibidem. 10 Cfr. Ferrer Correia, “Lições de direito comercial”, reprint, Lex, 1994, p. 12; F. Ferrara Jr., outro, 2006, p. 4. 11 Cfr. F.Reberschegg, outros, 1999, ibidem.

O direito comercial surge como o direito da classe mercantil, nascido dos

seus costumes para regular de forma eficaz e prática a transferência das

mercadorias, ao mesmo tempo que assegurava aos mercadores válidas garantias

quer na sua condição de vendedores, quer de compradores. O passo seguinte

consistiu em sujeitar as controvérsias respeitantes aos mercadores a uma

jurisdição particular, a das corporações que não julgavam com base no direito

comum, mas sim com base nos seus estatutos, à luz da equidade12.

Direito civil e direito comercial tornaram-se assim sistemas jurídicos que

tinham não apenas um objecto diverso, mas que eram produzidos e aplicados

com instrumentos diversos, determinando o surgimento de dois direitos

autónomos: o civil, fruto da elaboração dos técnicos de direito (dotti), o outro, o

comercial, inspirado no sentido prático dos operadores económicos13.

Este panorama histórico muda na Idade Moderna com o aparecimento dos

Estados nacionais e de novas realidades económicas.

A afirmação da soberania das monarquias absolutas reforça o papel da lei

como fonte de direito em face do costume. O direito comercial perde

progressivamente o seu carácter consuetudinário e passa a ser recolhido em

diplomas legais sancionados pelo Rei. Assim, as Ordenações do comércio

terrestre (1673) e marítimo (1681) de Luis XIV de França, surgidas por iniciativa

de Colbert.

Por outro lado, o espírito de iniciativa do próprio Renascimento e os

Descobrimentos, a partir dos finais do séc. XV, provocam uma expansão da

actividade mercantil. O Estado avoca a regulamentação e controlo do comércio

(mercantilismo) e outros protagonistas, não profissionais (nobres, membros do

clero), passam a exercer actividades anteriormente reservadas aos comerciantes.

O direito comercial vai alargando progressivamente o seu âmbito a pessoas não

comerciantes e a actividades distintas do comércio, ainda que o critério

delimitador da matéria mercantil continue a ser principalmente subjectivo.

12 Cfr. Ferrer Correia, 1994, pp. 12, 13; F.Reberschegg, outros, 1999, ibidem. 13 Cfr. F.Reberschegg, outros, 1999, ibidem.

Na Idade Contemporânea, a queda da monarquia absoluta e os princípios

que inspiram a Revolução Francesa (1789) marcam uma nova etapa na evolução

do direito comercial.

Liberdade e igualdade são postulados opostos ao mercantilismo de estado

e à organização estadual da sociedade. A livre iniciativa e o livre acesso às

actividades económicas fazem desaparecer os grémios e corporações

profissionais (Lei Chapellier, 1791). A igualdade de todos os cidadãos perante a

lei opõe-se à existência de um direito especial de uma classe como ius

mercatorum, considerado como resíduo dos privilégios do Ancien Régime.

O triunfo dos princípios revolucionários, no entanto, não implica o

desaparecimento do direito comercial, mas tão-só a sua estruturação sobre novos

alicerces, que encontram a sua consagração nos códigos do séc. XIX.

A codificação napoleónica (Code Civil, 1803; Code de Commerce, 1807)

consagra em corpos legais separados o dualismo do direito patrimonial privado e

a configuração do direito comercial como direito especial em face do direito

comum, o direito civil. Para delimitar a matéria mercantil já não servia o critério

subjectivo do Antigo Regime; o Code de commerce de Napoleão substituiu-o por

um critério fundamentalmente objectivo, baseado no «acte de commerce»,

segundo o qual o direito comercial regula os actos qualificados como comerciais

pelo legislador, independentemente da qualidade do sujeito (comerciante ou não

comerciante) que os pratica e do seu carácter profissional ou esporádico

(concepção objectivista).

No modelo napoleónico inspiraram-se, mais ou menos intensamente, o

Código Comercial de 1833 (Código de Ferreira Borges) e o Código Comercial de

1888 (Código de Veiga Beirão), que é aliás um dos últimos códigos comerciais

europeus do séc. XIX a consagrar o sistema objectivo, pois o código comercial

alemão, o HGB (Handelsgesetzbuch) de 1897, regressou à concepção do direito

comercial como um direito profissional14.

14 Cfr. Ferrer Correia, 1994, p. 12; Orlando de Carvalho, Critério e estrutura do estabelecimento comercial, Coimbra, 1967, p. 32 ss, nota 26.

Em 1867, foi promulgado o Código Civil (Código de Seabra), que regulou

o direito patrimonial comum. A entrada em vigor do Código Civil de 1966, não

alterou a repartição da disciplina do direito patrimonial privado, continuando o

direito patrimonial comum a ser regulado no Código Civil.

Em Macau, dada a vigência destes dois Códigos, o comercial de 1888 e o

civil de 1966, até ao passado dia 1 de Novembro de 1999, e dada a entrada em

vigor dos novos Códigos Civil e Comercial, que em nada alteraram a situação

anterior neste aspecto, são plenamente cabidas as breves considerações acabadas

de desenvolver, pelo que o direito patrimonial privado em Macau, se encontra

regulado no Código Civil, direito patrimonial comum, e no Código Comercial,

direito patrimonial especial, o direito comercial.

2. Determinação do domínio de aplicação do direito comercial

O direito comercial é em face do direito civil um direito especial, pelo que

deveria ter um domínio perfeitamente delimitado. No entanto, essa delimitação

criada pelos usos nunca foi objecto de uma formulação clara e precisa e é até

muito duvidoso que o possa ser. Se se tomar como critério os sujeitos de direito,

aplicaremos o direito comercial apenas às pessoas que tenham a qualidade de

comerciante (concepção subjectivista). Se se adoptar como critério os actos

jurídicos, aplicaremos o direito comercial aos actos que sejam necessários ao

desenvolvimento da actividade mercantil (concepção objectivista).

À primeira vista parece tratar-se de concepções radicalmente opostas, mas

a verdade é que apenas seria assim se pudéssemos jogar com uma noção precisa

de comerciante quanto à primeira, e de acto de comércio quanto à segunda.

Acontece que a qualidade de comerciante está dependente da prática, em

determinados termos, de actos de comércio, e que determinados actos de

comércio dependem da qualidade de comerciante de pelo menos um dos sujeitos.

O que nos coloca perante um círculo vicioso. É necessário ir mais além.

A concepção subjectivista tem a seu favor a tradição. O direito comercial,

como direito especial do comércio, formou-se a partir dos usos e costumes e dos

regulamentos das corporações de mercadores. O direito comercial nasceu pois

como um direito profissional, como o direito de uma classe de profissionais, os

mercadores.

A despeito da supressão das corporações e da afirmação do princípio da

igualdade dos cidadãos perante a lei, o direito comercial não deixou de ser um

direito de profissões. As pessoas que se dedicam profissionalmente ao comércio

estão sujeitos a particulares obrigações, a um rigoroso processo de falência,

sujeitos a uma jurisdição especial, os tribunais consulares (hoje já assim não é

entre nós, em virtude da extinção dos tribunais comerciais, vide infra). A

determinação da sujeição a particulares regras legais é determinada pela

qualidade de comerciante. A maior parte dos actos praticados pelos comerciantes

são actos iguais aos praticados na vida civil, se, no entanto, eles são actos

comerciais, isso só pode ser porque o sujeito que os pratica é comerciante.

Para esta concepção, o critério de delimitação da matéria mercantil era

simples: a qualidade de comerciante do sujeito que intervinha no acto. Mas, é

claro, não seriam comerciais todos os actos praticados por um comerciante, v.g.,

o casamento, apenas aqueles que estivessem relacionados com a sua actividade

profissional. E aqui se nos depara uma nota de conformação objectiva da

concepção subjectivista. O direito comercial regula os actos dos comerciantes

praticados no exercício da sua profissão15.

Para a concepção objectivista, o direito comercial não regularia sujeitos,

mas actos, os actos de comércio. Esta concepção pressupõe uma determinação

segura e precisa dos actos de comércio. São comerciais, mas só esses são, os

actos como tal qualificados pelo legislador. Quanto a eles aplica-se sempre a

disciplina mercantil, seja ou não seja comerciante o sujeito que os pratica.

No entanto, a prática regular, sistemática, como modo de vida de actos de

comércio, determina a aquisição da qualidade de comerciante. Por outro lado,

existem actos qualificados como comerciais pelo legislador, que exigem a

qualidade de comerciante num dos sujeitos (momento subjectivo da concepção

objectivista).

15 Cfr. Ferrer Correia, 1994, p. 15.

Quer isto dizer, que ambas as concepções usam as categorias de

comerciante e de acto de comércio, o que verdadeiramente as distingue é a

prática de actos de comércio isolados, esporádicos: para a concepção

subjectivista, tais actos não são sujeitos à disciplina mercantil, para a segunda

que desconsidera como critério determinante a qualidade do sujeito, esses actos

serão regulados pelo direito comercial16.

A concepção objectivista pressupõe a delimitação exacta do domínio dos

actos mercantis, daí a elaboração de listas mais ou menos extensas de actos de

comércio nos códigos de comércio do século transacto (este sistema, dito da

enumeração explícita, foi alterado pelo Código de Comercio espanhol de 1885,

que introduziu o sistema da enumeração implícita, que o nosso Código

Comercial de 1888 seguiu no art.º 2.º). A verdade, no entanto, é que, dos vários

actos qualificados como comerciais, não se retira um critério de acto de comércio

que nos permita, perante qualquer acto, determinar se se trata ou não de um acto

de comércio.

Na generalidade dos sistemas jurídicos, quer de enumeração explícita

(v.g., Codice di Commercio italiano de 1882), quer de enumeração implícita

(v.g., Código de Comercio espanhol de 1885), não se tinha pretensões de esgotar

a indicação dos actos de comércio, pois entendia a doutrina e jurisprudência

desses países que não era à lei, mas sim à vida dos negócios que competia

determinar quais actos eram de comércio. A enumeração dos actos de comércio

naqueles códigos era temperada pelo entendimento de que essa enumeração era

necessariamente meramente exemplificativa (Itália) ou com a expressa admissão

da qualificação como comerciais dos actos de natureza análoga aos previstos no

Código (Espanha).

Vários critérios foram sendo oferecidos como susceptíveis de nos habilitar

com o «abre-te Sésamo» da matéria mercantil, todos insuficientes, porque

insusceptíveis de abarcarem a diversidade substancial de todos os actos

qualificados como comerciais pelo legislador.

16 Cfr. Ferrer Correia, 1994, p. 16.

O legislador de 1888 pretendeu resolver a incerteza excluindo a

possibilidade da qualificação por analogia dos actos de comércio e considerando,

por isso, taxativa a indicação dos actos de comércio no Código Comercial de

1888. Temperou os rigores desta concepção com a adopção dos actos de

comércio subjectivos (sobre isto vide infra).

A incapacidade da doutrina em apresentar um critério seguro na

determinação dos actos de comércio, levou a que se defendesse que já não havia

razão de ser para a existência de um ramo autónomo de direito comercial em face

do direito comum, o direito civil.

Na verdade, dizia-se, por um lado, não se consegue dizer o que é e porque

é comercial, não se consegue apresentar o critério, logo haverá sempre uma

franja mais ou menos vasta de actos cuja disciplina não se saberá qual seja; por

outro lado, os interesses que historicamente haviam explicado o aparecimento do

direito comercial, v.g., celeridade nas transacções, segurança, firmeza, fácil

circulação dos créditos, tutela da boa fé de terceiros, haviam-se alargado ao

âmbito do direito civil (comercialização do direito civil), além disso, muitas das

mais típicas instituições mercantis passaram a ser de utilização comum, v.g.,

contratos entre ausentes, letra de câmbio (comunização do direito comercial),

pelo que já não fazia mais sentido, a manutenção do corpo de regras criado

justamente para dar resposta a esses interesses não tutelados pelo direito comum.

O direito comercial tenderia assim a ser um produto histórico transitório17.

A busca inglória de um critério que permitisse identificar os actos de

comércio, se bem vemos, deveu-se a um erro de perspectiva na abordagem do

problema. Todos os critérios aventados, desde a interposição nas trocas, à busca

do lucro, etc., tinham como campo de trabalho o acto em si; quer dizer, as várias

operações em que se dividia a prática do comércio. Ora, o que determinava a

pertença e a previsão de certas operações como mercantis não era uma razão

interna ao acto, mas o facto da sua ligação com o comércio. Os vários actos

qualificados nas leis como comerciais eram forçosamente diversos, porque

17 Cfr. Orlando de Carvalho, 1967, pp. 127 ss.

visavam a satisfação de necessidades diversas e específicas, surgidas a demais

em diferentes momentos e conjunturas histórico-sócio-económicas.

Pretender-se encontrar um núcleo idêntico na substância de todos e cada

um deles tinha de ser, como foi, uma tarefa votada ao insucesso.

Os variadíssimos actos qualificados pelas leis como mercantis, não o

foram de uma vez, ex abrupto. O legislador não criou (rectius: não qualificou,

pois o legislador não cria actos de comércio, a prática mercantil é que os cria) os

actos de comércio de uma vez por todas, num certo e determinado momento

espácio-temporal.

A qualificação de certas operações como mercantis, foi sempre o resultado

de um processo histórico, mais ou menos longo. Consoante as concretas

circunstâncias da prática mercantil de uma dada comunidade, eram qualificados

como mercantis aqueles actos que revelavam essa prática tal qual existia ao

momento: hic et nunc. O acto de comércio, ou as operações comerciais, não são

um produto dado historicamente de uma vez por todas, mas antes o resultado da

evolução histórica da própria actividade mercantil.

Assim sendo, olhar-se à operação e por comparação (e não se esqueça que

a comparação é sempre, como nos ensina Orlando de Carvalho, uma actividade

dirigida à busca de semelhanças prováveis, com a consciência das diferenças

certas) com as demais qualificadas como mercantis pelo legislador, num dado

momento, tentar encontrar esse núcleo irredutível, que seria o critério da

comercialidade de um qualquer acto, é esquecer que a qualificação dos actos de

comércio não foi efectuada com base num molde que se aplicasse a cada

operação do tráfico e que permitisse a sua identificação, mas justamente o

contrário: foi em atenção ao comércio tal qual se manifesta em certo momento

espácio-temporal que se identificaram os respectivos actos pertinentes.

Não se diga que estas considerações não adiantam nada à resolução do

problema, pois, se ainda não dão o critério, dizem-nos pelo menos algo sobre o

modo como foram sendo qualificados como actos de comércio determinadas

operações. Donde resulta que a qualificação de certas operações como comerciais

não foi o resultado mais ou menos arbitrário da vontade do legislador, mas antes

o resultado da análise da actividade mercantil, ao longo dos tempos.

Com efeito, como é que aparecem os actos elencados como comerciais no

Code de Commerce? Através da transposição dos actos indicados na Ordonnance

de Colbert – preparada por Savary e daí ser também conhecida por Code

Savary - sobre comércio terrestre. E que critério presidiu à escolha desses actos

na Ordonnance, a observância da prática mercantil18.

Quer isto dizer que a qualificação dos actos de comércio foi sempre

retrospectiva, baseada na observação da actividade comercial tal como se

revelava em certo momento. Sendo a actividade comercial e as suas

manifestações histórico-concretas não estáticas, mas necessariamente dinâmicas

e diversas, pretender encontrar na análise dos vários actos de comércio um

critério único, era pretender que a actividade comercial era imutável e se

desenvolvia uniformemente ao longo dos tempos. Mas como isto não é verdade,

impossível se tornou um critério único de acto de comércio.

Olhar os actos é esquecer a dimensão actividade que o comércio é

essencialmente. Só por referência à actividade mercantil é possível identificarem-

se os actos que lhe pertencem. É o exercício da actividade mercantil, com as suas

especificidades, as suas incoerências, irracionalidades e eficácias, que nos

permite identificar um determinado acto como comercial e não qualquer critério

isolado. A actividade mercantil apresenta-se como o sopro insuflador de vida

(vida mercantil) a um certo acto, organização, instituição. Só se compreende a

natureza do acto pelo prisma da actividade mercantil; olhado o acto em si,

desligado dessa actividade é impossível alcançar qualquer ideia sobre a sua

relevância, seja ela mercantil ou não.

Por outro lado, a actividade mercantil é também ela algo em constante

mutação, num movimento contínuo de expansão e contracção; assim, começou

por ser uma actividade de intermediação nas trocas; depois, o comerciante no seu

frenesim subjugou o artesão, colocando-o na sua inteira dependência, com o que

18 Cfr. Jean Escarra, “Manuel de droit commercial”, Paris, 1952, p. 9; Orlando de Carvalho, 1967, passim e Apontamentos das aulas gravadas de Direito Comercial ao 4.º ano jurídico, 1993/94, p. 7.

passou a determinar não só o preço de venda, mas também o de compra; mais

tarde, passa a patrão do artesão e estabelece a concentração de trabalhadores e a

divisão de trabalho que lhe permitem uma maior produtividade e logo um maior

ganho. Quando se atinge esta fase o direito comercial passa a aplicar-se à

indústria. E compreende-se que assim seja: se o direito comercial foi criado para

dar resposta aos interesses dos mercadores é natural que estes o conheçam bem e

pretendam manter a sua aplicação aos demais domínios onde se faz sentir a

expansão da sua actividade.

A actividade mercantil é por natureza expansionista, a criação de ganhos

leva a um incessante reinvestimento e produção de maiores ganhos. Nesta

incessante expansão, a actividade comercial acaba por atrair, pela força

centrífuga que o seu continuum de movimento implica, as actividades que lhe

estão mais próximas: a indústria donde lhe advinham os produtos que mercadeja,

depois os serviços.

Esta natural tendência expansionista da actividade mercantil determina

inelutavelmente uma grande diversidade das operações em que se resolve,

necessariamente informadas por interesses muito diferentes, o que

inevitavelmente prejudica qualquer tentiva de criar um conceito de acto de

comércio.

Mas, de facto, o direito comercial visto como o direito de actos

representava uma visão dinamológica da vida mercantil, que é essencialmente

dinâmica, pois é uma actividade, a uma série de actos dispersos, incapaz, como

tal, de espelhar e de explicar essa mesma actividade19.

Os equívocos quanto à questão da autonomia do direito comercial: o

referido movimento de reacção à não autonomia do direito comercial, levou a

doutrina a regressar à concepção subjectivista do direito mercantil. Com efeito,

dizia-se, o direito comercial só cobra sentido para as necessidades do grande

tráfico, para as necessidades surgidas da prática em massa de actos de comércio

(Massenverkehr). A prática de um acto isolado de comércio não reclama

particulares medidas, não se consegue demonstrar que as regras do direito civil

19 Cfr. Orlando de Carvalho, 1967, passim; 1993/94, p. 10.

patrimonial não sejam adequadas a proverem para a situação20. E quem é que

pratica actos de comércio em massa? Aqueles que se dedicam ao comércio como

profissão: os comerciantes. «Logo o direito comercial, como direito regulador e

disciplinador da actividade no seio da qual se desenvolvem tais negócios, terá de ser, de algum

modo, o direito dos próprios comerciantes.»21.

A tese dos actos em massa (massenverkehr) teve o mérito de aproximar o

direito da realidade económica, realçando de novo a sua intrínseca dimensão

profissional. Contudo, nada resolveu quanto ao problema que suscitou a reacção.

Ainda que o direito comercial seja o direito dos actos de comércio em massa,

continuamos a precisar de saber quais são os actos de comércio. Isto porque, não

podendo o direito comercial ser o direito da prática em massa de quaisquer actos,

pois em massa podem ser praticados todos e quaisquer actos, sempre teremos que

estabelecer limites, os quais se reconduzem à natureza dos actos. Até lá não

podemos saber quem é que é comerciante, pois esta qualidade depende

justamente da prática daqueles. Pelo que entramos num círculo vicioso.

A defesa da autonomia do direito comercial com base no regresso a uma

concepção subjectivista teve consagração legal no código de comércio alemão, o

HGB de 189722. Mas as dificuldades apontadas são aí patentes. Com efeito, se

desaparece a noção de acto de comércio esporádico: os actos de comércio são os

actos praticados pelos comerciantes no exercício da sua actividade (§ 343.º, n.º 1)

e além deles qualquer dos actos em que se traduza uma das actividades indicadas

no § 1.º, n.º 2 (§ 343.º, n.º 2), para se saber quem é comerciante temos que

recorrer às actividades indicadas taxativamente no citado n.º 2 do § 1.º. O § 1.º,

n.º 1 diz que: «Comerciante para os efeitos deste código é quem exerce uma empresa

mercantil.

As empresas, que tenham por objecto uma das actividades indicadas a seguir, reputam-

se empresas comerciais (...)». Segue-se uma lista mais ou menos extensa, e taxativa,

de actividades, que, no fundo, se reconduzem aos actos e às empresas comerciais

dos códigos objectivos.

20 Cfr. Ferrer Correia, 1994, p. 25. 21 Cfr. Ferrer Correia, 1994, pp. 26, 27. 22 Cfr. Ferrer Correia, 1994, passim; Orlando de Carvalho, 1967, passim.

Para além daqueles que se dedicassem à exploração de uma empresa

mercantil, nos termos vistos, os Musskaufleute, o código alemão considera ainda

como comerciantes aqueles que explorem uma actividade mercantil ou fabril que,

embora não se enquadre no § 1.º, pela sua natureza e amplitude, exija

organização e escrituração mercantil [«(...) das nach Art und Umfang einem in

kaufmannischer Weise eingerichteten Geschaftsbetrieb erfordert (...)»] e se matriculem

como comerciantes (ao que aliás estão obrigados por força da última parte do §

2.º), os Sollkaufleute; considera também como comerciantes aqueles que

explorem uma Nebengewerbe (explorações acessórias, que se reconduzam a uma

das empresas do n.º 2 do § 1.º) duma exploração agrícola, que exija também, pela

sua natureza e amplitude, organização e escrituração mercantil, e o sujeito se

matricule (aqui voluntariamente) como comerciante: os Kannkaufleute;

finalmente , considera comerciante as sociedades que adoptem uma forma

comercial: os Formkaufleute23.

O que tudo nos demonstra que, se o sistema original do HGB era um

sistema subjectivo, no sentido de aplicável apenas a profissionais, não deixava de

ser em última instância objectivo (o exercício de uma empresa que se dedique a

uma das actividades indicadas no n.º 2 do § 1.º determina a qualidade de

comerciante, o que quer dizer que essa determinação é objectiva), e muito

complexo: uns são comerciantes pelo objecto das suas empresas; outros, tendo

em conta a natureza da actividade e respectiva amplitude, estão obrigados a

registar-se, o que faz deles comerciantes; outros, ainda exercendo actividades que

se enquadram no n.º 2 do § 1.º, mas porque acessórias de uma exploração

agrícola, só são comerciantes se quiserem; e outros são sempre porque adoptam

uma certa forma de organização, o que não deixa de ser o mais objectivo

possível.

Entretanto, o HGB foi objecto de uma reforma profunda em 1998

(Handelsrechtreformgesetz 1998), tendo a norma definidora da qualidade de

comerciante sido objecto de profunda reformulação, bem como o direito sobre a

firma liberalizado, sem que, no entanto, os dados do sistema se tenham

23 Cfr. Orlando de Carvalho, 1967, pp. 38 e 39, nota 26.

significativamente alterado: continua-se a falar em Istkaufmann (§ 1 HGB), o que

exerce uma actividade comercial que exige, por natureza e dimensão, uma

exploração comercial, Kannkaufmann (§2, 3 HGB), Fictivkaufmann (§ 5 HGB)

ou Kaufmann nach Eintragung, i. é por foca do registo, Formkaufmann (§ 6 II

HGB) e Scheinkaufmann (cfr. Tobias Lettl, Handelsrecht, Verlag C.H. Beck,

2007, pp. 7 ss).

Continuemos.

Da prática em massa de actos, das características necessidades do grande

tráfico, à concepção do direito comercial como direito da empresa, foi simples,

pois, se é verdade que a ideia de empresa ainda não estava claramente formulada

em Heck, não é menos verdade que já de algum modo a pressupunha24.

A prática por forma habitual, sistemática, em massa de actos de comércio

exige um mínimo de meios e de organização; por outras palavras, exige uma

qualquer estrutura, foi do que se deu conta Karl Wieland que, partindo de uma

cuidada observação da realidade económica disciplinada pelo direito comercial,

se apercebeu da presença sistemática de uma empresa, a qual definiu como a

«aplicação de capital e trabalho para a obtenção de um ganho incerto e ilimitado».

A comercialidade da empresa dependeria da sua exploração conforme a

um plano que permitisse a utilização do cálculo racional do resultado económico.

Por isso, para Wieland o direito comercial tendia a converter-se no ordenamento

profissional das empresas, ou seja o direito das empresas e do seu tráfico.

Esta concepção do direito comercial como direito das empresas teve

grande receptividade a partir dos anos vinte e obteve a sua consagração

legislativa no Codice Civile italiano de 1942, Livro V.

O direito comercial não pode, contudo, ser exclusivamente o direito da

empresa, porque se de um ponto de vista económico podemos definir a empresa

como uma organização de capital e trabalho, destinada à produção ou mediação

de bens ou serviços para o mercado, facilmente se compreende que nela estão

presentes dois factores essenciais: capital e trabalho. Se o direito comercial não

24 Cfr. Orlando de Carvalho, 1967, p. 136.

regula um dos factores essenciais da empresa, o factor trabalho, não pode

afirmar-se que o direito comercial é o direito da empresa25.

Para que esta concepção fosse correcta era necessário que todas as

disposições que regulam a empresa fossem comerciais. O que não é verdade, pois

o direito comercial não penetra na organização interna da empresa, cuja

disciplina compete necessariamente a normas de vários ramos do direito, v.g.,

direito fiscal, direito público da economia, de direito laboral, etc.26.

Ao direito comercial, como desde logo se deu conta Joaquim Garrigues27,

só pode competir a disciplina das instituições genuinamente mercantis (estatuto

jurídico do comerciante individual e social, património, patentes, sinais

distintivos e tutela da empresa, títulos de crédito e operações de bolsa) e a

disciplina dos contratos que ontologicamente pertencem à empresa, por forma

que se não podem conceber sem ela (seguros, contratos bancários, compra e

venda sobre documentos, agência, transporte, depósito em armazéns gerais,

contrato de hospedagem, etc.).

Por outro lado, conceber-se o direito comercial como direito das empresas

significaria deixar fora deste domínio matérias tradicionalmente incluídas nos

códigos de comércio, por terem a sua disciplina concebida em ordem à tutela dos

interesses do tráfico mercantil; seria o caso nomeadamente dos títulos de crédito,

maxime da letra de câmbio, da livrança e do cheque, das próprias sociedades,

forma por excelência de exercício colectivo da actividade mercantil.

Por isso, muito embora a empresa, ou estabelecimento comercial,

constitua o núcleo irredutível do direito comercial, não esgota o seu âmbito a ele

estando sujeitos, como ensina Orlando de Carvalho, também todos aqueles

institutos, instituições, mecanismos, operações que ainda que sejam de utilização

não exclusiva no âmbito da empresa, a respectiva disciplina jurídica seja

informada pela ideia de tutelar interesses mercantis.

O direito comercial tem a empresa como seu domínio de intervenção

preferencial, mas vale também para todos aqueles domínios onde se façam sentir 25 Cfr. Manuel Broseta Pont, “Manual de derecho mercantil”, Madrid, 1991, p. 59. 26 Cfr. Orlando de Carvalho, 1967, p. 96 ss, nota 52. 27 Tratado de derecho mercantil”, Madrid, 1987, p. 25.

as mesmas necessidades que explicaram o seu aparecimento. Fundamentalmente,

o direito comercial deve assegurar a tutela do crédito; a facilidade e rapidez na

celebração dos negócios; a fácil e rápida circulação dos créditos; a segurança e

firmeza das transacções28.

Deve assegurar a tutela do crédito por forma a facilitar a obtenção de

crédito por parte dos comerciantes, já que o crédito é elemento preponderante da

actividade comercial. Recorde-se que o comerciante é essencialmente um

intermediário, que vai obter fundos através da ulterior colocação dos produtos.

Esta necessidade, diríamos genética do comércio, encontra satisfação em

várias disposições da lei comercial: assim, ao contrário do que sucede no direito

civil (art.º 506.º do Ccivil), vigora no direito comercial a regra da solidariedade

passiva das obrigações mercantis (art.º 567.º); do mesmo modo, ao contrário do

que sucede no direito civil (art.º 634.º do Ccivil), o fiador de obrigação mercantil

é solidariamente responsável com o devedor, o que quer dizer que não goza do

benefício da excussão prévia (art.º 568.º); e existe um processo rigoroso de

falência para os comerciantes impossibilitados de cumprir as suas obrigações,

dirigido a melhor garantir aos credores a satisfação, possível, dos seus créditos,

colocando-os em pé de igualdade29.

Por outro lado, o comércio é uma actividade essencialmente dinâmica que

se desenrola a um ritmo veloz, já que as oportunidades de negócio são efémeras,

uma hesitação pode significar a perda de uma oportunidade excelente de negócio.

Assim, o direito mercantil vai dirigido a não só facilitar a celebração dos

negócios, mas também a permitir uma grande rapidez na celebração dos mesmos.

Por isso, o direito mercantil tende a ser um direito isento de formalismos.

Esta tendência é por vezes contrariada pelo legislador ao impor a

necessidade da observância de forma especial para a celebração de certos

negócios jurídico-mercantis, outras vezes esses formalismos são criados pelos

próprios interessados, são formalismos impostos convencionalmente.

28 Cfr. Ferrer Correia, 1994, p. 25. 29 Ibidem.

Na primeira situação, formalismos legais, a sua existência determina uma

desaceleração na velocidade de celebração dos negócios respectivos: é o que

sucede quer na constituição das sociedades comerciais, cujo acto constitutivo está

sujeito à observância de particulares requisitos e à celebração por documento

escrito, que pode ser meramente particular (art.º 179.), se outra forma mais

solene (v.g., escritura pública) não for imposta pela natureza dos bens com que os

sócios componham as suas entradas assim o determine (v.g., se um sócio realiza

a sua entrada com um imóvel), bem como a registo (art.º 187.º), quer na criação

dos títulos de crédito, maxime letra de câmbio (art.º 1134.º). Pretende o

legislador, no primeiro caso, reduzir ao mínimo as causa de invalidade do acto

constitutivo das sociedades, com as consequências negativas daí resultantes para

aqueles que com a sociedade entretanto contrataram, e, no segundo, evitar

dúvidas sobre o conteúdo das obrigações assumidas, por forma a tornar o mais

segura possível a posição do portador do título30.

Mas se os formalismos de produção legal emperram a dinâmica comercial,

já o mesmo não acontece com os formalismos de produção convencional que vão

dirigidos justamente a facilitar e acelerar o ritmo de celebração dos negócios.

Constitui exemplo paradigmático disto, o caso das cláusulas contratuais gerais,

reguladas pela Lei n.º 17/92/M, de 28 de Setembro, vulgo designadas31 por

contratos de adesão32. Trata-se de cláusulas pré-formuladas por uma entidade

para servirem de modelo uniforme de todas as contratações futuras, suas ou de

terceiros, evitando as perdas de tempo inerentes à negociação individualizada de

cada contrato. A sua utilização tem ainda a vantagem de normalmente ser muito

exaustiva, não deixando margem a grandes dúvidas, contendo assim a

litigiosidade.

O comércio é também uma actividade essencialmente creditícia, o que

significa que o comerciante não tem fundos imediatamente disponíveis para

cumprir as suas obrigações, necessita de proceder à operação de colocação do 30 Idem, p. 26. 31 Erradamente, na opinião de Sousa Ribeiro, “Cláusulas contratuais gerais e o paradigma do contrato”, 1990, pp. 134 ss. 32 Cfr. Pinto Monteiro, “Contratos de adesão: o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais instituído pelo D/L n.º 446/85, de 25 de Outubro”.

produto no mercado só depois estando em condições de proceder à satisfação das

suas obrigações. Por isso, compra a crédito. Mas quem vende também vende a

crédito, o que significa que, a despeito de ter escoado o produto, não tem

imediatamente disponíveis fundos para fazer face aos seus compromissos. O que

tem são créditos sobre os seus devedores, pelo que surgiu a necessidade de os

comerciantes poderem utilizar os créditos para satisfação das suas obrigações.

Para tal foi necessário criar mecanismos que facilitassem a circulação dos

créditos, mas, como a circulação dos créditos está dependente da segurança em

que se encontra o respectivo titular, foi necessário criar regras que o

assegurassem particularmente quanto à satisfação do crédito. Por isso,

incorporou-se o crédito num documento, cujo teor literal é absolutamente

determinante do direito nele mencionado. Esses documentos são os títulos de

crédito, maxime a letra de câmbio, a livrança e o cheque33.

Finalmente, é necessário assegurar-se que os negócios celebrados no

desenvolvimento da actividade mercantil fiquem estabilizados no mais curto

espaço de tempo. Com efeito, um negócio enquadrado numa actividade nunca é

um acto isolado, mas sim um elo duma cadeia, que será posta em causa se, por

qualquer razão, esse elo se vier a quebrar. Assim, a tendência no direito

comercial é a de sujeitar a impugnação dos negócios a prazos mais curtos do que

os correspondentes civis.

Estes interesses, tutela do crédito, rapidez das transacções, tutela da boa fé

de terceiros, segurança e firmeza dos negócios, também influenciam o direito

civil, só que, por enquanto, não em medida tão acentuada como no âmbito

mercantil, pelo que ainda se justifica a existência de um ramo de direito

especialmente vocacionado a dar resposta a esses interesses34.

Se olharmos a realidade económica que o direito comercial hoje em dia

regula verificamos que o seu conteúdo se estrutura à volta de três elementos

essenciais: o empresário, o estabelecimento comercial e a empresa, entendida

aqui como a sua actividade. 33 Cfr. Ferrer Correia, 1994, p. 26. 34 Cfr. Ferrer Correia, passim; Jorge Coutinho de Abreu, “Curso de direito comercial”, vol. I, 1998, pp. 22 ss.

O empresário mercantil é a pessoa física ou jurídica que em nome próprio

e por si ou por intermédio de outrem exerce, por forma organizada e profissional,

uma actividade económica dirigida à produção ou à troca de bens ou serviços

para o mercado. A especialidade deste sujeito advém-lhe do facto de realizar

como profissão, organizadamente, ou seja, por intermédio de uma empresa, uma

actividade económica.

O empresário mercantil caracteriza-se por lhe corresponder a iniciativa, o

controlo, e o risco da empresa, contrapartida da apropriação exclusiva dos

resultados. A iniciativa porque é ele que decide a criação da empresa, e assegura

a sua organização e direcção, ainda que por intermédio de terceiros. O risco da

empresa, não só porque é a ele que se imputam todas as relações estabelecidas

com terceiros na exploração da empresa, mas também porque só o empresário é

juridicamente responsável com todo o seu património pelas responsabilidades

surgidas do exercício da empresa35.

A empresa em sentido objectivo, ou estabelecimento mercantil, é o

segundo elemento da realidade económica que explica a especialidade e

fundamento do direito comercial. Por estabelecimento comercial entendemos a

organização concreta de factores produtivos destinada ao exercício de uma

actividade comercial, industrial ou de serviços. Com o que fica claro que a

empresa é um mecanismo de que se serve instrumentalmente o empresário para

realizar uma certa actividade económica 36 . «A empresa é a unidade económica

organizada mediante a qual o empresário actua no mercado»37.

A empresa no sentido da actividade económica realizada pelo empresário,

é o terceiro elemento que justifica a especialidade do direito comercial e que

delimita o seu conteúdo.

Esta actividade pode ser olhada quer de uma perspectiva económica, quer

de uma perspectiva jurídica. De um ponto de vista económico a actividade do

empresário traduz-se na actividade de produção ou troca de bens ou serviços para

35 Cfr. Broseta Pont, 1991, p. 81; Orlando de Carvalho, Empresa e lógica empresarial, separata do BFDC, Coimbra, 1997, pp. 10 e 11. 36 Cfr. Orlando de Carvalho, 1997, idem. 37 Cfr. Karsten Schmidt, “Derecho comercial”, tradução da 3.ª ed. alemã, ASTREA, 1997, p. 68.

o mercado. Do ponto de vista jurídico, a actividade do empresário é relevante

para o direito comercial, porque ao ser exercida profissionalmente atribui ao

sujeito um estatuto especial; porque para torná-la possível surgem princípios e

instituições especiais; e porque a exploração desta actividade traduz-se na

realização de um conjunto de actos e na celebração de negócios jurídicos com

quem entra em relações com o empresário comercial, por ocasião do exercício da

sua actividade económica38.

Para tornar possível a exploração da actividade económica em massa,

realizada por um empresário através de uma empresa, e para satisfazer

adequadamente as exigências que nascem daquela actividade surgem no direito

comercial as seguintes instituições: o regime dos auxiliares de comércio, os quais

são elementos que auxiliam e substituem o empresário no exercício da sua

actividade profissional; os sinais distintivos, especialmente firma, nome e

insígnia do estabelecimento e marcas, instituições mercantis que servem para

individualizar o sujeito como empresário comercial, a sua empresa e os produtos

ou serviços cuja produção e distribuição justifica a sua actividade externa; a

disciplina da concorrência, ancorada no princípio da liberdade de iniciativa

económica; os títulos de crédito, como a letra, o cheque, o conhecimento de

carga, o conhecimento de depósito em armazéns gerais, que não só tornam

possível a actividade de certos empresários comerciais, mas também pressupõem

a sua presença no exercício de uma empresa; a actividade económica externa do

empresário realizada através de uma empresa traduz-se fundamentalmente na

celebração de contratos com outros empresários ou com os consumidores de cujo

número e resultado depende o êxito ou insucesso da sua empresa39.

É à volta destes três aspectos da realidade mercantil que o direito

consagrado no Código Comercial se estrutura, podemos então dizer com Karsten

Schmidt40 que o direito comercial é o direito privado externo da empresa, ou,

acompanhando Orlando de Carvalho41, que o direito comercial é um «direito à

38 Cfr. Broseta Pont, 1991, p. 62. 39 Ibidem. 40 1997, p. 63. 41 1993/94, pp. 21 ss.

volta das empresas», ou «o direito da actividade externa da empresa: da empresa com os

seus utilizadores; da empresa com os outros empresários, com o chamado mundo da

concorrência; da empresa com o mundo do crédito, etc.»42.

É dentro desta última orientação que se enquadra o Código Comercial de

Macau: regula o estatuto dos empresários singulares e colectivos, os direitos e

negócios sobre as empresas e a tutela destas, os negócios necessária ou

prevalentemente ligados a empresas e outros instrumentos (v.g. títulos de crédito)

que nasceram para as empresas e foram sendo conformados de acordo com

interesses ligados a estas, sendo a sua regulamentação informada pela protecção

de necessidades ligadas à empresa, muito embora se possam entretanto ter

tornado de utilização geral43.

3. Direito comercial em face do direito civil.

O direito comercial, como vimos, é um ramo de direito privado; ou seja,

disciplina relações entre sujeitos paritários. Acontece é que regula apenas uma

parte das relações que se podem qualificar como jurídico-privadas: aquelas que

surgem no exercício de uma empresa.

As relações jurídico-privadas são, em princípio, reguladas pelo direito

privado geral, o direito civil. No entanto, desse universo, o legislador, pelas

razões que tivemos oportunidade de estudar, destacou um conjunto que submeteu

ao império de um conjunto de normas distintas das do direito civil: o direito

comercial.

Não fora o direito comercial e essas relações, nascidas do tráfico

mercantil, cairiam sob a alçada do direito civil, como direito privado geral, como

direito comum.

O direito comercial apresenta-se assim com a natureza de um direito

especial em face do direito civil.

42 idem, ibidem; no mesmo sentido, Coutinho de Abreu, 1998, pp. 18, 19. 43 Cfr. Orlando de Carvalho, 1993/94, passim.

Esta verificação tem interesse por força do princípio consagrado no art.º

10.º do Ccivil que proíbe a aplicação analógica das normas excepcionais, mas

permite a aplicação analógica das normas especiais. Por isso, é possível recorrer-

se à aplicação, por argumento de analogia, de normas de direito comercial, para

encontrar a disciplina de relações jurídico-civis44.

4. Interpretação e integração das normas de direito comercial.

4.1. Interpretação

O problema da interpretação das normas de direito comercial não coloca

quaisquer problemas dignos de realce, apenas há que chamar a atenção para o

facto de que os interesses jurídico-mercantis, cuja consideração é fundamental,

em sede de interpretação, são, dada a especificidade da matéria mercantil,

normalmente de mais difícil apreensão pela generalidade das pessoas, do que os

que subjazem às normas de direito civil45.

4.2. Integração

A integração, no âmbito do direito comercial, é regulada pelo art.º 4.º, que

consagra a tradicional subsidiariedade do direito comercial em face do direito

civil, ao remeter para o Código Civil, diploma fundamental deste ramo do direito.

Para o Código, o direito comercial é um ramo de direito especial em face do

direito comum que é o direito civil, a este havendo que recorrer para suprir as

lacunas da lei comercial. Este recurso ao Código Civil supõe uma verdadeira

lacuna; isto é, na tradicional formulação da doutrina alemã “ imperfeições ou

inacabamentos contrários ao plano da lei” 46 . Nem todas as omissões são

contrárias ao plano da lei, v.g., regime geral dos negócios jurídicos e dos 44 Cfr. Vasco Lobo Xavier, “Direito Comercial”, sumários das lições ao 3.º ano jurídico, Coimbra, 1977/78, pp. 10ss. 45 Ibidem. 46 Cfr. António Castanheira Neves, “Metodologia Jurídica”, Studia Iuridica, n.º 1, Coimbra, 1993, p. 216 (que, contudo, não aceita esta construção); Coutinho de Abreu, 1998, p. 29.

contratos47, isto é representam verdadeiras lacunas. O direito comercial é por

natureza um direito com carácter fragmentário48, não pretende regular todos os

aspectos das relações jurídico-mercantis mas apenas aqueles que mereçam um

tratamento especial, donde que, onde não prouver o direito comercial, aplicar-se-

á o direito civil, que se aplicará como direito privado geral49. Quer dizer: o direito

civil pode aplicar-se directamente às questões jurídico-mercantis por serem estas

as normas que directamente regulam o problema, v.g., em matéria de

caracterização básica dos tipos contratuais, de regime geral do negócio jurídico,

dos contratos em geral50.

Encontrando-nos perante uma verdadeira lacuna, então o procedimento a

observar é o indicado neste preceito, recorre-se aos casos análogos prevenidos no

Código Comercial e na sua falta às normas da lei civil que se não revelem

contrárias aos princípios de direito comercial.

47 Cfr. Coutinho de Abreu, ibidem. 48 Cfr. Lobo Xavier, 1977/78, p. 14; J. Coutinho de Abreu, ibidem. 49 Cfr. Ferrer Correia, 1994, p. 32; Lobo Xavier, ibidem. 50 Cfr. Lobo Xavier, 1977/78, pp. 14 e 15; Coutinho de Abreu, ibidem.