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IX ENCONTRO DA ABCP Estudos de Política Externa Análise de Política Externa Brasileira: questões conceituais e metodológicas de um campo em evolução. Haroldo Ramanzini Júnior (UFU e CEDEC) Rogério de Souza Farias (Associate do Centro de Estudos sobre América Latina da Universidade de Chicago). Brasília, DF 04 a 07 de agosto de 2014

IX ENCONTRO DA ABCP Estudos de Política Externa · formulação da posição do Brasil em contenciosos no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, a participação do Congresso

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IX ENCONTRO DA ABCP

Estudos de Política Externa

Análise de Política Externa Brasileira: questões conceituais e metodológicas

de um campo em evolução.

Haroldo Ramanzini Júnior (UFU e CEDEC) Rogério de Souza Farias (Associate do Centro de Estudos sobre América Latina da Universidade de Chicago).

Brasília, DF 04 a 07 de agosto de 2014

Análise de Política Externa Brasileira: questões conceituais e metodológicas

de um campo em evolução.

Haroldo Ramanzini Júnior (UFU)

Rogério de Souza Farias (Universidade de Chicago)

Resumo do trabalho:

O texto analisa uma das principais teses sobre a política externa brasileira, qual

seja, a horizontalização do processo decisório. Esse argumento tem sido

rotinizado nos trabalhos da área, quase tomado como um pressuposto. O presente

trabalho procura avaliar essa tese do ponto de vista teórico e metodológico,

propondo uma agenda de pesquisa para o futuro. Indicamos que a tese da

horizontalização sofre, atualmente, de cinco fragilidades – imprecisão conceitual,

falta de explicitação da linha de base a qual se está comparando, carência de

base empírica, limitações no uso de fontes e sobrevalorização de forças

sistêmicas.

Palavras-chave: Análise de Política Externa, Política Externa Brasileira, Horizontalização, Processo Decisório.

Introdução

O campo de estudos de Análise de Política Externa Brasileira passa por um

significativo processo de crescimento. Os trabalhos correntes, normalmente partindo de

estudos de casos, analisam principalmente o peso do Ministério das Relações Exteriores

(Itamaraty)e a participação de outros atores governamentais no processo decisório de

formulação da política externa brasileira. A conclusão dessas contribuições é de que

haveria uma maior pluralidade institucional na arena de política externa – uma

horizontalização. No Brasil, além da noção de horizontalização (França e Badin, 2010;

Campos Lima, 2012), muitos autores têm utilizado termos como “descentralização”

(Spécie, 2008), “pluralização” (Cason e Power, 2009), “desencapsulamento” (Faria, 2008),

“politização” ou “democratização” (Armijo e Kearney, 2008) e “diversificação de

interesses” (Milani e Pinheiro, 2012) para caracterizar o que consideram a situação atual,

em contraposição ao passado, quando a política externa brasileira teria seu processo

decisório caracterizado pelo insulamento ou pela verticalização. Ao nos referirmos a essa

tese, iremos contextualizá-la sob a noção de horizontalização, embora, como veremos na

seção seguinte, haja variação de termos para se referir à idéia.

Apesar do reconhecimento da qualidade das contribuições, argumentamos ser

necessário contornar alguns obstáculos, principalmente os relacionados à: 1) imprecisão

conceitual no uso dos termos do debate; 2) falta de clareza sobre a linha de base sobre o que

se está comparando; 3) dificuldade na busca de base empírica; 4) limitações no uso de

fontes; 5) sobrevalorização do impacto de forças sistêmicas. O nosso objetivo é avançar o

campo na direção de um conhecimento que seja passível de generalizações, ou seja,

transcenda a mera descrição de casos individuais. Isso só será alcançado com o

desenvolvimento de um arcabouço teórico e conceitual claro, métodos adequados e

indicadores passíveis de serem replicados.

Na seção seguinte, analisaremos os trabalhos que, na linha do argumento da

horizontalização, colocam em evidência a pluralidade de atores na política externa

brasileira como sendo algo próprio dos anos recentes. Em seguida, na terceira seção,

avaliaremos a tese da horizontalização, a partir dos cinco aspectos mencionados acima

(imprecisão conceitual, parâmetro de comparação, dificuldade na busca de base empírica

para o argumento do insulamento, limitação no uso de fontes e sobrevalorização do impacto

de forças sistêmicas). Na quarta seção, analisaremos a tese de horizontalização a partir da

análise de um telegrama confidencial enviado em 2009 pelo embaixador americano

Clifford M. Sobel ao Departamento de Estado. A essa análise serão seguidas questões

teóricas e metodológicas relevantes para o adensamento analítico do campo. Por fim,

retomaremos o argumento nas conclusões finais, sugerindo uma agenda de pesquisa para o

futuro.

2. A construção do argumento do insulamento e da horizontalização

A maioria dos estudos de Análise de Política Externa Brasileira olha para a

realidade atual da política externa brasileira como uma criança recém-nascida que acaba de

acordar para o mundo. A cada movimento de interação do Itamaraty com outros órgãos do

Executivo, com o parlamento ou com a sociedade, abre-se na consciência a certeza de estar

presenciando um marco único, um alvissareiro ineditismo. Para justificar a novidadeira

euforia, essas contribuições tem de projetar um passado diferente da situação atual. A

evidência para essas inferências, em alguns casos, está enleada muito mais em uma crença

pré-concebida do que no registro frio da história. Esses registros geralmente refletem uma

carência de maior conhecimento sobre a história da política externa brasileira, em geral, e

da documentação primária sobre o assunto, em particular. Um dos exemplos mais acabados

dessa perspectiva são as contribuições de Sean W. Burges. Em uma resenha recente, ele

afirmou:

Brazilian foreign policy has reached a very interesting inflection point. The bureaucratic

walls of the Itamaraty Palace so stoutly erected by the Baron of Rio Branco in 1902 are

cracking. Where foreign policy used to be neatly circumscribed by the world of ‘high

politics’ and external interaction by Brazilians limited to a small group of clearly defined

actors, the situation today is very different. Itamaraty retains pride of place for the grand

geopolitical thinking that often preoccupies the study of foreign policy, but the aspects of

international affairs touching the lives of citizens everywhere are increasingly becoming the

concern of line ministries, subnational governments, state agencies and private actors

(Burges, 2013: 171-174).

Ele defende, portanto, a tese de que o Itamaraty teve o poder monopolista de

determinar a política externa brasileira no passado. Na literatura, de forma geral, conforma-

se a ideia que a política externa brasileira teria sido formulada de modo insulado no âmbito

do Ministério das Relações Exteriores, de modo top-down, sem considerar demandas de

outros atores estatais ou societários. Assim, Faria (2008: 80) afirma que “o caráter insulado

do processo de produção da política externa brasileira, fortemente centralizado no

Itamaraty, tem sido amplamente reconhecido”. No mesmo sentido, Cason e Power

(2009:120) entendem que o “Itamaraty has maintained an impressive degree of bureaucratic

autonomy and isolation”.

Esse padrão de processo decisório teria sido rompido a partir de meados dos anos

1980, com a redemocratização do país, e, principalmente, nos anos 1990, com o impacto da

globalização (Armijo e Kearney, 2008). Faria, Lopes e Casarões (2013: 4) consideram que

“the pluralisation of societal and bureaucratic agents with an interest and a stake in Brazil´s

international politics comes up, therefore, as the most sensitive exogenous movements

against the alleged monopoly Itamaraty enjoys over foreign policy-making”. Figueira

(2010: 20) afirma que “o crescente aumento da participação de outros atores em questões

de política externa vem levando a uma mudança no padrão decisório dessa área no Brasil,

anteriormente caracterizado como insulado e altamente concentrado no Itamaraty”. Assim,

o argumento da horizontalização tem como base tanto trabalhos empíricos, que verificam,

por exemplo, o processo de formulação da posição do Brasil em negociações internacionais

específicas, como estudos que partem de mudanças no âmbito do sistema internacional. Em

termos teóricos, incorpora-se parte da literatura de Análise de Política Externa e de

Economia Política Internacional (Putnam, 1988, Milner, 1997, Martin, 2000) para

considerar que a democratização do processo decisório de política externa, a abertura do

Estado aos grupos de interesse e as divisões de preferências no próprio poder Executivo ou

sua relação com o Legislativo fortalecem o poder de barganha do país na negociação

internacional.

Um texto influente na perspectiva das instituições democráticas e da política externa

é o trabalho de Lima (2000). Um dos argumentos é que “a diluição da fronteira interno-

externo pode ter efeitos democratizantes no processo decisório da política exterior”. O texto

é cauteloso em não estabelecer uma relação de causalidade entre globalização,

democratização e mudanças na formulação da política externa. O argumento é apresentado

como possibilidade, em boa medida, do ponto de vista normativo. A principal interpretação

do trabalho na literatura de Análise de Política Externa Brasileira, contudo, foi no sentido

de testar a hipótese das conseqüências das mudanças sistêmicas (liberalização política e

econômica) no âmbito doméstico. Isso ocorre, por exemplo, em pesquisas que analisam a

formulação da posição do Brasil em contenciosos no Órgão de Solução de Controvérsias da

OMC, a participação do Congresso Nacional em questões de política externa, a

implementação de acordos de cooperação Sul-Sul, entre outros (Oliveira e Moreno, 2007;

Lopes, 2008; Diniz e Ribeiro, 2008; Faria, Nogueira e Lopes 2013). A conclusão desses

trabalhos sinaliza a politização e a emergência de novos stakeholders como novidade dos

anos recentes, impulsionadas pela redemocratização do país e pela maior conexão das

questões domésticas com o âmbito internacional.

Mas o que explicaria a centralidade do Itamaraty? Na perspectiva de Faria

(2008:81), decorre da confluência de vários fatores: a) o arcabouço constitucional do país,

que concede grande autonomia ao executivo na área de política externa, relegando o

Congresso Nacional a uma posição secundária; b) o fato de o legislativo brasileiro ter

delegado ao Executivo a responsabilidade pela formação da política externa; c) o caráter

“imperial” do presidencialismo brasileiro; d) o modelo de desenvolvimento por substituição

de importações ter gerado uma grande introversão nos processos políticos e econômicos do

país, redundando em grande isolamento internacional do Brasil, revertido parcialmente a

partir do início dos anos 1990; e) o caráter normalmente não conflitivo e largamente

adaptativo da atuação diplomática do país; f) a significativa e precoce profissionalização da

corporação diplomática do país, associada ao prestígio de que desfruta o Itamaraty nos

âmbitos doméstico e internacional. O autor também considera que “o principal fator a

pressionar pelo desencapsulamento da produção da PEB é o duplo processo, em curso

desde o início dos anos 90, de mudança no modelo de desenvolvimento e no padrão de

inserção internacional do país” (FARIA, 2008: 85).

O trabalho de referência sobre a tese da horizontalização é a pesquisa de França e

Badin (2010). Os autores estudaram quais órgãos do governo federal têm competência para

atuar em temas de relações internacionais, a partir do exame da regulamentação

infraconstitucional. Uma das conclusões é que “embora não se tenha uma análise evolutiva

dos dados, o fato de 50% dos órgãos da Presidência e dos ministérios poderem se relacionar

com a política externa evidencia uma internacionalização importante da estrutura do poder

executivo federal. Isso leva à percepção de uma horizontalização do processo decisório na

área em questão – o que caminha em sentido contrário á intuição sobre uma centralização

ou até mesmo sobre o insulamento do Ministério das Relações Exteriores”. Uma nota de

cautela presente no texto é que os autores reconhecem o fato de os achados do estudo não

terem uma base de comparação – o que não os impediu de chegar a conclusões sobre

mudanças no processo decisório.

Na mesma linha de argumentação, Cason e Power (2009: 118) consideram que o

declínio da “tradicional” dominância do Itamaraty ocorreu em decorrência da elevação do

número de atores, do processo de democratização e do aumento da interferência da

Presidência da República (Cason e Power, 2009: 134). Na área de comércio exterior, há

argumentos semelhantes. Para Armijo e Kearney (2008:1012), “the national trade

policymaking process, despite now being de facto overseen by the famously aristocratic

and aloof Foreign Ministry, is notably more transparent and widely consultative than in

several decades”.

O argumento da horizontalização não está restrito ao âmbito acadêmico. O atual

ministro das Relações Exteriores, Luiz Alberto Figueiredo (2014), afirmou que “um dos

desenvolvimentos mais significativos da democracia brasileira tem sido o crescente

interesse da sociedade pelos temas de política externa”. No mesmo texto, argumentou ser

“fundamental o maior envolvimento do Congresso Nacional, do Judiciário, de outros

ministérios e órgãos do governo, das universidades, da imprensa, dos movimentos sociais,

do empresariado, dos sindicatos e da população em geral com os temas da política

externa.” Isso proporcionaria “um debate público cada vez mais amplo e plural, o que

muito beneficia o governo brasileiro e o Itamaraty em particular”.

A tese não é nova. Sebastião do Rego Barros (1998: 18), então secretário geral do

Ministério das Relações Exteriores no governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), ao

examinar os primeiros anos desta gestão, asseverou ter existido “crescente aproximação da

instituição com a sociedade”, tendo o Itamaraty procurado “aprofundar o diálogo com

entidades sociais, parlamentares, governos estaduais e municipais, empresários,

sindicalistas, ONGs e imprensa”. O próprio presidente FHC participou desse debate. Para

ele, “nas últimas décadas o país tem-se transformado em pelo menos três dimensões

fundamentais. E em todas as três houve conseqüências importantes para a política externa.

Em primeiro lugar, o Brasil passou de um regime autoritário a democracia. Em segundo,

abriu seus mercados de forma significativa, reduzindo tarifas e cortando barreiras não

tarifárias. Por fim, foi capaz de estabilizar sua moeda, após décadas de inflação fora de

controle” (CARDOSO, 2001: 6). As duas primeiras dimensões apontadas por Cardoso

influenciam fortemente a literatura acadêmica de Análise de Política Externa Brasileira. O

argumento da horizontalização da formulação da política externa brasileira, dessa forma, é

extremamente influente.

3. Avaliando a tese da horizontalização

3.1. Imprecisão conceitual no uso dos termos do debate

A horizontalização é um processo ou uma situação? Ela é um tipo ideal ou

corresponde a uma situação real? Ela significa ter competência legal? Participar do

processo decisório? Influenciar? A existência de uma assessoria ou órgão em alguma

instituição que não o Itamaraty tratando de temas internacionais? Atuar em delegações no

exterior? Ter outras instâncias controlando as decisões externas do país? Seria a ampliação

da arena decisória para além do Ministério das Relações Exteriores, com a participação de

outros Ministérios? Ou representaria a participação de atores não –governamentais no

processo decisório? A resposta a cada pergunta implica uma definição muito distinta, e,

obviamente, desenhos de pesquisa e conclusões diferentes. Não há, atualmente, uma

preocupação com esses questionamentos. Há trabalhos, inclusive, que começam com uma

definição e terminam com outra. Diante dessa situação, não fica claro o que

“horizontalização” realmente significa. É essencial, portanto, maior esforço nessa atividade

preliminar. Após a definição do conceito, é necessário explicitar as variáveis pelas quais se

pode identificar se ocorreu ou não uma dinâmica de horizontalização. Usando o exemplo de

Pennings et al (PENNINGS, KEMAN et al.: 2006, 28), um conceito (volatilidade eleitoral),

tem de ter uma unidade de observação (eleições) e uma unidade de medida (mudança

agregada dos votos). Ainda que em nosso caso não seja possível encontrar tal nível de

precisão, é importante haver algum tipo de definição. Isso é de extrema relevância, pois a

validade externa de qualquer pesquisa pressupõe um código conceitual comum que

extrapole os limites de contribuições individuais.

A horizontalização certamente não é uma novidade se concebida como a atuação de

outros órgãos no processo decisório em política externa. No tema que temos estudado

(formulação das posições do Brasil no sistema GATT/OMC), ela é robusta historicamente

em termos de amostragem de casos, inclusive, do ponto de vista de reverter posições do

Itamaraty no processo decisório. Mas a atuação de outros atores domésticos que não o

Ministério das Relações Exteriores é variável em termos de mecanismos institucionais e

vias de ação, de modo que a pura análise formal e legalista pode ser limitada para julgar a

“horizontalização” em termos de influência efetiva de outros órgãos na resultante final da

política externa brasileira. Em muitos casos, a interação em exercícios interministeriais foi

somente pró-forma; em outros, mesmo não havendo nenhum “guichê” internacional nessas

outras instâncias ou a participação em reuniões, a influência foi extremamente elevada

(FARIAS, 2009; FARIAS e RAMANZINI JÚNIOR, 2010; FARIAS, 2012; RAMANZINI

JÚNIOR, 2012; RAMANZINI JÚNIOR e MARIANO, 2013). Outra questão que se deve

examinar é o fato de a burocracia, hoje, com suas mais de três dezenas de ministérios, ser

maior do que em qualquer período anterior da história do país, excluindo, talvez, os dez

últimos anos do regime militar. É natural, portanto, que o número absoluto de atores na

arena política seja maior – o que não significa necessariamente rupturas qualitativas nos

padrões decisórios.

Mesmo inexistindo um exercício interburocrático de reuniões, a influência de outros

órgãos no processo decisório pode-se dar pela via de consultas – email e até telefonemas

são comuns. Esse é um canal pouco explorado na literatura. As consultas a outros atores

podem ser feitas por várias razões. George e Bennett (2005) indicam que servem: a) para

obter informações e orientação antes de se tomar uma decisão; b) para obter suporte

emocional; c) para facilitar a aceitação futura das decisões a serem tomadas; d) para criar

consensos; e) para satisfazer a expectativa de que uma determinada decisão foi tomada

levando em conta a posição de todos os atores importantes; e, por fim, há a hipótese de

construção da narrativa. Esta última é a mais instigante e difícil de ser detectada. O

interessante no uso dessa tipologia é deixar claro que a elevação do fluxo de interação não

necessariamente ocasiona uma diminuição da centralidade do Itamaraty no processo

decisório.

Deve-se atentar também para o fato de os diplomatas terem fundado, chefiarem ou

realizarem o trabalho essencial de muitas assessorias internacionais de ministérios em

Brasília. Em conflitos interburocráticos, é razoável supor que dificilmente enfrentarão um

colega de carreira, especialmente de hierarquia funcional mais elevada (apesar de isso

ocorrer em determinadas situações, como será apresentado abaixo). Há, por fim, áreas

internacionais nesses órgãos lideradas por pessoas escolhidas para ocupar cargos

exatamente por terem posicionamentos convergentes com o Itamaraty. Assim, apenas a

constatação da existência de áreas internacionais em outras instâncias é um indicador

limitado para mensurar a horizontalização. Deve-se estudar, ainda, a hipótese da ação de

outros atores ocorrer somente após a aquiescência, concordância ou convite do Itamaraty,

que atuaria como um gatekeeper, permitindo somente o desenvolvimento de atividades

convergentes com suas preferências.

Há, no uso corrente da ideia de horizontalização, uma evidente sobreposição entre

os conceitos de interesse, participação, controle e influência que impacta o resultado de

alguns estudos. O conceito de participação, muitas vezes, é utilizado como sinônimo de

influência. Em geral, as decisões de política externa envolvem diversos indivíduos de

diferentes instituições. O fato de termos várias instituições participando de reuniões em que

se discutem ações no campo da política externa não autoriza a afirmação de que estamos

diante de um processo de horizontalização. É necessário observar a resultante final – aquela

que o país apresentou no âmbito internacional – e traçar, a partir daí, quais foram os atores

e as arenas responsáveis por sua formulação.

A importância de cada ator sobre a decisão final normalmente é discricionária,

dependendo de leis, costumes, alianças com setores da sociedade, conhecimento técnico e,

não raro, mero acaso. Nem todo participante do processo decisório tem o mesmo peso na

definição da posição final, daí não ser possível tomar como sinônimos participação e

influência. Não se deve, igualmente, esquecer das preferências ou interesses dos atores caso

se entenda o termo horizontalização dentro do parâmetro de influência. Se o Itamaraty tem

as mesmas preferências que as demais instituições que atuaram no processo decisório, não

se pode concluir que essa correlação significa um processo de insulamento ou

horizontalização. Além disso, diferentes temas e estágios de negociação internacional

configuram distintos padrões de ação e interação no processo decisório doméstico, sendo

possível considerar níveis de interesse, participação e influência variáveis.

3. 2. Falta de clareza sobre a linha de base sobre o que se está comparando

A literatura costuma ser mais precisa com a definição do que é o período “atual”.

Utiliza-se geralmente como marco as gestões presidenciais recentes. Ela é elusiva, no

entanto, na definição do “passado”, do período ou marco temporal ao qual se está avaliando

a situação corrente. Afinal, a “horizontalização” está sendo comparada com a situação das

arenas decisórias do regime militar (1964-1985)? Com o Império (1822-1889)? Com o

período da Guerra Fria (1945-1991)? Cada período implica algo muito peculiar e uma

comparação distinta. Do ponto de vista analítico, outro aspecto relevante é a seleção do

marco temporal de observação das narrativas e dos casos. Se o marco inicial ou final forem

escolhidos em situações em que as variações estão em seus níveis mais extremos, há

elevado riscos de existir efeitos de regressão à media ou, pior, inferências equivocadas

associadas a um viés de seleção (GEDDES: 2003, 123).

O que os estudos têm feito, de forma geral, é a apresentação da situação atual, mas

sem atentar para demonstrar com o mesmo grau de profundidade empírica e uniformidade

analítica a situação na linha de base a que se está comparando. Além disso, poucos estudos

atentam para o fato de que muitos assuntos e instituições inexistiam há pouco tempo.

Imaginemos, por exemplo, o uso do tema de cooperação internacional em ilícitos

eletrônicos. Como compararíamos a situação atual da arena decisória brasileira, afirmando

haver ou não “horizontalização” se essa arena é extremamente recente? O mesmo vale para

as instituições. Como discutir a questão da Secretaria de Políticas para as Mulheres em

termos de horizontalização se tanto o tema quanto a instituição inexistiam, ao menos no

formato como conhecemos hoje? Nesse sentido, o debate sobre horizontalização, em muitas

instâncias, pode ser problemático do ponto de vista metodológico, pois pode estar ausente

um pré-requisito essencial: a comparabilidade. Para se identificar semelhanças e diferenças

entre determinados objetos com relação a um critério é necessário que eles tenham as

mesmas características (SARTORI, 1994).

3.3 Dificuldade na busca de base empírica para o argumento do insulamento

Muitos trabalhos partem da premissa de que, no passado, o processo decisório

ocorreu de forma insulada, com elevada autonomia ou até exclusividade do Itamaraty, sem

que se tenha realmente base empírica para justificar tal afirmação. A partir disso, cria-se

uma narrativa da situação atual, que confirmaria a “horizontalização”. No entanto, mesmo

uma visão superficial sobre a história das relações exteriores do Brasil oferece numerosas

situações contrárias à tese de insulamento. Pesquisas importantes indicam que, no Império,

o Conselho de Estado e o Parlamento eram muito ativos e várias pastas influenciavam a de

Negócios Estrangeiros (CERVO: 1981). Outros ministérios e até presidentes de províncias

davam instruções e comunicavam-se diretamente com os ministros plenipotenciários do

país no estrangeiro (MENDONÇA: 2006).

No início da República, o exército e mesmo as polícias estaduais tiveram grande

atuação nas decisões relativas à cooperação internacional na área de segurança, sem o

oversight do Itamaraty (MCCANN: 2007). Durante muito tempo, o Ministério do Trabalho

e, depois, o da Indústria e Comércio mantiveram, no exterior, serviços de promoção

comercial – algo que até hoje a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e

Investimentos (APEX) e os adidos agrícolas não conseguiram estruturar em nível

equivalente. Nas conferências que criaram a Convenção sobre Aviação Civil Internacional

(Chicago, 1944) e o Fundo Monetário Internacional (Bretton Woods, 1944), o país foi

liderado por outros órgãos que não o Itamaraty. Na década de 1950, a posição do país no

tema fretes internacionais foi determinada primordialmente pela ação da empresa estatal

Llóide. Até a década de 1960, no âmbito do GATT, o Ministério da Fazenda desempenhou

papel preponderante. Há, ainda, domínios específicos em que ocorreram movimentos

pendulares. Logo após a independência, a negociação de empréstimos financeiros na city

londrina e o pagamento dos diplomatas do país no exterior eram realizados por

representantes vinculados à pasta dos Estrangeiros. Com a criação da Delegacia do Tesouro

em Londres, ambas atividades foram transferidas para a pasta da Fazenda, situação que

perdurou até a década de 1940, quando, em um lento processo, a atividade de pagamento do

serviço exterior brasileiro retornou ao controle do Itamaraty. No caso da responsabilidade

por negociações financeiras, a variação é ainda maior, com períodos de maior ou menor

atividade e controle por parte do Itamaraty.

Todos esses exemplos demonstram que as arenas decisórias no passado podem ter

sido bem mais complexas do que presume a literatura atual.1Por isso é importante ter uma

amostragem adequada sobre o passado ao qual se está considerando a situação presente.

Nessa perspectiva, é relevante invocar a afirmativa de Dahl (1958:466):“(…) I do not see

how anyone can suppose that he has established the dominance of a specific group in a

community or a nation without basing his analysis on the careful examination of a series of

concrete decisions. And these decisions must either constitute the universe or a fair sample

from the universe of key political decisions taken in the political system” (DAHL: 1958,

466, itálicos no original).

3.4. Limitações no uso de fontes para sustentar o argumento

Documentos legais e entrevistas são as principais fontes utilizadas pela literatura

para justificar o argumento de horizontalização. São todas muito importantes, mas tem

limitações. A legislação é um bom ponto de partida, mas reproduz mais a atenção do

legislador do que a realidade; mais a intenção do que as relações de hierarquia e poder

existentes no seio do governo. Um bom exemplo é a Câmara de Comércio Exterior

(CAMEX). A CAMEX tem a competência legal de “estabelecer as diretrizes para as

negociações de acordos e convênios relativos ao comércio exterior, de natureza bilateral,

regional ou multilateral”, de acordo com as competências arroladas pelo Decreto N° 3.981,

de 24 de outubro de 2001. Seria ingênuo, contudo, partir da premissa que essa orientação

legal reflete a realidade. É somente com o exame empírico da real atuação do órgão que se

pode alcançar essa conclusão.

No caso das entrevistas, é preciso considerar a necessidade de identificar com

precisão as diferenças conceituais mencionadas acima. Em geral, muitos entrevistados

acreditam que a participação em reuniões interministeriais ou em missões ao exterior

denota influência, o que é equivocado. Há também uma questão metodológica. Dependendo

de quando o pesquisador realiza a entrevista, o interlocutor afirmará algo diferente. Isso 1 Os casos citados são utilizados a título de exemplo. Essa ressalva é importante na medida em que um dos aspectos que estamos chamando a atenção é para a necessidade de construir uma medida ou critérios que permitam a comparação intertemporal, para além da seleção arbitrária de casos.

decorre do simples fato de que a atuação relativa dos órgãos pode variar dependendo tanto

do estágio do processo decisório doméstico quanto do estágio e da natureza da negociação

internacional. É por essa razão que os métodos e as fontes devem sempre tentar refletir a

realidade em seus complexos movimentos, como um filme, e não a ilusão estática de uma

fotografia.

Na entrevista, pode haver, igualmente, o viés do interlocutor. Suponhamos que um

acadêmico faça uma entrevista com um diplomata e com um ator de outro órgão. Pergunta-

se para o diplomata: “Qual a participação dos outros órgãos no tema?”. O diplomata,

provavelmente, responderá: “Os outros órgãos são essenciais para a condução do assunto e

para a determinação da posição brasileira”. Em outro órgão, diante da mesma pergunta,

pode ter a seguinte resposta: “Estamos sempre com os diplomatas. Já participamos de

várias reuniões no Itamaraty e fomos para missões no exterior”. De acordo com a nossa

experiência, essas respostas ilustrativas são comuns, mas, como argumentado acima, podem

não ser suficientes para sustentar que os outros órgãos influenciam a política externa

brasileira. Muitas são feitas com atores ou muito altos na hierarquia decisória ou que não

detiveram relevância nas decisões. Os atores e observadores engajados em uma arena

decisória e cujo futuro profissional depende da demonstração de influência tem grandes

incentivos para maximizar o papel que desempenham; por outro lado, os controladores do

processo decisório necessitam de um viés de legitimidade democrática para as decisões que

tomam. Segundo George e Bennett (2005: 101 – 102), que:

sabendo que haverá demandas públicas sobre como uma decisão importante foi tomada, tomadores de decisão são motivados a conduzir o processo decisório de modo que possa permiti-los a afirmar para a opinião pública que a decisão foi tomada depois de um processo amplo e cuidadoso de deliberação. Informações nesse sentido são dadas aos jornalistas assim que a decisão é tomada. Uma vez que “histórias instantâneas” tem dificuldade de retratar um processo decisório multidimensional, o analista deve considerar em que medida essa impressão é justificada e como ela incide sobre as informações transmitidas pela história instantânea e na subseqüente avaliação do tomador de decisão sobre como e por que uma decisão foi tomada.

3.5. Sobrevalorização do impacto de forças sistêmicas.

Parte da literatura estrutura o argumento da horizontalização a partir de

consequências hipotéticas de forças sistêmicas no processo decisório de política externa,

como, por exemplo, mudanças no regime político, o processo de globalização e as

transformações no sistema internacional. Esses processos teriam efeito causal, ocasionando

uma crescente diversificação dos atores que participam da formulação da política externa

brasileira e uma consequente diminuição do peso relativo do Itamaraty2, muitas vezes, sem

considerar as respostas adaptativas do órgão ao aumento de pressões. Não é relevado,

também, o argumento que a globalização, entendida como processo de integração acelerada

dos mercados internacionais, e seus impactos sobre os aparatos estatais é dinâmica

existente desde pelo menos o século XIX, e o fato de o Brasil já ter passado por outros

processos de democratização e diversas rupturas políticas.

Não se deve sobrevalorizar o poder de variáveis sistêmicas. Essas forças não têm

um impacto direto e unidimensional sobre o aparelho burocrático dos Estados. Como indica

uma ampla literatura sobre a questão (Gourevitch, 1978; Haggard, 1990; Velasco e Cruz,

2007), dependendo do papel e da interação de idéias, políticas, instituições e legados de

trajetórias anteriores, é possível ocorrer consequências inesperadas ou mesmo contrárias ao

que inicialmente se supunha. É por essa razão que é importante saber, empiricamente, como

se conduziu efetivamente o impacto dessas forças sobre o aparelho de Estado, evitando

afirmações genéricas e pouco substanciadas de causa e efeito.

4. A visão da diplomacia americana sobre o processo decisório da política externa

brasileira

Um estudo sobre os problemas apresentados nos cinco pontos discutidos acima e

presentes em parte da literatura elencada na segunda seção do texto pode ser obtido a partir

da análise das próprias fontes sobre as quais nos debruçarmos. Um excelente exemplo é o

telegrama confidencial enviado em 2009 pelo embaixador americano Clifford M. Sobel ao

2Nessa perspectiva, é pertinente considerar o argumento de Hocking (1999: 14) que“the image of foreign ministries suffering from a state of perhaps terminal decline is a distortion of reality. (…) [T]his is due in part to a misreading of the nature and historical evolution of foreign ministries and their relations with other government agencies in the management of international policy.”

Departamento de Estado, no contexto de um exame da política externa brasileira do

período.3

Tendo contato cotidiano com a máquina governamental, o diplomata argumentou

que, à medida que o Brasil ganhou um papel proeminente no mundo, diversificou seus

interesses no cenário internacional e sofreu os impactos da globalização, o Itamaraty

encontrou-se diante de uma grande competição no governo. Segundo suas palavras, a

instituição experimentou “some erosion of its control over foreign policy decisions”, uma

situação profundamente ressentida pelos diplomatas. Isso teria ocorrido na administração

Lula da Silva, na qual o processo decisório em política externa “foreign policy decision

making hás unquestionably become more dispers at the senior levels, drawing in more

ministries than ever before, which are in turn establishing even broader relationships with

their counterparts abroad.”

Antes de qualquer análise das afirmações do diplomata, convém explanar o contexto

do telegrama. O governo Lula da Silva, inaugurado quase seis anos antes da expedição do

telegrama, iniciou sua gestão com uma série de contatos positivos com o governo

americano, dando continuidade a um relacionamento que vinha já do período eleitoral.

Logo que sua administração começou a efetivamente trabalhar, contudo, surgiram uma

série de pontos de atrito com o governo norte-americano. Washington observou tal situação

não como decorrente dos interesses nacionais brasileiros, mas sim das resistências de

determinados indivíduos em pontos estratégicos do aparelho de Estado. Os dois principais

seriam Samuel Pinheiro Guimarães, Secretário Geral do Itamaraty, e Marco Aurélio Garcia,

Assessor de Relações Internacionais da Presidência da República. Os dois, na visão

americana, frustraram diversas iniciativas bilaterais, além de inserirem na política externa

brasileira movimentos considerados contrários à política externa americana, especialmente

na América Latina.

Foi por não conseguir romper com essa situação que a embaixada orientou seus

trabalhos para outros órgãos que não a Presidência da República e o Itamaraty; e é por essa

razão que Sobel tendia a maximizar, para seus superiores em Washington, o papel de outros

órgãos no relacionamento bilateral. Como afirma na conclusão de seu telegrama, “não é de

nosso interesse que o Itamaraty seja o único filtro para trabalhar com [o governo 3 From Clifford Sobel to State. Ref 000190. Understanding Brazil’s foreign ministry, part 3: inter-agency competition. February 13, 2009. Confidential. WikileaksCablegateArchive.Nossatradução.

brasileiro].” Ele próprio, seguidas vezes, ao longo do texto, admite que o órgão ainda se

mantinha em posição de superioridade ou de controle absoluto em determinadas áreas da

política externa. Assim, logo após relatar a suposta erosão do controle exercido pelo

Itamaraty, afirmou, contradizendo a si próprio, que “por enquanto (...) o Itamaraty continua

a exercer considerável controle sobre quase todos os elementos da relação entre os EUA e o

Brasil, ajudado pela autoridade legal, um processo intragovernamental pouco desenvolvido,

e insuficiente preparação em muitos dos outros ministérios.”

No tópico sobre controle, Sobel informa o que já salientamos acima: o Itamaraty

oferece seus quadros para as principais agências do poder executivo, para o Congresso,

para o Supremo Tribunal Federal e para vários governos estaduais e municipais. Ele afirma

ser raro diplomatas estrangeiros participarem de reuniões de alto nível sem ter um

representante do Itamaraty presente. Seu telegrama continua:

Muitos ministérios, particularmente aqueles com menos experiência com assuntos internacionais, praticam auto-censura, muitas vezes recusando engajar-se com suas contrapartes de outros governos sem ter a luz verde do Itamaraty. No Ministério do Trabalho, que não tem um diplomata como assessor, por exemplo, quase sempre se insiste em ter o Itamaraty envolvido em qualquer coisa que seja mais que um encontro para troca de informações com representantes de governos estrangeiros. Altos representantes da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, cujo ministro assinou e tem sido a liderança em nosso plano de ação bilateral sobre discriminação racial, quase sempre solicitam que o Itamaraty esteja presente em nossos encontros e comumente deferem, em nossas discussões, a colegas bem mais jovens do MRE.

O diplomata argumentou que o Itamaraty utiliza seus servidores em outros órgãos

para monitorar e controlar o contato de outras agências com governos estrangeiros. Ele,

então, relatou um caso vitorioso. O Ministério da Fazenda, apesar de fortes resistências do

Itamaraty e da Presidência, estava obtendo sucesso no tema da participação brasileira na

OCDE. Sobel, no entanto, informou que essa vitória foi em grande medida decorrente das

atividades dos diplomatas cedidos do Itamaraty ao Ministério da Fazenda. Para o diplomata

americano, ignorar o Itamaraty “é quase nunca uma opção” e “mesmo quando um

ministério deseja trabalhar com suas contrapartes estrangeiras, não é incomum que

iniciativas sejam bloqueadas por oposição do Itamaraty”; por isso, até os ministérios com

maior experiência na arena internacional são cuidadosos em garantir a concordância do

Itamaraty.

Todo o documento, apesar de repetidamente afirmar o contrário, oferece

basicamente exemplos sobre como outros órgãos foram constrangidos pelo Ministério das

Relações Exteriores. Como evidência contrária, o embaixador apresenta um resumo de uma

série de artigos publicados no jornal o Estado de São Paulo, citando a autonomia de Marco

Aurélio Garcia e dos então ministros Tarso Genro, Roberto Mangabeira Unger, Carlos

Minc e, principalmente, Nelson Jobim. O fato de Marco Aurélio Garcia e Samuel Pinheiro

Guimarães terem sido grandes aliados, três dos cinco citados terem saído do governo logo

depois por sucessores relativamente mais tímidos e de Nelson Jobim ter sido substituído

por Celso Amorim (um diplomata aposentado) no Ministério da Defesa diz muito sobre

como evidências conjunturais são pouco adequadas para justificar argumentos de processos

de longo prazo.

Assim como na literatura sobre análise de política externa brasileira, Sobel afirma

que a situação atual é distinta do que ocorria no passado. Se o diplomata examinasse o

trabalho de seus antecessores, provavelmente não teria feito tal afirmação. Desde o início

do século XX, a embaixada americana no Brasil manteve funcionários em setores

específicos (inteligência, militar, cultural, cooperação técnica, comercial e financeira) que

atuaram diretamente com suas contrapartes em outros órgãos que não o Itamaraty. São

centenas de instâncias em que o embaixador americano e até cônsules interagiam da mesma

forma apontada por Sobel como novidade. Na formação de professores brasileiros, na

cooperação em agricultura, nas negociações financeiras, no tema energético, na venda de

material de guerra, enfim, nas amplas áreas que compõem as relações bilaterais, houve

sempre participação e influência, e, em alguns casos, controle do processo decisório por

parte de outros atores.

Sobel, além de apresentar uma versão pouco precisa sobre o passado, não se

pergunta se o fato de existirem mais ministérios na arena de política externa do que em

qualquer momento anterior não decorre simplesmente de uma situação quantitativa – nunca

o país teve número tão elevado de ministérios – e não de uma transformação fundamental

da natureza do processo decisório, que, como ele bem indica, parece ter permanecido o

mesmo em decorrência da atuação defensiva do Itamaraty. A horizontalização estrutural da

arena decisória da política externa brasileira, dessa maneira, diante da leitura atenta do

documento diplomático, está mais no domínio do wishifulthinking e de uma política

propositiva para desviar-se do Itamaraty do que no domínio da realidade.

5. Conclusão. Questões teóricas e metodológicas para o adensamento do campo.

Este artigo examinou uma das principais teses dos trabalhos contemporâneos sobre

a política externa brasileira: a horizontalização do processo decisório. Indicamos que essa

tese sofre, atualmente, de cinco fragilidades – imprecisão conceitual, falta de explicitação

da linha de base a qual se está comparando, carência de base empírica, limitações no uso de

fontes e sobrevalorização de forças sistêmicas. Isso não significa necessariamente que a

horizontalização inexista, mas certamente sua resultante final não é uma novidade.

Qual seria, então, a forma adequada de se determinar a existência da

“horizontalização” em determinado tema da política externa. Primeiro, deve-se definir o

que o termo significa. Segundo, antes mesmo de colher as fontes, deve-se compreender as

consequências da seleção do caso e do marco temporal. Como afirmam Slater e Simmons

(2010: 886) “political scientists increasingly recognize that our biggest “why” questions

cannot be adequately answered without careful attention to the question of ‘when”.

Terceiro, é necessário saber com precisão qual foi a posição externa no primeiro momento

(base line) e quem a determinou do ponto de vista doméstico. Se ela foi definida pelo

Itamaraty, na análise do momento dois, podemos ter ou não a hipótese de horizontalização

(se outros atores foram determinantes no primeiro momento, é inviável falar em processo

de horizontalização, a não ser que se esteja falando de gradações). Por fim, as arenas

decisórias nos dois momentos devem ser passíveis de comparação. É importante também

ter em conta a necessidade metodológica de “operacionalização”, ou seja, “a escolha de

indicadores observáveis que possam ser usados como proxies para conceitos abstratos e não

observáveis” (GEDDES, 2003:144).

Um método possível para sustentar ou não a tese de horizontalização é o uso de

contrafactuais. Há uma literatura extensa na história e na ciência política sobre tal

ferramenta e, no nosso caso, consistiria em questionar se, na ausência de outros atores que

não Itamaraty, a posição brasileira seria distinta (ODELL, 2002). Se a resposta for sim,

estaríamos quase certamente diante de uma situação de influência de outros atores no

processo decisório, ainda que possa resultar da solicitação ou simples aquiescência do

Itamaraty.

É factível falar em uma situação global de insulamento ou horizontalização? Isso é

muito difícil. Em uma análise radical, ter-se-ia que observar todas as decisões de política

externa para confirmar uma das posições, bastando somente um caso contrário para refutar

o paradigma explicativo. Utilizando talvez a concepção de que um determinado período

correspondeu “predominantemente” a uma das características é mais factível. Mesmo

assim, seria necessário saber qual o número de casos totais ou, o que poderia ser mais

interessante, partir da premissa que determinados assuntos e arenas decisórias seriam mais

importantes ou representativos. De qualquer maneira, a tese da “horizontalização” não pode

ser generalizada. Cada área e tema tem padrões de relacionamentos distintos entre os

atores. Ou seja, sem se levar em conta o escopo apropriado da hipótese da horizontalização,

a ampliação do número de casos analisados pode levar a erros. Em qualquer estudo, devem-

se explicitar os critérios de escolha dos casos e identificar os fatores causais relevantes.

Existe um espectro elevado de situações de insulamento e de horizontalização.

Raras são as vezes em que o Itamaraty decide tudo, sem ao menos ter a participação formal

e homologatória de outras instâncias. Mas isso pode ocorrer. Há situações em que o órgão e

outros atores convergem em seus interesses; em outros, há conflitos; por fim, há situações

de especialização colaborativa. Em situações de convergência, os atores podem se abster do

processo decisório ou delegar poderes simplesmente porque acreditam que seus pontos de

vista estão sendo atendidos. Quando há conflitos, uma abordagem interessante para

examinar a preponderância relativa dos atores seria utilizar a literatura sobre poder de veto

(TSEBELIS, 2002). Apesar de usada principalmente para o estudo das relações entre

legislativo e executivo, a teoria pode ser adaptada para essa situação. A colaboração é um

caso interessante em que há uma divisão de tarefas, sendo comum “pedidos de subsídios”

partindo do Itamaraty para outros órgãos. Estes preparam as informações e a chancelaria,

agindo como um filtro, aproveita o que é de seu interesse, como insumo para documentos

diplomáticos. Esse é só um exemplo dos vários tipos de colaboração que podem existir.

Dessa maneira, superando a dicotomia simplista de insulamento/horizontalização, a agenda

de pesquisa poderá voltar-se para discernir o que explica a emergência de uma arena

decisória com determinadas características e não com outras.

Deve-se perguntar qual é exatamente a variável dependente a ser explicada e quais

variáveis independentes e intervenientes compõem o quadro do estudo.A literatura salienta

a existência de uma mudança no que se refere à variável dependente (insulamento ou

horizontalização) e muito pouco se foca na especificação das potenciais variáveis

independentes (democratização, globalização, aumento de ministérios, liderança

presidencial) ou no processo pelo qual elas impactam a variável dependente. Nesse

sentido, há um duplo desafio para o campo de estudos. Um deles refere-se ao tratamento

conceitual: o que é horizontalização e o que se pode concluir sobre a sua trajetória? Esse

seria um desafio de inferência descritiva. O segundo desafio refere-se à inferência causal. O

que explicaria a horizontalização (ou a ausência de)?

Assim, quando falamos em horizontalização de política externa brasileira, temos de

pensar como ela se traduz em termos analíticos. A política externa é o resultado do

processo decisório doméstico? É a projeção desse processo para os parceiros no plano

internacional pelos nossos negociadores? É a resultante em termos de acordos e

entendimentos que deverão ser posteriormente aprovados pelo parlamento? Em todo caso,

deve-se localizar temporalmente a arena decisória doméstica responsável por uma decisão e

quem a executou diante dos parceiros internacionais. As duas unidades não são

necessariamente equivalentes. É bem sabido que mesmo instruções objetivas e restritas

podem ser modificadas substancialmente pelo negociador. Em termos práticos, mesmo se o

Itamaraty sair derrotado no processo decisório, ele pode, caso seja o negociador,

reestruturar a posição brasileira. Também não se deve esquecer que, ainda que outros atores

domésticos sejam vitoriosos no processo decisório e na execução, caso a negociação tenha

gerado um documento a ser aprovado pelo legislativo, o Itamaraty novamente terá uma

oportunidade para intervir no processo. Isso sem contar, obviamente, na dinâmica de

implementação. É nítido, assim, que em cada momento se pode ter uma configuração

distinta de predominância dos atores.

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