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IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

ASPECTOS CONSTITUCIONAIS DO PLANO COLLOR I E II

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Sumário

APRESENTAÇÃO 4

O DESBLOQUEIO DOS CRUZADOS 6

UM ESTADO SEM DIREITO 8

1 - A IMUNIDADE CONSTITUCIONAL DE TRIBUTOS HOSPEDA OS 15 IMPOSTOS DA LEI SUPREMA – O SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO É ENTIDADE IMUNE NOS TERMOS DO ARTIGO 150, INCISO VI, LETRA “C” DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 150 § 4º DA CARTA MÁXIMA – PARECER. 11

2 - LIMITES CONSTITUCIONAIS PARA DESPESAS COM PESSOAL DA ADMINISTRAÇÃO DIRETA E INDIRETA – RESPONSABILIDADE DAS AUTORIDADES QUE INFRINGIREM O PRINCÍPIO ESTATUÍDO NA LEI MAGNA – PARECER. 28

3 - AUTO DE INFRAÇÃO LAVRADO CONTRA ESPECÍFICA ORIENTAÇÃO FISCAL – INSUSTENTABILIDADE DO LANÇAMENTO – O PERFIL DO ICMS PARA AS EMPRESAS PRODUTORAS DE VÍDEO, DISCOS E CASSETES – PARECER. 49

4 - NÃO RENOVAÇÃO DE CONTRATO DE DISTRIBUIÇÃO DE BEBIDAS COM DISTRIBUIDORA QUE SERVIU À CONCEDENTE POR PERÍODO SUPERIOR A 10 ANOS SEM QUALQUER INDENIZAÇÃO – INEXISTÊNCIA DE JUSTA CAUSA – ENRIQUECIMENTO ILÍCITO CARACTERIZADO POR APROVEITAMENTO, SEM QUALQUER REMUNERAÇÃO DO TRABALHO ALHEIO – CONFORMAÇÃO DO ABUSO DE PODER ECONÔMICO – PARECER. 69

5 - É INCONSTITUCIONAL A ATUAÇÃO DO IBAMA AO CRIAR RESERVAS E PREFERÊNCIAS NAS COTAS DE IMPORTAÇÃO DA BORRACHA E INTERVIR NESTE MERCADO – É TAMBÉM INCONSTITUCIONAL A EXIGÊNCIA DA TORMB – PARECER. 82

6 - AS ESCOLAS PARTICULARES DEVEM SUBMETER-SE APENAS ÀS NORMAS GERAIS DA EDUCAÇÃO NACIONAL – NÃO ESTÃO SUJEITAS A QUALQUER CONTROLE DE PREÇOS PELOS SERVIÇOS PRESTADOS – INCONSTITUCIONALIDADE DA MEDIDA PROVISÓRIA 244/90 – PARECER. 99

7 - AS COMPANHIAS AÉREAS INTERNACIONAIS NÃO SEDIADAS NO BRASIL NÃO ESTÃO SUJEITAS À INCIDÊNCIA DO PIS E DO FINSOCIAL – INCONSTITUCIONALIDADE DE SUA IMPOSIÇÃO – A PREVALÊNCIA DOS PRINCÍPIOS DA RECIPROCIDADE E DA ISONOMIA NESTA MATÉRIA – PARECER. 115

8 - O CONGELAMENTO INTRODUZIDO PELAS MEDIDAS PROVISÓRIAS 294 E 295/91 E SUAS LEIS DE CONVERSÃO DE Nºs. 8.177 e 8.178/91 FEREM OS ARTIGOS 170, INCISOS II e IV, E 174 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL - A RESPONSABILIDADE POR RESSARCIMENTO DE DANOS É DA UNIÃO E PESSOAL DAS AUTORIDADES EM FACE DO ARTIGO 37, § 6º, DA LEI MAIOR - PARECER. 136

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APRESENTAÇÃO

A série de pareceres estava pronta para a edição, no momento em que o Presidente da República, por força do fracasso do Plano Collor I, lançou o que a imprensa denominou de Plano Collor II, com novo confisco, embora menor, de ativos financeiros, congelamento, tablitagem, no estilo do Plano Cruzado, aumento da carga tributária, por indexação de tributos — não de preços e salários — e redução ainda maior do tamanho da sociedade, em face do Estado paquidérmico, que continua inatingido pelo plano anterior e continuará inatingido pelo atual.

Tendo a Ministra da Economia conseguido, em 1990, a pior “performance” da história brasileira nessa pasta, ultrapassando o seu fracasso o de Ruy Barbosa, no século passado, e o de Dilson Funaro, neste século — visto que jamais o PIB brasileiro caiu tanto (em torno de 5%) e a inflação foi tão elevada (aproximadamente 1.760%), com notável desorganização da Economia e desestímulo ao investimento, por falta de respeito à Constituição, à propriedade e aos contratos —, à evidência, algo deveria ter sido feito, mas também, à evidência, não com a equipe que gerou tal estado de coisas.

De lembrar-se que o Presidente Sarney deixou de governar em dezembro de 1989, quando a economia ficou paralisada à espera de sinalização do novo presidente para suas diretrizes.

O aumento da inflação de 50% para 80% ocorrido de janeiro a março deveu-se, exclusivamente, à equipe econômica do governo, que já governava sem permitir que o Presidente Sarney governasse, de tal maneira que a inflação de quase 1.800% de 1990 é de exclusiva alçada daquela que passará para a história do Brasil como a pior titular da pasta econômica.

Os ajustes feitos pelo Congresso desfiguraram ainda mais o Plano e a premiação dos governadores falidos, que utilizaram o dinheiro público para propaganda pessoal, com a concessão de uma moratória a-ética e indignificante, tornaram o único aspecto positivo do Plano Collor II — que era exigir austeridade nos desperdícios inevitáveis da Federação brasileira — inexistente.

Com as empresas sem estoques, em face de sensível recessão, o desabastecimento, ágio e maquiagem dos produtos e serviços passaram a seguir os primeiros dias do Plano Collor II, ao lado de uma inequívoca descrença popular na implantação do projeto.

As violências jurídicas não foram menores que aquelas desferidas ao bom senso, entre as quais se inserem a outorga de uma delegação de competência legislativa à Ministra da Economia, nunca vista e notoriamente inconstitucional: a tablitagem de títulos, apesar de a inflação de fevereiro ficar em torno de 25%, em inquestionável confisco e a condenação, novamente, de empresários que são tidos por fascínoras apesar de serem os que, através de seus tributos, suportam a classe ociosa instalada nos governos. Enquanto isso, a senhora progenitora da Ministra da Economia aplaudia,

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calorosamente, um marginal bicheiro por financiar, com o dinheiro da contravenção penal, a escola de samba ganhadora do Carnaval carioca.

É, nesse cenário, que o Brasil adentra o ano de 1991, sendo cada vez mais um “Estado contra o Direito”, como observou Oscar Corrêa a propósito do título de um artigo meu, publicado recentemente (“Um Estado sem Direito”).

Apenas para constar desta coletânea, em que os temas jurídicos dos pareceres que escrevi continuam atuais, decidi reeditar dois artigos que publiquei na Folha de São Paulo e no Estado de São Paulo (reproduzidos a seguir), o primeiro, dois dias após o Plano Collor II, e o segundo, um mês depois, como mostra de meu desencanto — mas não desânimo — com o destino que os senhores feudais de Brasília vão ofertando ao Brasil, na esperança de que outras vozes se levantem para a luta pelo império da Lei, da Moral e da Justiça.

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Folha de São Paulo

O DESBLOQUEIO DOS CRUZADOS

Até o dia 13 de julho de 1990 foram impetrados inúmeros mandados de segurança, no país inteiro, por pessoas naturais e jurídicas, que tiveram seus cruzados bloqueados, pela inconstitucional medida provisória n° 168/90, chegando, segundo a informação dos jornais, a algumas dezenas de milhares.

A justiça federal de todos os Estados reconheceu a violência constitucional praticada pelo Presidente Collor e sua jovem e inexperiente equipe e, por motivos exclusivamente jurídicos, e não políticos, autorizou o levantamento daquele inútil bloqueio — e o Plano Collor II demonstra quão inútil foi o bloqueio — para todos os impetrantes, sendo variáveis os fundamentos legais das sentenças concessivas, tal o volume de dispositivos da lei suprema maculado pela referida medida provisória.

O eminente magistrado Vital Vasconcellos está inclusive, pela IOB, editando coletânea de decisões judiciais sobre a matéria, para mostrar que, como em Berlim do Rei Frederico, também há juízes no Brasil.

Colocou-se, todavia, interessante problema processual após aquela data, muitos magistrados entendendo que os 120 dias prescricionais que justificariam a impetração do remédio heróico teriam se esgotado em 13 de julho de 1990, não mais sendo possível a adoção do “writ” extremo.

Outros magistrados, entre os quais se encontra o próprio Juiz Vital Vasconcellos, entendem, no que parece a mais correta exegese, que os 120 dias correm a partir da caracterização do ato coator e não da promulgação da lei, de tal forma que sempre que alguma pessoa esteja interessada em desbloquear seus cruzados novos, manifeste ao Banco Central sua intenção de recuperá-los e receba resposta negativa da entidade ou mesmo tenha seu pedido ignorado, a partir daquela data passaria o prazo prescricional a correr.

A matéria vinha se arrastando pela Justiça Federal com defensores ora da tese do esgotamento do prazo para impetração em 13 de julho, ora de que o prazo corre a partir de atos negativos ou omissão de resposta às manifestações de poupadores interessados em reaver o seu dinheiro, inútil e inconstitucionalmente retido pelo governo federal, até a promulgação da M.P. 294/91.

Com a promulgação da M.P. 294/91 o governo federal renovou o ato coator para aqueles que defendem a tese de que o prazo deveria correr a partir da publicação da lei, visto que em seu artigo 6°, § 2°, dispôs o seguinte:

“§ 2°. Os saldos dos cruzados novos transferidos ao Banco Central do Brasil, na forma

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da Lei nº 8.024, de 12.4.90, serão remunerados, a partir de 1° de fevereiro de 1991 e até a data da conversão pela TRD, acrescida de juros de 6% ao ano, ou fração ‘pro-rata’.”

Ora, todos aqueles que tiveram suas poupanças e recursos bloqueados, em 15 de março de 1990, ou não estavam precisando se utilizar daquele dinheiro naquele momento, razão pela qual dispuseram-se a aguardar o prazo de 18 meses prometido pelo Governo da República, com a indexação oficial, ou impetraram mandado de segurança, objetivando liberar as referidas quantias no prazo de 120 dias.

Ocorre, todavia, que a M.P. 294/91 eliminou a correção monetária, ocasionando real prejuízo a todos os aplicadores, a ponto de a inflação prevista para fevereiro de 1991 ser de 25% e a remuneração dos cruzados bloqueados ficar em 7,5%.

Ora, à evidência, aqueles que não recorreram à Justiça até 13 de julho, por se sentirem confortados com a remuneração indexada, serão duramente lesados, lembrando que, só no mês de fevereiro, terão esta reduzida a quase 1/4 da inflação do mês.

Em face disso, poderão no prazo de 120 dias, a partir de 31 de janeiro de 1991, impetrar mandado de segurança para reaver seus cruzados novos e, na minha opinião, inclusive exigindo remuneração integral correspondente à inflação oficial de fevereiro, se os cruzados bloqueados forem de caderneta de poupança, que possuem seguro contra a inflação, em seu bojo.

O governo federal renovou, por lei, o ato coator, reabrindo o prazo para que todos os interessados no desbloqueio, por não se conformarem com as novas regras confiscatórias de seus ativos financeiros, ingressem na via judicial para proteção de seus direitos constitucionais.

E, em face da pacífica orientação judicial sobre a matéria no passado, sou otimista em relação ao resultado dessas novas medidas, a serem certamente impetradas pelos violentados cidadãos brasileiros quanto a seus ativos financeiros.

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O Estado de São Paulo

UM ESTADO SEM DIREITO

Se o Congresso Nacional aprovar, convertendo em leis, as medidas provisórias veiculadoras do Plano Zélia, seus deputados e senadores poderão, em seguida, retornar para casa, porque não terão mais nada a fazer, nos próximos quatro anos.

Ao ler as minutas das medidas provisórias publicadas pela imprensa, no sábado, fiquei estarrecido por nela constar a maior delegação de competência legislativa outorgada a um ministro de Estado, na história brasileira.

Nem durante a ditadura Vargas, nem durante o regime de 64, um ministro de Estado recebeu tantos “poderes legislativos” como aqueles que a titular da Economia acaba de receber pelas medidas provisórias que, de resto, ela e sua equipe econômica redigiram.

E que nos regimes de Vargas e de 64 os poderes estavam concentrados no chefe do Executivo e não em urna autoridade subordinada.

No Plano Zélia, estabelece-se o maior processo de intervenção da história da livre iniciativa, com a senhora ministra da Economia podendo alterar tabelas de imposto de renda, declarar quais os setores que deseja privilegiar, quais aqueles que pretende punir, quais aqueles que lhe desagradam, de que forma deverão as empresas agir, quais as leis que, através de “portarias”, produzirá e como alterará o plano, sempre que necessário, sem consultar o Congresso.

Em outras palavras, a ministra da Economia passa a ser a dona do Brasil, prescindindo, a partir da aprovação pelo Legislativo das medidas ora veiculadas, de sua participação futura.

Se as medidas provisórias forem convertidas em lei, todas as empresas privadas estarão definitivamente afastadas de uma livre economia de mercado. Sobreviverão, se se derem bem com a ministra. Serão perseguidas se tiverem a coragem de contestar a política econômica, posto que as torneiras oficiais apenas serão abertas — e todo poder econômico está concentrado no governo pela brutal transferência de recursos do setor privado, através de tributos e tarifas, para o setor público àquelas que, docilmente, se curvarem ao novo modelo econômico brasiliense.

Se as medidas provisórias forem aprovadas com o instrumental de poder repressivo que o Congresso já oferecera à senhora ministra, transformar-se-á ela também no novo Poder Judiciário, punindo, decidindo, julgando, interditando empresas, a título de preservar seu “plano de redenção nacional”.

Se as medidas provisórias forem convertidas em lei, o Brasil deixará de ser um Estado

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de direito, a Constituição terá sido definitivamente dilacerada e a senhora ministra da Economia ter-se-á investido das prerrogativas do Poder Executivo, do Poder Legislativo e do Poder Judiciário do Brasil.

Não pretendo neste artigo de desabafo de quem lutou durante 33 anos pela preservação do Estado de direito no País — tendo no passado, em pleno Ato Institucional nº 5, corrido risco pessoal, mais de uma vez, para não deixar de defender clientes injustamente acusados pelo poder — discutir inconstitucionalidades, que são inúmeras e manifestas no Plano Zélia. O congelamento fere os artigos 170, inciso IV (livre concorrência), e 174 (planejamento governamental meramente indicativo para o setor privado) da Constituição Federal. O aumento dos tributos indexados pela taxa referencial de juros e incidentes sobre produtos congelados constitui elevação real no próprio exercício, o que macula os artigos 150, inciso III, letra b (princípio da anterioridade), e 165 parágrafo 2º (princípio da anualidade), da lei suprema.

A delegação de competência legislativa que se auto-outorgou a ministra não é possível a não ser nos casos expressos permitidos pela Constituição, entre os quais não está nenhuma das hipóteses contidas nas medidas provisórias. O sigilo bancário só pode ser quebrado, em havendo processo fiscal administrativo, nos termos do artigo 197 do CTN (Código Tributário Nacional) e sem possibilidade de divulgação do nome das pessoas (art. 198), não sendo, pois, admissível a devassa pretendida.

Enfim, inúmeras são as inconstitucionalidades sobre as quais, no seu devido tempo, o Poder Judiciário, se solicitado, se manifestará, restabelecendo o primado da ordem legal, como restabeleceu, em relação aos novos cruzados bloqueados, considerando inconstitucional tal empréstimo compulsório em todos os Estados do País pelos independentes juízes federais. É que, como em Berlim, no tempo do Rei Frederico, também há juízes no Brasil.

O que pretendo é deixar claro que a nova intervenção econômica — reedição brutalmente autoritária do fracassado Plano Cruzado —, de que foi a ministra executora, retira da sociedade e de seus legítimos poderes toda a força, concentrando-a nas mãos de uma jovem e ambiciosa equipe, como prêmio pela fantástica crise nacional que ela própria gerou.

Com efeito, a crise nacional produzida pela senhora ministra e sua equipe pode ser resumida, graficamente, da seguinte forma:

1. economia mais desorganizada do que em março de 1990;

2. sociedade mais pobre do que em 1989 (queda do PIB);

3. carga tributária maior do que em 1989;

4. juros maiores do que em 1989, exteriorizando o preço do dinheiro e mais, pelo menos, cinco tributos embutidos (Finsocial, PIS, Imposto de Renda Federal, Imposto de Renda Estadual e IOF);

5. custo unitário de produtos e serviços maior, por redução do ritmo da

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produção em economia de mercado, do que em 1989;

6. salários menores do que em 1989;

7. inflação maior que aquela que levou à demissão do ministro Dilson Funaro (14%) e maior que a implantação do Plano Cruzado (16%);

8. falta de credibilidade crescente da equipe econômica, amplificado pela falta de canais adequados de comunicação com a imprensa, com os políticos, com o Judiciário, com o Congresso, com os trabalhadores e com os empresários;

9. preços públicos administrados pelo governo subindo acirna da inflação, e os privados, abaixo;

10. tratamento inconsistente da dívida externa, com declarações que terminam não correspondendo à realidade e criando ambiente geral de incertezas;

11. manutenção de Estado paquidérmico, sem qualquer privatização de empresas, em período em que a sociedade ficou menor;

12. desestímulo ao investimento pelas críticas constantes aos empresários, pela alta carga tributária e de juros, assim corno pela inflação de custos nascida por força da recessão. Tem -se a impressão de que, por mais que invistam, sempre haverão de os lucros serem transferidos, nas crises, para os governos, na busca de equilíbrio dos crônicos déficits públicos;

13. insegurança jurídica pela falta de confiabilidade nos dois institutos-chave de uma economia de mercado, que são: a “propriedade” e o “contrato”, já desrespeitados sucessivamente pelo Governo;

14. falta de perspectivas futuras;

15. receio de descontroles políticos, sociais e até institucionais.

À evidência, quem gerou o quadro acima não poderia tentar corrigi-lo, culpando a sociedade e dela tirando ainda mais liberdades e direitos.

Que os brasileiros tomem consciência de que a luta pelo Estado de Direito não é uma luta contra ninguém — nem mesmo contra a senhora ministra —, mas apenas uma luta a favor da sobrevivência da cidadania. Ou lutamos para que nossos direitos sejam respeitados junto ao Congresso Nacional e ao Poder Judiciário, ou devemos nos conformar em ser dóceis escravos da gleba dos senhores feudais instalados no Ministério da Economia.

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1 - A IMUNIDADE CONSTITUCIONAL DE TRIBUTOS HOSPEDA OS 15 IMPOSTOS DA LEI SUPREMA – O SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO É ENTIDADE IMUNE NOS TERMOS DO ARTIGO 150, INCISO VI, LETRA “C” DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 150 § 4º DA CARTA MÁXIMA – PARECER.

CONSULTA

CONSULTA-ME o Diretor do Departamento Regional do SESC, Dr. DANILO DE MIRANDA SANTOS, o seguinte:

“l. O SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO (SESC) é uma entidade de assistência social, sem fins lucrativos, criada pela Confederação Nacional do Comércio, com a finalidade de planejar e executar, direta ou indiretamente, medidas que contribuam para o bem estar social e a melhoria do padrão de vida dos comerciários e de suas famílias, e bem assim para o aperfeiçoamento moral e cívico da coletividade, nos termos do art. 1º do Decreto-Lei nº 9.853, de 13/09/46, tendo sido seu Regulamento aprovado pelo Decreto nº 61.836, de 05/12/67 (anexo 1).

2. O SERVIÇO NACIONAL DE APRENDIZAGEM COMERCIAL (SENAC) é uma entidade educacional, sem fins lucrativos, também criada pela Confederação Nacional do Comércio, com o objetivo de organizar e administrar escolas de aprendizagem comercial e cursos de especialização, na área do comércio, conforme determina o art. 1º do Decreto-Lei nº 8.621, de 10/01/46, com Regulamento aprovado pelo Decreto nº 61.843, de 05/12/67 (anexo 2).

3. Ambas as Entidades sempre tiveram, de forma ampla e irrestrita, reconhecida sua IMUNIDADE em relação aos impostos sobre seu patrimônio, rendas e serviços, outorgada e assegurada pela letra “c” do inciso III, do art. 19, da Constituição Federal de 1967, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 1/69, uma vez comprovada a observância dos requisitos estabelecidos no art. 14, incisos I, II e III, do Código Tributário Nacional.

4. Essa mesma IMUNIDADE foi confirmada e consagrada pelo art. 150, inciso VI, letra “c” da Constituição Federal de 1988.

5. Em face do disposto no § 4º, do mesmo art. 150, alguns órgãos fiscais, em âmbito federal e municipal, vêm dando entendimento diverso ao último dispositivo constitucional citado, pretendendo restringir, no âmbito de suas jurisdições, o

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reconhecimento dessa categoria constitucional no que diz respeito ao patrimônio e às rendas do SESC e do SENAC e, conseqüentemente, pretendendo impor e cobrar impostos que, entendem, as consulentes, indevidos.

6. Com efeito, na esfera municipal, têm o SESC e SENAC sido objeto de cobrança por parte de algumas Prefeituras, podendo-se citar entre elas a de São Paulo e a de Limeira, do Imposto Predial e Territorial Urbano - IPTU, sobre imóveis situados em tais Municípios.

7. Assim, indaga-se:

a) terrenos adquiridos pelo SESC e pelo SENAC, vagos ou alugados, para futura construção e funcionamento de suas Unidades Operativas, encontram-se ao abrigo do disposto no art. 150, VI, “c”, da Constituição Federal de 1988?

b) o mesmo preceito contempla imóvel adquirido pelas Entidades consulentes e que anteriormente sua aquisição estavam locadas a terceiros pelo antigo proprietário e cujo despejo está sendo, atualmente, processado pelo SESC ou SENAC perante o poder judiciário, para retomada?

c) deve essa norma constitucional ser estendida ao imóvel adquirido pelas Entidades e alugado ou cedido a título oneroso a terceiros, recebendo em contrapartida aluguel ou contra-prestação de serviço de vigilância, no período em que se ultimam as providências necessárias para a construção de sua Unidade Operativa?

d) se o SESC e/ou o SENAC decidirem, por razões administrativas, locar qualquer de seus imóveis para receberem renda destinada à cobertura dos custeios de suas finalidades, deixariam de ter reconhecida a sua imunidade tributária, relativamente ao IPTU?

8) O mesmo procedimento vem sendo adotado em relação ao Imposto sobre Transmissão de “Inter Vivos”, por ato oneroso, de Bens Imóveis, cuja instituição foi conferida aos Municípios, pela Constituição Federal de 1988.

9. Sob a alegação de que o imóvel não é utilizado nas finalidades essenciais da entidade, portanto, em desacordo com o art. 150, VI, “c” da Constituição Federal/88”, teve o SENAC indeferido o pedido de reconhecimento da imunidade em relação a esse imposto, apresentado perante a Prefeitura do Município de São Paulo, quando da aquisição de um terreno, sem construção, localizado nesta Capital.

10. Isto posto, indaga-se se a aquisição de terrenos vagos ou mesmo alugados, procedida pelo SESC e pelo SENAC, para futura construção e funcionamento de suas unidades Operativas, encontra-se amparada pela norma do art. 150, VI, “c” da C.F de 1988.

11. A Lei nº 8.033, de 21/04/90 (MP nº 160/90), instituiu a incidência, de caráter transitório, do imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro ou relativas a Títulos ou Valores Mobiliários -IOF- sobre ativos e aplicações financeiras existentes em 16/30/90, com alíquotas específicas para cada tipo de operação.

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E, com a edição da Medida Provisória nº 195/90, passou a ser definitiva a incidência do IOF sobre o valor das operações relativas a crédito e títulos e valores mobiliários, com alíquota máxima de 1,5%.

De notar-se que a matéria foi reeditada através da Medida Provisória nº 200, de 27/07/90.

12. O SESC e o SENAC, até a presente data, não estão sujeitos à tributação do IOF nas operações de câmbio e contratação de seguros, por força da imunidade tributária a eles conferida pela Constituição Federal e, aliás, reconhecida pelo Banco do Brasil, em documento específico (doc. 3).

13. Essas entidades, entretanto, sofreram a retenção de importâncias após a promulgação da legislação retro citada, a título de pagamento do IOF, sobre suas aplicações financeiras, com base no disposto no item 3.1 da Instrução Normativa nº 62, de 19/04/90 do Departamento da Receita Federal, da Secretaria da Fazenda Nacional, que determinou a incidência desse imposto sobre qualquer operação financeira, independente da qualidade do beneficiário ou da forma jurídica de sua constituição.

14. Diante do exposto, indaga-se:

a) a Lei nº 8.033 e as Medidas Provisórias nºs 195/90 e 200/90 podem sobrepor-se à norma do art. 150, VI, “c”, da Constituição Federal vigente?

b) o item 3.1 da citada Instrução Normativa nº 62/90 encontra embasamento nessa legislação ou em qualquer outro diploma legal?

15. Na mesma linha de entendimento adotada em relação ao IPTU, ITBI e IOF, acima exposta, poderiam os rendimentos advindos de locações ou de aplicações financeiras realizadas pelo SESC e pelo SENAC ficar sujeitos à tributação do Imposto de Renda, sob a alegação de se tratarem de rendas não vinculadas às suas finalidades?”

RESPOSTA

Antes de passar a responder as diversas questões formuladas pelas consulentes, mister se faz análise dos institutos desonerativos hospedados pelo sistema tributário brasileiro.

São, de rigor, seis aqueles que afastam a obrigação de pagar tributos, apenas alguns vedando o nascimento da obrigação tributária1.

1. Walter Barbosa Correa, relembra a lição de reconhecidos mestres para mostrar que em relação à isenção não há vedação ao nascimento da obrigação tributária: Assim é que, como fenômeno do não surgimento do crédito tributário, a isenção tem sido definida pelos autores nacionais de forma mais ou menos uniforme.O insigne e saudoso RUBENS GOMES DE SOUSA refere a favor fiscal concedido por lei, que consiste em dispensar o pagamento de um tributo devido.RUY BARBOSA NOGUEIRA, por seu turno, conceitua a isenção como “dispensa do pagamento do tributo devido, feita por disposição expressa da lei e por isso mesmo excepcional”. Pode-se, contudo,

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Pela importância ascendente são: a remissão, anistia, alíquota zero, não incidência, isenção e imunidade.

A remissão e a anistia afastam a necessidade de pagamento do crédito tributário, isto é, excluem o crédito tributário surgido pelo lançamento, mas não eliminam a própria obrigação tributária nascida. Na anistia, cancela-se o dever de pagar a penalidade pecuniária, que ingressou no universo administrativo, nos termos do artigo 113 do CTN. Na remissão, o cancelamento pode ser de toda a obrigação tributária, inclusive do tributo. São formas legais de dispensa de pagamento de obrigações tributárias, o que, também, ocorre com a isenção2. Na isenção, nasce a obrigação tributária, mas não o crédito tributário, este entendido como a penetração, na área própria da Administração, da obrigação, pelo lançamento. Por esta razão, o artigo 139 do CTN preceitua que o crédito tributário e a obrigação têm a mesma natureza jurídica, embora, o mais das vezes, seu surgimento ocorra após o da obrigação. Compreende-se, pois, a razão de ser do dualismo do lançamento, que declara a existência da obrigação tributária e constitui o crédito tributário para a Administração, sendo, simultaneamente, um ato declaratório e constitutivo, à luz do direito brasileiro3. Estão os artigos 113, 139 e 142 assim redigidos:

“Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória.

§ 1º. A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem

com fundamento no CTN, definir a isenção fiscal como fenômeno tributário que impede, por expressa disposição de lei, o surgimento do crédito tributário decorrente de obrigação que tenha por objeto o pagamento de tributo” (Comentários ao Código Tributário Nacional, vol.2, Bushatsky, 1976, p. 204/205).

2. Aliomar Baleeiro assim distingue as duas:“A anistia não se confunde com a remissão. Esta pode dispensar o tributo ao passo que a anistia fiscal é limitada à exclusão das infrações cometidas anteriormente à vigência da lei, que a decreta.Antes do CTN, vários diplomas concederam a chamada anistia fiscal, condicionando-a geralmente ao pagamento do tributo dentro de certo prazo.A anistia fiscal está sujeita à reserva da lei por expressa disposição do art. 97, VI do CTN. Essa lei é a do Poder tributante e não a do art. 57, VI, da C.F” (Direito Tributário Brasileiro, Forense, 1981, p. 600).

3. Escrevi: “Entendo que o lançamento é ato final de procedimento preparatório. É, pois, um ato e um procedimento, explicitando o artigo 142 as linhas mestras do que seja o ato e do que seja o procedimento que no ato se encerra.O discurso legislativo principia com a afirmação de que a constituição do crédito tributário faz-se pelo lançamento.O lançamento é, portanto, ato final que reconhece a existência da obrigação tributária e constitui o respectivo crédito, vale dizer, cria, no universo administrativo, o direito à exigência da obrigação nascida, no mais das vezes preteritamente.O artigo 139 oferta. a dimensão exata da realidade, posto que, identificando sua natureza jurídica, considera, todavia, o crédito decorrencial da obrigação.O reconhecimento da existência de obrigação, através da constituição do crédito, nos termos legislativos complementares, acontece após procedimento em que se verifica a ocorrência de seu fato gerador, determina-se a matéria tributável, calcula-se o montante do tributo, identifica-se o sujeito passivo e propõe-se a aplicação da penalidade cabível. Pelo direito posto, portanto, lendo-se o que escrito está, a autoridade administrativa, necessariamente singular, produz o lançamento, atividade exclusiva e indelegável, que é ato final de procedimento anterior, este podendo ser conduzido por grupos ou colegiados. Não é, pois, o lançamento que gera procedimento, mas este que se encerra no ato do lançamento, ato que prescinde, por força de lei, de participação extra-funcional” (Caderno de Pesquisas Tributárias nº 12, Ed. CEEU/Resenha Tributária., 1987, p. 32/35).

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por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente.

§ 2º. A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos.

§ 3º. A obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária;

Art. 139. O crédito tributário decorre da obrigação principal e tem a mesma natureza desta;

Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.

§ único. A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional”.

O próprio lançamento por homologação, que aparece como um ato posterior ao pagamento do tributo e que pode, inclusive, ocorrer, por ficção, nos termos do artigo 150, não desnatura a dupla realidade do direito brasileiro, que admite o surgimento da obrigação, sem nascimento do crédito tributário, se ocorrer, por exemplo, a decadência do direito de lançar4.

Nas três hipóteses mencionadas, portanto, a desoneração dá-se em relação ao dever de pagar uma obrigação existente, mas inexigível.

4. Gilberto de Ulhôa Canto ensina:“Nos casos referidos no artigo 150 do CTN, a atividade administrativa é posterior ao pagamento do tributo e poderá até inexistir, e isto pode ser entendido como o resultado de uma delegação que a lei faz, ao sujeito passivo, das atribuições que normalmente caberiam à autoridade administrativa, sob a reserva de que esta, dentro de certo prazo, poderá desaprovar a atuação do contribuinte e dele exigir mais do que ele considerou que devia, configurando-se como modalidade diferente daquela prevista no art. 142 e seu § único. É equívoco supor que o CTN fez, na matéria uma profissão de fé no sentido de que só pode haver lançamento mediante a prática de atos pela autoridade administrativa, e que em função disso é contraditório e inconciliável com aquele princípio admitir -como o fez no art. 150- uma forma diferente de apuração do montante do tributo e dou seu pagamento pelo próprio sujeito passivo, sem dependência de atuação prévia do Fisco.Portanto, minha resposta à pergunta 3ª) é a seguinte: o lançamento por homologação, tal como definido e regulado no art. 150 e seus §§ do CTN, é procedimento diferente do lançamento conceituado e disciplinado no art. 142 e seu § e, ao contrário do que neste último se dispõe, prescinde de atuação da autoridade administrativa antes do pagamento do tributo, podendo, entretanto, essa atuação, dentro do prazo legal, dar origem à recusa dos efeitos do pagamento realizado pelo sujeito passivo e ensejar novo processo de determinação, pela autoridade que não quis homologar os atos praticados” (Caderno de Pesquisas Tributárias nº 12, ob. cit. p. 19/20).

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Apenas no concernente à isenção, há de se considerar que a Constituição, ao dispor sobre o ICMS, impediu o crédito correspondente à operação isenta (art. 150 II). Com isso, alguns intérpretes, admitiram que tal figura não representaria a dispensa legal do pagamento do imposto, mas a própria vedação ao nascimento da obrigação tributária, com o que teria gerado, o constituinte, de rigor, uma hipótese atípica da figura conformada pelo artigo 175 do CTN, assim redigido:

“Art. 175. Excluem o crédito tributário:

I. a isenção.;

II. a anistia.

§ único. A exclusão do crédito tributário não dispensa o cumprimento das obrigações acessórias dependentes da obrigação principal cujo crédito seja excluído, ou dela conseqüentes”5.

Outros autores, todavia, entendem que a não geração de crédito apenas implicaria eliminação de um dos efeitos da obrigação, mas não da própria obrigação, que, necessariamente, surge nas isenções6.

O certo, todavia, é que a isenção, a anistia e a remissão São formas desonerativas vinculadas à exclusão do crédito tributário e não ao nascimento da obrigação

5. Escrevi sobre o artigo 155 § 2º, II, “a” que:“É do conhecimento geral que há três formas clássicas de incidência. A multifásica, a monofásica e a não-cumulativa. São técnicas de arrendamento e, por esta razão, não compõem o fato gerador das obrigações tributárias.Excluir as isenções do princípio da não-cumulatividade é, portanto, tornar para esta hipótese o ICMS um imposto cumulativo, salvo disposição em contrário de legislação ordinária. Há a considerar ainda que o retrocesso no tratamento da matéria não ocorreu com a nova Constituição, mas vem da Emenda Constitucional nº 23/83, quando se cuidou, pela primeira vez, de retorno à cumulatividade.Observe-se que a declaração de que a não-incidência não gera direito a crédito é demonstração de profundo desconhecimento do constituinte da lógica jurídica, visto que o que não existe -e a não-incidência é uma hipótese de não-existência de fato gerador- não pode gerar qualquer direito a crédito ou compensação. E nem se diga que o constituinte pretendeu criar uma “ficção legal” para vedar, por inteiro, subsídios ou créditos artificiais a favor do contribuinte, posto que, ao admitir exceções à legislação ordinária, evidentemente admitiu que o legislador ordinário criasse as ficções que. não se permitiu.Um outro aspecto a destacar é o que diz respeito à expressão “crédito para compensação”. O crédito a que se refere o constituinte não é o crédito tributário do art. 139 do Código Tributário Nacional, mas o crédito escritural do imposto. Ta1 crédito escritural é que se compensa do imposto incidente nas operações da circulação e saída de mercadorias ou nas hipóteses de prestação de serviços.Por fim, resta a observação do que o direito europeu considera a isenção não geradora de crédito como provocando um efeito de recuperação ao princípio do valor agregado” (Comentários à Constituição do Brasil, 6º volume, tomo I, Saraiva, 1990, p. 406/407).

6. Yoshiaki Ichihara acentua: “Colocou-se uma regra para afastar a questão do direito de crédito de operações isentas ou no caso de não incidência, ressaltando-se que sobre esta questão houve muita discussão e controvérsia, sob alegação de que a não permissão do crédito da operação isenta, anula a isenção anterior ou quebra o princípio da não cumulatividade. Sobre esta questão diz o artigo 155, § 2º, item II “a” e “b” que, salvo legislação determinando em contrário, no caso de isenção ou não incidência da operação anterior, não poderá ser creditado o ICMS, como se devido fosse e para compensar com o montante devido nas operações ou prestações seguintes. No caso de operação isenta ou não incidência, se houve crédito do ICMS destacado e devido na operação anterior, deverá ser estornado” (Direito Tributário na Nova Constituição, ed. Atlas, 1989, p. 141/142).

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tributária.

A alíquota zero, distintamente, conforma-se com o nascimento tanto da obrigação tributária, quanto do crédito tributário, reduzidos ambos à sua expressão nenhuma. O zero é um número e a alíquota zero é aquela que se aplica a uma determinada operação, situação ou rendimento, com o aparecimento da obrigação e do crédito tributário, cujo valor, todavia, é nenhum. Surte, pois, os mesmos efeitos da não exigência peculiar à isenção, anistia, remissão, mas com conformação jurídica absolutamente distinta.

A alíquota zero, portanto, é uma alíquota incidente sem expressão qualquer7.

Nas quatro formas mencionadas, o elemento comum está na presença da obrigação tributária, sem efeito prático para a Administração Pública, em face do não dever de pagar, pelo contribuinte.

As duas formas de desoneração impositiva são, a saber: a não incidência e a imunidade. Nas duas não nascem nem o crédito tributário, nem a obrigação tributária. Na não incidência, por omissão do poder de tributar e na imunidade, por absoluta vedação constitucional a seu exercício.

Por esse motivo causou espécie o texto constitucional que declara não poder, a não incidência, gerar crédito, visto que o que “não incide” “não existe” e o que “não existe”, à evidência, não pode gerar qualquer efeito8.

7. Seguem transcrita algumas ementas dos acórdãos do STF:“RE 83.693EMENTA - ICM - Importação de bens aos quais o CPA fixou tarifa “zero” para efeitos do respectivo tributo.Não equivale à mercadoria isenta ou “livre”, segundo jurisprudência assente do STF. Recurso Extraordinário não conhecido” (Resenha Tributária ICM nº 12/77 - 4.2 pg. 238);“RE 77.952EMENTA - Imposto de Importação. O fato de a mercadoria poder ser importada livre de direitos não a torna sujeita ao regime próprio daquela que goza de isenção, não estando, por isso, dispensada do pagamento do IPI” (Resenha Tributária IPI nº10/78, 2.2, pg. 171);“RE 81.161EMENTA - ICM - A alíquota zero não configura isenção que só pode decorrer de lei, ao passo que a mencionada alíquota resulta de ato do Conselho de Política Aduaneira. Inaplicabilidade do art. 1º, § 4º, IV do D.L. 406/68. Recurso conhecido e provido” (Resenha Tributária ICM nº 9/77, 4.2, p. 172).

8. Ao cuidar do diferimento da incidência, que é caso de não incidência, o Ministro Oscar Corrêa, em decisão unânime do STF, declarou: “A prevalecer a tese contrária seria isenção, e não é, como se salientou (p.257): “Mas não é o que acontece com respeito ao simples diferimento, onde a obrigação tributária surge logo, ao realizar-se a operação de circulação de mercadoria, não isenta nem (muito menos) imune. O que não se perfaz de imediato é a sua exigibilidade, postergada para o futuro, fato que implica a substituição do sujeito passivo.Não pode, assim, o diferimento originar o pretenso direito ao crédito do ICM, porque isso equivaleria a identificá-lo como isenção, que não é.Em suma, pela própria natureza do instituto em análise, o fornecedor da matéria-prima não recolhe o ICM, à saída desta; o adquirente, que pelo mesmo se faz responsável, também não o recolhe à entrada da mercadoria; somente o fará à saída do produto final: não me parece que se lhe deva reconhecer a possibilidade de um crédito por quantia que o Estado não recebeu.Nessa conclusão, inexiste ofensa ao princípio da não-cumulatividade, pois, não havendo recolhimento anterior não há acúmulo”.Não há, contudo, renovar esse debate, reiteradamente travado na Corte, hoje pacificado, na orientação indiscrepante que se firmou. E isto convém às relações jurídicas, que requerem estabilidade.

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Colocadas essas premissas, mister se faz a análise da técnica de interpretação dos textos desonerativos.

A jurisprudência já definiu que a desoneração impositiva é sempre interpretada restritivamente, nos termos do artigo 111 do CTN, assim redigido:

“Art. 111. Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre:

I. suspensão ou exclusão do crédito tributário;

II. outorga de isenção;

III. dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias”9.

A imunidade, todavia, comporta, necessariamente, uma interpretação extensiva. Sendo as diversas formas desonerativas, de rigor, favores fiscais de quem, tendo o poder de tributar, deixa de fazê-lo, expressa ou tacitamente, compreende-se que não se possa dar a tais formas extensão maior do que aquela colocada na própria lei, risco de se subverter a razão da desoneração. No que concerne à imunidade, a motivação é diversa. A interpretação restritiva é que subverte a razão de ser da imunidade, posto que a desoneração não decorre da vontade do poder tributante, mas daquela do constituinte, que objetiva preservar determinadas pessoas, situações ou operações das garras do Erário. Admitir uma interpretação restritiva seria colocar em risco a intenção do constituinte, razão pela qual houve por bem o S.T.F., repetidas vezes, declarar que a imunidade é interpretada de forma extensiva. Assim ocorreu nos julgamentos que entenderam imunes de ISS a publicidade dos jornais, apesar de a Constituição dizer que imunes eram apenas os livros, periódicos, jornais e seu papel, não se referindo expressamente a publicidade10. Sustentei, por outro lado, à luz da interpretação

É verdade que alguns Tribunais persistem, em alguns julgados, na linha diversa, tanto mais quanto a própria doutrina ainda se não acomodou. Mas, vozes já se têm levantado na diretriz adotada pela Corte. É exemplo disso, recente parecer do Prof. Ives Gandra da Silva Martins, que acolhendo como “correta, jurídica e constitucional” a interpretação desta Corte, analisa-lhe os pressupostos, rebatendo as objeções que contra ela se têm posto, em artigos e pareceres, para colocar nos devidos termos o alcance do princípio da não-cumulatividade estabelecido na Constituição” (RE 98.568-9/SP, D.O. 7/10/83, Ementário 1.311-4).

9. Edda Gonçalves Maffei escreve: “Na realidade, a interpretação gramatical necessita da lógica para inferir das palavras o valor da norma jurídica. Observa Alípio Silveira que o legislador brasileiro “daria cópia de atraso injustificável, se obrigasse o aplicador, mesmo em certos casos, a limitar-se à interpretação literal, uma vez que a interpretação das leis á um processo mental único, uma síntese dos vários elementos -gramatical ou literal, lógico sistemático, teleológico etc”.Em raciocínio que endosso faz concluir que, pretendendo preconizar a interpretação estrita em contraposição à analogia o art. 111 o fez de maneira inadequada.A isenção da mesma forma que a obrigação tributária é ex lege aquela não há que ser entendida além das hipóteses figuradas no texto legal. Na verdade a interpretação estrita proposta para as normas tributárias excepcionais, como as de isenção, visam garantir mais uma vez o princípio da legalidade tributária, sem vedar ao intérprete a pesquisa à luz da ratio juris” (Curso de Direito Tributário, Saraiva, 1982, p. 86)

10. O Ministro Thompson Flores, ao aderir também à interpretação extensiva da imunidade sobre jornais, livros e periódicos, justifica a inclusão de serviços não discriminados expressamente na Magna Carta, dizendo: “Embora arrimado em bons fundamentos, peço venia ao eminente Relator para acompanhar o voto do eminente Ministro Cunha Peixoto.Como S.Exa. considero que a Constituição, em seu artigo 19, III, “d”, instituiu ampla imunidade tributária

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extensiva perante o pleno do S.T.F., que as listas telefônicas tinham o formato de livros e eram periódicos, sobre fornecerem informações de utilidade, como as tábuas de logaritmos ou os boletins meteorológicos, tendo a suprema Corte acatado a tese defendida, considerando-as imunes11.

A inteligência da Máxima Corte alicerça-se na concepção de que, com os crônicos “deficits” públicos das entidades federativas, permitir a interpretação restritiva para as imunidades seria reduzir o campo de abrangência da norma protetora da lei maior, que considera de relevância a desoneração de determinadas situações, operações ou pessoas, para barrar o “apetite”, nem sempre jurídico, do poder público em criar exações12.

Sendo, pois, a imunidade uma vedação absoluta ao poder de tributar, a inteligência nas hipóteses constitucionais há de se fazer sempre de forma extensiva, alargada, distendendo o leque protetor e não o contraindo13.

Colocadas tais premissas já examino, perfunctoriamente, o § 4º do artigo 150 da Constituição Federal, assim redigido:

em prol dos jornais e periódicos, assim propugnando por sua mais ampla circulação e por óbvias razões.Tal desiderato, por certo, só seria alcançado reduzindo o preço de aquisição, e para isso também tornou imune o papel destinado à impressão.O anúncio constitui base segura para a redução dos custos, o que importa na mitigação dos preços. Tributá-los não poderia estar na cogitação do princípio.Com isso certamente não se está aliviando as empresas de publicidade, as quais estarão sujeitas à tributação normal.É a conclusão que extraio do sistema adotado pela Magna Carta” (R.T.J. 87, vol.II, p.612).

11. “RE 101.441-5-RS - Recorrente: Guias Telefônicos do Brasil Ltda. - Recorrida: Prefeitura Municipal de Porto Alegre.EMENTA: Imunidade tributária (art. 19, III, “d”, da Constituição Federal). ISS – Listas Telefônicas.A edição de listas telefônicas (catálogos ou guias) é imune ao ISS, (art. 19, III, “d”, da C.F.), mesmo que nelas haja publicidade paga.Se a norma constitucional visou facilitar a confecção, edição e distribuição do livro, do jornal e dos periódicos, imunizando-os ao tributo, assim como o próprio papel destinado à sua impressão, é de se entender que não estão excluídos da imunidade os periódicos que cuidam apenas e tão-somente de informações genéricas ou específicas, sem caráter noticioso, discursivo, literário, poético ou filosófico, mas de inegável utilidade pública, como é o caso das listas telefônicas.Recurso extraordinário conhecido, por unanimidade de votos, pela letra “d” do permissivo constitucional, e provido, por maioria, para deferimento do mandado de segurança.ACÓRDÃO: Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros do STF, em sessão plenária, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em conhecer do recurso, e, por maioria de votos, dar-lhe provimento.Brasília, 4/11/87”.

12. Na linha da interpretação ampla das imunidades, leia-se a ementa do REO nº 80.603-SP, DJU de 24/05/79, p. 4090: papel de imprensa - ato inexistente - interpretação literal.Não são as dimensões (variáveis segundo o método industrial adotado) que caracterizam o papel para impressão. Ao contrário da isenção tributária, cujas regras se interpretam literalmente, a imunidade tributária admite ampla inteligência” (grifos meus).

13. Bernardo Ribeiro de Moraes, ao combater a interpretação restritiva das imunidades, afirma: “As normas imunitárias devem ser interpretadas através de exegese ampliativa. Não podem ser restritivamente interpretadas, uma vez que o legislador menor ou o intérprete não podem restringir o alcance da Lei Maior” (Sistema Tributário da Constituição de 1969, Revista dos Tribunais, p. 407).

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“§ 4º. As vedações expressas no inciso VI, alíneas b e c, compreendem somente o patrimônio, a renda e os serviços relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas”.

Às operações mencionadas na consulta não se aplica o dispositivo, visto que todo seu patrimônio, sua renda e seus serviços estão diretamente relacionados com as finalidades essenciais da consulente, sobre não haver qualquer espécie de concorrência desleal.

De notar-se que o discurso mencionado é positivo, isto é, não nega imunidade, antes assegura, em seus mais essenciais aspectos, a manutenção de objetivos considerados de especial relevância.

Outro dispositivo a ser examinado, antes de apresentar a resposta às diversas questões, é aquele que diz respeito à imunidade em si.

Determina o artigo 150 inciso VI letra “c” que a imunidade das entidades lá mencionadas ocorre em relação aos impostos sobre patrimônio, renda e serviços.

Na linha da interpretação restritiva repudiada pela Suprema Corte, os Poderes Tributantes têm entendido que o vocábulo “serviços” não incorporaria outras operações, como de circulação de mercadorias ou financeiras.

Tal interpretação, sobre esbarrar na sólida jurisprudência do S.T.F., está em absoluta dissonância com o próprio texto, quando este cuida da imunidade recíproca, posto que a União não sujeita Estados e Municípios a eventual imposição do IPI, nem os Estados sujeitam a União e os Municípios ao ICMS, se gerando operações referentes à circulação de mercadorias14.

De rigor, pela interpretação extensiva, a expressão “serviços” hospeda aquela maior de circulação, visto que na produção de mercadorias sempre há parcela de serviços, como, em qualquer serviço prestado, há, direta ou indiretamente, a inclusão de mercadorias. Uma montadora de veículos fornece mercadorias, mas, preponderante, atua prestando serviços de montagem. Um parecerista fornece serviços, mas a veiculação de um parecer se dá em folhas de papel datilografado, que é mercadoria ou bem final de consumo15.

14. Edgard Neves da Silva: “Por conseguinte, deve ser levado em conta, ao se buscar o conteúdo e o alcance das regras de imunidade, não só o sistema constitucional como um todo, mas, especialmente, sua teleologia, não procurando restringi-la, mesmo porque ela é ampla e indivisível, não admitindo restrições ou meios termos. Na letra de Fábio Leopoldo de Oliveira (Curso expositivo de direito tributário, 1ª ed., São Paulo, Resenha Tributária), “ninguém pode ser imune em parte, ou até certo ponto. O instituto não comporta fracionamentos”.As disposições imunizantes são auto-aplicáveis; mas, por determinação constitucional, podem depender de requisitos constantes de lei inferior. Porém é fundamental afirmar-se que a imunidade se constitui pela própria norma maior, sendo a manifestação com fundamento na lei menor apenas ato declaratório e não constitutivo, que declara o preenchimento ou não dos requisitos exigidos, ato esse vinculado e não discricionário” (Curso de Direito Tributário, ob.cit., p. 176).

15. Escrevi: “O constituinte de 1965, explicitamente, e o de 1969, implicitamente, mas com explicitação constante do CTN, perceberam que o elemento de maior relevância, no concernente àqueles cinco impostos mencionados, é a produção e circulação de bens materiais ou imateriais. Se não colocaram

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Por isto, os doutrinadores sempre consideraram que os impostos podem possuir um de três fatos geradores. Podem incidir sobre o patrimônio, sobre a renda e sobre a circulação de bens e serviços.

Ora, foi exatamente as três formas de incidência tributária que houve por bem o constituinte tornar imunes, o que a interpretação extensiva da Constituição termina por consagrar.

Não é, por outra razão, que todas as prefeituras têm obtido liminares contra a União para não pagar o IOF pretendido, visto que a imunidade recíproca, extensivamente interpretada, não permite que haja incidência sobre operações de circulação de valores, que conformaram a expressão “serviços” na percepção abrangente do fenômeno circulatório16.

Por fim, há de se considerar que as consulentes são entidades imunes por preencher os requisitos do artigo 14 do CTN, assim redigido:

“O disposto na alínea “c” do inciso IV do art. 9º é subordinado à observância dos

os impostos também de produção e circulação concernentes ao comércio exterior na categoria, foi pela sua função reguladora das relações econômicas internacionais, em sua tríplice concepção .(teorias competitivistas, protecionistas e da vantagem comparativa), prevalecendo tal dimensão sobre aquela de mera produtora de receita tributária. Por outro lado, os impostos de produção e circulação denominados especiais, pela sua dinâmica densamente diversa e também reguladora, sobre representarem tributo incidente sobre riquezas essenciais do país e para o país, foram excluídos da classificação original.Assim sendo, na quádrupla divisão, manteve os chamados impostos ordinários de produção e circulação na categoria do mesmo nome e os impostos reguladores de produção e circulação em duas outras categorias (comércio exterior e especiais). De qualquer forma, tais impostos são, fundamentalmente, impostos de produção e circulação.Os impostos referidos pressupõem a existência de produção de bens (materiais e imateriais), assim como sua circulação. Tal realidade fenomênica, por outro lado, implica serviços para sua produção e circulação, que poderá ser meramente física ou da própria titularidade.Não houve por bem o constituinte de 1965 criar categoria de prestação de serviços distinta de produção de bens pelo simples fato de que não há produção de bens que não esteja suportada em prestação de serviços, nem há prestação de serviços que não implique produção de bem qua1quer produto industrial, por mais sofisticado, necessariamente se alicerça em prestação de serviços. A indústria automobilística, por exemplo, é simples montadora de bens produzidos por centenas de outras indústrias, sendo as grandes fábricas denominadas de “montadoras de veículos”. Nelas prevalece muito mais a prestação de serviços de montagem que a produção de bens, quase todos adquiridos de variadas empresas fabricantes de auto-peças. Nem por isto os serviços que prestam à sociedade são considerados serviços, pois a referida montagem representa verdadeira produção industrial” (Direito Tributário Interpretado, Cejup, 1985, p. 133/134).

16. Até mesmo as imunidades de eficácia contida, se não reguladas, até sua regulação pela lei complementar, são entendidas como de eficácia plena. Sacha Calmon Navarro Coelho ensina: “O típico do dispositivo constitucional de eficácia contida é aplicar-se de imediato como se fora de eficácia plena (self-executing), podendo, todavia, ser comprimido ou contido, depois, por lei infraconstitucional, do contrário inviabilizada ficaria a eficácia constitucional do preceito, cuja aplicabilidade é urgente e inadiável. É clássico, em matéria de imunidade, por isso que ela, a imunidade, protege o contribuinte dos rigores da tributação, que a inércia legislativa atua contra o Estado e no contra o contribuinte.Por isso mesmo, os dispositivos imunitórios devem ser de eficácia plena ou contida. No primeiro caso, possuindo normatividade cheia, a sua aplicabilidade é plena e acabada. No segundo caso -dispositivo constitucional de eficácia contível- a regra é aplicável imediatamente, ficando a restrição a cargo do legislador da lei complementar restritora que irá conter o dispositivo constitucional Até que sobrevenha a restrição por intermédio de lei complementar, o dispositivo se ativa e se expande sem travas” (Comentários à Constituição de 1988 - Sistema Tributário, Forense, 1990, p. 404).

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seguintes requisitos pelas entidades nele referidas:

I. não distribuírem qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas rendas, a título de lucro ou participação no seu resultado;

II. aplicarem integralmente, no país, os seus recursos na manutenção dos seus objetivos institucionais;

III. manterem escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão.

§ 1º. Na falta de cumprimento do disposto neste artigo, ou no § 1º do art. 9º, a autoridade competente pode suspender a aplicação do benefício.

§ 2º. Os serviços a que se refere a alínea “c” do inciso IV do art. 9º são, exclusivamente, os diretamente relacionados com os objetivos institucionais das entidades de que trata este artigo, previstos nos respectivos estatutos ou atos constitutivos”,

e serem entidades de assistência social, sem fins lucrativos, criadas pelo Decreto-lei 9853/46, com regulamento aprovado pelo Decreto 61.836/67 e Decreto-lei 8621/46, com regulamento aprovado pelo Decreto 61.843/67, gozando, portanto, da proteção imunitória do artigo 150, inciso VI, letra “a”17, com o seguinte discurso:

“Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

....

VI. instituir impostos sobre:

...

c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas

17. No voto do Ministro Ilmar Galvão, no A.C. 101.394-PR, lê-se:“Para RUSSOMANO, a Assistência Social é mais ampla. Abrange os necessitados” (Parecer, in “A imunidade tributária das entidades de previdência privada”, pg. 109).E, para IVES GANDRA DA SILVA MARTINS (Parecer, op. cit. pg. 150), “a previdência é uma forma de assistência. É esta o gênero da qual a previdência é uma das espécies”.CARLOS VALDER DO NASCIMENTO, comungando do mesmo pensar, adverte, por isso mesmo, que não deve prosperar “o entendimento segundo o qual a assistência social somente deva ser concebida numa acepção filantrópica. É ressuscitar um conceito oitocentista, de que só se efetiva a promoção do homem, na medida em que suas mãos são estendidas à caridade pública. Triste forma de assistência repugnante da própria condição humana. Esta jamais será capaz de fazer com que o homem atinja a sua verdadeira dimensão de grandeza no contexto social.Assistência é todo e qualquer esforço que objetiva a concretização do ideal de uma vida melhor para o homem. É tudo que traduza segurança, bem-estar, paz social, como manifestação e reflexo da atividade previdenciária. Das lições transcritas, pode-se concluir, sem possibilidade de erro, que a previdência é um dos meios de realização da assistência. Como o próprio termo indica, constitui a assistência preventiva, que tem em mira futuras necessidades, que prevê o amparo, a ajuda para os segurados que vêm a adoecer, a aposentadoria para os que ficam impossibilitados de trabalhar, por velhice ou por doença, e a pensão para a família dos que sucumbem. Distingue-se, apenas, pela modalidade de execução, da assistência reparativa assistemática, incerta, que é prestada diretamente ao necessitado, por motivo de fome ou doença, através de auxílio e caridade”.

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fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei”.

Isto posto, passo a responder, a partir das premissas retro-examinadas, as questões que me foram formuladas, seguindo, para facilitar as respostas, a numeração adotada na consulta.

7a) Os terrenos mencionados encontram-se ao abrigo do disposto no artigo 150, VI, “c” da Constituição Federal, visto que constituem patrimônio das consulentes e este não pode ser incidido por qualquer espécie de imposto patrimonial, inclusive pelo IPTU18.

7b) Aplica-se o mesmo preceito imunitória aos terrenos adquiridos, com ação de despejo em andamento, visto que o IPTU, se incidente sobre o patrimônio das consulentes, conforma exigência inconstitucional.

Mister se faz entender que o IPTU tem seu perfil constitucional explicitado pelo CTN no artigo 32, sendo o elenco das hipóteses de incidência, excludente. Incide unicamente sobre a propriedade. Se o proprietário não for localizado ou se for incerto, a incidência sucessiva será sobre o domínio útil, na figura de seu detentor e, se ainda assim for de impossível localização, recairá sobre a posse, na figura de quem a detiver19.

Ora, nos imóveis mencionados, à evidência, o proprietário não é desconhecido, razão pela qual a sua condição de entidade imune oferta a pretendida imposição. A figura do locatário, para a hipótese, é despicienda, não se admitindo a incidência do IPTU, por

18. Aires Fernandino Barreto ensina:“A Constituição, ao atribuir ao Município competência para tributar a propriedade imóvel urbana, já o faz despindo-a das imunidades. Em outras palavras, as áreas imunes estão fora do campo tributário do Município.Convém registrar, contudo, que as imunidades estão demarcadas na Constituição dentro de um processo de gradação, isto é, com o estabelecimento de graus.Com efeito, ao atribuir as competências tributárias, a Constituição o faz com a simultânea subtração das áreas imunes. Logo, a competência já nasce despida de qualquer possibilidade de vir a gravar esses fatos, pessoas ou coisas. Embora o texto do art. 19, III, pareça esgotar o campo inatingível por via de tributação (campo das imunidades), convém manter presente que também o integra a imunidade constante do § 6º do art. 21 e a do § 7º do art. 23 do Excelso Texto” (Manual do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana, Revista dos Tribunais, 1985, p. 118).

19. O artigo 32 do CTN tem a seguinte dicção:“O imposto de competência dos Municípios, sobre a propriedade predial e territorial urbana tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município.§ 1º. Para efeitos deste imposto, entende-se como zona urbana a definida em lei municipal, observado o requisito mínimo da existência de melhoramentos indicados em pelo menos 2 dos incisos seguintes, construídos ou mantidos pelo Poder Público: I. meio-fio ou calçamento, com canalização de águas pluviais; II. abastecimento de água; III. sistema de esgotos sanitários; IV. rede de iluminação pública, com ou sem postiamento para distribuição domiciliar; V. escola primária ou posto de saúde a uma distância máxima de 3 quilômetros do imóvel considerado.§ 2º. A lei municipal pode considerar urbanas as áreas urbanizáveis, ou de expansão urbana, constantes de loteamentos aprovados pelos órgãos competentes, destinados à habitação, à indústria ou ao comércio, mesmo que localizados fora das zonas definidas nos termos do § anterior”.

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decorrência20.

7c) A resposta continua idêntica às questões anteriores, visto que o § 4 do artigo 150 não se aplica às operações mencionadas pela consulente, que são imunes. De rigor, dispositivo semelhante já estava plasmado no § 29 do artigo 14 do CTN, assim redigido:

“§ 2º. Os serviços a que se refere a alínea “c” do inciso IV do artigo 9º são, exclusivamente, os diretamente relacionados com os objetivos institucionais das entidades de que trata este artigo, previstos nos respectivos estatutos ou atos constitutivos”.

E tal dispositivo não impediu que o T.F.R. declarasse imune do I.R. as entidades fechadas de previdência social em suas aplicações financeiras, por serem instituições de assistência social. O princípio é o mesmo no atual texto, de tal forma que, apenas para evitar o abuso do poder econômico e instituir a igualdade tributária entre as empresas concorrentes, é que se pode admitir a incidência -como de resto, expliquei no 6º volume, tomo I, dos “Comentários a Constituição do Brasil21.

Não há, pois, incidência do IPTU.

7d) Na imunidade, o Poder Tributante não pode conceder ou deixar de conceder a imunidade. Nem reconhecer ou deixar de reconhecê-la. É a Constituição que concede a imunidade e os contribuintes imunes não estão sujeitos a qualquer reconhecimento por parte do Poder Tributante. O que tem o Poder Público é o direito de verificar

20. O artigo 123 do CTN inclusive não permite que a convenção particular (contrato de locação) prevaleça sobre o texto impositivo, ao dizer:“Salvo disposições de lei em contrário, as convenções particulares, relativas à responsabilidade pelo pagamento de tributos, não podem ser opostas à Fazenda Pública, para modificar a definição legal do sujeito passivo das obrigações tributárias correspondentes.

21. “Argüição de Inconst. na Ap. Cível 101.394-PA Rel. Min. Ilmar Galvão - Remetente: Juízo Federal da 3ª Vara - Apelante: União Federal - Apelada: Fund. Copel de Prev. e Assist. Social - Suscitante do Incidente: Egrégia 4a. Turma do TFR - Advs. Agnaldo Mendes Bezerra, Ives Gandra da Silva Martins e Roberto Rosas.EMENTA: TRIBUTÁRIO. ENTIDADES PRIVADAS DE PREVIDÊNCIA SOCIAL FECHADA. INSTITUIÇÕES COMPLEMENTARES DO SISTEMA OFICIAL DE PREVIDÊNCIA E ASSISTÊNCIA SOCIAL (art. 35 da Lei nº 6435/77). Inconstitucionalidade dos §§ 1º e 2º, do art. 6º, do D.L. 2065/83, que consideraram sujeitos ao imposto de renda os rendimentos de capital auferidos pelos entes da espécie. A assistência social, hodiernamente, não se resume à caridade pública, podendo também realizar-se por meio da previdência, que corresponde à assistência preventiva, destinada aos impossibilitados de continuarem trabalhando e à família dos que sucumbem. As entidades em tela, por isso, são beneficiárias da imunidade prevista no art. 19, III, “c”, da Constituição Federal, regulamentado pelo art. 9º, IV, “c”, c/c o art. 14, do CTN, que não condiciona o benefício à gratuidade dos serviços prestados, nem exige que sejam acessíveis a todas as pessoas indistintamente (RE 70.834-RS, RE 89.012-SP, RE 108.796-SP e RE 115.970-RS).Argüição procedente.Acórdão: Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas.Decide o TFR, em Seção Plena, por maioria, declarar a inconstitucionalidade dos §§ 1º e 2º, do art. 6º, do D.L. 2065/83, na forma do relatório e notas taquigráficas constantes dos . autos, que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Custas, como de lei.Brasília, DF, 30/06/1988 (data do julgamento). Min. Washington Bolívar (Pres.)Min. Ilmar Galvão (Relator)” (DJU 31/10/88).

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se as entidades preencheram ou não os requisitos exigidos pela lei suprema ou complementar, em nível de singela fiscalização. E nada mais.

Na hipótese mencionada, na linha das respostas anteriores, não há qualquer incidência do IPTU, visto que a locação de tais imóveis, com renda destinada às finalidades da entidade, estão a salvaguarda de qualquer imposição.

10) O pretérito imposto sobre transmissão tinha como sujeito passivo da obrigação ou o adquirente ou o transmitente, sendo, todavia, costumeiramente responsabilizado o adquirente com mais freqüência do que o transmitente. Estava assim redigido o artigo 42 do CTN:

“Contribuinte do imposto é qualquer das partes na operação tributada, como dispuser a lei”.

Ora, se tanto o adquirente quanto o transmitente são sujeitos passivos, à evidência, se o adquirente for entidade imune a imunidade lhe beneficia para não pagamento do imposto22.

Poder-se-ia alegar que o ITBI, apesar de a C.F. exigir que seja regulado por lei complementar, ainda não o foi, razão pela qual poderiam os municípios cobrá-lo como bem entendessem, à falta de parâmetro superior. Parece-me, todavia, que tal argumento antes prejudicaria que beneficiaria os Municípios, na medida em que, à falta de lei complementar, tal imposto não poderia ter sido regulado por via ordinária, sendo sua exação não só inconstitucional em relação às entidades imunes, mas também em relação a todas as pessoas que tivessem realizado operações de transmissão imobiliária até o advento da lei complementar.

14a) Em relação ao IOF, já expus em artigos e pareceres, minha opinião de que sua incidência sobre operações de entidades imunes é inconstitucional, sobre violar, a sua instituição em 1990, o princípio da anualidade esculpido no § 2º do artigo 165, assim redigido:

“§ 2º. A lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subseqüente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária

22. É também a opinião de Antonio Nicácio, ao escrever: “Ao contrário do que ocorre em relação a outros tributos, o CTN não define precisamente o contribuinte do imposto sobre transmissão de bens imóveis, deixando a critério da respectiva regu1amentação específica estabelecer, por lei, entre as partes da operação tributada, o devedor tributário. Portanto, tanto o transmitente como, adquirente podem ser eleitos contribuintes do imposto, facultado ainda à 1ei estadua1 estipular outra pessoa como responsável; por exemplo, o serventuário (tabelião) em cujo cartório for lavrada a escritura representativa da transmissão.No tocante a transmissão “inter vivos”, a nossa tradição é no sentido de considerar o adquirente como contribuinte do imposto. Ademais, dispondo o Código Civil, no artigo 1.129, que, salvo disposição em contrário, ficarão as despesas de escritura a cargo do comprador, sempre se entendeu que, entre elas, também se incluía o imposto de transmissão. Contudo, frente à disposição do CTN, nada obsta seja o transmitente considerado o contribuinte legal” (grifos meus) (Direito Tributário nº 4, Bushatsky, 1976, p. 66).

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e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento” (grifos meus)23.

Como tais alterações não constaram de lei de diretrizes orçamentárias de 1989, à evidência a cobrança neste exercício é inconstitucional, apesar da exceção ao princípio da anterioridade.

É que o princípio da anterioridade apenas pode ser afastado, se a previsão de sua exceção constar da LDO. Se não constar, o princípio maior da anualidade aplicável a todos os tributos, prevalece sobre o princípio menor da anterioridade24.

Em face do exposto, claramente as referidas leis e medidas provisórias do Plano Brasil Novo são inconstitucionais, inclusive filiando-me à corrente que entende que medida provisória não pode veicular instituição ou majoração de tributos, na linha de Sacha Calmon Navarro Coelho, Mizabel Derzi, Carlos Mário Velloso, Aires Fernandino Barreto, Edvaldo Brito25.

14b) O item 3.1 da I.N. 62/90, assim redigido:

“A incidência do imposto alcança qualquer operação independente da qualidade do beneficiário ou da forma jurídica de sua constituição”,

não tem fonte legal, violando o dispositivo o princípio da legalidade tributária exposto no artigo 150 inciso I da Constituição Federal, assim redigido:

“Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I. exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça”26.

15) A matéria em relação ao imposto sobre a renda já foi exaustivamente examinada

23. A equipe da Price Waterhouse assim comenta o dispositivo: “Já no que concerne à previsão de que as alterações na legislação tributária devam ser objeto da lei de diretrizes, isso significa uma maior tranqüilidade para os contribuintes quanto à política fiscal a que se sujeitarão” (A Constituição do Brasil 1988, Price Waterhouse, 1989, p. 700).

24. O artigo 150, inciso III, letra b da Constituição Federal tem o seguinte discurso:“Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:...III. cobrar tributos:...b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou”.

25. É, de resto, o que escrevi no parecer, a pedido dos deputados Ulisses Guimarães e Nelson Jobim, constante de meu livro “O Plano Brasil Novo e a Constituição” (Ed. Resenha Tributária, 1990, p. 83/100).

26. Sobre a matéria há unanimidade de opiniões (sem lei não há obrigação) veiculadas pelo “Caderno de Pesquisas Tributárias nº 6” (Ed.CEEU/Resenha Tributária, 1981), dedicado ao Princípio da Legalidade, a saber: Aires Fernandino Barreto, Anna Emília Cordelli Alves, Antonio José da Costa, Aurélio Pitanga Seixas Filho, Carlos Celso Orcesi da Costa, Cecília Maria Piedra Marcondes, Célio de Freitas Batalha, Dejalma de Campos, Dirceu Antonio Pastorello, Edda Gonçalves Maffei, Fábio de Sousa Coutinho, Gilberto de Ulhôa Canto, Hugo de Brito Machado, Ives Gandra da Silva Martins, José Eduardo Soares de Melo, Ricardo Mariz de Oliveira, Vittório Cassone, Wagner Balera e Ylves José de Miranda Guimarães.

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pelos Tribunais Superiores -quando da já mencionada questão sobre a pretendida incidência do I.R. na fonte nas aplicações financeiras das instituições fechadas de previdência privada- com declaração de manifesta inconstitucionalidade da pretensão fazendária (DL. 2065 - art. 8º), e afastamento da exigência.

Os Ministros do extinto Tribunal Federal de Recursos não desconheceram a vigência do § 2º do artigo 14, que foi reproduzido, de certa forma, no § 4º do artigo 150 da Constituição Federal27.

Em face do exposto, entendo também não devido o imposto sobre a renda nas aplicações financeiras das consulentes, de resto, necessárias para manutenção de seus objetivos sociais de relevante interesse nacional.

S.M.J.

São Paulo, 20 de setembro de 1990.

—————

27. No livro “A imunidade tributária das entidades fechadas de previdência privada (Ed. ABRAPP-Assoc. Bras. das Entidades Fechadas de Previdência Privada, 1984) os autores Adão Peixoto de Oliveira, Carlos Valder do Nascimento, Gastão Quartin Pinto de Moura, Gilberto de Ulhôa Canto, Ives Gandra da Silva Martins, Maurício dos Reis, Mozart Victor Russomano, Rio Nogueira, Ruy Barbosa Nogueira, Sacha Calmon Navarro Coelho e Yonne Dolácio de Oliveira manifestaram-se pela imunidade, na linha exposta neste parecer.

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2 - LIMITES CONSTITUCIONAIS PARA DESPESAS COM PESSOAL DA ADMINISTRAÇÃO DIRETA E INDIRETA – RESPONSABILIDADE DAS AUTORIDADES QUE INFRINGIREM O PRINCÍPIO ESTATUÍDO NA LEI MAGNA – PARECER.

CONSULTA

A consulente, por intermédio de seu eminente advogado, Dr. Luiz Antonio Schimidt de Azevedo, formula-me a seguinte consulta:

“Prevê o art. 169 da vigente Constituição da República que:

“A despesa com pessoal ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não poderá exceder os limites estabelecidos em lei complementar”.

Em seu parágrafo único, o dispositivo constitucional em tela estabelece que:

“A concessão de qualquer vantagem ou aumento de remuneração, a criação de cargos ou alteração de estrutura de carreiras, bem como a admissão de pessoal, a qualquer título, pelos órgãos ou entidades da administração direta ou indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, só poderão ser feitas:

I - se houver prévia dotação orçamentária suficiente para atender às projeções de despesa pessoal e aos acréscimos dela decorrentes;

II - se houver autorização específica na Lei de diretrizes orçamentárias, ressalvadas as empresas públicas e as sociedades de economia mista”.

O legislador constitucional remeteu, pois, à lei complementar a regulação da norma acima. No entanto, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, inscreveu a regra do art. 38, com o intuito certo de fazer valer, de imediato, à promulgação da Carta Magna, o desejo constituinte de limitar as despesas da administração pública, até que a Lei Complementar, prevista no texto da Constituição, viesse a ser editada.

Diz o art. 38 acima referido que:

“Até a promulgação da Lei Complementar referida no art. 169, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios não poderão despender com pessoal mais do que sessenta e cinco por cento do valor das respectivas

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despesas correntes”.

O parágrafo único do dispositivo acima reza que:

“A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios quando a respectiva despesa do pessoal exceder o limite previsto neste artigo deverão retornar àquele limite, reduzindo o percentual excedente à razão de um quinto por ano”.

A administração do Estado do Rio Grande do Sul, pelas Leis Orçamentárias editadas nos anos de 1988, 1989 e 1990, comprometeu suas despesas com pessoal ativo e inativo em sujeição aos mandamentos constitucionais. No entanto, Leis posteriores foram editadas que concederam aumentos a diversos segmentos da administração, de tal modo que restou violada a regra constitucional contida no antes referido art. 38.

Diante disso, consulta-se:

1) Qual o significado da expressão “receitas correntes” contida no art. 38 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias?

2) As despesas com pessoal ativo e inativo, sujeitas ao limite constitucional, abrange a administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público? Por que?

3) A partir de quando a administração esteve obrigada a respeitar a regra constitucional acima em exame?

4) Os Estados que, à época da promulgação da Constituição Federal em vigor, já se encontravam em harmonia com o desejo constitucional, poderiam ou poderão vir a exceder o limite imposto pela Carta Magna? Por que?

5) O “quinto ano” de que trata o referido art. 38 pode ser entendido como se as administrações tivessem cinco anos para cumprir a regra constitucional, sendo, pois, um prazo de carência para sujeição ao desejo da Constituição, ou estariam elas, desde outubro de 1988, obrigadas a dar início ao processo de adaptação ao mandamento da Carta Magna?

6) E, na hipótese de, após a vigência da Constituição, vir a ocorrer um comprometimento superior ao Limite referido pelo art. 38 em exame, qual a solução que haveria de ser encontrada, para os efeitos de ver-se restabelecida a ordem constitucional?

7) Lei orçamentária estadual editada em desrespeito ao art. 38 da Constituição padece de inconstitucionalidade? Por que?

8) Leis estaduais posteriores que, alterando Lei orçamentária, de forma direta, violam ou violaram o limite constitucional do art. 38 antes aludido, por igual, padecem de inconstitucionalidade? Por que?

9) Que tipo ou tipos de procedimentos judiciais estariam à disposição dos interessados para ver cessada a inconstitucionalidade eventualmente encontrada nas respostas às

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indagações de nºs 7 e 8 acima?

10) Contra quem poderiam ser propostos os procedimentos identificados na resposta anterior?

11) Quem teria legitimidade para a propositura de qualquer procedimento judicial que versasse o tema?”

RESPOSTA

À medida em que os estudos sobre a conformação do Estado vão se desenvolvendo, mais nitidamente é realçada sua dicotomia em relação à sociedade, assim como representar, sua estrutura, a dimensão pretendida pelos governos, mais do que pelos governados 28.

28. Escrevi, sobre a evolução das teorias ocidentais sobre o poder e os governos antes de Montesquieu, o seguinte: “Platão debruçou-se sobre o problema das formas boas e más de Governo, procurando identificar o fracasso das formas aos vícios dos dirigentes. Criou os célebres tipos de líderes, a saber: o homem tecnocrático (severo com os subordinados, mas justo, suave com os homens livres, obediente à lei e governado mais pelas virtudes de seus atos que pelo brilho de suas palavras); o homem oligárquico (amante do dinheiro e do poder na proporção inversa do amor às virtudes); o homem democrático (interveniente o menos possível na liberdade das pessoas e permitindo-lhe o máximo de ação); o homem tirânico (capaz de matar sem necessidade e de governar radicalmente, mesmo que o povo esteja disposto a obedecer).Em Platão, impressiona o personagem Caliclés, que defende ser a igualdade de todos perante a lei forma de diminuir o forte e dar privilégios aos fracos, nisto estando o desequilíbrio do poder. Os fortes, por serem mais fortes, têm o direito à sua fortaleza e não cometem injustiça se a exercerem sobre os mais fracos, que por serem fracos, têm o direito à sua fraqueza, ou seja, de se submeterem àqueles que são melhores. A lei de igualdade, portanto, que seria forma de equilíbrio da sociedade, é em verdade, forma de oposição à natureza das coisas, cujo preço é o desequilíbrio permanente das instituições.À evidência, os demais personagens do célebre diálogo (Górgias) não encampam o pensamento de Caliclés. Aristóteles, em seu decantado “Política”, reproduzindo pensamento dominante, à época, referiu-se a seis formas de governo, a saber: reino, aristocracia e politia (boas formas) e tirania, oligarquia e democracia (formas más), nas duas grandes vertentes o número de pessoas a deter o poder sendo o determinante de sua denominação (reino e tirania, uma só pessoa; aristocracia e oligarquia, poucas pessoas; politia e democracia, muitas pessoas).O interessante foi atribuir valor considerável ao bom governo, que se caracteriza pela estabilidade nas relações sociais, considerando o mérito do exercício do poder elemento de maior relevância que a simples forma de sua assunção. Interessante ainda foi considerar a politia (governo de muitos) boa forma, pois destinada aos interesses da polis e a democracia (governo de muitos) má, pois destinada apenas ao interesse da massa (demos) dominante.De maior relevo foram ainda os graus que atribuiu, considerando a politia a pior das formas boas de governo e a democracia, a melhor das formas más.Políbio foi o mais percuciente dos pensadores romanos (apesar de grego) em política e de maior percepção que muitos governantes da atualidade, bastando comparar sua afirmação sobre a queda da natalidade entre os romanos, fenômeno que Giscard D´Estaing pretendeu só pudesse ser explicado depois de muitos estudos a serem realizados no concernente à Europa atual. Repetiu a lição de Aristóteles, apenas considerando a democracia como forma boa e criando o termo oclocracia para designar a má forma do governo de muitos. No concernente à natalidade, alertou aos romanos que a queda se devia exclusivamente ao egoísmo que a riqueza trouxera à nação, tornando mais interessante, a homens e mulheres, o usufruto da vida que a criação de famílias. E explicou que tal queda de natalidade terminaria por enfraquecer o império romano, não só em seus valores morais, como no número de seus cidadãos peninsulares. Giscard D´Estaing não soube explicar o fenômeno francês e europeu, entendendo que

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Da lírica formulação contratualista, - segundo a qual os homens consensualmente voltados para o interesse coletivo e superior da comunidade, deram a escultura do Estado que os representa, amalgamando a sociedade - até os estudos mais modernos, verifica-se uma permanente oposição, entre o Estado e a sociedade, na medida em que os deuses do Estado são os Governantes e estes tendem a se identificar mais com o exercício do poder do que com as aspirações dos governados 29.

deveria ser matéria de reflexão para políticos, sociólogos e psicólogos, ou por não ter lido Políbio ou por não querer ver o óbvio.Foi Maquiavel quem retomou, todavia, em profundidade, o estudo da essência do poder, em seus dois clássicos livros “O Príncipe” e “Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio”. Ao contrário do que muitos pensam, Maquiavel não foi avesso às boas formas de governo ou às más formas, enquanto simples análise do exercício do poder. Entendeu que as boas formas de governo são mais estáveis que as más, sempre vinculando as formas às pessoas que exercitam o domínio. Sob este ponto de vista, entretanto, não se iludiu, declarando que a essência do poder está em sua manutenção. O fenômeno pertinente, enquanto poder diagnosticado, reside em que é bom, se se mantiver; é mau se não se mantiver; bom governante será aquele que eliminar seus inimigos e mau aquele que for derrubado, independente de ambos fazerem bons ou maus governos. A anatomia do poder, portanto, para Maquiavel, vista não sob o prisma externo, mas radiograficamente, dispensa critérios morais ou éticos. À evidência, em tal linha, os meios justificam os fins e o fim maior é a detenção do poder.Bodin (“De la Republique”) voltou ao tema das formas de governo, não aceitando inclusive a sétima sugerida por Maquiavel (governo misto entre alguns dos seis já mencionados), e apresentando tão somente três: o governo de um só, de poucos ou de muitos, sendo o fato de serem bons ou maus elemento meramente subjetivo, que, cientificamente, não poderia modificar as distinções das formas conhecidas.Hobbes, na linha de Bodin, examinou a estrutura do poder, dizendo que qualquer que fosse sua forma, o poder deveria ser sempre absoluto. Soberania e absolutismo seriam sinônimos (unum et idem). Bodin, todavia, restringiu o poder às leis positivas, naturais e divinas, limitações a que Hobbes não se curvou.John Locke, que viria a influenciar Montesquieu, (“Dois tratados sobre o Governo Civil”) constituiu-se no grande pensador da Monarquia Constitucional, ao dividir o poder em duas partes (o parlamento e o rei) e as funções do Estado em duas (legislativa e executiva), nascendo a legislativa do povo e a executiva do rei. Lastreado no Direito costumeiro inglês, fora das tradições latinas, não outorgou à função judiciária a mesma dignidade que Montesquieu fez evidenciar em sua obra, mais tarde.Neste período de algumas centenas de anos, há que se lembrar das concepções idealistas da “República” de Platão, de “A cidade do sol” de Campanella e da “Utopia” de Thomas More, este último levado à morte por ser santo, em século em que a Inglaterra se notabilizou por dar títulos nobiliárquicos a famosos piratas, que corariam os mais sanguinolentos terroristas da atualidade, assim como por mudar de religião para atender aos incontroláveis instintos de alcova de monarca dominado por seus caprichos sexuais. Na mesma linha, já no setecentismo, surgiu a figura de Vico (“La Sciencia Nuova Prima e Seconda”), em que examinou o Estado e o poder a partir da História, dividindo-a na fase pré-estatal (pré-história) e fase dos Estados. Esta última separou em fases: das famílias (era dos deuses), da república aristocrática (era dos heróis) e da república popular e monarquia (era dos homens)” (Curso Modelo Político Brasileiro, vol. IV, A Separação de Poderes no Brasil, Ed. Programa Nacional de Desburocratização - PrND e IASP-Instituto dos Advs. de S. Paulo, Brasília, 1985, p. 17/18/19).

29. Ronaldo Cunha Campos ensina: “Já observamos anteriormente que: “O Estado não se confunde com a coletividade submetida a seu poder.Representa uma instituição, integrada por um grupo, onde encontramos dirigentes e funcionários. Tal ente dispõe de capacidade de decisão e execução”.Por certo se afasta o conceito de um Estado que se confunde com a sociedade, onde o primeiro surgiria como “nação politicamente organizada”.A identificação do Estado e da nação, ou nações, a nosso ver, não encontraria amparo histórico ou sociológico.Talvez esta postura representasse uma reminiscência de teorias como as de Hobbes ou de Locke.Formula-se nesta época (séculos XVII e XVIII) as chamadas teses contratualistas.A nosso ver o seu enunciado continha interesse político determinado. O monarca, em sua luta contra os

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Compreende-se, pois, a preocupação de Aristóteles ao buscar classificar as formas de governo pela qualidade do exercício do poder, dividindo-o em bons e maus, sendo bons, pela ordem decrescente de excelência: a monarquia, a aristocracia e a politia e maus, também pela ordem crescente de “pioria”: a democracia, a oligarquia e a tirania.

Se Maquiavel, não em sua monumental obra “As décadas de Tito Lívio”, mas no “Príncipe”, divide os governantes em bons ou maus, a partir da sua capacidade exclusiva de manter o poder, por qualquer meio, sem exceção, sendo bons os que o mantêm e maus os que não o mantêm, de rigor, formula concepção que norteou a história da humanidade, à qual Lord Acton com desencanto, se referiu, ao dizer que “o Poder corrompe sempre e o poder absoluto corrompe absolutamente”.

Montesquieu, que nunca acreditou na natureza humana quando detendo o governo, formulou, a partir das lições de Locke e da experiência inglesa, a tripartição dos poderes - de rigor Aristóteles já a concebera - objetivando fazer com que o poder controlasse o poder, nada obstante conhecer a fragilidade do ser humano 30.

E o moderno direito constitucional, aquele que se aperfeiçoou nos últimos 200 anos, outra coisa não fez que proteger a sociedade contra a tendência dos governantes de se servirem dos governados para seus projetos pessoais, mais do que para o interesse da própria comunidade. De certa forma, os gregos já tinham seu direito constitucional (politéia) e não se pode deixar de considerar que os próprios romanos, no pragmatismo de seu “jus civile” e “jus gentium”, lançaram âncoras sólidas para um sistema de direito público capaz de desembocar no constitucionalismo dos dois últimos séculos.

A nota dominante, todavia, do constitucionalismo moderno, é a da procura de um

senhores feudais, necessitava de amparo ideológico sobre o qual assentasse o nascente Estado Nacional.A entrega, pelos indivíduos, de seus “poderes” ditos naturais, ao soberano ou à assembléia, para que tivessem a indispensável segurança, tal como se escrevia então, representava a sustentação ideológica do Estado Nacional.As construções jurídicas e filosóficas manifestam um conteúdo político, e, mostrou-o Carlos Campos, necessário não apenas para verificar sua inexatidão, mas também a que fim servem. Lembra o pensador, invocando Nietzche, que “é necessário reconhecer à ilusão a importância que tem com relação à vida”.O pacto social, onde se previa não apenas a associação dos integrantes da sociedade como sua sujeição ao Poder (unificado no Monarca), era uma ilusão, ou seja, não dispunha de sustentação na realidade histórica, ou na ciência social. Contudo servia esta ilusão, bem como a doutrina nela calcada, ao interesse de um Estado nascente.Corresponde aos interesses dos governantes identificar interesse do Estado ao interesse social e apresentar o primeiro como personificação da sociedade, anotou Krader.O tema não é novo, e já Platão discutia se o Estado é instrumento dos governantes ou dos governados” (Mandados de segurança e de injunção, Saraiva, 1990, p. 7/8).

30. Nelson Saldanha entende que Montesquieu, mais do que criar a separação de poderes, pretendeu enfraquecer o poder absoluto, em face da natureza pouco confiável do homem: “Charles Eisenman (citado por Djacir Menezes) chegou a observar que não existiu em Montesquieu uma explícita formulação da separação de poderes, observação que considero exagerada: o que não houve foi uma ênfase total sobre a “separação”, o que já tem sido bastante debatido (eu mesmo não me lembro de ter encontrado a palavra separação nos textos citados). A preocupação de Montesquieu, porém - com ou sem univocidade de vocabulário -, foi a de evitar a concentração, impossibilitadora de qualquer pretensão liberal, e foi também a de, isso ou além disso, condicionar o equilíbrio (ou o concerto) entre os poderes” (Nelson Saldanha, “O Poder Legislativo”, Ed. Fundação Milton Campos e Fundação Petrônio Portella, p. 14, 1981).

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texto superior legislativo, capaz de garantir a sociedade contra o Estado, subordinando este e seus governos ao interesse superior do indivíduo e da sociedade e não o indivíduo e a sociedade ao interesse menor dos governantes.

Apesar de tal tendência, não se deve ignorar o alerta atualíssimo de Hart, ao dizer que “as leis são sempre feitas pelos governantes para serem aplicadas a governantes e governados, mas por serem feitas pelos governantes, quase sempre pesam mais sobre os governados” 31.

O certo é que o constituinte sempre objetiva, fundamentalmente, garantir os direitos maiores da sociedade e ofertar-lhe os meios possíveis de controlar os governos, que devem estar a seu serviço e não a serviço deles próprios.

São, portanto, duas as grandes vertentes de qualquer ordem constitucional, a saber:

1) ofertar direitos e garantias à sociedade;

2) criar mecanismos para que o Estado funcione através dos governos e que estes sejam controlados pela sociedade 32.

31. Nem por isto, Hart deixa de admitir um mínimo de ideal de justiça, ao considerar os 5 fundamentos comuns e naturais a toda a ordem jurídica, a saber: 1) necessidade de proteção à vulnerabilidade humana; 2) a redução das desigualdades sociais; 3) a conformação do limitado altruísmo do ser humano, nem anjo, nem demônio; 4) a valorização dos recursos escassos de produção de bens de terra; 5) a criação de sistema sancionatório capaz de permitir o cumprimento das leis (The concept of law”, Ed. Clarendon, Oxford Univ. Press, 1961, p. 190/195).

32. Escrevi: “Os tratadistas referem-se a duas formas clássicas de Constituição, ou seja, às sintéticas e às analíticas.As primeiras cuidam da enunciação de princípios; remetendo ao legislador ordinário ou complementar a veiculação das leis que devem ser obedecidas. Tais constituições não descem à particularização dos princípios.As segundas são textos que procuram dar perfil amplo do que deveria representar ou do que representa o pensamento do povo, seja no concernente ao modelo político, ao desenho social ou ao projeto econômico, que pretenda perpetuar.O primeiro tipo de Constituição é também chamado de modelo neutro ou natural e o segundo de modelo ideológico.É a Constituição americana com seus sete artigos, com uma declaração de direitos em outros 10 e mais 16 emendas, em 200 anos, o típico exemplo da primeira. A Constituição mexicana de 1917, a de Weimar de 1919 e a Republicana espanhola de 1931 são aquelas que mais se aproximam do segundo.As Constituições sintéticas tendem a ser mais duradouras. A experiência humana demonstra que as ideologias passam e os modelos que as incorporam envelhecem com o envelhecimento das ideologias.As ideologias são criações do pensamento humano. Duram mais ou menos na proporção de sua maior ou menor aproximação da natureza das coisas.As Constituições, que procuram perenizá-las, são estáticas no tempo e dificultam o livre fluir da história, posto que obstaculizam a evolução do pensamento e da Ciência Política.Ao contrário, as Constituições sintéticas costumam ofertar as linhas gerais de convivência entre governantes e governados, deixando a estes que escolham o seu destino conforme a realidade temporal e espacial. Estão sempre adaptadas à evolução, visto que não bloqueiam a natural tendência do homem na busca de uma ordem social cada vez mais justa.A vivência social flui, com mais desenvoltura, nos textos sintéticos que nos textos complicados, sobre serem tais dicções de mais fácil apreensão pelo povo e de natural ensinamento nas escolas. Os textos que programatizam tudo, oferecem poucas possibilidades de cumprimento daqueles ideais neles albergados.Aliás, os princípios programáticos, quais sejam, aqueles ideais pretendidos, mas não realizados, têm-se constituído no principal ponto de frustração das Constituições analíticas, visto que os princípios desejados e não atingidos, por não se realizarem, oferendam menos autoridade à obediência da lei.

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A esta dupla vertente, acrescenta-se, nas denominadas Constituições positivas, aquela dos princípios programáticos, que vão além das garantias e direitos atuais da sociedade, consubstanciando promessas de melhoria de condições de vida dos cidadãos.

É bem verdade que as Constituições negativas, como a americana, que só assegura os direitos da sociedade, mas não promete um estado de bem-estar superior ao atual, são mais duradouras e de fácil cumprimento que as positivas, as quais ao oferecerem programas superiores aos que o Estado pode garantir, no remanejamento dos recursos da sociedade, terminam por provocar mais frustrações que alegria 33.

O certo, todavia, é que todo o constitucionalismo moderno é voltado para fazer dos governos, servidores do povo, e não o povo servidor dos governos, como ocorria com

A obediência à lei é, por outro lado, mais fácil nas Constituições sintéticas que nas analíticas, até porque conhecidas aquelas pelo povo e não estas.De qualquer forma, as Constituições, analíticas e sintéticas, possuem pelo menos duas grandes ordens de princípios, a saber: 1) aqueles que ordenam o Estado e criam os mecanismos de exercício do poder e 2) aqueles que garantem os direitos e salvaguardas individuais.À evidência, porque o Estado é meio de realização da coletividade e do indivíduo, os direitos e garantias individuais são os aspectos de maior relevância em qualquer texto constitucional, posto que a lei máxima não é um estatuto de garantia de privilégios dos governantes, mas de garantia dos direitos dos governados e dos mecanismos que lhe possibilitam controlar os governantes.A verdadeira democracia apenas existe na medida em que o Estado se auto-controle e os cidadãos controlem o Estado, visto que os governados, nos textos constitucionais democráticos, são os únicos destinatários das normas jurídico-sociais” (Roteiro para uma Constituição, ob. cit., p. 15/19).

33. Celso Ribeiro Bastos ensina: “Nada obstante estas características comuns, uma análise mais percuciente do Texto Constitucional revela-nos que os preceitos dele constantes voltam-se para duas finalidades ou propósitos bem distintos. Identificam-se aquelas normas cuja razão de ser exaure-se em atribuir competências, ou, se se preferir, a alocar direitos, repartindo-os basicamente entre o Estado e o indivíduo, isoladamente ou grupalmente considerado. Nessa categoria alojam-se todas as normas definidoras de poderes ou deveres. Têm, sem dúvida, um cunho organizacional, porque no mais das vezes faz-se necessário criar o órgão a que se comete a faculdade ou competência. Inicialmente, as Constituições compunham-se exclusivamente de normas dessa espécie. Com o andar dos tempos, sobretudo em pleno século XX, é que aqueles documentos deixam de ser meros “instrumentos de governo” para adquirirem uma nova dimensão.Esta lhes é conferida tanto por preceitos que encarnam autênticos princípios ou diretrizes, assim como pelas normas-fins, ou normas-tarefas, que enclausuram dentro de si programas a serem cumpridos. Daí serem também conhecidas como normas programáticas. É que as Constituições já não se contentam em espelhar as realidades atuais. Não são um mero retrato das relações existentes atualmente na sociedade. Não se satisfazem em ditar ao legislador o âmbito de sua competência. Não se resignam à sua dimensão estática.Querem ser - e efetivamente, o são - objetos úteis na antecipação do futuro. Almejam um papel conformador do porvir. Procuram fornecer parâmetros para a atuação do Estado, de molde a que os fins fundamentais da organização política já estejam definidos na Lei Maior. É, sem dúvida, uma tentativa de subjugar a política numa intensidade que não ousaram as primeiras Constituições. Surge para o legislador o dever de legiferar, e não apenas a competência para tanto. De tudo emerge uma Constituição denominada diretiva ou dirigente, com o que se pretende significar este seu caráter de elemento consubstanciador de diretrizes, rumos e vetores a serem impressos na ação estatal.Esta maior ambição das normas principiológicas e das programáticas, caracterizada pela sua dimensão prospectiva, não é atingida sem o pagamento de um pesado preço, consistente na perda de densidade semântica. Para poderem projetar-se sobre o futuro elas vêem-se obrigadas à adoção de uma fraseologia, de uma compostura terminológica, que as tornam inaptas a gerar os efeitos normalmente extraíveis de qualquer regra jurídica” (Curso de Direito Constitucional, 11ª ed., Saraiva, 1989, p. 119).

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os escravos da gleba em relação aos senhores feudais, em plena Idade Média.

Nem por isto a prática tem acompanhado a teoria.

O artigo 38 das Disposições Transitórias, de rigor, está na linha de tal espécie de preocupação do constituinte.

A Federação Brasileira é uma Federação atípica, posto que é a única dos países civilizados que oferta ao Município condições de entidade federativa. A Federação é a mais onerosa das formas de Estado. Nos Estados Unitários sustenta a sociedade uma única esfera de governo, ou seja, a do poder central. Nas Federações, não. Em todas as Federações, a sociedade mantém duas ordens distintas, gerando, portanto, um ônus maior para a sociedade, para, através de tributos, ofertar os recursos necessários para manutenção do duplo governo 34.

Nas Federações, os espaços geográficos que se unem para formar o país, abrem mão de sua soberania, enquanto Estados ou províncias, para aceitarem uma autonomia parcial, subordinada aos interesses maiores da Nação. As Federações Modernas começam com a Americana. De 1776 a 1787 discutiu-se se deveriam os Estados da Nação do Norte conformar uma confederação de países soberanos ou uma Federação de Estados Autônomos, tendo os 55 constituintes de Filadélfia, no perfil final da lei suprema, optado pela forma federativa 35.

34. Karl Loewenstein ensina: “En oposición al Estado unitario “monolítico”, el Estado federal presenta un sistema de pluralismo territorial. Las diferentes actividades estatales están distribuidas entre el Estado central y el Estado miembro. La distribución del ejercicio de la función aparece en su forma más pura cuando en un determinado campo concurren la competencia del Estado central y del Estado miembro. Aquí surge entonces un problema con el que tendrá que enfrentarse, tarde o temprano, cualquier Estado federal a no ser que la constitución estipule expresamente que en las competencias concurrentes las medidas tomadas por el Estado central priman sobre las de los Estados miembros. Ésta ha sido la sensata regulación de las Constituciones alemanas (Constitución del Reich de 1871, art. 2, frase 1; Weimar, art. 13, pár. 1; Ley Fundamental de Bonn, art. 31), que también rige en la India (Constitución de 1948, art. 244). Dado que un tal precepto falta en Estados Unidos, los tribunales han tenido que salir del paso con una precaria demarcación de competencias de caso en caso – la llamada teoría de la “anticipación” (preemption) o de la “superposición” (super-session) que ejerce la competencia federal sobre los Estados miembros. Cualquiera que sea el método, la realidad de la vida federal impondrá necesariamente la prioridad del Estado central.El principio de la distribución del poder es entendido frecuentemente en la teoría constitucional como la existencia de una doble soberanía, atribuyendo el poder estatal originario y supremo, esto es, la soberanía, tanto al Estado central como a los Estados miembros en sus respectivos campos de competencias” (Teoría de La Constitución, Ed. Ariel, Barcelona, 1986, p. 357/358).

35. Manoel Gonçalves Ferreira Filho esclarece:“Por Federação deve-se entender, em direito público, um tipo de coletividade caracterizado pela associação parcial de coletividades em vista da realização de interesses comuns e, reciprocamente, pela autonomia parcial dessas mesmas coletividades em vista do atendimento a seus interesses particulares. A Federação é mais do que uma simples aliança. Ela forma uma nova coletividade pública, com órgão próprio e competência própria, o que não se dá com a mera aliança entre Estados. Todavia, essa nova coletividade não importa no desaparecimento das que a formaram, as quais conservaram autonomia, portanto órgãos e competências próprias.Entre as formas de Federação, cumpre distinguir claramente entre Confederação de Estados e Estado federal. O traço fundamental que as separa é que a primeira nasce de um pacto, cujo caráter contratual, nítido e insofismável, sobrevive como tal, enquanto o segundo tem nesse pacto (quando é ele que a estabelece) a sua constituição. Em outras palavras, o Estado federal quando provém da união de Estados e se estabelece por um pacto, importa que este pacto perca o seu caráter contratual, para se tornar

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Os países que adotaram a forma federativa, todavia, aceitaram o ônus maior de sua mantença pela opção de um Estado menor, em que a sociedade preenche os espaços de uma autêntica democracia política e de uma economia de mercado real, com o que, o encargo superior é administrado de forma menos onerosa. A descentralização administrativa, pois, compensa, pela eficiência da ação, a estrutura custosa da duplicação do poder.

Os Municípios não participam do concerto federativo, porque estão colocados dentro dos Estados, Províncias ou espaços geográficos que compõem uma Nação, em todas as Federações conhecidas.

No Brasil, todavia, em função de sua história, em que o Municipalismo exerceu papel preponderante -havendo cidades que foram verdadeiras “polis” ao estilo do modelo grego anterior ao helenismo macedônico, como São Paulo, nos séculos XVI a XVIII - os Municípios ganharam “status” de ente federativo com a nova Constituição, sendo conformada, no texto maior, tendência que já, em matéria de autonomia, remontava às Constituições anteriores. Os Municípios, principalmente com a República, ganharam autonomia política, financeira e administrativa em dimensão não conhecida no direito constitucional comparado 36.

Por esta razão, o país, hoje, possui 5.000 governos, com 5.000 poderes legislativos, 5.000 poderes executivos e 27 Poderes Judiciários, além das Justiças especializadas, conformando um dos modelos mais onerosos de que se tem conhecimento, no federalismo comparado, e que deve ser suportado pela sociedade.

À evidência, o Poder Judiciário é dos 3 Poderes o que menos peso exerce, visto que as verbas orçamentárias que lhe são endereçadas têm sido, na União e nos Estados, muito menores do que seria desejável.

O certo, todavia, é que a multiplicação de governos nas 3 esferas de Poder, termina por criar uma estrutura estatal sorvedora dos recursos da sociedade, ao ponto de os 53 tributos do sistema e o fato de a carga tributária, em nível de produto privado bruto,

constituição do novo Estado. A persistência do caráter contratual no caso da Confederação faz com que as regras comuns só possam ser modificadas unanimemente, abrindo-se às coletividades descontentes com sua alteração a possibilidade, ao menos, de secessão. Já no Estado federal, o pacto se transforma em Constituição e como tal pode ser modificado, pelo modo que previr, sem possibilidade de secessão” (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, volume 1, Saraiva, 1990, p. 141).

36. José Afonso da Silva, com propriedade, observa: “Com isso constituem-se no Estado federal duas esferas governamentais sobre a mesma população e o mesmo território: a da União e a de cada Estado-membro. No Brasil, ainda há a esfera governamental dos Municípios.Mas o Estado federal é considerado uma unidade nas relações internacionais.Apresenta-se, pois, como um Estado que, embora aparecendo único nas relações internacionais, é constituído por Estados-membros dotados de autonomia, notadamente quanto ao exercício de capacidade normativa sobre matérias reservadas à sua competência. O Estado federal brasileiro está constitucionalmente concebido como a União indissolúvel dos Estados, Municípios e Distrito Federal (art. 1º). Foi equívoco do constituinte incluir os Municípios como componente da Federação. Município é divisão política do Estado-membro. E agora temos uma federação de Municípios e Estados, ou uma federação de Estados? Faltam outros elementos para a caracterização de federação de Municípios” (Curso de Direito Constitucional Positivo, 5ª ed.; Ed. Revista dos Tribunais, 1989, p. 89/90).

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atingir a mais de 50%, serem insuficientes para sua manutenção 37.

Ora, exatamente por ter percebido, o constituinte, ser esta a realidade que ele mesmo auxiliou a gerar, é que instituiu o breque para defesa da sociedade, representado pelo artigo 38 das Disposições Transitórias, que, a meu ver, melhor estaria se colocado como inciso do artigo 5º, visto que objetiva muito mais garantir a sociedade contra os desperdícios públicos, clientelismo e o excesso de carga tributária, do que o Estado em nível de racionalização de sua administração 38.

37. Ao dar apoio à proposta de Marcos Cintra Cavalcanti de imposto único, escrevi: “Quando um cidadão, que ganha salário mínimo no país, adquire um eletrodoméstico qualquer, poderá estar pagando, no preço daquele produto, os seguintes tributos, embutidos, tanto naquela operação (custo da sua produção, circulação e venda), quanto nas operações anteriores relativas a todos os insumos diretos e indiretos que foram necessários à sua produção, assim como nas incidências sobre as pessoas jurídicas e físicas vinculadas à empresa, direta ou indiretamente, a saber: 1) imposto de renda, 2) imposto sobre produtos industrializados, 3) imposto de importação, 4) imposto sobre propriedade territorial rural, 5) imposto sobre operações financeiras, 6) imposto de exportação para o exterior de produtos nacionais ou nacionalizados, 7) imposto sobre grandes fortunas, 8) imposto sobre transmissão causa mortis e doação de bens ou direitos, 9) operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transportes interestadual e intermunicipal e de comunicação, 10) propriedade de veículos automotores, adicional ao imposto de renda incidente sobre lucros, ganhos e rendimentos de capital, 11) imposto sobre propriedade predial e territorial urbana, 12) imposto sobre transmissão intervivos, a qualquer título por ato oneroso, de bens imóveis por natureza ou acessão física e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos à sua aquisição, 13) imposto sobre vendas a varejo de combustíveis líquidos e gasosos exceto óleo diesel, 14) imposto sobre serviços de qualquer natureza, 15) salário educação, 16) SESC/SENAC - SESI/SENAI, 17) Incra, 18) FGTS, 19) contribuição previdenciária, 20) Finsocial, 21) PIS, 22) PASEP, 23) contribuição social, 24) selo-pedágio, 25) adicional ao frete para renovação da Marinha Mercante, 26) Taxas IAA-IBC-CVM, 27) taxas portuárias, 28) taxas da organização e regulamentação do mercado da borracha, 29) taxa de serviços cadastrais, 30) taxa de classificação, inspeção e fiscalização de competência do Ministério da Agricultura, relativas a produtos animais, vegetais ou de consumo, 31) taxa de fiscalização dos produtos controlados pelo Ministério do Exército, 32) taxas diversas, 33) contribuições sindicais, 34) taxa de fiscalização e serviços diversos, 34) taxa de vistoria de veículos de transportes coletivos intermunicipais, 35) taxa de apreensão de animais em rodovias estaduais, 36) taxa de vistoria em painéis e anúncios, 37) custas e emolumentos que constituem renda do Estado - Judiciais, 38) custas e emolumentos extra judiciais, 39) taxa de contribuição ao Fundo de Assistência Judiciária - Extra Judiciais, 39) taxas e contribuições à Carteira de Previdência dos Advogados - Mandado Judicial, 40) taxas de serviços de trânsito, 41) taxa de assistência aos médicos, 42) taxas e emolumentos da Junta Comercial, Registro do Comércio e Afins, 43) taxas pelo exercício do poder de polícia, 44) taxa de licença pela localização, funcionamento e instalação de atividades comerciais, industriais, profissionais e prestação de serviços e similares, 44) taxa de licença para tráfego de veículos, 45) taxa de licença para estacionamento de veículos, 46) taxa de licença para publicidade, 46) taxa de licença para escavações e retirada de materiais do subsolo, 47) taxa de licença para construções, arruamentos e loteamentos, 48) taxa de licença para elevadores, monta-cargas e escadas rolantes, 49) taxa pela prestação de serviços, 50) taxas de limpeza pública, 51) taxa de conservação de vias e logradouros públicos, 52) taxa de pavimentação e de serviços preparatórios de pavimentação, 53) taxa de sinistro.Não obstante possa causar espécie que no preço de um produto eletrodoméstico possam estar embutidos alguns dos tributos acima arrolados (como, por exemplo, imposto sobre grandes fortunas (futuro), sobre a propriedade territorial rural, sobre exportação para produtos não industrializados, se o grupo tiver várias atividades, taxas diversas, contribuições etc.) a verdade é que, ainda que indiretamente, toda a carga tributária acaba por ser repassada para o preço das mercadorias.Assim, exemplificativamente, a contribuição devida ao IAA pela Usina, repercute no preço do álcool utilizado como combustível. nos veículos da indústria fabricante do eletrodoméstico, combustível esse que, por sua vez, é considerado nos custos que compõem o preço do produto final adquirido pelo cidadão do exemplo acima” (Folha de S. Paulo, 11/03/90, p. B-2).

38. O artigo 169, apesar de moralizador, é, todavia, insuficiente, por constituir-se em proteção formal e não real. Sobre ele manifestaram-se Regis Fernandes de Oliveira, Estevão Horvath e Teresa Cristina Castrucci

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Com efeito, ao impor a todas as entidades federativas o teto de 65% das receitas líquidas para pagar todos os funcionários da Administração Direta e Indireta, limitou a possibilidade de os governos considerarem-se meros protetores dos servidores públicos e não, da sociedade.

De rigor, o dispositivo conforma o princípio de que o servidor público deve servir à sociedade e não dela se servir, motivo pelo qual, a partir de certo limite, não pode mais, o Estado, gastar com a mão de obra os recursos tirados dos administrados.

A dicção constitucional é clara e inequívoca, conforme se pode ler a seguir:

“Até a promulgação de lei complementar referida no art. 169, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios não poderão despender com pessoal mais do que 65% do valor das respectivas receitas correntes.

§ único. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, quando a respectiva despesa de pessoal exceder o limite previsto neste artigo, deverão retornar àquele limite, reduzindo o percentual excedente à razão de um quinto por ano” (grifos meus) 39.

De início, fala o constituinte na promulgação de uma lei complementar que regulará a matéria. Receoso, todavia, de que tal lei pudesse não ser publicada nunca, por pressões naturais dos detentores do poder e beneficiários do sistema, impôs um teto de 65% das receitas líquidas, que passa a ser o teto máximo para gastos governamentais com servidores em todas as esferas do Poder 40.

Tambasco dizendo: “Dispositivo com sentido moralizador. O administrador público é farto em admissões políticas e sem qualquer conteúdo público. Despe-se de sentimento do justo e da boa prestação de serviço público para inflar a máquina administrativa, com intuito eleitoreiro e inútil. Somente se houver prévia dotação orçamentária e autorização específica é que será possível a admissão de pessoal ou reajustamento de seus vencimentos. Moraliza-se o serviço público” (Manual de Direito Financeiro, Ed. Revista dos Tribunais, 1990, p. 87).

39. A equipe da Price Waterhouse assim comenta o dispositivo: “Cabe à lei complementar estabelecer os limites relativos à despesa com pessoal ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (vide comentários ao art. 169). Mas, enquanto não promulgada a lei complementar, a despesa com pessoal não poderá exceder 65 por cento do valor das respectivas receitas correntes.A medida visa a combater o problema do déficit público e permitir que as administrações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios tenham condições de realizar as obras públicas necessárias para assegurar o bem-estar da população, o que só é possível limitando-se o gasto com pessoal a uma determinada parcela dos recursos obtidos” (A Constituição do Brasil 1988, Price Waterhouse, 1989, p. 907).

40. Gilberto de Ulhôa Canto ensina sobre o espectro da lei complementar que: “Dizer-se que a lei complementar afetava a autonomia dos Estados e Municípios, e por isso serem elas inconstitucionais, não é correto, pois a sua criação e o âmbito de sua competência estão expressos na mesma Constituição que assegura a autonomia, que assim é restringida na sua própria origem. Por outro lado, as suas normas inibem também a autonomia legislativa da própria União, na medida em que nem leis federais sobre tributos do poder central escapam à necessidade de se submeter ao que as leis complementares prescrevem, dentro dos limites que lhes são próprios. Acresce que a lei complementar é elaborada pelo Congresso Nacional, em cujos quadros a União não tem condição alguma de influir, pois os Senadores representam os Estados e os Deputados os colégios eleitorais dos Estados e dos Municípios” (Caderno de Pesquisas Tributárias, vol. XV, Ed. CEEU/Resenha Tributária, 1990, p. 2/3).

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A própria lei complementar poderá reduzir este teto a 60, 50 ou 40%, visto que, em termos de países civilizados, a dedicação de 2/3 das receitas tributárias líquidas à mão de obra, já é percentual elevadíssimo. Não poderá, todavia, superá-lo.

O dispositivo é, portanto, auto-aplicável.

O segundo aspecto a ser examinado diz respeito à expressão “receitas correntes”. Receitas correntes só podem ser as receitas tributárias líquidas, visto que se fossem as receitas brutas, mencionadas no artigo 11 da Lei nº 4320/64, nelas incluídos os subsídios e transferências, no caso da União Federal, elas somariam mais do que 100% da receita real, o que rondaria ao absurdo 41.

Ora, não seria lógico e nem representaria uma homenagem à inteligência dos constituintes, admitir que tivessem pretendido criar um dispositivo de proteção da sociedade - que paga tributos para sustentar os servidores públicos - estabelecendo que a União não poderia gastar mais de 110% daquilo que efetivamente recebesse (receita líquida) com mão de obra!!! Tal imagem, de inteligência inferior, eu não posso ter dos constituintes, razão pela qual a expressão “receitas correntes” apenas pode se referir às “receitas líquidas”, isto é, as receitas já escoimadas das transferências tributárias e dos subsídios.

Por outro lado, por “receitas correntes” só se deve admitir as “receitas tributárias”, visto que as receitas originárias por exploração de atividades econômicas ou financeiras, têm sua contrapartida nas despesas de custeio e investimentos e, no exemplo brasileiro - infelizmente por ser o Estado um mal empresário, como as estatísticas têm demonstrado -, à evidência, as despesas tendem a ultrapassar as receitas 42.

41. Wolgran Junqueira Ferreira diverge da interpretação, ao dizer: “Sessenta e cinco por cento do valor de suas receitas correntes. Entende-se por receitas correntes os impostos, as taxas, as contribuições de melhoria, a correção monetária incidente nos tributos, a receita patrimonial, agropecuária, industrial de serviços e, ainda, as provenientes de recursos financeiros recebidos de outras pessoas de direito público ou privado, quando destinados a atender despesas classificáveis em despesas correntes.Então temos dentro das receitas correntes:I - receita tributária;II - correção monetária incidente nos tributos;III - receita patrimonial que se divide em:a) receitas imobiliárias; b) receitas de valores mobiliários; c) participação e dividendos.IV - receita industrial;V - transferências correntes que se subdividem em:a) receitas diversas; b) participação em tributos federais; c) participação em tributos estaduais;VI - receitas diversas que são:a) multas; b) cobrança da dívida ativa; c) outras receitas diversas.Expressamente excluídas no cálculo de 65% que as três esferas de governo podem gastar com pessoal, estão as receitas de capital que são:a)operações de crédito; b) alienação de bens móveis e imóveis; c) amortização de empréstimos concedidos e quaisquer outras receitas de capitais” (Comentários à Constituição de 1988, volume 3, Ed. Julex, 1989, p. 1279).

42. Toshio Mukai, ao não aceitar que o novo conceito constitucional de receitas correntes é diverso da ordem pretérita, termina por considerá-lo absurdo: “As receitas correntes, conforme definição dada pelo § 1º do art.11 da Lei nº 4.320/64, compõem-se das receitas tributárias, de contribuições, patrimonial, agropecuária, industrial, de serviços e outras transferências, recebidas de pessoas de direito público ou privado, quando destinadas a atender despesas classificáveis em despesas correntes.

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Há, pois, um conceito “lato” de receitas correntes, que é aquele da Lei 4320/64 e um conceito “stricto”, que é o do artigo 38, que por ser dispositivo de defesa da sociedade, só pode referir-se às receitas tributárias líquidas. Aplica-se à espécie a máxima “odiosae restringenda, favorabilia amplianda”.

Por esta linha de raciocínio, à nitidez, apesar de elevadíssimo o percentual de 65%, ele se refere apenas às “receitas tributárias líquidas”, posto que apenas estas são constitucionalmente asseguradas para manutenção do Estado. Há, pois, um novo conceito constitucional de “receitas correntes” para efeitos deste dispositivo de garantia da sociedade, necessariamente constritor. “Stricto sensu” tais receitas correntes são apenas as “tributárias líquidas”.

O terceiro aspecto a ser examinado é o que diz respeito ao pessoal.

Pode-se, à primeira vista, ter a impressão de que, ao não serem incluídas as receitas não tributárias entre aquelas receitas correntes, os servidores da administração indireta estariam fora do limite 43.

O argumento, todavia, não resiste a uma análise mais profunda.

De início, não distingue, o texto constitucional, entre pessoal da administração direta e aquele da indireta. Fosse intenção fazer a distinção, à evidência, teria dela cuidado no dispositivo.

A máxima “ubi lex non distinguit, distinguere non debemus”, se de possível contestação para determinados ramos do direito, não o é, todavia, quando objetiva garantir os direitos superiores da sociedade.

Como já me referi atrás, o dispositivo objetiva garantir a sociedade contra o desperdício do dinheiro público, razão pela qual pretender, por interpretação infra-constitucional, criar restrição à garantia não constante do texto supremo é, à nitidez, amputar a lei maior por uma interpretação conveniente e aética 44.

De início, portanto, não há como considerar que o vocábulo “pessoal” deva ser lido como se fosse “pessoal da administração direta”, acompanhado de uma oração oculta

Naturalmente, ainda que o limite de 65% das receitas correntes, no nosso entender seja um absurdo, posto que somente restarão 35% para gastos em serviços públicos, obras e atividades-meio, a estabilização de todos os servidores que contem cinco anos de serviço contínuo, na data da promulgação da Constituição, será um sério impedimento para se cumprir o texto constitucional” (grifos meus) (Administração Pública na Constituição de 1988”, Saraiva, 1989, p. 181/182).

43. Ao pretender incluir as receitas não tributárias entre aquelas que comporiam as “receitas correntes”, Wolgran Junqueira, como Toshio Mukai, é obrigado a admitir sua irracionalidade e que o dispositivo não atingiria seus fins, ao dizer: “Fixado o parâmetro de 65% para o dispêndio de pessoal nas três esferas de governo, não significa com isto que o constituinte de 1988 pretendeu moralizar a administração pública de uma vez por todas” (grifos meus) (Comentários à Constituição de 1988, ob. cit., p. 1280).

44. Carlos Maximiliano ensina: “Quando o texto menciona o gênero, presumem-se incluídas as espécies respectivas; se faz referência ao masculino, abrange o feminino; quando regula o todo, compreendem-se também as partes. Aplica-se a regra geral aos casos especiais, se a lei não determina evidentemente o contrário.Ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus: “Onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir” (Hermenêutica e Aplicação do Direito, 9ª ed., Forense, 1979, p. 246).

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nos seguintes termos: “excluído o pessoal da administração indireta”.

A ausência da distinção, portanto, leva-me a entender que o pessoal, tanto da Administração Direta quanto da Indireta, foram indicados na regra superior do artigo 38 das Ds.Ts.

Mas não só pela clareza do texto é que se deve entender correta a interpretação atrás exposta.

O segundo argumento que me parece relevante é o de que sempre que as empresas estatais obtêm lucros - o que é raro - tais lucros não entram para o Estado, mas continuam dentro das empresas. Sempre que, entretanto, dão prejuízo - o que ocorre na esmagadora maioria das vezes - o Estado socorre-as com as receitas oriundas, fundamentalmente, da imposição tributária. Acresce-se o fato de que o patrimônio criado em tais empresas, na grande maioria dos casos, o foi com as receitas tributárias, sobre muitas vezes tais empresas apresentarem lucros, exclusivamente por força do tratamento preferencial e privilegiado que o Estado lhes outorga - nada obstante a Constituição Federal vedar tal preferência - 45 quando não, as subsidiando de forma direta e indireta.

Ora, se a receita operacional real dessas empresas supera as despesas - o que raramente ocorre - não pode ser utilizada pelo Estado, mas deve o Estado, na maioria dos casos, subsidiá-las, inclusive para pagamento de seu pessoal, em se conformando a hipótese inversa. Claramente, tal argumento fortalece a interpretação, que venho expondo, de que o limite colocado para proteger a sociedade é de 65% das “receitas líquidas tributárias” além de tratar-se de limite para os gastos com o pessoal da administração direta e indireta, sem exclusão de ninguém, inclusive de mão de obra contratada fora da Administração.

O terceiro argumento é o de que, se a Administração Indireta ficasse de fora, à nitidez, não haveria como exercer qualquer controle, posto que sempre que os governos pretendessem burlar o limite constitucional, privilegiariam as contratações pela administração indireta sobre a direta, para conseguir os desideratos desejados, transferindo funções públicas desta para aquela 46.

45. Celso Bastos relembra que o § 2º do artigo 173 impõe o tratamento isonômico: “Este parágrafo é como que uma decorrência natural do anterior. Neste já ficara claro a submissão das sociedades de economia mista e das empresas públicas ao direito próprio das empresas privadas.Trata-se, portanto, de um reforço pelo qual se pretende tornar certo este princípio de igualdade, que deve reinar entre as empresas de controle governamental e as privadas. Esta igualdade nada mais é, por sua vez, do que uma decorrência da subsidiariedade da iniciativa governamental.Com efeito, de nada valeria a Constituição condicionar as atividades do Estado no campo econômico, utilizando, para isso, pressupostos bem precisos, se de outro lado lhe fosse possível criar um regime jurídico especial para as empresas governamentais, que por esta via arruinariam as pertencentes aos particulares, originando, assim, uma forma de invasão do domínio econômico privado no contemplado na Lei Maior” (Comentários à Constituição do Brasil, 7º volume, Saraiva, 1990, p. 87).

46. De resto, o artigo 169 da Constituição Federal que também impõe restrições às despesas de custeio das duas administrações, está assim redigido: “A despesa com pessoal ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não poderá exceder os limites estabelecidos em lei complementar.§ único. A concessão de qualquer vantagem ou aumento de remuneração, a criação de cargos ou

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Se parte substancial das despesas de qualquer governo é com o pessoal da administração indireta, não colocar tal pessoal no rol daquele comando, que impõe bloqueio além dos 65%, é tornar o artigo 38 disposição de nenhum conteúdo, perdendo sua eficácia 47.

Por esta razão, entendo que as receitas “líquidas tributárias”, a que se refere o artigo 38 das Disposições Transitórias, servem de montante global para a aplicação dos 65% de recursos destinados à remuneração do pessoal da Administração Direta e Indireta.

Passo agora, a examinar os aspectos temporais de vigência e eficácia do dispositivo em questão 48.

A questão se coloca a partir do que dispõe o § único do artigo 38. Num primeiro exame poderia parecer que o “caput” do artigo 38 pode ser puramente violado, sem sanção, devendo União, Estados, Distrito Federal e Municípios retornar aos 65% sempre que o percentual for ultrapassado num prazo de 5 anos.

Apenas à primeira vista poderá o exegeta hospedar tal interpretação do Direito sem sanção a garantí-lo 49.

alteração de estrutura de carreiras, bem como a admissão de pessoal, a qualquer título, pelos órgãos e entidades da administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, só poderão ser feitas: I. se houver prévia dotação orçamentária suficiente para atender às projeções de despesa de pessoal e aos acréscimos dela decorrentes; II. se houver autorização específica na lei de diretrizes orçamentárias, ressalvadas as empresas públicas e as sociedades de economia mista”.

47. José Cretella Jr. ensina: “Administração Direta é a desempenhada pelo “centro” do Estado, pelo chefe do Executivo e seus auxiliares, pela pessoa política. Quando o Estado exerce serviços públicos, dizemos que ele administra diretamente, sem interposta pessoa. O Estado é, por excelência, o “gestor dos serviços públicos”, a tal ponto que Léon Duguit procurou substituir a noção de “soberania” (Manuel de droit constitutionnel, 2ª ed., 1911, p. 79) pela de “serviço público” (Traité de droit constitutionnel, 3ª ed., v.2, p. 93), mostrando que o Estado, em nossos dias, é uma cooperação de serviços públicos, organizados e fiscalizados pelos governantes (cf. nosso tratado de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Forense, 1967, v.4, p. 22)” e “Administração indireta é toda entidade, pública ou privada, criada pela pessoa política, mas que não se confunde com a pessoa jurídica pública política matriz criadora. No Brasil, não é nem a União, nem os Estados-membros, nem os Municípios, mas os colaboradores da União, os colaboradores dos Estados e os colaboradores dos Municípios, quer privados, pessoas físicas ou jurídicas, quer públicos” (A Constituição Brasileira 1988 - Interpretações, Forense Univr. , 1988, p. 107).

48. Miguel Reale explicita: “Uma norma jurídica não surge como arquétipo ou esquema ideal, mas como um modelo ou elemento integrante de um modelo de uma classe de ações exigida, permitida ou proibida pela sociedade, em virtude da opção feita por uma dada forma de comportamento. A regra do direito é, pelo visto, um esboço de ação, ou melhor, a indicação de um sentido que envolve sempre problemas concretos de interpretação, de correspondência necessária entre o seu enunciado e as conjunturas histórico-axiológicas.Em virtude dessa pretensão de eficácia ou de efetiva correspondência no seio do grupo - que completa a pretensão de justiça inerente a todo preceito jurídico autêntico - muitos autores reduzem a vigência à eficácia, consoante a conhecida afirmação de Max Ernst Mayer: “Validez ou vigência equivale a influência social, a eficácia”.Desse modo, “a medula de toda a legislação, considerada do ponto de vista da filosofia do direito”, passa a ser o reconhecimento de normas de cultura por uma sociedade organizada, notadamente por um Estado, e, a validez aparece como sendo “a forma psicológico-social do objetivamente justo” “ (Enciclopédia SARAIVA do Direito vol. 30, Saraiva, 1977, p. 183).

49. Ivan Barbosa Rigolin parece admitir a tese de que o artigo retrata uma situação de transição da Carta

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De início, o discurso:

“quando as respectivas despesas ultrapassarem”

é destinado especificamente aos governos na data de publicação da Constituição, a saber: 5 de outubro de 1988. Nesta data, os prazos para aprovação das leis orçamentárias das diversas esferas de poder da Federação, estavam em curso, mas aqueles de remessa dos projetos da lei orçamentária pelo Executivo, esgotados. E, de rigor, inúmeras entidades federativas tinham, nos seus orçamentos, percentual superior aos 65% para remuneração do pessoal.

Por outro lado, não haveria tempo de o Congresso produzir - como não produziu até hoje - a lei complementar para regulamentar os artigos 163 a 169 da Constituição Federal, estando recepcionada a legislação pretérita a reger a disciplina jurídica e procedimental das leis orçamentárias da União, Estados, D.F. e Municípios 50.

Ora, à evidência, o § único está voltado exclusivamente ao ano de 1988, por esse motivo tendo, o constituinte, ofertado prazo de 5 anos para que chegassem, as entidades federativas com descompasso, ao patamar de 65%.

O “quando exceder”, portanto, só pode ser referido ao próprio ano de 1988 e não a qualquer outro 51.

Magna e de que sua violação posterior corresponderia a ação fraudulenta: “Deve-se entender “receita corrente” na forma como descrita legalmente, e, também, que, diante da generalizante redação do art. 169 (e do art. 38 do ADCT), todas as esferas e entidades da Administração direta e indireta (estatais, fundações e autarquias), estão abrangidas pela disposição, não cabendo, parece-nos, diferenciar onde a Carta propositadamente generalizou. Tal enseja um grande trabalho de conciliação dos orçamentos, a cada exercício, das várias entidades da Administração direta e indireta o qual, se existir, fraudará a limitação constitucional de gastos com pessoal. Essa conciliação desde logo precisa ter início, sobremodo nas esferas em que o limite está sendo presentemente ultrapassado, com vista à final adequação no prazo dado pelo art. 38 do ADCT” (grifos meus) (O servidor público na Constituição de 1988, Saraiva, 1989, p. 213).

50. Reza o artigo 163 e o § 9º, incisos I e II do artigo 165 da Constituição Federal o seguinte:“Art. 163. Lei complementar disporá sobre: I. finanças públicas; II. dívida pública externa e interna, incluída a das autarquias, fundações e demais entidades controladas pelo Poder Público; III. concessão de garantias pelas entidades públicas; IV. emissão e resgate de títulos da dívida pública, V. fiscalização das instituições financeiras; VI operações de câmbio realizadas por órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; VII. compatibilização das funções das instituições oficiais de crédito da União, resguardadas as características e condições operacionais plenas das voltadas ao desenvolvimento regional.§ 9º. Cabe à lei complementar: I. dispor sobre o exercício financeiro, a vigência, os prazos, a elaboração e a organização do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e da lei orçamentária anual, II. estabelecer normas de gestão financeira e patrimonial da administração direta e indireta, bem como condições para a instituição e funcionamento de fundos”.

51. José Afonso da Silva lembra: “O princípio da quantificação dos créditos orçamentários, isto é, quantificação daquilo que o Executivo está autorizado a gastar, é de suma importância para a fiscalização e o controle por parte do Poder Legislativo. Ele está traduzido na regra que veda a concessão ou utilização de créditos ilimitados (art. 167, VII), que se completa com outras duas regras que proíbem: a) a realização de despesas ou a assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários; b) a realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta. Esta última regra tem, ademais, o sentido da boa administração orçamentária, que

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Raciocinar de forma contrária é o mesmo que admitir ser o artigo 38 rigorosamente inútil, na medida em que, permanentemente, os poderes públicos poderiam ultrapassar aquele limite para uma redução em cinco anos de suas despesas, sem sanção. O que vale dizer, o Poder Público poderia de 5 em 5 anos retornar a reincidir, ou todos os anos, programando, para os anos posteriores, uma redução que nunca haveria. É, de resto, o que o governo do Estado do Rio Grande do Sul projetou para 1990, ultrapassando em quase 10% o limite constitucional e, em vez de, no ano de 1991, programar a redução das despesas, objetiva elevar ainda mais o percentual 52.

Em homenagem à inteligência dos constituintes que não criaram uma garantia à sociedade, rigorosamente inútil, entendo eu que a única interpretação possível é a aplicação do § único do artigo 38 das Disposições Transitórias exclusivamente para os membros da Federação que, no ano de 1988, tivessem já remetido a proposta orçamentária em tramitação, nos prazos regulamentares, pelos respectivos Legislativos. E tal parágrafo é de nenhuma aplicação às leis de orçamentos de 1989, por tratar-se de hipótese inviável.

E, neste particular, parece-me também que as autoridades, que violaram tal garantia - criando, em decorrência de sua ação indevida, prejuízo à comunidade -, são responsabilizáveis, com seus próprios bens, por terem agido com culpa (negligência, imperícia, imprudência ou omissão) no aprovar ou remeter proposta orçamentária, que objetiva retirar do Poder Público capacidade de cumprir seus compromissos

não comporta operações de crédito para despesa de custeio, salvo as por antecipação da receita, que não é o caso” (Curso de Direito Constitucional Positivo, ob. cit., p. 621).

52. É o seguinte o quadro comparativo das despesas com pessoal que me foi submetido:

“COMPROMETIMENTO COM DESPESA DE PESSOAL E ENCARGOS EM RELAÇÃO À RECEITA PRÓPRIA LÍQUIDA

ORÇAMENTO REALIZADO1988 a 1990

Em Cr$ 1.000,00

Obs: A despesa de pessoal inclui administração direta e indireta (autarquia e fundações)”.

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para com a sociedade, a fim de atender inconstitucional remuneração, aos servidores públicos de ambas as administrações, agindo, pois, em causa própria.

Se o Poder Público deixar de cumprir suas obrigações pactuadas com a sociedade porque resolveu destinar os recursos comprometidos para remunerar seus servidores, além dos 65%, à evidência, estará causando, aos seus credores, prejuízo que poderá ser ressarcido por ação de indenização, com direito à ação de regresso do Estado contra todas as autoridades que participaram da violação constitucional.

É, de resto, o que dispõe o § 6º do artigo 37 da Constituição Federal, assim redigido:

“As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa” (grifos meus) 53.

No caso de terem sido aprovadas leis concedendo aumento superior a 65%, a forma que o Poder Público deverá adotar, a fim de evitar sua responsabilização, é pagar seus servidores até o limite de 65%, creditando proporcionalmente a favor deles o que exceder o limite dos 65%.

Desta forma, respeita-se a Constituição e os direitos que o governo outorgou a seus integrantes será exercido sempre que não afete o limite constitucional.

Na eventualidade de o Poder Público pretender violar a lei maior, três reações são viáveis.

A primeira delas seria o ingresso de ação direta de inconstitucionalidade junto ao S.T.F., por intermédio de Associação de Classe Nacional, Confederação ou Sindicato Nacional, com pedido liminar em face da urgência e relevância da matéria, conforme preceitua o artigo 103 da C.F. assim redigido:

“Podem propor ação de inconstitucionalidade:

..................

53. Caio Mário da Silva Pereira leciona: “O direito positivo brasileiro consagra a teoria do risco integral ou risco administrativo (Supremo Tribunal Federal, in RTJ, 55/50, TFR in Revista Forense, vol 268/2). O art. 37, § 6º da Constituição de 5 de outubro de 1988, repetindo a política legislativa adotada nas disposições constitucionais anteriores, estabelece o princípio da responsabilidade do Estado pelos danos que os seus agentes causem a terceiros. A pessoa jurídica de direito público responde sempre, uma vez que se estabeleça o nexo de causalidade entre o ato da Administração e o prejuízo sofrido (Revista dos Tribunais, vol 484, p. 68). Não há que cogitar se houve ou não culpa, para concluir pelo dever de reparação. A culpa ou dolo do agente somente é de se determinar para estabelecer a ação de in rem verso, da Administração contra o agente. Quer dizer: o Estado responde sempre perante a vítima, independentemente da culpa do servidor. Este, entretanto, responde perante o Estado, em se provando que procedeu culposa ou dolosamente. Não importa que o funcionário seja ou não graduado (Washington de Barros Monteiro, Curso, vol. 5, p. 108). O Estado responde pelo ato de qualquer servidor (Revista dos Tribunais, vol. 169/273, vol. 224/222, vols. 227/203, 230/123, 234/268, 238/172, 247/491, Revista Forense, vol. 146/230. O Dr. Edson Ribas Malachini sustenta a necessidade da denunciação da lide (Revista Forense, vol. 293, p. 43)” (Responsabilidade civil, 2ª ed , Forense, 1990, p. 142/143).

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IX. confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional” (grifos meus).

Uma associação civil e de âmbito nacional necessitaria demonstrar seu interesse real pela solução da pendência 54.

Outro caminho seria a ação popular.

Reza o inciso LXXIII do artigo 5º que:

“qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência” (grifos meus).

À evidência, a matéria que examinei diz respeito à moralidade pública e nada mais imoral do que os governantes violarem a Constituição para se auto-remunerarem acima dos limites permitidos, deixando de cumprir suas obrigações para com a sociedade 55.

54. Rogério Lauria Tucci e José Rogério Cruz e Tucci escrevem: “Por outro lado, sensível às ponderações dos especialistas e às novas exigências do direito processual, o legislador constituinte alargou consideravelmente a legitimação ativa para a ação em tela.Agora, consoante o art. 103, I a IX, podem ajuizá-la, além do Procurador-Geral da República (inc VI), único legitimado no regime constitucional anterior, o Presidente da República (inc. I), a Mesa do Senado Federal (inc. II), a Mesa da Câmara dos Deputados (inc. III), a Mesa de Assembléia Legislativa (inc. IV), o Governador de Estado (inc. V), o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (inc. VII), partido político com representação no Congresso Nacional (inc. VIII), e, ainda, confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional (inc. IX).Isto significa que, enquanto não editada lei ordinária para regulamentar a ação direta de declaração de inconstitucionalidade a de nº 4.337, de 1º de junho de 1964, encontra-se revogada no tocante à exclusividade outorgada ao Procurador-Geral da República.Note-se, ainda, que todos esses legitimados podem agir de modo espontâneo ou provocado, tendo, em ambas as hipóteses, pela disponibilidade de ação” (Constituição de 1988 e Processo, Saraiva, 1989, p. 106/107).

55. Pinto Ferreira ensina:“O texto constitucional vigente deu mais amplitude ao conteúdo e à finalidade da ação popular do que o direito constitucional anterior (1967). Estendeu a abrangência da ação popular àqueles casos da ação civil pública que constam da lei ordinária, porém que não eram referidos na lei fundamental. A ação popular (CF de 1969, art 153, § 31) estava assim prevista: “Qualquer cidadão será parte legítima para propor ação popular que vise a anular atos lesivos ao patrimônio de entidades públicas”. O texto atual da Constituição de 1988 (art 5º, LXXIII) mantém ainda tal legitimação ativa ao cidadão.A ação popular é o remédio jurídico-processual posto à disposição do cidadão para a tutela dos direitos difusos da coletividade, visando a anular os atos lesivos ao patrimônio público ou de entidades de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.A ação popular isenta o autor do pagamento de custas e do ônus de sucumbência, salvo motivo de comprovada má-fé.A ação popular só pode ser promovida pelo cidadão que disponha do título eleitoral. A privação dos direitos políticos do autor da ação popular, contudo, no decurso desta, não é obstáculo ao prosseguimento da ação (RT, 416:131)” (Comentários à Constituição Brasileira, 1º volume, Saraiva, 1989, p. 211/212).

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Por fim, restaria a ação ordinária de indenização por perdas e danos. As entidades que tiverem sido prejudicadas pela inadimplência governamental em função do desvio de seus recursos, de forma inconstitucional, para pagar o pessoal do governo, tendo por fulcro o art 37 § 6º da C.F., podem ingressar em juízo para tal pleito 56.

Isto posto, passo a responder as questões formuladas pela consulente:

1) A expressão pode ser traduzida para “receitas tributárias líquidas”. Há um conceito infra-constitucional “lato”, de receitas correntes, que é o do artigo 11 da Lei 4320/64 e um conceito constitucional restrito para efeitos de proteção à sociedade, que é aquele que apresento neste parecer 57.

2) Sim, pelos motivos retro-expostos.

3) A partir da promulgação da Constituição Federal, vedado para as leis orçamentárias aprovadas após 1988.

4) Não, pelos motivos retro-expostos.

5) Estariam obrigados desde 1988, isto é, a partir da lei orçamentária de 1989 a reverter o percentual para atingir, à base de 1/5 por ano, aquele de 65%.

6) A ação direta de inconstitucionalidade (art. 103 da C.F.), a ação popular (art. 5º, inc.LXXVIII) e a ação ordinária de perdas e danos por lesão causada, à luz do artigo 37 § 6º da C.F.

7) Padece de inconstitucionalidade pelos motivos atrás expostos.

8) Resposta idêntica àquela da resposta nº 7.

9) Aquelas enumeradas na resposta de nº 6.

10) Contra todas as autoridades subscritoras das leis violadoras, a saber: o chefe do

56. Hely Lopes Meirelles ensina:“Ação regressiva – A ação regressiva da Administração contra o causador direto do dano está instituída pelo § 6º, do art. 37, da Constituição da República, como mandamento a todas as entidades públicas e particulares prestadoras de serviços públicos, e quanto aos servidores da União, a Lei Federal 4.619, de 28/4/1965, impõe o seu ajuizamento pelo Procurador da República, dentro de sessenta dias da data em que transitar em julgado a condenação imposta à Fazenda (arts 1º e 2º), sob pena de incidir em falta funcional (art 3º). Para o êxito desta ação exigem-se dois requisitos: primeiro, que a Administração já tenha sido condenada a indenizar a vítima do dano sofrido; segundo, que comprove a culpa do funcionário no evento danoso. Enquanto para a Administração a responsabilidade independe da culpa, para o servidor a responsabilidade depende da culpa: aquela é objetiva, esta é subjetiva, e se apura pelos critérios gerais do Código Civil” (Direito Administrativo Brasileiro, 15ª ed., Ed Revista dos Tribunais, 1990, p. 557).

57. Está o artigo 11 da Lei 4320/64 assim redigido:

“A receita classificar-se-á nas seguintes categorias econômicas:receitas correntes e receitas de capital.§1º. São receitas correntes as receitas tributária, patrimonial, industrial e diversas e, ainda as provenientes de recursos financeiros recebidos de outras pessoas de direito público ou privado, quando destinadas a atender despesas classificáveis em despesas correntes” (grifos meus).

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Executivo e os integrantes da Assembléia Legislativa que votaram a favor da proposta.

11) Para a ação direta de inconstitucionalidade as pessoas elencadas no artigo 103 da C.F. Para a ação popular, qualquer cidadão. Para a ação ordinária a pessoa física ou jurídica lesada.

S.M.J.

São Paulo, 7 de Dezembro de 1990.

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3 - AUTO DE INFRAÇÃO LAVRADO CONTRA ESPECÍFICA ORIENTAÇÃO FISCAL – INSUSTENTABILIDADE DO LANÇAMENTO – O PERFIL DO ICMS PARA AS EMPRESAS PRODUTORAS DE VÍDEO, DISCOS E CASSETES – PARECER.

CONSULTA

A Consulente, por intermédio dos eminentes advogados Cláudio Borba Vita, Sonia Corrêa da Silva Almeida Prado, Marisa Vita Diomelli, Vera Lúcia de Oliveira Fernandes e Thyrso Borba Vita, expõe o seguinte:

“- (1) É tradicional empresa produtora de videos e decidiu, no ano de 1986, expandir suas atividades para a produção e comercialização de produtos fonográficos (discos e fitas cassetes), passando, assim, a exercer a qualidade de produtora fonográfica.

Para cumprir todas as etapas do processo de elaboração dos produtos fonográficos, a consulente teve em vista:

a) adquirir o direito de uso de marcas famosas e o catálogo de discos e fitas de empresa de renome nacional, integrado por diversas gravações fonográficas já realizadas por essa tradicional empresa gravadora. Na aquisição, caberia à consulente, por cessão de direitos da referida sociedade, subrogar-se nos direitos desta, relativos aos diversos contratos artísticos celebrados com os intérpretes (cantores) e músicos que protagonizaram cada gravação;

b) realizar o processo de produção dos fonogramas da seguinte maneira:

1) Gravação: No caso, como estava adquirindo um catálogo de gravações já realizadas pela retro-citada empresa, a consulente não teria de realizar essa etapa da produção. Mas, se desejasse realizá-la no futuro, quanto a novos fonogramas, contrataria a locação de um estúdio de terceiro, a exemplo do que fazem os produtores fonográficos que não possuem estúdio próprio;

2) Prensagem: A fabricação dos discos (prensagem) seria também realizada pela consulente através da contratação de um estabelecimento fabril, ainda aqui a exemplo de diversos outros produtores fonográficos que não possuem estabelecimento fabril próprio;

3) Distribuição: Os serviços de distribuição dos produtos, no mercado, seriam também realizados por terceiros, contratados pela consulente.

(2) Naturalmente, no exercício de sua nova atividade de produtora fonográfica, a

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consulente se tornaria responsável pelo pagamento de direitos autorais e artísticos (conexos), na forma da lei 5988/73, devidos a autores e intérpretes em decorrência da vendagem dos produtos fonográficos.

Em vista dessa circunstância, estaria a consulente habilitada a beneficiar-se do crédito outorgado de ICM, equivalente aos pagamentos feitos a título de direitos autorais, artísticos e conexos, nos termos do art. 44, III, alínea “a” do Regulamento do ICM (decreto 17.727/81).

(3) Procurando assegurar-se da licitude das operações que pretendia realizar, especialmente em razão da utilização do benefício fiscal acima referido – nisso incluída a dedução dos direitos autorais e conexos pagos, do ICM gerado pela saída não só de produtos fonográficos, mas, também, de outras mercadorias de sua fabricação -, a consulente dirigiu à Consultoria Tributária da Secretaria da Fazenda de São Paulo a consulta nº171/86, na qual:

a) expôs, com clareza, as operações que iria realizar e o modo como as executaria;

b) consultou a autoridade se poderia deduzir do débito do ICM de cada período, originado (a) quer pelas saídas de discos e fitas cassetes, (b) quer pela ocorrência de fato gerador relativo a outras mercadorias, o montante pago, no mesmo período por direitos autorais, artísticos e conexos, cumpridas as formalidades previstas na portaria CAT 47/81.

Em resposta à consulta, o Sr. Consultor Tributário Chefe assim se manifestou, em 05/06/86:

“o montante pago em cada período por direitos autorais, artísticos e conexos, lançado como crédito na sua escrita fiscal na forma da Portaria CAT 47/81, serve para abater débitos decorrentes tanto das saídas dos próprios discos e fitas cassetes quanto das saídas das demais mercadorias com que opera, visto que a legislação nenhuma vinculação faz entre o crédito e o débito que ele se vai opor”.

(4) Tendo em vista a resposta à consulta, a consulente passou a realizar as operações, nos exatos termos em que, acima, foi descrita.

(5) Contrariando, contudo, os termos da resposta da consultoria Tributária, a Secretaria da Fazenda, por ação da fiscalização, lavrou contra a consulente o auto de infração e imposição de multa nº 014643, de 20/04/89, impugnando a utilização dos créditos outorgados de ICM a que se refere o art. 44, III, “a” do decreto 17.727/81, sob o alegado fundamento de que a mesma havia simulado a sua condição de produtora fonográfica.

A partir daí, a Fazenda Estadual atribuiu à consulente a prática das seguintes irregularidades:

a) lançamento e utilização de créditos outorgados a que não tinha direito;

b) lançamento e utilização de créditos do imposto que não correspondem a entradas efetivas de mercadorias no seu estabelecimento;

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c) emissão de documentos fiscais que não correspondem a efetivas saídas de mercadorias do estabelecimento, aqui questionando o fato de que os produtos fonográficos não circularam fisicamente no seu estabelecimento.

É oportuno transcrever a fundamentação da autuação:

“O contribuinte, sem ser empresa produtora de discos fonográficos e outros materiais de gravação de som, aproveitou-se no período de outubro de 1986 a fevereiro de 1989, de Imposto de Circulação de Mercadorias – ICM - , a título de crédito previsto na alínea “a” do inc. III do art. 44 do RICM, Decr. 17.727/81, simulando para tanto a situação produtora fonográfica, mediante celebração de contratos com a renomada gravadora, uma distribuidora de discos e fitas e uma prestadora de serviços, todas do mesmo grupo econômico e que convivem em espaços comuns, dentro do mesmo prédio, na Capital; simulou ainda entradas de discos e fitas em seu estabelecimento, recebidos da gravadora e saídas dos mesmos para a distribuidora, sem que tenha ocorrido circulação física por seu estabelecimento; não adquiriu qualquer matéria prima, material secundário ou de embalagem relativos a discos e fitas; não possui qualquer estúdio fonográfico nem qualquer material de gravação, nem se relaciona diretamente com autores, artistas, músicos, etc.; não assume risco de qualquer ordem com a “produção fonográfica”; não tem qualquer marca de discos em seu nome; apenas acrescentou a “nova atividade”entre os seus verdadeiros objetivos sociais (...)”.

(6) Diante desses fatos, indaga a consulente:

1- É a consulente produtora fonográfica, à luz do artigo 4º, X, “a”, da lei 5988/73, inclusive para efeitos fiscais?

2- A qualidade da consulente, de produtora fonográfica, lhe assegura o exercício do benefício fiscal previsto no art. 44, III, “a” do RICM?

3- O fato de a consulente utilizar serviços de terceiros, no seu processo produtivo – fabricação (prensagem) e distribuição – descaracteriza a sua qualidade de produtora, autorizando a presunção de simulação invocada na autuação fiscal?

4- A efetiva circulação física dos bens – do estoque do fabricante para o do produtor e deste para o do distribuidor – seria necessária e relevante, para efeitos fiscais? Pode o produtor e encomendante das mercadorias determinar ao fabricante por encomenda que as transfira diretamente ao distribuidor, por conta e ordem do primeiro?

5- O fato de o fabricante e o distribuidor, que agem por conta

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e ordem do produtor, pertencerem eventualmente ao mesmo grupo econômico, é de alguma relevância? Induz a qualquer presunção de ilícito fiscal ou inibe a utilização, pelo produtor, dos créditos outorgados de ICM em questão?”

RESPOSTA

Mister se faz, ao principiar a responder a consulta formulada, tecer algumas perfunctórias considerações a respeito do perfil do ICMS no sistema tributário nacional, assim como sobre o núcleo da sua escultura no sistema anterior.

De rigor, a espinha dorsal do ICMS é a mesma do ICM, apenas alargada em seu espectro, por força da incorporação de cinco impostos federais da pretérita ordem (os impostos únicos sobre energia, combustíveis e minerais e os de serviços relativos a transportes e comunicações) 58.

Não há alteração sensível, na nova ordem, de sua conformação, tendo o artigo 155 da C.F. reproduzido inúmeros dispositivos da C.F. de 1967 com suas sucessivas emendas 59.

58. Escrevi: “A primeira delas diz respeito a não ser o ICMS um imposto típico da prestação de serviços, embora o seja de circulação de mercadorias.Já defendi, no passado, a tese de que não há prestação de serviços que não implique fornecimento de alguma mercadoria, ou fornecimento de mercadoria que não implique prestação de serviços. Um parecer jurídico datilografado é veiculado por folhas de papel, sendo clara prestação de serviços e não fornecimento de mercadoria (papel datilografado). Uma montadora de automóveis presta mais serviços (montando peças recebidas de terceiros) do que produz produtos, mas a venda de um automóvel não é prestação de serviços, mas fornecimento de mercadorias.Por esta razão, os impostos sobre circulação de produtos, mercadorias ou de serviços têm um núcleo comum indissociável, cabendo à lei determinar os casos em que, pela teoria da preponderância, a concepção de mercadoria fornecida prevalece sobre a prestação de serviços incluída ou os casos em que a hipótese é inversa.O contribuinte, todavia, apenas colocou, na órbita de ação do ICM, a prestação de serviços de transportes, excluindo o municipal e o de comunicações, mantendo os demais serviços na competência dos municípios.Por outro lado, agregou ao ICMS as operações de circulação de minerais, combustíveis e energia elétrica, em que pese a doutrina divergir se se estaria perante fornecimento de mercadorias ou prestação de serviços. Para o constituinte, fornecimento de energia é venda de mercadoria e não prestação de serviços.Desta forma, ficou alargada a competência dos Estados e Distrito Federal, na exigência do ICMS, como alargada ficou a participação dos Municípios na receita do ICMS, com o que a União passou a ser a grande prejudicada ao perder 5 impostos a favor dos primeiros”(Comentários à Constituição do Brasil, 6º volume, tomo I, Saraiva, 1990, p.353/354/355).

59. Paulo de Barros Carvalho ensina:“Podemos classificar as espécies do gênero “tributo”, na conformidade do grau de elaboração do critério espacial da respectiva hipótese de incidência:hipóteses cujo critério espacial faz alusão a determinado local para a ocorrência do fato típico;hipóteses em que o critério espacial menciona áreas específicas, de tal sorte que o acontecimento apenas

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Os estudos anteriores sobre o fato gerador do ICM são, por esta razão, perfeitamente atuais para a compreensão do tributo, exceções feitas a algumas características acrescidas ou esclarecidas no novo texto60.

O imposto continua como relativo à operação de circulação de mercadorias – e agora – à prestação de dois serviços, a saber: o de transportes, excluído o municipal, e o de comunicações.

O imposto não incide sobre a circulação da mercadoria, mas sobre as operações relativas a tal circulação, que, segundo dois importantes encontros (III Simpósio Nacional de Direito Tributário e 1º Congresso Brasileiro de Direito Tributário), pode ser de natureza econômica (transferência de titularidade da mercadoria e do estabelecimento), física (transferência do estabelecimento sem transferência de titularidade) e ficta (transferência de titularidade sem transferência do estabelecimento61.

ocorrerá se nelas estiver geograficamente contido;hipóteses de critério espacial bem genérico, onde todo e qualquer fato, que suceda sob o pálio da vigência territorial da lei instituidora, estará apto a desencadear seus efeitos peculiares.A hipótese do ICM se configura segundo a letra c.34ª) Critério espacial da hipótese e campo de eficácia da lei tributária são entidades jurídicas ontologicamente distintas. A coincidência, que por vezes ocorre, é algo ocasional, não podendo ser invocada para equiparar as duas categorias.35ª) Para a composição do critério espacial da hipótese do ICM, serviu-se o legislador, como regra geral, da “teoria da atividade” e, como exceção, da “teoria do resultado ou do efeito típico” (“Curso de Direito Tributário”, Saraiva, 1982, pgs. 314/315).

60. Entre elas Yoshiaki Ichihara acentua:“Colocou-se uma regra para afastar a questão do direito de crédito de operações isentas ou no caso de não incidência, ressaltando-se que sobre esta questão houve muita discussão e controvérsia, sob alegação de que a não permissão do crédito da operação isenta, anula a isenção anterior ou quebra o princípio da não cumulatividade. Sobre esta questão diz o artigo 155, § 2º, item II “a” e “b” que, salvo legislação determinando em contrário, no caso de isenção ou não incidência da operação anterior, não poderá ser creditado o ICMS, como se devido fosse e para compensar com o montante devido nas operações ou prestações seguintes. No caso de operação isenta ou não incidência, se houve crédito do ICMS destacado e devido na operação anterior, deverá se r estornado” (“Direito Tributário na Nova Constituição”, Atlas, 1989, pgs.141/142).

61. “A hipótese de incidência do ICM tem como aspecto material fato que implique na movimentação econômica ou jurídica, de bens identificados como mercadorias, da fonte de produção até o consumo.Em face do risco de poder interpretar-se que a resposta ao item 1 seria uma resposta pretendendo atingir apenas às Circulações Jurídicas, no sentido que lhes emprestaram suas primeiras discussões sobre a matéria e não ao que efetivamente foi deliberado, isto é, de que todas as circulações são jurídicas, pois se não fossem, delas a lei não poderia cuidar, podendo ser de 3 naturezas: (a) com a movimentação de mercadoria, sem movimentação de titularidade; b) com movimentação de mercadoria e de titularidade e c) sem movimentação de mercadoria, mas com movimentação de mercadoria, mas com movimentação de titularidade), decidiu o Plenário, sem prejuízo dessa colocação, para esclarecimento da linha de pensamento predominante em redação não conflitante com a resposta nº1, que: “A hipótese de incidência do ICM tem como aspecto material fato decorrente de iniciativa do contribuinte, que implique a movimentação econômica ou jurídica, de bens identificados como mercadorias, da fonte de produção até o consumo” (Caderno de Pesquisas Tributárias nº 4, CEEU/Resenha Tributária, 1979, p.647).

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Com pequena alteração semântica, a definição do segundo conclave ficou sendo:

“A hipótese de incidência do ICM tem como aspecto material fato decorrente de iniciativa do contribuinte, que implique movimentação ficta, física ou econômica, de bens identificados como mercadorias, da fonte de produção até o consumo”62.

É que a operação relativa à circulação de mercadorias não é a própria circulação, mas algo que a informa e deflagra. Na venda de uma mercadoria em armazéns gerais, há transferência de titularidade da mercadoria, por força de uma operação de compra e venda, que é relativa àquela mercadoria, o que implica circulação da titularidade, sem que a mercadoria tenha saído do lugar, podendo lá permanecer durante muito tempo após a operação. Nem por isto o ICMS deixa de incidir sobre a operação, devido sendo seu pagamento. Não é a circulação, portanto, da mercadoria, mas a operação a ela relativa que dá o perfil da incidência do ICMS, de resto, conforme definido na lei complementar (D.L. 406/68), única ainda em vigor, e não no inconstitucional Convênio 66/88, fulminado por mais de 200 professores universitários de direito tributário no XV Simpósio Nacional de Direito Tributário, na seguinte conclusão:

“4) Como conciliar os §§ 3º e 8º do artigo 34 das Disposições Transitórias? A exceção do § 8º estaria a indicar que o § 3º apenas cuidou da legislação ordinária? Ou não?

Resposta: Os §§ 3º e 8º contêm cada um matéria específica.

O § 3º permite a edição de leis ordinárias necessárias à aplicação do sistema tributário nacional.

O 8º trata da fixação, em conjunto pelos Estados, através de um único convênio, de normas gerais para regular provisoriamente

62. Para a ocasião propus a referida definição nos termos seguintes:“O conceito da hipótese de incidência do ICM: À luz de tudo o que até o presente expusemos, podemos formular nossa conceituação da hipótese de incidência do ICM, alterando, um pouco, a conclusão do III Simpósio Nacional de Direito Tributário do Centro de Estudos de Extensão Universitária.Em nossa definição, visamos, fundamentalmente, albergar as três descrições hospedadas pela exteriorização complementar da Carta Magna, isto é, de circulação:a) com movimentação de mercadoria sem movimentação de titularidade;b) com movimentação de mercadoria e com movimentação de titularidade.É a seguinte: “A hipótese de incidência do ICM tem como aspecto material fato decorrente de iniciativa do contribuinte, que implique movimentação ficta, física ou econômica, de bens identificados como mercadorias, da fonte de produção até o consumo”.Hamilton Dias de Souza foi o primeiro a defender a interpretação que agora adotamos, em seu “Ofato gerador do ICM e a participação dos municípios no produto da arrecadação do tributo” (Resenha Tributária/Centro de Estudos de Extensão Universitária, 1975)” (Comentários à Constituição do Brasil, 6º vol., tomo I, ob. cit. p.532).

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matéria referente ao ICMS, naquilo onde tais normas não existissem anteriormente ou não tivessem sido recebidas pela nova Constituição.

(A minoria entendeu que no § 3º pode ser qualquer lei e não apenas a ordinária)”.

Por outro lado, na remessa de mercadorias de um estabelecimento para o outro de uma mesma empresa, há uma operação destinada a consumo posterior, em que, embora não se verifique troca de titularidade, nem por isto deixa de incidir o ICMS, por força de se deflagrar, em um imposto de natureza não cumulativa, uma operação relativa à circulação física de mercadoria63.

Nas duas operações, a circulação existe, num caso, sem circulação da titularidade da mercadoria, e no outro caso, sem circulação física, apesar da circulação da titularidade. Por esta razão é que a doutrina configurou o tributo como incidente sobre a operação relativa à circulação e não sobre a circulação material da mercadoria.

Nos casos de circulação da mercadoria e da titularidade, à evidência, por ser a hipótese mais comum, a operação relativa incidida não oferta problemas exegéticos maiores, pois sobre ela polêmica jurídica não foi criada64.

Por fim, a respeito do acréscimo da nova ordem no que concerne à parte de serviços (transporte e comunicações) não me deterei, posto que a consulta não versa sobre tal matéria.

Pelo exposto, de início, já se percebe que a primeira das observações do auto de infração lavrado não tem a menos sustentação, visto que a circulação física não é elemento relevante para configurar o fato gerador do ICMS. Uso a expressão codificada “fato gerador”sem nenhum receio, por entender que nela se une o fato imponível e a

63. Hamilton Dias de Souza ensina: “Fixado o conceito de mercadoria, pode-se concluir que toda operação relativa à circulação (econômica ou jurídica) de bens identificáveis como mercadoria pode ser tributada. Tal colocação explica porque o ICM não incide no comodato, na venda esporádica de bens inservíveis, na transferência de material de consumo, de um para outro estabelecimento da mesma empresa, nas vendas ou transferências de bens do ativo fixo e na importação de bens para uso próprio. É que, em todas essas hipóteses, os bens não se destinam a ser vendidos e, em conseqüência, não são mercadorias. Inversamente, explica porque o ICM incide nas transferências de mercadorias de um para outro estabelecimento da mesma empresa, pois, no caso, verificam-se todos os requisitos para a incidência do tributo. Com efeito, se a mercadoria é transferida do estabelecimento fabril para o atacadista, ocorre uma etapa no processo circulatório ou mais explicitamente, um ato que faz o bem progredir, no ciclo da produção e no da comercialização, em direção ao consumo. Além disso, como tal bem destina-se a ser vendido, é mercadoria.Vale salientar que, sobretudo nas vendas ou transferências de bens do ativo fixo, fica caracterizado o conceito que esposamos, pois o ICM não incide, por não se tratar de mercadoria. Não interessa, para efeitos puramente jurídicos, que o bem tenha permanecido no imobilizado um único dia ou anos, O que importa é verificar se o bem foi adquirido para ser vendido, como objeto do negócio da empresa” (caderno de Pesquisas Tributárias nº3, CEEU/Resenha Tributária, 1978, p.245/246).

64. Sacha Calmon Navarro ensina: “É a realização de operações relativas à circulação de mercadorias e serviços de comunicações e transportes de natureza não estritamente municipais, por produtores, extratores, indústrias, comerciantes e prestadores. Se vendo meu carro e transporto-me ou as minhas coisas, não há fato gerador. O ICMS é imposto qualificado por relações jurídicas entre sujeitos econômicos” (Comentários à Constituição de 1988-Sistema Tributário, Forense, 1990, p.225).

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hipótese de imposição65.

De resto, o artigo já transcrito, que cuida da incidência das operações em armazéns gerais, pela afirmação do auto, seria inconstitucional, pois na hipótese mencionada não há qualquer circulação física da mercadoria, no momento da operação.

Um dos fundamentos do AI.. é, portanto, inconstitucional.

O 2º aspecto a destacar na consulta formulada diz respeito à conformação jurídica da consulente.

Perante as leis do direito comercial a transformação societária realizada foi correta e inatacável. Seguiu, por inteiro, as prescrições legais, obtendo dos registros comerciais a aprovação exigida pelo ordenamento jurídico, sem qualquer contestação.

A consulente é, pois, empresa regularmente inscrita na Junta Comercial de São Paulo e nas repartições fazendárias para produção de fonogramas, discos e fitas K-7, diretamente ou através de terceiros66.

Ora, rezam os artigos 109 e 110 do CTN que:

“Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários;

“Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, conceito e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas leis orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias”.

vedando possa o Poder Tributante alterar os conceitos, definições próprias do direito privado, facultando-lhe, no máximo, a oferta de efeitos de natureza tributária67.

65. O artigo 114 do CTN tem a seguinte dicção:“Fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência”.

66. O vocábulo “empresa”, embora menos técnico que “pessoa jurídica” e “sociedade”, hospeda a universabilidade do ente a que se refere, não apenas em seu aspecto formal, como naquele material. Por isto, eu a adoto.

67. Aliomar Baleeiro ensina: “Combinado com o art. 109, o art. 110 faz prevalecer o império do Direito Privado – Civil ou Comercial – quanto à definição, conteúdo e ao alcance dos institutos, conceitos e formas daquele direito, sem prejuízo de o Direito Tributário modificar-lhes os efeitos fiscais. Por exemplo, a solidariedade, a compensação, o pagamento, a mora, a quitação, a consignação, a remissão etc., podem ter efeitos tributários diversos. A quitação fiscal, p.ex., é dada sob ressalva implícita de revisão do crédito fiscal (cfr. CTN, art. 158).Para maior clareza da regra interpretativa, o CTN declara que a inalterabilidade das definições, conteúdo e alcance dos institutos, conceitos e formas de Direito Privado é estabelecida para resguardá-los no que interessa à competência tributária. O texto acotovela o pleonasmo para dizer que as “definições”e limites dessa competência, quando estatuídos à luz do Direito Privado, serão as deste, nem mais nem menos” (Direito Tributário Brasileiro, 10ª ed., Forense, 1981, p.444/445).

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A lei tributária não pode declarar que uma locação é idêntica ao comodato, mas pode criar uma imposição fiscal sobre a locação, nos termos da Constituição. Não tem, pois, o condão de alterar a natureza jurídica dos institutos privados, mas pode oferendar-lhe o tratamento impositivo que a Constituição permitir.

À evidência, o auto de infração que me foi submetido, violenta, por inteiro, a prescrição legislativa superior e condicionante da legislação infra-complementar, visto que pretende tratar como se simulação fosse operação contratada com terceiros para produção de discos, fitas e fonogramas, sem que nela haja qualquer aspecto oculto68.

A dinamicidade do direito privado, em face dos desafios da economia moderna é, simplesmente, fulminada pelos agentes fiscais autuantes, sob a alegação de que é simulação o que a lei privada admite e estimula.

Durante muitos anos o conhecido vinho “Chateau Duvalier” foi produzido para a Martini & Rossi por outra empresa, que possuía condições para fazê-lo, nunca se tendo posto em dúvida que o vinho pertencia à Martini & Rossi e não à empresa manufatureira. E são inúmeros os exemplos da produção de terceiros para as empresas que detêm o direito à produção e que buscam na sua contratação a forma de produzir os produtos compreendidos em seu objeto social.

A postura dos dignos agentes fiscais, portanto, não se sustenta à luz do direito privado, em face da inequívoca violação aos arts. 109 e 110 do CTN. Altera, por interpretação própria, a clareza dos dispositivos, negando possa a consulente ter o perfil da indústria, que possui, à luz rigorosa das disposições pertinentes ao direito comercial69.

Há, ainda, a considerar nesta matéria a expressão “simulação” usada pela Fiscalização Estadual.

A figura apenas poderia ser tratada, à luz da teoria superativa da pessoa jurídica, ou seja, a forma aceita pelo direito privado esconderia solução não admitida pelo direito tributário.

A teoria da desconsideração pode ser examinada sob um duplo grau exegético, a

68. Custódio da Piedade Ubaldino Miranda preleciona:“Na esteira de Kohler, notáveis autores italianos (Pugliatti, Romano, Distaso) e até mesmo a doutrina francesa (Michel Dagot) vêm enveredando pela construção unitária de fenômeno simulatório. Com efeito, a simulação é um procedimento complexo a que as partes recorrem para a criação de uma aparência enganadora. Nesse procedimento, mediante uma só intenção, as partes emitem duas declarações: uma destinada a permanecer secreta e a outra com o fim de ser projetada para o conhecimento de terceiros, i.e., do público em geral. A declaração destinada a permanecer secreta, também chamada contradeclaração ou ressalva, constata a realidade subsistente entre oas simuladores” (Enciclopédia SARAIVA do Direito, vol. 69, Saraiva, 1977, p.86).

69. Edda Gonçalves Maffei esclarece o conteúdo do artigo 110 ao dizer:“De fato, pareceu-nos que a preocupação do legislador se volta muito mais para legislativos d a União, Estado e Municípios do que propriamente para a lei complementar. Todavia a finalidade de restrição já fora de certa forma atingida com a supressão de competências dos Estados para criar imposto sobre “negócios de sua economia ou atos regulares por lei estadual”.A lei tributária não pode definir como imóvel um bem móvel, visando a incidência do imposto que recai sobre o primeiro, ou definir como “serviço” atividade de “venda”” (Curso de Direito Tributário, Saraiva, 1982, p.85).

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saber: o da imputação normativa e o da formulação pretoriana70.

Pelo primeiro, a lei deve determinar os casos em que a forma adotada deve ser desconsiderada para a imposição da forma desejada. O caso da distribuição disfarçada de lucros do imposto sobre a renda é hipótese típica. Uma operação de compra e venda pode ser desconsiderada para adoção da forma distributivista de lucros, por força de expressa determinação legal.

Na formulação jurisprudencial, cabe ao julgador determinar a hipótese em que se afasta a pessoa jurídica ou o ato praticado para adoção da solução jurídica desejada pelas partes, mas oculto nas aparências de forma legal diversa71.

O direito privado hospeda as duas conformações. O direito tributário, não, posto que os princípios da tipicidade fechada, da estrita legalidade e da reserva absoluta da lei formal o impedem72.

Admitir que a jurisprudência possa conformar solução superativa em direito tributário é admitir que a jurisprudência possa ir além da lei, dando ao tipo fiscal uma escultura

70. Escrevi: “Embora sejam muitas as facetas da teoria da desconsideração da pessoa jurídica, no direito comparado, no Brasil restringe-se sua discussão a duas grandes vertentes, ou seja à teoria extensiva e à teoria limitativa.Pela primeira, sempre que os atos praticados, por intermédio da pessoa jurídica, refugirem aos limites de sua personificação, tais atos não seriam inválidos, mas ineficazes para aquela forma, embora ganhando eficácia atributiva a outra conformação jurídica. O superamento da pessoa jurídica decorreria de sua inadequação no receber a forma pretendida pelas partes, forma esta incapaz de tirar a validade jurídica do negócio acordado, mas recebendo tais atos jurídicos outro tratamento jurisprudencial ou legislativo.Pela teoria limitativa, a desconsideração seria necessariamente formulação jurisprudencial, visto que a previsão legal da hipótese desconsiderativa já representaria tratamento legislativo pertinente, razão pela qual não hospedaria a teoria da desconsideração, mas apenas uma singela teoria de imputação dos efeitos legais aos atos normados.As duas correntes possuem, no Brasil, adeptos de escol, quase sempre, em sua versão privativista, ou seja, naquela em que a lacuna legal é preenchida pelo fenômeno superativo ou a previsão legal já lhe dá tratamento pertinente.O aspecto de interesse, todavia, é que a desconsideração da pessoa jurídica prevê a utilização da personificação e forma inadequada. Os atos são praticados pela sociedade, mas nela não têm os reflexos pretendidos, embora válidos, pois superam a conformação legal de suas virtualidades” (Direito Público e Empresarial, Cejup, 1988, p.61/62)

71. Arndt Raupach, na sua obra sobre a desconsideração no Direito Tributário (“Der Durchgriff im Steuerrecht”, Munique, C.H. Beckshe Verlagsbuchhandlung, 1968) escreve sobre as quatro situações jurídicas em que a “Durchgriff” pode ser aplicável: “a) quando há norma legal expressa, que permite o “Durchgriff” em determinadas situações fáticas;b) quando a interpretação da norma legal torna necessário identificar a pessoa jurídica com seus sócios pessoas físicas (por exemplo, quando se trata de normas relativas a características de pessoas naturais, como raça, nacionalidade etc.);c) quando a consideração econômica leva à aplicação do “Durchgriff”;d) quando o “Durchgriff”é necessário para evitar a violação de norma legal que proíbe a evasão de tributo” (p.194 – tradução Henry Tilbery)

72. Henry Tilbery fulmina a possibilidade da aplicação da teoria desconsiderativa por elaboração jurisprudencial, ao dizer: “Manifestamos nossa opinião categórica de que, dentro do princípio da estrita legalidade tributária, a doutrina alienígena da desconsideração da pessoa jurídica não pode ser aplicada no direito tributário brasileiro sem base em norma legal” (Imposto de Renda sobre Pessoas Jurídicas – Integração entre sociedade e sócios, Atlas, 1985, p.96)

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elástica, ao princípio da legalidade uma conformação flexível e à reserva de lei um desenho relativo e não absoluto.

Por esta razão, as hipóteses legais devem estar por inteiro plasmadas no texto legislativo, por força do princípio da legalidade que, esculpido no inciso II do artigo 5º da C.F., tem expressa repetição do artigo 150, inciso I. Em outras palavras, à legalidade lata do primeiro dispositivo, acrescenta-se a legalidade estrita do segundo73.

Ora, a desconsideração pretendida pelos dignos agentes fiscais não é prevista em lei, como o caso da DDL, não podendo, pois, ser elencada para superar a forma legal escolhida pela consulente, rigorosamente correta, pois admitida por todos os registros comerciais e fiscais, sem qualquer contestação.

A própria simulação implica ato doloso, intencional e como é usual em direito, o dolo, a fraude não podem ser presumidos, mas devem ser provados. Não pode a digna fiscalização transferir o ônus da prova para o contribuinte, para que este faça uma prova negativa de que não pretendeu intencionalmente produzir lesão ao Erário.

Ora, tal ônus, que é exclusivo de quem alega, não é transferível74.

73. Estão os dois dispositivos assim redigidos:“Art. 5º ...II. ninguém ser’obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”;“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:I. exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça”.

74. A intransferibilidade do ônus da prova está inclusive plasmada no artigo 142 do CTN assim redigido: “Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível (grifos meus).§ único. A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional”, sobre o qual já me manifestei: “Ora, todos os quatro aspectos devem ser aferidos privativamente pela autoridade administrativa, sem transferência de funções, posto que o advérbio utilizado pelo legislador não permite transigências, O que é privativo não é transferível, delegável, renunciável. Desta forma, o perfil do crédito tributário constituído pelo lançamento, que reproduz o perfil da obrigação tributária, só pode ser delineado para o universo administrativo, pela autoridade competente.Tem-se nos processos fiscais, por incorreta percepção de costumes fiscais anteriores ao advento do CTN, entendido que o ônus da prova cabe sempre ao sujeito passivo da obrigação tributária e nunca ao sujeito ativo. Por essa linha de pensamento, tudo pode o Fisco alegar na elaboração do auto de infração, cabendo ao contribuinte ou responsável – muitas vezes obrigado a produzir a impossível prova negativa – o encargo de destruir a alegação.Por força de inércia, por conveniências exegéticas, pelas limitações pertinentes ao processo revisional de lançamento, que é o “contencioso administrativo” no país e pelo receio e custos que a discussão judicial da pendência tributária acarreta, a ultrapassada tradição tem sido mantida, não se apercebendo a maioria dos intérpretes que, desde o surgimento do CTN, é ela incompatível com a norma geral do lançamento. O art. 142 fulminou-a. Inverteu o princípio. Obrigou o sujeito ativo a , privativamente, tudo providenciar, sem ter, inclusive, “a cessão” de transferir encargos e funções.Ora, os quatro aspectos mencionados pelo art. 142 do CTN são de exclusiva responsabilidade dos sujeito ativo da relação tributária. E de mais ninguém. Vale dizer, deve determinar, de forma clara e nítida, respeitados os princípios da estrita legalidade, tipicidade fechada e reserva absoluta da lei formal, o sujeito ativo, quando, como e onde ocorreu o fato gerador da obrigação tributária:

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E mais do que isto, quem age dolosamente não segue a orientação do Fisco, mas a sua própria.

Ora, não só consultou, a consulente, o Fisco sobre a operação ora contestada, como, mais do que isto, obteve resposta de como proceder e procedeu nos exatos termos do indicado pela Consultoria Tributária da Secretaria da Fazenda75.

Onde, pois, o dolo ou mesmo culpa por parte da consulente?

Os elementos que me foram submetidos demonstram que não só a teoria da desconsideração é inaplicável à hipótese, não tendo havido qualquer espécie de simulação, como não houve dolo, má fé ou culpa por parte da consulente em agir como agiu, dentro da lei, seguindo, rigorosamente, a orientação oficial. À evidência, não me manifesto neste parecer sobre a hipótese inversa de estarem agindo os srs. agentes fiscais de forma dolosa, ao rejeitarem a orientação oficial e pretenderem turvar a imagem da consulente, visto que não foi objeto da consulta e não tenho elementos para julgar da intenção dos agentes. Ao final, todavia, tecerei rápidos comentários a respeito da responsabilidade destes agentes, à luz do artigo 37, § 6º da C.F.76.

qual a sua base de cálculo;qual o montante do tributo;qual o sujeito passivo.No concernente à base de cálculo, a clareza é inequívoca. Compete ao sujeito ativo a determinação da base de cálculo, ou seja, da matéria tributável. Determinar quer dizer conformar por inteiro. Definir. Não permitir dúvidas, Espancar generalidades. Afastar zonas cinzentas. Determinar é dar o perfil completo, o desenho absoluto, nítido, claro, cristalino, límpido. E tal determinação tem que ser apresentada pelo sujeito ativo, no lançamento, e não pelo sujeito passivo” (Direito Econômico e Empresarial, CEJUP, 1986, p.96/97).

75. P.R. Tavares Paes escreve sobre o artigo 138 do CTN:“Ocorre a exclusão da responsabilidade do contribuinte ou responsável pela denúncia espontânea, sendo esta acompanhada, se cabível, do pagamento do tributo em débito e dos juros de mora.A denúncia espontânea elisiva da responsabilidade deve ser prévia a qualquer procedimento administrativo ou fiscalização concernente. Se houver necessidade de apuração do quantum debeatur do tributo, deve haver um arbitramento pela autoridade administrativa para o depósito elisivo, no caso” (Comentários ao Código Tributário Nacional, 3ª ed., Saraiva, 1986, p.147).

76. Hely Lopes Meirelles sobre o § 6º do artigo 37 escreveu: “O exame desse dispositivo revela que o constituinte estabeleceu para todas as entidades estatais e seus desmembramentos administrativos a obrigação de indenizar o dano causado a terceiros por seus servidores, independentemente da prova de culpa no cometimento da lesão. Firmou, assim, o princípio objetivo da responsabilidade sem culpa pela atuação lesiva dos agentes públicos. Em edições anteriores, influenciados pela letra de norma constitucional, entendemos excluídas da aplicação desse princípio as pessoas físicas e as pessoas jurídicas, que exerçam funções públicas delegadas, sob a forma de entidades paraestatais, ou de empresas concessionárias ou permissionárias de serviços públicos. Todavia, evoluímos no sentido de que também estas respondem objetivamente pelos danos que seus empregados, nessa qualidade, causarem a terceiros, pois, como dissemos precedentemente (Cap. II, item I), não é justo e jurídico que a só transferência da execução de uma obra ou de um serviço originariamente público a particular descaracterize a sua intrínseca natureza estatal e libere o executor privado das responsabilidades que teria o Poder Público se o executasse diretamente, criando maiores ônus de prova ao lesado.A Constituição atual usou acertadamente o vocábulo agente, no sentido genérico de servidor público, abrangendo, para fins de responsabilidade civil, todas as pessoas incumbidas da realização de algum serviço público, em caráter permanente ou transitório. O essencial é que o agente da Administração haja praticado o ato ou a omissão administrativa no exercício de suas atribuições ou a pretexto de exercê-las. Para a vítima é indiferente o título pelo qual o causador direto do dano esteja vinculado à Administração; o necessário é que se encontre a serviço do Poder Público, embora atue fora ou além de sua competência

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No caso, todavia, parece-me absolutamente afastada a hipótese da teoria superativa das formas jurídicas, pois inaplicável, sem expresso texto legal, ao direito tributário77.

E passo, agora, a examinar, antes de responder à consulta, a vinculação do Erário Estadual à resposta ofertada à consulente.

A empresa, na consulta formulada, segundo o próprio resumo do consultor tributário chefe, expôs, sem qualquer ocultação, a razão de ser da mesma:

“Diz a consulente que “deseja expandir suas atividades, passando a produzir fonogramas, discos e fitas K-7”, função que passará a constar de seus objetivos sociais; que “por não dispor de parque industrial apropriado, tais discos e fitas serão fabricados por uma das várias fábricas localizadas no Estado e faturados contra a consulente, que providenciará a distribuição para uma ou mais distribuidoras”. Completa sua exposição dizendo que “pela produção de discos e fitas pagará direitos autorais e artísticos”, conclui que tem direito ao crédito fiscal outorgado de que trata o artigo 44, inciso III, alínea “a”, do Regulamento do ICM e termina por perguntar: “A consulente poderá deduzir do débito do ICM de cada período, quer pelas saídas dos discos e fitas k-7, quer pela ocorrência de fato gerador relativo às outras mercadorias com que opera, o montante pago no mesmo período por direitos autorais, artísticos e conexos, cumpridas as formalidades previstas na Portaria CAT 47/81?”(grifos meus) (consulta nº 171/86, p.1)78.

A resposta do eminente consultor, Dr. Cássio Lopes da Silva Filho, não poderia ser mais eloqüente:

“Vê-se, de plano, que, referindo-se a empresas produtoras de discos e afins, a norma se limita às empresas que dêem saída de seus produtos, conceito que, entendemos, pode abranger, além daqueles fisicamente elaborados nas instalações fabris do contribuinte beneficiado, também aqueles produtos cuja produção industrial seja por ele promovida, desde que sejam seus – comprovadamente – pelo menos, a conta e o risco comerciais da produção, os direitos de fabricação e venda do produto e a marca e outras propriedades industriais e comerciais, ou o direito a seu uso. Isto quanto ao produto”(p.2)

Nela já se admite que:

administrativa” (Direito Administrativo Brasileiro, 15ª ed., Ed. Revista dos Tribunais, 1990, p.551).

77. Foi, de resto, a tese de Marçal Justen Filho ao conquistar a cátedra de Direito Comercial da Universidade Federal do Paraná.

78. O artigo 161, § 2º, do CTN tem a seguinte dicção:“O disposto neste artigo não se aplica na pendência de consulta formulada pelo devedor dentro do prazo legal par apagamento do crédito”.

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a) a circulação física pelo estabelecimento da consulente é despicienda, visto que a norma a que se refere o consultor aplica-se aos “produtos cuja produção industrial seja por ela promovida (fora de suas instalações);

e

b) exige-se que a produção seja promovida “por conta e risco comerciais da produção, desde que sejam sem os direitos comerciais de fabricação e venda do produto e a marca e outras propriedades industriais e comerciais;

ou

c) sejam seus os direitos de uso79.

Ora, o auto de infração afasta o fundamento da resposta, visto que:

a) não reconhece a produção fora dos estabelecimentos da consulente;

b) não reconhece o direito de uso das marcas famosas,

com o que trilha caminho oposto, por inteiro, à orientação oficial recebida pela consulente. Só por este fundamento o auto já não se sustentaria.

Ocorre, todavia, que o auto de infração não poderia ter sido lavrado, mesmo que a orientação dos senhores fiscais fosse correta e não a do consultor tributário chefe – o que se admite apenas para argumentar -, visto que o que até aqui escrevi está a demonstrar, sobejamente, não ter a digna fiscalização qualquer apoio jurídico em sua pretensão.

Com efeito, reza o artigo 146 do CTN que:

“A modificação introduzida, de ofício ou em conseqüência de decisão administrativa ou judicial nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto ao fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução”80.

79. Washington de Barros Monteiro ensina:“Uso é usufruto restrito e, como este, ostenta as mesmas características: a) direito real, porque incide diretamente sobre a coisa; b) direito temporário; c) desmembramento da propriedade” (Enciclopédia SARAIVA do Direito, vol. 76, Saraiva, 1977, p.113/114).

80. Américo Masset Lacombe sobre o artigo 146 ensina:“Confirma este artigo o princípio geral da imutabilidade do lançamento. Se houver mudança na valoração jurídica dos dados ou elementos de fato que informam a autoridade administrativa no exercício da atividade do lançamento, tal mudança só poderá ser considerada quanto a fatos geradores ocorridos após a introdução desta modificação. Assim, se a administração mudar uma determinada orientação em virtude de decisão judicial tal modificação só se aplicará a lançamentos futuros não podendo de forma

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Ora, a nova interpretação do Fisco Estadual implicaria alteração de critério e, por força do CTN, apenas poderia ser aplicada a partir de sua visita à consulente e nunca a fatos geradores pretéritos

O auto de infração, à evidência, estaria violentando a clareza do artigo 146 que não permite tal tipo de mudança de critério com efeito retroativo81.

Por mais este aspecto não se sustenta o auto de infração.

No auto de infração, acrescenta a digna fiscalização que os direitos autorais não poderiam gerar estímulos fiscais, à falta de contacto da consulente com os autores, afirmação que também não procede, posto que os pagamentos, pelo direito de uso, eram feitos nos exatos termos da resposta à consulta, a saber:

“No que tange aos direitos autorais, artísticos ou conexos, evidencia-se no texto legal a condição de que as importâncias a esse título passíveis de abatimento na apuração do ICM são aqueles dispendidos pela empresa em seu nome e por obrigação jurídica própria em relação aos beneficiários citados no artigo 44 e a eles ou às entidades que os representantes diretamente pagos”(p.2).

Não merece, por outro lado, melhor sorte e observação de que não prevalecem os créditos concedidos, por força do artigo 44, III, “a “do RICM (correspondente ao artigo 2º da L.C. nº 4/69), assim redigido:

“Constituem, também, crédito do imposto, efetuado o aproveitamento (Lei 440/74, art. 31):

...

III. no período em que ocorrer o pagamento dos direitos ou dos serviços:

a) para as empresas produtoras de discos fonográficos e de outros materiais de gravação de som, no mesmo período em que ocorrer

alguma introduzir modificações, sejam elas benéficas ou não ao contribuinte, em lançamentos completos, perfeitos e acabados, uma vez que nestes já está completa toda a estrutura da relação obrigacional com a constituição tanto do debitum (shuld, obrigação tributária, relação de débito) quanto da obligatio (haftung, crédito tributário, relação de responsabilidade)” (Comentários ao Código Tributário Nacional, vol. 2, Bushatsky, 1976, p.175).

81. Aliomar Baleeiro sobre o artigo 146 ensina:“Nesses casos, em se tratando de normas relativas ao lançamento, a inovação só se aplicará ao mesmo contribuinte se ocorrer fato gerador posteriormente à modificação. Sobrevivem as situações constituídas anteriormente e que são definitivas.No Agravo Instr. nº 29.603-RGS., 18.6.85, RTJ, 34/542, o STF, 2ª T., decidira já que a mudança de critério ou orientação da autoridade fiscal não pode prejudicar o contribuinte, que agiu de acordo com o critério anterior, predominante ao tempo da tributação. O mesmo no R.E 69.426-RS, de 31.3.70, rel. B. Monteiro.E no R.E nº 68.253-Prn., 1ª. Turma, 1969, rel. R.B. Monteiro, o STF decidiu que havia coisa julgada administrativa, na decisão do Conselho de Contribuintes, que em resposta à consulta, declarara não caber o tributo (Caso da Distribuidora da Loteria do Paraná versus União). Aplica-se ao adicional por tempo limitado o regime do imposto ao qual ele foi acrescido (R.E 68.142, de 9.12.69, rel. Gallotti” (Direito Tributário Brasileiro, 10ª ed., Forense, p.510).

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o pagamento, o valor dos direitos autorais, artísticos e conexos, comprovadamente pagos pela empresa aos autores e artistas nacionais ou domiciliados no país, assim como aos seus herdeiros e sucessores, mesmo por intermédio de entidades que os representem na forma estabelecida pela Secretaria da Fazenda (L.C. Federal 4/69, art. 2º)”.

visto que é a própria resposta à consulta formulada pela consulente à Secretaria da Fazenda, que explicita a aplicação do princípio constitucional da não cumulatividade, ao dizer:

“Esclarecidas, assim, as premissas que, face às disposições legais, condicionam a fruição do crédito outorgado no caso ora em exame, informamos, em resposta à indagação específica da consulente, que o montante pago em cada período por direitos autorais, artísticos e conexos, lançado como crédito na sua escrita fiscal na forma da Portaria CAT 47/81, serve para abater débitos decorrentes tanto das saídas dos próprios discos e fitas k-7 quanto das saídas das demais mercadorias com que opera, visto que a legislação nenhuma vinculação faz entre o crédito e o débito que a ele se vai opor”(grifos meus) (p.3).

O sistema brasileiro do valor agregado – muitos contestam que tenha sido este o sistema albergado pela Constituição – faz-se pelo mecanismo “tax on tax” e não pelo do “basis on basis”, compensando-se o crédito escritural de um período com o imposto devido para idêntica fração de tempo. E a compensação se faz pela totalidade dos créditos e não de operação para operação, como, de resto, determina o artigo 155, § 2º, inciso I da C.F.:

“§ 2º. O imposto previsto no inciso I, b, atenderá ao seguinte:

I. será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal”82.

82. Comentei-o da seguinte forma:“A não cumulatividade do ICMS corresponde à teoria do valor agregado com adaptação ao direito pátrio. Como já se viu, no concernente ao IPI, a eliminação do efeito “cascata” dá-se por força da adoção de uma das 3 formas de compensação das incidências anteriores, a saber: a do sistema de imposto sobre imposto, a de base sobre base e aquele de apuração periódica.O Brasil optou pela apuração periódica, pela qual o imposto é compensado, com crédito na entrada, daquele imposto devido quando da saída da mercadoria, conforme as hipóteses legais, independentemente de ter sido a matéria prima utilizada ou a mercadoria revendida. Periodicamente, apura-se o imposto devido na entrada das mercadorias e aquele correspondente à saída e determina-se, a partir dessa operação, a obrigação de pagar ou aquela de se manter um crédito para o futuro, por haver mais créditos pelas entradas que pelas mercadorias saídas.Continua o constituinte a incidir na mesma terminologia incorreta do texto anterior. A compensação não se dá por força do imposto cobrado na operação anterior, mas do imposto incidente. O imposto poderá nunca ser cobrado, mas gerará direito a crédito, posto que a incidência é aquela determinadora do crédito, como bem já decidiu o Supremo Tribunal Federal nas questões que lhe foram levadas ou como já

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Ora, o auto de infração objetiva eliminar o sistema do “tax on tax”pelo da “basis on basis”e, neste intento, adota a destinação operacional, com o que apenas nas operações do mesmo gênero os créditos poderiam ser aproveitados!!!83

Por todo o exposto, verifica-se a falta de sustentação absoluta ao auto de infração lavrado contra a evidência dos fatos, em franco desrespeito à Constituição – e legislação complementar – e em inaceitável afronta à orientação oficial emanada de órgão superiormente especializado em esclarecer os contribuintes. Em face do prejuízo que a consulente já passou a ter por força do lançamento em questão, justifica-se a aplicação das sanções do artigo 37, § 6º, inclusive em nível do direito de regresso do Estado contra os funcionários causadores do dano que haverá de suportar, no momento em que a exação for derrubada, administrativa ou judicialmente.

Está, de resto, o artigo 37, § 6º, assim redigido:

“As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras

demonstrei em parecer sobre a matéria.O aspecto novo do princípio da não cumulatividade é o alargamento do espectro impositivo do ICMS, ao abranger os impostos únicos que pertenciam à União e os de serviços de transportes e comunicações.A não cumulatividade, à evidência, abrange todas as operações de circulação de mercadorias e de serviços, de tal forma que o crédito correspondente fica assegurado, mesmo que, na prestação de serviços, retenha o ICMS compensado contra operação de saída de mercadoria.De resto, era este o único aspecto que foram os governantes autorizados a produzir, com base no § 8º do artigo 34 das Disposições Transitórias da Constituição Federal. Os governantes poderiam apenas produzir no “vácuo legislativo”, isto é, na parte não regrada por lei complementar do ICMS, ou seja, naquela sua parte alongada. A lei complementar seria provisória e promulgada de uma única vez, pois o constituinte autorizou a produzirem um único convênio.Infelizmente, um verdadeiro processo de desidratação legislativa tomou conta dos senhores governadores de Estado e de seus Secretários da Fazenda. Não produziram apenas um convênio, conforme a lei maior determinava, mas invadiram competência que não possuíam e passaram a alterar o Código Tributário Nacional por convênios. Hoje ultrapassam a casa de uma centena, provocando, simultaneamente, a confusão entre os contribuintes, o aumento de carga tributária inflacionária (os impostos indiretos quando aumentado sempre geram inflação) e o desrespeito permanente ao texto constitucional, que deveriam respeitar” (Comentários à Constituição do Brasil, 6º volume, tomo I, Saraiva, 1990, p.396/397/398/399).

83. José Carlos de Souza Costa Neves ensina:“Com relação aos impostos não cumulativos, três formas de cálculo do imposto a recolher são conhecidos: o sistema “base sobre base”, o sistema “imposto sobre imposto” e o sistema que toma o valor acrescido em dada operação (lucro líquido + depreciações + despesas etc) e sobre este aplica a alíquota. O sistema “base sobre base”e o “imposto sobre imposto” não se equivalem, porque no sistema “imposto sobre imposto” qualquer variação de alíquota, ou a concessão de isenções, em etapa intermediária do processo de circulação de mercadoria, irá provocar maior arrecadação final para o Erário, com repercussão, para maior, no valor da operação de venda para consumidor final, em decorrência do chamado “efeito de recuperação”. Tal efeito somente não se manifesta se a variação de alíquota ou a concessão de isenção recair sobre a primeira operação (ou primeiras, sucessivas) do ciclo, ou sobre a última (ou últimas, também sucessivas).No sistema “base sobre base”, isto não ocorre. Qualquer redução de alíquota ou favor fiscal, em qualquer fase do ciclo, beneficia o consumidor final.Este último sistema, entretanto, não é utilizado pelas dificuldades encontradas para determinar-se a cada momento de incidência, o valor acrescido, que é, em essência, a base de cálculo.O sistema mais utilizado, já se vê, é o do “imposto sobre imposto”, adotado no Brasil, com algumas modificações, que nos permitem afirmar que o nosso sistema de cálculo do montante do tributo devido é de uma terceira espécie, de apuração periódica” (Comentários ao Código Tributário Nacional, volume 5, IBET/Resenha Tributária, 2979, p.239).

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de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.84

Em face de tudo o que foi até o presente exposto, passo, agora, de forma perfunctória, a responder a consulta.

1) O artigo 4º, X da lei federal nº 5988/73 tem a seguinte dicção:

“Para os efeitos desta lei, considera-se:

....

X. produtor:

a) fonográfico ou videofonográfico – a pessoa física ou jurídica que, pela primeira vez, produz o fonograma ou o videofonograma;

b) cinematográfico – a pessoa física ou jurídica que assume a iniciativa, a coordenação e a responsabilidade da feitura da obra de projeção em tela”.

Pela descrição da consulta, suas operações (gravação, prensagem e distribuição) transformaram-na em produtora fonográfica, podendo se utilizar de estabelecimentos de terceiros ou de direito de uso de marcas de terceiros, nos termos da consulta oficial85.

2) A qualidade da consulente de produtora fonográfica assegura-

84. Assim Toshio Mukai comenta o dispositivo:“A norma contempla o tema da responsabilidade civil do Estado, que desde a Constituição de 1946 (art. 194), segundo a doutrina e a jurisprudência pátrias, é objetiva, com assento na teoria do risco administrativo (que admite excludentes: a culpa da vítima ou a força maior), e não na do risco integral (que inadmite excludentes).A anterior disposição correspondente à presente (EC nº 1/69, art. 107) apenas se aplicava às entidades públicas (União, Estados, Distrito Federal, Territórios, Municípios e respectivas autarquias). Agora o novo texto estendeu a responsabilidade objetiva (continua sendo, posto que, como anteriormente se interpretava, se somente para a ação regressiva do Estado contra o funcionário se exige a prova de culpa ou dolo, é porque para a ação da vítima contra o Estado prescinde-se dos elementos subjetivos mencionados, razão por que aí a responsabilidade é objetiva), aplicável aos entes públicos, a toda entidade paraestatal (regida pelo direito privado), ou até mesmo às concessionárias e permissionárias, desde que prestadoras de serviços públicos” (Administração Pública na Constituição de 1988, Saraiva, 1989, p.59).

85. Alcides Jorge Costa sobre a pluralidade das obrigações tributárias escreve:“É necessário agora voltar à doutrina estrangeira, mais precisamente a Ezio Vanoni, para quem a preeminência da obrigação de dar e o fato de que todas as obrigações diversas surjam para concorrer para o desenvolvimento da obrigação principal não devem conduzir ao erro de considerar tais obrigações como simples momentos ou deveres colaterais do vínculo fundamental de pagar o tributo. A tal construção opõem-se a diversidade de sujeitos, a independência das várias obrigações no momento do nascimento, a independência no momento de extinção, a diversidade de sanções e a diversidade de conteúdo. As várias obrigações tributárias podem classificar-se, de acordo com as prestações que constituem seu objeto, em obrigações de fazer, de suportar e de dar” (Curso de Direito Tributário, Saraiva, 1982, p.98).

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lhe o benefício fiscal previsto no artigo 44, III, “a” do RICM.

Tal exegese, de resto, já foi conformada pela própria Consultoria Tributária, despiciendo sendo minha opinião nesta matéria, em face de solução oficial anterior, que hospedo, por inteiro86.

3) Não descaracteriza, como confirma a Consultoria Tributária da Secretaria da Fazenda.

Não só é a interpretação da Secretaria – consoante com a da consulente – a melhor interpretação, mas a única possível, como procurei demonstrar no curso deste parecer.

Por outro lado, a presunção de simulação sobre ser inadmissível no direito tributário, no caso, é absolutamente impossível, visto que toda a operação foi exaustivamente exposta à Secretaria da Fazenda, que a considerou legítima e legal87.

4) Como expus no curso deste parecer, a circulação física pelos estabelecimentos da consulente é desnecessária. É esta, de resto, a opinião maciça da doutrina, o texto expresso de lei e a firme orientação da secretaria da fazenda, na mencionada consulta.

O mesmo se diga no que concerne à rotineira operação de transferência direta para o distribuidor, de encomenda produzida por conta e ordem da consulente, a qual foi expressamente albergada pela resposta oficial, que está plenamente de acordo com o direito privado e com o direito tributário.

86. Bernardo Ribeiro de Moraes esclarece: “A consulta tributária é um instrumento colocado nas mãos do contribuinte para que este exponha as suas dúvidas ou dificuldades e obtenha, da autoridade administrativa, uma certeza quanto ao seu entendimento em relação à conduta do consulente diante de certo caso concreto. Trata-se de um procedimento administrativo não contencioso, que tem por objeto não só provocar a manifestação da autoridade administrativa, mas também evitar conflitos de interpretação das normas tributárias e dirimir dúvidas fiscais quanto à aplicação e interpretação da legislação tributária. Ademais, a consulta constitui um ótimo instrumento de uniformização do entendimento da autoridade administrativa em matéria tributária.A consulta tributária é um instituto de defesa de direitos do contribuinte, que se traduz num pedido dirigido à autoridade fiscal, para que esclareça o alcance de determinado mandamento legal, caracterizado pelos seguintes elementos: a) é um procedimento de caráter não contencioso; b) iniciado em razão de petição do contribuinte, dirigida espontaneamente à autoridade fiscal; c) tem por finalidade dirimir dúvidas quanto à interpretação e aplicação de dispositivos da legislação tributária, por meio do conhecimento da orientação oficial do órgão público” (Compêndio de Direito Tributário, Forense, 1984, p.876).

87. O IX Simpósio Nacional de Direito Tributário, por seu plenário de 200 professores universitários de todo o Brasil, consagrou a seguinte resposta ao tema “Presunções e Ficções”: “Por ficção não se pode considerar ocorrido o aspecto material do fato imponível, pois ou se estará exigindo tributo sem fato gerador ou haverá instituição de tributo fora da competência outorgada pela Constituição. O mesmo se aplica à instituição da presunção absoluta pois, de sua aplicação, poderá resultar exigência de tributo sem fato gerador (unânime)” (Caderno de Pesquisas Tributárias nº 10, CEEU/Resenha Tributária, 1985, p.354).

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5) Não há qualquer relação entre o fato de duas pessoas jurídicas pertencerem ao mesmo grupo econômico e o seu direito de uso de créditos de ICMS nos termos expressos permitidos por lei.

Para efeitos do ICMS, conforme demonstrei neste parecer, a incidência deste – ou os benefícios decorrentes – não leva em consideração, como o imposto de renda, as pessoas jurídicas, mas os estabelecimentos que podem, inclusive, ser de uma mesma pessoa jurídica88.

Ora, se a própria lei do ICMS torna distintos, como contribuintes, estabelecimentos de uma mesma pessoa jurídica (circulação física de mercadorias sem transferência de titularidade), com muito maior razão, são contribuintes distintos pessoas jurídicas do mesmo grupo econômico, não tendo, pois, a menor relevância tal fato para efeitos da presente consulta. E, à evidência, se a lei foi expressamente cumprida, nos termos da consulta formulada à Secretaria da Fazenda, os créditos outorgados foram, legitimamente, aproveitados.

Por todo o exposto, não vejo a menos sustentação jurídica na peça vestibular da Secretaria da Fazenda, que, sobre violentar claramente a legislação vigente e desrespeitar a orientação oficial da Consultoria Tributária, carece de apoio doutrinário ou jurisprudencial, seja no que diz respeito às figuras de direito privado ou sancionatório pretendidas, seja naquilo que pertine diretamente ao direito tributário.

S.M.J.

São Paulo, 29 de outubro de 1990.

—————

88. Admito, hoje à luz da nova Constituição, que a circulação física entre estabelecimentos da mesma pessoa jurídica não seja fato gerador do ICMS, embora não seja esta a tese da Fazenda. Escrevi: “Por fim, há a considerar as expressões utilizadas pelo constituinte. Conforma-se o imposto sobre operações de circulação de mercadorias e prestações de serviços como um imposto sobre a comercialização – é a expressão utilizada – sendo, por outro lado, o IPI um autêntico imposto sobre a industrialização, com o que as operações de mera circulação física não deveriam ser incididas pelo ICMS.Com efeito, a circulação de mercadorias entre estabelecimentos da própria empresa não é uma comercialização de produtos, mas mero deslocamento físico de natureza ainda não mercantil. Creio que esta tese, defendida por Nabantino Ramos e Ylves Guimarães, passou a ser mais evidente com o novo Texto” (Comentários à Constituição do Brasil, 6º volume, tomo I, Saraiva, 1990, p.483).

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4 - NÃO RENOVAÇÃO DE CONTRATO DE DISTRIBUIÇÃO DE BEBIDAS COM DISTRIBUIDORA QUE SERVIU À CONCEDENTE POR PERÍODO SUPERIOR A 10 ANOS SEM QUALQUER INDENIZAÇÃO – INEXISTÊNCIA DE JUSTA CAUSA – ENRIQUECIMENTO ILÍCITO CARACTERIZADO POR APROVEITAMENTO, SEM QUALQUER REMUNERAÇÃO DO TRABALHO ALHEIO – CONFORMAÇÃO DO ABUSO DE PODER ECONÔMICO – PARECER.

CONSULTA

A consulente é distribuidora das bebidas produzidas por conhecida companhia cervejaria, tendo assinado contrato de revenda e distribuição por cinco anos, sucessivamente prorrogado, ao fim de cada qüinqüênio.

Em 24 de agosto de 1990, foi protocolada notificação, em registro de títulos e documentos, informando a consulente de que seu último contrato de revenda seria descontinuado, ao final do prazo estipulado, sem qualquer justificação, nada obstante ter, durante período de quase vinte anos, a consulente servido aos interesses daquela empresa, montando sofisticada estrutura e criando estável clientela e serviço de distribuição exemplar para os referidos produtos.

Muito embora preveja o contrato seu encerramento em 03/03/1991, se notificada qualquer das partes 180 dias antes, como, de resto, previam os contratos anteriores, o certo é que a notificação mencionada tomou de surpresa a consulente, visto que se formara consenso de que todo o trabalho realizado pela consulente, de criação de uma rede de distribuição, de obtenção de um mercado estável, com clientes relacionados e cadastrado, demanda inversão de recursos e estrutura empresarial, de tal ordem, que não se poderia imaginar pudesse ser simplesmente desconhecida, mormente em face de não haver justa causa para o rompimento de relações comerciais.

À evidência, com a não renovação contratual pretendida, a consulente verá todo seu trabalho e investimento de alguns qüinqüênios, passados a custo zero para a referida companhia, que dela se beneficiará, não tendo, por outro lado, a consulente, como reaver o investimento feito, inclusive em sua estrutura empresarial.

A leitura dos contratos, sucessivamente renovados, demonstra, por outro lado, que eles são naturalmente desequilibrados, visto que outorga apenas direitos à

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concedente e deveres à consulente.

Em face do exposto, pergunta se não estaria a descontinuação contratual, sem justa causa e sem qualquer indenização, nada obstante seu término programado, representando abuso do poder econômico e enriquecimento ilícito a partir do trabalho e da rede criada pela consulente, inclusive cadastral, de que usufruirá a concedente no dia seguinte à não costumeira prorrogação, sem nada pagar à distribuidora.

E pergunta quais seriam as medidas judiciais ou administrativas que deveria tomar.

RESPOSTA

A ordem econômica plasmada na Constituição, ao outorgar um amplo campo à livre iniciativa, agregando, pela primeira vez, como princípio constitucional, a livre concorrência, à evidência projetou a Economia Brasileira como uma economia de mercado89.

Ao fundamento da livre iniciativa e ao princípio da livre concorrência, acrescentou, inclusive, a norma maior da desnecessidade de autorização para o exercício de qualquer atividade, excetuados, a meu ver, os casos nítidos de capacitação econômica ou técnica90.

89. Miguel Reale ensina: “Ora, livre iniciativa e livre concorrência são conceitos complementares, mas essencialmente distintos. A primeira não é senão a projeção da liberdade individual no plano da produção, circulação e distribuição de riquezas, assegurando não apenas a livre escolha das profissões e das atividades econômicas, mas também a autônoma eleição dos processos ou meios julgados mais adequados à consecução dos fins visados. Liberdade de fins e de meios informa o princípio da livre iniciativa, conferindo-lhe um valor primordial, como resulta da interpretação conjugada dos citados arts. 1º e 170.Já o conceito de livre concorrência tem caráter instrumental, significando o “princípio econômico” segundo o qual a fixação dos preços das mercadorias e serviços não deve resultar de atos de autoridade, mas sim do livre jogo das forças em disputa de clientela na economia de mercado.Acorde com essas diretrizes básicas, é dito no art. 173, que “a exploração direta de atividade econômica pelo estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”. Há nessa disposição dois valores a destacar, a saber: o caráter excepcional da exploração econômica pelo Estado, e a exigência prévia de lei que a autorize, definindo os fins visados” (Aplicações da Constituição de 1988, Forense, 1990, p.14).

90. Celso Bastos assim comenta o dispositivo: “É evidente, no entanto, que ela quis enunciar que também à lei é dado criar restrições, visto que a tanto equivale a dizer que depende de autorização. Mas aqui hão de ser respeitados os limites impostos pela Constituição ao Estado no campo econômico (arts. 173 e 174). Não é lícito à lei fazer depender de autorização de órgãos públicos atividades não sujeitas à exploração pelo Estado nem a uma especial regulação por parte do poder de polícia. É aceitável, pois, que dependam de autorização certas atividades sobre as quais o Estado tenha necessidade de exercer uma tutela, quanto ao seu desempenho no atinente à segurança, à salubridade pública etc. Traduzir-se-á em inconstitucionalidade se a lei extravasar estes limites e passar, ao seu talento, a fazer depender de autorização legislativa as mais diversas atividades econômicas. Isto equivaleria sem dúvida a uma manifesta negação do princípio da livre iniciativa inserido na cabeça desse artigo” (Comentários à Constituição do Brasil, 7º volume, Saraiva, 1990, p.39).

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O artigo 170 reflete tal postura superior, como se pode ler:

“A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I. soberania nacional;

II. propriedade privada;

III. função social da propriedade;

IV. livre concorrência;

V. defesa do consumidor;

VI. defesa do meio ambiente;

VII. redução das desigualdades regionais e sociais;

VIII. busca do pleno emprego;

IX. tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte.

§ único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”. (grifos meus),

com nítido avanço para a redução da presença do Estado em sua função empresarial, voltando-se para aquela meramente regulatória, se comparando o novo texto com o artigo 160 da E.C. nº 1/6991.

Tal perfil torna-se mais nítido, na medida em que o artigo 173 conforma o regime da preferência privada pela exploração da atividade econômica, o 175 o regime administrativo da presença do Estado, enquanto prestador de serviços públicos de densidade econômica, em que a atuação do segmento privado, nesta hipótese, é meramente vicária, assim como o artigo 174, no qual o planejamento macro-econômico torna-se apenas indicativo para o setor privado, não se justificando qualquer camisa de força, congelamento, tabelamento ou outras formas de intervenção regulatória do Poder Público92.

91. O artigo 160 tinha a seguinte dicção: “A ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base nos seguintes princípios: I. liberdade de iniciativa; II. valorização do trabalho como condição da dignidade humana; III. Função social da propriedade; IV. Harmonia e solidariedade entre as categorias sociais de produção; V. repressão ao abuso do poder econômico, caracterizado pelo domínio dos mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros; e VI. Expansão das oportunidades de emprego produtivo”.

92. Escrevi sobre o artigo 174 da Constituição Federal e o Plano Verão o seguinte: “A primeira evidente

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A intervenção regulatória encontra-se nitidamente delineada nos §§ 4º e 5º do artigo 173, cuja redação é a seguinte:

“§ 4º. A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.

§ 5º. A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes

inconstitucionalidade do plano verão está no desrespeito ao artigo 174 “caput”, que declara: “Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado” O plano verão, por tal dispositivo, apenas é obrigatório para o setor público, isto é, para a Administração Pública Direta e Indireta, nesta incluída toda sua atuação empresarial. O Estado Empresário, portanto, submete-se a um planejamento obrigatório imposto pela Constituição.Por outro lado, o setor privado não é obrigado a aceitar a sugestão governamental, se não for de seu interesse. Por indicativo, há de se compreender o “planejamento-sugestão”, ou seja, a faculdade reconhecida ao setor privado de aderir ou não à proposta governamental. Por essa razão, a fim de incentivar o setor privado, houve por bem o constituinte fazer com que, ao lado do planejamento, apenas indicativo para o setor privado, pudesse o Estado, como agente normativo e regulador da Economia incentivá-lo, estimulá-lo, com favores fiscais ou de outra natureza, concessões estas que submeteriam o setor privado à fiscalização governamental.Em outras palavras, se o setor privado não receber estímulos que justifiquem a fiscalização, não estará obrigado a seguir o planejamento econômico federal, apenas indicativo, embora seja determinante para o setor público. Se aceitar estímulos, submete-se, à evidência, à fiscalização.Ora, o plano Verão torna determinante para o setor privado planejamento econômico, apenas possível, como imposição, para o setor público, embora, por irônica auto- compaixão, não o torne determinante para o setor público.Leram, as autoridades federais, o artigo 174, às avessas, e colocaram a adjetivação “facultativa” no planejamento do setor público, com desrespeito às promessas feitas, visto que a emissão de moeda continua tresloucadas e os reajustes tarifários não foram sustados, como não foram sustados os aumentos de tributos decorrentes da entrada em vigor do novo sistema tributário.À evidência, no momento em que tornaram determinante para o setor privado planejamento econômico que poderia ser apenas indicativo, tanto o Poder Executivo com suas Medidas Provisórias, quanto o Legislativo com as leis decorrentes, desrespeitaram o texto constitucional, contaminando seus atos normativos do vício insanável de inconstitucionalidade e sujeitando-se a serem responsabilizados perante o Poder Judiciário.A violação constitucional não se restringe apenas ao artigo 174.O artigo 170, assim redigido: “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: ... IV. livre concorrência; ...”, faz menção clara à livre iniciativa, como fundamento da ordem econômica, e à livre concorrência como princípio relevante à iniciativa empresarial.A livre concorrência oferta inequivocamente perfil mais liberal à Constituição atual que a anterior. A livre iniciativa pode existir ao lado de um planejamento econômico severo, obrigatório, determinante para o setor privado. A livre iniciativa exterioriza a possibilidade do acesso aos meios de produção por parte do setor privado, mas não necessariamente à determinação das regras de mercado para a economia. A livre iniciativa pode, inclusive, existir em países de economia socialista, na medida em que diz respeito apenas ao acesso ao mercado produtor e não à economia plena de mercado.A livre concorrência, não. Só pode existir, à luz das livres regras de mercado, que passam a ser as depuradoras da qualidade e do valor dos bens negociados.A livre concorrência, pois, não admite congelamento e muito menos tabelamento, pois os dois mecanismos de controle de preço eliminam o preço de mercado para estabelecer um preço governamental”(A Constituição Aplicada nº 2, Cejup, 1990, p.152/153/154/155).

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da pessoa jurídica estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular”93.

Apenas, pois, nestas hipóteses justifica-se a intervenção regulatória do Estado94.

Com correção, diagnosticando, o constituinte, que o mal maior da Economia de mercado reside na possibilidade de surgirem distorções provocadas pelo abuso do poder econômico, em que o poder mais forte supera o agente econômico, mais fraco, realçou seis situações em que tal infecção do sistema poderia ocorrer, a saber: a eliminação da concorrência, a dominação dos mercados, os lucros excessivos, os atos praticados contra a ordem econômica, contra a ordem financeira e contra a economia popular.

Em tais situações, justifica-se a intervenção do Estado restabelecedora do primado da economia sadia, evitando-se que a atuação dos agentes econômicos poderosos transforme o capitalismo naquele estágio ideal para a crítica marxista, ou seja, o capitalismo selvagem95.

93. É ainda Miguel Reale quem ensina: “Devemos, pois, concluir que, segundo a Carta de 1988, não é o Estado que, mesmo por lei, determina o que os agentes econômicos privados devem normalmente fazer, porquanto somente lhe cabe, sempre mediante prévia autorização legislativa: a) explorar diretamente a atividade econômica, tão-somente “quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei” (art. 173, caput); b) reprimir “o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação de concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros” (art. 173, § 4º); c) estabelecer a responsabilidade das empresas e de seus dirigentes nos atos praticados contra a economia popular (art.173, § 5º); d) atuar como “agente normativo e regulador da atividade econômica” exercendo, “na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”(art. 174); e) estabelecer “as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento (sic) equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento” (art. 174, § 1º).À vista de tais imperativos, não vejo como se possa asseverar que o Estado ainda continua com a função ampla e normal de dirigir a economia nacional, e, ainda mais, com o poder ilimitado de congelar e fixar preços, como se ainda vivêssemos sob o domínio da Carta de 1969” (Aplicações da Constituição de 1988, ob. cit., p.16).

94. Diogo de Figueiredo Moreira Neto escreve: “c) Institutos de Intervenção Sancionatória: São em número de cinco, sendo três deles voltados à execução da política urbana, para o combate à especulação imobiliária, todos dependentes de leis infraconstitucionais.- Art. 173, § 4º - Repressão ao abuso do poder econômico, visando à dominação dos mercados, à eliminação de concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. Sua aplicabilidade depende de lei. Hoje, aliás, existente e satisfatória, de vez que a modalidade já estava prevista no art. 160, V, da antiga Carta, embora criticável localização, como se fora um “princípio” da ordem econômica e social.- Art. 173, § 5º - Responsabilidade da empresa por atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular. Naturalmente, a ser definida em lei para ser aplicável. Inovação constitucional de questionável valia, uma vez que são os seus dirigente, em última análise, os responsáveis por aqueles atos” (Ordem Econômica e Desenvolvimento na Constituição de 1988, ed. APEC, 1989, p.73).

95. José Afonso da Silva relembra que a intervenção regulatória ou sancionatória do Estado decorre sempre de ato administrativo alicerçado no princípio da legalidade: “Essas intervenções todas se realizam mediante ato administrativo, embora não possam efetivar-se senão de acordo com previsão legal. As limitações, sim, como ingerência disciplinadora, constituem formas de intervenção por via de regulamentação legal, mas o fomento nem sempre demanda lei, tal a implantação de infra-estrutura, a

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Desde o “Shermann Act” dos Estados Unidos, os países que abraçaram a economia de mercado, voltaram-se fundamentalmente para o combate a tais violências à ordem econômica, com avanço sensível – principalmente, a partir da 2ª metade do século vinte – da doutrina e da legislação de proteção ao direito do consumidor96.

De rigor, dois instrumentos têm sido utilizados pelo Estado para reprimir os abusos de natureza econômica, a saber: as leis que disciplinam a concorrência e as leis que protegem o consumidor97.

O Brasil, que desde 1962 dispõe de legislação de repressão ao abuso do poder econômico (Lei 4.137), e desde 1951 de defesa do consumidor (Lei 1521) – no Governo Collor reformuladas, com pouca técnica legislativa – possui, em verdade, diplomas, cuja espinha dorsal coerente sobre os dois maiores pontos, evitam distorções agudas no mercado, as quais terminariam por desestimular a atividade econômica séria e propiciar avultados e imerecidos lucros a seus agentes, se não combatidas.

concessão de financiamento por instituições oficiais, o apoio tecnológico. A repressão do abuso do poder econômico é uma das formas mais drásticas de intervenção no domínio econômico e, no entanto, não é feito mediante lei, mas por ato administrativo do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), embora sempre nos termos da lei (Lei 4.137/62), no que se atende ao princípio da legalidade” (Curso de Direito Constitucional Positivo, 5ª ed., Ed. Revista dos Tribunais, 1989, p.677).

96. Áttila de Souza Leão Andrade Jr relembra o nascimento do Shermann Act: “A Lei nº 4.137 de 10 de setembro de 1962 que, entre nós, “regula a repressão ao abuso do poder econômico” tem inquestionavelmente a sua fonte na lei americana antitruste, a Sherman Act de 1890. Essa legislação americana teve a clara e manifesta intenção de proteger um dos mais relevantes valores na cultura dos Estados Unidos, ou seja, a livre iniciativa econômica com a menor intervenção governamental possível, o que, na doutrina econômica, se reconhece por CAPITALISMO. A ementa à Lei Sherman evidencia a sua finalidade: “Na act to protect trade and commerce against unlawful restraints and monopolies” (“Uma legislação para proteger o comércio contra as restrições e os monopólios ilegais”). Ora nada mais anticapitalista do que a liberdade excessiva (representada eventualmente pela permissão dessas restrições e monopólios que equivaleriam, em última análise à supressão da liberdade de concorrer ou competir) no capitalismo. Em filosofia, já se disse que “a liberdade mata a liberdade”. Na economia, o monopólio e as chamadas restrições ilegais ao comércio representam a supressão da liberdade econômica.A Sherman Act é lei extremamente parcimoniosa em palavras (o que é próprio do espírito anglo-saxônico) mas conceitualmente vaga e imprecisa (o que não é próprio do espírito anglo-saxônico). Estabelece o art. 1º. da Lei Sherman que: “Every contract, combination in the form of trust or otherwise, or conspiracy, in restraint of trade or commerce among the several States, or with foreign nations, is hereby declared to be illegal. Every person who shall make any such contract or engage in any such combination or conspiracy, shall be deemed guilty of a misdemeanor, and, on conviction thereof, shall be punished by fine not exceding five thousand dollars, or by impreisonment not exceeding one year, or by both said punishments, in the discreation of the court”.Em vernáculo, poder-se-ia traduzir o citado artigo da seguinte forma: “Todo contrato, ajuste sob a forma de TRUSTE ou de qualquer forma, ou conspiração, em restrição ao comércio, inclusive entre os diversos Estados ou com países estrangeiros, fica neste ato declarado ilegal. Toda pessoa que celebrar tal contrato, ajuste ou se comprometer com tal conspiração, será julgada de contravenção, e , mediante condenação, será punido com multa não excedente a 5 mil dólares ou prisão não excedente a um ano, ou ambos à discreção do tribunal” (Caderno de Direito Econômico nº 3, Ed. CEEU/ COAD, p.23).

97. A Lei 8.078 de 11/09/1990 (Código de Defesa do Consumidor) e a Medida Provisória nº 246/90 (repressão ao abuso do poder econômico) são, hoje, os documentos da intervenção sancionatória de que dispõe o Estado.

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A intervenção regulatória do Estado, portanto, em uma economia de mercado, em que a livre iniciativa, a livre concorrência, a preferência pela iniciativa privada, a desregulamentação da empresa e o planejamento estatal meramente indicativo para a sociedade são as tônicas dominantes, deve ser tanto maior para evitar abusos quanto menor for sua participação empresarial, visto que reflui o Estado para sua vocação natural de impositor de ordem e de justiça e não para a sua falta de vocação em ser empresário98.

E é exatamente neste ponto que reside a questão principal da consulta formulada pela consulente, como passo a demonstrar.

O contrato de distribuição e fornecimento de mercadorias, que foi sucessivamente renovado, tem em suma, as seguintes características:

a) declara que a companhia cervejaria é uma empresa nacional, cujos produtos de elevada qualidade são de fácil distribuição;

b) em função disto a distribuição, que se concede, oferta uma única responsabilidade à empresa concedente, que é manter a qualidade, e todas as demais responsabilidades à distribuidora para criar mercados, cadastrar clientes, colocar produtos, responsabilizar-se pela inadimplência dos compradores, assim como, manter onerosa estrutura de distribuição para que nunca falte o produto, sobre dever pagar os produtos recebidos para colocação, nos prazos estipulados99;

98. Com certo desencanto, Orlando Soares, refere-se à legislação passada: “A atividade, ou fenômeno econômico, está sujeita a uma série de contingências, de ordem interna e internacional (competição, domínio de mercados, dumping, concorrência interimperialista, fraudes, corrupção, e outros aspectos), constituindo objeto de complexos estudos, de natureza jurídico-econômica (José Wilson Nogueira de Queiroz, Direito Econômico, os.1 e segs.).Sob vários ângulos, a defesa da economia está entrelaçada com o princípio da defesa do consumidor, matéria essa já examinada, noutra parte deste trabalho, com desdobramentos na esfera da defesa ambiental, da proteção à fauna, flora, produção agropecuária, pescarias, e assim por diante.Na ordem jurídica interna, dispomos de complexa legislação, envolvendo e entrelaçando aspectos econômicos, industriais, comerciais, trabalhistas, relativos à qualidade de alimentos (Dec. – Lei nº 209, de 27.02.1967), de repressão penal (Lei nº 1.521, de 26.12.1951, dispondo sobre os crimes contra a economia popular) e medidas administrativas, contra práticas consistentes em abuso do poder econômico (Lei nº4.137, de 10.09.1962), que previu inclusive a criação do Conselho Administrativo da Defesa Econômica (CADE), bem como a intervenção no domínio econômico, para assegurar a livre distribuição de produtos necessários ao consumo do povo (Lei Delegada n º4, de 26.09.1962) a par de outros diplomas legais.Cumpre ressaltar que a maioria desses dispositivos legais permaneceu letra morta, jamais sendo utilizado contra o poder econômico, deixando assim impunes os criminosos do colarinho branco, protagonistas dessas espécies delituosas” (Comentários à Constituição da República Federativa do Brasil, Ed. Forense, 1990, p.610/611).

99. Geral do de Camargo Vidigal realça os dois fundamentos da ordem econômica, ao dizer: “Não é suficiente a liberdade para que os mercados nasçam. São necessárias duas outras condições: uma delas é o direito de propriedade, a outra é o contrato. E as duas igualmente afirmadas na Constituição, desde os direitos e garantias fundamentais” (A Constituição Brasileira 1988 – Interpretações, Forense Univ., 1988, p.379).

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c) em função dos termos contratuais, tem a concedente todos os direitos sobre as distribuidoras e estas todas as responsabilidades lá expressas, podendo, inclusive, a concedente, alterar áreas de distribuição, criar regiões próprias, aproveitar-se do trabalho da distribuidora, inclusive, não renovando o contrato, sem indenizá-la pelos custos operacionais, pelo fundo de comércio criado, ou pelos anos de serviços prestados,100

d) a justa causa para a rescisão é disciplinada, podendo, todavia, o contrato ser rescindido sem justa causa, após o 1º período, desde que com comunicação de 180 dias prévios.

A nota dominante no resumo apresentado é ser o contrato dividido em duas grandes vertentes, a saber: os direitos pertencem à concedente e os deveres à distribuidora.

Em outras palavras, do ponto de vista de direitos e obrigações, o contrato oferta claro exemplo de desequilíbrio, com nítido favorecimento, no que concerne às cláusulas protetoras,, para a entidade concedente sobre a prestadora de serviços de distribuição101.

100. As cláusulas mencionadas transformam o contrato em leonino, a que José Cretella Jr. assim se refere: “Do adjetivo latino leoninu (m), relativo a leo, leonis (leão), diz respeito a contrato ou negócio, no qual, com prejuízo de uma das partes, a(s) outra(s) se beneficia(m), contrariando o princípio da equipolência ou proporção, que informa os pactos e os negócios. Ilustra-se o ajuste leonino com a conhecida fábula do escritor e porta latino Pedro (A vaca, a cabra e a ovelha, em sociedade com o leão): “Nunquam est Fidelis cum potenti societas”.Denomina-se leonino o “contrato de sociedade que estabelece vantagens desproporcionais a favor de um dos sócios, em detrimento dos demais”, quando, pela regra, direitos e obrigações dos sócios devem ser partilhados de modo proporcional, observadas as proporções da conta com que cada um entrou para a constituição do capital social. Assim, sempre que se estabelecer uma convenção com encargos excessivos para um dos contratantes e com maiores vantagens para o outro, ficando este último liberado de certos ônus ou de obrigações pactuadas no ajuste, o contrato é leonino, pois o favorecido “fica com a parte do leão”, a que alude a fábula mencionada” (Enciclopédia SARAIVA do Direito, vol. 49, Saraiva, 1977, p.210/211)

101. Orlando Gomes ao falar dos contratos imorais lembra a lição de enneccerus-Nipperdey, ao dizer: “O contrato é ofensivo aos bons costumes, em síntese, quando tem causa turpis, isto é, quando o motivo que o inspira e a finalidade que colima são imorais em conjunto, maculando a própria relação jurídica. A imoralidade pode estar no conteúdo, nos motivos e nos fins. Se está nos motivos, será imoral somente se a outra parte conhecer e concordar com a motivação. Em relação ao fim, vigora a mesma regra. Mas se imoral é o conteúdo, há infração, qualquer que seja a intenção, isolada ou conjunta, dos contratantes. Também se considera imoral quando a imoralidade se acha precisamente na conduta de um dos contratantes contra o outro.Não é possível enumerar todos os casos de ofensa aos bons costumes, mas podem ser classificados sob diversos pontos de vista, como lembram ENNECCERUS-NIPPERDEY, que discriminam, como imorais, os contratos: 1º) que significam estímulo ou realização do que é proibido pelos bons costumes; como a promessa de recompensa para a prática de atos imorais; 2º) que visam a dificultar o que determina a moral, como a promessa de infringir um contrato; 3º) que obrigam à prática de um ato que deve ser livre de toda coação jurídica; como a promessa de adotar alguém; 4º) que menoscabam excessivamente a liberdade do indivíduo; como a proibição contratual de fixar domicílio em determinado lugar: 5º) que fazem depender de dinheiro ou de valor pecuniário o que, segundo os bons costumes, não deve ficar nessa dependência; como a promessa de se abster da prática de um crime; 6º) que significam exploração de uma parte pela outra; como a venda por preço extorsivo; 7º) que configuram usura; como o mútuo a juros onzenários” (grifos meus) (Contratos, 9ª ed. , Forense, 1983, p.174).

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O contrato assemelha-se a um contrato de representação, mas embora estruturalmente o seja, a doutrina o conforma como um contrato atípico, principalmente a partir da lei nº 6.729/79, que esculpiu, de um lado, distribuição de veículos com regras próprias e, de outro, apropriou-se, em parte, dos comandos normativos do contrato de representação102.

A lei nº 6729/79, todavia, não oferece processo indenizatório semelhante ao da lei nº 4886/65, de representação comercial, mas não impede que por integração analógica adote-se caminho semelhante, quando o desequilíbrio contratual represente pesado ônus à distribuidora e enriquecimento ilícito, por aproveitamento do trabalho anterior, para o elo mais forte da relação jurídico-econômica, que é o concedente103.

E é, à luz dessa perspectiva, que examino as questões formuladas pela consulente, em contrato com nítidos elementos desequilibradores e propiciador de enriquecimento ilícito, em face da inexistência real do princípio da autonomia da vontade a conformar o contrato, em muitas de suas cláusulas, embora formalmente o princípio lá esteja.

O contrato em si é um contrato de adesão que surge – claramente – desequilibrado, mas que, na prática, não oferece desequilíbrio maior enquanto vige, isto porque, na medida em que as distribuidoras cumpram sua parte, sendo remuneradas para manter os investimentos e abrir mercados, à evidência, as cláusulas abusivas não são acionadas104.

102. Os artigos 1º e 2º, incisos I e II da referida lei têm a seguinte dicção: “Art. 1º - A distribuição de veículos automotores, de via terrestre, efetivar-se-á através de concessão comercial entre produtores e distribuidores, disciplinada por esta Lei e, no que não a contrariem, pelas convenções nela previstas e disposições contratuais.Art. 2º – Considera-se:I – produtor, a empresa industrial que realiza a fabricação ou montagem de veículos automotores;II – distribuidor, a empresa comercial pertencente à respectiva categoria econômica, que realiza a comercialização de veículos automotores, implementos e componentes novos, presta assistência técnica a esses produtos e exerce outras funções pertinentes à atividade”.

103. O artigo 27, inciso “j”, § único da Lei 4886/65 tem a seguinte dicção:“Do contrato de representação comercial, quando celebrado por escrito, além dos elementos comuns e outros, a juízo dos interessados, constarão, obrigatoriamente: ... j) indenização devida ao representante, pela rescisão do contrato fora dos casos previstos no art. 34, cujo montante não será inferior a 1/20 (um vinte avos) do total da retribuição auferida durante o tempo em que exerceu a representação, a contar da vigência desta lei.§ único. Na falta do contrato escrito, ou sendo este omisso, a indenização será igual a 1/15 (um quinze avos) do total da retribuição auferida no exercício da representação, a partir da vigência desta lei”.

104. J. M. Othon Sidou lembra que a lei nº 5725/64 de Israel proíbe os contratos de adesão com cláusulas desequilibradas, ao dizer: “34. A Lei nº 5.725, de 1964, do Estado de Israel representa um passo avançado do direito positivo na matéria que nos prende a atenção. Começa ela a dispor como contrato de adesão “o negócio jurídico cujas cláusulas, na totalidade ou em parte, tenham sido predeterminadas pela pessoa que se propõe a prestar o serviço ou fornecer bens, ou por outrem a esta, para definir o conteúdo de uma pluralidade de contratos entre essa pessoa e outras indeterminadas, quer quanto ao número, quer em relação à quantidade”.Genericamente, a Lei proíbe a inserção de cláusulas das quais possa resultar prejuízo certo para os eventuais aderentes; ou que, por demais vantajosas, possam eventualmente causar dano ao oblato.

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É na rescisão que o desequilíbrio se consuma, visto que, pelo trabalho da distribuidora, objetiva a concedente assenhorar-se de sua clientela, cadastro e fundo de comércio sem indenizá-las e a custo zero.

Enquanto a cláusula rescitória sem indenização não é acionada, permanece como mera hipótese de trabalho, na prática, sem perigo maior para distribuidora que cumpra suas obrigações, ao garantir a colocação dos produtos da concedente no mercado criado por seu trabalho e esforço. Daí a razão das prorrogações automáticas.

O acionar da rescisão – a que se assemelha nitidamente a não prorrogação de um contrato, cuja característica fundamental é a permanente prorrogação – é que gera o desequilíbrio. O poder econômico mais forte afasta o poder econômico mais fraco para deflagar cláusula contratual desequilibradora, a que a tradição da relação da concedente, com todas suas distribuidoras, mantivera sempre como hipótese incorrível, em não havendo justa causa. Por esta razão, apesar da assinatura do contrato imposto pela concedente e de impossível afastamento pelo elo mais fraco da referida relação, a hipótese era considerada letra morta no contrato, até por força de sua conotação abusiva.

Ora, o princípio da “pacta sunt servanda”e aquele da autonomia da vontade tornam-se princípios relativos, sempre que o texto contratual provoque desequilíbrio de tal natureza que uma das partes sofra sérios prejuízos e a outra lucros indevidos, por força da aplicação de cláusula acordada sem liberdade real e aplicada, de forma inesperada, em face da tradição de sua inaplicabilidade nas relações econômicas entre as partes105.

Especificamente, a Lei proíbe: a) a exclusão de responsabilidade; b) a rescisão do contrato, por iniciativa da parte ofertante, sem inadimplemento imputável ao aderente ou motivada por fato alheio à sua vontade; c) a subordinação de qualquer direito contratual do aderente; d) a imposição de obrigação ao aderente, que o impeça de transacionar com terceiros; e) a renúncia antecipada de qualquer direito nascido do contrato; f ) a substituição do aderente pelo ofertante, de que possa resultar a aquisição de direito contra o dito ofertante; g) a inversão do ônus da prova, a favor do ofertante, para fazer prevalecer o assentamento em livros contábeis ou quaisquer documentos por este último confeccionados; h) toda a limitação do direito de pleitear o aderente em juízo; i) a reserva de poderes maiores para o ofertante em detrimento do aderente, em caso de cláusula compromissória (juízo arbitral)” (A Revisão Judicial dos Contratos, 2ª ed., Forense, 1984, p.189/190).

105. Preleciona Limongi França sobre o enriquecimento ilícito o seguinte: “2.1.1. Principais teorias. Parece que são três as principais orientações seguidas, quanto ao fundamento da obrigação oriunda do enriquecimento ilícito, como causa das obrigações, seguidas pela doutrina dos povos cultos: a) da moral; b)dos princípios gerais de direito; e c) da equidade.A teoria ética, como não poderia deixar de ser, é defendida por Georges Ripert, na célebre monografia “La règle dans lês obligations civiles” (v. nº 142). O fundamento da ação do enriquecimento ilícito estaria na imoralidade da situação daquele que, sem fundamento de enriqueceu à custa de outrem.A teoria dos princípios gerais de direito é proposta por Barassi nas Istituzioni di diritto privado (Milano, 1939, § 83).A teoria da equidade é adotada por um sem-número de autores, desde Pothier até Demogue, ao lado de outros mestres como Salvat, na Argentina, Enneccerus, entre os germânicos, e De Page, na Bélgica.2.1.2. Orientação que propomos. Sustentamos que a obrigação, e a conquente ação, baseada no enriquecimento sem causa, tem como fundamento um princípio geral de direito (v. nosso “Teoria e prática dos princípios gerais do direito”, Revista dos Tribunais, 1963).Evidentemente, não há dúvida de que o locupletamento ilícito é um fato imoral, mas a imoralidade, por si só, não é bastante para implicar a falta de juridicidade. É certo que muitas categorias jurídicas participam diretamente do contingente ético, assim como a boa fé e a alusão expressa as bons costumes. Não nos

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À evidência, a surpresa de sua aplicação não prevista, pela tradição operacional da concedente, não configura a teoria da imprevisão, em que a inevitabilidade é elemento também relevante, não se podendo falar em inevitabilidade de cláusula acordada para não ser aplicada, mas em tese existente. A teoria do desequilíbrio contratual, todavia, não se restringe à teoria da imprevisão. A do enriquecimento ilícito também a conforma, sempre que o beneficiário é o poder contratante mais forte e o prejudicado aquele de menor força106.

E, no caso, a disparidade dos benefícios, com a rescisão contratual, resta evidente, isto porque incorporará a concedente todo o trabalho de criação de mercado por mais de 10 anos, sem nada pagar por tal serviço e a distribuidora, sem poder utilizar sua estrutura formada pra a finalidade a que se preparou, poderá ser levada à insolvência, com a necessidade de desativar o empreendimento criado, com a decorrência de desemprego e agravamento da crise social na região onde se situa.

A cláusula rescisória – ou não prorrogatória – assume, pois, características incompatíveis com o direito, sobre conformar nítido abuso do poder econômico, que não se pode admitir em face dos textos constitucionais transcritos no início deste parecer107.

parece porém, seja o caso do enriquecimento sem causa, sobretudo porque, a nosso ver, há elementos bastantes para alicerçá-lo no plano estrito do direito, sem a necessidade de recurso aos preceitos éticos.Quanto à teoria da equidade, igualmente nos parece faleciosa. A equidade é a justiça do caso particular (v. nosso “Formas e aplicação do direito positivo”, p. 72 e s.); de modo que a sua invocação só tinha sentido quando a matéria se via ainda em sua fase fragmentária (v. Agostinho Alvim, “Do enriquecimento sem causa”; sistema clássico, p.5 e s.). Não assim no estágio atual de sua evolução, à altura em que códigos e autores lhe têm emprestado tratamento orgânico e sistematizado.(A nosso ver, efetivamente, a obrigação oriunda do enriquecimento ilícito se funda no princípio geral do direito, segundo o qual ninguém se pode locupletar, à custa de outrem, sem uma causa jurídica. Esse fundamento é tanto doutrinário como de direito positivo. Doutrinário porque assenta, alicerçadamente, no direito natural; positivo porque encontra base, para sua aplicação, mesmo em nosso atual sistema, no art. 4º da LICC)” (Enciclopédia SARAIVA do Direito, vol. 32, Saraiva, 1977, p.211/212).

106. Escrevi: “Ora, a teoria da imprevisão pressupõe que se um fato novo, imprevisível e inevitável venha a ocorrer, as condições contratuais não mais prevalecem e devem ser modificadas, isto porque seu cumprimento pode acarretar grave prejuízo aos direitos de uns e benefício indevido de outros.Na maior parte das vezes, a teoria da imprevisão, se não aplicada, acarreta empobrecimento indevido, de um lado, e enriquecimento ilícito, de outro. Por esta razão, o Código Civil e a Constituição ao garantirem, no concernente à propriedade, tenha o titular amplo direito, fizeram-no para assegurar também a institucionalização da teoria da imprevisão, impedindo que o enriquecimento ilícito – ou seja, os lucros excessivos e a falta de justa indenização – viesse a ser possível.Como se percebe, na teoria da imprevisão entrelaçam-se os aspectos condicionantes (imprevisibilidade e inevitabilidade) com os aspectos materiais (garantia do direito de propriedade)” (Advocacia Empresarial, Ed. OAB, 1988, p.60/61).

107. Fábio Nusdeo, ao citar Guilherme Canedo de Magalhães, escreve: “Acentua o mencionado autor, que as formas enunciadas de prática do abuso do poder econômico não excluem outras que se apresentem com o mesmo objetivo e, poderia ser acrescentado, a elas se equivalham. Note-se que o texto constitucional em vigor aponta situações que caracterizam abusos do poder econômico, sendo lógico que se tornam passíveis de repressão quaisquer atos ou iniciativas destinados a produzi-las ou pelo menos que envolvam uma alta probabilidade sua materialização. Como toda norma inserida no campo do direito econômico, ou interpretável consoante seus princípios, a sua aplicação deve fazer-se em termos primordialmente teleológicos, ou seja, indagando quais as situações ou atos que a lei deseja ver banidos” (Enciclopédia SARAIVA do Direito, vol. 2, Saraiva, 1977, p.139)

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Já a doutrina, no passado, denominou determinados contratos de contratos leoninos, na lembrança da célebre fábula do acordo com o leão, que ficou com todas as partes do animal caçado por ele e outros animais.

O contrato referido, ao ser acionado nos termos em que foi, configura meridiana pactuação, leonina, a beneficiar o contratante de maior força, em detrimento daquele mais fraco108.

Em face do exposto, parece-me que a solução jurídica da consulta deva seguir uma de cinco alternativas:

a) negociar, a consulente, com a empresa concedente, objetivando solução amigável para a pendência ou em nível de continuação ou de indenização pelos prejuízos envolvidos;

b) se impossível, a solução, ingressar com ação judicial, objetivando indenização que poderá ser aquela correspondente aos contratos de representação, por integração analógica (Lei 4886/65);

c) ingressar com ação ordinária de perdas e danos, cujo pedido poderia ser alternativo em relação à sugestão “b”;

d) ingressar, cumulativamente, com denúncia junto à Secretaria Nacional de Direito Econômico, em face de violentar, a atitude da concedente, a M.P. 246/90, em seu art. 1º, sobre estar em desacordo com o artigo 2º da Lei 4.137/62109.

108. Martinho Garcez Neto ensina: “Por conseguinte, o que é preciso evitar são deformações ou os abusos do contrato de adesão, cuja utilidade é de intuitiva evidência. E o caminho para remover aquelas ameaças constantes já foi traçado magistralmente por DE PAGE: “Pouvoir de controle de la part du juge par conséquent, et rien de plus; mais pouvoir que trouve une forme technique approprié, à la fois suffisamment souple pour faire face à toutes lês exigences et sufissamment limitée pour éviter tous les dangers, dans lê príncipe de l’évecution de bonne foie”. Em consequência e ainda na lição do mestre: ele poderá temperar a aplicação de cláusulas excessivamente rigorosa ou excessivamente draconianas; como poderá, conforme o caso, declarar determinada cláusula não conhecida suficientemente por uma das partes, ou violada; como, ainda, poderá, mercê das regras de interpretação das convenções, interpretar o contrato contra aquele que o estipulou e em favor do aderente; ainda que, sem o perceber, e embora guardando a maior circunspecção, ele seja arrastado a fazer, na esfera jurídica de atuação dos contratos de adesão, um pouco de política social” (Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro, vol. XII, Ed. Borsoi, p.272)

109. O artigo 1º da M.P. 246/90 e o artigo 2º da Lei 4137/62 têm a seguinte dicção:“Art. 1º. Compete à Secretaria Nacional de Direito Econômico – SNDE, por meio de seu Departamento Nacional de Proteção e Defesa Econômica – DNPDE, a apuração e correção de todo e qualquer ato, individual ou coletivo, ou atividade econômica de mercado que atente ou possa atentar contra a ordem econômica e os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência.§ 1º. Compete, igualmente, ao DNPDE adotar as providências necessárias à repressão das infrações previstas na lei nº 8002, de 14/03/90.§ 2º. O DNPDE atuará de ofício, mediante provocação de órgão ou entidade da Administração Pública, ou em razão de representação de qualquer interessado.Art. 2º. Considera-se formas de abuso do poder econômico: a) ajuste ou acordo entre empresas, ou entre

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e) propor medida cautelar inominada, com pedido de liminar, para que se suste a rescisão até o momento em que se apure a indenização devida à consulente para se evitar o enriquecimento ilícito da concedente.

A adoção de qualquer das medidas previstas deverá ser anterior a 3 de março de 1991, que é o dia, em que se encerra o prazo outorgado pela concedente à consulente110.

S.M.J.

São Paulo, 9 de novembro de 1990.

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pessoas vinculadas a tais empresas ou interessadas no objeto de sua atividade; b) aquisição de acervo de empresas ou de cotas, ações, títulos ou direitos; c) coalisão, incoporação, fusão, integração ou qualquer outra forma de concentração de empresas; d) concentração de ações, títulos, cotas ou direitos em poder de uma ou mais empresas ou de uma ou mais pessoas físicas; e) acumulações de direção, administração ou gerência de mais de uma empresa; f ) cessação parcial ou total das atividades de empresa promovida por ato próprio ou de terceiros; g) criação de dificuldades à constituição, ao funcionamento ou desenvolvimento de empresa (grifos meus).II. elevar, sem justa causa os preços, nos casos de monopólio natural ou de fato, com o objetivo de aumentar arbitrariamente os lucros sem aumentar a produção.III. provocar condições monopolísticas ou exercer especulação abusiva com o fim de promover a elevação temporária de preços por meio de: a) destruição ou inutilização por ato próprio ou de terceiros, de bens de produção ou de consumo; b) açambarcamento de mercadorias ou de matéria-prima; c) retenção em condições de provocar escassez de bens de produção ou de consumo; d) utilização de meios artificiosos para provocar a oscilação de preços em detrimento de empresas concorrentes ou de vendedores de matérias-primas.IV. formar grupo econômico por agregação de empresas em detrimento da livre deliberação dos compradores ou dos vendedores por meio de: a) discriminação de preços entre compradores ou entre vendedores ou fixação discriminatória de prestação de serviços; b) subordinação de venda de qualquer bem à aquisição de outro bem ou à utilização de determinado serviço; ou subordinação de utilização em determinado serviço à compra de determinado bem.V. exercer concorrência desleal, por meio de: a) exigência de exclusividade para propaganda publicitária; b) combinação prévia de preços ou ajuste de vantagens na concorrência pública ou administrativa”.

110. Arnoldo Medeiros da Fonseca ensina: “Solução aceita. De nossa parte, em face dos textos legais vigentes no Brasil e deles procurando inferir, por analogia, o princípio geral que os inspira, pensamos que se podem reduzir a dois apenas os elementos essenciais para que se caracterize o enriquecimento injusto, dando lugar à ação correlativa de repetição: 1º – o deslocamento patrimonial, ou melhor, para conservar a expressão tradicional, o enriquecimento, cumprindo, porém advertir, como acentua ENNECCERUS, que este pressupõe – a obtenção de algo, às expensas de outro, e um deslocamento patrimonial, ocorrido imediatamente, o que não significa que tal ato deva ser realizado pelo próprio enriquecimento; e 2º – a falta de justa causa que o fundamente.Reconhecemos, com a doutrina alemã, a impossibilidade de serem reunidas, em uma fórmula unitária, todas as hipóteses em que se verifica essa falta de justa causa, havendo assim, necessidade de distinguir três categorias de casos, conforme o enriquecimento tenha sido obtido por vontade do prejudicado, ou seja, em virtude de uma prestação; sem essa vontade, em conseqüência de ato de outra pessoa; ou independentemente de ato de pessoa alguma, isto é, em virtude da lei” (Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro, vol. XX, Borsoi, p.240)

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5 - É INCONSTITUCIONAL A ATUAÇÃO DO IBAMA AO CRIAR RESERVAS E PREFERÊNCIAS NAS COTAS DE IMPORTAÇÃO DA BORRACHA E INTERVIR NESTE MERCADO – É TAMBÉM INCONSTITUCIONAL A EXIGÊNCIA DA TORMB – PARECER.

CONSULTA

A consulente, por seu eminente presidente Marcos Aurélio Macedo, pergunta-me o seguinte:

“As nossas associadas, que se dedicam à fabricação de componentes para a indústria de calçados, estão encontrando enormes dificuldades na importação de borracha natural e sintética, que constituem importantes e indispensáveis insumos utilizados na produção de saltos, solados e placas de borracha.

É que nenhum só quilo de borracha pode ser importado sem a prévia aprovação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e de Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, ao qual foram alocados os serviços da antiga SUDHEVEA, e com o pagamento da denominada “Taxa TORMB”.

A importação de tais insumos básicos é da máxima importância, uma vez que estes materiais, muitas vezes com preços menores, reduzem os custos da produção, tornando o produto final mais competitivo, o que vem de encontro à atual política econômica do Governo Federal.

Subordinando-se ao crivo do IBAMA, o processo de importação é moroso, incompatível com a produtividade, em razão da burocracia e entraves muitas vezes intransponíveis decorrentes da interferência daquele órgão público, a partir do momento do registro das guias de importação, mesmo após a edição do Plano Collor, que liberalizou as importações, principalmente a partir da redução das tarifas aduaneiras.

Sabe-se que a liberalização tem por objetivo conferir eficiência e crescimento da economia interna.

Os grandes entraves encontrados são os resultantes da Portaria IBAMA nº 293, de 22/05/89 (DOU 24/05/89), que estabelece procedimentos para a sistemática de comercialização e importação de borracha.

Por via de conseqüência, o Instituto estabelece cotas, por produto e por consumidor industrial.

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As cotas são mensais, estipulando-se as quantidades máximas de importação.

O mesmo procedimento é adotado quando se leva em conta a necessidade de seu aumento.

As guias de importação estão subordinadas ao recolhimento da “indevida” – nosso entender – “taxa TORMB” ou a liberação de mercadoria só pode ser feita mediante a apresentação à alfândega da primeira via da guia de recolhimento quitada pelo Banco arrecadador.

O controle da quantidade de borracha importada é exercido, ainda, pelo IBAMA, mesmo quando se tratar de importação sob o regime do DRAW-BACK previsto no art. 78 do D.L. nº 37, de 18/11/66.

Veja, por exemplo, o art. 7º da citada Portaria nº 293, segundo o qual o importador não está desobrigado da apresentação da guia de recolhimento, previamente à emissão da guia de importação.

Quando o produto tem similar nacional, o IBAMA exige parecer do fabricante nacional concordando ou não com a importação solicitada.

Se não há concordância, não há liberação da importação.

Os termos da Portaria IBAMA nº 293, por si só explicam a burocracia e os entraves encontrados.

A importação de borracha era, anteriormente, regulamentada pela SUDHEVEA (Superintendência da Borracha), órgão já extinto pelo próprio Poder Executivo.

Hoje se fala em economia de mercado e em desregulamentação da economia.

O art. 174 da C.F. de 1988 diz que o planejamento do Estado é determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.

A borracha natural e a sintética, derivada do petróleo, não constituem monopólio da União (art. 177 da CF/88).

A própria Ministra da Economia já editou Portaria nº 56, de 15/03/90, dispondo – em seu item III – sobre a eliminação da exigência da anuência prévia de órgãos da Administração Federal para a importação de produtos específicos.

Mesmo assim, o IBAMA insiste no cumprimento da sua Portaria nº 293/89 já mencionada.

Isto posto, CONSULTAMOS:

a) É legítima, do ponto de vista jurídico, a interferência do IBAMA nas importações de borracha, principalmente no momento em que já está traçada a política industrial e de comércio exterior, sem entraves e burocracia?

b) É legítima a cobrança da TORMB?

c) Qual o caminho a ser percorrido pelas associadas, para afastar tais exigências e

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entraves, se concluídos como ilegítimos?”

RESPOSTA

A consulente suscita algumas questões de relevância constitucional sobre parte das quais já no passado me debrucei para considerar inconstitucional a taxa TORMB, assim como a ação do IBAMA, enquanto entidade burocrática destinada a dirigir o mercado de borracha111.

A própria consulente, nas questões formuladas e no histórico que a antecedeu, já faz indicações das violências jurídicas à lei suprema, perpetradas pelo referido Instituto, ao tentar impor, como vigente, texto não recepcionado pela nova ordem constitucional, assim como outro texto legislativo em flagrante e notório conflito com o título “Da Ordem Econômica” da lei suprema. As afrontas e o mau trato ao Direito não se circunscrevem aos dispositivos mencionados, outros tendo sido também maculados pela ilegal ação do IBAMA112.

De início, mister se faz lembrar que a Constituição Federal, em seu artigo 170, conformou a livre iniciativa como fundamento da ordem econômica, a livre concorrência como princípio superior e a não interferência no livre exercício de

111. Escrevi: “Pelo quadro acima exposto, percebe-se nitidamente a não recepção da inconstitucional TAXA do sistema anterior, pela nova ordem, em face da desvinculação entre o custo da intervenção – admitida, em tese, pela pretérita Constituição – e a forma de remuneração, o que só por este aspecto já tornaria inconstitucional a exigência. Acresce-se, todavia, a impossibiLidade de a TORMB remunerar, pela atual lei maior, um tipo de intervenção regulatória, que está vedada, proibida, interditada, eis que acarreta violação à livre concorrência. É que tal imposição objetiva regular e organizar um mercado, que a Constituição proíbe que seja regulado e organizado pelo Estado, mas apenas pela livre concorrência. Determina um planejamento econômico que a Constituição exige que seja meramente indicativo. Pretende exercer uma atividade – que de resto não exerce – a qual provoca o cerceamento da livre iniciativa. Transforma o mercado em setor administrado pelo Estado.Por esta razão, entendo que, sobre já ser inconstitucional, à luz da pretérita ordem, seria inconstitucional também, à luz da nova, porque o campo em que esta intervenção poderia ser admitida está vedado à presença do Estado em função regulatória.A minha percepção, portanto da esdrúxula contribuição, mantida por força da inércia administrativa e dos agentes interessados até hoje, é de que se pudesse ser enquadrada em uma das espécies tributárias, estaria entre aquelas intervenção no domínio econômico. Sua desvinculação, porém, do custo do serviço e vinculação a percentual sobre cada operação – à semelhança das incidências dos impostos indiretos -, assim como a intervenção de organismos a regular mercados em que sua presença não se faz necessária – inclusive vedada pela lei maior -, torna a exigência inconstitucional.À luz, portanto, de minha especial maneira de examinar a natureza jurídica da TORMB, concluo por sua total inadequação ao sistema tributário, não entendendo a ele integrado. É exigência violadora da lei maior, que não oferta respaldo à sua exigência” (Aspectos Tributários da Nova Constituição, Ed. Resenha Tributária, 1990, p.297/298/299/300).

112. José Afonso da Silva ensina:“A liberdade de iniciativa envolve a liberdade de indústria e comércio ou liberdade de empresa e a liberdade de contrato. Consta do art. 170, como um dos esteios da ordem econômica, assim como de seu parágrafo único que assegura a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo casos previstos em lei” (Curso de Direito Constitucional Positivo, 5ª ed., Ed. Revista dos Tribunais, 1989, p.662/663).

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qualquer atividade econômica, como regra maior da economia de mercado, escolhida pelo constituinte para dar perfil à vida econômica da nação113.

O artigo 170 é claro ao hospedar os três comandos, estando assim redigido:

“A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames de justiça social, observados os seguintes princípios:

...

IV. livre concorrência;

...

§ único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei” (grifos meus).

Os três dispositivos (um fundamento, um princípio e uma norma) espancam qualquer dúvida a respeito da escultura ofertada pelo legislador constituinte à atuação do Estado, em sua intervenção regulatória, servindo-lhe, no máximo, para coibir distorções na economia, por seu poder sancionatório, conforme determinam os §§ 4º e 5º do artigo 173:

“§ 4º. A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.

§ 5º. A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular”.114

113. Celso Bastos esclarece: “A liberdade de iniciativa e de empresa pressupõe o direito de propriedade da mesma sorte que é de certa forma uma decorrência deste. O seu exercício envolve uma liberdade de mercado, o que significa dizer que são proibidos os processos tendentes a tabelar os preços ou mesmo a forçar a sua venda em condições que não seja as resultantes do mercado. A liberdade de iniciativa exclui a possibilidade de um planejamento vinculante. O empresário deve se o senhor absoluto na determinação de o que produzir, como produzir, quanto produzir e por que preço vender. Esta liberdade, como todas as outras, de resto, não pode ser exercida de forma absoluta. Há necessidade, sim de alguns temperamentos. O importante, contudo, é notar que a regra é a liberdade. Qualquer restrição a esta há de decorrer da própria Constituição ou de leis editadas com fundamento nela.O consectário natural deste princípio é que a atuação do Estado na economia é sempre subsidiária. O Estado não está habilitado a retirar dos particulares, transferindo, para a responsabilidade da comunidade, atribuições que aqueles estejam em condições de cumprir por si mesmos” (Comentários à Constituição do Brasil, 7º volume, Saraiva, 1990, p.16/17)

114. Diogo de Figueiredo Moreira Neto entende que tais institutos pertencem à intervenção sancionatória do Estado, ao dizer: “c) Institutos de Intervenção Sancionatória: São em número de cinco, sendo três deles voltados à execução da política urbana, para o combate à especulação imobiliária, todos dependentes de

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A intervenção concorrencial não oferta privilégios ao Estado (“caput”e §§ 1º e 2º do art. 173), salvo se o regime jurídico for de direito administrativo (art. 175), hipótese em que o serviço público prestado, apesar de sua densidade econômica, adentra o campo de ação que pertine mais ao Poder Público, passando, em decorrência, a ser vicária a participação do segmento privado na exploração daqueles serviços.115

A exata dimensão da liberdade de atuação do segmento privado encontra-se, todavia, no art. 174, assim redigido:

“Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado” (grifos meus),

em que deixa claro, o constituinte, que o planejamento econômico é meramente indicativo para o setor privado.

O comando, todavia, que afasta dúvidas sobre o elenco de dispositivos pró-economia de livre concorrência, é aquele do § único do artigo 170, o qual reduz a intervenção do Poder Público a mera questão de capacitação.116

leis infraconstitucionais.- Art. 173, § 4º - Repressão ao abuso do poder econômico, visando à dominação dos mercados, à eliminação de concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. Sua aplicabilidade depende de lei. Hoje, aliás, existente e satisfatória, de vez que a modalidade já estava prevista no art. 160, V, da antiga Carta, embora criticável localização, como se fora um “princípio” da ordem econômica e social.- Art. 173, § 5º - Responsabilidade da empresa por atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular. Naturalmente, a ser definida em lei para ser aplicável. Inovação constitucional de questionável valia, uma vez que são os seus dirigentes, em última análise, os responsáveis por aqueles atos” (Ordem Econômica e Desenvolvimento na Constituição de 1988, ed. APEC, 1989, p.73).

115. A equipe da Price Waterhouse assim comenta o artigo 173: “O art. 173 da Constituição de 1988 só admite, em princípio, a intervenção do Estado na economia para atender a relevante interesse coletivo ou quando necessária aos imperativos de segurança nacional, conforme dispuser a lei. O Estado, portando, só participará excepcionalmente da atividade econômica, que ficará reservada à livre iniciativa. A Constituição de 1967 fundamentava a intervenção na segurança nacional e no desenvolvimento de determinados setores da economia” (A Constituição do Brasil 1988, Price Waterhouse, 1989, p.729).

116. Miguel Reale preleciona: “Devemos, pois, concluir que, segundo a Carta de 1988, não é o Estado que, mesmo por lei, determina o que os agentes econômicos privados devem normalmente fazer, porquanto somente lhe cabe, sempre mediante prévia autorização legislativa: a) explorar diretamente a atividade econômica, tão-somente “quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”(art. 173, caput);b) reprimir “o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros” (art. 173, § 4º);c) estabelecer a responsabilidade das empresas e de seus dirigentes nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular (art. 173, § 5º);d) atuar como “agente normativo e regulador da atividade econômica” exercendo, “na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado” (art. 174);e) estabelecer “as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento (sic) equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento” (art. 174, § 1º).À vista de tais imperativos, não vejo como se possa asseverar que o Estado ainda continua com a função ampla e normal de dirigir a economia nacional, e, ainda mais, com o poder ilimitado de congelar e fixar

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Na ordem econômica passada, o § 23 do artigo 153 – reproduzido, com pequena alteração semântica, no art. 5º, inciso XIII – oferecia disciplina constitucional de ordem genérica, próximo do princípio atual, que, sobre ter sido hospedado na lei maior atual, foi reforçado especificamente na ordem econômica, pelo § único do artigo 170.117

Por ele, a autorização oficial para permitir-se o livre exercício de qualquer atividade é vedada pela Constituição, salvo em casos excepcionais previstos em lei. O final do discurso do § único, apenas pode ser lido para casos excepcionais, visto que, se assim não fosse, a lei poderia prever sempre autorização para todas as hipóteses de livre exercício de qualquer atividade, tornando inútil o comando constitucional. O dispositivo não poderia ser nunca lido:

“É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independente de autorização de órgãos públicos, podendo, todavia, a lei exigir autorização para todas as hipóteses de livre exercício de qualquer atividade econômica”.

Por esta razão, houve por bem entender, o constituinte, que a lei só poderia cuidar de casos de capacitação técnica, isto é, a exigência, por exemplo, de que uma empresa de contadores tenha contadores como seus profissionais responsáveis, só assim se permitindo autorização para funcionar.118

À evidência, à capacitação técnica não se poderia acrescentar odiosa discriminação permitindo que só para determinadas empresas ou agentes econômicos fosse

preços, como se ainda vivêssemos sob o domínio da carta de 1969.Ninguém contesta, em suma, a ação fiscalizadora do Estado, visando a impedir o aumento arbitrário de lucros, nem tampouco a sua faculdade de fixar e apurar a responsabilidade de empresas e empresários nos atos atentatórios contra a ordem econômico-financeira e a economia popular, mas isto não o legitima a estabelecer planos econômicos de caráter cogente para o setor privado” (Aplicações da Constituição de 1988, ob.cit., p.16).

117. Os dois dispositivos têm a seguinte dicção:“§ 23. É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, observadas as condições de capacidade que a lei estabelecer”;“XIII. É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.

118. Ao comentar a exigência de capacitação técnica, José Cretella Jr. ensina: “Sem ir ao extremo de declarar que “é absolutamente impossível fixar, em tese, o que se deve entender por técnica, ou por cargo e compreendidos nos mais variados sentidos e até em acepções opostas” (cf. Alaim de Almeida Carneiro, em RDA, 25:379), preferimos concluir que cargo técnico, profissão técnica, atividade técnica, função técnica é toda operação “cujo desempenho exige familiaridade com determinados métodos sistematicamente organizados, que repousam no conhecimento científico” (cf. RDA, 29:401).Em suma, somente o poder legislativo central pode, em texto de lei federal expresso, fixar condições ou requisitos de capacidade para o exercício de profissões liberais e de profissões técnico-científicas, ficando, assim, eivadas de inconstitucionalidade, quaisquer dispositivos legais, editados pelos Estados-membros, a respeito da enumeração das referidas condições de capacidade para aqueles exercícios.180. Qualificações Profissionais: Habilitação, capacidade profissional, qualificação profissional é o conjunto de conhecimentos necessários e suficientes para que alguém seja julgado apto à prática de alguma profissão, pública ou privada.181. Estabelecimento por Lei da Qualificação Profissional: Trata-se da lei federal especial, que facultará o exercício de trabalho, ofício ou profissão a quem preencher os requisitos que o legislativo da União tiver estabelecido em lei” (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, vol. I, Forense Univr., 1989, p.281).

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outorgado o direito de atuar em certas áreas, proibindo que outros nelas atuassem por mero critério do poder regulamentador.

Se, no passado, à falta de uma regra mais clara, não era tão nítida a violação que uma tal discriminação poderia perpetrar contra o princípio constitucional da isonomia, no presente o discurso é suficientemente claro para dizer que:

“a todos é assegurado o livre exercício”,

não de algumas atividades, mas

“de qualquer atividade econômica”,

sem exceção, portanto, ressalvados os casos em que a capacitação técnica é necessária.119

Fora destas hipóteses, à nitidez, a autorização dos órgãos públicos é não só desnecessária, mas, se imposta, de clara, notória e indiscutível inconstitucionalidade. O princípio só tem sentido em face da consolidação da economia de mercado que a Constituição Federal objetivou implantar.120

119. Wolgran Junqueira Ferreira chega inclusive a considerar desnecessário o § único do artigo 170 em face do inciso XIII do artigo 5º, ao dizer:“Somente a desatenção dos constituintes, e da comissão de Sistematização é que permitiu a inclusão deste parágrafo único no Título referente à Ordem Econômica e Financeira, pois o inciso XIII do artigo 5º, do capítulo referente aos Direitos Individuais e Coletivos, já reproduzia a mesma coisa, com a única diferença, que é o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, enquanto neste parágrafo, assegura-se a todos o exercício de todas as atividades econômicas.Ora, como o trabalho, ofício e profissão são atividades econômicas, não havia razão desta repetição. Por isso, remetemos o leitos aos comentários que fazemos ao inciso XIII do artigo 5º” ( Comentários à Constituição de 1988, vol 2, Ed. Julex, 1989, p.962).

120. Geraldo de Camargo Vidigal ensina:“O que marca o significado econômico de uma Constituição são as suas opções quanto à propriedade privada e quanto às liberdades, especialmente as de iniciativa econômica, de exercício de ação concorrencial, de trabalhar. Do conjunto dessas liberdades resultam condições para estruturação de mercados.É fértil nossa iminente Constituição, ao visualizar o longo prazo, em afirmações em favor da liberdade.Vem o direito de liberdade desde o preâmbulo constitucional. Os valores sociais da livre iniciativa, ao lado dos do trabalho, estão consagrados no inciso IV, do artigo 1º; o ideal de construção de sociedade livre vem reafirmado no inciso II do artigo 3º.Multiplica-se o artigo 5º, abrindo o título dos direitos e garantias fundamentais, em manifestações preservadoras da liberdade: é livre a manifestação do pensamento, proclama o inciso IV; é inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegura o inciso VI do mesmo artigo; é livre a expressão da atividade intelectual, artística e de comunicação, prevê o inciso IX; é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, consagra o inciso XIII; é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, declara o inciso XV; são livres as reuniões pacíficas em locais abertos ao público, independente de autorização, determina o inciso XVI; é plena a liberdade de associação civil, esclarece o inciso XVII.Numerosas outras disposições complementam a tutela dos princípios de liberdade.Assim, o inciso LIV do artigo 5º proíbe seja alguém privado da liberdade sem o devido processo legal; os incisos LXI e seguintes proíbem a privação de liberdade mediante violência, mediante coação, com ilegalidades ou abuso do poder, estabelecendo critérios e remédios para defesa da liberdade das vítimas de prisão ilegal.Essas diferentes feições da liberdade, no quadro do regime jurídico constitucional, projetam-se na liberdade econômica fundamental de contratar: o ato jurídico perfeito, o direito adquirido, assim como a coisa julgada, são preservados, mesmo da lei, pelo inciso XXXVI do texto constitucional, no mesmo artigo

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E é, à luz destes dispositivos, que mister se faz examinar a questão primeira da consulente.

À evidência, pelo prisma do que acabo de expor, não resiste a Portaria do IBAMA de nº 293 de 27/05/89 (DOU 24/05/89), ao teste da constitucionalidade.

Entendo que não apenas o D.L. nº 164/67 não foi recepcionado pela nova Constituição, o mesmo ocorrendo com a lei nº 5227/67, como também é de notória inconstitucionalidade a lei 7735/89, no que reitera poderes antes do SUDHEVEA transferidos ao IBAMA para regular atividade, que a Constituição postou fora de qualquer regramento inibitório.121

Com efeito, outorgou a lei 7.735/89 ao IBAMA o controle de atividade econômica além da mera capacitação técnica, assim como o poder de determinar quais as empresas que estariam autorizadas a importar e a quantidade dos produtos que cada uma poderia importar, por mera deliberação de seus dirigentes, com pormenorização adicional veiculada pela Portaria nº 293-P/89. Ora, não tendo sido a legislação anterior recepcionada, nitidamente, tal lei e tal portaria estariam revogando dispositivo constitucional, como se o § único do artigo 170, o artigo 174 e inciso IV do artigo 170 não existissem, o que manifestamente não se pode admitir.

5ºPor outro lado, numerosos dispositivos da Constituição tutelam o direito de propriedade. Garante-o inciso XXII do artigo 5º. Qualifica a propriedade sua função social, proclamada no inciso XXIII do mesmo artigo 5º.É precisa a Constituinte em proibir a perda de bens que não resulte de sentença judicial fundada em lei (inciso XLV, XLVI, b, LIV, do artigo 5º).De outro lado, completa-se a proteção ao direito de propriedade pelos incisos XXVI a XXX do artigo 5º, um dos quais assegura o direito de herança, outro concede tutela especial à pequena propriedade rural definida em lei e trabalhada pela família, outros ainda, asseguram direito de autor, direito de arena, direitos de propriedade industrial. O direito de herança é reafirmado a propósito da sucessão do autor e da sucessão do brasileiro casado com estrangeiro.Tutelando a propriedade contra o próprio Estado, prevê a Constituição a justa indenização nas desapropriações por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social” (A Constituição Brasileira 1988 – Interpretações, Forense Univr., 1988, p.373/374).

121. Celso Bastos ensina:“Do exposto se constata que há uma grande diferença entre a lei constitucional anterior e a lei ordinária também anterior. Com a entrada em vigor da Constituição, cessa a eficácia da norma constitucional, o mesmo não se dando com a legislação ordinária anterior, a qual não cessa de viger, embora o novo fundamento de validade venha informado pelos princípios materiais da nova Constituição. O único obstáculo a transpor é não ser contrária à nova Constituição. Dá-se portanto uma novação, o que significa que as normas ordinárias são recepcionadas pela nova ordem constitucional e submetidas a um novo fundamento de validade.Na mesma linha de Jorge Miranda entendemos que esta idéia de novação apresenta três corolários principais:Em primeiro lugar todos os princípios gerais de quaisquer ramos do direito passam a ser aqueles constantes da nova Constituição.Em segundo lugar todos os demais dados legais e regulamentares têm de ser reinterpretados à luz da nova Constituição, a fim de se porem conformes com as suas normas e princípios.Em terceiro lugar, as normas contrárias à Constituição não são recepcionadas, mesmo que sejam contrárias apenas a normas programáticas e não ofendam a nenhuma preceptiva” (Comentários à Constituição do Brasil, 1º volume, Saraiva, 1988, p.367).

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A Portaria é um monumento à inconstitucionalidade e aos privilégios ofertados, no estilo das Monarquias Absolutas, ao tempo de Luiz XIV.122

O artigo 1º outorga poderes absolutos ao IBAMA a contrapelo do § único do artigo 170, estando assim redigido:

“A importação de borracha e látex, vegetal ou sintético, para suplementação do consumo nacional, será feita por indústria consumidora titular de cota concedida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA” (grifos meus).123

À evidência, não é de se aceitar, em face da lei suprema brasileira, tal poder discriminatório, que fere inclusive o princípio da isonomia.

A matéria nem pode ser colocada à luz do direito de regular o nível de tolerância cambial e técnica do Brasil em importar produtos estrangeiros, visto que o que aqui se discute não é a capacidade de importação, mas a discriminação dos importadores, em face de um poder, não só discriminatório, mas arbitrário de concessão de cotas.124

A Portaria do IBAMA, inclusive, choca-se com a Portaria nº 56 de 15/03/90 do Ministério

122. Michel Temer ensina: “Sabemos que há um escalonamento de normas. A lei se submete à Constituição, o regulamento se submete à lei, a instrução do Ministro se submete ao decreto, a resolução do Secretário de Estado se submete ao decreto do Governador, a portaria do Chefe de Seção se submete à resolução secretarial. Há hierarquia de atos normativos e, no ápice do sistema, está a constituição. A emenda à Constituição é, enquanto projeto, um ato infraconstitucional: só ingressando no sistema normativo é que passa a ser preceito constitucional e, daí sim, da mesma estatura daquelas normas anteriormente postas pelo constituinte.Como é que ela pode ingressar no sistema alçando-se à condição de norma constitucional? Na medida em que seja produzida segundo uma forma e versando conteúdo antes posto pelo constituinte. Tanto isto é verdade que o art. 47, §§ 1º e 2º, fixa vedações de natureza material e vedações de natureza circunstancial” (Elementos de direito constitucional, 4ª ed., Ed. Revista dos Tribunais, 1987, p.159/160).

123. Eugenio Haddock Lobo e Júlio César do Prado Leite ensinam: “Ao subtrair do texto das Constituições precedentes, especialmente do § 23 do art. 153 da Carta de 67, emendada em 1969, as expressões latas e subjetivas “observadas as qualificações profissionais que alei exigir”, revelou o legislador constituinte nítido propósito de evitar que, pela porta larga da lei ordinária, se introduzam requisitos objetivando tornar letra morta a regra sob comentário. Sabem os Exegetas que os vocábulos “condições de capacidade”, pela sua amplitude e subjetividade, repise-se, se prestavam a interpretações restritivas não apenas da norma constitucional, mas do próprio princípio universal que ela agasalhava e a atual agasalha, qual seja, o PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE PROFISSÃO, estereotipado, no vigente texto, no livre “exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão”” (Comentários à Constituição Federal, 1º volume, Ed. Trabalhistas, 1988, p.43).

124. José Celso de Mello Filho sobre o direito anterior, que era menos claro, escreveu: “A norma constitucional em análise é de eficácia contida ou restringível, visto que autoriza expressamente a lei ordinária a limitar-lhe o alcance pelo estabelecimento de requisitos de capacidade que condicionem o exercício de qualquer atividade profissional. Isso significa que as profissões ainda não regulamentadas são plenamente acessíveis a qualquer pessoa. Essa plena acessibilidade decorre da ausência de lei estipuladora das condições de capacidade a que se refere o texto constitucional. A partir do momento, porém, em que sobrevier a lei, o exercício da atividade regulamentadora ficará condicionado à prévia satisfação dos requisitos nela fixados, vedadas as cláusulas discriminatórias” (grifos meus) (Constituição Federal Anotada, Saraiva, 1984, p.358).

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da Economia que, em seu inciso III, tem a seguinte dicção:

“Eliminar a exigência de anuência prévia de órgãos da Administração Federal para importação de produtos específicos, exceto nos casos de sangue humano, produtos que causem dependência física, armas e munições, material nuclear, herbicidas e pesticidas para desfolhagem e bens de informática”.

Embora, não tenha o IBAMA, nem o Ministério da Economia poder legislativo próprio, exercendo função meramente regulamentar, o certo é que, nesta atividade vicária, a Portaria do IBAMA anterior estaria em choque com a Portaria do Ministério da Economia, que é posterior e trata da mesma matéria, ou seja, importação. A Portaria, pois, do Ministério da Economia revoga, por inteiro, o sistema de cotas e as burocracia existente para importação de borracha.125

A resposta, portanto, à primeira questão sobre a legislação relacionada ao IBAMA não recepcionada (D.L. 164/66 e lei 5.227/67) e sobre a lei 7.735/89, que maculou o artigo 170 da Constituição Federal, assim como sobre a Portaria IBAMA nº 293-P/89, é de que exalam tão pestilentos vapores de inconstitucionalidade, que a própria função de preservação ambiental do IBAMA fica por eles enodoada.

Sobre a matéria já me manifestara, de forma perfunctória, no parecer publicado no livro “Aspectos Tributários da Nova Constituição”, que volto a reiterar.126

Melhor sorte não merece o tributo intitulado “TAXA DE ORGANIZAÇÃO E REGULAMENTAÇÃO DO MERCADO DA BORRACHA”.

Como mostrei no referido estudo, a taxa mais conhecida por TORMB, na simplificação das iniciais, é também de manifesta inconstitucionalidade. Inequívoca. Inquestionável. Sem perfil no direito brasileiro e no sistema constitucional.

Não se trata de um imposto e mesmo que o fosse seria inconstitucional, pois não

125. O artigo 2º da lei de introdução do Código Civil tem o seguinte discurso: “Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.§ 1º. A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.§ 2º. A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.§ 3º. Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência” (grifos meus).

126. Escrevi sobre o assunto: “Ora, à luz do princípio da livre concorrência, compreende-se o disposto no § único do artigo 170, que oferta uma intervenção regulatória para a execução de qualquer atividade econômica ou pessoal, na medida em que a desvincula de autorizações especiais. O que a lei pode apenas indicar são as condições de capacitação, quais sejam, por exemplo, exigir que só possa exercer a profissão de advogado quem tenha cursado uma Faculdade de Direito ou exercer a medicina quem se tenha formado em Faculdade de Medicina. E, nesta hipótese, o exercício do poder de polícia com que atua não objetiva regular o domínio econômico, mas garantir à sociedade, a prestação de serviços adequados. Tanto assim é que, por tal exercício, o poder público, através de duas autarquias, é remunerado pela espécie tributária “taxa”.A “livre concorrência”, todavia, não admite intervenção regulatória para “engessá-la” em parâmetros pré-estabelecidos que impliquem eliminação do adjetivo “livre”. A intervenção corresponderia a uma “concorrência programada” e a Constituição cuidou de “livre concorrência”” (ob. cit.., Ed. Resenha Tributária, 1990, p.295/296).

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esculpido na lei maior.

Há apenas 15 impostos no sistema brasileiro, podendo a União, por força de sua competência residual, criar novos, desde que não cumulativos e sem base de cálculo e fato gerador próprios de outros impostos.127

Ora, nem a TORMB está elencada entre os 15 impostos, nem poderia ser criada ou recepcionada pela competência residual da União, visto que sua base de cálculo é semelhante ao IPI, ao Imposto de Importação e ao IOF, o mesmo se podendo dizer do ICMS. Com efeito, o artigo 21 da lei 5.227/67 tem a seguinte dicção:

“Art. 21 – É instituída a Taxa de Organização e Regulamentação do Mercado da Borracha, de natureza específica e incidente sobre as borrachas e látices vegetais e químicas nacionais e estrangeiras.

§ 1º. Compete ao Conselho Nacional da Borracha estabelecer as alíquotas da Taxa que se refere este artigo para cada categoria de elastômeros, não podendo aquelas exceder a 1/20 (um vinte avos) do valor de produção das borrachas e látices nacionais e do preço f.o.b. dos produtos importados.

§ 2º. A Taxa de que trata este artigo constitui uma contribuição de caráter parafiscal, terá uma única incidência e é cobrada da seguinte forma: a) para as borrachas e látices vegetais nacionais, no ato da expedição do certificado instituído no artigo 18 desta Lei; b) para as borrachas químicas, nacionais, e para as borrachas e látices estrangeiros, de acordo com as normas que para tal fim baixar o Conselho Nacional da Borracha.

§ 3º. A Taxa de Controle e Fiscalização do Mercado da Borracha destina-se: a) ao custeio das despesas feitas pela Superintendência da Borracha no exercício de suas atribuições, bem como par aa manutenção do Conselho Nacional da Borracha; b) à indenização ao Banco da Amazônia S/A ou a

127. Yoshiaki Ichihara ensina: “O exercício desta competência que é atribuída à União é conhecida como competência residual.O veículo para a instituição deste imposto pelo exercício da competência residual tem que ser necessariamente a lei complementar e possuir como característica a não cumulatividade. Este imposto não pode ser idêntico a nenhum dos impostos nominalmente previstos nos artigos 153, 155 e 156. Outra restrição é colocada na Constituição: “... não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição”. Isto quer dizer que não pode tomar como fato gerador ou base de cálculo de quaisquer impostos discriminados na Constituição. Neste ponto entendemos que a restrição deve ser interpretada ampliativamente, não podendo, inclusive, ter a base de cálculo e fato gerador coincidentes com a dos empréstimos compulsórios e contribuições “ditas” sociais, desde que pela natureza de seu fato gerador possa ser classificado como da espécie tributária imposto.Aplicam-se integralmente as regras relacionadas com as limitações constitucionais ao poder de tributar, direitos e garantias individuais, destacando-se especialmente: o princípio da anterioridade de lei e o veículo normativo, que obrigatoriamente tem de esr a lei complementar.Em relação ao texto da Constituição anterior, a atual restringiu o campo de tributação residual, uma vez que o imposto, além de não cumulativo, deverá ser instituído por meio de lei complementar” ( Direito Tributário na Nova Constituição, Ed. Atlas, 1989, p.135).

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outras entidades por despesas ou serviços que executarem como agentes ou delegados da Superintendência da Borracha; c) à constituição do Fundo Especial previsto no artigo 40 desta Lei.

§ 4º. Nenhum outro imposto, ou taxa de origem federal, além dos previstos nesta Lei, gravará as borrachas e látices vegetais e químicos de produção nacional.

§ 5º. O Conselho Nacional da Borracha baixará as normas acerca da forma de arrecadação da Taxa sobre que dispõe este artigo”.

Além do mais, na definição do artigo 16 do CTN, assim redigido:

“Imposto é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte”,

a TORMB não se enquadraria.128

Não é, também, contribuição de melhoria, visto que não á qualquer obra pública a valorizar patrimônio que esculpa tal forma de imposição.129

De taxas não se trata. Nem há poder de polícia, cujo custo do exercício devesse ser

128. Rubens Gomes de Sousa e Geraldo Ataliba ao comentarem o artigo 16 assim se manifestaram:“Prof. Rubens Gomes de Sousa – Imposto é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte.Uma melhoria de redação, que vejo anotada no exemplar que tenho à minha frente e que não é o meu, seria esta: substituir as palavras “cuja obrigação” simplesmente pela palavra “que”.Imposto é o tributo que tem por fato gerador etc.Prof. Geraldo Ataliba – Porque tributo já é uma obrigação.Essa definição me parece lapidar, perfeita, completa e só a sua presença nesse Código já justifica a sua própria existência, valorizando-o, extraordinariamente.A perfeita definição e o rigor a que chegou a doutrina brasileira e, me perdoe a presença, graças à contribuição decisiva do Prof. Rubens Gomes de Sousa, e que se expressa nesse enunciado, a meu ver, em contraste com a doutrina e a própria legislação comparada, são motivos de orgulho e satisfação para o Brasil, que se coloca só por essa definiçã, sem mencionar os demais méritos do Código e da corrente doutrinária que sustenta a maioria dos seus conceitos, numa situação absolutamente pioneira” (Comentários ao Código Tributário Nacional, Ed. Educ/Revista dos Tribunais, 1975, p.166/167).

129. Escrevi: “A contribuição de melhoria é, das espécies tributárias, possivelmente a mais justa. Paga-a, nos limites dos custos que a obra pública gera, aquele que dela se beneficiar. A contribuição de melhoria idealizada em 1605, por lei, para fazer face às despesas realizadas para tornar o Rio Tamisa mais navegável, foi em seguida adotada também em 1662 e 1670 para a reconstrução de Londres e alargamento de Westminster. Tem-se notícia de uma contribuição “de miglioria” em 1296 cobrada para o embelezamento das praças de Florença, assim como de “fontes” cobradas em 1562 em Portugal para reconstrução de muros, pontes e calçadas.A França, em 1672, 1678 e 1710, por Decreto de Luiz XIV, criou, também, espécie semelhante à contribuição (mais-valia imobiliária) e nos Estados Unidos, já no século XIX, era adotada com o nome de Special Assessment.A experiência brasileira nascia em 6 de julho de 1905 com o Decreto nº 1.029, conformada, mais tarde, com a Lei nº 89 de Taquaritinga, em 30 de setembro de 1931” (Comentários à Constituição do Brasil, 6º volume, tomo I, Saraiva, 1990, p.50/51).

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pela exação suportado, nem há serviço específico e divisível prestado ao contribuinte ou colocado à sua disposição, posto que a generalidade da imposição e o fato de não haver contrapartida prestacional não as configuram. Não há cobrança por serviço prestado ou pelo exercício do poder de polícia, mas imposição, idêntica, em sua base de cálculo, ao ICMS, IPI, Imposto de Importação ou IOF, sem qualquer relação com o custo de eventual atuação estatal. De resto, exceção feita às hipóteses do imposto, em que a desvinculação do tributo em relação à destinação e à figura do contribuinte permite uma alíquota vinculada ao volume da operação ou valor do bem e não ao custo do serviço público ou doação administrativa, os demais tributos são duplamente vinculados ao custo do serviço ou à ação administrativa.130

Restam as contribuições. Estas podem ser de 3 tipos, a saber: intervenção no domínio econômico, sociais ou de interesse das categorias profissionais.

O XV Simpósio Nacional de Direito Tributário, com a presença de Ministros do Supremo Tribunal Federal e magistrados de 2ª. e 1ª. instâncias, além de mais de 200 professores universitários de todo o Brasil, no plenário, concluiu que só há um tipo de contribuição social no país que é destinado à Seguridade Social, o qual tem natureza tributária.131

À evidência, o TORMB não poderia sequer assemelhar-se a tal espécie.

O mesmo se pode dizer no que concerne àquela do interesse das categorias profissionais, em que se compreende a contribuição à OAB, mas não à TORMB, em face da falta de nexo formal e causal neste fato gerador.

Ficaria, então, para o exame se seria ou não uma contribuição de intervenção no domínio econômico.

O artigo 163 § único da Constituição Federal passada, cujo perfil foi reproduzido de forma mais clara, no que concerne à sua natureza tributária, na atual, declara que a contribuição poderá ser cobrada no limite de seus serviços e encargos.132

130. Bernardo Ribeiro de Moraes escreve sobre o direito pretérito, que é idêntico ao atual, que:“No sistema tributário nacional, desde a reforma implantada pela Emenda Constitucional nº 28, de 1965, a taxa acha-se conceituada constitucionalmente, com fundamento no conceito de serviço público específico e divisível e no de poder de polícia. O legislador constituinte, embora não tenha apresentado uma definição de taxa (taxa é ...), procurou conceituá-la juridicamente através de certos limites constitucionais, partindo da discriminação de rendas tributárias. Ao distinguir competência tributária, o texto Supremo limita os casos de instituição de taxas fixando-as em termos jurídicos (compete à União ... cobrar as taxas em função ...).Nos dias de hoje, no Brasil, o conceito de taxa é constitucional” (Doutrina e prática das taxas, Ed. Revista dos Tribunais, 1976, p.54).

131. “”- Pergunta: Haveria duas espécies de contribuições sociais, uma de natureza tributária (artigo 149) apenas veiculável por legislação complementar, e outra de natureza não tributária, veiculável por lei ordinária (artigo 195)?Resposta: À luz da Constituição de 1988 todas as contribuições sociais mencionadas nos arts. 149 e 195 ostentam a natureza tributária (maioria)” (conclusões a serem publicadas no Caderno de Pesquisas Tributárias nº 16).

132. Estava o dispositivo assim redigido: “São facultados a intervenção no domínio econômico e monopólio de determinada indústria ou atividade, mediante lei federal, quando indispensável por motivo de segurança nacional ou para organizar setor que não possa se r desenvolvido com eficácia no regime de competição e de liberdade iniciativa, assegurados os direitos e garantias individuais.

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A atual Constituição deixa claro (art. 149) que tal contribuição deve ser limitada à atuação na área, ou seja, reproduzir, com outra dicção, o discurso pretérito.133

Ora, se é o montante do custo da intervenção que determina o limite da cobrança, à evidência, tal contribuição não pode estar vinculada a fato gerador próprio de imposto, à falta de quantificação global de seu custo. Em outras palavras, para tal tipo de contribuição mister se faz determinar o custo da intervenção e após tal quantificação, deve-se verificar a forma de sua cobrança e não, declarar que cada operação será tributada de determinada forma, independente da determinação do montante global dos custos da intervenção.134

À evidência, por tal linha de raciocínio, a TORMB é uma imposição idêntica aos impostos e, portanto inconstitucional e não uma contribuição de intervenção no domínio econômico, como a Constituição Federal pretérita e atual conformaram.

A diferença entre o direito pretérito e atual é que no pretérito, apesar de inconstitucional a imposição, a intervenção em tese não o era, enquanto na atual, não só a intervenção é inconstitucional à luz do artigo 170 § único, como a cobrança do TORMB é de manifesta inconstitucionalidade.

Respondo, pois à segunda questão entendendo ser de notória inconstitucionalidade a TORMB.

Passo, agora, a responder a terceira questão.

A primeira medida processual que sugiro é a ação direta de inconstitucionalidade contra a lei 7.735/89 e a Portaria nº 293-P/89 do IBAMA, com base no artigo 103 da Constituição Federal.135

Se a ação pudesse ser proposta por uma confederação Nacional ou Sindicato Nacional

§ único. Para atender a intervenção de que trata este artigo, a União poderá instituir contribuições destinadas ao custeio dos respectivos serviços e encargos, na forma que a lei estabelecer” (grifos meus).

133. O artigo 149 da Constituição Federal tem a seguinte dicção: “Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, III e 150 I e III, e sem prejuízo do previsto no art. 195, § 6º, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo” (grifos meus).

134. Escrevi: “Por outro lado, encargos e serviços são atribuições especificadas e bem definidas, cujos orçamentos preestabelecidos e quantificados podem gerar – para os setores insuficientes – uma contribuição apenas destinada a cobri-los.Não há previsão constitucional – o que vale dizer, não existe para o Direito Tributário pátrio – de contribuições cobradas sem vinculação a serviços e encargos, flutuando, como autêntico tributo indireto, em função do nível produtivo e faturamento do setor privado.Uma contribuição de intervenção no domínio econômico, que não seja cobrada para suprir setor economicamente insuficiente e nos limites do custo dos serviços e encargos, deixa de ser contribuição, para ser um tributo indireto, com a natureza de imposto” (Advocacia Empresarial – pareceres, Ed. OAB/SP, 1988, p.17).

135. O artigo 103 está assim conformado: “Podem propor a ação de inconstitucionalidade: ... IX. Confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional”.

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seria preferível, na medida em que não haveria que se discutir a legitimidade ativa da entidade proponente.136

É que, embora a consulente seja uma associação de classe nacional, não definiu, o STF, ainda quais são aquelas associações nacionais que podem ou não propor a ação direta de inconstitucionalidade, certo sendo que há uma tendência a restringir o número de associações civis nacionais representativas de categorias com direito à postulação com tal direito.

Tal problema inexistira para um Sindicato Nacional ou Confederação, que teria legitimidade ativa par aa propositura.137

Outro caminho seria o mandado de segurança coletivo que a própria consulente poderia propor a favor de seus associados. Como a coação é renovada a cada importação, impetra-se-ia contra a autoridade arrecadadora da referida taxa ou contra o presidente do IBAMA, impetração esta, todavia, que poderia ser considerada como sendo realizada contra a lei em tese, em face de ser tal autoridade aquela emissora do ato administrativo, mas não necessariamente sua executora. Caberia demonstrar que o presidente do IBAMA é a autoridade executora para justificar o Mandado de Segurança Coletivo.

Já o meu escritório impetrou MS coletivo contra o presidente do Banco Central para não aquisição de certificados de privatização para uma entidade de classe, tendo sido concedida liminar pela Justiça Federal de Brasília e mantida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região.138

136. Rogério Lauria Tucci e José Rogério Cruz e Tucci ensinam: “Por outro lado, sensível às ponderações dos especialistas e às novas exigências do direito processual, o legislador constituinte alargou consideravelmente a legitimação ativa para a ação em tela.Agora consoante o art. 103, I a IX, podem ajuizá-la, além do Procurador-Geral da República (inc. VI), único legitimado no regime constitucional anterior, o Presidente da República (inc. I); a Mesa do Senado Federal (inc. II); a Mesa da Câmara dos Deputados (inc. III); a Mesa da Assembléia Legislativa (incl. IV); o Governador de Estado (inc. V); o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (inc. VII); partido político com representação no Congresso Nacional (inc. VIII); e, ainda, confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional (inc. IX).Isto significa que, enquanto não editada lei ordinária para regulamentar a ação direta de declaração de inconstitucionalidade, a da nº 4.337, de 1º de junho de 1964, encontra-se revogada no tocante à exclusividade outorgada ao Procurador-Geral da República.Note-se, ainda, que todos esses legitimados podem agir de modo espontâneo ou provocado, tendo em ambas as hipóteses, plena disponibilidade de ação” (Constituição de 1988 e Processo, Saraiva, 1989, p.106/107).

137. Na palavra de José Eduardo Carreira Alvim, vale a pena lembrar a lição de Carnelutti: “Cumpre observar, inicialmente, que Carnelutti não estrutura o processo civil sobre o conceito de ação, como Chiovenda, mas ao tratar da ação o faz com a maior propriedade.Embora tivesse Carnelutti definido a ação como “um direito subjetivo que tem o indivíduo como cidadão, para obter do estado a composição do litígio”, posteriormente em suas Instituições a define como “o direito subjetivo processual das partes”.Afirma ele que o sujeito passivo da ação não é o adversário (como pensava Chiovenda), senão o juiz ou, em geral, o membro do ofício, a quem corresponde prover sobre a demanda proposta por uma parte” (Elementos de Teoria Geral do Processo, Forense, 1989, p.162).

138. O inciso LXX do artigo 5º da Constituição Federal está assim veiculado:

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Por não ter havido, todavia, regulamento processual do MS coletivo, a medida, que beneficiaria a todos os impetrantes, é ainda matéria polêmica.

Para mim – e a prova de minha convicção está no MS coletivo retro-mencionado, que impetrei – tal medida não oferta dúvida processual, visto que seu rito só pode ser aquele do Mandado de Segurança Individual.139

Restariam as medidas individuais, a saber: o mandado de segurança preventivo contra o ato ilegal e sua autoridade executora, objetivando-se ofertar caráter normativo ao mesmo, a fim de que se evite a coação futura, ou ação declaratória precedida de uma medida cautelar inominada, em ambos os processos, pleiteando-se a proteção liminar.

A ação declaratória poderia ser substituída por uma ordinária de preceito condenatório.

Alguns doutrinadores e juízes têm entendido que a ação declaratória, por dizer respeito a uma relação a ser conformada em sua exata dimensão jurídica pela prestação jurisdicional, não poderia ter caráter normativo, no máximo valendo de seus efeitos para todas as relações até a sentença de 1ª instância.140

“O mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por: ... b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados”.

139. Manoel Gonçalves Ferreira Filho ensina:“Ferve a controvérsia a propósito desta inovação. O texto se refere a “o mandado de segurança coletivo” como se se tratasse de um instituto jurídico bem conhecido, de linhas de há muito definidas, quando na verdade cria uma espécie nova de writ.O mandado de segurança coletivo não pode ser confundido com o mandado de segurança impetrado por uma pluralidade de pessoas jurídicas unidas por litisconsórcio. A admissibilidade do mandado de segurança litisconsorcial nunca fez dúvida, de modo que não teria sentido prevê-lo expressamente no texto constitucional, sob o rótulo de mandado de segurança coletivo.É pela finalidade que, essencialmente, o mandado de segurança coletivo se distingue do mandado de segurança litisconsorcial: nele, é um direito “difuso” de todos os membros de uma associação, sindicato etc. que encontra defesa, não direitos particulares de alguns elementos de determinado grupo. O mandado de segurança coletivo é instrumento de garantia, é remédio processual destinado a proteger direitos de toda uma “coletividade”. E só a “coletividade” que o ente “representa”. Sendo mandado de segurança, o remédio em exame pressupõe direito líquido e certo. A referência no texto a “interesses” não deve causar engano. Mero interesse que não configure direito não pode ser protegido por um mandado de segurança; admitir o contrário seria subverter toda a tradição jurídica nacional, o que, sem dúvida, não quis o constituinte.É evidente no texto a atribuição de legitimação substitutiva extraordinária a determinados entes, para o mandado de segurança coletivo; partido político com representação no Congresso Nacional (esta última exigência para que ele tenha um mínimo de representatividade assegurada), organização sindical, ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano.O sujeito passivo do mandado de segurança coletivo há de ser, como é óbvio, uma autoridade, no sentido do inciso anterior (LXIX).Ao contrário do que ocorre na hipótese versada pelo inc. XXI, os entes aqui legitimados para a impetração do mandado de segurança coletivo não necessitam do consentimento de seus membros para fazê-los” (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, volume I, Saraiva, 1990, p.77/78).

140. Alfredo Buzaid esclarece: “O objeto da ação declaratória é ordinariamente uma relação jurídica. Dispõe o Código de Processo Civil: “Art. 4º - O interesse do autor poderá limitar-se à declaração: I – da existência ou da inexistência de relação jurídica; II – da autenticidade ou falsidade de documento”. Por aí se vê que a lei exclui do escopo da ação declaratória os fatos que não revistam o caráter de uma relação jurídica. Ainda que juridicamente relevante, um simples fato não pode constituir objeto da ação

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Em relação aos dois processos, em caso de insucesso há o risco de se ter que suportar a sucumbência, o que não ocorre com o mandado de segurança.

Pessoalmente, entendo que todos os caminhos são viáveis, inclusive a ação direta de inconstitucionalidade, por ser a associação consulente de âmbito nacional e a única a congregar o segmento atingido pelos inconstitucionais diplomas mencionados e pela ilegal exigência de um tributo sem perfil no sistema brasileiro.

S.M.J.

São Paulo, 14 de novembro de 1990.

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declaratória. “O objeto da ação e da sentença declaratória”, escreveu ROSENBERG, “é um direito ou uma relação jurídica, não um fato”. A lei só abriu uma exceção a esta regra, admitindo que um único fato pudesse ser objeto da ação declaratória: a verificação da autenticidade ou falsidade de documento. “Salvo a ação declaratória de autenticidade ou falsidade de documento, que apenas precedeu na praxe”, escrevem ROSENBERG e SCHWAB, “são admissíveis as ações declaratórias unicamente para a declaração da existência ou inexistência de relação jurídica”. O documento, em torno do qual gira a controvérsia sobre sua autenticidade ou falsidade, pode eventualmente conter uma relação, ou criar direitos e obrigações inter-subjetivas. Porém, não são os efeitos derivados do documento que constituem objeto da ação de declaração, mas o simples fato de sua autenticidade ou falsidade. “Excepcionalmente”, observou CANMED, “a declaração pode recair sobre a existência de um fato juridicamente relevante, que pode dar eventual origem à relação jurídica; mas este caso ou pode reconduzir-se à regra da relação jurídica, precedentemente indicada, ou depende de disposições especiais, que não podem generalizar-se” (A ação declaratória no direito brasileiro, 2ª ed., Saraiva, 1986, p.147/148/149).

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6 - AS ESCOLAS PARTICULARES DEVEM SUBMETER-SE APENAS ÀS NORMAS GERAIS DA EDUCAÇÃO NACIONAL – NÃO ESTÃO SUJEITAS A QUALQUER CONTROLE DE PREÇOS PELOS SERVIÇOS PRESTADOS – INCONSTITUCIONALIDADE DA MEDIDA PROVISÓRIA 244/90 – PARECER.

CONSULTA

As consulentes, por intermédio do eminente advogado Schubert de Farias Machado, formulam-me as seguintes questões:

“Diversos estabelecimentos de ensino particular, no Ceará, por nosso intermédio, impetraram mandado de segurança preventivo contra a SUPERINTENDENTE DA SUNAB NO CEARÁ, em face da ameaça de lavratura de autos de infração contra os mesmos, pelo fato de haverem reajustado o valor de suas mensalidades.

Sustentam os impetrantes ser inconstitucional o controle de preços das mensalidades escolares, pelas razões alinhadas na inicial da impetração, que passam às mãos de V.Sa.

Entendem, outrossim, os impetrantes, que a denominada “livre negociação” de que tratam as medidas provisórias editadas sobre a matéria, algumas já convertidas em lei, constitui forma de controle de preços, que além de inconstitucional, é impraticável.

Em face da importância da questão em referência, não apenas para o presente, mas sobretudo para o futuro, vem a Consulente solicitar o parecer de V.Sa. sobre a mesma e especialmente sobre o seguinte:

“a) O regime jurídico constitucional da escola particular admite o controle de preços das mensalidades por ela cobradas?

b) Na Constituição Federal de 1988, a escola particular é um meio pelo qual o Poder Público cumpre o seu dever de assegurar o direito de todos à educação, ou é instrumento de pluralismo de idéias?

c) A denominada “livre negociação”, de que trata a M.P. 244/90, é compatível com as leis de mercado ou é forma de controle de preços?

d) Do ponto de vista factual, tendo-se em vista as leis de mercado, qual a conseqüência do controle de preços das mensalidades escolares?”.

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RESPOSTA

Artigo de extrema relevância da Constituição Federal possui a seguinte dicção:

“Art. 212. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento no mínimo da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino.

§ 1º. A parcela da arrecadação de impostos transferida pela União aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, ou pelos Estados aos respectivos Municípios, não é considerada, para efeito do cálculo previsto neste artigo, receita do governo que a transferir” (grifos meus).

Por ele, a União deve aplicar 18% da receita de todos os impostos, os Estados, Distrito Federal e Municípios 25% na manutenção e desenvolvimento do mesmo. Esta aplicação é a mínima permitida pela Constituição, podendo a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios ampliarem-na.141.

O discurso constitucional faz menção à receita bruta dos impostos, em fórmula que favorece o ensino sobremaneira, visto que, nas transferências, seu montante comporá os ingressos do ente federativo beneficiário.

Com efeito, se oferta o constituinte à União, percentual menor, é porque a União não é receptora de transferências, mas apenas doadora, razão pela qual os 18% representam percentual tão somente da receita líquida de todos seus impostos, sem exceção.142

141. A equipe da Price Waterhouse assim o comenta: “Com relação à Constituição de 1967, o texto constitucional vigente aumenta o limite mínimo dos recursos a serem aplicados pela União, anualmente, na manutenção e desenvolvimento do ensino, de 13% para 18%. A destinação dos recursos estaduais, municipais e do Distrito Federal permanece em 25%, no mínimo.Vedada a vinculação da receita de qualquer imposto a órgão, fundo ou despesa, o texto constitucional vigente permite, no entanto, que se destine a arrecadação de impostos à manutenção do ensino (vide comentários ao art. 167, IV). Outrossim, cumpre salientar que a obrigação contida na norma abrange também as receitas de impostos provenientes de transferências” (A Constituição do Brasil 1988, Ed. Price Waterhouse, 1989, p. 804).

142. Escrevi: “O artigo 153 elenca sete impostos como sendo os da competência da União, a saber: importação de produtos estrangeiros; exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados; renda e proventos de qualquer natureza; produtos industrializados; operações de crédito, câmbio e seguro ou relativas a títulos ou valores mobiliários; propriedade territorial rural; grandes fortunas, nos termos de lei complementar.O elenco da União está reduzido em relação à Carta anterior, cujo artigo 21 apresentava o repertório que se segue: “Art. 21. Compete à União instituir imposto sobre: I. importação de produtos estrangeiros, facultado ao Poder Executivo, nas condições e nos limites estabelecidos em lei, alterar-lhe as alíquotas ou as bases de cálculo; II. Exportação, para o estrangeiro, de produtos nacionais ou nacionalizados, observado o disposto no final do item anterior; III. propriedade territorial rural; IV. Renda e proventos de qualquer natureza, salvo ajuda de custo e diárias pagas pelos cofres públicos na forma da lei; V. produtos industrializados, também observado o disposto no final do item I; VI. operações de crédito, câmbio e seguro ou relativas a títulos ou valores mobiliários; VII. serviços de comunicações, salvo os de natureza estritamente municipal; VIII. produção, importação, circulação, distribuição ou consumo de lubrificantes e combustíveis líquidos ou gasosos e de energia elétrica, imposto que incidirá uma só vez sobre qualquer

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Estados e Distrito Federal devem destinar percentual maior (25%) porque são receptores de transferências da União e os Estados, simultaneamente, doadores de sua receita própria para os Municípios.

Os Municípios, em idêntico percentual, são apenas donatários.

O certo, entretanto, é que, via receita própria ou via receita de transferências, toda a receita bruta federal, estadual e municipal, nos percentuais mencionados, deverá ser destinada à educação, lembrando-se que o percentual de 18% da União se transforma em 25% na parcela transferida de seus impostos para Estados, Distrito Federal e

dessas operações, excluída a incidência de outro tributo sobre elas; IX. a extração, a circulação, a distribuição ou consumo dos minerais do país enumerados em lei, imposto que incidirá.uma só vez sobre qualquer dessas operações, observado o disposto no final do item anterior; e X. transportes, salvo os de natureza estritamente municipal”.Perde, pois, a União 5 impostos, a saber: os três únicos, o de transportes e o de comunicações, que passam para os Estados, ganhando em contrapartida o imposto sobre grandes fortunas.Mantém-se, portanto, em sua competência os três impostos regulatórios (I.E., I.I. e IOF), com o que as relações comerciais externas, as operações de câmbio e concernentes à política monetária ficam sob seu controle, no que agiram bem os constituintes, pois, nitidamente, impostos a serem geridos pela União, como guardiã do equilíbrio político-financeiro e econômico da Federação. Os impostos regulatórios, todavia, no mais das vezes objetivam menos a arrecadação e mais a instrumentalização de mecanismos do que evitar distorções nas relações comerciais, monetárias e cambiais, que poderiam afetar o comércio interno eexterno.De rigor, o melhor sistema para as competências impositivas exclusivas plasmadas na Constituição seriam a outorga de competência impositiva à União de quatro impostos, a saber: um imposto sobre a renda, um imposto regulatório de importação e exportação, um imposto de circulação de bens utilizados na produção e no comércio e acréscimo de serviços e um imposto sobre o patrimônio, retirando-se competência impositiva direta a Estados e Municípios, mas ofertando a Estados e Municípios participação direta e automática em todos eles (3). Os contribuintes estariam sujeitos aos quatro tipos de tributação conhecidos: renda, patrimônio, circulação e regulatórios e não teriam que conviver com um sistema complicado, com multiplicação de escriturações para fatos geradores comuns (IPI, ICMS, IVV, ISS ou I.R. Federal e Estadual), posto que os fatos geradores gerariam uma única incidência.Por outro lado, os Estados e Municípios não precisariam manter estruturas excessivas para obter a proliferação de incidências, como que a máquina arrecadatória seria menor, as obrigações incidentes sobre os contribuintes menores, os quatro tipos de fatos imponíveis tributados e a repartição da receita federal automática, já no ato do pagamento do imposto pelo sujeito passivo da relação.A comunidade Econômica Européia, cujo nível de civilização parece-me -salvo opinião diversa de especialistas brasileiros- um pouco superior à nossa, adotou não apenas um imposto de característica federativa –ou confederativa- que é o IVV, como fez com que este incidisse sobre as operações hoje incididas por IPI, ICMS, IVV e ISS. A receita lá é maior, a máquina arrecadadora menor e a vida do contribuinte não é atormentada pela proliferação de obrigações acessórias e pela busca penosa de aconselhamento no cipoal legislativo criado. Aqui a receita é menor, a máquina administrativa consideravelmente maior, os contribuintes desestimulados pela proliferação de tributos superpostos, o mais das vezes, com violação do sistema.Os constituintes, todavia, optaram nitidamente pela forma mais complicada, não aceitando a bem sucedida experiência européia, apesar de terem o exemplo da má sucedida experiência brasileira anterior. E, desta forma, preferiram adotar claramente os mecanismos complicados, as incidências superpostas, à luz da preservação de uma autonomia federativa, que nem oferta tranqüilidade aos entes federativos, nem à sociedade que os sustenta.E para a União optaram nitidamente por reduzir os impostos de sua competência, sobre deles retirar participação maior para os outros entes, embora não se preocupassem na redução de atribuições, antes as aumentando.Resta saber como utilizará a União de sua competência impositiva nos 7 impostos que lhe restaram” (Comentários à Constituição do Brasil, 6º volume, tomo I, Saraiva, 1990, p. 233/234/235/236/237).

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Municípios.

Tais considerações realçam a extrema importância que o constituinte dá à educação, em concepção, de certa forma, acolhida pela lei suprema pretérita.143

Sendo a educação a meta maior dos governos que devem preparar as gerações futuras e melhorar o nível educacional das gerações atuais, o legislador maior torna obrigatória a oferta do ensino público, através da destinação de 1/4 das receitas brutas de impostos estaduais e municipais e quase 1/4 das receitas brutas dos impostos federais a finalidade tão elevada.

Mais do que isto, exige, por parte do Poder Público, a aplicação destas verbas, ao determinar, no § 2º do artigo 208, que:

“O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente”.144

143. Sobre o § 4º do artigo 176 da Constituição anterior, assim redigido: “Anualmente, a União aplicará nunca menos de 13%, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios 25%, no mínimo, da receita resultante de impostos, na manutenção e desenvolvimento do ensino”, Manoel Gonçalves Ferreira Filho ensina: Aplicação na Manutenção e Desenvolvimento do Ensino. A Emenda nº 24 restabeleceu imperativo que constava da Constituição de 1946, no art. 169. Em face do dispositivo ora em exame, existe a obrigação, para a União, para os Estados e para os Municípios, de aplicar parcela de sua receita proveniente de impostos (e não da receita tributária em geral) na “manutenção edesenvolvimento do ensino”.Note-se que o texto fala em “ensino” e não em “educação”. Educação tem, na Constituição, um sentido mais amplo do que ensino. É toda a formação que é dada ao jovem “no lar e na escola”, como está no caput deste artigo. Ensino é a preparação intelectual dada na escola, seja no primeiro, seja no segundo, seja no terceiro grau. A distinção tem importância porque, mandando aplicar parcela da receita de impostos no ensino, a Constituição busca fornecer meios para que se dê instrução (insista-se) de primeiro, segundo ou terceiro grau ao brasileiro. Assim, as despesas com educação, que não sejam em ensino, ou seja, em instrução, não devem ser computadas para inteirar a parcela que a Constituição determina devam ser aplicadas no ensino.A aplicação da referida parcela deve ser na “manutenção”, quer dizer, no custeio do ensino, ou no seu “desenvolvimento”, o que engloba a ampliação do sistema de ensino e o seu aprimoramento. Mas ampliação e aprimoramento que diretamente se reflitam no ensino, formal, escolar” (Comentários à Constituição Brasileira, 6ª ed., 1986, p. 709).

144. José Afonso da Silva ensina: “O dever estatal com a educação implica a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, cada qual, com seu sistema de ensino em regime de colaboração mútua e recíproca, destinando, anualmente, a União não menos de dezoito por cento da receita de impostos, e os Estados e Municípios, cada um, no mínimo, vinte e cinco por cento da receita de impostos, compreendida a proveniente de transferências, com prioridade de aplicação no ensino obrigatório. Esses recursos, como qualquer outro recurso público, serão destinados à escola pública. Faculta-se, por exceção, dirigir recursos públicos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, inclusive por meio de bolsa de estudos a quem demonstrar insuficiência de recursos, quando houver falta de vagas e cursos regulares na rede pública na localidade da residência do educando.6. Ensino pago e ensino gratuito:O art. 206, IV, assume o princípio da gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais, devendo o Estado assegurá-lo, desde já, ao ensino fundamental e garantir a progressiva extensão da gratuidade ao ensino médio (art. 208, I e II). O princípio do art. 206, IV, significa que onde o ensino oficial, em qualquer nível, já é gratuito, não poderá passar a ser pago. Onde é pago, se for fundamental, deverá passar imediatamente a ser oferecido gratuitamente, e se for médio, a entidade pública mantenedora deverá tomar providência no sentido de que, progressivamente, se transforme em gratuito.A gratuidade do ensino oficial nos três níveis -fundamental, médio e superior- é velha tradição do sistema

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Ao tornar a autoridade pública responsável pelo não oferecimento do ensino obrigatório e gratuito, objetiva, o constituinte, demonstrar que o artigo 212 não é apenas programático, mas auto-aplicável e que, de rigor, praticamente 1/4 de toda a receita bruta de impostos no país deve ser ofertada ao ensino, com o que o Poder Público não pode se desculpar de falta de recursos. Em outras palavras, ao destinar aproximadamente 1/4 da receita dos 15 impostos do sistema nacional para educação, o constituinte pretende:

a) ofertar ensino a todos os brasileiros;

b) punir o governo que não ofereça tal ensino posto que recursos suficientes para oferendá-lo são-lhe assegurados.145

A partir dessa nítida opção do constituinte para recuperação da qualidade, do nível e da extensão do ensino posto à disposição da sociedade, com recursos mais do que suficientes, compreende-se a razão de ser do artigo 208 da Constituição Federal assim descrito:

“O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I. ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria; II. Progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio; III. atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino; IV. atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a 6 anos de idade; V. acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um; VI. oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando; VII. atendimento ao educando, no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.146

educacional brasileiro” (Curso de Direito Constitucional Positivo, 5ª ed., Ed. Revista dos Tribunais, 1989, p. 702/703)

145. Celso Bastos esclarece: “A Educação é direito de todos e dever do Estado e da família. Tem por objetivo o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para a cidadania e sua qualificação para o trabalho. Esta será ministrada com base nos princípios fixados no art. 206, dentre os quais se destaca o inc. IV que determina a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais. Daí surgirem os dois sistemas fundamentais de ensino. O público, sustentado pelo Estado, e o privado, aberto à iniciativa privada e sujeito ao cumprimento das normas gerais de educação nacional e à avaliação de qualidade pelo Poder Público (art. 209).O Estado se desonera de seu dever de educar, satisfazendo aos incisos do art. 208; saliente-se aí o dever do Estado em matéria de ensino fundamental, que é obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiverem acesso na idade própria. Esta obrigatoriedade e esta gratuidade deverão, gradativamente, ser estendidas ao ensino médio. Dispositivo muito importante é o § 2º do mesmo art. 208, que diz que o não-oferecimento do ensino obrigatório importa responsabilidade da autoridade competente” (grifos meus) (Curso de Direito constitucional, 11ª ed., Saraiva, 1989, p. 368).

146. Walter Ceneviva esclarece: “O art. 208 especifica as garantias que incumbem ao Estado para o adimplemento de seu dever para com a educação. O principal dever é pertinente ao ensino obrigatório, fundamental, gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria. O acesso à

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Como se percebe, o constituinte impõe linha de conduta aos governos de todas as esferas, com nítida opção pela responsabilidade absoluta do Estado para ofertar ensino público e gratuito à sociedade, em que a qualidade é um de seus mais marcantes componentes.

No artigo 213, por outro lado, o constituinte admite destinar recursos públicos a escolas comunitárias, confessionais e filantrópicas desde que de caráter não. lucrativo e cujos excedentes financeiros sejam voltados exclusivamente à educação.147

Está o artigo 213 assim redigido:

“Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que: I. comprovem finalidade não-lucrativa e apliquem seus excedentes financeiros em educação; II. assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades.

§ 1º. Os recursos de que trata este artigo poderão ser destinados a bolsas de estudo para o ensino fundamental e médio, na forma da lei, para os, que demonstrarem insuficiência de recursos, quando houver falta de vagas e cursos regulares da rede pública na localidade da residência do educando, ficando o Poder Público obrigado a investir prioritariamente na expansão de sua rede na localidade.

§ 2º. As atividades universitárias de pesquisa e extensão poderão receber apoio financeiro do Poder Público”.148

educação é direito público subjetivo, inalienável. Chama-se direito público subjetivo à educação o poder atribuído pela Constituição a todas as pessoas que, querendo recebê-la do Estado, exijam deste as medidas próprias para sua satisfação.A importância atribuída ao ensino fundamental vincula individualmente os encarregados do setor, pois o § 2º do art. 208 considera que seu não-oferecimento, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente. Para pensar na referida norma em nível constitucional é necessário ter presente que o Brasil apresenta índices muito altos de analfabetismo, a dificultarem a transposição dos princípios ideais para o plano do concreto. Basta comparar nossa situação com a Argentina, que tem menos de 5% de analfabetos, concentrados estes, em maior número, no extremo sul do país, na Patagônia, para acentuar a magnitude do trabalho.O programa quantificador da educação destinado a eliminar o analfabetismo é desejável, mas não esgota as alternativas viáveis. A gratuidade e a acessibilidade da escola são imprescindíveis” (grifos meus) (Direito Constitucional Brasileiro, Saraiva, 1989, p. 288).

147. Toshio Mukai explicita: “O art. 213 somente admite que os recursos públicos sejam destinados, quando não utilizados pelo próprio poder público, às escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que atendam a certas condições. Portanto, não poderá mais o Poder Público, a qualquer título subsidiar ou subvencionar organizações particulares de ensino que não atendam a tais condições.O § 2º do art. 213 admite apenas que as atividades universitárias de pesquisa e extenso recebam apoio do Poder Público. Portanto, somente as atividades de extensão universitária e de pós-graduação podem receber apoio financeiro e público” (Administração Pública na Constituição de 1988, Saraiva, 1989, p. 153).

148. José Carlos Cal Garcia interpreta a intenção do constituinte, dizendo: “Pelo texto constitucional a educação e a cultura ganham preeminência só comparável aos três Poderes do Estado. Foi feito,

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E apenas admite o ensino privado, se este tiver, pelo menos, a mesma qualidade do ensino público, que, sobre ser ofertado a toda a sociedade, com os fartos recursos destinados pela Constituição, deve ser do mais elevado nível técnico.

Estão artigo 209 assim redigido:

“O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: I. cumprimento das normas gerais da educação nacional; II. autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público”.149

Da leitura dos dispositivos mencionados pode-se tirar, de imediato as seguintes conclusões:

1) a maior destinação de receita de impostos, em nível constitucional, é para a educação;

2) dos 15 impostos, aproximadamente 1/4 da receita bruta deve ser aplicada no incentivo e desenvolvimento do ensino;

3) o Estado deve ofertar ensino gratuito e público a toda a sociedade, sem exceção sob pena de responsabilidade da autoridade, nível e qualidade superior.150

talvez, o que já deveria ter acontecido há cem anos. A responsabilidade da educação, que se perdia na irresponsabilidade onimoda do governo, é definida e localizada. A educação passa a ser servida e gerida por um aparelhamento paralelo ao do governo. a grande obra permanente do regime democrático. A obra de longo alcance. Ao lado dela, a função do governo é próxima e imediata. Pela educação forma-se o homem e, mais, conquista-se a justiça social. É saudável, portanto, que a obra educacional se faça sem os atropelos da obra do governo, sem abalos políticos, mas com espírito de permanência, que a gesto democrática de docentes, alunos, funcionários e representantes da comunidade assegura.O direito à educação faz-se um direito de todos, porque a educação já não é um processo de especialização de alguns para certas funções da sociedade, mas a formação de cada um e de todos para a sua contribuição à sociedade nacional, que se quer construir com a modificação do tipo de trabalho e do tipo de relações humanas. A Constituição Federal, ao proclamar esse direito à educação, formou a consciência de que uma sociedade democrática é, por excelência, a sociedade que oferece aos seus membros igualdade de oportunidade educativas” (Linha Mestras da Constituição de 1988, Saraiva, 1989, p. 201).

149. Wolgran Junqueira Ferreira assim o comenta:“Este artigo decorre do inciso III do.artigo.206 que, dentre os princípios consagrados pela filosofia educacional abraçada pela Constituição sustenta o pluralismo de idéias e de instituições de ensino, públicas e privadas. O ensino é livre à iniciativa privada. Entretanto, devem ser observadas as seguintes regras: a) cumprimento das normas gerais de educação nacional. Não poderão as escolas privadas se furtarem ao estrito cumprimento do currículo das escolas públicas e da carga horária de cada matéria; b) devem ser autorizadas e avaliadas quanto à qualidade de ensino, pelo Poder Público. O ato de autorização deve ser precedido de uma vistoria das instalações físicas e da capacidade do cargo docente. Após a autorização vem o ato de reconhecimento que se materializa na verificação do bom andamento da escola” (Comentários à Constituição de 1988, 1ª ed., Ed. Julex, 1989, p.1081/1082).

150. A responsabilidade poderá ser inclusive civil, na medida em que se quantifique prejuízos à comunidade, valendo os esclarecimentos de Helly Lopes Meirelles: “A responsabilização civil dos servidores por danos causados a terceiros no exercício de suas atividades funcionais depende da comprovação da existência de dolo ou culpa de sua parte, em ação regressiva proposta pela pessoa jurídica de direito público obrigada, objetivamente, à reparação do dano, nos termos do art. 37, § 6º, da Constituição da República.De fato, o § 6º, do art. 37, estabelece a responsabilidade sem culpa, por isso denominada objetiva,

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4) se não tiverem fins lucrativos, estabelecimentos privados podem receber recursos do Estado para atender o desiderato maior do desenvolvimento do ensino;

5) a iniciativa privada pode dedicar-se ao ensino, desde que mantenha a qualidade que a escola pública deve ofertar, subordinada às normas gerais de educação nacional, que dizem respeito apenas a currículo e qualidade, como se verá adiante;

6) a escola privada pode existir, no regime de livre iniciativa, tendo consciência seus detentores, de que seu campo de atuação deverá ser limitado, VISTO QUE O ENSINO É GARANTIDO A TODA SOCIEDADE GRATUITAMENTE E EM ELEVADO NÍVEL, pois dos impostos que a sociedade paga ao Estado deve ele, em suas três esferas, destinar quase 1/4 à educação.151

Colocadas tais premissas, já se pode avançar sobre o papel do ensino privado conformado pelos constituintes.

Se o Estado é obrigado:

1) a ofertar ensino gratuito a toda a sociedade;

e

2) a Constituição garante recursos para que assim aja,

qual será o papel que a escola privada deve preencher?

De rigor, aquele de melhorar ainda mais o nível do ensino, por investimentos maiores, contratação de professores mais qualificados e inovação equipamental, que permita a pesquisa e a pluralidade de idéias, assim como outras alternativas educacionais.

De início, a escola privada no pode concorrer com a pública, posto que esta é gratuita, obrigatória e extensível a toda a sociedade, sob pena de responsabi1idade da autoridade que não o fizer, inclusive de bom nível, pois para tanto há recursos oficiais.152

das entidades de direito público (União, Estados, Distrito Federal, Municípios e suas autarquias) e de direito privado prestadoras de serviços públicos, pelos prejuízos causados a terceiros em decorrência da atividade administrativa. Todavia, o dispositivo constitucional veda a transferência dessa responsabilidade ao servidor imputável, impondo o seu chamamento a juízo, não pelo lesado, mas pela entidade interessada em ressarcir-se, a qual, para tanto, deverá demonstrar a culpa do referido servidor em ação autônoma” (Direito Administrativo Brasileiro, 15ª ed., Ed. Revista dos Tribunais,1990, p. 387/388).

151. A Comissão Mista do Congresso Nacional, encarregada de examinar a M.P. 244, reconhece que a obrigação do Estado é ofertar ensino gratuito e exigir das escolas privadas apenas o que determina o artigo 209, admoestando inclusive o Governo, ao dizer: “.. ela parece ter-se excedido nesse zelo pela coisa pública em que o coletivo prepondera sobre o individual, sobre o privado e o particular.Os abusos ou os mercantilismos desarrazoados, na expressão utilizada pela Exposição de Motivos n 175, não se corrigem com o descumprimento à norma constitucional que, em matéria de educação, de um lado obriga o Poder Público a investir na escola pública, dotando-a de um padrão de qualidade capaz de competir com suas congêneres privadas e, de outro, que as escolas particulares cumpram o que preceitua o art. 209 da Carta Magna” (parecer n. 76, de 1990-CN).

152. Pinto Ferreira ensina:. “Partindo da marca zero, a irresponsabilidade do Estado progride continuamente para uma extensão e alargamento dos casos de responsabilidade e da maneira de engajá-los.

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À evidência, o requisito do inciso II do artigo 209 é despiciendo, visto que se for, a escola privada, de pior qualidade que a pública, que é gratuita, ninguém a procurará. Repita-se que a escola pública tem que ser de boa qualidade, pois o Poder Público Federa1, Estadual e Municipal TÊM SOBEJOS RECURSOS RETIRADOS DA SOCIEDADE para garantir sua elevada qualidade.

Ora, à nitidez, se a iniciativa privada decidir ingressar -não supletivamente, visto que não há espaço, a suprir em regime em que o ensino é obrigatório e gratuito- na área educacional, é para ofertar melhor qualidade, única forma de conseguir atrair estudantes. E, para isto, necessitará de investimentos, que só poderão ser retirados dos próprios estudantes, que, se não desejarem estudar nas escolas particulares, têm a garantia constitucional do ensino gratuito ofertado, em bom nível, pelo Poder Público.153

Ora, quanto maior o investimento com professores e equipamentos, meridianamente, tanto mais elevado deverá ser o pagamento por tais serviços, razão pela qual, se uma escola cobrar muito mais do que a inflação e do que qualquer outra escola, mas ofertar, em nível de qualidade de ensino, patamar muito superior às outras escolas, à evidência, será algo extremamente desejável, posto que estará permitindo que o ensino evolua para cima e não: seja nivelado por baixo.

Se seus preços ficarem fora do mercado e ela não conseguir alunos, irá adaptar-se reduzindo sua qualidade ao nível da capacidade de pagamento deles.154

Fórmulas regalengas simbolizam a marca zero inicial ou o princípio da irresponsabilidade. “Le roi ne peut mal faire” e “The king can do no wrong”. Aos poucos passou-se para o princípio da responsabilidade objetiva”, acrescentando: “Em 1948, o STF reconheceu a responsabilidade pública por dano provocado por ato praticado com base em lei, ulteriormente declarada inconstitucional (RDA, 20:42). Outras decisões e responsabilidades por mau funcionamento do serviço (STF, RE 20.372, de 25/4/1958); inércia administrativa (STF, RE 61.387,de 29/5/1968); responsabilidade por danos provenientes de enchentes de chuvas torrenciais, cuja restauração no passado exigia providências que foram omitidas (STF, no Agl 58.561, de 23/10/1973, RTJ, 70:704).A adoção da teoria do administrativo foi admitida sucessivas vezes em decisões judiciais (RDA, 122:172; 87.221)” (Comentários à Constituição Brasileira, 2º volume, Saraiva, 1990, p. 405/406).

153. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, ao comentar o artigo 1º, mostra que a garantia constitucional para o desenvolvimento da pessoa humana é ainda mais abrangente, ao dizer: “Cidadania. Enfatizando cidadania, a nova Constituição brasileira quer apostar a indispensabilidade da participação popular na tomada das decisões políticas. O povo brasileiro deve ser composto de cidadãos, participantes ativos do exercício do poder democrático, não de súditos de qualquer poder, mesmo democrático.Dignidade da pessoa humana. Está aqui o reconhecimento de que, para o direito constitucional brasileiro, a pessoa humana tem uma dignidade própria e constitui um valor em si mesmo, que não pode ser sacrificado a qualquer interesse coletivo.Trabalho e livre iniciativa. Estes dois elementos são apontados como um dos fundamentos do Estado brasileiro. Isto significa que a organização econômica e social deverá apoiar-se neles como seus dois pilares fundamentais (v art. 170). Pluralismo político. Aqui se reconhece o valor intrínseco do pluralismo de idéias e opiniões no plano político. Conseqüência disso é a recusa de toda tese que vise, por exemplo, a implantar um partido único ou a estabelecer uma doutrina oficial. Neste ponto a Constituição põe em destaque um princípio que é considerado fundamental nas democracias de derivação liberal” (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, volume 1, Saraiva, 1990, p. 19).

154. Caio Tácito escreve: “O ensino terá como parâmetro a igualdade nas condições de acesso e

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O certo é que, quanto maior for o nível de investimento equipamental e no elemento humano, tanto maior será a necessidade de elevar as mensalidades, as quais só serão pagas por aqueles que o desejarem, visto que NINGUÉM PODERÁ FICAR SEM EDUCAÇÃO EM FACE DO ENSINO DEVER SER PÚBLICO, OBRIGATÓRIO E DE ELEVADO NÍVEL, para tanto havendo recursos constitucionais garantidos pelo artigo 212.

Por essa linha de entendimento, há de se compreender que o artigo 209 da Constituição Federal exige apenas que se observem as normas gerais de educação nacional e a qualidade do ensino. São esses os únicos requisitos colocados na Constituição e mais nenhum para a presença da iniciativa privada na educação.

Claramente, o preço não está entre as normas gerais de educação, visto que se estivesse o ensino assegurado a toda a sociedade, não poderia ser gratuito. A gratuidade é a inexistência de preço e a inexistência de preço está assegurada a todo o brasileiro que recorrer ao ensino público, pois o Estado para tanto tem recursos indicados na Constituição, ou seja, 1/4 aproximadamente de toda a receita bruta nacional de impostos.155

Ora, se o preço do ensino privado não é matéria de normas gerais de educação nacional, que só cuidam de sua qualidade e espectro, não pode sobre ele se manifestar o Poder Público. Ele terá que ser tanto maior quanto melhor for a qualidade do ensino prestado, devendo- ser sempre incentivado seu aumento para que seja desenvolvida sua qualidade, em nível semelhante ao dos países evoluídos. Claramente, em níveis que o próprio mercado possa suportar, até porque o mercado —e no o governo- é que determinará tais limites.

De resto, é o que acontece com os países que querem crescer, sempre. Há universidades na Espanha que ofertam ensino de alta qualidade remunerado pelas mensalidades superiores às de outras escolas. Em Cleveland, as Faculdades dedicadas

permanência na escola; a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; o ensino público e a iniciativa privada compartilham a missão educacional, assegurada a pluralidade de idéias e de concepções pedagógicas. A Educação deve endereçar-se a todas as classes e a todos os níveis e idades. Às crianças até seis anos de idade no atendimento em creches e pré-escolas; aos jovens e adolescentes na oferta dos três graus de ensino, obrigatório e gratuito no ensino fundamental, com extensão progressiva ao ensino médio e o acesso aos níveis mais elevados, segundo a capacidade de cada um; o ensino noturno regular oferece oportunidade aos que trabalham, garantindo o acesso à escola ao trabalhador adolescente. O ensino fundamental gratuito contemplará também os que a ele não tiverem acesso na idade própria e aos portadores de deficiência será oferecido atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino.O acesso ao ensino obrigatório e gratuito não será apenas uma faculdade ou uma regalia. Importa, em virtude de norma expressa, em direito público subjetivo, a se traduzir, portanto, na viabilidade de prestação jurisdicional. E a omissão ou oferta irregular do ensino obrigatório pelo Poder Público gera a responsabilidade da autoridade competente” (A Constituição Brasileira 1988 - Interpretações, 1ª ed , Forense Univ , 1988, p. 418).

155. Apesar de discordar da escola única proposta por Pontes de Miranda, que a meu ver elimina a pluralidade de idéias e a criatividade do aluno, este reconhece que a gratuidade deve ser, num processo evolutivo, apenas ofertada aos que a desejarem: “b) Sabe—se, e é o bastante, que a evolução é marcada: a) pela gratuidade sem a obrigatoriedade; b) pela gratuidade aos que prefiram a escola pública e obrigatoriedade do ensino primário para todos; c) pela escola única (gratuidade, obrigatoriedade da escola pública para todos, promoção por seleção) (Comentários àConstituição de 1967, tomo VI, Forense, 1987, p. 339).

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à pesquisa mais especializada na Medicina, são sustentadas por alguns mecenas e pelos alunos, que pagam mais do que pagariam a outras escolas para receberem ensino também melhor.156

O sistema constitucional brasileiro de ensino é, portanto, um sistema racional, na medida em que, repito:

1) oferta recursos ao Estado para que este proporcione ensino gratuito a toda a sociedade;

2) O setor privado pode desenvolver o ensino, sendo, por tal atividade, remunerado, sem qualquer limite de preço.

De resto, é o que determina o artigo 174 da Constituição Federal assim redigido:

“Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma de lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado” (grifos meus).157

Pelo dispositivo, o planejamento econômico do Estado é meramente indicativo para o segmento privado. Será determinante para o setor público ou para o setor privado,

156. Jesús García Lopez escreve: “Más atrás se hizo alusión a este derecho al tratar del derecho a la educación, pero es aquí donde puede ser considerado en toda su amplitud. Por lo demás, los bienes de la cultura están contenidos, como parte esencial, en el bien común de la sociedad civil, y de esta suerte el derecho respecto de ellos viene a ser una concreción del derecho a participar en el bien común.Como ocurre con el derecho a la educación este derecho a los bienes de la cultura puede presentarse de dos maneras: una pasiva, como el derecho de todos los ciudadanos a que se les haga partícipes de la cultura, y otra activa, como el derecho de los gobernantes o de otras personas a impartir la cultura o a crear centros donde esa cultura se imparta. Veamos primero este derecho presentado de forma pasiva.Todos los ciudadanos tienen derecho a participar del bien común o a beneficiarse de él en la medida de su capacidad y de su efectiva cooperación al mismo. Pero una parte importantísima de ese bien común está constituida por los bienes de la cultura. Luego todos los ciudadanos tienen derecho a los bienes de la cultura según su capacidad y según la función social que realicen” (Los derechos humanos en Santo Tomás de Aquino, Ed. EUNSA, Pamplona, 1979, p. 199).

157. Miguel Reale ensina: “Vem, a seguir, o art. 174 que tem sido o cavalo de batalha dos que persistem em proclamar a natureza intervencionista do Estatuto Político de 1988. Nada melhor do que a reprodução desse preceito: “Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá na forma da lei (note-se) as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”.Em face de um texto tão claro, custa-me crer que se possa pensar em dirigismo econômico, cuja característica principal é a natureza imperativa e não meramente indicativa do planejamento para os particulares, considerados individualmente ou consorciados em empresas.Dir-se-á que o Estado é configurado como “Agente normativo e regulador” da economia, mas, a esta altura da evolução histórica, a afirmação contrária daria provas de preocupante irrealismo. O importante é que se declare, tal como consta do mencionado art.174, que, naquela qualidade, o Estado deverá exercer suas funções de fiscalização e planejamento “na forma da lei”. Mais uma vez o princípio de legalidade baliza a ação estatal e de modo puramente indicativo.Praticam, pois, um grande erro aqueles que não contribuem com uma interpretação objetiva e serena do texto constitucional, assumindo atitude hostil ou depreciativa perante o Estatuto de 1988, o qual, apesar das múltiplas contradições que o comprometem, abre clareiras à defesa tão necessária da livre iniciativa, o que quer dizer da economia de mercado” (Aplicações da Constituição de 1988, Forense, 1990, p. 15).

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que venha a receber incentivos fiscais do setor público, como as escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas que tenham recebido recursos públicos.158

Para as escolas privadas, não, posto que têm que sobreviver com seus próprios recursos.

No caso, à evidência, não se aplica também o § 4º do artigo 173, assim redigido:

“A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”.

O artigo comporta uma dupla leitura. Pela primeira, o lucro abusivo seria limitado à dominação de mercados ou eliminação de concorrência. Pela segunda, qualquer tipo de lucro abusivo seria punido.159

Em relação à primeira leitura, à evidência, não há que falar em dominação de mercado ou eliminação de concorrência, na medida em que o Poder Público é que o domina e tem recursos para dominá-lo. Deve oferecer ensino público e gratuito a toda a sociedade, sob pena de responsabilidade. Não há, pois, como o setor privado dominar um mercado que a Constituição já declara ser do próprio Estado.

Em relação à segunda leitura, controle de preços não é controle de lucros. O lucro abusivo não é determinado pelo preço elevado, mas pela diferença entre o preço cobrado e o custo do serviço prestado. E, à evidência, nem a SUNAB, nem o CADE são os órgãos administrativos responsáveis para examinar a matéria.160

158. Tais entidades são, inclusive, beneficiadas por imunidade constitucional exposta no artigo 150, inciso VI, letra “c”, da Constituição Federal, assim redigido: “Art. 150. Sempre juízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios .....VI. instituir impostos sobre:... c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei”.

159. Celso Bastos hospeda a segunda leitura:“No que toca ao aumento arbitrário dos lucros de que reza a Constituição, a Lei nº 4.137/62 nos fornece uma conceituação no seu art. 2º, II, in verbis: “Elevar sem justa causa os preços, nos casos de monopólio natural ou de fato, com o objetivo de aumentar arbitrariamente os lucros sem aumentar a produção”.O dispositivo subconstitucional dá uma interpretação razoável do que a Constituição possa entender por aumento arbitrário dos lucros. Na verdade o aumento da lucratividade, em tese, não é condenável, visto que ele exprime o êxito do empresário. Daí porque a adjunção do adjetivo “arbitrários”. De fato, para que o lucro se torne inconstitucional, cumpre que ele resulte de uma situação sobre a qual o detentor do meio de produção possui uma situação de força. É arbitrário, portanto, todo aumento de lucratividade que decorra de uma decisão empresarial, aproveitando-se de uma situação objetiva de mercado distorcido, que não faça corresponder a este aumento uma queda nas vendas. Isto ocorre nas situações de monopólio. De fato, sendo único o fornecedor, as leis de mercado deixam de operar e o aumento de preços tornar-se-á impositivo ao adquirente de bens e serviços, por falta de alternativas. É verdade que todo monopólio apresenta limites. Além de um certo ponto o aumento de preços não redunda em acréscimo de lucratividade. A venda do produto cai; o consumidor preferirá não adquiri-lo ou procurará algum sucedâneo muito remoto e precário. Mas dentro de certos limites a situação monopolística de mercado leva sem dúvida a um aumento da lucratividade sem um desejável aumento da produção” (Comentários à Constituição do Brasil, 7º volume, Saraiva, 1990, p. 101/102).

160. José Afonso da Silva escreve: “A livre concorrência está configurada no art. 170, IV, como um dos

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Ora, se não pode o Estado impor um planejamento à iniciativa privada e o artigo 212 declara que a escola particular pode ser explorada pela iniciativa privada, a matéria de lucros arbitrários não se coloca, visto que estaria relacionada não ao Ministério da Educação, mas ao da Justiça, em face de ser o CADE o órgão subordinado a este Ministério.

Já me manifestei no passado —e reitero no presente— que a SUNAB não é órgão para fiscalizar o ensino, sendo sua atuação nitidamente maculadora da ordem constitucional, sempre que pretenda executar congelamento de preços ou política de preços do ensino, mormente em matéria na qual a atuação da escola privada é paralela e não essencial.

Tentar controlar o preço do ensino, como o de um desodorante, sobre representar mentalidade subdesenvolvida e preconceito ideológico, em nada contribui para a manutenção e o desenvolvimento do ensino, mas para sua deterioração, num projeto de regressão cultural voltado para deformar as futuras gerações.

De rigor, é fato inconteste a queda de qualidade do ensino no país. Desde que, no Plano Cruzado, pretendeu-se congelar o preço do ensino e das abobrinhas, os bons professores foram abandonando as escolas, incapazes de remunerá-los dignamente, os investimentos deixaram de ser feitos e a igualdade do ensino privado só não caiu mais, por causa daqueles que continuaram lutando contra aquela inútil e corrosiva inconstitucionalidade, não se submetendo a tal tratamento.161

princípios da ordem econômica. Ela é uma manifestação da liberdade de iniciativa e, para garanti-la, a Constituição estatui que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros(art. 173, § 4).08 dois dispositivos se complementam no mesmo objetivo.Visam tutelar o sistema de mercado e especialmente proteger a livre concorrência, contra a tendência açambarcadora da concentração capitalista. A Constituição reconhece a existência do poder econômico. Este não é, pois, condenado pelo regime constitucional. Não raro esse poder econômico é exercido de maneira anti-social. Cabe, então, ao Estado intervir para coibir o abuso.Quando o poder econômico passa a ser usado com o propósito de impedir a iniciativa de outros, com a ação no campo econômico, ou quando o poder econômico passa a ser o fator concorrente para um aumento arbitrário de lucros do detentor do poder, o abuso fica manifestado” (Curso de Direito Constitucional Positivo, ob.cit., p. 664).

161. No caso, o D.L. 2284/86 pecava por outra Inconstitucionalidade que denunciei à época:“Ora, chegando a este ponto percebe-se, claramente, que o Decreto-lei 2284/86, que surgiu como legislação ordinária, não poderia revogar disposições complementares, por ser veículo subordinado e inferior. Em outras palavras, não poderia normar o Decreto-lei 2284/86 matéria de possível regramento apenas por lei complementar, sendo, pois, em tudo o que agrediu o D.L. 532/69, notória e incorrigível inconstitucionalidade.À evidência, se o Decreto-lei 2284/86 não poderia regrar matéria submetida à disciplina jurídica mais elevada, muito menos os Decretos nºs 93.893/87 e 93.911/87 teriam tal força modificadora, até porque são estes meros reguladores de parte daquele. E o regulamento pode, no máximo, explicitar, em nível não legislativo, a matéria ofertada, em nível legislativo, pelos veículos admitidos por processo pertinente albergado pela Constituição.Por todo o exposto, percebe-se, com inequívoca clareza, a imprestabilidade do D.L. 2284/86 e Decretos nºs 93.893/87 e 93.911/87 para alterar dispositivos de conteúdo complementar.Esta é a razão pela qual a notória inconstitucionalidade dos veículos utilizados é realçada, principalmente,

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Como advento da nova Constituição, tal deletério controle de preços, que acelerou decididamente a queda do nível de ensino no país, foi afastado, conforme demonstrou o Seminário sobre controle de preços da Academia Internacional de Direito e Economia, pelas conferências proferidas por Miguel Reale, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Celso Bastos, Hamilton Dias de Souza, Geraldo de Camargo Vidigal, Manoel Pedro Pimentel, Antonio Carlos Mendes, Tércio Ferraz Sampaio, Marco Aurélio Greco, Alfredo Buzaid e eu mesmo, visto que o artigo 170, inciso IV da Constituição Federal faz menção à livre concorrência, que é absolutamente incompatível com qualquer congelamento ou tabelamento.162

De resto, a Heritage Foundation demonstrou em sua pesquisa “Quarenta séculos de controle de preços”, que nunca uma técnica de combate à inflação foi tão ineficaz quanto esta, que desde Hamurabi até o presente, sempre tem provocado mais inf1ação e menos desenvolvimento.163

Desta forma, pela junção dos artigos 209, 174 e 170, inciso IV, da Constituição Federal, à evidência, em matéria de ensino —que não pode ter o mesmo tratamento econômico ofertado aos desodorantes ou às abobrinhas— qualquer imposição de política de preços é rigorosamente inconstitucional, sobre ser deletéria e corrosiva, no que diz respeito à sua queda de qualidade. O, que, infelizmente, por não cumprirem os governos sua obrigação constitucional, termina por atingir a atuação do setor privado.164

porque exige a leicomplementar, para sua aprovação, de “quorum” qualificado.Ora, nem o decreto-lei, nem a lei delegada poderiam ser utilizados para dispor sobre matéria que não lhes diz respeito, a não ser que o recesso congressual tivesse sido imposição superior, como no caso dos D.Ls. 406 e 834, ou seja, por determinação de Ato Institucional, que Federal e que hoje é de impossível utilização, pois revogado” (Direito Tributário e Econômico, Ed. Resenha Tributária,1987, p. 213/214).

162. O Seminário realizou-se em julho de 1989, no Hotel Maksoud, tendo o artigo 170, inciso IV, fulcro do debate, a seguinte dicção:“A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: .... IV. livre concorrência”.

163. “Concluímos que, embora tenha havido alguns casos em que os controles, ao menos aparentemente, abrandam os efeitos da inflação por um breve espaço de tempo, sempre fracassaram a longo prazo. A razão básica disso é que eles não atacaram a verdadeira causa de inflação, que é um aumento dos meios de pagamento superior ao aumento da produtividade. Desde os tempos mais antigos, os governantes tentaram resolver seus problemas financeiros aviltando a moeda ou emitindo moedas quase sem valor, mas de um elevado valor nominal; com a moderna tecnologia, os governos dos últimos séculos passaram a dispor de máquinas de imprimir. Quando estas medidas provocaram a inf1ação, 05 mesmos governantes utilizavam os controles de salários e preços” (“Quarenta séculos de controles de preços e salários”, Ed. Visão, p. 17).

164. Tércio Sampaio Ferraz Jr. explicita o artigo 174, dizendo: “O artigo 174 da Constituição Federal autoriza a instauração de um dirigismo econômico?A questão foi discutida largamente no curso da exposição. Em poucas palavras deve-se reconhecer que a Constituição repudia o dirigismo econômico.Onde quer que se admitam a livre iniciativa e a propriedade privada dos bens de produção não há lugar para tal dirigismo, entendido como uma direção geral da economia que funciona na base de um plano

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E aqui chego ao ponto fulcral das questões, que passo a analisar, perfunctoriamente, à luz do que já escrevi.

À evidência, a M.P. 244/90 é manifestamente inconstitucional. Pretende interferir, em matéria de preço de serviço, de forma inadmissível para a ordem econômica, condicionando-o à imposição dos pais e alunos e não daqueles que detêm o empreendimento. É como se pretendesse dar a Herodes a presidência da Fundação do Bem Estar do Menor. Nada mais irracional, inconstitucional e de resultado previsível, na

medida em que os pais dos alunos exigirão sempre preços menores e qualidade maior, sem perceber que o ensino apenas se desenvolverá adequadamente se o Estado fornecê-lo a todos e a iniciativa privada investir pesadamente para ofertar qualidade superior, na pluralidade de soluções alternativas, cobrando o preço justo pela sua atuação, que será aquele do mercado.

Não pode o Estado declarar que sua responsabilidade de ofertar ensino gratuito é de impossível consecução, porque utilizou o dinheiro de ensino em atividades de maior ou menor licitude, consciente de que violentava a

Constituição. Não pode o Estado declarar, por outro lado, que o setor privado é obrigado a fazer o que a Constituição não exige, ou seja, fornecer o ensino que o Estado não oferece, não pelo nível de preço que os investimentos em professores e equipamentos exigem, mas por aqueles preços determinados pelos alunos e por seus pais.165

Nada me parece mais ilógico, incompreensível, inconstitucional e absurdo, sobre ser a mais valiosa contribuição para a derrocada da escola privada, que ainda sustenta, com dificuldade, o nível de ensino no país.

geral obrigatório para executantes e destinatários” (“A economia e o controle do Estado”, O Estado de São Paulo, p. 50, 4/6/89).

165. É, de resto, o que esclarece Schubert de Farias Machado, ao dizer: “É evidente que o Poder Público pode, e deve, controlar a iniciativa privada no desempenho da atividade educacional.Tal controle, porém, há de ser apenas técnico, nos termos do art. 209 da Constituição Federal. A Constituição não admite, nem seria razoável que admitisse, qualquer controle financeiro dos estabelecimentos de ensino particular, porque, como sobejamente demonstrado, tal controle terminaria por levar ao aniquilamento do ensino particular, do que decorreria a denegação do direito a todos assegurado pelo art. 205 da Constituição Federal.Ressalte-se que a CONSTITUIÇÃO FEDERAL permitiu a iniciativa privada na educação como forma de assegurar a prevalência dos princípios que norteiam uma sociedade pluralista, entre os quais a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, e o pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, expressamente elencadas como fundamentais na atividade de ensino. A escola privada, segundo a CONSTITUIÇÃO FEDERAL, não é meio para garantir-se o ensino às pessoas carentes. Não é destinada a suprir a deficiência da escola pública. É antes, e acima de tudo, instrumento para assegurar o pluralismo ideológico.Sem qualquer valia, portanto, é o argumento que poderia aos menos atentos parecer procedente, de que os proprietários de colégios precisam ajudar o Estado no atendimento dos filhos de pais que se encontram com salários congelados.O Estado pode, e deve, evitar abusos eventualmente Cometidos pelos proprietários de colégios particulares, mas. a única forma legítima de fazê-lo é oferecendo escola pública gratuita, de boa qualidade e em quantidade suficiente” (Repertório IOB de Jurisprudência nº 18/90, p.360).

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Afronta, pois, todo o espírito que norteou a conformação dos artigos 208, 209, 212 e 213 da Constituição Federal, a M.P. n. 244/90, sendo de tão manifesta inconstitucionalidade que me custa visualizar hipótese mais maculadora do texto supremo, do que aquela que me é submetida.166

Em face do exposto, passo a responder apenas sucintamente às questões formuladas:

1) Não.

2) É instrumento de pluralismo de idéias.

3) Não.

4) Um processo deletério de redução da qualidade do ensino nacional, que poderá levar o país a se tornar uma terra de analfabetos diplomados.

S.M.J.

São Paulo, 30 de novembro de 1990.

—————

166. A idêntica conclusão chegou o eminente magistrado Geraldo Apoliano Dias da 5ª Vara da Justiça Federal do Ceará, ao dizer: “A Medida Provisória recém-editada, pelas mesmas razões já expostas, é inconstitucional. Estriba-se ela numa possibilidade de controle de preços dos estabelecimentos privados de ensino e tal, com a Carta de 1988, não é mais juridicamente possível —as instituições privadas de ensino submetem-se apenas (é. sempre válido lembrar) ao controle técnico (se respeitam as normas gerais de educação nacional e se ministram ensino em padrão de qualidade) do Estado” (sentença 364/90, MS 09.0002438-2 - classe 02000, 16/08/90, p. 24).

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7 - AS COMPANHIAS AÉREAS INTERNACIONAIS NÃO SEDIADAS NO BRASIL NÃO ESTÃO SUJEITAS À INCIDÊNCIA DO PIS E DO FINSOCIAL – INCONSTITUCIONALIDADE DE SUA IMPOSIÇÃO – A PREVALÊNCIA DOS PRINCÍPIOS DA RECIPROCIDADE E DA ISONOMIA NESTA MATÉRIA – PARECER.

CONSULTA

A consulente, por intermédio de seus eminentes advogados Carlos Kenigsberg e Carlos Paiva, formula-me a seguinte questão:

Em 3 de Maio de 1983, o Exmo. Sr. Ministro da Fazenda do Brasil aprovou parecer da Comissão de Estudos Tributários Internacionais, entendendo serem as companhias associadas à Consulente isentas do Finsocial, muito embora fundamentasse a decisão em hipótese de não imposição, por força de princípio estatuído no CTN, artigo 98, pelo qual os tratados internacionais firmados pelo Brasil prevalecem sobre a legislação ordinária, assim como pelo princípio da reciprocidade, hospedado pelo sistema tributário nacional, princípio que determina, no que concerne às exigências fiscais, que aufira o país, em que a companhia tenha sede, os tributos incidentes nas operações locais e internacionais.

Tal orientação não foi expressamente revogada até o presente.

Pretende, todavia, a Receita Federal desconsiderar a orientação referida, exigindo das companhias estrangeiras, que operam no país, o imposto inominado conhecido por Finsocial e a contribuição intitulada PIS, por força do entendimento de que o valor dos bilhetes comprados em território brasileiro configurariam faturamento sujeito àquelas imposições, nada obstante a maioria esmagadora das viagens, aqui acordadas, ser realizada fora do Brasil.

Em face da pretensão fazendária, pergunta:

1) Os Decretos-leis n. 2445/88 e 2445/88, que reformularam a lei complementar n. 7/70, são constitucionais?

2) O Finsocial, cuja alíquota foi alterada pelas leis 7689, 7787 e 7894/89 —e agora pela M.P. nº 279/90—, é tributo recepcionado pela nova ordem legal?

3) A orientação do Ministério da Fazenda referida no corpo da consulta foi alterada? E se não tiver sido e vier a ser alterada futuramente, quais as conseqüências a partir de sua alteração?

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4) De que forma deve ser interpretado o artigo 146 do CTN?

5) E o artigo 98 do CTN merece exegese especial para o presente questionamento?

6) Estão as empresas associadas à Consulente sujeitas às imposições mencionadas, se forem elas constitucionais?

RESPOSTA

Os Decretos-Leis 2445/88 e 2449/8.9 sofrem de uma insanável insuficiência formal, que os torna manifestamente inconstitucionais.167

Determinando o § 1º do artigo 25 das Disposições Transitórias da Constituição Federal que:

“Os decretos-leis em tramitação no Congresso Nacional e por este não apreciados até a promulgação da Constituição terão seus efeitos regulados da seguinte forma:

I. se editados até 2 de setembro de 1988, serão apreciados pelo Congresso Nacional no prazo de até 180 dias a contar da promulgação da Constituição, não computado o recesso parlamentar;

II. decorrido o prazo definido no inciso anterior, e não havendo apreciação, os decretos-leis ali mencionados serão considerados rejeitados;

III. nas hipóteses definidas nos incisos I e II, terão plena validade os atos praticados na vigência dos respectivos decretos-leis, podendo o Congresso Nacional, se necessário, legislar sobre os efeitos deles remanescentes” (grifos meus),

Os 180 dias a que a lei maior se refere terminaram no dia 4/6/88. E o Decreto legislativo que convalidou tais Decretos-Leis é de 11 dias depois, isto é, foi publicado no D.O.U. em 15de junho de 1988.168

167. O Juiz José Delgado, em seu voto na Apelação de Mandado de Segurança n. 077-SE, no T.R.F. da 5ª Região declara: “Assim, o prazo constitucional de cento e oitenta dias, iniciado em 06/10/88, descontados os 61 dias de recesso parlamentar, esgotou-se no dia 4 de junho de 1989.O Decreto-Legislativo nº 48, que “aprovou” os Decretos-Leis nºs 2.445/88 e 2.449/88, é datado de 14 de junho de 1988, e foi publicado no D.O.U. de 15 de junho de 1988, dez dias depois de vencido o prazo constitucional.Pelo exposto, tanto por um, quanto por outro fundamento, a inconstitucionalidade é manifesta, pelo que tenho como procedente a argüição.É como voto”.

168. É também, a manifestação do Juiz. Hugo de Brito Machado no referido julgamento: “Destaco, ainda, que os Decretos-leis em exame foram, pela Constituição de 1988, submetidos a um tratamento específico. A Constituição de 1988 estabeleceu regras específicas a respeito da aprovação dos Decretos-leis pelo Congresso Nacional e, ao que me consta, -não disponho, no momento, de elementos para especificar as datas e Diário Oficial de publicação- esses Decretos-leis não foram aprovados nos prazos fixados pela Constituição de 1988, o que significa dizer que eles saíram do mundo jurídico.

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Tal intempestividade torna de nulidade absoluta a veiculação legislativa. Foi extemporânea. Não falou o constituinte em 191 dias, mas em 180. E não cabe ao intérprete, sem poderes constitucionais, alterar um prazo fatal, preclusivo e de impossível reposição, a não ser por emenda constitucional, que não houve.

Determina, aliás, o constituinte, que o não cumprimento do prazo levará a serem tais decretos-leis “considerados rejeitados”.169

Na tríplice divisão normativa, as normas de conduta comportam reflexão exegética com soluções, por vezes, divergentes até pacificação jurisprudencial definitiva. As normas de integração podem também comportar tal disjuntiva. Uma lei complementar veiculadora de normas gerais pode estar sujeita a polêmica formulação hermenêutica, na medida em que, em face da maior ou menor clareza do texto, o exegeta venha a enfrentar incontornável perplexidade. O mesmo ocorre em relação à norma das normas, que é a Constituição.

Nas normas de produção de normas, todavia, o problema quase sempre inexiste. Raramente pode ser colocado e quando ocorre, a divergência não diz respeito à forma indicada, mas à obtenção da forma. O Congresso Nacional é um poder produtor de normas e, à evidência, só poderão produzi-las os congressistas eleitos. Se um grupo de profissionais, for mais habilitado a produzir uma determinada 1ei, mas não estiver investido em mandato popular, não poderá, apesar de sua melhor qualificação, produzi-la, mesmo que se utilize da máquina parlamentar. É que por melhor que seja seu trato legislativo, faltar-lhe-á legitimidade e sobre esta matéria não haverá dúvida. Da mesma maneira, se um jurista renomado entender que deva decidir sobre uma questão, por estar mais habilitado que um Magistrado, não sendo, todavia, Juiz, à evidência, sua decisão de nada valerá �.

Então, com esses esclarecimentos, acompanho a conclusão do eminente Relator”.

169. O acórdão do referido julgamento determina que: “APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA nº 077-SEARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE - APELANTE: FAZENDA NACIONAL. - ADVOGADO: Dr. LUIZ CLÁUDIO DE ALMEIDA SANTOS - APELADA: ITACAU AGENCIAMENTOS MARÍTIMOS LTDA. - ADVOGADOS: Dr. JOÃO DODSWORTH CORDEIRO GUERRA E OUTROS - REMETENTE: JUÍZO FEDERAL DA PRIMEIRA VARA-SE - RELATOR: JUIZ LÁZARO GUIMARÃES.EMENTA: Constitucional. , D-Ls. 2.445 e 2.449, de 1988. I - O PIS, desde a E. C. nº 8, de 1977, é contribuição social, e não tributo. II - A L. C. nº 7/70 considera-se lei ordinária ao dispor sobre matéria que a Constituição de 1967 não indicava como privativa de lei complementar. III - As contribuições sociais não se incluem nas receitas públicas, estando fora do alcance do art. 55 da Constituição de 1967. IV - Determinando a Constituição que o PIS constitui um encargo viabilizador da integração social do empregado, e permitindo a sua participação nos lucros da empresa, a sua base de cálculo deve levar em conta a tal matriz, dela se afastando a lei quando estabelece o recolhimento à base da receita operacional.Inconstitucionalidade dos Decretos leis 2.445/88 e 2.449/88.Argüição acolhida.ACÓRDÃO: Vistos, relatados e examinados estes autos, em que são partes as acima indicadas.Decide o Plenário do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, à unanimidade, acolher a argüição, para declarar a inconstitucionalidade dos Decretos leis 2.445/88 e 2.449/88, nos termos do voto do relator, com os acréscimos dos votos dos Juízes Hugo Machado e José Delgado, na forma do relatório e notas taquigráficas que integram o presente. Custas como de lei.Recife, 6 de novembro de 1989 (data do julgamento) - Juiz Ridalvo Costa (Presidente) – Juiz Lázaro Guimarães (Relator)”.

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O aspecto formal das normas produtoras de normas, seja pela veiculação material, seja pela conformação jurisprudencial, é a própria essência deste terceiro tipo de comandos. Sem a forma, não há lei. Uma lei federal não publicada não entra no mundo jurídico. A pub1icação é o “iter juris”, pelo qual a obrigação se impõe aos que a ela estão sujeitos.

Ora, no caso concreto, o prazo fatal, improrrogável, dá o perfil da forma temporal escolhida pelo constituinte e, por ser o texto constitucional apenas alterável por emenda constitucional, que não houve, à evidência, todos os decretos-leis não transformados em decretos 1egislativos até o dia 4/6/1989 desapareceram do mundo jurídico e deixaram a partir daquela data de ter vigência e eficácia.170

Em face disto, os Ds.Ls. 2445 e 2449/88, se por outros motivos não fossem inconstitucionais, por este o seriam.

Ocorre, todavia, que também em sua faceta de integração comportamental, tais D.Ls. são inconstitucionais.171

De início, a contribuição social ao PIS foi veiculada -e a meu ver corretamente— por lei complementar. Embora não decorresse, senão por princípio implícito, a necessidade de tal veiculação superior, no pretérito sistema, o certo é que houve por bem o legislador exigir tal tributo por aquela forma legislativa.

Os D.Ls., todavia, que o a1teraram, são veículos inferiores de igual hierarquia e nível que das leis ordinárias e, à evidência, um veículo menor -e entendo que a lei complementar pode alterar a lei ordinária, apesar de seu campo mandamental próprio, ao impor determinadas condições a esta, enquanto que a lei ordinária não pode fazer o inverso— não tem o condão de modificar as disposições de um veículo hierárquico maior.172

170. A equipe da Price Waterhouse assim comenta o inciso II do artigo 25 das Disposições Transitórias da C.F.: “Se dentro dos cento e oitenta dias previstos no inciso anterior não houver apreciação pelo Congresso Nacional, os decretos-leis editados até dois de setembro de 1988 serão considerados rejeitados. Logo, não há mais inclusão automática na ordem do dia, em regime de urgência, e tampouco a aprovação por decurso de prazo, o que foi abolido pela Constituição de 1988 (vide art. 62)” (A Constituição do Brasil 1988, Price Waterhouse, 1989, p. 884)

171. Sobre a natureza jurídica do PIS foi editado o Caderno de Pesquisas Tributárias n.2 (Ed.CEEU/Resenha Tributária, 1977), intitulado “Contribuições Especiais - Fundo PIS/PASEP”, com a colaboração de Aires Fernandino Barreto, Bernardo Ribeiro de Moraes, Carlos da Rocha Guimarães, Edvaldo Brito, Eros Roberto Grau, Fábio Leopoldo de Oliveira, Geraldo Ataliba, Hamilton Dias de Souza, Ives Gandra da Silva Martins, José Carlos Graça Wagner, Leonel de Andrade Velloso, Ruy Barbosa Nogueira, Ylves José de Miranda Guimarães e Zelmo Denari, o qual oferta excelente matéria à reflexão acadêmica.

172. Ao falar sobre a relevância do CTN —1ei com eficácia de complementar— Gilberto de Ulhôa Canto realça: “Ora, em que pesem suas muitas deficiências, o CTN tem prestado ao Brasil o relevantíssimo serviço de amparar os contribuintes contra a arbitrariedade e a prepotência fiscais, justamente porque formula diversos princípios e regras que submetem a administração tributária da União, dos Estados, do Distrito Federal, e dos Municípios, à observância de critérios uniformes em matéria que tem a ver com as normas constitucionais, que dificilmente se poderia impor a mais de 5.000 entes públicos diferentes, se a cada um deles fosse lícito entender e aplicar certas normas básicas como lhe aprouvesse” (Caderno de Pesquisas Tributárias n. 15, Ed.CEEU/Resenha Tributária, 1989, p. 15/16).

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Determinada doutrina advoga a tese de que matéria que seja veiculada por lei complementar, se não for estritamente de lei complementar, apesar do veículo, deixa de ter este perfil. Não creio seja esta a melhor doutrina, na medida em que o problema só se coloca na denominada área cinzenta de atuação das normas comportamentais ou de integração; certo sendo que da mesma forma que a Constituição estalaja matéria ordinária, que passou a ser constitucional por lá estar, matéria de possível conformação por legislação ordinária, mas veiculada por legislação complementar, ganha tal perfil naquelas áreas fronteiriças de difícil detecção do fenômeno jurídico.173

O inverso é que não é possível. Matéria de veiculação apenas possível por lei complementar não pode ser veiculada por lei ordinária.

O certo, todavia, é que o tema da forma que se põe na questão formulada não oferta problemas exegéticos maiores, na medida em que qualquer que seja a corrente adotada (impossibilidade de alteração de lei complementar por lei ordinária ou possibilidade, se a matéria estruturalmente não for de veiculação por lei complementar), a inconstitucionalidade é manifesta.

É que, a partir da E.C. nº 8/77, o S.T.F. —não o TFR— entendeu que as contribuições sociais não teriam natureza tributária, razão pela qual —se necessária fosse a conformação do perfil de todos os tributos do sistema por lei complementar— o PIS não precisaria mais ser assim veiculado, por não ser tributo, mas contribuição vinculada à Seguridade.174

173. Gustavo Miguez de Mello relembra fato de necessária reflexão a favor desta tese, ao dizer:“É, porém, também inegável, como observou verbalmente HAMILTON DIAS DE SOUSA na primeira reunião da Comissão Especial da ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE DIREITO FINANCEIRO para a Elaboração do Anteprojeto do Código Tributário Nacional realizada em São Paulo, a 17/04/1990, que nenhuma norma do Código Tributário Nacional foi declarada inconstitucional pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. E o Código já está em vigor há 24 anos. Isto se deve ao fato de a elaboração do Anteprojeto do Código Tributário Nacional, do qual resultou o Código em vigor, ter sido objeto de estudos cuidadosíssimos de eminentes juristas.MIGÜEL REALE, em recomendação confirmada por MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, sustenta que a lei complementar mereceria ser consagrada como efetivamente foi, pela Constituição, para dar maior estabilidade às regras que devem gozar da “rigidez dos textos constitucionais, nem por isto podem ser deixadas expostas a decisões ocasionais e fortuitas que às vezes surpreendem o próprio Parlamento e a opinião pública”.A aplicação do CTN globalmente considerada fez prevalecer na prática, na vida real, inúmeras garantias constitucionais que ele explicitou: embora ele mereça alguma crítica, mesmo do ponto de vista constitucional, o saldo de sua aplicação foi muito bom” (Caderno de Pesquisas Tributárias n. 15, ob. cit, p. 335/336).

174. O Juiz Sílvio Dobrowolsky do T.R.F. da 4ª Região, relembra a divergência, ao escrever:“A contribuição para o PIS tem sido classificada pela jurisprudência, ora como tributo (p.e. T.F.R. : AMS 112.290-RS (Boletim do TFR, 145:46), AC. 96.671, RJ. (Revista do TFR, 135:995), AMS. 103.501, SP (DJU 27/11/86, p. 23.375, Ag. Reg. na AC. 79.855-SP (DJU, 14/3/85, p.3051), AMS 97.638-SP (DJU, 26/5/83, p. 7450), AMS 92.428-PE (Revista do TFR 88:178/9) e outras vezes como contribuição social, sem natureza tributária (v.g. TFR: AMS 98.317-SP (Revista do TFR 103:305/6), AMS 102.858-SP (Boletim do TFR 107:39), AMS 110.838-SP (Boletim do TFR 145:44) e STF: RE 100.790-7-SP (DJU 13/3/87, p. 3882).A segunda corrente assinala que, “após a E.C. n. 8/77, esta e outras contribuições perderam a natureza tributária, em face da nova redação atribuída aos arts. 21, § 2º e 43 da Constituição de 1969” (Rev. do TFR 103:305)” (Apelação em MS n. 89.04.00200-2-RS).

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Ora, em assim ocorrendo, à evidência, poderia ser instrumentalizada ordinariamente, de tal forma, que, à luz do novo texto, por não ser tributo, mas contribuição vinculada à Seguridade, a lei complementar não mais seria necessária.

Ocorre, todavia, que ao tirar a natureza tributária das contribuições e vinculá-la à Seguridade –à época apenas conceito constitucional implícito— deixaram, as contribuições sociais, de estar vinculadas ao orçamento fiscal da União para integrar a Previdência, com o que a imposição passou do campo das finanças públicas, em seu perfil fiscal, para o da Seguridade Social.175

Ora, legislar sobre a previdência social era, no anterior sistema, da competência exclusiva do Congresso Nacional e não do Presidente da República, via decreto-lei.

Com efeito, está o artigo 55 da E.C. nº 1/69 assim redigido:

“O Presidente da República, em casos de urgência ou de interesse público relevante, e desde que não haja aumento de despesa, poderá expedir decretos-leis sobre as seguintes matérias: I. segurança nacional; II. finanças públicas, inclusive normas tributárias; III.criação de cargos públicos e fixação de vencimentos” (grifos meus).

e, à nitidez, cuida de matéria tributária e do orçamento fiscal, mas não da Seguridade Social.

Ora, ou o PIS era, à época, tributo, como entendiam a maior parte da doutrina e o T.F.R., e a alteração da lei complementar anterior deveria ser por lei complementar posterior ou, se não o fosse, sua veiculação não poderia ocorrer da forma como ocorreu, via decreto-lei.176

175. Leia-se neste sentido o acórdão seguinte:“l. Tributário. PIS e Imposto Único.Compatibilidade. 2. O PIS não instituiu um imposto, mas uma contribuição, autorizado pelo art. 43, X da Constituição da República, tendo por finalidade, cumprir o art. 165, V da Const. da República. 3. Agravo regimental a que se nega provimento.Acórdão. Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da 1ª Turma do STF, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, em negar provimento ao agravo regimental.Brasília - DF, 22/06/1984 – Soares Muñoz,Presidente – Alfredo Buzaid, Relator” (AI 96.932-2-SP, DJ 17/8/84, Ement. 1345).

176. Sempre entendi, todavia, que o PIS e demais contribuições sociais eram tributos antes e depois da E.C. n. 8/77. Escrevi: “Todas as contribuições especiais, a nosso ver, continuam tendo natureza tributária dentro do sistema constitucional pátrio.Por que razão as contribuições manteriam tais características?Em função de dois princípios inerentes ao Direito Tributário, quais sejam: o da concreção sistêmica e o da estruturalidade orgânica.Pelo primeiro princípio, se as regras gerais, que conformam a imposição tributária na Constituição Federal, não são alteradas, havendo apenas deslocação topográfica de dispositivos no campo normado, as regras gerais prevalecem sobre a alteração formal, mormente considerando-se que próprio desenho superior não comprime todas as disposições tributárias a um único capítulo.Com efeito, os princípios tributários estão espalhados por toda a Constituição e não apenas concentrados no capítulo sobre o sistema tributário, de tal forma que a mera deslocação espacial nenhuma importância oferta à sua inclusão, ou não, dentro do sistema.

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Em face do exposto, respondo, na linha de resto da decisão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, que os D.Ls. 2445/88 e 2449/89 são manifestamente inconstitucionais, por variados motivos, alguns deles aqui expostos.

A segunda questão não trilha caminho distinto da resposta à primeira. A exigência do Finsocial, no momento, é de manifesta inconstitucionalidade.

O Finsocial é um imposto extinto. Desapareceu do mundo jurídico no dia 22 de dezembro de 1988.

O Finsocial —apesar de a lei que o criou denominá-lo de contribuição social— é um imposto. Não são os juristas que o dizem mas a Máxima Corte do país, encerrada, pois, a polêmica sobre sua natureza jurídica. Trata-se de imposto inominado permitido pela anterior Constituição, por força da competência residual da União, e adicional do imposto de renda no concernente às sociedades de prestação de serviços.177

Em nível constitucional, apenas se retiraria a natureza tributária das contribuições sociais houvesse o constituinte na referida emenda declarado que, a partir daquele comando, tais contribuições deixariam de ter natureza tributária. E tal não sucedendo, à evidência, as regras gerais que norteiam a conformação de todos os tributos terminam prevalecendo, visto que sua concreção sistêmica às espécies espalhadas pelo texto constitucional continuou a mesma, antes e depois do deslocamento posicional das alterações.Tais modificações, portanto, à luz de tal princípio são vistas como aperfeiçoamento expressional e não como alteração funcional e finalística da norma.O segundo princípio é examinado à luz inversa, na medida em que a estruturalidade orgânica é que determina a natureza intrínseca do tributo. Em outras palavras, não se examina o tributo sob o prisma das regras que lhe são aplicáveis, mas contrariamente, a estrutura intrínseca da matéria sobre a qual incidirá a norma é que determina sua natureza jurídica.O art. 4º do CTN bem apreendeu a importância do princípio da estruturalidade orgânica, ao explicitar, em nível de norma geral, o seguinte: “A natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevantes para qualificá-la: I. a denominação e demais características formais adotadas pela lei; II. a destinação legal do produto da sua arrecadação”.Ora, se a estrutura orgânica de matéria tributável é que lhe empresta sua natureza jurídica, à evidência, sempre que tal estrutura se conformar às regras gerais que hospedam os princípios próprios do Direito Tributário, sua natureza jurídica estrutural só pode ser tornada como tributária.As regras gerais não podem considerar, de um lado, como tributárias determinadas imposições, nem podem ter determinadas situações os contornos definidos em lei como fiscais e, não obstante tal dupla visão fenomênica indicar a natureza daquela situação e da incidência pertinente, pretender o intérprete que tal realidade não seja tributária. Ela é tributária, em função dos princípios, irrelevante o aspecto formal e acessório do deslocamento indicativo no corpo legislativo constitucional” (Manual de Contribuições Especiais, Ed. Revista dos Tribunais, 1987, p. 32/33/34/35).

177. José Eduardo Soares de Melo ensina: “O Supremo Tribunal Federal (Pleno, RE nº103.778-4-DF, DJ de 13.12.85) decidiu que o FINSOCIAL (criado pelo Decreto-lei nº 1940 de 25.05.82) é caracterizado como tributo, mantendo o acórdão do Tribunal Federal de Recursos, que, em um dos seus tópicos, manifestou o entendimento seguinte:...“5º) Sob a qualificação de contribuição, surpreendem-se no Fundo de Investimento Social (FINSOCIAL), dois impostos genuínos, o primeiro inominado, mas que compreende uma competência residual da União (Constituição - art. 18, § 5º e 21 e § lº) e o segundo que configura hipótese típica de adicional de imposto de renda, cujo recolhimento não se permite no mesmo exercício em que tenha sido instituído - Constituição, arts. 153 e § 28).A Constituição de 1988, a seu turno, dispõe: “Art. 154 – A União poderá instituir:I - mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição”.Neste preceito encarta-se a competência residual da União, factível juridicamente, porém submetida às

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Ocorre, todavia, que não há mais espaço constitucional para a referida imposição. O Sistema Tributário Brasileiro —de seus arts. 145 a 156 e no art. 34 das Ds.Ts.— conforma os 15 impostos distribuídos pela competência impositiva da União, Estados, D.F. e Municípios, assim como o perfil das taxas, contribuições de melhoria, empréstimos compulsórios e contribuições especiais. São estas, as outras 4 espécies

tributárias delimitadas pela Constituição.

Oferta, por outro lado, à União, competência residual para instituir novos impostos, por lei complementar, desde que sem fato gerador e base de cálculo próprios dos outros 15 impostos e, além disso, sem incidência cumulativa, seja no que diz respeito às operações tributadas por um mesmo imposto, à semelhança do IPI e ICMS, seja no que concerne à tributação de outros impostos.178

Ora, o Finsocial não tem o perfil de nenhum dos 15 impostos e nem poderia ser veiculado por lei complementar, por força de competência residua1 em face dos impedimentos do art. 154, inciso I, assim redigido:

“A União poderá instituir:

I. mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição”.

Por esta razão, houve por bem o constituinte manter, em face da transição do sistema, provisoriamente o referido imposto como fonte de arrecadação do governo até que surgissem as contribuições sociais determinadas pelo artigo 195, inciso I, da C.F.

Está o artigo 56 das Ds.Ts. da Constituição Federal assim redigido:

“Até que a lei disponha sobre o art. 195, I, a arrecadação decorrente de, no mínimo, cinco dos seis décimos percentuais correspondentes à alíquota da contribuição de

condições expressamente indicadas em sua parte final. .As restrições atinentes à “não cumulatividade”, “fato gerador” e base de cálculo nem seriam dignas de necessária menção, visto que tais condições representam elementos nucleares do tributo, isto é, a sua materialidade (fato gerador) e quantificação (base de cálculo).No sistema nacional não se admite a criação de imposto com as principais características de imposto já existente (de mesma identidade), pois no fundo não se estaria criando novo imposto, mas instituindo um adicional do antigo imposto, sujeito aos mesmos princípios e limites.De qualquer forma, o art. 154, I, procurou enfatizar a restrição concernente ao imposto residual.O Acórdão do STF desqualifica o FINSOCIAL como contribuição, caracterizando-o como “imposto inominado” e “adicional de imposto de renda” (Caderno de Pesquisas Tributárias n. 15, ob. cit., p. 125/126/127).

178. Escrevi: “Uma última observação se faz necessária para estes perfunctórios comentários. É que a não-cumulatividade, a que se refere o tributo, não diz respeito apenas a técnica não-cumu1ativa (incidência assemelhada à do valor agregado do mesmo imposto), mas à não-cumu1atividade de dois impostos sobre o mesmo fato gerador. A não-cumulatividade, em determinadas circunstâncias, pode ter o perfil do bis in idem ou da bitributação, conforme implique dupla incidência sobre o mesmo fato gerador ou duas incidências de dois impostos diversos sobre a mesma hipótese, deixando de ser considerado como técnica de arrecadação. Entendo que o constituinte cuidou de ambas no inc. I do art. 154” (Comentários à Constituição do Brasil, 6º volume, 1990, p. 333).

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que trata o D.L. 1940, de 25/05/1982, alterada pelo D.L. 2049, de 1/8/1983, pelo Decr. 91.236, de 8/5/1985, e pela Lei n. 7611, de 8/7/1987, passa a integrar a receita da seguridade social, ressalvados, exclusivamente no exercício de1988, os compromissos assumidos com programas e projetos em andamento”.179

É bom lembrar que a expressão “Disposições Transitórias” não é sinônima de “Disposições Permanentes”. O que é transitório, não é permanente e o que é permanente, não é transitório. Apesar da acaciana conclusão, que certamente envergonharia o próprio personagem de Eça, o Governo Federal não conseguiu ainda decifrar a expressão “transitória” e tornou não só o provisório imposto em imposto definitivo, como o vem aumentando sucessivamente, na mais regressiva, antiquada e absurda forma de imposição circulatória, que é a cumulativa.

Assim é que após ter editado a lei n. 7689/88, a partir da M.P. n. 22/88, com o que deveria o Finsocial ter desaparecido do mundo jurídico, por força do comando supremo do artigo 56 das Ds.Ts. não só o Governo o instituiu, como o vem, sucessivamente, aumentando pelas leis 7738/89, 7787/89 e 7894/89 e agora pela M.P. n. 279/90.180

Em verdade, cada aumento de alíquota do Finsocial corresponde à instituição de

179. Plínio José Marafon ensina: “Acerca da natureza cumulativa do FINSOCIAL é de se ressaltar que a própria União a reconheceu, como foi enunciado pelo Exmo. Sr. Presidente- da República em exposição de motivos, quando vetou parcialmente o Projeto de Lei de Conversão nº 25 de 1989, “que altera a tributação de fundos de aplicação de curto prazo e dispõe sobre a contribuição social, as contribuições para o FINSOCIAL e PIS/PASEP e destinação da renda de concurso prognóstico”.Consignou o Exmo. Chefe do Executivo Federal:“Sobre o assunto, assim se manifestaram os Ministérios da Fazenda e das Minas e Energia: O Projeto de Conversão em tela além de quintuplicar a elevação do FINSOCIAL proposta, de 1,2% para 2%, eliminou o dispositivo que reduzia a alíquota do PIS/PASEP. É difícil dimensionar o impacto inflacionário de tal decisão, pois, como é sabido, essas contribuições incidem sobre a receita operacional bruta e o faturamento das empresas, em cascata, a cada etapa de comercialização na cadeia produtiva e de distribuição de bens e serviços, ou seja, a tributação se transforma em preço, tornando ainda mais iníquo e regressivo o sistema tributário.É por isso que propomos a Vossa Excelência o veto integral do art. 3º”(grifou-se).Respondemos a esta questão afirmando que o FINSOCIAL não pode sobreviver à luz do disposto no art.154, I, da CF, após a edição da Lei nº 7.689/88, embora esta tenha pretendido revigorar. Portanto, o art. 56 das Disposições Transitórias da CF/88 cuidou de um tributo em fase de extinção” (Caderno de Pesquisas Tributárias n.15, ob. cit., p. 176/177).

180. Hugo de Brito Machado ensina: “Segundo o mencionado dispositivo constitucional, a União, mediante lei complementar, pode instituir impostos não elencados em sua competência, mas esse imposto, instituído com fundamento na denominada competência residual, não pode ter fato gerador nem base de cálculo próprios dos impostos discriminados na Constituição.4.7 - Nem é necessário examinar se a exação destinada ao FINSOCIAL tem hoje fato gerador e base de cálculo idênticos aos de impostos discriminados na Constituição. Basta não haver sido utilizado o instrumento adequado, a lei complementar, para configurar, induvidosamente, violação do art. 154, I, da vigente Constituição, restando inútil, portanto, a invocação desse dispositivo constitucional como fundamento de validade da exigência da exação em tela.4.8 . Pelo que foi dito acima, outrossim, é possível verificar-se que a exação em referência não se adequa a nenhuma das espécies tributárias integrantes de nosso sistema tributário. Por isto, é razoável afirmar-se, com o professor SILVA MARTINS, que se trata de um tributo em extinção. O art. 56 do MDCT teve apenas o mérito de mantê-lo temporariamente. Não fora a mencionada regra constitucional transitória ter-se-ia de considerá-lo abolido, porque incompatível com o sistema constitucional tributário estabelecido pela Constituição Federal de 1988” (Caderno de Pesquisas Tributárias n.15, ob. cit., p. 460/461).

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um novo imposto, visto que o que a Constituição permitiu que permanecesse até o nascimento da contribuição social do artigo 195, inciso I, foi o do imposto —sem perfil constitucional criado pelos diplomas anteriores e recepcionados, transitoriamente, pelo novo texto— em seus aspectos quantitativo, material, espacial, pessoal e instrumental.

Ora, elevar o nível de imposição por nova lei, de tributo não conformado no capítulo do sistema (145 a 156) e não autorizado pelo artigo 56 das transitórias disposições, é instituir imposto inconstitucional, flagrante, manifesta e irreversivelmente maculador da lei suprema.181

Ocorre que o novo imposto Finsocial veiculado pelas leis retro-mencionadas, com alíquota de 0,1% (aumento de 0,5 para 0,6), de 0,4% (aumento de 0,6 para 1,0), de 0,2% (aumento de. 1,0 para 1,2%) e de 0,8 (aumento de 1,2 para 2%), é CUMULATIVO e —mesmo que pudesse ser instituído por força da lei complementar— tal escultura legal impediria que a competência residual da União fosse acionada.182

181. Antonio Manoel Gonçalez e Marilene Talarico Martins Rodrigues escrevem: “Assim, o exame da compatibilidade da legislação tributária precedente tem, necessariamente, que levar em conta a letra e o espírito da Constituição. Os dispositivos que criam ou alteram tributos precisam ser analisados à luz da Nova Lei Magna, mediante rigoroso exame de seu articulado, com os comandos constitucionais.Da mesma forma, as normas já existentes terão que passar pelo crivo rigoroso da aferição da sua compatibilidade com a Nova Carta, caso em que se dará a sua recepção nos termos estabelecidos pela própria Constituição (§ 5º - art. 34 ADCT), ou da sua incompatibilidade, caso em que sua vigência cessa de imediato, retiradas que foram do universo jurídico.Nesse contexto revestem-se de particular importância as Disposições Constitucionais Transitórias que, em nome da continuidade jurídica, estabelecem um regime de transição, para as normas não recebidas pela Nova Ordem Constitucional, enquanto se aguarda o estabelecimento de novo regramento jurídico.A análise do FINSOCIAL, à luz da Constituição de 1988, permite concluir que a exação não foi recebida pela Nova Carta, que fixou os impostos de competência de cada ente tributante, não se assemelhando nenhum deles ao imposto configurado pelo FINSOCIAL.Por essa razão o FINSOCIAL foi objeto de norma específica no art. 56 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT, prevendo que, enquanto estivesse o referido art. 195 pendente de regulamento legislativo “...cinco dos seis décimos percentuais corresponde à alíquota da contribuição de que trata o Decreto-Lei 1.940...,” passariam “... a integrar a receita da seguridade social, ressalvados, exclusivamente no exercício de 1988, os compromissos assumidos em programas e projetos em andamento”.Trata-se, pois, de um imposto em extinção até que lei disponha sobre a forma de financiamento da seguridade social, ou seja, o Plano de Custeios e Benefícios da Seguridade Social, consoante art.195, I, da C.F.O FINSOCIAL, enquanto imposto que é, foi mantido apenas provisória e precariamente no texto constitucional, tão somente para permitir a transição do sistema pretérito para o atual, sem prejuízo da subvenção da seguridade social. Não podendo, assim, em face dessa excepcional manutenção, sofrer qualquer alteração em seu perfil, que deverá permanecer nos exatos moldes da legislação anterior à promulgação do Texto Maior” (Caderno de Pesquisas Tributárias n. 15, ob. cit., p. 240/241/242).

182. Antonio Carlos Rodrigues do Amaral e Paulo Lucena de Menezes explicam: “Na perspectiva do raciocínio atrás exposto, a Lei 7.689, de 16 de dezembro de 1988, que pretendeu, em seu art. 9º (11), perenizar uma obrigação em fase de extinção, sobre indevidamente alterar sua base de cálculo para o faturamento, bem como a Lei 7.738, de 9 de março de 1989, que; no seu art. 28 (12), objetivou restaurar a imposição para as prestadoras de serviço, inserindo a receita bruta como sua base de cálculo, são notoriamente inconstitucionais. Cumpre acentuar que o FINSOCIAL por tais diplomas delineado -não fosse já a impropriedade dos veículos normativos utilizados, causa de sua condenação-, não poderia ser reintroduzido no sistema sequer com base na competência residual da União, posto ser cumulativo e ter

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Ora, um imposto extinto, cumulativo, não existente no sistema, veiculado por lei ordinária e com base de cálculo própria de ICMS e do IPI (o faturamento tem por base o, valor da operação), à evidência, exterioriza das mais inaceitáveis violações ao direito do contribuinte, cuja nódoa deixada na Constituição não será de fácil esquecimento.

De resto, foi o que decidiu, em plenário, o XV Simpósio Nacional de Direito Tributário, que contou com a presença de mais de 200 professores, magistrados, juristas, advogados, membros do Ministério Público e da Administração das 3 esferas de Poder, na redação apresentada, à luz dos debates, pela Comissão de Redação constituída pelos juristas Yonne Dolácio de Oliveira, Fátima Fernandes de Souza Garcia, Américo Masset Lacombe, Gaetano Paciello, Dejalma de Campos, Hamilton Dias de Sousa, Marcos Paulo de Almeida Salles e presidida por Alcides Jorge Costa:

“3) O Finsocial, cujo perfil o Supremo Tribunal Federal configurou como imposto inominado criado pela competência residual da União, poderia ser instituído à luz do disposto no artigo 154 inciso I da Constituição Federal? O artigo 56 das Disposições Transitórias cuida de um tributo em extinção ou de um tributo presente, cujos aumentos podem continuar a ser realizados sem que o sistema tributário seja violado?

Resposta: O art. 56 das ADCT cuida de um tributo em extinção cujos aumentos não poderiam continuar a ser realizados em violação à Constituição. O FINSOCIAL no

perfil configurado pelo STF não poderia ser criado à luz do art. 154, I, da CF por ser cumulativo e por ter sua receita vinculada a certas despesas, o que é vedado pelo art. 167, IV da CF”.183

base de cálculo e fato gerador próprios de outros impostos previstos na Constituição, tais como o ISS, para as empresas prestadoras de serviço, o IR para estas e demais empresas, o ICMS e o IPI, além da própria contribuição ao PIS, violando, portanto, o art. 154, I, do texto maior” (Caderno de Pesquisas Tributárias n. 15, ob. cit., p. 431/432).

183. Gustavo Miguez de Mello ensina: “A cobrança da contribuição ao FINSOCIAL não está mais respaldada no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.Esta conclusão fica fortalecida pelo fato de o próprio artigo 9º da mencionada Lei nº 7.689, de 15/12/1989 conter disposições sobre a matéria. Poder-se-ia objetar o seguinte: o artigo 1º da Lei nº 7.689, de 15/12/1988 é inconstitucional e não produziria quaisquer efeitos.É, sem dúvida, procedente a afirmação da inconstitucionalidade do referido dispositivo legal, que é, aliás, confirmada por MIGUEL REALE e IVES GANDRA DA SILVA MARTINS.Os atos nulos não produzem os efeitos visados pelo agente, mas produzem outros efeitos: os próprios atos ilícitos produzem efeitos jurídicos, ainda que se trate de ilícitos penais (responsabilidade civil, por exemplo).No caso, existem disposições sobre a matéria ainda que ineficazes.Acresce que o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, em virtude da sua transitoriedade decorrente de sua própria natureza, não atribui permanência às normas. Na verdade, disposições transitórias estabelecem termos de vigência que podem ser uma data, o fim de um período de tempo ou a ocorrência de um evento, como na espécie.A evidente finalidade do art. 56 em exame foi a de dar ao Congresso Nacional uma oportunidade para dispor sobre a matéria O Congresso Nacional teve e se utilizou desta oportunidade, embora impropriamente.A forma ou o conteúdo da deliberação do Legislador Ordinário não atribuem permanência a uma, disposição que o legislador constituinte determinou que fosse provisório e não pode prorrogar a vigência

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Tal postura, por outro lado, foi assumida pela esmagadora maioria dos autores do 15º Caderno de Pesquisas Tributárias, a saber: Antonio Carlos Rodrigues do Amaral, Antonio Manoel Gonçalez, Aurélio Pitanga Seixas Fº, Cecília Maria Marcondes Hamati, Edvaldo Pereira de Brito, Fábio Leopoldo de Oliveira, Gilberto de Ulhôa Canto, Gustavo Miguez de Mello, Hugo de Brito Machado, Ives Gandra da Silva Martins, João Caio Goulart Penteado, José Eduardo Soares de Melo, Marilene Talarico Martins Rodrigues, Paulo Lucena de Menezes, Plínio José Marafon, Ricardo Mariz de Oliveira, Sacha Calmon Navarro Coelho, Vittório Cassone e Waldir Silveira Melo, poucos deles

advogando tese inversa.184

Respondo, pois, à 2ª questão, declarando não ter sido recepcionado o Finsocial, se não transitoriarnente pela nova ordem constitucional, tendo sido extinto com a lei 7689/88, que criou a contribuição social, cuja constitucionalidade não é objeto do presente parecer.185

Passo, agora, a examinar a terceira questão. Não estariam as empresas vinculadas à consulente sujeitas às duas incidências, se constitucionais fossem os referidos tributos, no passado?

dela” (Caderno de Pesquisas Tributárias n. 15; Ed. CEEU/Resenha Tributária, 1990, p. 374/375).

184. Edição do Centro de Estudos de Extensão Universitária - CEEU e Resenha Tributária, 1990, dedicado ao tema “Lei Complementar Tributária”.

185. Gilberto de Ulhôa Canto, Antonio Carlos Rodrigues do Amaral, Paulo Lucena de Menezes e Gustavo Miguez de Mello inclusive, entendem que as leis ordinárias que procuram ressuscitar o tributo extinto, não cuidaram das empresas prestadoras de serviços, mas só daquelas mercantis. Lê-se do primeiro autor mencionado a seguinte observação:“4.11. Em resumo, embora a espécie de contribuição para o FINSOCIAL devida pelas empresas exclusivamente prestadoras de serviços pudesse ter sido recebida como adicional do IR e as espécies pertinentes às instituições financeiras, sociedades corretoras e distribuidoras de títulos e valores mobiliários e sociedades de arrendamento mercantil, bem como às seguradoras, sociedade de capitalização, entidades abertas de previdência privada com fins lucrativos pudessem ter sido recebidos temporariamente pelo art. 56 das Disposições Transitórias, a Lei 7.689/88 só manteve à relativa às empresas vendedoras de mercadorias e às empresas mistas porque incidente sobre o faturamento.2.12. Porque não mais havia a hipótese de incidência da contribuição para o FINSOCIAL devida pelas empresas exclusivamente prestadoras de serviço após a publicação da Lei nº 7.689/88, é que a Lei nº 7.738/89 pretendeu recriá-la nos seguintes termos:“Art. 28 - Observado o disposto no art. 195, § 6º, da Constituição, as empresas públicas ou privadas, que realizam exclusivamente venda de serviços, calcularão a contribuição para o FINSOCIAL à alíquota de meio por cento sobre a receita bruta”. 4.13. Ocorre que, a partir da Constituição de 1988 a destinação da receita das contribuições sociais à seguridade social passou a ser elemento essencial à sua configuração, e imprescindível da lei que a instituir; só se diferenciam de alguns impostos (ISS, ICMS e IR) das contribuições para intervenção no domínio econômico, das contribuições no interesse de categorias profissionais e das contribuições no interesse de categorias econômicas, pela destinação específica da sua receita.4.14. Assim, a contribuição para o FINSOCIAL devida pelas empresas exclusivamente prestadoras de serviços, não pode ser considerada contribuição social, porque a Lei nº 7.738/89 não vinculou sua receita à seguridade social.4.15. E, como imposto novo, essa imposição não se convalidaria, porque não foi instituída por lei complementar e teria base de cálculo própria do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza” (Caderno de Pesquisas Tributárias n. 15, ob. cit., p. 36/37/38).

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Entendo que não. Não são as companhias aéreas estrangeiras contribuintes do Finsocial e do PIS, se argumentando pelo absurdo, fossem imposições constitucionais, à luz dos novos diplomas que as veicularam.

O Ministério da Fazenda, pela sua Comissão de Estudos Tributários Internacionais, decidiu sobre o Finsocial —com fundamentos extensivos ao PIS— que tais companhias não estão sujeitas àquela incidência.

No processo de n. 0768.42.311/82, a Comissão de Estudos Tributários do Ministério da Fazenda esclareceu:

“Ora, se as empresas de transporte aéreo internacional domiciliadas ou com sede nos países signatários de acordos com o Brasil estão, por força desses atos internacionais, excluídas do imposto de renda brasileiro, quanto aos lucros derivados de sua atividade, é de se concluir que qualquer contribuição criada pela lei interna brasileira, cuja incidência ou montante seja determinado com base em tal imposto, não alcançará tais empresas”,186

e concluiu:

“Entretanto, o decreto-lei que criou esta contribuição não pode prevalecer sobre convenções internacionais. Ele só abrange, portanto, os casos de isenção previstos em outras leis internas e não se aplica às hipóteses contempladas em atos internacionais, corno ocorre no caso das companhias de transporte aéreo sediadas em países com os quais o Brasil assinou acordos ou efetuou troca de notas diplomáticas para evitar a dupla tributação da renda decorrente dessa atividade”.

Tal decisão assinada pelo Presidente da Comissão, Dr. José Otávio dos Santos Pinto, foi referendada pelo Secretário da Receita Federal, Dr. Francisco Neves Dornelles.187

186. Aliomar Baleeiro ensina: “Os tratados variam de tipo. Uns são bilaterais, outros plurilaterais, estes mais freqüentes na atualidade. Uns são executivos outros contratuais e até normativos.Do ponto de vista tributário, precípua é a importância dos tratados do comércio com recíprocas concessões em matéria alfandegária, porque, nesses casos, as cláusulas negociadas substituem as alíquotas da Tarifa Aduaneira, formando a chamada Tarifa Convencional. Outros tratados regulam os casos de pluritributação, sobretudo pelos impostos de renda e herança.Em regra, os tratados só produzem efeitos entre as partes que os celebram. Mas, além da hipótese de adesão, os tratados de comércio com concessões alfandegárias contêm, em geral, há alguns séculos, a “cláusula de nação mais favorecida”. Por ela, esses atos internacionais consignam que se maiores concessões, no futuro, forem feitas a um terceiro país, elas se tornarão extensivas automaticamente aos signatários” (Direito Tributário Brasileiro,10ª ed., Forense, 1981, p. 411).

187. Tavares Paes esclarece: “Os tratados e convenções internacionais somente podem ser celebrados pela União, como sujeito de direito público externo. Os tratados e convenções somente produzem efeitos entre as partes que os celebrem. Estes tratados são muito importantes no campo fiscal, como, por exemplo, o da ALALC. De muita usança as convenções com o fito de evitar a bitributação entre os signatários. A Súmula 575 do STF diz que “à mercadoria importada de país signatário do GATT ou membro da ALALC estende-se a isenção do ICM concedida a similar nacional”.Sobre o art. 21 do Tratado de Montevidéu, v. ac. un. do S.T.F. de 7/4/1975, RE 76.099, Rel. Min. Alckmin, RTJ, 73:455.Evidentemente a redação do dispositivo não é feliz e Hugo de Brito Machado pondera que “na verdade um tratado internacional não revoga nem modifica a legislação interna. Tem-se que procurar, assim, o

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Esta orientação específica para a consulente é de 5/3/83, não tendo sido revogada até o presente, por ato administrativo de igual hierarquia.

A entrada em vigor da nova Constituição, por outro lado, não alterou a referida manifestação, até porque o tributo em questão foi mantido, provisoriamente, até o advento das contribuições sociais elencadas no artigo 195, inciso I, o mesmo, de resto, ocorrendo no que concerne ao PIS, como tributo recepcionado pela nova Constituição, mas não recepcionadas a forma de calcular e a elevação tributária.

Deve-se lembrar, por outro lado, que a decisão não cuida de hipótese de estímulo fiscal, benefício fiscal ou isenção, mas simplesmente de uma inexigibilidade técnica, par força do princípio da reciprocidade em direito internacional.188

Não há, pois, como se pretender aplicar-lhe a decadência do benefício a que alude o § 1º do artigo 41 das Ds.Ts. da Constituição Federal, pois que, se aquela decorre de não confirmação por lei, após o prazo carencial de 2 anos, desde 5 de outubro de 1988, dos benefícios mencionados, aqui não há qualquer benefício, mas impossibilidade material de incidência dos tributos mencionados em operações acordadas, como livres de imposição entre países signatários de acordos específicos, nacionais, regionais ou setoriais.189

A resposta, pois, à terceira questão é de que o Ministério da Economia continua obrigado a respeitar a mencionada orientação até alteração dos acordos internacionais.

A quarta questão refere-se à garantia do contribuinte em não ser punido se seguir orientação oficial.Tem o artigo 146 seguinte dicção:

“A modificação introduzida, de ofício ou em conseqüência de decisão

significado da regra legal em foco. O que ela pretende dizer é que os tratados e convenções internacionais prevalecem sobre a legislação interna, seja anterior ou mesmo posterior” (Curso de direito tributário, Rio de Janeiro, Forense, 1981, p.29).

188. Osíris Rocha sobre o princípio da reciprocidade no direito internacional escreve:“Princípio de direito internacional segundo o qual se dá ao estrangeiro o mesmo tratamento que, em seu país, é dado ao nacional do país onde esteja pretendendo o gozo de determinada regalia.No Brasil, p. ex., dispensa-se a exigência de visto para entrada de estrangeiro cujo país dê aos brasileiros o mesmo tratamento (D.L. 941, art. 11, § 1º), e aos portugueses se outorga a condição de nacionais em troca de consideração idêntica, em Portugal, para os brasileiros” (Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 63, p. 346).

189. O artigo 41 da Ds.Ts. da Constituição Federal tem a seguinte dicção:“Os Poderes Executivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios reavaliarão todos os incentivos fiscais de natureza setorial ora em vigor, propondo aos Poderes Legislativos respectivos as medidas cabíveis.§ 1º. Considerar-se-ão revogados após 2 anos, a partir da data da promulgação da Constituição, os incentivos que não forem confirmados por lei.§ 2º. A revogação não prejudicará os direitos que já tiverem sido adquiridos, àquela data, em relação a incentivos concedidos sob condição e com prazo certo.§ 3º. Os incentivos concedidos por convênio entre Estados, celebrados nos termos do art. 23, § 6º, da Constituição de 1967, com a redação da Emenda n. 1, de 17 de outubro de 1969, também deverão ser reavaliados e reconfirmados nos prazos deste artigo” (grifos meus).

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administrativa ou judicial nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto ao fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução”.190

Por tal artigo, a adoção de determinado critério exegético quanto à específica incidência, se vier a ser alterado, não pode a alteração ter efeito retroativo. Não há como um contribuinte ser apenado porque o Fisco, tendo-lhe indicado o caminho a seguir, venha, posteriormente, a puni-lo exatamente porque adotou aquela sinalização oficial.191

Em benefício da segurança jurídica e da moralidade administrativa, a autoridade lançadora é responsável pela orientação que oferta e o contribuinte ou responsável não fica sujeito a qualquer exigência tributária, se seguir rigorosamente a indicação governamental.192

O dispositivo é claro ao dizer que se aplica a fatos geradores posteriores à alteração de critério, que possa implicar exigência maior. O que vale dizer, é inaplicável sobre o passado, de resto, respeitando o que determina o art. 5º, inciso XXXVI da Constituição Federal, assim redigido:

190. Américo Masset Lacombe ensina: “Confirma este artigo o principio geral da imutabilidade do lançamento. Se houver mudança na valoração jurídica dos dados ou elementos de fato que informam a autoridade administrativa no exercício da atividade do lançamento, tal mudança só poderá ser considerada quanto a fatos geradores ocorridos após a introdução desta modificação. Assim, se a administração mudar uma determinada orientação em virtude de decisão judicial tal modificação só se aplicará a lançamentos futuros não podendo de forma alguma introduzir modificações, sejam elas benéficas ou não ao contribuinte, em lançamentos completos, perfeitos e acabados, uma vez que nestes já está completa toda a estrutura da relação obrigacional com a constituição tanto do debitum (schuld, obrigação tributária, relação de débito) quanto da obligatio (haftung, crédito tributário, relação de responsabilidade)” (Direito Tributário nº 4, Bushatsky, 1976, p.175).

191. Aliomar Baleeiro lembra: “Nesses casos, em se tratando de normas relativas ao lançamento, a inovação só se aplicará ao mesmo contribuinte se ocorrer fato gerador posteriormente à modificação. Sobrevivem as situações constituídas anteriormente e que são definitivas.No Agravo Instr. nº 29.603-RGS, 18/6/65, RTJ, 34/542, o S.T.F, 22 T., decidira já que a mudança de critério ou orientação da autoridade fiscal não pode prejudicar o contribuinte, que agiu de acordo com o critério anterior, predominante ao tempo de tributação. O mesmo no R.E. 69.426-RS, de 31/3/70, rel. B. MONTEIRO.E no R.E. nº 68.253-Prn, 1ª Turma, 1969,.rel. R.B. MONTEIRO, o S.T.F. decidiu que havia coisa julgada administrativa, na decisão do Conselho de Contribuintes, que em resposta à consulta, declarara não caber o tributo (Caso da Loteria do Paraná versus União).Aplica-se ao adicional por tempo limitado o regime do imposto ao qual ele foi acrescido (R.E. 68.142, de 9/12/69, rel. GALLOTTI)” (Direito Tributário Brasileiro, ob. cit., p.510).

192. O “caput” do artigo 5º, assim como aquele do artigo 37 da Constituição Federal estão assim veiculados:“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: ...”;“Art.37. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e, também, ao seguinte: ...” (grifos meus).

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“a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

Ora, no caso concreto a orientação do Ministério da Fazenda, comentada na questão 3, ainda vige e qualquer nova exigência —se devida fosse alguma exigência, que não é— somente poderia ser imposta às empresas associadas e pela orientação protegidas, a partir de sua revogação.193

Não cabe, pois —sob pena de responsabilização das autoridades que não seguirem a consulta oficial, com base no art. 37 § 6º da Constituição Federal— qualquer imposição às mencionadas companhias, à luz do que determina o artigo 146, enquanto viger a indicação ministerial. E se mudança houver e se devidas forem —que não são— as imposições estudadas, prevalecerá, a partir dos fatos geradores futuros, o direito da Fazenda aos respectivos tributos.194

Respondo, pois, à quarta questão informando que o artigo 146 do CTN, è luz da decisão ministeria1, é aplicável a todas as empresas por ele beneficiadas, não estando sujeitas a qualquer espécie de imposição, se imposição houvesse e constitucional fosse o direito fazendário aos 2 tributos.195

193. Sobre o princípio da irretroatividade é notável o trecho de Vicente Rao que passo a transcrever: “A inviolabilidade do passado é princípio que encontra fundamento na própria natureza do ser humano, pois, segundo as sábias palavras de. Portalis, o homem, que não ocupa senão um ponto no tempo e no espaço, seria o mais infeliz dos seres, se não se pudesse julgar seguro nem sequer quanto à sua vida passada. Por essa parte de sua existência, já não carregou todo o peso de seu destino? O passado pode deixar dissabores, mas põe termo a todas as incertezas. Na ordem do universo e da natureza, só o futuro é incerto e esta própria incerteza é suavizada pela. esperança, a fiel companheira de nossa fraqueza.Seria agravar a triste condição da humanidade querer mudar, através do sistema de legislação, o sistema da natureza, para o tempo que já se foi, fazer reviver as nossas dores, sem nos restituir as nossas esperanças” (O direito e a vida dos direitos, v.1, p.428).

194. O § 6º do artigo 37 da Constituição Federal tem a seguinte dicção:“As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

195. Alberto Xavier ensina: “Assim, o erro de fato legitima a alteração do lançamento pela prática dos adequados atos de anulação ou lançamento suplementar. Ao invés, a modificação de critérios jurídicos só pode prevalecer quanto a fatos geradores ocorridos posteriormente à sua introdução, o que o mesmo é dizer-se, não pode servir de fundamento a modificação do lançamento anterior.Suscita, por vezes especiais dificuldades o problema de saber se no caso se verifica uma questão de direito, atinente à interpretação da lei, ou uma questão de índole diversa, relativa à aplicação da lei, ou seja, à subsunção de um fato —indevidamente caracterizado— numa norma corretamente interpretada.Nestes casos importa ter presente que não pode falar-se em erro de fato se as características de fato tributário e da pessoa do contribuinte foram sempre declaradas ao Fisco, sendo deste plenamente conhecidas. Por outro lado, é inexato pensar que o erro de direito se restringe à questão de interpretação, podendo instalar-se igualmente no decurso do processo subsuntivo, em que a aplicação da lei se traduz. Como com lapidar elegância formula BETTI, o erro de direito consiste em “ignorar a existência ou o conteúdo de uma norma jurídica, ou interpretar o seu significado de modo distinto do real, ou em fazer aplicação inexata a situação que não regula e, portanto, também em atribuir a um fato ou a uma relação uma qualificação jurídica distinta da que lhe é própria” Cumpre ainda assinalar que a vedação da revisão de lançamento não se circunscreve à alteração de critérios jurídicos determinada “ex officio” pelo Fisco. Ela vai mais longe, pois se opõe à revisão, ainda que

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Outro aspecto a ser refletido, nestes breves comentários sobre dispositivos que afastam a incidência do PIS e do Finsocial sobre os contratos das companhias aéreas estrangeiras para prestação de serviços em grande parte fora do país, é o que diz respeito ao artigo 98 do CTN, assim redigido:

“Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha”.196

Por este artigo, os tratados internacionais prevalecem sobre a 1egislação interna. Tal prevalência fartamente discutida na doutrina, de rigor, não afasta a legislação interna de regência, visto que devendo os tratados ser confirmados pelo Parlamento, sua confirmação termina representando a concordância legislativa sobre o pactuado e, por decorrência, a existência de manifestação parlamentar a respeito.197

A interdependência crescente dos países vai transformando o mundo, inclusive em sua feição jurídica. Discute-se, hoje, se a Comunidade Econômica Européia seria uma confederação clássica ou uma Federação atípica, visto que a soberania dos Estados pactuantes submete-se a um Tribunal Europeu e a um Parlamento Europeu, em matérias antes consideradas de decisão exclusiva dos poderes soberanos locais.

Em meu livro “O Estado de Direito e o Direito do Estado” propugnei em 1977 pelo lançamento dos a1icerces de um Estado Universal, em que gradativamente as nações perderiam sua soberania, em prol da humanidade, a favor de uma autonomia naiona1

este tenha sido resultado de sentença judicial com trânsito em julgado. Neste caso, o dever de execução da sentença judicial, por parte do Fisco, limita-se exclusivamente aos fatos geradores posteriormente ocorridos” (Do Lançamento no Direito Tributário Brasileiro, Ed.Resenha Tributária, 1977, p.333/334).

196. É ainda Alberto Xavier quem esclarece: “Ao contrário do que sucede em outros Estados não existe no Brasil cláusula de “transformação” ou de “ordem de execução” das normas internacionais em Direito interno, de tal sorte que os tratados entram em vigor imediata e independentemente de conversão legal, sobrepondo-se à legislação interna com a qual eventualmente estejam em conflito, respeitando assim a visão monista do direito, com primado do direito internacional.Note-se que este primado do direito internacional sobre o direito interno é reconhecido pelo próprio direito interno, estabelecendo o art. 98 do Código Tributário Nacional que “os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a 1egislação tributária interna e serão observados pela que lhes sobrevenha”.Da validade do tratado que tale na ordem interna, independentemente de transformação em direito interno, decorrem, além da sua supremacia hierárquica, duas outras importantes conseqüências: o contribuinte pode invocar diretamente o texto do acordo; e à interpretação dos seus preceitos são aplicáveis as regras de hermenêutica que vigoram quanto aos tratados e não as que respeitam à 1egislação interna de cada Estado contratante” (Direito Tributário Internacional do Brasil, Ed. Resenha Tributária, 1977, p. 36/37/38).

197. Aliomar Baleeiro hospeda idêntico entendimento: “O CTN, art. 98, fala em tratados e convenções, parecendo atribuir conceito especial a umas e aos outros, mas Hildebrando Accioly ensina que é denominação genérica a de tratados para os acordos de vontades entre Estados soberanos. Assim “tratados” podem chamar-se de convenções, declaração, protocolo, convênio, ajuste, compromisso etc. Ainda as “notas reversais”, que a completam ou registram concessões recíprocas. Em princípio, tradicionalmente, o tratado há de ser ratificado, pois é da competência exclusiva do Congresso “resolver definitivamente sobre os tratados celebrados pelo Presidente da República” (C.F. de 1969, art. 44, I)” (Direito Tributário Brasileiro, ob. cit., p. 410/411).

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para redução dos desníveis sociais, econômicos, regionais e culturais. Treze anos depois, com alegria, vejo crescer a tendência do desarme de preconceitos nacionalistas a favor da busca de um mundo melhor e mais harmônico.198

Os tratados e acordos internacionais hoje representam o grande instrumento jurídico de integração econômica entre as nações e de desenvolvimento mundial.

O artigo 98 do CTN consagra tal visão e sendo, como é, dispositivo com eficácia de lei complementar, prevalece sobre legislação ordinária e sobre atos administrativos regulatórios de legislação ordinária.

À evidência, —e o dispositivo é citado pelo próprio Ministério da Fazenda na decisão retro-mencionada— não pode haver cobrança do Finsocial e do PIS —o que revelam caracteres de tributação sobre a disponibilidade econômica (o PIS é uma alternativa

198. Escrevi, há 13 anos: “A longo prazo, o mundo deverá compreender que somos um planeta navegando, no espaço, em busca da sobrevivência de seu principal habitante, que é o homem. As guerras, se não o levarem à destruição, serão substituídas por uma guerra maior, que é a de fazer a população mundial não perecer.Por esta razão, a longo prazo, a batalha da sobrevivência do homem apenas poderá ser cuidada com o estabelecimento de um Estado Universal.O mundo não está, no presente, preparado para seu nascimento. As pioneiras sementes não conseguiram ainda passar de um estado embrionário, seja no plano político (Sociedade das Nações, ONU, OEA), seja no plano econômico (MEC, ALALC, etc). Essas sementes, todavia, estão na essência da continuação do homem. Se o homem não encontrar um consenso universal para se auto-dirigir e teimar nas escaramuças dos regionalismos, estará fadado ao suicídio e a transformar a terra num inóspito planeta, nos próximos séculos.Somente um Estado Universal poderá, num futuro distante, superar o problema, com as nações atuais servindo de Estados Federados, à semelhança dos países federativos, e o Estado Universal representando o poder central.O mundo do fim do século XX vê a falência das ideologias. O sistema oriental est4 completamente desestruturado, em termos ideológicos, numa desestimulante visão de um marxismo, que se destrói internamente, sem solução. O mesmo se pode dizer do capitalismo clássico. Tais concepções estão agonizando.As tentativas futuras, quaisquer que sejam, representarão a sepultura das divergências ideológicas para o estudo das concepções de liberdade do ser humano garantidas pelos direitos naturais do Estado, com dignidade e respeito mútuos.Somente, numa visão universal do Poder destinado a todos os homens de todas as raças, credos e países, poder-se-á obter o engajamento numa luta sobreviencia1, que um Estado Universal conduziria para que os esforços no planeta nem se desgastassem inutilmente, nem fossem orientados para sua destruição.Parece-nos que a paz é um desejo universal de todos os países e governos, que se preparam, todavia, para a guerra como forma de defesa das agressões externas alimentadas pelos mais variados elementos e fatores.O Estado Universal, com poder coercitivo, seria a única forma de garantir, desde que criado, uma evolução natural, onde as democracias de acesso permitissem a transição, através dos seus especialistas supranacionais lotados nos Ministérios de Ciência e do Futuro de cada nação. As enormes dificuldades, que a sua implantação acarretaria, não justificaria o afastamento do exame de sua viabilidade, eis que, sem ele, a segurança mundial é nula, pois sujeita ao bom senso de todos os governos com artefatos nucleares, em todos os momentos. E o que a história tem demonstrado é que, mesmo as nações mais evoluídas podem, em determinados períodos, deixar de ter homens de bom senso. A dolorosa lição que Hitler representou só poderá ter sido a última, se algo se sobrepuser aos poderes regionais exercidos sem controle.A conscientização de que, a longo prazo, o Estado Universal esteja no centro da própria sobrevivência do homem e o estudo da sua viabilização, são matérias que ficariam a cargo dos Ministérios de Ciência e do Futuro de cada país” (O Estado de Direito e o Direito do Estado, Bushatsky, 1977, p. 155 a 159).

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impositiva para a participação dos empregados nos lucros das empresas e o Finsocial em relação às empresas de serviços era tido por adicional de imposto sobre a renda)—, razão pela qual, por força do artigo 98 do CTN, é de impossível exigência daquelas empresas estrangeiras, cujos países mantêm acordos contra a dupla tributação, específicos ou genéricos, com o Brasil.199

De acrescentar-se que o Finsocial já não mais existe para todas as empresas prestadoras de serviços, visto que as leis retrocitadas —que elevaram a alíquota— não poderiam cuidar de tal espécie de imposição, não sendo possível extensão da modalidade de imposição por faturamento para as empresas de serviços.

Se não, por força de toda a argumentação até o presente expendida, mas por aquela da descontinuação da imposição para as empresas prestadoras de serviços, pela modalidade do adicional de imposto sobre a renda e não extensão da modalidade correspondente ao imposto inominado seria de impossível exigência o Finsocial das associadas à Consulente.200

199. “Constitucional e Tributário. Finsocial. Base de cálculo. Receita bruta. Restituição. É inconstitucional a cobrança do Finsocial instituído pelo Decreto-lei nº1.940/82, no exercício de sua instituição. Precedentes da Corte. A base imponível é o cerne da hipótese de incidência, sua grandeza econômica, sendo de exigir-se entre uma e outra uma pertinência necessária, importando a inadequação em causa no desnaturamento do tributo ou no seu perfil geral. O conceito de “receita bruta” não é privativo da legislação do imposto de renda, dependendo o seu conteúdo da dimensão dada pelo legislador e, assim, deve ser induzido, para efeito do § 1º do art. 1º do Decreto-lei 1.940; outrossim, não há dúvida de que o IR e o FINSOCIAL, para esse mesmo efeito, são impostos que, na sua estrutura e regime jurídico não se justificam. Pretender o aplicador da lei incluir na definição de receita bruta, para fins de Decreto-lei 1.940/82 princípios e normas, do imposto de renda, será expor-se, sem poder jurídico para tanto, a unificar num só regime legal-tributário impostos diversos, instituídos sob competência constitucional diversa. 0 critério fiscal calcado no Decreto-lei 1.598/77 e na IN SRF 21/79 confere a definição de “receita bruta” elastério que não se ajusta ao Finsocial, na sua hipótese de incidência, impondo-se a restituição do quantitativo maior daí decorrente. Negou-se provimento à apelação da União e proveu-se a da Autora, nos termos do voto do Relator” (Ac un da 5ªT do TFR - AC 119.207-MG - Rel. Min.Sebastião Reis - Aptes.: Usimec-USIMINAS Mecânica S/A. e União Federal; apdas.: as mesmas - DJU 12.12.88, p.32.989” (Caderno de Pesquisas Tributárias n. 15, ob. cit., p. 438/439/440).

200. Antonio Carlos Rodrigues do Amaral e Paulo Lucena de Menezes fundamentam tal descontinuidade, ao dizer: “Relevante considerar o fato de que, não tivesse se operado a extinção do FINSOCIAL, para as empresas prestadoras de serviços, em face do mencionado art. 10 do Decreto-Lei 2.445/88 (vide item II, B retro), de qualquer forma, à luz do ordenamento maior vigente, tal teria ocorrido necessariamente, pelo fato de o art. 56 do ADCT, que precariamente manteve em vigor a obrigação, dizer respeito apenas às empresas comerciais, financeiras e seguradoras.Assim sendo, a Lei 7.738/89 que, no seu art. 28, estabeleceu: “Art. 28 - Observado o disposto no art.195, § 6 da Constituição, as empresas públicas, ou privadas, que realizam exclusivamente a venda de serviços, calcularão a contribuição para o FINSOCIAL à alíquota de 0,5% (meio por cento) sobre a receita bruta”, não se subsume aos moldes constitucionais, por pretender reintroduzir no mundo jurídico uma obrigação extinta, sem atender aos pressupostos para tanto estabelecidos pelo legislador supremo.Não obstante tal fato, o Fisco Federal não cuidou de permanecer silente, e através da Instrução Normativa 41/89, sobre pretender a retroação da já inconstitucional disposição vertente da Lei 7.738/89, alterou, mais uma vez, a base de cálculo da exação, estatuindo que esta deveria ser calculada ...” à alíquota de 0,5% (meio por cento) sobre a RECEITA BRUTA, assim considerado o FATURAMENTO mensal relativo à prestação de serviços de qualquer natureza (g.n).Ora, não sendo “receita bruta” equivalente a “faturamento”, resta nítido que o ato normativo em apreço (IN 41/89) extrapolou sensivelmente o conteúdo da norma que pretendeu regular (art.28 da Lei 7.738/89), violando o princípio da legalidade plasmado no art.150, I da CF (15), bem como no art. 97, IV do CTN”

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Respondo, pois, à quinta questão, nos termos da resposta oficial à entidade, ou seja, de que os acordos internacionais referendados pelo Legislativo prevalecem sobre a legislação ordinária em matéria tributária, por força do artigo 98 do CTN, artigo este aplicável, em nível de proteção excludente de imposição, às associadas à Consulente, com sede em países signatários dos mesmos.

Resta, agora, a última questão.

Por todos os argumentos já expostos, não há qualquer imposição possível sobre as empresas mencionadas.

Entendo, todavia, que se as respostas às questões 1 e 2 tivessem sido pela imposição e não pela inconstitucionalidade manifesta da exigência, à luz do que dispõe a Constituição Federal, as companhias não protegidas por tratados contra dupla tributação também deveriam estar fora do campo de incidência dos dois tributos.

O argumento é simples e decorre do disposto no inciso II do artigo 150 da lei suprema assim redigido:

“Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

...

II. instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”.201

O tratamento desigual não é vedado apenas aos contribuintes que estejam em situação idêntica, mas também àqueles que estão em situação não idêntica, mas equivalente, vale dizer, semelhante.

A única exceção ao princípio da isonomia encontra-se no inciso I do artigo 151:

“É vedado à União:

I. instituir tributo que não seja uniforme em todo o. território nacional ou que implique distinção ou preferência em relação a Estado, ao Distrito

(Caderno de Pesquisas Tributárias, ob. cit., p. 437 a 440).

201. Yoshiaki Ichihara ensina: “A nova Constituição é pródiga no sentido de vedar tratamento desigual, ou seja, elegeu o princípio de igualdade ou da isonomia como um super princípio. Este dispositivo é dirigido especialmente aos Parlamentares, Membros do Ministério Público, Militares, Magistrados etc. que tinham tratamento desigual e privilegiado no que se refere à tributação do imposto de renda, onde se excluíam parcelas dos seus proventos da incidência do imposto de renda.Veda a distinção em razão da ocupação profissional ou função, além da discriminação pelo rótulo utilizado para os rendimentos, títulos ou direitos, como subterfúgio à tributação.É salutar este dispositivo, na medida em que não existe injustiça maior do que a discriminação dos iguais através de privilégios ou subterfúgios da utilização de rótulos para diferenciar pessoas ousituações iguais”(Direito Tributário na nova Constituição, Ed. Atlas, 1989, p.113).

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Federal ou a Município, em detrimento de outro, admitida a concessão de incentivos fiscais destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento sócio-econômico entre as diferentes regiões do país”,202

à evidência, não aplicável à espécie, posto que tais incentivos fiscais são apenas os de natureza regional. E como já expliquei, anteriormente, a não incidência do PIS e do Finsocial sobre a contratação de viagens, em sua maior parte realizadas fora do país, não decorre de um incentivo ou estímulo fiscal, mas do princípio da reciprocidade.

Por esta linha de raciocínio, à nitidez, todas as empresas aéreas estrangeiras devem merecer o mesmo tratamento tributário, ou seja, no caso, nenhuma incidência tributária.

Respondo, pois, à última questão pela não incidência dos tributos Finsocial e do PIS, não só por que são inconstitucionais, mas porque, se constitucionais fossem, não seriam de imponibilidade possível sobre as empresas de transportes aéreos com sede no exterior.

S.M.J.

São Paulo, 17 de dezembro de 1990.

—————

202. Escrevi: “Em uma interpretação sistemática, poder-se-á entender que os incentivos fiscais apenas serão concedidos desde que não impliquem tratamento desigual que privilegie atividades mais oneradas em outras regiões, decididamente sendo inaplicável ao menor sintoma de que o tratamento desigual não esteja estabelecendo equilíbrio, mas desequilíbrio, que atinja contribuintes em situações diversas” (Comentários à Constituição do Brasil, 6º volume, Saraiva, 1990, p. 221/222).

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8 - O CONGELAMENTO INTRODUZIDO PELAS MEDIDAS PROVISÓRIAS 294 E 295/91 E SUAS LEIS DE CONVERSÃO DE Nºs. 8.177 e 8.178/91 FEREM OS ARTIGOS 170, INCISOS II e IV, E 174 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL - A RESPONSABILIDADE POR RESSARCIMENTO DE DANOS É DA UNIÃO E PESSOAL DAS AUTORIDADES EM FACE DO ARTIGO 37, § 6º, DA LEI MAIOR - PARECER.

CONSULTA

Apresenta-me, a Consulente, a seguinte consulta:

“1) O congelamento geral de preços encontra amparo na Constituição?

2) O fato comprovado e reconhecido pelo próprio governo de que a matéria-prima (café cru) não permaneceu congelada, havendo, ao contrário, ações diretas e indiretas do próprio Governo para elevar suas cotações, interna e externamente, propicia à indústria, o direito de repassar seus custos?

3) Em caso afirmativo, quais as medidas administrativas ou judiciais que garantiriam esse direito?

4) O governo tem poderes para obrigar as empresas a operarem com prejuízo?

5) Os prejuízos sofridos pelas empresas, em face das medidas governamentais referidas, são indenizáveis?

6) Em caso afirmativo, que ações poderiam ser propostas e contra quem?

7) Ao divulgar a tabela de preços para o café industrializado a SUNAB cometeu um erro (reconhecido e a ser reparado a qualquer momento conforme declaração pública das autoridades), fixando para os Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná um valor bastante inferior ao dos demais Estados. O prejuízo, ainda maior, das empresas localizadas nesses Estados, agravado pela injustificável demora no reparo desse equívoco, poderá, também, ser ressarcido?

8) Através de que meios e por quem?”

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RESPOSTA

Está a Ordem Econômica esculpida, na Constituição Federal, em seu Título VII, dos artigos 170 a 192.

De todos os artigos, o mais relevante é o de número 170, que apresenta os fundamentos, os princípios e a norma essencial capaz de assegurar o livre exercício de qualquer atividade econômica.203

Está assim redigido o artigo 170:

“A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I. soberania nacional;

II. propriedade privada;

III. função social da propriedade;

IV. livre concorrência;

V. defesa do consumidor;

VI. defesa do meio ambiente;

VII. redução das desigualdades regionais e sociais;

VIII. busca do pleno emprego;

IX. tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte.

203. Celso Ribeiro Bastos escreve: “O atual rol de princípios que informam nossa ordem econômica é bem mais amplo do que o contemplado no art. 160 da Constituição anterior. Nota-se a ausência de referência ao desenvolvimento que, contudo, pode ser tido por subentendimento no item 8º que fala na busca do pleno emprego. Na verdade o desenvolvimento econômico continua a ser o alvo principal que todos os Estados procuram atingir. O próprio desenvolvimento social, cultural, educacional, todos eles dependem de um substrato econômico. Sem o desenvolvimento dos meios e dos produtos postos à disposição do consumidor, aumentando destarte o seu poder aquisitivo, não há forma para atingirem-se objetivos também nobres, mas que dependem dos recursos econômicos para sua satisfação.Encontramos no caput do artigo referência a quatro princípios: valorização do trabalho humano, livre iniciativa, existência digna, conforme os ditames da justiça social. Do contexto extrai-se que o Brasil filia-se ao modelo capitalista de produção também denominado economia de mercado, embora a Lei Maior só vá fazer referência ao mercado no art. 219. De qualquer sorte, fica clara a filiação do nosso país a esse modelo econômico que é um dos dois fundamentais encontráveis na nossa era. Ao lado dele encontra-se o sistema de direção central da economia, também denominado socialista.Não há negar-se que o sistema capitalista é hoje temperado por graus diversos de intervenção do Estado, o que tem levado alguns autores a falarem na existência de uma forma de economia mista. No entanto, quer em termos econômicos, quer em termos jurídicos, a ordem econômica é ainda tributária de um desses dois modelos cardeais” (Comentários à Constituição do Brasil, 7º volume, Saraiva, 1990, p. 12).

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§ único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei” (grifos meus).

Os dois fundamentos são:

a) valorização do trabalho humano

e

b) livre iniciativa;

que devem assegurar, desde que os governos não obstaculizem suas potencialidades:

a) existência digna

e

b) Justiça Social.204

Tais fundamentos geram nove princípios, entre os quais, deve-se destacar os da:

a) propriedade privada

e

b) livre concorrência,

os quais desembocam na regra maior de uma economia de mercado, que é o livre exercício de qualquer atividade econômica, independente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos de capacitação, que é a leitura que faço da exceção constante do § único do art. 170.205

204. Diogo de Figueiredo Moreira Neto escreve: “Temos, em doutrina, bem claro, que a ordem econômica tem seus fundamentos fácticos, seus princípios de valor e seus objetivos finalísticos. É perfeitamente possível abordá-la, assim, em termos filosóficos, em três planos: ontológico (o que é a ordem econômica), axiológico (que valores devem ser protegidos) e teleológico (que resultados pretende-se alcançar).Nessa ordem de idéias, os dados ontológicos são três: o trabalho, os meios de produção e a iniciativa econômica.Esses dados ontológicos estão assim tratados na Constituição de 1988. Quanto ao trabalho e à iniciativa econômica, os dois fatores humanos da produção, estão ambos mencionados no artigo 170, caput, acertadamente, como fundamentos da ordem econômica idealizada para a sociedade brasileira: “Art. 170 - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios”.Com essa redação, a valorização do trabalho, que deveria ser uma finalidade da ordem econômica, um macro objetivo a ser alcançado pelo paulatino e permanente aperfeiçoamento da sociedade, ficou como fundamento, como se fosse uma conquista já incorporada à vida nacional por obra e graça da letra da lei” (Ordem Econômica e Desenvolvimento na Constituição de 1988, Ed. APEC, 1989, p. 57/58).

205. Escrevi: “A livre concorrência oferta inequivocamente perfil mais liberal à Constituição atual que a anterior. A livre iniciativa pode existir ao lado de um planejamento econômico severo, obrigatório, determinante para o setor privado. A livre iniciativa exterioriza a possibilidade do acesso aos meios de produção por parte do setor privado, mas não necessariamente à determinação das regras de mercado

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Nada obstante muitos autores entendam que não há, entre os comandos supremos da lei máxima, hierarquia, tendo igual valor todos os dispositivos constitucionais, não só a doutrina alemã, como, agora, a nacional, entendem que o espectro de abrangência de cada um deles determina a sua maior relevância, já havendo inclusive decisões da Justiça brasileira a albergar a inconstitucionalidade das normas constitucionais, no conflito entre elas, prevalecendo aquela de maior amplitude.206

É por esta razão que se há de entender a divisão em fundamentos, princípios e normas que conformam os três grandes feixes de comandos normativos supremos de qualquer ordem jurídica.

O artigo 170, pois, possui os três tipos de preceitos superiores, sendo a livre iniciativa fundamento e a livre concorrência princípio, este plasmado, pela primeira vez, num texto constitucional.

Alguns constitucionalistas chegaram a ver nos dois comandos, repetição de preceitos, no que o tempo permitiu demonstrar não sua identidade, mas sua complementariedade.

Com efeito, a livre iniciativa - na antiga ordem veiculada estava como princípio e não como fundamento, no inciso I sob a locução “liberdade de iniciativa” - corresponde à permissão do ordenamento legal de um país a que o setor privado participe do processo produtivo. A livre iniciativa possibilita apenas que qualquer pessoa física ou jurídica explore atividades econômicas. A livre iniciativa não é incompatível com a falta de livre concorrência, pois diz respeito, exclusivamente, à possibilidade de participação do setor privado em tal área. Em seu livro “Liberdade de escolher”, o prêmio Nobel de Economia, Milton Friedman, fez menção à “livre iniciativa” existente no setor agropecuário da União Soviética em 1979, que constituía 3% das atividades econômicas da área, embora fosse responsável por 33% da produção de alimentos das

para a economia. A livre iniciativa pode, inclusive, existir em países de economia socialista, na medida em que diz respeito apenas ao acesso ao mercado produtor e não à economia plena de mercado.A livre concorrência, não. Só pode existir, à luz das livres regras de mercado, que passam a ser as depuradoras da qualidade e do valor dos bens negociados.A livre concorrência, pois, não admite congelamento e muito menos tabelamento, pois os dois mecanismos de controle de preços eliminam o preço de mercado para estabelecer um preço governamental” (A Constituição Aplicada, volume 2, Ed. CEJUP, 1990, p. 155/156).

206. O Desembargador Domingos Franciulli Netto sobre a matéria escreve: “Adote-se ou não essa terminologia, o certo é que as disposições transitórias visam a precipuamente ajustar certos assuntos ou situações à nova ordem constitucional, facilitando, portanto, a passagem de uma a outra situação, sem choques ou colisões. Fazendo parte da Constituição, tais dispositivos gozam, pela sua natureza constitucional, da mesma autoridade que os demais, em face dos poderes e autoridades do Estado e dos cidadãos em geral. Mas, por outro lado, dada a sua missão temporária, de ajustamento de situações, não é possível admitir que, num caso de conflito com dispositivos do corpo da Constituição, possam derrogar a estes (cf. Postilas de Direito Constitucional, t.III/142, Cooperativa D. Gastão, PUCSP, 1962).Então, se não é possível, consoante lição desse exímio Publicista, a derrogação - e para não enveredar a discussão para a tormentosa questão da inconstitucionalidade intrínseca entre os dispositivos de uma mesma Constituição – a conclusão, a ser submetida à apreciação .dos doutos, é a de que, dada a evidente incompatibilidade, a espécie é de mera inaplicação do art. 33 das “Disposições Transitórias” de nossa CF aos requisitórios judiciais provenientes de dívida contraída com desapropriações” (Revista dos Tribunais, vol. 659, 1990, p. 231).

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Repúblicas Socialistas Soviéticas.

A livre iniciativa pode, inclusive, explorar atividades, cujo regime de atuação seja a produção de serviços públicos, sujeitando-se ao rígido sistema de direito administrativo.207

A livre iniciativa é incapaz de impedir planejamentos macroeconômicos obrigatórios, capazes de impor congelamentos e tabelamentos, posto que o direito de o setor privado atuar nas atividades econômicas não implica o direito de explorá-las em regime de livre concorrência.

A livre concorrência, entretanto, é incompatível com congelamentos ou tabelamentos, visto que tais medidas impedem a própria concorrência no mercado. Economia congelada não permite a busca do melhor preço por determinação da oferta e da procura, mas apenas a determinação de um preço por parte do Governo, independentemente das condições de mercado ou das empresas.208

À impossibilidade de um congelamento perfeito após reajuste de todos os preços relativos, os congelamentos e os tabelamentos terminam por desorganizar a economia, como a história mundial tem demonstrado desde o Código de Hammurabi.209

Por esta razão, houve por bem o constituinte, a fim de impedir tal forma de

207. O artigo 175 da Constituição Federal tem a seguinte dicção: “Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.§ único: A lei disporá sobre: I. o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; II. os direitos dos usuários; III. política tarifária; IV. a obrigação de manter serviço adequado”.

208. Miguel Reale ensina: “Ora, a livre iniciativa e livre concorrência são conceitos complementares, mas especialmente distintos. A primeira não é senão a projeção da liberdade individual no plano da produção, circulação e distribuição das riquezas, assegurando não apenas a livre escolha das profissões e das atividades econômicas, mas também a autônoma eleição dos processos ou meios julgados mais adequados à consecução dos fins visados. Liberdade de fins e de meios informa o princípio de livre iniciativa, conferindo-lhe um valor primordial, como resulta da interpretação conjugada dos citados arts. 1º e 170.Já o conceito de livre concorrência tem caráter instrumental, significando o “princípio econômico” segundo o qual a fixação dos preços das mercadorias e serviços não deve resultar de atos de autoridade, mas sim do livre jogo das forças em disputa clientela na economia de mercado.Acorde com essas diretrizes básicas, é dito no art. 173, que “a exploração direta da atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”. Há nessa disposição dois valores a destacar, a saber: o caráter excepcional da exploração econômica pelo Estado, e a exigência prévia de lei que a autorize, definindo os fins visados” (Aplicações da Constituição de 1988, Ed. Forense, 1990, p. 14).

209. Sobre o Imperador Deocleciano escreve Daniel-Rops: “Quanto às finanças, objeto constante das preocupações imperiais, foram melhoradas com um novo cadastramento, um novo cálculo da receita tributária e uma reforma das moedas para melhorar a cunhagem; mas a verdade obriga a dizer que, quando Deocleciano tentou acabar com o alto custo de vida, recorrendo ao tabelamento mediante o Edito do máximo, de 301, não obteve - como é costume - senão resultados irrisórios, e a alta dos preços continuou” (grifos meus) (A igreja dos apóstolos e dos mártires, Quadrante, 1988, p. 388).

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descompasso econômico — tão a gosto dos governos, sempre que não encontram outras formas de combate à inflação — impor vedação absoluta à adoção dessa técnica, denominada pelo economês de “heterodoxa”, ou seja, aquela que, nos 5 planos de estabilização, resume-se em combater os efeitos da inflação e não as causas.

O constituinte, ao adotar a “livre concorrência”, como princípio da ordem econômica, à luz do fracasso dos dois primeiros planos de estabilização (Cruzado e Bresser), sinalizou, de forma inequívoca, para a impossibilidade de congelamentos e de tabelamentos, hospedando a política de preços determinada pelo mercado e não pelo governo.210

Não contente em consagrar a livre concorrência — e o tabelamento e o congelamento eliminariam a liberdade de concorrência para impor regras que o governo entendesse válidas para a economia —, houve por bem o constituinte, ainda, em declarar que todo o planejamento macroeconômico só poderá ser determinante para o setor público, mas nunca para o setor privado.

Assim é que fez o artigo 174 ser veiculado com a seguinte dicção:

“Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado” (grifos meus),

a qual declara que, como agente normativo e regulador da atividade econômica, poderá, o Estado, atuar de 3 formas, a saber:

a) fiscalização;

b) incentivo;

c) planejamento.211

210. Manoel Gonçalves Ferreira Filho ensina: “Por outro lado, é expressa a Constituição ao consagrar o princípio da livre concorrência (art. 170, IV): Que significa ele?Recorde-se a lição de André de Laubadére: “O princípio da livre concorrência permite aos particulares exercer suas atividades industriais e comerciais num sistema de competição que não deve ser entravado nem por prescrições nem por prestações provindas dos poderes públicos (Droit Public Économique, Paris, Dalloz, 4ª ed., nº 152). É evidente, portanto, que, num sistema de livre concorrência, cada um fixa o preço do que produz, ou vende. Somente assim poderá competir com outros produtores ou vendedores. E o respeito à livre concorrência exige - reitere-se o ensinamento - que a fixação de preços pelo produtor ou vendedor não seja entravado pelo Poder Público.A livre concorrência não é incompatível com a intervenção do Estado na atividade econômica. Ela apenas exige que esta intervenção seja “indireta, quer dizer, respeitosa da liberdade de decisão dos que procuram e dos que oferecem os bens, e da liberdade de formação dos preços. Certamente, o Estado pode influenciar estas liberdades por uma política financeira, monetária ou social. Mas a liberdade de determinação dos agentes econômicos, em última análise, não é eliminada. A economia é somente orientada” (Raymond Barre, op. cit., p. 186)” (A disciplina de preços no atual Direito Constitucional Brasileiro, estudo publicado no jornal “O Estado de São Paulo, 1/7/1989, p. 24).

211. Tércio Ferraz Sampaio Jr. Esclarece: “O art. 174 da Constituição Federal autoriza a instauração de um dirigismo econômico?A questão foi discutida largamente no curso da exposição. Em poucas palavras deve-se reconhecer que a

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A fiscalização, mesmo que não tivesse o constituinte se referido a tal atividade, é ela ínsita, inerente, própria do Estado. Seu poder regulatório ou sua intervenção regulatória é, fundamentalmente, de fiscalização para verificar se as leis, que se conformam aos princípios constitucionais, estão sendo respeitadas pelos governos e pela sociedade.

O incentivo é forma própria de atrair investimentos. Não se deve esquecer a lição de Paul Samuelson, que sugere espécie de “congelamento” e “tabelamento”, por livre opção das partes, via estímulo fiscal, ou seja, o Estado sugere que as empresas mantenham seus preços abaixo da inflação, dando-lhes em contrapartida redução de tributos.212

O certo é que o estímulo, como forma regulatória de atuação no mercado por parte do governo, permite a compreensão de uma economia de mercado, em que os agentes econômicos devem ser induzidos e não obrigados a agir de determinada maneira.

E, à evidência, no que concerne ao planejamento econômico é este determinante tão somente para o setor público, mas nunca para o setor privado.213

De rigor, em uma única hipótese, poder-se-ia admitir a imposição de planejamento

Constituição repudia o dirigismo econômico. Onde quer que se admitam a livre iniciativa e a propriedade privada dos bens de produção não há lugar para tal dirigismo, entendido como uma direção geral da economia que funciona na base de um plano geral obrigatório para executantes e destinatários” (A economia e o controle do Estado, estudo publicado pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, 4/06/1989, p. 50).

212. Fundamentos da Análise Econômica, Ed. Abril, Série “Os Economistas”.

213. Manoel Gonçalves Ferreira Filho ensina: “Já no ‘planejamento indicativo’ (que Barre qualifica de ‘flexível’), ‘o Estado procura influenciar as quantidades globais estratégicas (investimento, consumo, despesa global), mas deixa, no âmbito interno desse total, as decisões aos cálculos particulares das firmas e dos indivíduos’. E sublinha: ‘Ele utiliza todos os procedimentos indiretos de intervenção, esforçando-se para não atingir o essencial do mecanismo de formação dos preços’ (id. p. 189).Seguramente, a economia descentralizada é incompatível com o “planejamento integral e imperativo”, como é praticado na URSS. E só compatível com o planejamento de “duplo setor” (imperativo para o setor público, indicativo para o privado) se o mercado disser a última palavra.É importante explicitar este último aspecto.Observa Barre: ‘Fala-se freqüentemente numa economia mista, ou economia de ‘duplo setor’. Trata-se de justapor um setor público e um setor privado. Mas não basta modificar a estrutura da propriedade dos meios de produção, por nacionalizações, por exemplo. Uma alternativa, com efeito, se apresenta. Ou o setor público produz e troca seguindo fielmente as indicações do mercado ou, então, a coordenação dos planos das unidades nacionalizadas e das unidades privadas de consumo ou troca-se efetua pelo mercado. Ou o setor público obedece a uma lei diferente daquela do setor privado e não se submete às indicações do mercado. Tudo será uma questão de proporção: se o setor público é dominante em poder e extensão, nós obtemos uma variante do tipo de organização centralizada’ (ob. cit., p. 189).Resulta do exposto que a formação dos preços é um dos elementos fundamentais da constituição econômica, pois é essencial para a caracterização do tipo de organização.Por outro lado, é verificação indisfarçável que, numa economia descentralizada, a formação dos preços obedece ao mercado. Inclusive, ocorrendo o intervencionismo, o próprio planejamento indicativo e existindo um ‘duplo setor’ na economia.A fixação de preços por determinação discricionária do Estado somente ocorre na economia centralizada. Nesta, como lembra o prof. Barre, “às combinações de preços decorrentes do mercado se substituem combinações em quantidade, segundo as ordens do Estado e de acordo com determinados coeficientes técnicos de produção” (ob. cit. p. 187)” (estudo citado, Jornal “O Estado de S.Paulo, p. 24).

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econômico para o setor privado, ou seja, sempre que o setor privado aceitasse trabalhar no regime jurídico da administração pública.

Com efeito, a ordem econômica hospeda dois regimes jurídicos, a saber: aquele do artigo 173 e o outro do 175. O primeiro diz respeito às atividades econômicas próprias do setor privado, no qual a presença do Estado é meramente vicária. Para tal regime de direito privado, o planejamento econômico pode ser apenas indicativo, estando o dispositivo assim redigido:

“Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

§ 1º. A empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que explorem atividade econômica sujeitam-se ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias.

§ 2º. As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado.

§ 3º. A lei regulamentará as relações da empresa pública com o Estado e a sociedade.

§ 4º. A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.

§ 5º. A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular”.214

Os §§ 1º, 2º e 3º não ofertam dúvida sobre a submissão das empresas estatais à liberdade de iniciativa e concorrência de acordo com regras próprias da economia de mercado.215

214. A equipe da Price Waterhouse assim comenta o “caput” do artigo: “O art. 173 da Constituição de 1988 só admite, em princípio, a intervenção do Estado na economia para atender a relevante interesse coletivo ou quando necessária aos imperativos de segurança nacional, conforme dispuser a lei. O Estado, portanto, só participará excepcionalmente da atividade econômica, que ficará reservada à livre iniciativa. A Constituição de 1967 fundamentava a intervenção na segurança nacional e no desenvolvimento de determinados setores da economia” (A Constituição do Brasil 1988, Price Waterhouse, 1989, p. 729).

215. Escrevi: “A .ordem econômica plasmada na nova Constituição .lastreia-se, entre outros, em 6 princípios fundamentais, que lhe dão corpo e tornam inquestionável seu perfil. Exteriorizam tais princípios uma nítida política superior, voltada para a economia de mercado, formando o mais moderno complexo de comandos liberais que o país já recebeu, neste século, em nível constitucional.

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O regime do artigo 175, atrás já transcrito, é regime de direito público. O Estado é que produz tais serviços, podendo aceitar sob as formas de autorização, permissão ou concessão, a presença do setor privado, este necessariamente secundário na exploração de tais atividades.216

De rigor, apenas em tal hipótese, o planejamento econômico pode ser determinante para o setor privado, posto que deixa ele de ser setor privado, mas se transforma em setor vicário do setor público.

De qualquer forma, nesta hipótese não pode haver planejamento econômico que imponha prejuízo ao setor privado, cabendo-lhe, pelas regras do direito administrativo, inclusive a faculdade de denunciar a violação dos contratos, se passarem, por força de tal imposição, a serem onerosos, não lucrativos, incapazes de repor a capacidade de investimento do segmento privado, absorvido pelo setor público.

Quanto ao setor privado, isto é, em relação ao regime jurídico do artigo 173, nem a imposição de prejuízos, nem a imposição de congelamento ou tabelamento ou qualquer outra forma de controle de preços são possíveis, à luz do princípio da livre concorrência.

Ora, pelo que atrás foi exposto, à evidência, os artigos 1º e 2º da lei 8.178, de 1º de março de 1991, são de notória, evidente, clara, inequívoca e fantástica inconstitucionalidade.217

São eles: a) o princípio da patrimonialidade; b) o princípio da livre iniciativa aberta; c) o princípio da reserva de mercado estrita; d) o princípio da livre concorrência; e) o princípio do planejamento econômico indicativo; f ) o princípio da repressão ao abuso do poder econômico e de proteção ao consumidor.Tais princípios ofertam, pela primeira vez, no sistema constitucional pátrio, uma ordem econômica com linhas claras e bem definidas, voltada a uma ampla opção pela condução macroeconômica do mercado e participação corretiva do Estado em poucas circunstâncias.Tinha-se a impressão, durante os debates na Constituinte, que a ordem econômica exteriorizaria uma política socialista, com a preponderância do Estado Empresário sobre o setor privado. Tolerar-se-ia a iniciativa privada, no máximo cabendo-lhe suprir o Estado em suas insuficiências empresariais.Tal sensação da opinião pública, todavia, não se tornou realidade, e o texto resultante terminou por ofertar o mais liberal modelo econômico dos últimos textos constitucionais” (p. 4 e segs. de parecer elaborado em setembro/1989).

216. Toshio Mukai ensina: “A norma consagra a obrigação de regulamentação de serviços públicos, acrescentando agora também o mesmo dever para o caso das permissões; além disso, prevê expressamente a titularidade dos serviços públicos ao Poder Público, o que parece ser o óbvio.Entretanto, registre-se que nos últimos tempos, no Brasil, já havia quem advogasse até a privatização dos serviços públicos, o que seria um despautério sem tamanho; daí se justificar a estatuição.Serviços públicos, ainda que econômicos, não se confundem com atividades econômicas. Esta distinção fundamental fizemo-la em tese de doutorado da USP.Dissemos lá: “Assim, serviço público industrial ou comercial é aquele que o Estado, ao elegê-lo como tal, exerce-o diretamente ou por interpostas pessoas, e que, por atender a necessidade essencial, ou quase essencial da coletividade, apresenta um interesse público objetivo em sua gestão. E, atividade econômica do Estado é aquela que ele resolve assumir, dentro de sua política econômica, observados os princípios constitucionais da Ordem Econômica, por julgar que tal atividade consulta ao interesse público da mesma ordem (interesse público subjetivo) (Administração Pública na Constituição de 1988, ed. Saraiva, 1989, p. 137).

217. Ney Prado, em seu livro “Economia informal e o direito no Brasil” (ed. LTR, 1991, p. 92) realça a importância da segurança jurídica na Economia citando consagrados autores: “Assim, por exemplo,

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Com efeito, rezam os artigos 1º e 2º da lei nº 8.178/91 que:

“Art. 1º. Os preços de bens e serviços efetivamente praticados em 30/01/1991 somente poderão ser majorados mediante prévia e expressa autorização do Ministério da Economia, Fazenda e Planejamento.

§ 1º. Os preços a que se refere este artigo são os fixados para pagamento à vista, em moeda.

§ 2º. Considera-se preço à vista o preço líquido, após os descontos procedidos, na data referida neste artigo, quer seja resultante de promoção ou bonificação.

§ 3º. Nas vendas a prazo realizadas até 31/1/1991, sem cláusula de correção monetária ou com cláusula de correção monetária pré-fixada, as parcelas remanescentes deverão ser ajustadas pelo fator de deflação previsto no art. 27 da Lei nº 8178, de 1/3/91.

§ 4º. O Ministro da Economia, Fazenda e Planejamento poderá fixar normas para a conversão dos preços a prazo em preços à vista, com eliminação da correção monetária implícita ou de expectativa inflacionária incluída nos preços a prazo.

§ 5º. Os atos do Ministério da Economia, Fazenda e Planejamento, que autorizem majoração de preços de que trata o “caput” deste artigo, deverão ser publicados no Diário Oficial da União, acompanhado de justificativa técnica.

§ 6º. O Ministério da Economia, Fazenda e Planejamento, deverá expedir instruções relativas aos procedimentos administrativos para que as empresas possam pleitear a majoração dos preços de bens e serviços, inclusive com decurso de prazo.

Art. 2º. O disposto no art. 1º desta lei aplica-se, também aos contratos cujo objeto seja: I. a venda de bens para entrega futura; II. a prestação de serviços contínuos ou futuros; e III. a realização de obras.

§ único. Os valores dos contratos referidos neste artigo e os das vendas

os agentes econômicos alocam recursos, antecipam algumas alternativas e realizam um investimento no futuro supondo que, se atuarem de acordo com as regras estabelecidas, os outros farão o mesmo. Portanto, do momento em que passa, a existir desconfiança, ainda que sem fundamento, a organização se enfraquece e debilita-se a motivação ...” (Beatriz Mello Flores de Lima, op. cit., pág. 16).Em qualquer país do mundo, a incerteza ou a instabilidade legal causa redução nos investimentos em equipamentos ou instalações produtivas, assim como nas de longo prazo de maturação” (Hernando de Soto, op. cit., pg. 253). Como se pode observar, ambas as observações vêm a talho de foice na atual conjuntura brasileira em que a nova constitucionalização do País, em vez de aumentar a segurança jurídica veio enfraquecê-la não só pelas experiências institucionais introduzidas como pelo seu excessivo casuísmo mas, principalmente, pela própria provisoriedade do texto de 1988 (V. art. 3º, ADCT)”.

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a prazo, firmados com cláusula de correção monetária pós-fixadas serão reajustados, desde o último reajuste até o dia 30/01/91, pela variação pro-rata do índice pactuado para reajustes referentes ao mês de fevereiro/91”.

Tais dispositivos não ofertam dúvida sobre a hospedagem “legal” do congelamento e do tabelamento assim formalizados, além de impor, a lei, outra forma mais grave de desrespeito à Constituição, que é a delegação de competência outorgada à Ministra da Economia. Tendo ela o direito de dizer quando, como e por quanto tempo os preços ficarão congelados ou poderão ser majorados, a livre concorrência deixa de existir e a toda poderosa titular da pasta fazendária passa a ser a única pessoa autorizada a determinar, “ad perpetuam”, quais os preços dos produtos e serviços que 150 milhões de brasileiros devem praticar a partir de 31/1/91.

Acresce-se o fato de que havia nítido descompasso de preços em janeiro de 1991, com setores atuando com sacrifício, em face da recessão provocada pelo Plano Collor, que foi incapaz de deter a inflação por notórios erros da equipe econômica por mim denunciados desde o 1º dia, em palestras, artigos e livros. Ora, considerável parcela das empresas nacionais passou a trabalhar com prejuízo, tendo sido obrigada a absorver o aumento das tarifas públicas, fantasticamente elevadas e dos salários não congelados em 31/1/91, dos juros, além de ter sofrido confisco de rendimentos dos ativos financeiros e da tablita, que pretendia ser aplicável a uma inflação zero, que se revelou de 21,8% e sobre cujo embutimento inexistente, o Ministério da Economia calculou um deságio de 20% só para fevereiro!!! Desta forma, conseguiu reduzir o estoque da dívida oficial, em 41,8%, em elementar soma aritmética - será maior por outra formula de cálculo – apenas em um mês!!!218

De lembrar-se que o governo não tem sido punido por sonegar o pagamento de suas dívidas junto ao setor privado, embora, não perdoe o setor privado, se este atrasa o pagamento de tributos, ameaçando-o com as penas da duvidosa lei nº 8137/90. Orwell tinha razão quando dizia que todos são iguais perante a lei, mas alguns são mais iguais do que os outros (“A revolução dos bichos”).

Como o Plano Collor I reduziu o tamanho da sociedade, sem reduzir o tamanho

218. Escrevi: “A deletéria atuação dos poderes públicos federais não ficou restrita a estas inconstitucionalidades.Ao “tablitarem” os preços dos produtos vendidos a prazo e não “tablitarem” os impostos, que lhes pertiniam, ou aumentaram tais impostos dentro do próprio exercício, - o que o artigo 150 inciso III letras “a” e “b” proíbe - ou, se não aumentaram, à evidência, declararam que tal “tablita” é inconstitucional, visto que em Estados Democráticos não pode haver a política dos dois pesos e duas medidas, própria dos Estados Autoritários.O dilema é elementar: ou os custos, lucro e tributos estavam todos “embutidos” nos preços a Prazo e, portanto, deveriam ser todos “tablitados”, ou os custos, lucro e tributos não estavam “embutidos” e nenhum deles poderia ser “tablitado”. Como os tributos não foram “tablitados”, os preços não o poderiam ser ou, se legal fosse a “tablitagem”, os princípios da irretroatividade plena e da anterioridade seriam, às escâncaras, violentados pelas autoridades federais.Continuando o extraordinário elenco de infringências oficiais há que se lembrar que o artigo 5º inciso XXXVI da C.F. também foi maculado pela desarrazoada ação governamental, na medida em que todos os contratos anteriormente garantidos pelas cláusulas e relações jurídicas estáveis, não poderiam ser atingidos por imposição capaz de gerar prejuízos enormes para alguns e enriquecimento ilegítimo para outros” (A Constituição Aplicada, volume 2, Ed. CEJUP, 1990, p. 156/157).

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do Estado, e como os “superávits” orçamentários foram inflacionários por serem obtidos à custa do empobrecimento da sociedade - confiscada ilegalmente em ativos financeiros e em exações fiscais de inequívoca ilegalidade, assim como na aética modalidade de não honrar, o governo, seus compromissos -, com o congelamento, “tarifaço”, tablitagens e confisco de rendimentos do Plano Collor II, novamente o 2º tiro governamental foi dirigido contra o cordeiro da sociedade e não contra o tigre do Estado, único real gerador da inflação neste país. É que os “superávits” obtidos à custa do aumento de receitas retiradas de uma sociedade depauperada e não de corte de despesas, não são fatores anti-inflacionários, mas explosivamente inflacionários.

À evidência, à luz de tal forma de execução de planos econômicos, sempre com as armas voltadas contra a sociedade, o Plano Collor II teria que gerar, como gerou, prejuízo para todas as empresas, cujos preços encontravam-se descompassados ou tiveram que absorver os impactos terrivelmente corrosivos dos fatores retro-citados.219

Ora, os prejuízos impostos pelo governo às empresas geram, de rigor, o que, no passado, denominou-se de “desapropriação indireta”, ou seja, a desapropriação de bens, sem justa e prévia indenização, correspondente à diferença entre o preço justo determinado pelo mercado e o prejuízo provocado pelo governo. E grande parte das empresas cumpre a legislação ilegal, porque seu descumprimento poderia acarretar o início de ação fiscal e penal. Teimar em cumprir a Constituição e não a desagregadora legislação do Plano Collor, maculadora em variados pontos da Carta Magna, é hoje tarefa hercúlea.

Ainda aqui tal forma de impor uma desapropriação indireta, pela obrigatoriedade de venda de produtos e serviços com prejuízos, é inadmissível, ferindo o Plano Collor II o art. 5º, inciso XXIV da C.F. assim redigido:

“A lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição”.220

219. Celso Ribeiro Bastos sobre o Plano Cruzado escreveu: “Acontece que o tabelamento, ou congelamento, que é uma modalidade em si mesmo também discutível, de tabelamento, mas aplicado como medida genérica, de prazo indeterminado, ou pelo menos por longo prazo, que no momento seria de um ano, mas de forma abrangente, a toda economia, não há dúvida, que esse tabelamento é a negação mais frontal que se possa fazer ao princípio da livre iniciativa. Não pode haver livre iniciativa sem a liberdade de preço. A liberdade de preço é que vai estabelecer a justa remuneração do risco assumido pelo empresário. E ninguém pode ser compelido a se lançar no mercado, sem que o governo propicie, sem que a ordem jurídica propicie, uma justa remuneração que ele possa tirar dessa atividade. Portanto, trabalhar num sistema de livre iniciativa, mas, simultaneamente com preços tabelados pelo governo de maneira permanente, ou pelo menos com prazo longo, e como medida generalizada, é a negação do princípio da livre iniciativa. Não há dúvida de que uma medida dessa natureza desestimula os investimentos e não permite a realocação dos recursos. A elevação dos preços desempenha um papel econômico importante. É precisamente a subida dos preços que vai atrair mais investidores para o ramo, e, portanto, reequilibrar a oferta e procura” (Aspectos Jurídicos do Plano de Estabilização da Economia, Ed. IASP/CEJUP, 1987, p. 31).

220. Escrevi: “Ora, se a Magna Carta protege direito à propriedade, sem restrições, só desapropriável com justa e prévia indenização, à evidência, não pode o Estado desapropriar bem, direta ou indiretamente, sem

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À evidência, em face desta intervenção inconstitucional do governo federal e, principalmente, da Exma. Sra. Ministra da Economia, o prejuízo imposto pela referida delegação de competência pode ser recuperado da União, por força do que dispõe o artigo 37 § 6º da C.F. assim redigido:

“As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.221

E, à evidência, a Exma. Sra. Ministra da Economia é pessoalmente responsável, podendo ter seus bens pessoais atingidos, em se caracterizando prejuízos decorrentes do Plano Collor II, visto que não é de se admitir que, com sua formação acadêmica, desconheça princípios elementares da ordem econômica constitucional e os trabalhos de Miguel Reale, Geraldo de Camargo Vidigal, Hamilton Dias de Souza, Manoel Pedro Pimentel, Tércio de Ferraz Sampaio Jr., Manoel Gonçalves Ferreira Filho e outros eminentes mestres, todos publicados, condenando a adoção de congelamentos e tabelamentos, à luz da nova Constituição, por serem medidas que a tisnam profundamente.

Como respeito S.Exa., sei que não age dolosamente, mas não excluo agir com culpa, posto que esta se caracteriza pela imprudência, omissão, negligência e imperícia e, no mínimo, há negligência em desconhecer a melhor doutrina e as disposições constitucionais contidas na lei maior sobre Economia, exatamente quando se está à testa dessa área ministerial.222

permitir que a justa e prévia indenização se viabilize.Muito embora a desapropriação tenha sido sempre tratada, à luz do direito administrativo, como ato de transferência da propriedade pelos mais diversos motivos do setor privado para o público, à evidência, por ter o constituinte falado em desapropriação como forma de perda de seu direito, retira-se a propriedade de alguém, sem justa e prévia indenização, entregando-a a outrem.Poder-se-ia denominar tal ato de desapropriação indireta, visto que o bem desapropriado não passa pelas mãos do Estado, nem segue a alteração patrimonial o devido processo legal, mas por força de lei, é transferido das mãos do expropriado para o beneficiário de expropriação” (Direito Tributário e Econômico, Ed. Resenha Tributária, 1987, p. 26/27).

221. Hely Lopes Meirelles ensina: “O abuso no exercício das funções, por parte do servidor, não exclui a responsabilidade objetiva da Administração. Antes, a agrava, porque tal abuso traz ínsita a presunção de má escolha do agente público para a missão que lhe fora atribuída. Desde que a Administração defere ou possibilita ao seu servidor a realização de certa atividade administrativa, a guarda de um bem ou a condução de uma viatura, assume o risco de sua execução e responde civilmente pelos danos que esse agente venha a causar injustamente a terceiros. Nessa substituição da responsabilidade individual do servidor, pela responsabilidade genérica do Poder Público, cobrindo o risco da sua ação ou omissão, é que se assenta a teoria da responsabilidade objetiva da Administração, vale dizer, da responsabilidade sem culpa, pela só ocorrência da falta anônima do serviço porque esta falta está, precisamente, na área dos riscos assumidos pela Administração, para a consecução de seus fins” (Direito Administrativo Brasileiro, 15ª ed., Ed. Revista dos Tribunais, 1990, p. 552).

222. É ainda Hely Lopes Meirelles quem esclarece: “Ação regressiva - A ação regressiva da Administração contra o causador direto do dano está instituída pelo § 6º, do art. 37, da Constituição da República, como mandamento a todas as entidades públicas e particulares prestadoras de serviços públicos, e quanto aos servidores da União, a Lei Federal 4.619, de 28/4/1965, impõe o seu ajuizamento pelo Procurador da República, dentro de sessenta dias da data em que transitar em julgado a condenação imposta à Fazenda

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Os prejuízos, portanto, são inequivocamente indenizáveis à luz do preceito constitucional superior, podendo a reparação ser exigida por empresas que comprovem sua ocorrência, em ação ordinária de perdas e danos, já se pleiteando que, na condenação, a União inicie a ação regressiva contra as autoridades causadoras dos prejuízos que o Erário terá que suportar, para delas ser ressarcido.

À nitidez, o direito à ação ordinária de perdas e danos não exclui - para empresas que os tenham sofrido por força da imposição de um inconstitucional controle de preços - o de sustar tão lamentável ação do governo através de ação cautelar inominada, pleiteando-se medida liminar em face da urgência e propondo posteriormente ação de rito ordinário com pedido de natureza declaratória. Tais medidas objetivam comprovar a inconstitucionalidade da aplicação da lei nº 8.178/91, que provocou prejuízos consideráveis às empresas.

Na fase probatória das referidas ações, se se provar que o Ministério da Economia permitiu o aumento para insumos e matérias-primas, não o permitindo para o preço final, causando prejuízo pela obrigatoriedade da absorção deste aumento de custos, a ação tornar-se-á mais vigorosa, na medida em que restará demonstrado o ferimento também ao princípio da isonomia jurídica em face do tratamento preferencial, na mesma cadeia produtiva, a determinados setores e não a outros.223

Caberia ainda contra a desequilibradora ação do Ministério da Economia, alicerçada nos canhestros diplomas legais retro-mencionados, a ação direta de inconstitucionalidade a ser proposta por Associação Nacional de Classe, com base no art. 103, inciso IX da C.F., assim exposto:

“Podem propor a ação de inconstitucionalidade:

...

IX. confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional”.224

(arts. 1º e 2º), sob pena de incidir em falta funcional (art. 3º). Para o êxito desta ação exigem-se dois requisitos: primeiro, que a Administração já tenha sido condenada a indenizar a vítima do dano sofrido; segundo, que comprove a culpa do funcionário no evento danoso. Enquanto para a Administração a responsabilidade independe da culpa, para o servidor a responsabilidade depende da culpa: aquela é objetiva, esta é subjetiva, e se apura pelos critérios gerais do Código Civil” (Direito Administrativo Brasileiro, ob. cit., p. 557).

223. José Cretella ensina: “Embora, por um lado, todos os indivíduos se encontrem desnivelados, quando comparados com a Administração, cercada de uma série de privilégios e prerrogativas, que a favorecem de maneira especial nas relações jurídico-administrativas, por outro lado o cidadão se acha em absoluto pé de igualdade diante de outros cidadãos, quando exige alguma prestação do Estado.Preenchendo a série de requisitos prescritos, o cidadão investe-se no direito subjetivo público de exigir, tanto quanto qualquer outro cidadão, o que as leis e os regulamentos oferecem ao público administrado, segundo o que preceitua o princípio ou regra de igualdade, de geral aplicação no âmbito dos serviços públicos.Trata-se da aplicação, no setor do serviço público, dos princípios gerais estabelecidos, na França, pela Declaração dos direitos do homem e do cidadão, promulgada pela Assembléia Nacional, em 3 de setembro de 1791” (Comentários à Constituição 1988, vol. I, Ed. Forense Univer., 1989, p. 184).

224. Rogério Lauria Tucci e José Rogério Cruz e Tucci ensinam: “A Constituição é o primeiro e, obviamente, o mais importante texto legal de um ordenamento jurídico.

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Poderá ainda ser impetrado mandado de segurança coletivo, nos termos do artigo 5º, inciso LXX, assim redigido:

“LXX. o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por:

....

b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados”.

Neste caso, a Associação Nacional de Classe fará uma assembléia geral para ser autorizada à proposição.225

Já, no passado, utilizei-me deste veículo processual para determinada associação de classe, tendo sustado a colocação dos certificados de privatização para todas as empresas associadas, em face da evidente inconstitucionalidade daquele empréstimo compulsório exigido pela Administração.226

Por isso que reclama, sempre, a imperatividade de seus preceitos e a prevalência deles sobre os demais atos legislativos de categoria hierárquica inferior.Do contrário, aliás, seriam vãos, ilusórios, os direitos e garantias estabelecidos na Lei Maior do País.Conseqüentemente, torna-se necessária a criação de mecanismos eficazes para conter o legislador ordinário e a Administração Pública, com a predominância das normas constitucionais. Até porque - deve ser complementado - se as demais leis e atos normativos do Poder Público não se conformarem com os preceitos da Carta Magna, serão inconstitucionais.Vislumbra-se, destarte, a inconstitucionalidade (inconstitucionalidade por ação) toda vez que a lei ou ato normativo outro, emanado da autoridade pública, afronta texto constitucional expresso ou, até mesmo, preceito implícito contido na Constituição.Como, sob a inspiração da experiência jurídica européia, bem observa, a respeito, Marcello Caetano, é a inconstitucionalidade o vício ostentado pelas leis que provenham de órgão não legitimado pela Constituição para editá-las, ou que tenham sido elaboradas em desacordo com as regras (processo legislativo) nela estabelecidas, ou, ainda, que contenham preceitos antagônicos aos constitucionalmente consagrados” (Constituição de 1988 e Processo, Ed. Saraiva, 1989, p. 100/101).

225. Pinto Ferreira esclarece: “É também assegurado o mandado de segurança coletivo em defesa de seus membros ou associados: a) por partido político com representação no Congresso Nacional; b) por organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano.Parece-nos também, contrariando a orientação dominante, que cabe mandado de segurança nos casos de litígios decorrentes de relações de trabalho dos servidores da União, inclusive das autarquias e das empresas públicas federais, qualquer que seja o seu regime jurídico, perante a Justiça Federal.A doutrina dominante pretende que não. Parece contudo que se deve começar a entender diferentemente, permitindo-se o uso do mandado de segurança sempre que houver direito líquido e certo, provado de plano, documentalmente, sem necessidade de prova testemunhal.Assim também se orienta Cândido de Oliveira Neto, no verbete intitulado “Mandado de Segurança” (in Repertório enciclopédico do direito brasileiro, Rio de Janeiro, v. 32, p. 277): São perfeitamente pensáveis inúmeros casos em que haverá mandado de segurança trabalhista, como os há eleitorais, porque inúmeras vezes, nas causas trabalhistas, se reportam as questões a decisões de autoridades variadas, que podem praticar ilegalidades e abusos de poder, em tema trabalhista, reparáveis pelo mandado” (Comentários à Constituição Brasileira, 1º volume, Ed. Saraiva, 1989, p. 205/206).

226. Manoel Gonçalves Ferreira Filho ensina: “O mandado de segurança coletivo não pode ser confundido com o mandado de segurança impetrado por uma pluralidade de pessoas jurídicas unidas por litisconsórcio. A admissibilidade do mandado de segurança litisconsorcial nunca fez dúvida, de modo que não teria sentido prevê-lo expressamente no texto constitucional, sob o rótulo de mandado de segurança

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Isto posto, passo a responder às oito questões formuladas, de forma sucinta:

1) Não.

2) Sim, podendo inclusive adotar o preço que o mercado determinar, à luz do artigo 170, inciso IV, da C.F.

3) Administrativamente, sugiro a entrega deste parecer à Excelentíssima Ministra da Economia, propondo o descongelamento para o setor em prazo máximo de uma semana, findo o qual se poderia adotar qualquer das medidas judiciais atrás analisadas.

Minha preferência recai sobre ações cautelares inominadas acompanhadas de ações declaratórias ou cumuladas com pedido condenatório.

4) Decididamente, não.

5) Sim, nos termos do artigo 36, § 6º da C.F.

6) Contra a União, que, ao ser vencida, deverá propor ação regressiva contra as autoridades federais causadoras do prejuízo.

7) Nos mesmos termos daqueles mencionados nas respostas anteriores.

8) Pelos mesmos caminhos judiciais.

S.M.J.

São Paulo, 21 de Março de 1991.

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coletivo.É pela finalidade que, essencialmente, o mandado de segurança coletivo se distingue do mandado de segurança litisconsorcial: nele, é um direito “difuso” de todos os membros de uma associação, sindicato etc, que encontra defesa, não direitos particulares de alguns membros de determinado grupo. O mandado de segurança coletivo é instrumento de garantia, é remédio processual destinado a proteger direitos de toda uma “coletividade”. E só a “coletividade” que o ente “representa” (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, volume 1, Ed. Saraiva, 1990, p. 78).