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O GALO NO TEMPO – uma história da evolução do Galo de Barcelos Por João Manuel Mimoso O Galo de Barcelos tornou-se um ícone de Portugal. Este estatuto tem cerca de meio século, mas a extraordinária peça de design que cons?tui é muito mais an?ga e este ar?go irá examinar a sua evolução cronológica até aos dias de hoje. A abrir, chamo a vossa atenção para a figura 1, imagem de um galo de apito publicada por Rocha Peixoto em 1900 na revista Portugália, num estudo sobre as olarias do Prado, concelho a que, naquela época, pertenciam Galegos, Pousa e outras aldeias e lugares de produção cerâmica hoje integrados no vasto distrito de Barcelos. A imagem diz-nos, sem sombra de dúvida, que a forma geral normalmente associada ao moderno galo de Barcelos já exis?a no século XIX e, portanto, não se trata de uma invenção recente. No texto, escreve Rocha Peixoto sobre a estatuária popular da região: O galo [...] excede em número e em variedade todas as espécies de fauna. É a melhor tratada em nobreza de porte, em insistência de detalhes, em apuro final de modelado. E no mesmo capítulo nota: Pouco comuns são os assuntos religiosos, numa população que em fesIvidades de igreja encontra os pretextos das suas efêmeras alegrias colecIvas. As duas constatações anteriores poderão ser explicadas em conjunto pela hipótese da estatuária galiforme representar a reminiscência de um culto muito an?go, talvez de raiz celta, que a tradição cristã não terá conseguido, nem subs?tuir, nem obliterar, como foi regra noutros locais. Não é possível afirmar se o galito da figura 1, cuja altura se pode es?mar em cerca de 12 cm, era inteiramente moldado à mão ou se, como parece mais provável, resultava em parte da u?lização de um molde, mas a sua es?lização é completamente inesperada numa peça de Arte Popular, em que seria de prever a reprodução de um galo tão realista quanto a habilidade do humilde artesão permi?sse. Mas as suas Figura 1 Figura 2

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OGALONOTEMPO–umahistóriadaevoluçãodoGalodeBarcelos

PorJoãoManuelMimoso

OGalodeBarcelostornou-seumíconedePortugal.Esteestatutotemcercademeioséculo,masaextraordináriapeçadedesignquecons?tuiémuitomaisan?gaeestear?goiráexaminarasuaevoluçãocronológicaatéaosdiasdehoje.

Aabrir,chamoavossaatençãoparaafigura1,imagemdeumgalodeapitopublicadapor Rocha Peixoto em 1900 na revista Portugália, num estudo sobre as olarias doPrado,concelhoaque,naquelaépoca,pertenciamGalegos,PousaeoutrasaldeiaselugaresdeproduçãocerâmicahojeintegradosnovastodistritodeBarcelos.Aimagemdiz-nos,semsombradedúvida,queaformageralnormalmenteassociadaaomodernogalo de Barcelos já exis?a no século XIX e, portanto, não se trata de uma invençãorecente.

No texto, escreve Rocha Peixoto sobre a estatuária popular da região: O galo [...]excedeemnúmeroeemvariedadetodasasespéciesdefauna.Éamelhortratadaemnobrezadeporte,eminsistênciadedetalhes,emapurofinaldemodelado.Enomesmocapítulo nota: Pouco comuns são os assuntos religiosos, numa população que emfesIvidadesde igrejaencontraospretextosdassuasefêmerasalegriascolecIvas.Asduas constatações anteriores poderão ser explicadas em conjunto pela hipótese daestatuáriagaliforme representara reminiscênciadeumcultomuitoan?go, talvezderaiz celta, que a tradição cristã não terá conseguido, nem subs?tuir, nem obliterar,comofoiregranoutroslocais.

Nãoépossívelafirmarseogalitodafigura1,cujaalturasepodees?maremcercade12cm,erainteiramentemoldadoàmãoouse,comoparecemaisprovável,resultavaem parte da u?lização de um molde, mas a sua es?lização é completamenteinesperadanumapeçadeArtePopular,emqueseriadeprevera reproduçãodeumgalo tão realista quanto a habilidade do humilde artesão permi?sse. Mas as suas

Figura1 Figura2

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proporções não são as de um galo real, afastando-se em par?cular pela forma dopescoço,finoeerecto,epeladacauda,queseassemelhaà lâminadeumapequenafoiceecons?tuiodetalhemaisintrigante.Estesdesviosnãosãoosqueseesperariadainabilidade,antesparecemcons?tuirprovadapermanênciadeumamorfologiamuitoan?ga.Aorigemdafinaes?lizaçãodapeçarepresentadanestaimagem,semaqualaancestralidade do Galo de Barcelos seria apenas conjectural, cons?tui ainda ummistériomaséinteressantenotarqueumvasoceltaencontradonacomunafrancesade Bussy-le-Château está decorado com um galito em bronze com uma caudasemelhante.

Outra ilustraçãodomesmotrabalhodeRochaPeixotoreproduza formaglobulardeumapitodeáguaqueaindahojeseproduznaregiãodeBarceloseaquevulgarmentesechama“rouxinol”(2).Nolivro“ArteseTradiçõesdeBarcelos”publicadoem1979um autor anónimo descreve-o assim: No rouxinol, o artefacto que reproduz o seucantaresquema?zaocorpodeumaavede?pogalináceo.No lugardacabeçavê-seumassobio rudimentar (...); o tronco, largoebojudo, terminaemcaudae apoia-sesobreumabasecircular. Simulandoasasas,notam-segeralmentedecada lado trêspinceladasparalelasdispostasemdiagonal.Ocorpodaave,quasesemi-esférico,oco,servedereservatóriodeágua.

Nãoparece haver ligação entre o galo de apito dafigura 1 e o rouxinol de água dafigura 2. “Rouxinóis” deste ?po são, aliás, difundidos pela Europa havendo-os namesma época, pra?camente idên?cos, na Alsácia o que atesta a sua ancestralidade

através de uma provável origem comum. Podem serfeitos à mão, em molde, ou na roda de oleiro. Nesteúl?mo caso o “rouxinol” é ?rado como se fosse umapequenacabaçaeacabadocomoummoringuee,tantoquantopodemosdeduzirdainformaçãoincompletaquenoschegou,oGalodeBarcelostalcomooconhecemosadveio,emtempo,daaplicaçãodatécnicadefabricaçãou?lizadanorouxinoldeáguaàproduçãodepeçascomuma morfologia inspirada pela do galito da figura 1.Este incorpora um detalhe morfológico interessantepara fins de datação: trata-se da peculiar forma da

crista,caracterís?caqueevoluiusensivelmenteduranteasprimeirasdécadasdoséculoXX.OMuseudeOlaria deBarcelos possui na sua rica colecçãoumprecioso galodeapito,deidadeindeterminada,quetemumacristamuitosemelhanteetem,também,ocorpoglobulardeumrouxinoldeágua.Estapeçailustraahibridaçãodeformaaquemereferi(figura3).

Figura3

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Se a origem es?lís?ca do elegante galito ilustrado por Rocha Peixoto cons?tui ummistério, a sua morfologia coloca outra questão que nos interessa aquipar?cularmente:poder-se-ádizerqueestapeçaerajáumgalodeBarcelos?

Paratentartraçarahistóriaevolu?vadoGalodeBarcelos,háprimeiroquedefini-lo.Conforme a definição sejamais lata ou, pelo contrário, mais concreta, o conjuntoabrangidoserámaisoumenosvasto,easuahistóriamaisoumenosremota.Masé

muitodidcildefinircomexac?dãoaquiloaquesepodechamar“um galo de Barcelos”. Apenas se nota que tal como sereconhece alguém conhecido, também o Galo é iden?ficávelmesmona ausência de umadescrição. Trata-se, em todos oscasos,deumapeçacerâmicacomsimetriabilateral, fabricadalocalmenteapar?rdeumapastasólida.Temumpedestalcomsimetria circular, provido, ou não, de apito. Tem um corpoglobular, oco, sobrepujado por asas protuberantes; cristaproeminente, recortada; caudaver?cal, coma formageraldacrista mas de maiores dimensões. A cor-base do corpo,

pescoço, asas e cauda é uniforme, com decoração geométrica pintada, incisa ourelevada, construída a par?r de elementos predominantes tais como flores oucoraçõeses?lizados,segmentosplumiformes,pontos,círculos,ousectorescoloridos.Asproporçõesaproximadassãocomonafigura4.

Segundoestadefinição,ogalitodafigura1aindanãoéumgalodeBarcelos.Ofracodesenvolvimentodacristabastaparaoclassificarcomoumpredecessor,membrode umalinhagemaquepoderemoschamargenericamentedeproto-galosdeBarcelos.

VaipassardécadaemeiasobreapublicaçãodeRochaPeixotoatéseencontrarumanova representação de um figurado galiforme da região de Barcelos. Deve-se àpermanência em Portugal de Sónia e Robert Delaunay que aqui se refugiaramduranteaGrandeGuerratendovividoemViladoCondeentre1915einíciosde1917.Durante esse período conviveram com Eduardo Viana, cujo es?lo influenciaram, ecomAmadeodeSouza-Cardoso, tendopintadotemasminhotos.NestaépocaSónia

Figura4

Figura5 Figura6

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Delaunay pintou “Jouets Portugais” (Brinquedos Portugueses-figura 5) conservadanosmuseusfranceses,eEduardoVianapintou“BonecosdeBarcelos”(figura6)quese conserva no Museu Nacional de Soares dos Reis no Porto. Em ambos sereconhecempequenos galos de apito comumaaltura que, comparada comoutrasfigurasdosmesmosóleos,deveriarondaros15cm.

OgalodoquadrodeEduardoVianamostra, claramente,umacristaque seprolongapara trásdeumamaneiramuitopeculiar. Trata-sedomesmoarcaísmo ilustradonosgalosdafigura3.ArepresentaçãodeSóniaDelaunayémaisimpressionista, mas a cauda é suficientemente detalhadapara se confirmarque se tratadeumapeçadeBarcelos.Afigura7ilustraumgalodeapitocom17,5cmdealturacomcaracterís?cas semelhantes às representadas por SóniaDelaunay enquantoqueno espólio doMuCEM (MuseudasCivilizações da Europa e doMediterrâneo) deMarselha seconservaumpequenogalodeapitocom14,7cmdealtura,que corresponde na decoração da cauda ao quadro deDelaunay e na formada crista à representação de EduardoViana.Adatadessapeça(indicadacomo“cercade1920”)érealmente desconhecidamas anterior a 1937, ano em quefoi integrada nosmuseus franceses. OMuseu de Olaria deBarcelostambémconservanoseuacervoalgunsapitosdeste?po,emboracomcristasmais desenvolvidas, que provavelmente sãomais recentes, datando das décadas de1930ou1940.

Existeumadiferençamorfológicapar?cularmenteinteressanteentreogalitode1900eo da figura 7: é que no segundo as asas independentes desapareceram, sendosubs?tuídas por pequenos cotos e incisões sobre o corpo que é agora ni?damenteglobular, tendo perdido algo da elegância al?va do original. Presume-se que o galoilustrado no quadro de Eduardo Viana teria também o mesmo corpo globular queparecerepresentarumretrocessoes?lís?cofaceaoprimeiro.Estaaparenteregressãodecorre, na verdade, de uma evolução: é que o corpo do galito de 1900 eraprovavelmentemaciçoouvazadoàmão,comodecorredodesenvolvimentodasasasqueseriamdidceisdeaplicarseocorpofosseocodeparedefina,enquantoqueodosegundo,fabricadopelatécnicados“rouxinóis”,écons?tuídoporumapequenacabaça?radanarodadeoleiro,cujotopofoiaba?docomoparaformarummoringue,ligando-se-lhe depois o pescoço e a cauda, bem como duas pequenas protuberâncias querepresentavam as pontas das asas e eram residuais precisamente para facilitar aaplicação.Hárazõestécnicasquejus?ficamaimportânciadestadiferença:asecagemde peças maciças é didcil e, por outro lado, durante a cozedura as expansões eretracçõescausamtensõesinternasqueprovocamfrequentementearoturadepeças

Figura7

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rela?vamentevolumosasquesejammaciças.Aocriarumgalona roda,ooleiro tevenecessariamente que formar um corpo globular, aplicando uma técnica que tornavapossíveis peças muito maiores e desenvolvendo uma parte essencial da morfologiadis?n?vadoqueumdiaseriaogalodeBarcelos.É,noentanto,necessáriodis?nguirdoispassosdiferentes:oprimeirofoioquetransformouumapitomaciçonumgaloocode dimensões semelhantes, ?rado na roda; o segundo foi o desenvolvimento emtamanhoedetalhequeiriaoriginarapeçacerâmicaquehojeconhecemoscomo“galodeBarcelos”comasasasindependentesebemdesenvolvidaseaproeminentecristadenteadaqueo caracterizam.Oprimeiro passoocorreu, provavelmente, hámais de100 anos quando foi dado a alguns rouxinóis de água a forma clara de um galo; osegundoteráocorridoentreasdécadasde1920ede1930.

Nas Nas imagens da Exposição de Arte Popular Portuguesa realizada em Lisboa em1936,nãosevislumbraqualquerpeça iden?ficávelcomoumgalodeBarcelos,masodesignerCarlosBártolo,colaboradordoMuseudeArtePopular,comunicou-mecópia

de uma fotografia proveniente de um espólio conservado naTorre do Tombo e referente à par?cipação portuguesa naExposição Internacional de Paris de 1937 (figura 8). Essaimagemmostra,claramente,duaspeçascerâmicasqueilustramosalvoresdosverdadeirosgalosdeBarcelos.Deviamtercercade45cmdealturaeadecoraçãoeramuitosimples,cons?tuídaquase só por traços, pintas e áreas coloridas sobre um fundoclaro.Aparentemente,aindanão?nhamasasindependentes–as asas eram definidas por um fio de barro que marcava ocontorno.

Existe um detalhe importante rela?vo a estas peças: é feita menção ao facto depertenceremaJorgeBarradas(enãoaoEstadoPortuguês,comoseriadeesperarempeçasu?lizadasparaexemplificaraartepopularnumaexposição internacionaldestaimportância). Jorge Barradas era um conhecido pintor e ilustrador português queprecisamentenestaépocacomeçouadedicar-seà cerâmica (asprimeirasfigurasemcerâmicadesuaautoria foramexpostasem1936)eéprovávelquetenhapercorridoalguns centros de produção popular e adquirido aqueles galos em Barcelos. Acircunstânciadesetrataremdepeçasmuitopoucousuais,talveznuncaantesvistasemLisboa,écomprovadapelofactodeoar?stater?doqueasemprestarparaopavilhãoportuguês numa exposição para a qual, aliás, o Estado lhe ?nha encomendado umapintura.SeráqueforampeçasespecificamenteencomendadasporAntónioFerroparaaexposição,queJorgeBarradaspagouetrouxedeBarcelos?Épossívelquesim.Seráque foi ele que especificou a dimensão por necessitar de peças de aparato?Não sesabe,masestessão,quantoamim,osmaisan?gosverdadeirosgalosdeBarcelosdequeháregisto.

Figura8

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ExisteumpreciosogaloconservadonoMuseudeArtePopular,emLisboa,quedevesergenericamenterepresenta?vodamesmaépoca.Tem37cmdealtura,pédiscoidalsemapito,contornodacaudalisoecristaproeminenteecomrecortestriangulares.Épintado a azul baço, com a base do cabaço e o pedestal vermelhos. A decoraçãoresume-sea alguns traços vermelhosnopescoço, eos contornos acentuadosa?ntadourada.Osolhosproeminentes, pintadosadourado, sãooúnico traçomorfológicoque indiciaumaépocaalgomais tardiadoqueosmostradosem1937naExposiçãoInternacionaldeParis,cujosolhossereduzemaoridcios.

A ExposiçãodoMundoPortuguês, realizadaem1940, emLisboa, incluíao chamadoPavilhãodaVidaPopular,umaáreacobertadegrandesdimensõesquemaistardesetornou oMuseu de Arte Popular. Todo esse espaço seria preenchido com peças deinteresseetnográfico,alémdasdecoraçõesalusivas.Ocentrodassalas?nhagrandesmesascurvilíneasquedeveriamreceberaspeçasdemaiorefeito,epedestaissobreosquais seriam colocadas peças de exibição par?cularmente atraentes. Uma dessasmesas foi decorada com três galos de Barcelos de grande porte (cerca de 50 cmdealtura) dois dos quais coroavamos pedestais.O galomaior, qual figura de proa, eraseguramenteumapeçaespecial,fabricadaporencomenda(provavelmenteem1939).Tinha uma decoração par?cularmente cuidada, com grandes flores em relevo, e nopeito ostentava uma cartela com a inscrição “FÁBRICA CER(AMICA) / EDUARDOFERN(ANDES SOUSA)"- figura 9. Eduardo F. Sousa (dito “Persina”), infelizmente jáfalecido, era casado comRosaCôtae, portanto, genrodeDomingosCôto, aqueméatribuídaamodelaçãodegalosdedimensãoapreciáveljánoiníciodadécadade1930e a quemme referirei mais adiante. Um outro, provavelmente vermelho, ostentavaumadecoraçãosolarnopeitoenacaudaeumafloremrelevosobrecadaasa-figura10). Numa vitrina embu?da na parede da mesma sala da Exposição ainda se

descor?namoutrosquatrogalosdemenoresdimensões.EnquantoosgalosdaExposiçãode1937mostravamumadecoração ainda tenta?va, os da Exposição de 1940evidenciamquejáse?nha,naquelaépoca,desenvolvidoum esquema decora?vo atraente para preencher asconsideráveis superdcies oferecidas por peças destadimensão. As flores em relevo, em par?cular,representavamaadaptaçãodeumasoluçãomuitoan?ga,u?lizada na decoração das pequenas jarras produzidaslocalmente.

Da apreciação das fotografias da Exposição do Mundo Português reproduzidas nasfiguras 9 e 10 pode concluir-se que, a par da generalidade das caracterís?casmorfológicas que iden?ficam um galo de Barcelos, se notam, também, muitos

Figura9 Figura10

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arcaísmos, incluindo a altura excessiva do corpo moldado na roda, a cauda semrecortes e a ausência da representação das patas. Com a Exposição do MundoPortuguês, da qual existe suficiente documentação fotográfica, encerra-se a épocaobscuraduranteaqualainformaçãodequeactualmentesedispõeéinsuficienteparaestabelecercronologiasouautorias.

Tenho lido textos que iden?ficam “o pai do Galo de Barcelos” atribuindo-o adeterminado barrista. Na minha opinião o Galo de Barcelos é um produto da ArtePopular e como tal não tem pai individual mas apenas uma origem radicada numacolec?vidade.Dequalquermaneira,paradiscu?restaquestãoseriasemprenecessárioestabelecer critérios dis?n?vos geralmente aceites, iden?ficadores de um galo deBarcelos.Seamorfologiadafigura1foraceitávelcomocorrespondendoaumgalodeBarcelos,entãoasuaorigeméanterioraoséculoXX; sese impuserqueumgalodeBarcelostenhaocorpovazado,aorigeméindeterminadamasseguramenteanteriora1915, como demonstram as pinturas dessa época. Se se associar o Galo a uma?pologiamais refinada, então a origemdependedos critérios que se adoptem,maspode ser tão tardia quanto os meados da década de 1950, quando começaram aaparecer os galos com a wpica decoração de mo?vos minhotos, onde imperam oscoraçõesvermelhossobreumfundonegro.

Sem Sem prejuízo do que ficou dito sobre a radicação do Galo de Barcelos numacolec?vidade, pode-se discu?r atribuições de certas peças, assinadas ou não,produzidaspelosgruposfamiliaresdemodestosbarristasparavendaemfeirasouparaa sa?sfação de encomendas cuja finalidade úl?ma lhes era desconhecida. Em 1958,Domingos Côto afirmou a um jornalista do Diário de Lisboa a paternidade de umamorfologia inovadoraquedatariado iníciodadécadade1930equeeleconsideravacomoantecessoradosgalosdeBarcelosdaépocadaentrevista.NãosabemoscomoseriamosgalosdeDomingosCôtomas,poroutrolado,umaautoriabemestabelecidadegalosdeBarcelosarcaicoséadogrupofamiliardeEduardoF.SousaeRosaCôta,

sua filha, o que de certa maneira torna plausível algum papel deDomingos Côto na evolução do Galo de Barcelos. No acervo doMuseu de Olaria de Barcelos conserva-se um galo vermelhomarcado “EFS” (Eduardo Fernandes Sousa), com caracterís?casmuitosemelhantesàsdosgalosdaExposiçãodoMundoPortuguêsmas já com olhos formados, datável ao início da década de 1940(figura 11), e na colecção do Museu de Arte Popular, em Lisboa,subsiste um importante conjunto de galos claramente posteriores,marcados “E F S” e, a sinete, “G.gos” (Galegos) “BARCELOS”, quedevemtersidofabricadosporencomendaparaoacervooriginaldoMuseudeArtePopular,inauguradoem1948.Figura11

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Muitos outros galos datáveis à década de 1940 evidenciam, quer pela morfologiacaracterís?ca, quer também pela decoração, terem a mesma proveniência familiar.Todoscomprovamumaproduçãovariadaeevolu?va,comumasurpreendentepurezaesté?ca, e isto numa época livre de influências eruditas. A designação “Fábrica (de)Cerâmica” inscrita no Galo de 1940, seguramente cópia cega de uma qualquerinscrição constante de uma peça fabril, não se poderia aplicar com propriedade àpequena produção familiar do agregado de Eduardo F. Sousa. É provável que o paiapenasmodelasse o corpo e o pedestal na roda sendo as restantesmodelações e apinturarealizadaspelosoutrosmembrosda família.Masoresultadoénotavelmentehomogéneo,demonstrandoumaadmirável compreensãodaharmoniamorfológicaedecora?va de uma peça tridimensional de certa complexidade. Numa perspec?vacronológica,reconhece-seamaneiracomoosdetalhesvãoevoluindoatésea?ngiremasproporçõesexemplaresevidenciadaspeloperfililustradonafigura4.

EncerradaaExposiçãodoMundoPortuguês,osgalosfabricadosnaregiãodeBarcelospoderiamterregressadoaoanonimatoemquese?nhamoriginado,masnãofoiassim.As fotografiasdaépocamostramgalosdeBarcelospresentesnasexposiçõesdeartepopular realizadas nos anos seguintes, tal como mostram peças mais pequenasexpostas nas delegações de propaganda turís?ca, onde eram vendidas comoartesanatoregionalepuderam,assim,sersubme?dosaojulgamentodomercado.Asvendas devem ter sido animadoras, o que encorajou outros barristas da região afabricarversõesprópriasdoGaloquecolocavamnasfeiras,eassimsefoiafirmandoonovofiguradoàcustadaex?nçãoprogressivados?posarcaicos,esefoiafinandoumpadrão morfológico e variantes decora?vas em função das preferências doscompradores.Masesteprocessonãofoiinstantâneoeaiconografiaexistentealiadaàraridade de exemplares realmente arcaicos parecem demonstrar que o Galo só secomeçou a divulgar durante a segunda metade da década de 1940. A mesmaiconografiacomprovaa importânciaquedeve ter?dooSecretariadodePropagandaNacional (SPN, depois SNI) de António Ferro, tanto na divulgação da figura doGalo,comonapadronizaçãodomodeloqueoriginalmentedifundiuatravésdeencomendasrepe?das,feitasatravésdeumcontactolocal,aEduardoF.Sousa.

Em finais dessa década já estavaestabelecida a morfologia clássica dogalo de Barcelos e os respec?vosesquemasdeacabamentoqueviriamaser dominantes durante cerca de dezanos. Uma referência segura écons?tuída por um conjunto de trêsgalosdetamanhosdiversos,todoscompinturadebasenegra, dos quais o de Figura12 Figura13

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tamanho intermédio está marcado "Feira de Sacavém, 18-V-1951". Deste conjuntoilustrou-se o de tamanho intermédio e o galo maior (figura 12 e 13) que tem apar?cularidaderaradeserummealheiroque?nhaqueserquebradopararecuperarasmoedas.TodossãoatribuíveisàproduçãofamiliardeEduardoF.Sousa.

Essesgalosexemplificamascaracterís?casclássicas,quesão:- cauda - bemdesenvolvida, comdenteado triangular isósceles (tal comoa crista) erecorteinferior?picamentesemi-circularouelíp?co

- pedestal-campaniforme,emgeralpintadodelaranjaoudeverdeescuro;- patas - quase sempre representadas. Ves?giais nos galos pequenos, bemdesenvolvidas nosmaiores,modeladas separadamente e sobrepostas ao pedestal,?picamentepintadasadouradoouaamarelo;

- bico - mediano, forte, rec?líneo e arredondado, pintado de dourado, amarelo oularanja,talcomoosolhoseoslóbulosauriculares;

- perfurações-u?lizaçãofrequentede"buracosparapalitos"dediâmetroconsiderávelao longo da base das asas a que, em tamanhos maiores, podiam acrescerperfurações sob o bico e sob as asas para reduzir o risco de quebra durante acozedura;

- cordefundo-emgeralvermelhaoucreme,porvezeslaranja,cinza,ouazul,tendoaocornegracomeçadoaserusadaapenasapar?rdecercade1950;

- decoração - floral, em relevo nos tamanhos maiores, ou plumiforme, ou aindageométrica e construída a par?r de pontos brancos ou coloridos (ausência demo?vosemformadecoração).

O Galo moderno começou a evoluir a par?r de cerca de 1950, com o referidoaparecimento da cor-base negra que permite obter um efeito de grande impactodramá?co.Apesardonegroseru?lizadonotraçadoepinturadedetalhes,nãoparecetersidoanteriormenteusadocomocordefundonapinturadofiguradodeBarceloseépossívelquesótenhasidointroduzidodadaafacilidadeemseproduziraquan?dadeconsiderável de ?nta necessária ao acabamento de grandes áreas, recorrendo amatérias-primasdefácilprocura(coladepeixeenegrodefumo).

Algunsanosmaistarde,deu-seumaalteraçãocrucialdadecoraçãocomaintroduçãodemo?vosminhotos,tendocomofococentralumouvárioscoraçõesvermelhosqueformavamconjuntocomacristae,sobreo fundonegro,ofereciamdirectamenteumgrandeefeitoesté?coaqueosobservadoresnãoficavamalheios.Aomesmotempo,as áreas decora?vas (a crista, a cauda e a superdcie das asas) foram sendoaumentadas, para oferecer uma tela tão vasta quanto possível à cria?vidade dospintores. Posteriormente, os recortes da crista e da cauda simplificaram-se, parareduzir o tempo de fabrico, e, ao mesmo tempo, deixaram de interferir com acon?nuidadedasgraciosascurvasqueasdefiniam.

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Amaisan?gareferênciaqueliaestenovoes?lodatadeNovembrode1957econstadeumar?gonoJornaldeBarcelos:HátemposoGonçalvesTorresmeteu-seaaperaltarestenossogaloesaiu-lheentãodasmãoso"modernogalodeBarcelos".[...]Deixoudeser o ingénuopara ser o donairosomas conInuaa ser caracterisIcamente regional.Nenhum dos Ipos anteriores perdeu venda, pois todos conInuam a fabricar-se e avender-se.[...]Écertoquesãoosmodernosquemaissevendem.[...]HonraeglóriaaoGonçalves Torres, já que dinheiro não ganhou. Bem sabemos que isto escandaliza amaiorpartedosadmiradoresdasnossasloiças[...]Eondeestáomaldasalteraçõessetodos conInuam a encontrar no mercado galos de todas as épocas? Tendem adesaparecerosprimiIvos?Ésóprevenirem-secomumasboascolecções!

Nãosesabeexactamenteemqueconsis?ueste“redesenho”masotermo“donairoso”costumareferir-seàelegânciae,portanto, sugerequepode,alémda introduçãodosmo?vos minhotos na decoração, ter também havido uma evolução morfológicasugerida pelo pintor de Barcelos,ManuelGonçalves Torres.O “novo es?lo” doGalodevedatardasegundametadede1955oude1956porquenumcartazdasuaautoriaparaaFestadasCruzes,queserealizouemMaiode1955,apareceumgaloes?lizado,jácomrecortesdacristaedacauda,queprenunciamoGalomoderno,masaindasemreferência à decoração combase emmo?vosminhotos.Do texto anterior ficamos asaberquehouveumareacçãocontraamodernizaçãodoes?lomas,comoéomercadoqueregeosfabricantesenãootradicionalismo,onovomodeloacabouportriunfar.

Coma adopçãodonovoes?lo, entrou-senumnovoperíodode experimentaçãoemque ocorreram cristas excessivas, variantes dos recortes esimplificaçãodopedestal.Duranteaprimeirametadedadécadade1960 o es?lo moderno do galo de Barcelos estabilizou numamorfologia duradoura ilustrada pelo exemplar da figura 14,comprado em Barcelos cerca de 1966 e cuja esbeltez pareceindiciar influênciasadicionaisestrangeiras talvezporque,poressaépoca, o Galo era já apreciado pelos decoradores doutros paísescujogostohaviaquesa?sfazer.Comparando-ocomosdasfiguras12e13notam-seasprincipaiscaracterís?casdis?n?vas:

- formamaisesbelta,comopescoçomaisfinoealtoemrelaçãoaocorpo;- crista maior, inclinada para a frente e prolongada para baixo na parte posterior,recortadaemdentedeserraatravésdeincisões,porcontrapar?dacomaan?gaqueerarecortadaemtriângulosisósceleseexigiaumamodelaçãomaisdemorada;

- caudamaior,prolongadaparabaixo,recortadacomoacrista;- bicomaisfinoecomprido,aguçadoeadunco,aocontráriodoanteriorqueeralinearoumuitoligeiramenteadunco,espessoearredondado.

Figura14

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Nesta época fabricavam-se também galos brancos(chamados“galosdenoiva”), tendo-se tentadoalgunsanos antes, aproveitando os casamentos de São Joãono Porto, lançar o hábito da oferta de uma destaspeças às noivas. O hábito não ganhou raízes,mas osgalosdeBarcelosnegroscomadecoraçãotendocomomo?vo central corações vermelhos, sim! Foramimagem turís?ca de Portugal e divulgaram-se atravésde numerosos suportes gráficos até acabarem porsimbolizaropróprioPaís.ComotaloGalofoisímbolodaSelecçãoNacionalquedisputouoMundialde1966,

em Inglaterra (figura 15). Estas promoções tornaram-no um logo?po reconhecidointernacionalmente e levaramo nome de Barcelos a todo oMundomas, note-se, afigura do Galo só foi u?lizada porque os responsáveis pelo marke?ng turís?co, ospublicitários, e os ar?stas gráficos lhe reconheceram à par?da qualidades esté?casímparesparaofimemvista.

Por causa da sua esbeltez, os Galos desta época eram necessariamente frágeis eevoluíram, posteriormente, num sen?do inverso (o pescoço tornou-semais curto, acrista menor e os recortes cada vez menos numerosos e mais pequenos).Recentemente,assiste-seaoprevisívelaparecimentodenovasmorfologiasesoluçõesdecora?vas,tendocomoalvoummercadoqueprocuradesignmaisdoque?picidade.EamorfologiadogalodeBarcelosrespondeuaestenovodesafioproporcionandoumaplataformaesté?caexploradaatravésdedecoraçõesquejánadatêm,realmente,avercom a modesta peça de cerâmica regional. Mas se as modernas lojas de designpreferemoselegantesgalosunicoloresoudecoradosnumamul?plicidadedepadrõesmais ou menos pretensiosos, são os galitos negros com as chaves amarelas e oscorações vermelhos que con?nuam a alegrar semanalmente a secular Feira deBarcelos. E os seus antecessores, que aqui brevemente recordámos, cons?tuem umpatrimónio cultural surpreendente, comumaorigemmaterial tão fabulosa quanto oseusucessocomosímboloéhojebemreal,aopontodeinspirarobrasdeartecomoaqueJoanaVasconcelosagoraapresentou.

JoãoManuelMimoso(2016-11-07)

Figura15

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Agradecimentos a todos os que colaboraram na colecção de dados, commençãoespecialpara:

Dra.CláudiaMilhazes(MuseudeOlariadeBarcelos)

DesignerCarlosBártolo(Lisboa)

Créditosfotográficoseimagens:

Figuras 3 e 11 - Pedro Cunha (Colecção Museu de Olaria de Barcelos,Portugal).

Figura5-MuséeNa?onald'ArtModerne-CentreGeorgesPompidou(Paris,França)©SuccessionDelaunay,©CentrePompidou,MNAM.

Figura6-MuseuNacionaldeSoaresdosReis(Porto,Portugal).

Figura8-ArquivoNacionaldaTorredoTombo(Lisboa,Portugal)- imagemcomunicada pelo designer Carlos Bártolo.Figuras 7, 12, 13, 14 - Colecçãopar?cular.