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João Carlos Marinho SANGUE FRESCO ©1986, João Carlos Marinho 13ª edição: janeiro/1991 EQUIPE RESPONSÁVEL Supervisão gráfica: Nadia Basso Diagramação e revisão (coord.): Fernando de B. Gião Revisão: Edson O. Rodrigues - Myrian L. Alves Ilustrações: Roberto Barbosa Arte-final: Silene Miranda Direitos reservados: Global Editora e Distribuidora Ltda. Matriz: Rua França Pinto, 836 — CEP 04016 Cx. Postal 45329 — CEP 04092 Fone: (011) 572-4473 — FAX: (011) 572-5398 Vila Mariana — São Paulo — SP Filial: Rua Mariz e Barros, 39 - conjs. 26/36 Cep 20272 — Fone: (021) 273-5944 Tijuca — Rio de Janeiro — RJ Colabore com a produção científica c cultural! Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem a autorização do editor.

João Carlos Marinho · 2020. 3. 20. · sentar, dar o dedinho, espetou o dedinho, tirou sangue numa plaqueta de vidro, examinou ao microscópio, colocou os elementos reagentes. —

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João Carlos Marinho

SANGUE FRESCO

©1986, João Carlos Marinho

13ª edição: janeiro/1991

EQUIPE RESPONSÁVEL

Supervisão gráfica: Nadia Basso Diagramação e revisão (coord.): Fernando de B. Gião

Revisão: Edson O. Rodrigues - Myrian L. Alves Ilustrações: Roberto Barbosa

Arte-final: Silene Miranda

Direitos reservados: Global Editora e Distribuidora Ltda.

Matriz: Rua França Pinto, 836 — CEP 04016 Cx. Postal 45329 — CEP 04092

Fone: (011) 572-4473 — FAX: (011) 572-5398 Vila Mariana — São Paulo — SP

Filial: Rua Mariz e Barros, 39 - conjs. 26/36 Cep 20272 — Fone: (021) 273-5944

Tijuca — Rio de Janeiro — RJ

Colabore com a produção científica c cultural! Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem a autorização do editor.

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Dedico a meus queridos filhos Roberto Cecília

Alex

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1 O avião a jato voava nos céus do Brasil, a onze mil metros, levando

muitos meninos e meninas, entre nove e onze anos, de pele viçosa, cara de assustados.

— Que coisa estranha — disse Paulo. — Quando fomos raptados pensei que iam pedir resgate para nossas famílias e agora estamos nesse avião indo não sei onde.

— Já houve outros raptos antes — disse Nadia. — Lembra? E as crianças sumiram, não pediram resgate.

Não havia comissário de bordo, ninguém passava para dar instruções, parecia um avião assombrado.

A criançada, no início, ficou ordeiramente sentada, depois um começou a levantar de sua poltrona para falar com o outro, contavam como tinham sido raptados, em que escola estudavam, procuravam entender o que estava acontecendo.

— Acho que estamos descendo — falou Simone. O avião começou a descer, ficou cercado de nuvens, e um panorama

verde apareceu no chão. — É uma floresta! — E que grande, não tem fim! Do meio da mata apareceu uma clareira; no centro viam-se construções,

depois piscinas, quadras de esporte, um pedaço de terra verde clara, parecendo plantação, outro pedaço verde escuro, parecendo capim, pastavam bois, e muita terra branca, como a de deserto.

O avião desceu, frisando as árvores, deu aquele tranco no chão, foi caminhando lentamente até chegar perto de um grupo de galpões, espécie de casas de madeira, cobertas de brasilit.

— Chegamos — disse Nadia. — E pensar que hoje de manhã eu saí para comprar um disco do Caetano, fui puxada para dentro de um carro e estou aqui.

— Que será que eles querem? O piloto veio da cabine de comando, mandou descer, a criançada foi

saindo do avião: esperava-os embaixo da escada um senhor de avental, poucos cabelos, sotaque de holandês:

— Entrem em fila e sigam-me. As nuvens abriram, o sol batia forte, a fila de crianças seguiu o holandês,

pisando em cima do chão duro. Um bando de papagaios passou voando, fazendo barulho, falando muito,

o céu ficou colorido de repente; os papagaios atravessaram o acampamento e entraram na floresta.

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A clareira, em toda a volta, tinha um limite: a floresta, verde escuro, misteriosa, árvores de sessenta metros.

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2 A fila de crianças ia costeando os galpões, seguindo o holandês de

avental; não havia vento, todos suavam, as camisas aderiam aos corpos e os mosquitos picavam.

— Estamos indo para o refeitório — disse o holandês. — Vocês chegaram exato para a hora do almoço.

Na porta de cada galpão havia uma tabuleta: Sangue A Positivo/ Sangue A Negativo/ Sangue B Positivo/ Sangue B Negativo/ Sangue AB Positivo/ Sangue AB Negativo/ Sangue O Positivo/ Sangue O Negativo/ Galpão Jogos/ Banheiros Masculinos/ Banheiros Femininos/ Galpão Laboratório/ Galpão Mecânica/ Galpão Combustível.

— Essas tabuletas com as qualidades de sangue — disse Simone — não estou entendendo.

— Daqui a pouco teremos notícias — disse Paulo. Um menino jogou-se no chão e começou a chorar e a chamar pela mãe. A fila parou, olhando. — É o Ricardinho — disse Nadia. — Estuda no Mackenzie. O

Ricardinho berrava e esperneava sobre a areia dura e branca que refletia o sol e fazia arder os olhos.

— Levante-se! — gritou o holandês. — Ataque de nervo é coisa de menininho mimado. Volte para a fila!

Ricardinho, furioso, levantou, deu uma cabeçada no estômago do holandês e quando o holandês caiu, pisou-lhe na cara, arrancando os dois dentes da frente.

E xingava: — Toma seu holandês filho de um bode, estrupício, covarde, sujeito

imundo! O holandês ficou de pé, deu um golpe de braço que imobilizou o

Ricardinho e falou: — Você ofendeu a autoridade. Você agrediu a autoridade. Isto é

castigado com a pena de morte aqui. E apontou para a gaiola, no meio do pátio, onde uma sucuri, dobrada

sobre si, aproveitava o sol. Ricardinho continuava xingando. — Vocês precisam saber que ninguém ofende a autoridade nos

territórios da Fresh Blood Corporation — disse o holandês, limpando o sangue da boca.

E segurando Ricardinho com a chave de braço, foi levando o menino na direção da gaiola. Era uma gaiola com barras de ferro entrelaçada de fios de arame grosso.

A sucuri desenrolou-se e ficou com o pescoço vertical; uma cobra

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gigante, verde azeitonada, manchas dorsais ovaladas negras, pequenas manchas esbranquiçadas dos lados, cabeça chata e escura, a língua saía de dentro, lambendo o ar.

O holandês tirou a chave do bolso, abriu o cadeado, atirou Ricardinho na gaiola e fechou.

A sucuri meneou, fez que sim, fez que não, e deu o bote. Foi coisa de um instante, enlaçou-se no menino, envolveu com os anéis,

que foram apertando, quebrando as costelas, Ricardinho ficou azul e ia se transformando numa pasta mole, o bicho verde abraçando ele.

As crianças estavam pasmas, umas tremiam que nem geléia, outras queriam atacar e libertar Ricardinho, mas um medo estranho, naquele lugar estranho, as paralisou.

A sucuri esmagou o crânio de Ricardinho e, depois que o menino virou pasta, ela foi soltando baba lubrificante sobre ele, a baba escorrendo da boca horrenda, às vezes parava um pouco e esticava o pescoço, em seguida babava de novo: quando Ricardinho estava bem babado, a sucuri engoliu tudo, em espasmos, a gente via o diâmetro dela estufar.

Ficaram de fora da boca os pés de Ricardinho calçando os dois tênis verticais e paralelos como se o menino estivesse dormindo num vagão leito. A sucuri se alongou e dormiu.

O holandês, que tinha a gengiva bastante machucada, falou: — Um bom exemplo para vocês. Não gostamos de revoltados aqui.

Sigam-me e vamos almoçar. Ouviram o vozerio que saía de um galpão com a tabuleta: Galpão

Refeitório. Entraram. Crianças almoçavam, mastigando, deviam ser mais de duas

mil; pararam um pouco de comer ao perceberem a chegada do novo grupo. Os que almoçavam tinham magnífica aparência, tostados do sol, caras

alegres, e um ruivo disse: — Vem aí mais sangue fresco. O gracejo causou uma risada em volta. Uma mesa ia contando para a

outra e a risada ia passando de um lado para outro. As mesas eram finas, longas, toscas, caberiam uns sessenta em cada

uma; sentavam-se sobre pranchas, estavam todos de calção, sem camisa e sem sapato, mediam entre nove e onze anos também.

A zoada era uma loucura, só mesmo estando lá para saber o barulho que fazem duas mil crianças conversando em um ambiente fechado.

— Vão buscar a comida na mesa do fundo — disse o holandês. — Aqui é self-service, cada um se serve e depois lava os pratos e os talheres.

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3 Pegaram os pratos e os talheres, serviram-se e foram sentando,

misturando-se com os veteranos. Paulo, Nadia e Simone sentaram-se num vão de prancha, ao lado de um

veterano simpático, bonito, de cabelo encaracolado. — Eu sou o Alcides — disse o veterano. — Fui raptado que nem vocês.

Estudo no Dante. — O Paulo e eu estudamos no Santa Cruz — falou Nadia — a Simone

no Ofélia Fonseca. A comida estava ótima, bife com batata, bife não congelado, que vem

sangrando, com gordurinhas nas bordas, feijão, nem aguado nem ralo, mas curtido em caldo consistente, desse caldo que a gente passa o pão depois, salada fresca, frutas e doces de sobremesa.

Um menino magrinho, desajeitado, de óculos de lentes muito grossas, com a camiseta do Pueri Domus, vinha, bandeja na mão, procurando lugar. Simone se afastou um pouco e o magrinho sentou ali.

Nadia olhou para o magrinho e falou: — Eu vi você na televisão. Você não é o Hugo Ciência, o menino

prodígio, que decorou a lista telefônica e sabe falar quinze línguas? — Sou. — Eu também assisti o programa — disse o Alcides. — É o garoto do

QI 250, maior que o do Einstein. — Esse negócio de saber a lista telefônica pode ser truque de televisão

— disse a Nadia. — Vou experimentar. Falou o nome do pai dela e Hugo, sem hesitar, deu o telefone certo. — Qual a vida de vocês aqui? — perguntou Paulo para o Alcides. — Primeiro, quando a gente chega, eles fazem uma análise de sangue. Aí

o médico marca um dia da semana em que tira o sangue da gente e põe num frasco. O frasco é rotulado e vai para o Galpão Frigorífico. Nos domingos vem um Boeing pegar os frascos e vai embora.

— Você está com esparadrapo no pescoço — disse Nadia. — Eles tiram sangue pela jugular, essa veia que passa no pescoço. — Dói? — perguntou Nadia. — Só um pouquinho. — Pensei que tiravam sangue pelo braço — falou Paulo. — Simples — disse Hugo Ciência. — As veias dos braços das crianças

são muito finas, não dão presa para a agulha de tirar sangue, que é um pouco grossa. Tiram da jugular, que é uma veia grossa.

— Puxa, quanto mosquito — disse Simone. — Não vi você nem os veteranos se cocarem.

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— Dão um bastão repelente muito aperfeiçoado — disse o Alcides. — Passamos na pele e os insetos nem chegam perto.

— O almoço está terminado — disse o alto falante. — Os que chegaram hoje esperem na porta.

— Esse aí é cearense — falou Simone. — Não — disse Alcides. — É baiano, chama Redimir. É o único

brasileiro desses homens, cozinha para nós. Levantaram-se e entraram por uma porta do fundo que dava para a

cozinha. Redimir estava lá, um baiano alegre e desdentado, com mais seis ajudantes de cozinha, romenos, dinamarqueses, finlandeses.

A pia era comprida, corria pela parede, com uma porção de torneiras, uma ao lado da outra. Lavaram os pratos e os talheres, puseram no lugar indicado, voltaram ao refeitório e saíram para o sol do pátio.

— Vocês ficam aqui — disse Alcides. — Até logo, nos encontraremos na piscina.

— Até logo, Alcides. O holandês esperava as crianças recém-chegadas na porta do refeitório,

puxou a fila e pararam na porta do Galpão Laboratório. A ordem era entrar de um em um. Havia trinta na frente de Nadia. — Esse negócio de usar sabão detergente para lavar os pratos vai

estragar minhas mãos — disse Simone. — Você reparou no Alcides, como ele é bonitão e simpático — falou

Nadia. — É sim, ele tem um encanto natural. Chegou a vez de Nadia, ela

entrou. Dentro estava um médico canadense, dr. Woodward, que mandou Nadia

sentar, dar o dedinho, espetou o dedinho, tirou sangue numa plaqueta de vidro, examinou ao microscópio, colocou os elementos reagentes.

— Seu tipo de sangue é B negativo, vai dormir no galpão B negativo. Tire a roupa, a meia e o tênis e ponha este calção. Assim. Tome este bastão repelente e passe na pele, no corpo todo, leve ele com você.

Havia muitos fichários no quarto. O canadense pegou uma ficha branca, sentou na mesa e perguntou:

— Seu nome? — Nadia Paranhos da Conceição. — Nadia com acento agudo? — Não. — Nascimento? — 4 de fevereiro de 1971. — Hum, nove anos recentes — disse o dr. Woodward, enquanto escrevia

numa ficha, a letra caprichada. Levantou-se, foi até o fichário B negativo, puxou a gaveta, sua mão

parou na letra N e colocou a ficha de Nadia em ordem alfabética, logo depois

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de Nabilia. Deu um tapinha carinhoso na cabeça de Nadia. — Cuidado com o arame que circunda o acampamento. É eletrificado em

alta voltagem. Seu dia de doar sangue é quarta-feira às dez e quinze. Gosto de pontualidade. Não atrase um minuto.

Nadia saiu no pátio, foi quando desabou a chuva equatorial, grossa como viesse de um balde; ela gostou, com o calor que estava, e deixou a água molhar inteiro seu corpo de criança.

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4 Vamos recuar um tempo e contar como nasceu a Fresh Blood

Corporation. Seu fundador é Ship O'Connors, norte-americano nascido em Chicago

em 8 de março de 1923, filho de John Henry O'Connors e de Patrícia O'Connors.

Ship O'Connors não nasceu em lar rico; o pai era tipógrafo e a mãe auxiliava o orçamento doméstico vendendo malhas de tricô.

Ship O'Connors formou-se em medicina, resolveu especializar-se em doenças de sangue e abriu um consultório em companhia de um sócio chamado Schsnels.

A clientela era pequena e de gente pobre, os anos iam passando, um dia igual ao outro, e Ship O'Connors, que detestava a pobreza, via cada vez ficar mais impossível o sonho de ficar milionário.

Criança não pode doar sangue, é proibido, mas em abril de 1978, numa emergência, Schsnels foi obrigado a fazer transfusão de um menino de dez anos para o pai, que estava agonizando.

Schsnels esperava apenas prolongar a vida do pai do menino por dois dias, o homem não tinha cura. Com a transfusão do sangue do filho, sarou completamente. Na semana seguinte estava jogando basquete.

Schsnels, cientista cauteloso, não tirou conclusão apressada. Nos meses seguintes, Schsnels e Ship O'Connors fizeram várias experiências, comprando sangue de crianças e injetando em doentes incuráveis. Schsnels se consolava de estar contrariando a lei que proíbe tirar sangue de criança, dizendo que Deus lhe perdoaria por estar agindo com finalidade humanitária.

Ficou estabelecido que o sangue das crianças entre nove e onze anos curava todas doenças, mas só sangue desta idade.

Sangue de criança com menos de nove ou com mais de onze, não fazia efeito nenhum.

— É uma descoberta fantástica, Ship! Vou escrever o relatório para as academias de ciência do mundo.

— Nã Nã — falou Ship O'Connors — Vamos guardar segredo e usar a descoberta para a gente ficar milionário. Estou com cinqüenta e cinco anos de vida cinzenta e chata, não deixarei escapar esta ocasião.

— O cientista pertence à sociedade — disse Schsnels. — Não podemos ser egoístas. Vou fazer o relatório.

— Está bem — disse Ship O'Connors descansando a garrafa de gin em cima da mesa. — Você me convenceu. Você é um homem bondoso, Schsnels, me orgulho de ser seu amigo.

— Muito obrigado — disse Schsnels.

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E outra coisa não disse porque Ship O'Connors deu-lhe um tiro na cabeça, levando o corpo para um matagal, onde o enterrou, com visível satisfação.

Ship O'Connors começou a pensar num modo de ficar milionário com a descoberta.

Comprar sangue de crianças, para depois revender, afastou logo a idéia. A lei proíbe que crianças doem sangue, em todos os países.

O pouco sangue infantil que Schsnels arranjara para as experiências foi à custa de amizades, e um jeito deste não era suficiente para as toneladas que Ship O'Connors precisava para explorar sangue em escala comercial.

O certo seria raptar crianças, formar um curral delas e ir exportando para o mundo.

Onde formar este curral? Depois de muito estudar, Ship O'Connors escolheu o Brasil, país imenso,

onde a maioria do povo é pobre mas há em certos lugares gente rica, com filhos bem nutridos, como em São Paulo, e oferecendo localização perfeita para um curral escondido, nas desconhecidas florestas da Amazônia.

Tratou de conseguir dinheiro. O plano era bom, o retorno do capital garantido, arranjou um empréstimo de um banqueiro suíço e ainda o dinheiro de dois sócios, um alemão e um japonês, e fundaram a Fresh Blood Corporation.

Como dono da idéia, Ship O'Connors ficou com 51% das ações, para ter maioria.

Comprou terrenos na Amazônia, construiu o acampamento na clareira, contratou capangas, comprou aviões, automóveis, fez o mais que era necessário e começou a raptar crianças em São Paulo, a partir de março de 1980.

Escolhia crianças de família rica, bem alimentadas, levando-as para a Amazônia, de onde o sangue infantil era transportado para a Europa e daí para o mundo.

Para evitar suspeitas abriu vários bancos de sangue autorizados por lei, em São Paulo e em diversas cidades, lugares em que recebia sangue de pessoas do povo, doado ou vendido, mandava para o exterior de navio, e, no caminho, o sangue era jogado fora.

Assim, diante as autoridades, Ship O'Connors exportava sangue legal. Em três meses a firma havia centuplicado o capital, o planeta inteiro

corria atrás dos laboratórios da Fresh Blood Corporation. O sangue fresco das crianças paulistas fazia milagres, curava tudo, nunca

se viu coisa igual. Os jornais brasileiros se entusiasmaram, elogiavam Ship O'Connors,

faziam entrevistas com ele, um jornal proclamou que Ship O'Connors estava provando ao mundo que o sangue brasileiro era o melhor do mundo.

Todas as noites Ship O'Connors recebia um banquete de homenagens,

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ganhava urras e brindes, tornou-se figura obrigatória na sociedade paulista, recebê-lo era uma honra, mulheres perdiam-se de paixão por ele, e era isso que ele havia sonhado, o poder e a glória, uma metrópole a seus pés.

Essa é a história de Fresh Blood Corporation e de seu fundador Ship O'Connors.

Pelo menos até aqui.

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5 Estamos em 29 de julho de 1980, um domingo e havia noite de São

Pedro na casa do pai do gordo. O jardineiro calculou o círculo da fogueira e tirou a grama debaixo, para

replantá-la depois. A nossa turma estava lá: o gordo, também chamado de Bolachão, o

Edmundo, o Pituca, o Biquinha, o Godofredo, a Mariazinha, a Sílvia, a Vera Xavier, o Zé Tavares, alguns adultos e mais uma criançada pequena.

A Berenice chegou, furiosamente bonita, a pele morena, o corpo esguio, o cabelo fino caindo nos ombros, os olhões pretos, vestida de cores vibrantes, fantasiada de caipira, predominando o vermelho, o laranja, o amarelo ouro e o azulão.

Fogueira é coisa fascinante. A gente olha, demoradamente, em estado de graça.

As labaredas lambiam, a madeira estalava, umas achas davam estampidos, a parte de cá do edifício da fogueira desabava no chão, os empregados jogavam mais lenha.

A Sílvia soltou um buquê de estrelas que abriu no céu, pára-quedas luminosos desciam, alguns penduravam nas árvores, o Godofredo segurou a vara do rojão-de-vara e ficou olhando subir, zumbindo e explodindo, o mordomo atirava traques nos pés da copeira, ela pulava e gritava, a Berenice apontava as pistolas de raios coloridos contra a piscina, eles refletiam na água, um olhava para o outro e ria, corados de excitação, quando acabavam di soltar iam pegar um outro, em frente à lavanderia.

As crianças pequenas corriam como duendes pela grama, acendendo lápis chineses, volta e meia estourava uma cabeça de negro, sete chuvas prateadas iluminaram o céu: o jardim do pai do gordo era um reboliço de alegria e de brilho.

Pirata, o pastor alemão do gordo, ficara preso no gradil, latia doidamente, não se sabe se por causa do barulho das bombas ou por vontade de participar da brincadeira geral.

O pessoal dançava no estrado, homem com mulher, homem com homem, mulher com mulher, quem não tinha par dançava sozinho; dois sanfoneiros e um tocador de viola faziam a música.

— Vem dançar, gordo — disse a Berenice. — Não sei dançar — respondeu Bolachão. — Vem que eu te ensino. — Não. A Berenice viu que era inútil, saltou no estrado e saiu dançando. O namoro da Berenice com o gordo estava no seguinte pé: inicialmente a

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Berenice se apaixonou por Bolachão, o gordo demorou um pouco e se apaixonou também, depois a Berenice desapaixonou do gordo e namorou o Biquinha, capitão do time de futebol, romance que durou algumas semanas, em seguida a Berenice voltou para o gordo.

Biquinha viu a Berenice dançando sozinha e foi cercá-la, dançando de par constante.

Pituca zombou do gordo. — Desse jeito você perde ela de novo. O gordo olhava aquilo enfezado apoiado na beira do estrado. Para distrair a raiva o gordo comeu paçoca, cocada, canjica, espiga de

milho, churrasco, lingüiça, bolo de fubá, pé de moleque, doce de abóbora, doce de batata-doce, doce de batata-roxa, pinhão, arroz doce, pipoca, tomou garapa e tomou quentão.

Quando chegou no quentão, o gordo tomou um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito copos, entusiasmou e invadiu o estrado.

— Arreda daqui herege — disse o gordo para o Biquinha, tirando a mão dele da cintura da Berenice.

Ia ter briga, todo mundo parou. Pituca cutucou Edmundo e disse: — Olha lá, olha lá, vai ter briga. Ótimo. Adoro festa com briga. O Biquinha era calmo, viu que o gordo estava falando com a boca

pastosa, tocado pelo quentão, fez um olho-que-ri, afastou-se e pegou a Sílvia para dançar.

O gordo saiu rodando, feliz da vida, nos braços da Berenice.

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6 Os adultos conversavam, sentados à beira do gramado. — A fogueira daqui a pouco alcança a jabuticabeira — falou a mãe do

gordo. — Eu disse para você, Marcelo, deviam ter colocado a lenha mais para cá. Os galhos estão intumescidos para soltar os botões, íamos ter árvore carregada em setembro, vai estragar tudo, meu bem.

— Não se preocupe, meu bem — disse o pai do gordo. — Os senhores vejam — disse seu Tomé. — Não consigo tirar da cabeça

que desde março raptaram mais de duas mil crianças em São Paulo. — É um caso — disse o sr. Ubirajara Pestana. — E a polícia nada

descobriu. — Contratei três guarda-costas para meu filho — disse o pai do gordo. Veio o mordomo, não desses mordomos uniformizados de novela de

televisão, copiados da Inglaterra, mas o mordomo brasileiro do pai do gordo, de camisa esporte com a inscrição Princeton University, cabelo comprido, e anunciou:

— Seu convidado americano está aí. — Faça-o entrar no jardim. Vestindo um pulôver de cachimir, uma corrente grossa pendendo ao

pescoço, um mocassino amarelo e uma corrente no pulso, bronzeado do sol, Ship O'Connors fez a sua entrada no jardim do pai do gordo.

O pai do gordo fez as apresentações. — Tinha ouvido falar do senhor — disse o sr. Augusto do Monte. —

Chegou ao Brasil faz pouco tempo e a sua firma de sangue, como é que chama? ;

— Fresh Blood Corporation. — Exato, a Fresh Blood Corporation virou rapidamente um sucesso

financeiro. Ship O'Connors sentou-se, foi-lhe servido quentão e churrasco. — Conheci o sr. Ship outro dia, num jantar de comerciantes — disse o

pai do gordo. — Convidei-o para mostrar a ele uma festa junina. — Quem é aquele gordinho ali? — perguntou Ship O'Connors. — É meu filho — disse a mãe do gordo. — Puxa — disse Ship O'Connors. — Esse aí parece ter uma saúde! — E tem — disse a mãe do gordo. — Nunca fica doente. Nem gripe ele

pega. Não é, bem? — É sim, bem — disse o pai do gordo. — Tem mais de onze anos ou menos de nove? — perguntou Ship

O'Connors. — Dez anos.

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— Esplêndido — disse Ship O'Connors. — Onde estuda? — Na Escola Três Bandeiras. — Onde fica? — Na rua Joaquim Antunes, aquela que desce em frente ao cemitério

São Paulo. — O churrasco está apetitoso — falou Ship O'Connors, os olhos

brilhando. Um senhor barrigudo, de camisa vermelha, chapéu enorme, anunciou a

quadrilha. Foram todos para o estrado, o barrigudo ia marcando, metade para cá,

metade para lá, anavam!, anarriê, tour, balance, quando terminou as meninas foram para um lado tirar as sortes.

O gordo se preparava para o grande resultado da noite: o balão. Foi até a garagem buscar o balão que ele fizera. Bolachão passara o sábado na garagem fazendo o balão. Comprou as

folhas de papel de seda, verde amarelo azul e branco, ia prestar uma homenagem nacional, comprou arame liso grosso, misturou farinha de trigo na água, deixou ficar mingau e foi passando no papel, colando, cortando no papel, certinho, sem medir sem nada, para quem sabe não tem segredo, o segredo é cortar o papel certinho, fazer o estilo pessoal dele, depois fechar, levantando, sentando, ficando de joelho, pondo a mão no queixo para pensar, deu um barriquinha de sessenta e quatro folhas, fez a boca, fez a mecha, rolando em cima e pondo no saco de estopa.

Bolachão estava ansioso, com aquela emoção de que a gente sabe que o balão está perfeito mas só vai ter certeza quando ver ele parar de subir no pensamento e subir de verdade no céu.

Levou o balão para o centro do gramado, não muito perto da fogueira, observou de onde o vento vinha, o que é importante para achar um corredor aéreo sem obstáculo, caso ele não suba reto.

A turma cercava e rodeava, olhando aquela cerimônia. — Quando subir sai de baixo. Cuidado com o pingo do breu! Treparam nuns banquinhos, puxaram as bordas, abriram o balão, o gordo

derramou querosene na mecha, prendeu a mecha na boca e acendeu. O balão coloriu, começou a estufar, a puxar para cima, a mecha ardendo

e soltando as faíscas do breu. Todo mundo na festa olhava o balão, Ship O'Connors esqueceu que era

um bandido sem-vergonha e de sua cabeça começaram a sair pensamentos puros.

Mas o vizinho da mansão do pai do gordo era um chato. Ficou espiando a festa pela janela, de pijama, e, quando viu o balão,

pensou: "Balão é proibido. Vou telefonar para a polícia".

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Telefonou. A polícia mandou um helicóptero interceptar o balão do gordo, caso

subisse. E subiu. Foi aleluia, salve, palmas, gritos, derivou à direita, todos correram,

buscando o ângulo melhor de ver, o balão deu um balanço "assim", o fogo da mecha lambeu para fora, deu nó no peito em todo mundo, mas aprumou de novo e lá foi, confundir com as estrelas.

O conjunto tocava: "Os balões devem ser com certeza As estrelas aqui deste mundo E as

estrelas do espaço profundo São os balões lá do céu". O helicóptero da polícia veio vindo no escuro da noite, fez a

aproximação com o inimigo, o vizinho do pai do gordo olhava pela janela de binóculo e falou para a mulher que estava deitada:

— Zulmira! O helicóptero vai explodir o balão. Você não quer vir e ver? Eu empresto o binóculo, só um pouquinho.

Zulmira limpou o ranho do nariz com a ponta do lençol, espreguiçou e disse:

— Vem pra cama Carlinhos. Chega com essa mania de estragar a festa dos outros.

O helicóptero soltou um míssil térmico que foi em cima do balão e estourou com ele.

A polícia invadiu a casa do gordo, deu voz de prisão, mas o pai do gordo deu um quentão pros guardas.

A maioria dos convidados despediu-se e ficou aquele fim-de-festa, um grupinho sentado em volta das brasas, falando conversa mole.

A Sílvia tocava violão, a Berenice encostou a cabeça no ombro do gordo, o Pituca dobrava jornal e fazia balão galinha em cima do que restava da fogueira.

— Como é gostoso esse fim de fogueira — disse Edmundo. — Vou buscar uma garapa para mim, vocês querem?

— Queremos, traz também a lata de paçoca. Um empregado soltou o Pirata, ele deu uma corrida em volta do gramado

e da piscina, fuçou pelo chão, rosnou contente, quando viu a Berenice encostada no gordo ficou bravo, quis avançar nela, o gordo deu uma ordem enérgica, o Pirata quietou, deu uma lambida na cara do gordo que pegou a cara inteira, e ficou ali, olhando também a fogueira esmaecer.

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7 Ao sair da festa do gordo Ship O'Connors pegou seu Alfa Romeo e foi

para o apartamento onde morava, na rua Augusta. Mandou chamar Ângelo Fabrizio, siciliano recrutado na máfia,

coordenador dos raptos de crianças. Encheu a banheira, pôs sais de banho, estirou-se, sentiu a água quente

envolver o corpo ouvindo freqüência modulada, soltou a imaginação. Os dedos da mão ficaram engruvinhados, saiu da banheira, enxugou-se,

desembaçou o vapor do espelho, viu refletida sua cara orelhuda e pensou: "Eu sou ótimo." Penteou-se, colocou o roupão, foi para a sala, serviu-se de meio copo de

Monks on the rocks, tocaram a campainha, o empregado abriu, era Ângelo Fabrizio, acompanhado de dois chineses, Huang e Teng.

Fabrizio foi abraçar Ship O'Connors mas Ship contentou-se em apertar-lhe a mão.

— Pare com estes folclóricos exotismos latinos, Fabrizio. Não é porque você é italiano que vai sair abraçando todo mundo por aí.

— Qual é o problema, chefe? — Hoje conheci um gordinho chamado Bolachão, tem dez anos. Você

sabe, sou médico, tenho olho clínico, esse gordo tem os sintomas de possuir o sangue mais extraordinário que já vi.

— Quer que eu o rapte amanhã? — Não. Ele tem três guarda-costas, anda prevenido, o pai dele me

contou. Dia primeiro de julho ele vai para a Praia das Cigarras, lá é mais fácil, quero que o pegue lá.

— Fique tranqüilo, chefe, o gordo não escapa. Os negócios vão bem, chefe?

— Cada vez melhor, Fabrizio. Tive um lucro líquido de oito milhões de dólares o mês passado. O sangue infantil está sendo vendido por uma fortuna lá fora. Já salvou a vida de um rei, uma princesa e de dois presidentes da república. Isso deu um cartaz enorme para a Fresh Blood.

No dia seguinte o gordo foi acordado pelo seu despertador digital eletrônico Philco, que começou a tocar música às 6,31 e deu sinal às 6,40.

Levantou, escovou os dentes, massageou a gengiva com water pile, perfumou-se, passou desodorante no sovaco, escolheu a roupa do dia, pôs a cueca descartável, jeans Fiorucci, meia Hang Ten, camisa Lacoste, corrente de pescoço Cartier, relógio Rolex aço e ouro, calçou o tênis Tiger, desceu para o andar térreo e comeu a refeição matinal: mamão da Amazônia, pão com requeijão, rosca com manteiga, geléia com torrada, suco de laranja, dano-ninho de morango e pêra com sustagem, glut, coalhada, restos de doce

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da festa de ontem, ricota amassada com mel, Dan Top, dois ovos fritos com bacon, sucrilhos com leite, enquanto comia fazia festinha na cabeça do Pirata, repartindo os bocados com ele, e terminou com um hambúrguer com catupiri, regado a algumas gotas de limão e envolto em maionese Hellmans.

O Pirata pôs a pata na mesa, sempre com a língua enorme para fora, e deu uma lambida na maionese.

O gordo entrou no Landau azul metálico, iam com ele, além do chofer, dois agentes de segurança, o Mão de Onça e o Generoso.

Um Passat amarelo, dirigido por outro guarda-costas, o Artemísio, seguia atrás, por precaução.

O chofer parou o Landau na porta da escola, o gordo foi para o pátio, seguido por Generoso. Mão de Onça e Artemísio ficarão no portão.

A primeira aula era com a professora de Estudos Sociais, uma professora muito bonita e muito simpática.

Cada um vai para sua carteira, Jandira entra na classe, atravessa-a, ouvem-se assobios, fiu-fiu, barulhos com a boca de quem saboreia coisa gostosa, nhame-nhame.

Jandira alcança sua mesa e passa-se a seguinte cena: Jandira: Bom dia, meus alunos. Alunos (os masculinos): Bom dia professora, sempre boa? Jandira: E vocês, sempre bons? Coro Masculino: Nem tanto quanto você, tia. Jandira: Que dia maravilhoso hoje, vocês não acham? Coro Masculino: Maravilhosa é você. Biquinha: Qual o pé mais bonito do mundo? Coro Masculino: É dela. Godofredo: Qual o joelho que Deus caprichou? Coro Masculino: É dela. Biquinha: Qual a cinturinha mais coisinha? Coro Masculino: E dela. Godofredo: Já ganhou? Coro Masculino: Já ganhou! Já ganhou! Já ganhou! Jandira: Muito obrigada, muito obrigada. É agradável ser elogiada, todo

mundo gosta, quem diz que não gosta é mentiroso, eu gosto. Agora vamos começar a aula, quero que todos fiquem calmos e quietinhos. Assim, assim, calma. Muito bem. A aula de hoje é sobre o café na economia brasileira.

E deu aula sobre o café, aquela mulher falou do café, e falou tão como se deve — vejam o que é a formosura parelhada na inteligência — que todo mundo ali, até o coitado do Generoso, saiu doutor em café, enciclopédia de café, São Tomaz de Aquino do café.

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8 Dia 1.° de julho a comitiva partiu. Na frente o Mercedes Benz, com o pai do gordo, a mãe do gordo, a

cozinheira, a arrumadeira, a Mariazinha e o Biquinha, em seguida o Landau, com o chofer, o Generoso, o Mão de Onça, o gordo, o Pirata, a Berenice, o Edmundo e o Pituca, atrás o Passat, com Artemísio, o Godofredo, a Sílvia, a Vera Xavier e o Zé Tavares.

Como era férias a Via Dutra estava saturada, no pedágio piorou, parou tudo, quilômetros e quilômetros de carros parados, a perder de vista, milhares de motoristas buzinavam, xingavam, o gordo pôs o cassete do Nó Caipira do Egberto Gismonti.

Os motoqueiros, irradiando mocidade e aventura, iam passando entre os carros parados, roncando com seus blusões amarelos, capacetes brancos, moças loiras na garupa.

Um motoqueiro mostrou a língua para a Berenice, ela riu, um outro motoqueiro tirou um gato do bolso e deu para a Berenice.

Aproveitando a fila de carros parados, os vendedores ambulantes punham a cara na janela dos carros e ofereciam laranja, limão, sorvete, churrasquinho, cachaça e água mineral.

Um vendedor de Kibon vinha empurrando a sua carrocinha de sorvete, de repente pulou na capota do Landau do gordo, começou a gesticular e a fazer discurso.

A multidão saiu dos automóveis e foi lá escutar, uns comendo laranja, outros chupando limão, uns tomando cachaça e outros mastigando churrasquinho, quase todos sem camisa e suando pelos cabelos.

— O mundo acabou ontem — dizia o vendedor de Kibon em cima da capota do gordo. — Estamos no vale de Josafá, somos almas penadas indo para o Julgamento Final. Deus está no pedágio, julgando cada um que passa. Os gordos que andam de Landau serão julgados com muita severidade, a gordura dos gordos de Landau humilha os pobres esqueléticos que andam a pé. Nhé, Nhé, Nhé.

— Quer que eu vá lá em cima e apague esse cara? — perguntou Mão de Onça. — Ele está ofendendo.

— Esquece ele — falou o gordo, fechando a janela do Landau, pondo o ar condicionado no máximo e aumentando o som do toca-fita.

O vendedor de Kibon continuava, apontando para a multidão. — Nhé, Nhé, Nhé. Malditos pecadores, todos vocês, preparem-se para o

Ultimo Pedágio, o Derradeiro Pedágio, o Pedágio Final. Tremam. Olhem para a arquitetura do Pedágio, muito branco, reluzindo ao sol, é o TEMPLO DO FIM, é o-buraco-pelo-qual-os-pecadores-serão-cobrados. O mundo

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acabou ontem. — Não acredito em profetas — disse Mão de Onça. — Mas que profeta nem meio-profeta, seu ignorante — falou Generoso.

— Profeta prevê o futuro, esse aí de cima está dizendo que o mundo acabou ontem.

— Ah, bom, grande vantagem, assim até eu. A coisa acalmou, o tempo pode com tudo, acaba com a felicidade e com

a desgraça, com a sensatez e com a loucura, passaram o pedágio, desceram a serra, logo se avistou o mar, lá de cima, os ouvidos fecharam, ao fim da serra abriram de novo, pegaram a reta de São Sebastião, o chofer desligou o ar condicionado, abriu as janelas, entrou o vento salino, cheiroso.

O litoral norte é recortado, cheio de pequenas enseadas e de pequenas baías, a escarpa da Serra do Mar chega junto ao oceano, quase entrando, daí esse belíssimo conjunto de pequenas praias, que não tem igual.

A Praia das Cigarras é uma destas minúsculas enseadas, cercada de duas colinas, uma à direita, outra à esquerda, que entram no mar, garantindo o aconchego da praia, limitada pelas duas colinas e fechada por trás pela Serra do Mar, e, na orla de cima da areia, há duas filas de amendoeiras, que dão boa sombra, tornando desnecessário o uso de guarda-sol.

A casa do gordo estava lá, rua das Conchas, o caseiro abriu o portão, descarregaram-se as malas, a mãe do gordo disse que nas férias o horário do almoço era três horas, e foram nadar, subir morro, andar na rocha, pescar, catar siri, pegar marisco, colher conchinha, jogar o bola. O Biquinha experimentou o Wind Surf, só levou tombo, a Berenice e o gordo foram andar de Catamaran, o barco chamava Berê, a vela pegou um vento sul, o barco deslizava sem fazer barulho, peixes pulavam, arrancando exclamações da Berenice, e assim começaram as férias, no tempo seco do mês de julho, onde o sol amarelado esquenta mas não queima, a fome é grande no almoço, e tudo é maravilhoso.

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9 No dia 13 de julho o pai do gordo madrugou, os empregados do Iate

Clube Cigarras puxaram para a água o 22 Carbrasmar, motor volvo-penta, e rumou para Ubatuba, onde, das 7 às 12, iria participar de uma competição de pesca embarcada, levando um amigo com quem formaria a dupla.

O pai do gordo ia esperançoso, queria mais essa taça para a sua coleção de troféus.

Na Praia das Cigarras o sol nasce do mar, ilumina cedo e, ao cair da tarde, esconde-se lentamente por trás da serra, acompanhado do pipilar dos passarinhos.

Depois que o sol estava mais alto, cada criança foi acordando, escovando os dentes, lavando a cara, tirando pijama e pondo maio, servindo-se de café com leite na grande mesa da varanda do fundo.

A Berenice, de biquíni preto com bolinha branca, tomava chá e servia leite com miolo de pão num pires para o Asdrubal que andava em cima da mesa.

— Cor esquisita a desse gato — disse a Sílvia. — É cor-de-burro-quando-foge — disse Pituca. — Que cara de tristonho é essa? — perguntou a Vera Xavier para o

Godofredo, que segurava a xícara parada no ar, olhando para a serra. — Estou com saudades da tia Jandira — suspirou Godofredo. — Vê se pode — disse a Mariazinha. — Um pirralho de dez anos

apaixonado por uma mulher adulta. É um píssico! Godofredo, pensativo, descansou a xícara na mesa e falou: — Ela tem dezenove, eu tenho dez, quando tiver vinte e sete eu terei

dezoito, aí vou estar grandão, bonitão e caso com ela. — E ela vai esperar? O professor de matemática anda que nem zumbi em

volta dela. — Eu tiro ela dele — disse Godofredo. — Tem divórcio no Brasil. — Não adianta argumentar com um delirante — disse a Mariazinha. Godofredo continuava pensativo, olhando para a Serra do Mar. Disse: — O pai do gordo tem quarenta e cinco anos e a mãe do gordo tem trinta

e seis. Nove anos de diferença, igual eu. — Se a gente for raciocinar assim — disse a Berenice — uma criança de

um ano pode casar com uma de menos oito, a diferença é nove anos também. — Repete que eu não entendi. — Passa o queijo — falou Edmundo. A mãe do gordo apareceu de traje de banho. Bom dia criançada, que bonitas férias estamos tendo. E dirigindo-se ao gordo:

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— Meu filho, você precisa ser moderado, sabe quanto paguei na conta do bar do Iate, só de hambúrgueres, mistos e sanduíches? Oitenta mil cruzeiros.

— Mais barato que a barbeiragem que você fez com o carro do pai, entrando no portão — disse o gordo.

— Vamos fazer uma dupla de tênis no Iate? — perguntou o Biquinha para a Sílvia, o Godofredo e a Mariazinha.

— A esta hora já tem fila na quadra — disse a Sílvia. — íamos esperar um tempão.

— Jogamos ao meio-dia — disse a Mariazinha. — Os adultos gostam de jogar de manhãzinha é de tarde.

Cada um espalhou-se para um lado, a Sílvia e a Mariazinha se animaram a subir a serra até a bica da fonte, a mãe do gordo mandou Generoso a São Sebastião fazer compras no Supermercado Garça e levou sua cadeira dobrável de alumínio para a praia, à sombra das árvores, onde se reunia com as amigas.

— Vamos à Ilha Bela, gordo, tomar guaraná naquele bar da praia de Siriúba — sugeriu a Berenice.

O gordo olhou para o céu e falou: — Tá. — Que é que você estava olhando, gordo? — Está vendo ali, no alto da serra, quando as nuvens estão paradas é

sinal de tempo bom, quando começam a andar é perigoso. Se o ar está muito parado, pesado, não se deve sair. Em julho tem viradas de tempo repentinas.

O Mão de Onça, o gordo e a Berenice trouxeram o barco à beira d'água, içaram a vela; o Pirata corria feliz em redor do barco, entrava no mar, voltava, dava aquela estremelicada de cachorro molhado que joga pingo d'água para todo canto; quando viu que o Catamaran estava pronto, pulou em cima, primeirão.

As cigarras cantavam aquele chiado estridente, em cima das árvores e dos bambuzais.

Estava um vento sul, o gordo abaixou os lemes e puxou a vela, cruzaram, perto da praia, doze Wind Surfs, com suas velas vermelhas, amarelas, encarnadas, roxas, listradas, bonitas de ver contra o azul do céu, o verde-azulado do mar e o verde firme das montanhas.

Quando passavam por um Wind Surf o Pirata esticava o pescoço e latia. A praia das Cigarras foi ficando longe, fora da enseada o vento

aumentou, o sol refletia nas cristas das marolas, formando um jogo de pisca-pisca, a proa do Catamaran, ao descer uma vaga e bater no mar, levantava uma espuma branca que respingava um arrepio nas costas da Berenice.

Ela estava deitada de comprido na proa e disse: — Falando sério, gordo, sua mãe tem razão, você come demais.

Enquanto tem dez anos não fica feio, parece um leitãozinho, mas quando

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crescer pode virar um gordão horroroso. Li na Cláudia que quem come demais é por aflição. Você é aflito, gordo?

— Eu não, a única vez que fiquei aflito perdi o apetite. — Quando foi? Tinha sido quando a Berenice largara o gordo uns tempos para namorar

o Biquinha, mas o gordo não quis confessar e respondeu: — Aquela vez que o Pirata fugiu. Uma nuvem escureceu um pedaço de mar, a nuvem passou, o sol

esquentou de novo. O Catamaran atingia o meio do canal, o gordo abriu mais a vela e mudou

de rumo na enviesada que ele planejou em direção à praia de Siriúba. Ship O'Connors decidira que o gordo seria raptado naquela manhã. Sabendo que o povo e os jornais esquecem depressa as notícias, ficara

bastante tempo sem raptar criança nenhuma nem tentara nada contra o gordo.

Isto afrouxou a vigilância: nos primeiros dias, além de Mão de Onça acompanhar o gordo no Catamaran, o Artemísio ficava na praia de binóculo e o Generoso escoltava a navegação do gordo numa pequena lancha.

Agora Generoso, como se fosse um empregado doméstico da mãe do gordo, tinha ido ao supermercado fazer compras, e o Artemísio, cada vez mais pau d'água, ficara na casa do caseiro bebendo pinga, namorando a cozinheira e escutando radinho.

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10 Enquanto o gordo manobrava para embicar a praia de Siriúba, uma

lancha grande e branca se aproximava do Catamaran. Eram Ângelo Fabrizio e os dois chineses, Huang e Teng. Teng dirigia o

barco e Fabrizio e Huang vinham de pé, sobre a amurada, com laços de corda e revólveres nas mãos.

Mão de Onça pressentiu o perigo, gritou Cuidado! e atirou-se n'água, justo quando uma bala passava raspando à sua cabeça.

A lancha fez a abordagem do Catamaran, ficaram lado a lado, o mastro do Catamaran foi lançado, Fabrizio e Huang pularam dentro do veleiro.

Berenice foi agarrada por Ângelo Fabrizio, que lhe borrifou um spray de clorofórmio no nariz, fazendo-a dormir. Huang ia agarrar e borrifar o gordo, nisso o Pirata, que achava ruim até quando a Berenice encostava a mão no gordo, pulou no pescoço do chinês e deu uma dentada de tigre: separou o chinês em dois, a cabeça de Huang rolou na lona do Catamaran e o corpo descabeçado caiu no mar, junto com o Pirata.

Mão de Onça nadava contente, ele gostava duma guerra, acertou um tiro no coração de Ângelo Fabrizio: o italiano morreu e caiu no mar.

Teng veio lá de dentro com uma metralhadora portátil, apoiou-se na amurada da lancha e começou a matraquear tiro n'água, tentando atingir Mão de Onça.

Pirata nadava; o gordo mais que depressa ajudou-o a subir no Catamaran, dizendo:

— Boa Pirata, gostei dessa, cortou o amarelinho em dois. Agora pula na lancha e rança os grogromilo daquele outro japa. Isca! Isca, Pirata!

A lona do Catamaran ficava mais baixo que a amurada da lancha; Pirata tomou impulso e saltou sobre a lancha, mas o veleiro dançou, por causa de uma marola, Pirata perdeu o ponto de apoio errou o bote, caindo de lado dentro da lancha.

Mão de Onça dera um mergulho para passar embaixo da lancha e pegar o chinês da outra parte, de surpresa; Teng aproveitou a derrapada do Pirata e pipocou metralhadora no cachorro. Pirata foi atingido e rolou, uivando de dor. Mão de Onça aparecia do outro bordo e deu dois tiros no chinês, um pegou no ombro e outro tirou uma lasca da cabeça; mas esse chinês era guerreiro, virou sua metralhadora e matou Mão de Onça.

O bom guarda-costas caiu no mar, o corpo furado, sangrando por muitos buraquinhos.

O gordo abaixou-se e pegou o revólver que caíra da mão de Huang ao ser descabeçado por Pirata.

Bolachão nunca tinha treinado tiro-ao-alvo, lembrou dos filmes da

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televisão, fez que nem as Panteras, esticou o braço direito, fechou um olho, apoiou o braço direito no esquerdo, mirou as costas de Teng, que estava matando Mão de Onça, e atirou três vezes.

A pontaria do gordo era ridícula, só conseguiu acertar uma gaivota que voava junto com um bando delas.

O chinês virou-se para o gordo, com um sorriso zombeteiro nos lábios; tinha ordem de não matar as crianças, ia só dar uma bordoada e desmaiar Bolachão para levá-lo a Ship O'Connors.

Mas a bala de Mão de Onça, que tirara uma lasca da cabeça de Teng, fez com que o chinês perdesse a memória. Chegou para o gordo com a metralhadora na mão e perguntou:

— Quem eu sou? Onde estou? O gordo subiu na lancha, tirou a metralhadora do chinês e falou: — Você é uma jaca que fugiu da jaqueira. Volte já para a jaqueira sua

jaca safada! O chinês olhou em volta, procurando a jaqueira; na sua cabeça a

memória lutava contra a falta de memória. A amnésia vinha, voltava, a memória voltou. Teng tirou a metralhadora do gordo e falou:

— Eu não sou jaca. Eu sou Teng. Mãos ao alto, eu vim raptar você, não, não, eu sou jaca, quero voltar pra minha jaqueira.

O gordo reparou que a amnésia voltara, mas naquele vaivém — o cérebro do chinês parecia um fliperama com curto-circuito — a luzinha da memória podia acender de novo. Apressou-se em tirar a metralhadora de Teng e disse:

— Bota o olho neste buraquinho que você vai ver cineminha. Hoje tem filme bão.

E pôs o olho no buraco do cano da metralhadora. — Hoje tem filme bão — repetiu o chinês. — Esse filme chama Bye-Bye Brazil — disse o gordo. E apertou o

gatilho da metralhadora. Pulou miolo da cabeça de Teng que dava para fazer uma fritada

completa. O chinês caiu no mar. Era uma sangueira no oceano, boiavam os cadáveres de Ângelo Fabrizio,

de um chinês sem cabeça, de Mão de Onça e de Teng, tudo furado de bala; na lancha, o Pirata, ainda vivo, sangrava muito, e na lona do Catamaran, conforme as marolas, a cabeça de Huang ia para lá e para cá, feito um mamão: uma cena como o diabo gosta, pior que briga de marido e mulher.

Berenice dormia na lona do Catamaran, o gordo ajeitou a nuca dela no salva-vidas, trouxe cuidadosamente o Pirata para o veleiro, olhou para a cabeça de Huang, pôs o pé direito embaixo, levantou, matou no peito, baixou na lona e meteu um sem-pulo. Ajudada pelo vento, a cabeça foi cair dentro da feijoada de um farofeiro que estava tomando Skol em latinha e emporcalhando a praia de Ilha Bela.

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O gordo desamarrou as cordas, pegou no leme, puxou a vela, orçou em direção a leste e voltou para a Praia das Cigarras.

A Berenice não precisava de médico, apenas dormia com o clorofórmio, foi levada para cama; quem estava em perigo era o cachorro.

O veterinário foi chamado, trouxe os instrumentos, armaram uma mesa, deram oxigênio e anestesiaram o Pirata, tiraram as chapas de raio X e a cirurgia começou.

O gordo se encostava na borda da mesa, olhando. O tempo passava, o veterinário abrindo com bisturi o corpo do Pirata,

extraindo as balas grandes da metralhadora, costurando lá dentro. — Levou uma bala na bexiga com ela cheia, não vai resistir — disse o

veterinário. — A bexiga explodiu. O Pirata soltou o último suspiro e morreu. As lágrimas escorriam pela cara do gordo que relembrava na memória os

episódios que viveu junto ao cachorro querido, o tempo em que o Pirata era recém-nascido e o gordo dava mamadeira para ele, o primeiro dia que ele latiu, foi tão engraçado, essas recordações que um cachorro deixa no dono.

Foi enterrado junto ao pé de pitanga com a inscrição em mármore:

PIRATA Cachorro Valente

1977-1980

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11 As aulas recomeçaram no dia quatro de agosto. Volta de férias é um acontecimento alegre, um pergunta para o outro o

que fez, os desinibidos se abraçam, os encabulados sorriem, os entusiasmados dão uma palmada nas costas da gente que quase arranca o pulmão fora, os mentirosos contam mentiras de férias, sempre mais ornamentadas que as mentiras de rotina, a primeira aula é cheia de cochichos.

E o semestre começou, vai pra casa, estuda, faz lição, volta pro colégio; o Godofredo, todo dia, levava uma rosa para a professora Jandira.

O professor de matemática ficou com ciúme e deu zero para o Godofredo.

No dia doze de agosto, quando ia para a escola, o carro do, gordo foi fechado e atacado, assim como o Passat que o escoltava.

Os guarda-costas eram treinados mas quem atacou era melhor; em alguns segundos o Generoso, o Serapião (que substituíra Mão de Onça) e Artemísio estavam mortos e o gordo amarrado dentro de uma perua Caravan.

Berenice, Edmundo, Pituca, Biquinha, Mariazinha, Godofredo, Sílvia, Vera Xavier e Zé Tavares foram também atacados e presos.

Outros raptos houve naquele dia, no Mackenzie, Rio Branco, Bandeirantes, Pueri Domus, Morumbi, Dante Aleghieri, Vera Cruz, Santa Cruz, Ofélia Fonseca, Rainha da Paz, Porto Seguro, Santo Américo, Sion, Assunção, Lourenço Castanho: Ship O'Connors estava precisando de sangue e atacava doidão.

Houve uma reunião de pais e mestres no Salão de Convenções do Anhembi, com quarenta mil mães, para discutir a redação de um manifesto a ser mandado ao governo.

Sobre a finalidade do manifesto todas estavam de acordo: era pedir providências ao governo para proteger as crianças paulistas, encontrar as raptadas, prender os bandidos e dar um basta.

As mães chegaram muito educadas, elegantes, gentis entre si; a coisa virou bagunça na hora de escolher as palavras do manifesto.

A mãe do Biquinha achava que devia escrever assim, a mãe do Godofredo opinava que o manifesto devia ser agressivo, a mãe dum outro achava que tinha que ser moderado, uma outra mãe achava que não devia ser nem agressivo nem moderado, uma mãe dizia que não devia chamar o presidente da república de Vossa Excelência, a mãe da Sílvia dizia que o manifesto tinha que ser curto, a mãe da Mariazinha falou que tinha que ser longo, atacando o governo, uma mãe disse que aquela reunião era coisa de comunista, uma mãe que tivera quatro filhos raptados chorava, apesar de

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reconhecer que com aquilo estava fazendo muita economia, e os quatro viviam dando patada um no outro, com o que a casa acalmara, agora podia escolher o programa de televisão que ela preferia, que detestava criança, mas pariu, pariu, tem que gostar, por isso, chorava, a redação do manifesto continuava, todas querendo olhar por cima do ombro da que escrevia, não concordavam na colocação dos adjetivos, nem dos pronomes, muito menos dos advérbios, cada uma queria sua idéia, o sangue foi subindo, começaram a dar indiretas, apartes sarcásticos, começaram a ofender, ficaram histéricas de tudo.

Vocês sabem, vocês já viram, reunião de pais e mestres, com duas mães presentes, ninguém agüenta, imagine aquela, com quarenta mil — o desgraçado que inventou a Reunião de Pais e Mestres deu uma contribuição inestimável para a discórdia humana; das ofensas passaram às bolsadas, uma mãe dando bolsada na outra, o Shopping Center Iguatemi instalou uma barraca para ir vendendo bolsas. Quando uma mãe esfrangalhava a sua bolsa na cabeça de outra, ia na barraca, assinava um Cheque Especial Banespa, comprava outra bolsa e voltava para a batalha.

Depredaram o Palácio das Convenções do Anhembi. A Central de Polícia mandou um batalhão de choque, acostumado a

enfrentar terrorista, acontece que mãe brava é muito pior, o batalhão de choque levou uma surra das mães, as bombas de gás lacrimogênio e as bombas de efeito moral adiantaram nada.

A polícia derrotada, as mães saíram em passeata, cruzando a cidade, pegando a Tiradentes, a Ipiranga, a São Luís, o Viaduto Maria Paula, desbocando no centro, e fizeram um comício.

Em São Paulo estava todo mundo gritando, jogando papelzinho dos edifícios; o comércio fechou.

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12 A criançada ficou presa num alojamento subterrâneo. Ship O'Connors

fazia a contagem das crianças como quem conta cabeça de gado. Um ajudante anotava num caderninho. — Olha lá — disse a Berenice. — Aquele velho orelhudo não esteve na

sua casa na festa de São Pedro? — Esteve — disse o gordo. É um americano, chama Shipo Croma, um

negócio assim, um amigo do pai. Berenice foi até onde estava Ship O'Connors, um capanga quis agarrá-la,

Ship fez um gesto que deixasse passar. — Sim senhor, seu Shipo Croma, você tem coragem de ir na nossa festa

e ainda manda raptarem a gente? Ship O'Connors sorriu: — Dona Berenice, é um prazer revê-la. A festa de vocês estava

agradável. Só que, no ano que vem, não soltem balão, é ilegal. E continuou contando as crianças. De noite foram levados para três aviões rumo à Amazônia. Os aviões levantaram vôo, foram voando baixinho para não serem

sinalizados pelo radar, a aeronáutica estava alerta e as saídas de São Paulo bloqueadas.

Depois embicaram para cima, viajaram normal e desceram na clareira da floresta.

Chovia, as crianças de lá estavam dormindo em seus galpões. Ao contrário do início dos seqüestras, quando Ship O'Connors deixava voar de dia, agora só voava de noite.

Foram recebidos por Der Moltzer, o holandês de avental, que os encaminhou a um galpão que tinha o letreiro: Galpão de Estadia Provisória.

— Vocês vão dormir neste galpão. Amanhã faremos os exames de sangue.

Entraram no galpão e foram se acomodando nas redes. — Miau. — Quem está imitando gato aí? Não é hora para brincadeiras — falou

Der Moltzer. — É o Asdrubal. Fui raptada junto com o gato. A Berenice dormiu numa rede ao lado da rede do gordo. A chuva rebatia forte no telhado de brasilit, baratas amazônicas

passavam voando e faziam um barulhão, havia choros abafados em alguns cantos.

Pela manhã deram a volta na fileira de trás dos galpões, alcançaram o pátio, foram passando pelos galpões com letreiros de tipos de sangue,

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passaram pela gaiola da sucuri, que olhou para o gordo gulosa, acompanhou o gordo com o olhar, como quem saboreia um bípede bem cevado.

Entraram no refeitório repleto de crianças que tomavam a refeição matinal.

Nadia estava sentada numa mesa, junto com o Paulo, o Alcides, o Hugo Ciência e a Simone. Ao ver o gordo ficou surpresa:

— Ê meu primo. Oi gordo! Ei gordo! Senta aqui. O gordo, a Berenice, o Biquinha e a turma do gordo foram buscar a

bandeja e sentaram perto de Nadia e dos amigos dela. Nadia apresentou o gordo para o Paulo, o Hugo Ciência e a Simone: — O gordo é o menino mais inteligente que eu já vi. Hugo Ciência ficou

arretado com a observação e perguntou ao gordo: — Meu QI é 250. Qual é o seu? O gordo, que tinha a boca cheia de pão com geléia, falou para a Nadia: — Quem é esse pateta? A Nadia explicou o que que era o Hugo Ciência, depois fez um resumo

da vida de lá. Hugo Ciência que estava mordido para mostrar o seu QI, falou: — Do ponto-de-vista ecológico há vantagens evidentes de viver aqui. Ar

puro, água pura do poço artesiano, comidas sem misturas químicas. Em São Paulo, se querem dar sabor de baunilha a seu sorvete eles põem piperonal, que é também usado para matar insetos. Se querem dar sabor de abacaxi, colocam ácido de etila, que é um solvente plástico que atinge pulmões e fígado. Em geléias e sucos de fruta, lá em São Paulo, usa-se o polivinilpirrolidone — P.V.P. — que é um veneno, mas dá sabor à geléia e ao suco. O boi é engordado artificialmente com hormônio que faz homem virar mulher e mulher virar homem. Em resumo, eu diria. . .

— Ainda bem — interrompeu o gordo. — Isso me deixa aliviado. — De estar aqui? — Não, quando eu voltar para São Paulo posso continuar a comer oito

bifes por refeição. No número par eu sempre viro homem de novo. Todo. mundo riu, todo mundo se esbaldou com a graça do gordo. Quando um sujeito leva uma gozação e não tem resposta pronta, é

doloroso. Hugo Ciência repuxou lá de dentro os seus 250 pontos de QI, suou pela

testa, e não soube o que dizer. Redimir, do alto falante, declarou encerrado o "bréquifastchi" e mandou

os novatos esperarem na porta, para o exame de sangue. Ao sair, os ajudantes de cozinha entregavam a cada criança a matinal pílula super-diversificada contra doenças equatoriais.

A fila dos recém-chegados seguiu o holandês até o Galpão Laboratório. Hugo Ciência foi para um outro lado, andando e pensando. Subitamente

achou, não uma, mas cento e vinte respostas espirituosíssimas, finíssimas,

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para replicar a gozação do gordo, teve vontade de correr até onde o gordo estava e dizer, por exemplo: "pelo seu jeitão parece que você foi raptado quando estava no sétimo", ou uma outra das cento e vinte que seu QI computou, cada uma mais engraçada que a outra. Mas passara o momento, e isto, em gozação, meus amigos, é irremediável.

A fila andava, a sucuri olhava o gordo de longe, apaixonada, feito o artista que, num repente, descobre a vocação de sua vida.

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13 Com o aumento de crianças raptadas, o dr. Woodward não dava conta de

atender; havia mais dois médicos, o dr. Fritz Von Kramer, lente da Universidade de Munique, e o dr. Karl Hans, que se formara recentemente e estava fazendo estágio.

Eram três filas, uma para cada médico, o gordo esperou uma hora na sua, entrou, o dr. Fritz Von Kramer picou-lhe o dedo, pôs o sangue na plaqueta, misturou os reagentes e exclamou:

— Über Alles! Que hemoglobina! Woodward veio olhar no microscópio e ficou admirado. — Sangue riquíssimo, o Ship tinha razão. O alemão preencheu a ficha com o nome do gordo, data de nascimento,

tipo de sangue — O negativo — e observações sobre a opulência da hemoglobina.

Bolachão tirou a roupa, ficou só de calção e descalço, ganhou o bastão repelente, era quinta-feira, 13 de agosto, ficou marcada sua doação de sangue para as quartas-feiras às 9 e 20.

Berenice conversava com Nadia e Simone à beira de uma das piscinas. — Simpático esse Alcides — disse a Berenice. — Ele me deu uma

borboleta linda. Pena que o Asdrubal comeu. — O Alcides é um avião — falou a Simone. — Todas aqui querem

namorar com ele mas dizem que deixou namorada em São Paulo e é muito fiel.

— Eu, graças a Deus, trouxeram meu namorado junto — disse Berenice. — E o seu caso com o Biquinha? Foi muito comentado em São Paulo. — Foi no tempo do Caneco de Prata, fiquei deslumbrada um pouquinho,

só foi isso, só isso. No pátio, nas outras piscinas e nos campos de esporte, quatro mil

crianças corriam, falavam, gritavam, igual o recreio de uma escola imensa. De vez em quando passava um e dizia oi, Nadia e Simone respondiam oi.

O Hugo Ciência se aproximou acompanhado do Alcides. O Hugo ficou olhando a Berenice, fascinado, piscando os olhos atrás das lentes grossas, e recitou:

"Vejo-te bela, estátua da loucura Erguendo no ar a mão nervosa e fina" — Até que ele sabe fazer um galanteio — disse a Berenice, rindo. — De

quem é o verso? — Bilac. O Alcides pulou na piscina e chamou as meninas: — A água está ótima, ainda não esquentou, venham nadar. Você

também, poeta.

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As meninas deram um mergulho elegante, o Hugo Ciência pulou, todo destrambelhado, e ficaram conversando dentro d'água.

A Berenice nadou um pouco debaixo d'água para refrescar a cabeça e apareceu do outro lado do Alcides.

— Não me conformo com este calção que deram para as meninas, largão, feio, igual ao dos meninos. Um biquíni seria melhor.

Chegaram o Paulo, o gordo, o Edmundo, o Biquinha, a Mariazinha, a Sílvia, o Godofredo, o Zé Tavares e a Vera Xavier.

— Como essa areia dura queima o pé — falou Edmundo. — Eu, para vir do galpão até aqui foi um suplício.

— Logo forma a crosta. Pularam na piscina, o gordo ficou boiando, manzanzando, olhando o céu. — Essa fazendola do Shipo Croma não é de todo má — disse o gordo.

— Está faltando uma lanchonete. — É verdade que você matou um italiano e dois chineses com

metralhadora? — perguntou a Simone. O gordo, boiando, muito príncipe, respondeu: — O povo sempre aumenta a valentia da gente. Matei um só, mas esse

eu matei bonito. — Não seja modesto — disse Pituca. — Você matou dois, esqueceu da

gaivota. Hugo Ciência convidou o gordo para um xadrez sem tabuleiro, ali na

piscina, oferecendo as brancas para Bolachão. — É um jogo meio cretino — disse o gordo, boiando e olhando o céu —

coisa de debilóide, mas já que é para passar o tempo lá vai: peão 4 rei. — Peão 4 rei — disse Hugo. — Quer que eu te mostre o acampamento? — disse Alcides para a

Berenice. — Tem a granja, o pasto, o pomar, o abatedouro, a serraria, e um pedaço bonito da floresta que a gente não vê daqui, onde os macacos se reúnem para brincar, fazem coisas engraçadas.

— Vamos — disse a Berê. — Vocês querem vir? — Não, a areia está muito quente. O Alcides e a Berê foram dar uma volta no acampamento, o Asdrubal ia

seguindo a Berê, o gordo continuava a partida com o Hugo, os outros conversavam aquele lengue-lengue de piscina.

— Torre 7 cavalo, xeque — disse o gordo. — Rei 1 torre. — Torre come peão, xeque — disse o gordo. Hugo Ciência balbuciou: — Derrubo o rei. Desisto. Você ganhou. — É — disse o gordo, boiando, com os olhos semi-cerrados. — Deve haver alguma coisa errada neste jogo — disse o Hugo. — Vou

refazê-lo no galpão de jogos. Não acredito. Nunca perdi. E lá foi o Hugo Ciência para o galpão de jogos, olhando para o chão e

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falando sozinho. Dali a meia hora tocou o almoço, almoçaram, estava excelente, ficaram

matando o tempo até às três da tarde, quando vinha o esporte obrigatório. Der Moltzer dirigia os meninos e Ormoz Ahmadi, um iraniano que fora

da guarda do Xá, dirigia as meninas. O gordo foi jogar minitênis, cada um entrou em seu esporte, acabou o

esporte, tiveram tempo livre, depois jantar, depois tempo livre, depois dormir, e entraram no trem-trem da vida de lá.

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14 A sexta-feira passou sem novidade. No sábado, por uma infração

disciplinar, Der Moltzer condenou uma menina, a Raquel, a ser comida pela sucuri.

Der Moltzer não tolerava gente revoltada, e a Raquel, que morava no galpão B positivo, espalhara a idéia de uma greve de fome que só acabaria quando todos fossem libertados e mandados de volta para casa.

Um capanga ouviu e contou ao holandês. — Vamos passar à leitura da sentença — disse Der Moltzer. — A

menina Raquel Pires de Toledo, por desrespeito ao parágrafo quinto, item terceiro de nosso regulamento, vai ser comida pela sucuri.

Raquel estava ladeada por dois capangas fortes e chorava. Edmundo interrompeu Der Moltzer:

— Protesto! Ela devia ter direito à defesa. Onde estão as provas contra a menina?

— Registrado o protesto — disse Der Moltzer. — Passemos à música triunfante.

O dr. Fritz Von Kramer, de paletó escuro e gravata, a cara muito vermelha, tocou a abertura do Tannhäuser.

A wagneriana música guerreira ecoou seus acordes teutônicos no coração da Amazônia.

Alcides falou para a Berenice: — Antes não tinha sentença nem música para ser comido pela sucuri.

Der Moltzer jogava a criança lá dentro e pronto. — Foi depois que esse alemão chegou — disse Paulo. O sol estava forte, muito calor, há três dias não chovia, as quatro mil

crianças faziam uma roda se acotovelando em volta da gaiola. Fritz Von Kramer, o ar beato, terminou o Tannhäuser, enxugou o suor da

testa, sendo cumprimentado pelo dr. Karl Hans. — Você esteve magnífico, Fritz! A sucuri se estendeu de comprido, os olhos soltando faísca. — Nunca vi ela nessa posição antes — falou Ormoz Ahmadi. — Nem eu — disse Der Moltzer. — Ela costuma levantar a cabeça e pôr

a língua de fora. — Deve ser o calor. Os capangas trouxeram a Raquel, Der Moltzer abriu o cadeado, a sucuri

não se movia, nem olhava Raquel, olhava o horizonte, jogaram Raquel na gaiola, foi quando a sucuri, igual um foguete, feito um busca-pé, se esgueirou pelo vão da porta, saiu chispada e destambocou no pátio.

Foi o sai-da-frente, foi o bambaquerê: as quatro mil crianças, os

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capangas, os ajudantes, os jardineiros, os cozinheiros, os marceneiros, os mecânicos, os telegrafistas, os eletricistas, correndo, tropeçando, levantando, pulando, gatinhando, se esbarrando, uns dizendo me acuda, outros dizendo me ajuda, o maior fasta-fasta do planeta, se o dono do hospício estivesse ali dava nota dez para todo mundo.

Mas a sucuri corria na direção do gordo, o gordinho que ela sonhava. Bolachão, quando viu que era o dono da festa e que a minhoca de doze

metros verde-preto-azeitonada rastejava a mil por hora em cima dele, deu meia-volta e correu como um silvícola, tremelicando banha, suando feito um desgraçado, a sucuri no calcanhar dele, o suor do gordo chegava ao nariz da sucuri como o cheiro de um molho divino, lá dentro dela o suco gástrico já trabalhava para digerir o pitéu, toque-toque o gordo corria, zipe-zipe a sucuri atrás, ela sorria e babava, o gordo suava e xingava.

"Logo comigo" — pensou o gordo. "Que que eu fiz? É o fim". Chegaram na cerca, o gordo estava perdido, por trás a cobra e na frente o

arame eletrificado em alta voltagem, mas tem horas que a gente não pensa, o gordo avançou na cerca, ela não deu choque, Der Moltzer mandara desligar, temendo pela sucuri, o gordo subiu puxavante, a sucuri subiu atrás, se enviesando nos ferros, o gordo desceu do outro lado, a sucuri atrás, o gordo correu para a floresta, os macacos olhavam curiosos aquela disparada maluca, um macaco velho pensou "xê mundo sem porteira", o gordo ia entrar na mata, sentiu uma dor no baço, estava cansado, a sucuri pegou o calcanhar, o gordo tropeçou, a sucuri enrolou nele, nhof, o gordo empurrando como podia o nó da cobra para aliviar-se, ia se asfixiando, ela concentrou-se, ia dar o apertão quebra-costela, houve um Pum!, era uma bala soporífica que Der Moltzer atirou na sucuri.

Ela afrouxou o nó e dormiu, com um sorriso de bela adormecida, nos braços de seu amado.

O gordo estava deitado na areia com a cobra enrolada em volta, só se via a cabeça e os pés de Bolachão.

Pituca brincou: — O gordo é um presente de Natal embrulhado em papel azeitona e

pronto para entrega. — Não — disse Redimir. — Você está errado. — O que ele é? — perguntou Pituca. — Ele é o menino que a cobra não comeu. E ficou rindo da sua graça de cozinheiro baiano. Der Moltzer e os capangas desenrolaram a sucuri, o gordo ia virando,

virando, conforme eles puxavam a cobra, virou, virou, até que rolou solto na areia, pê da vida, com uma cara de quem diz prá cobra ô meu vê se me esquece.

Der Moltzer fez festinha na cabeça dela, foi dizendo coisas carinhosas no ouvido da sucuri e a levaram para a gaiola.

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Colocaram a sucuri e tiraram a Raquel. — Você fica presa até amanhã. Quando a sucuri acordar, ela te come. — Dois meninos aproveitaram o desligamento da cerca e fugiram para a

floresta — disse Ormoz Ahmadi. — Vão morrer — disse Der Moltzer. — Da floresta amazônica ninguém

escapa. De noite caiu a chuva equatorial, o céu encheu de relâmpagos, trovões, a

chuva batia, muitas crianças rezavam, um raio derrubou uma árvore de oitenta metros na orla da clareira, dando um estrondo, fazendo o chão tremer.

Domingo amanheceu ensolarado, levaram a Raquel para a gaiola, Der Moltzer releu a sentença, Fritz Von Kramer tocou a abertura de Tannhäuser, os capangas seguravam a Raquel, a sucuri se estendeu de comprido, os olhos soltando faísca, olhando o horizonte.

— Eu acho que já vi esse filme — disse Pituca. — Vamos esperar o gordo lá na cerca, é o pedaço mais interessante.

Der Moltzer, para evitar o repeteco, mandou uns capangas segurarem a cobra com varas de forquilha enquanto abria a porta e jogava Raquel na gaiola.

A sucuri não fez movimento, continuou deitada de cara triste, jururu, bestona de tudo, ao lado da Raquel.

— Ela está com "gordite" — falou Fritz Von Kramer. — Fixação histérico-patológica no gordo, não aceita outra comida. Vai morrer de fome.

— Dê o gordo para ela — falou Ormoz Ahmadi. — Não faça o animal sofrer inutilmente. Isto preservará o equilíbrio ecológico da Amazônia.

— Tragam o gordo — falou Der Moltzer. Pegaram o gordo, trouxeram, a sucuri levantou a cabeça, ficou acesa. Fritz Von Kramer deu um grito: — De jeito nenhum! O Ship O'Connors mata a gente. O gordo representa

um capital de vinte bilhões de dólares. O sangue dele é especial, será vendido pelo décuplo do preço no exterior.

— Vocês só pensam em dinheiro — falou Ormoz Ahmadi. Às onze e trinta chegou o Boeing, o entretenimento semanal

da criançada. Os capangas e os serventes levaram para o avião os frascos congelados de sangue infantil, puseram nas geladeiras do avião e, depois do almoço, o Boeing voou para a Europa. Pituca chegou para o gordo e disse:

— É, o Redimir tinha razão, você está com cara do menino que a cobra não comeu.

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15 A Berenice começou a namorar o Alcides. Amor é assim, quando a gente

pensa que está tudo azul, vem um lambisgóia e leva a namorada da gente. — Você devia ter mais responsabilidade — disse a Mariazinha. —

Coitado do gordo, matam o cachorro dele, a sucuri corre atrás dele, e agora você, de novo. . .

Berenice pôs a mão no queixo e falou: — Você já viu uma corrente marítima? A gente quer nadar para lá, a

corrente puxa para cá, a gente faz força para nadar para lá, a corrente continua puxando para cá, e vamos indo, para dentro do redemoinho.

— Metáfora lamentável — disse Pituca. — Vamos namorar um pouco? — perguntou a Berenice para o Alcides. — Vamos. — O chato é que ninguém tem toca-fita neste acampamento — disse a

Berê. — Eu gosto de namorar com música. O Hugo Ciência ia passando, a Berenice chamou: — Hugo Ciência! Ô Hugo Ciência! Vem cá. — Que é? — Você sabe todas as poesias de todos os poetas? — Sei. — Então eu vou andando com o Alcides na frente e você vai atrás

recitando poesia. Precisa declamar com emoção, com ritmo. — Tá. A Berenice, de mão dada com o Alcides, foi para o lado do pomar. Hugo

Ciência vinha atrás, recitando: "Este amor que vos tenho, limpo e puro De pensamento vil nunca tocado Em minha tenra idade começado Tê-lo dentro nest'alma só procuro." — Deixa de ser burro Hugo! — disse a Berê. — Isso é poesia do tempo

da vovozinha. Bota aí uma coisa moderna. Hugo Ciência obedeceu e recitou com ênfase, abrindo os braços, olhando

para cima através das lentes grossas de seus óculos: "Eu quero nunca te deixar Quero ficar Preso ao teu amanhecer."

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Uma fofoca imensa invadiu o acampamento. Como ninguém tinha nada o que fazer, todo mundo ficou bisbilhotando

sobre o fato da Berenice ter largado o gordo e começado a namorar o Alcides. Não se falava em outra coisa.

— Eu resolvia isso é na faca — falou um menino. Duas meninas saíram aos tapas porque uma defendia a Berenice e a outra

dizia que a Berenice não prestava. Até entre os bandidos o assunto era aquele. O dr. Karl Hans disse para o dr. Fritz Von Kramer:

— A Berenice largou o gordo. Fritz Von Kramer, que olhava no microscópio, empurrou o microscópio

e sentou na cadeira, de olho arregalado: — Não me diga! Como? Por que? Quando? Com quem? — O Redimir é que sabe direito. Vou chamá-lo na cozinha, ele vai

contar. — Chame depressa que eu estou impaciente — disse Fritz Von Kramer,

roendo as unhas. Juntou no laboratório os dois médicos alemães, o dr. Woodward, Der

Moltzer, Ormoz Ahmadi, o marceneiro, os telegrafistas, o mecânico, o serralheiro, os mateiros e mais uns vinte deles. O Redimir chegou.

— Vai contando, baiano — falou Fritz Von Kramer. — Mas conta com clareza, nada de rodeio, conta rápido, eu estou morrendo de curiosidade.

Redimir se acocorou, cocou a orelha e contou: — O seguinte é esse, ele não deu um nadinha de motivo para ela poucar

com ele. .. — Ele quem? — perguntou Fritz Von Kramer, mas o baiano continuou: — Da vez que ele chegou, ela estava normalmente com ele. . . — Ele quem? — Como de fato, ela não tinha na mente por destrocar, mas surge ele. . . — ELE QUEM? — Surge ele, pro desfrute, deu uma passadinha lá, perante ele, e ela saiu

com ele. . . O alemão teve um acesso de loucura, ficou gritando "e!e quem?", "ele

quem?", saiu correndo pelo pátio, dando cambalhota, imitando macaco, falando que nem arara, zumbindo que nem mosquito.

— É a loucura amazônica — disse o dr. Woodward. — Logo passa.

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16 Chegou quarta-feira, às 9,20, o gordo se apresentou no Galpão

Laboratório para doar sangue. O dr. Fritz Von Kramer, curado da loucura amazônica, deu-lhe bom-dia,

deu-lhe uma bala de limão, deitou-o na mesa com a cabeça inclinada para trás, passou algodão com álcool no pescoço, do lado direito, ajeitou o frasco receptor, o tubo, a agulha, mas falou:

— Esse gordo tem tanta banha que a jugular dele fica escondida, não dá presa, a agulha não vê. Ponha a cabeça mais para trás, gordo.

O gordo deitou a cabeça fora da mesa, virada para o chão, a cabeça ficou vermelha, foi inútil, a jugular não aparecia. Fritz Von Kramer pensou:

"O único jeito de salientar a jugular dele é fazê-lo ficar bravo. Quando a pessoa fica irritada, o coração bate depressa, injeta sangue na circulação e incha a veia."

O gordo continuava deitado, a cabeça virada. Fritz Von Kramer deu um beliscão na coxa do gordo e falou: — Gordo maricá. Gordo fedido. GORDO CORNO! O gordo ficou uma vara, especialmente pela última ofensa, o coração

disparou, toim-toim, a veia inchou, a jugular apareceu no pescoço, o médico aproveitou e enfiou a agulha.

O sangue do gordo, vermelhinho, começou a correr pelo tubo e a cair dentro do frasco.

Fritz Von Kramer esfregava as mãos, contentíssimo, assobiava Tannhäuser, admirando a beleza colorida do sangue em movimento.

O frasco encheu, o médico disse muito obrigado, pôs um esparadrapo no pescoço do gordo e falou:

— Pode levantar. Daqui a uma semana, no mesmo horário, sem falta. O gordo saiu, no pátio havia uma bonita revoada de borboletas trazidas

da floresta pelo vento. Nadia estava jogando amarelinha, o gordo chegou perto dela e falou: — Não agüento mais essa zurrapa aqui. Esse alemão-batata-come-

queijo-com-barata vai pagar, isso vai. Sabe o que eu vou fazer um dia? Vou jogar ele num caldeirão de água fervendo. Não. Isso não basta, é vulgar. Vou cortar os braços e as pernas dele com serrote, furar os ouvidos e os olhos com uma agulha de tricô, cortar a língua com uma tesoura, e depois deixar ele viver, cego, surdo, mudo, sem braço, sem perna, como um toco de árvore. Não perde tempo por esperar. Doutor Toco de Árvore, Rá, Rá.

A Nadia riu: — Mas que loucura, gordo. Vai ser um bocado chato viver assim. — Doutor Toco de Árvore — repetia o gordo, mordendo os dentes. —

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Cego, surdo, mudo, sem-braço-sem-perna. A Nadia ria, olhava as borboletas, andaram junto um pedaço, o gordo

falou: — Tenho um plano para derrotar os bandidos e escapar daqui. Acho que

vai dar certo. — Qual é? — Chame a turma e vamos conversar na última piscina da esquerda. Mas

só a turma, hein? — Vou indo. O gordo caminhou até a última piscina da esquerda, havia uma tabuleta:

PISCINA INTERDITADA — e esperou.

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17 Dali a pouco chegaram a Nadia, o Pituca, o Hugo Ciência, o Edmundo, a

Sílvia, a Mariazinha, a Vera Xavier, o Zé Tavares, o Paulo, a Simone, o Biquinha, o Godofredo, a Berenice e o Alcides.

Fizeram uma rodinha, sentados no chão. — Sabem o Galpão Controle Rádio? — disse o gordo. — Sim. — Lá dentro deve ter um mapa do Brasil com a localização exata daqui,

em latitude e em longitude — continuou o gordo. — É claro — disse Edmundo. — De outro modo não conseguiriam

orientar os Boeings para chegar aqui. — Então — disse o gordo. — O Hugo Ciência, que sabe tudo, há de

saber mexer num rádio-telégrafo e mandar uma mensagem. — Eu sei — disse Hugo Ciência. — Um tio rádio-amador me ensinou. — Vamos examinar o terreno — disse o gordo. — A gente dá umas

voltas por aí, olha bem, e tiramos uma conclusão. De noite, depois que todos foram dormir, Bolachão e Hugo Ciência

saíram fora de seus galpões. Dois capangas armados faziam a ronda; como nunca houvera problemas,

estavam desatentos, ao longe, fumando. Chegaram até a janela do Galpão Controle Rádio. Como em todos os galpões havia uma tela contra mosquitos: o gordo e

Hugo Ciência olharam. Viram um japonês sentado em frente ao rádio e ao mapa pendurado na parede. Ao lado do japonês, duas garrafas de uísque, mas o japonês não bebia.

A meia-noite ouviram os passos de alguém que vinha para o lado deles, costeando os galpões.

Os meninos deitaram no chão. Quem vinha era o Bob, tele-grafista americano, para revezar o japonês. Entrou no galpão e o japonês saiu.

O gordo e Hugo olhavam pela janela. O rádio começou a fazer barulho de código. Era uma mensagem. Bob ia anotando. Mandou a resposta. Recebeu nova mensagem e mandou nova resposta.

— Que que houve? — perguntou o gordo. — Ship O'Connors telegrafou de São Paulo, dizendo que chega aqui no

sábado. Pediu para colocarem uma cama de casal no Galpão Presidencial. — E o Bob, que respondeu? — Disse que não havia cama de casal, aí o Ship mandou fazer uma,

bonita, com floreados e capitéis, da melhor madeira da floresta. A meia-noite e trinta e cinco Bob foi ao banheiro, no fundo da sala, ficou

lá um minuto e meio, voltou, sentou em frente ao rádio e tomou mais uísque.

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Na quinta-feira reuniram-se à borda da piscina interditada. O gordo fez um resumo do que viram e disse:

— Devemos entrar quando o Bob vai ao banheiro, pingamos soporífero no uísque dele, ele dorme e mandamos a mensagem para a aeronáutica.

— Mas não sabemos se vai ao banheiro toda noite — disse Biquinha. — Do jeito que ele bebe — disse o gordo — é obrigatório que a bexiga

encha de líquido e precise urinar. — Tem uma coisa errada — falou Berenice. — O que é? — Se ele fica um minuto e meio no banheiro, até vocês entrarem,

pegarem a garrafa, pingar remédio para dormir e saírem, não vai dar. O negócio é levar uma garrafa com soporífero, substituir pela outra, ganha-se um tempo precioso.

Edmundo foi encarregado de trazer o remédio para o sono e a garrafa de uísque.

Ficou rondando o Galpão Farmácia e Mantimentos, do outro lado do pátio, onde também se enfileiravam outros galpões: Galpão Dormitório Serviçais, Galvão Dormitório Chefia, Refeitório Chefia e o Galpão Presidencial, só de Ship O'Connors.

Quando reparou que o campo estava livre, Edmundo entrou no galpão, um monte de prateleiras com remédios, garrafas, latas, sacos de cereais, inseticidas.

Ouviu um barulho e se abaixou: era um rato que descia de uma prateleira.

Edmundo pegou uma garrafa de uísque, foi para o lado dos remédios, tantos vidrinhos, vitaminas, antibióticos, antivermífugos, antialérgicos, antiespasmódicos, analgésicos, finalmente achou os soporíferos, pegou um vidrinho e foi embora.

As crianças resolveram mandar a mensagem sábado à noite, para que a aeronáutica chegasse domingo e pegasse o Ship O'Connors, além de que a vigilância seria fraca, haveria um banquete em homenagem ao chefe, ia todo mundo estar meio bebido.

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18 Sábado, às nove e meia, o jatinho branco surgiu no céu e aterrissou na

clareira. Ship O'Connors desceu e, atrás dele, apareceu um escândalo de mulher

bonita, o acampamento inteiro fez ó. Era Jandira, a professora de Estudos Sociais. Fritz Von Kramer, de terno e gravata, tocou a abertura de Tannhäuser. Der Moltzer, Ormoz Ahmadi e Karl Hans recepcionaram o chefe na pista

de pouso. — A tia Jandira é da quadrilha! — exclamou Berenice. Mariazinha

cutucou Godofredo e falou: — Está vendo aí, seu machista, o teu pezinho, a tua cinturinha, o teu

joelhinho, o teu já ganhou. Uma delinqüente! A professora Jandira estava luminosa, vestia uma saia-calça azul claro,

de tecido ana-ruga, uma blusinha esporte do mesmo tecido, chapéu e bolsa de palha, três correntinhas de ouro de diferentes tamanhos no pescoço e um enorme rubi vermelho no dedo anular da mão esquerda.

Ship O'Connors vinha de sandália e bermuda, uma camisa esperte de seda azul, trazendo na mão a pastinha de executivo.

— Esta é minha esposa Jandira — falou Ship O'Connors. — Casei segunda-feira em Monte Carlo.

— A senhora é a rainha da Amazônia — disse Der Moltzer. Ship O'Connors deu o braço a Jandira e caminharam para o Galpão Presidencial.

Era um galpão como se deve, ar condicionado, geladeira, luz indireta, som estereofônico, poltronas estofadas de gobelin, uma mesa de jacarandá com cadeira reclinável e giratória, tapetes persas e peles de onça sobre o carpete, nas paredes quadros de Clóvis Graciano, Portinari, Carybé, Iberê Camargo, Carlos Scliar, cabeças de bicho empalhadas, estante com livros encadernados em capa de couro, mesinhas de centro com jornais e revistas, televisão com um repertório de mais de quinhentos filmes em vídeo-cassete, um bar com balcão talhado em mogno, outros arreios de luxo e, recém-fabricada, formidável, a cama de casal, os pés em formato de colunas jônicas.

O ar condicionado estava ligado, a temperatura agradável, Ship passou o bastão repelente contra mosquito, tomou a pílula superdiversificada contra doenças equatoriais, colocou música suave na vitrola, perfumou-se, olhou para o pé, acendeu um cigarro estrangeiro, encheu um copo de champagne Taittinger 45, respirou fundo o prazer de viver e perguntou:

— Me amas? — Ora Shipinho, que pergunta.

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— Vamos ter uma reunião importante. Quer dar uma volta? Mando os capangas acompanhá-la.

— Não preciso de capangas Shipinho. Vou tomar um banho de piscina. Vestiu um biquíni amarelo e saiu. Escolheu uma das piscinas, deu um mergulho, nadou, boiou, fez crawl,

fez cachorrinho e sentou-se ao sol, glamurosa, na beira da água. Seus alunos da Escola Três Bandeiras a cercaram. — Tia — falou a Silvinha — você não acha enjoativo dormir com um

velho feio? — Quem ama o feio, bonito lhe parece — respondeu Jandira, — E o

Shipinho é líder, tem magnetismo. — Quando você dava aula para a gente já conhecia o Shipo? —

perguntou Berenice. — Não. Só conhecia a fama dele, as fotos nos jornais. Sexta-feira

passada vi o Shipinho andando na rua Augusta, corri atrás dele, perguntei se queria casar comigo, ele me olhou e disse que sim.

— E eu que estava esperando crescer" para te pedir em casamento — disse Godofredo. — Eu, hum, eu te amo tia.

— Me procure quando for grande — disse, rindo, Jandira. — Quem sabe eu toparei. Levantou-se, fez tchauzinho para o Godofredo e foi dar um passeio no

pomar. — Você não tem vergonha — disse a Mariazinha para o Godofredo. —

Se arrastando por essa enxerida. Mulher objeto! Vadia, capionga, ordinária! Godofredo ficou cismando, olhou para o Pituca e disse: — Veja, o Ship tem 57 anos, a tia Jandira tem 19, a diferença é de 38

anos! Maior que a diferença entre eu e ela, nem se compara. Deixa eu contar, quando eu tiver dezoito, o Ship vai ter sessenta e seis. . .

— Chega com estas contas malucas! — gritou a Mariazinha. — Já estou cheia destas contas, você parece que engoliu a tabuada! — Estou vendo uma menina com ciúmes — disse Pituca. — Quem, eu? — perguntou a Mariazinha. — Como é que você pode

saber? — Passarinho me contou. No Galpão Presidencial Ship O'Connors se reunia com Der Moltzer,

Ormoz Ahmadi, Fritz Von Kramer, Karl Hans, Woodward e Michael Pat, o piloto do avião, um inglês.

— Quero os relatórios dos envios de sangue para o exterior. Trouxeram o relatório, Ship examinou, comparou com o que ele trouxe, trocaram opiniões.

— A venda está aumentando. Vou trazer mais duas mil crianças. — Construiremos novos galpões — disse Der Moltzer. — Não será

difícil, pegamos madeira na floresta. Só precisa mandar vidro para as

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janelas, brasilit para os tetos e arame para as telas anti-mosquito. Pregos temos bastante. Precisamos também de nova remessa de óleo diesel para o gerador de eletricidade.

— Agora tenho um assunto de máxima importância — falou Ship O'Connors. — O sangue das crianças deixa de ter efeito curativo na data exata que completam onze anos. Vira sangue comum, o efeito milagroso desaparece. Quem fizer onze anos vai ser inútil aqui. Alguém faz onze anos este mês?

— Não — disse Der Moltzer. — Mas em setembro, acho que uns quarenta ou cinqüenta fazem.

— Faça uma lista completa, olhando nas fichas médicas — disse Fritz Von Kramer.

— Vamos fuzilá-los? — perguntou Der Moltzer. — Nada de fuzilamentos — falou Ship O'Connors. — Se fuzilamos

quem faz onze anos, as crianças verão que não existe esperança de voltar para casa. Não brincarão mais, ficarão apáticas, perderão o apetite, isto piorará a qualidade do sangue.

— Tem razão, chefe, é necessário manter a esperança. Ship O'Connors acendeu um cigarro e falou:

— Vamos espalhar que, aos onze anos, levamos as crianças de volta para casa. Fazemos uma festinha, acendemos velas num bolo, damos uns presentinhos, cantamos parabéns, fazemos pique-pique e embarcamos eles no Boeing de domingo. No caminho os jogamos no meio do Oceano Atlântico.

— Boa idéia, chefe. — Como vão as pragas na horta e no capim? — É o de sempre, chefe. A cajuçara e a jurubeba. A gente faz o que

pode. — O chefe vai almoçar com a sua esposa aqui no Galpão Presidencial? — Almoçarei no refeitório das crianças, quero ver como anda a comida,

o serviço, o ambiente. Faça selar meu cavalo. Depois do almoço vou dar uma olhada no pomar, na horta, no pasto, na granja, no curral, na serraria e no abatedouro. Apronte meus rifles para amanhã de manhã, quero caçar na floresta, ver se apanho um porco do mato, um veadinho. Levarei os oito mateiros e quatro capangas. A audiência está encerrada.

A turma saiu, Ship O'Connors foi ao bar de mogno, fez um coquetel, Jandira voltou, beliscou um pouco de coquetel e falou:

— Encontrei uns aluninhos meus. São uma gracinha. — E eu, que que eu sou? — Você é meu nhanhão.

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19 Meia-noite e vinte. O gordo e Hugo Ciência saem de seus galpões e vão até a janela do

controle rádio. O japonês já fora revezado, Bob terminava a primeira garrafa de uísque,

à meia-noite e trinta foi ao banheiro, o gordo entrou no quarto, substituiu a garrafa de Bob pela que ele trazia, com soporífero, esvaziando bastante a garrafa nova, para ficar no mesmo nível da outra, que estava no fim.

O gordo saiu com a garrafa de Bob na mão. Bob volta do banheiro, toma uísque, em breve dorme. O gordo e Hugo entram no galpão, param em frente ao aparelho de

rádio: no mapa do Brasil havia um círculo com um ponto no meio, no Pará, entre os rios Turuaçu e Acaraí.

Hugo pegou a régua, mediu as coordenadas e disse: — Aqui está a latitude e a longitude. Vou telegrafar. Primeiro modifico a

freqüência para evitar que a mensagem caia direto no ouvido dos bandidos. Ajustou o aparelho e começou a telegrafar em morse, dizendo que as

crianças raptadas estavam naquela latitude e naquela longitude. Mandou a mensagem dez vezes, ligou a escuta e foi virando o dial,

trazendo devagarinho da direita para a esquerda, depois voltava. Sinais telegráficos de toda parte do mundo se cruzavam na noite, ti-tim,

ti-tim, ti-tim, demorou um pouco e um rádio-amador de Manaus acusou o recebimento da mensagem, pediu para Hugo repetir, ele repetiu, o rádio-amador disse que ia telefonar para a polícia e para a aeronáutica.

Em cinco minutos a aeronáutica entrou na linha, deu parabéns a Hugo Ciência, tomou as coordenadas e anunciou que logo mais, às dez e meia da manhã, tropas aerotransportadas e pára-quedistas invadiriam o acampamento.

Hugo Ciência recolocou na freqüência anterior, o gordo retirou a garrafa com soporífero, pôs de volta a original, deixaram Bob roncando e saíram.

— Até que esses rádio-amadores servem para alguma coisa — falou o gordo. — Sempre pensei que fossem uns lunáticos.

Foram dormir felizes, estavam salvos. Amanheceu um domingo bonito, encomendado para grandes alegrias. Depois do café a turma foi para a beira da piscina. Era oito e meia, havia

tempo. — Céu ideal para pára-quedistas — disse a Vera Xavier. — Estou vendo

eles descerem, homens bonitos. Ship O'Connors saiu para caçar, com oito mateiros, quatro capangas e

um cachorro.

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A porta da cerca de arame é aberta, Ship e sua comitiva vão até o fim do branco da clareira e entram na selva. Dali a vinte minutos ouve-se um tiro.

— Imaginar que hoje à noite estarei em minha casa — falou Nadia. — Que saudade de São Paulo — disse Edmundo. — Amanhã,

atravessando a rua, no meio da barulheira, entrando numa lanchonete. Na Base Aérea de Belém do Pará, o Major Aviador Adriano Meireles

terminava os preparativos. — As transmissões foram feitas em código, Antônio? — Foram, Major. Mudamos de código de meia em meia hora para os

bandidos não interceptarem e nem decifrarem nada. — Quantos pára-quedistas? — Oitocentos, Major. Tropa de elite. Estão alinhados na pista. Nenhum

deles sabe qual é a missão. Só vão ficar sabendo no ar. — Revisou munição? — Munição revisada. — Meteorologia? — OK. — Vamos embarcar. Estudei cinco alternativas de ataque; conforme o

momento, usaremos uma delas. Os aviões da FAB levantaram vôo.

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20 No acampamento, as crianças esperavam, à beira da piscina,

conversando, mergulhando, matando tempo. Um empregado com uma rede na ponta de uma vara retirava insetos da

piscina. — Quero ver se aquele alemão-batata vai tocar o Tannhäuser quando a

aeronáutica desmoronar em cima dele — disse o gordo. — Eu vou dançar um maxixe — falou a Berenice. Volta e meia ouvia-se

um tiro na floresta, as araras e os macacos faziam algazarra, quatro micos curiosos tentaram subir a cerca de arame e foram eletrocutados.

A professora Jandira veio para a piscina, uma corrente de ouro no tornozelo e o enorme anel de rubi no dedo.

— Credo — falou a Berenice. — A tia Jandira está muito cheguei, vir nadar com o rubi.

— Deslumbramento de novo rico — falou a Mariazinha. — Sabe o que ela é? Uma suburbana, uma periférica.

— Ontem ela estava elegante — falou Sílvia. — Não trouxe o rubi para a piscina. Por que será que trouxe hoje?

— Não sei que graça vocês acham de ficar analisando o comportamento desta mulher — falou Mariazinha. — Tem tanta coisa melhor para conversar.

— Aquela correntinha de ouro no tornozelo está compondo bem — disse Nadia. — Leve, fininha, não chama a vista, é só um toque.

— Você tem razão — falou Simone. — É só um toque. Muito gracioso. Mariazinha gritou: — Muda de assunto, poxa! Não güento mais! Que ódio! Jandira pulou na

piscina. — Que horas são? — perguntou Biquinha. — Dez e quarenta — disse Paulo. — Deviam ter chegado. — Vão chegar. A professora Jandira saiu da piscina, passou óleo bronzeador, pediu para

Godofredo passar nas costas dela, Godofredo passou, emocionadamente. Ela pôs óculos escuros, deitou, tostando-se, e falou: — Sabem, eu dei uma idéia ao Shipinho ontem, quando almoçamos no

refeitório de vocês. É desagradável comer com tantos barulhos de vozes, sugeri que mandasse aplicar Eucatex Acústico nas paredes e no teto. Ele gostou da sugestão. Aí eu falei: Shipinho, está faltando um dedo de mulher aqui neste acampamento, o pátio é muito árido, esta brancura, precisa de umas plantas, uns vasos, umas trepadeiras, um caramanchão, você bota umas

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carrocinhas de sorvete para as crianças tomarem, com este calor, faz uns calçõezinhos bonitos para as meninas; homem não pensa nestas coisas.

Um ronco no ar. Era o Boeing da Fresh Blood Corporation que fazia sua escala semanal.

O piloto e o co-piloto descem, os serventes vão colocando as caixas geladas de sangue nos refrigeradores do avião.

Ship O'Connors volta da floresta, com seu chapéu de caçador, o rifle nas costas, os capangas trazendo uma paca e um veadinho, o cachorro pulando contente.

O ponteiro dos relógios virando, as crianças ansiosas olhando o céu, hora do almoço, toca o sino, comem sem gosto, intrigados com a demora da aeronáutica.

Depois do almoço o Boeing foi embora, as crianças se reuniram, Mariazinha chegou:

— Acudam! O Alcides está se enforcando! É no campo de futebol. Foram. O Alcides havia amarrado uma corda na trave superior, fizera um

laço no pescoço e estava pendurado, debatendo-se. Desamarraram. O nó não prendera direito e ele ficara penso pelo queixo.

Estava roxo. Alcides caiu no chão e ficou olhando para o chão. — Coitado — falou a Vera Xavier. — Ele quis se enforcar porque o

socorro não chegou. Está todo mundo nervoso. A Berenice olhou o Alcides, deu-lhe um pontapé: — Eu conheço tua cara. Nestas coisas eu não me engano! Cachorro

traidor! Cão imundo! Judas! E pensar que eu fui gostar de um lixo desses. — Eu me arrependi — chorava Alcides. — Quero morrer, estou

envergonhado, deixa eu morrer. — Conta! — disse a Berenice, dando mais um pontapé no Alcides. — Eu não queria voltar para casa. Se o plano desse certo eu voltaria.

Meu pai e minha mãe são bêbados, vivem batendo em mim, fazendo maldades, me judiando. Só gostam de meu irmão, que também é ruim, não me dá sossego. Meu lar é um inferno, sem descanso, a cada minuto. E isso é um resumo, se eu contasse os detalhes vocês teriam pena de mim.

E chorava. — Conta o resto, seu repugnante! — gritou a Berenice. — Eu fui sincero no começo. Queria o sucesso de nosso plano, mas

ontem à tarde comecei a imaginar a volta para casa, como coisa real, como coisa próxima, apanhar de novo, ser humilhado de novo, o acampamento para mim é o paraíso, aqui eu tenho paz, sabe o que é paz, tenho liberdade, esportes, amigos, sou respeitado. Então, ontem à tarde, procurei o Ship O'Connors e contei-lhe.

Edmundo teve que usar toda a sua força para proteger o Alcides, a turma queria linchar.

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— Dedo-duro! — Delator! — Canalha! Hugo Ciência pediu calma e disse: — Você acusou, muito bem. Acontece que a aeronáutica falou comigo,

eles vieram para cá. — Isso que eu não entendo — falou o gordo. — O Ship fez uma brincadeira com vocês — disse Alcides. — Trocou o

mapa do Brasil, em frente ao telégrafo e assinalou com uma rodinha e um ponto, um outro lugar, longe daqui. O Hugo mandou a aeronáutica para lá.

— Miserável. Caçoou da gente. E era verdade. Os aviões da FAB descarregaram os oitocentos pára-

quedistas na latitude e longitude indicada pelo Hugo e não acharam nada. Deduziram que foi um trote.

— Vamos ser castigados — disse a Sílvia. — Não — disse o Alcides. — Se castigassem, todos ficariam sabendo

que fui traidor. O Ship achou melhor eu ficar espião dele no acampamento, pra contar qualquer plano novo.

— Você pode ser útil — falou o gordo. — Continue fingindo que está do lado dos bandidos e não contou nada para a gente.

O jatinho branco de Ship O'Connors manobrou na pista e se elevou por cima das árvores da floresta.

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21 A semana seguinte foi uma semana triste, o pessoal não se conformava

com o fracasso do plano — estariam em casa se não fosse o Alcides. Faziam mecanicamente as coisas, comer, esporte, doar sangue, quando

sentavam na piscina não tinham assunto. O gordo era o mais sucumbido: ficava de cócoras durante horas, sem se

mexer, desconsolado, desejando ser árvore e tendo raiva que o pensamento pensa sozinho, teria gostado de parar o pensamento também.

O Zé Tavares, que desde que esta história começou não pronunciara uma palavra, falou:

— Pô, que vida chata. O sol, eterno solitário, cujo único divertimento é assistir às maluquices

dos terrenos, iluminava o acampamento só por obrigação, torcendo para a Terra virar depressa e apresentar-lhe uma coisa mais interessante, como a guerra do Afeganistão.

O Alcides trouxe a notícia na quarta-feira: — Quem fizer onze anos vai ser levado de Boeing e atirado no Atlântico.

O Fritz Von Kramer já fez a lista de setembro. O gordo deu de ombro e sorriu sem expressão, imaginando a criançada

despencar lá de cima que nem mamoeiro sacudido. — A pior coisa que tem é desanimar — falou Edmundo. — Não há solução — disse o gordo. — Inventa uma, sua especialidade é essa. Um besouro subiu pela perna do gordo; ele, indolente, ficou olhando o

besouro subir. A Berenice tirou o besouro e falou: — Gordinho, não é só por você, tem nós, seus amigos, tem mais de

quatro mil crianças condenadas. No fim de setembro uma porção vai ser afogada no oceano, depois chega nossa vez. Já imaginou, morrer nesta idade, não viver a vida?

— Que se lixem. — Interessante o gordo de cócoras — falou Pituca. — Parece o Jeca

Tatu. Era hora do gordo doar sangue. Se desacocorou lentamente e foi

arrastando o pé na direção do Galpão Laboratório. Hugo Ciência falou: — O gordo está abúlico, isto me preocupa. — Abúlico? Que que é isso, Hugo? — Dicionário Aurélio, página 14. Fritz Von Kramer recebeu o gordo, deu-lhe uma bala de café, fez o

gordo deitar, pôr a cabeça para trás, preparou a agulha, o tubo, o frasco,

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passou algodão com álcool no pescoço do gordo. Novamente a jugular não aparecia por causa da banha. "Vou ter que

deixar ele bravo de novo" — pensou o alemão. Beliscou a coxa do gordo e disse: — Gordo corno! O gordo, apático, o coração continuou normal, a jugular não salientou. "Esse gordo está difícil de ofender hoje, vou tentar um desaforo mais

forte" — pensou o alemão. — Teu pai ficou rico roubando. Meteu a mão na concorrência do Metrô. O gordo não emocionava. "Agora vou dizer o pior" — pensou Fritz. — Sabe, gordo, tive notícias que tua mãe não é séria. Andou dando

voltas com o vizinho, no fusquinha dele, lá pro lado de Atibaia. O gordo não reagiu. Fritz Von Kramer, durante uma hora, desenfiou ofensas, injúrias,

calúnias, ultrajes, afrontas, menoscabos, infâmias, vilipêndios, ignomínias, opróbios, insultos, agravos, desdenhos e, finalmente, arquejante, suado, sentou-se.

Woodward entrou na sala. — Algum problema, Fritz? Você está com cara de peixe na semana

santa. — Esse molóide é um desfibrado, não se ofende, eu desisto. — Vou chamar o Redimir — falou Woodward. Dali a pouco o cozinheiro baiano entrava, desdentado, pachola e

sestroso, cheirando cebola. Woodward falou para Redimir: — Tá vendo o gordo, ali, deitado. Faça ele ficar bravo. Redimir se

aproximou do gordo, Bolachão olhava para ele com indiferença, Redimir chegou a boca no ouvido de Bolachão e falou baixinho:

— Gordo vegetariano. Macrobiótico. Cada um tem sua corda sensível; chamar de vegetariano um gordo

carnívoro, que come oito bifes por refeição, é pior que dizer prum machão que ele andou fazendo frescura. O gordo avermelhou, as jugulares saltaram, pegou o baiano pelo pescoço, deu-lhe uma joelhada e gritava:

— Baiano fedido! Não admito! Não admito! Jegue! Jabá! Baiano esquistossomoso! Baiano retirante! Mondrongo! Pau de arara!

Foi preciso três capangas para segurarem o gordo e deitar na mesa: a agulha pegou fácil a jugular saliente, o frasco encheu.

Terminada a transfusão, o gordo foi liberado e saiu para o pátio, convulsionado de ódio.

— É assim, não é? Agora eles vão pagar. Dente por dente, olho por olho, unha por unha.

O gordo marcou uma reunião e falou:

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— Vamos embora hoje. Tive uma idéia excelente. Vai eu, o Edmundo, a Berenice, o Pituca e o Hugo Ciência.

— Embora pra onde, gordo? — Pra floresta. — A gente morre lá. — Confiem em mim. — Falou.

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22 Depois do jantar o Hugo Ciência fez um modo de dar um curto-circuito

no dínamo e o acampamento ficou sem luz. O Alcides que circulava livremente no meio dos bandidos, levou para

junto da cerca uma trouxa de coisas que o gordo tinha encomendado: um serrote, roupas, tênis, isqueiros, facões, um lençol plástico, pílulas superdiversificadas contra doenças equatoriais, bastões repelentes, lanternas, latas de mantimentos.

— Está faltando o principal — disse Hugo Ciência. — Sem bússola e sem mapa não chegamos a parte nenhuma.

— Bússolas e mapas estão muito guardados — disse Alcides. — Nem eu, que eles tomam por espião, consegui pegar.

— Nada feito — disse Hugo Ciência. — Temos uma desvantagem, não sabemos onde estamos. Sem bússola e sem mapa é querer bater perna à-toa.

— Olha aqui, 250 watts — disse o gordo. — Falei que tenho um plano e não preciso destas coisas. Vamos embora antes que eles consertem o gerador, se você quiser ficar, fique.

— Isto é suicídio — disse Hugo Ciência. — Mas está certo, vou. Puseram os jeans e as camisas, calçaram os tênis e as meias, e

distribuíram a matalotagem. O gordo começou a subir a cerca. — Caravana. Em frente, marche! O Alcides despediu-se, com lágrimas nos olhos: — Boa sorte. E perdoem minha mancada. — Fique tranqüilo — disse Edmundo. — A gente vai acha. civilização,

vem te buscar, e você vai morar na minha casa, em São Paulo. Lá você terá paz. Até logo.

Havia lua, deram uma corrida até a floresta e penetraram na mata amazônica.

A lua e as estrelas desapareceram, as árvores de sessenta metros fechavam-se em cima,, era um teto permanente de vegetação, um escuro, um silêncio.

— Em que direção vamos? — perguntou Hugo Ciência. — Não interessa — disse o gordo. — Vamos em frente. — Ê o primeiro explorador do mundo a não se interessar pela direção —

falou Pituca. — O grande perigo da mata é andar em círculo — disse Hugo Ciência.

— Temos uma glândula que nos faz automaticamente voltar ao ponto de partida. O remédio contra isto é não ter medo. Quem tem medo anda em círculo. Está no manual da selva, eu li.

— Como é que a gente faz para não ter medo? — perguntou a Berenice.

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— Eu estou apavorada. — Eu também — falou Pituca. — O medo é que nem beleza, ou a gente tem ou não tem — disse Hugo

Ciência. — A solução é seguir o gordo e o Edmundo que não estão com medo.

Foram. Os cipós apareceram, vindo de cima, vindo de baixo, vindo do lado, atrapalhando a marcha; os meninos passavam, às vezes precisavam rastejar, ou enrolavam nos cipós, demorava um tempo para desembrulhar.

As lanternas iluminavam o caminho, eram cinco estrelinhas se movendo na escuridão da floresta; dos fachos de luz surgiam jogos de sombra no cipoal, uns curiosos, uns assustantes.

Não andavam sobre a terra, andavam sobre uma camada de folhas, mole, escorregadia, afundadiça, parecia medir mais de um metro, folhas apodrecidas, cheiravam mal, e úmidas, embora estivessem na estação da seca.

Berenice afundou até o pescoço no meio das folhas. — Ei, me tirem daqui, o chão me engoliu. — Temos que aprender a andar com os pés altos, a perna dando uma

curva, feito ganso — falou Hugo Ciência. Toca todo mundo a andar em passo de ganso, melhorou, mesmo assim

caíam, levantavam, em uma hora de marcha estavam sujos e cansadíssimos. Passaram pelos cadáveres dos dois meninos que haviam fugido no dia da

sucuri; só tinha quase osso, mas fediam ainda, taparam o nariz. — A onça deu cabo deles — disse Hugo. — E ficaram andando em

círculo, vocês viram? Berenice se encostou numa árvore, o estômago virado. — Não agüento mais. — Andando — disse o gordo. — Caminhamos de noite só hoje, para

pegar uma distância do acampamento. — Quando será que eles descobrirão nossa fuga? — Os próximos a doarem sangue são a Berenice e o Hugo, na terça-

feira; daqui a cinco dias é que sentirão falta de nós. Pensei nisso. À meia-noite o gordo mandou parar. — Vamos dormir no chão, escolhendo as folhas mais secas. Um berro

horrível, como se fosse o som alto de uma cuíca, atravessou a noite. — Ê a onça — disse Hugo Ciência. — Está procurando macho. — Fêmea sem vergonha — disse o gordo. — Deve ser prima da

Berenice. A Berenice começou a chorar: — Como você é grosseiro, gordo. Qualé? Nunca pensei. Não devia ter

me trazido. — Ela tem razão., gordo — disse Edmundo. — Essa pegou mal. Peça

desculpas.

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O gordo era o mandão da caravana, mas teve que sentir a autoridade do Edmundo.

— Desculpe — disse o gordo. — Estou com sede — disse Pituca. — Que que diz o manual que você

leu? — Ê cortar o cipó e beber — falou Hugo Ciência. — O cipó é oco por

dentro, o miolo do cipó tem um X, corta-se um talo embaixo e em cima e chupa-se. Tem um cipó que é travoso, nesse caso não beba.

Com o auxílio das lanternas fizeram a operação cipó e deitaram um ao lado do outro. A floresta não é quente de noite.

Hugo Ciência falou: — Gordo, me conta esse plano. Não estou entendendo, ficar

marimbondando na floresta. Ouviram um barulho na mata, alguma coisa vinha em direção deles. Pegaram os facões e esperaram. A Berenice foi lambida. Era o Asdrubal. — Puxa, o travesseiro que me faltava — disse a Berê. Pôs o Asdrubal

sob a cabeça e dormiu.

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23 Às seis e meia da manhã acordaram com uma sensação desagradável de

umidade no corpo. Não viam o céu, apenas uma claridade que descia, uma claridade verde

escuro, muito verde escuro, nada de flores silvestres, nada de frutas coloridas, nada de passarinhos, era o mundo do verde escuro, do chão de folhas podres, do sem fim de troncos marrons, do ar parado e do silêncio pesado.

As árvores eram grossas, as raízes, levantadas, se espalhavam entre a folhagem do solo.

A vida da floresta, os micos, as araras, os papagaios, as aves, as frutas e as flores, se passava lá em cima, a sessenta metros, sobre a ramagem entrelaçada, onde o sol brilhava.

O único ruído vinha dos carapanãs, mosquitos, muriçocas, turbilhando em volta das crianças, mas não chegavam muito perto, o superespecial bastão repelente era uma salvação.

— Que negócio feio isso aqui — disse o gordo. — Feio, fedido, sujo, escuro, bolorento, só tem mosquito, não sei qual foi o estrábico que falou da poesia da mata. Prefiro o Minhocão da Avenida São João.

— Estamos esfarrapados — falou a Berenice. — Olhe, o meu jeans rasgou até os joelhos.

— Vamos forrar o estômago — disse o gordo. — Comam pouco, as latas de conserva vão durar quatro dias.

— E depois? — Depois a gente se arranja. Enquanto comiam, o gordo explicou: — Temos que achar um filete d'água. O solo é coberto de uma camada

de folhagem, se um fiozinho d'água corre por baixo, é lógico que, em cima da camada, haja um pequeno afundamento nas folhas, sobre o fiozinho, seguindo o fiozinho.

— Já sei, ficamos olhando o chão e damos sinal quando acharmos um sulco na folhagem.

— É. Andaram até a noite, parando para almoçar. Eram novatos em ler a mata,

o que um tomava por um sulco, denunciando o fiozinho em baixo, tinha sido uma jibóia que passara ali e deixara um afundamento nas folhas, o que um tomava por uma coisa, era outra, se não fosse o grito do Hugo Ciência, a Berenice dava de cara com a agulhada mortal de uma cobra-cipó pendurada na altura dela.

Sexta-feira acordaram às seis horas, comeram e continuaram. Iam andando e aprendendo, aprendendo a olhar, a ouvir, a cheirar, e,

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principalmente, aprendendo a qualidade principal do sertanista, a paciência. Andavam em passo de ganso, olhando o chão, os instintos iam

despertando, pisavam melhor nas folhas, conseguiam desembaraçar cipó com menos dificuldade. Pituca disse para a Berenice:

— Olha lá, o passo de ganso do gordo, olha lá, mariposão, que lindura, vai dançar no Municipal.

Às onze horas Edmundo viu um sulco, espécie de canaleta, entre as folhas, que seguia reto a perder de vista.

— Achei! — Sim — disse o gordo. — O jeito é afundar o corpo nestas folhas, ir

tirando folha. E, a prumo do sulco, foram esgaravatando folha, fazendo um buraco, deu

trabalho, eram picados por insetos venenosos que moravam no meio das folhas, tinham que agüentar a dor, os calombos formavam no corpo, por fim Pituca falou:

— Estou pisando água! Ela corre para lá, é o fiozinho! — ótimo — disse o gordo. — O lado que ela corre é importante, é o lado

que a gente irá; lá de cima, vendo o sulco, podia tanto correr para um lado como para outro.

— Vamos descansar. Como ardem, como incham estas picadas, deve ser aranha caranguejeira, escorpião, tarântula, lampreia, viúva negra, sei lá.

Tomaram muita água de cipó, molharam as partes feridas, almoçaram. O gordo falou: — Toda aguazinha da floresta vai acabar num rio grande, e nos rios

grandes, ou perto ou longe, há civilização. Primeiro as aguazinhas correm para os igarapés, que são riachos, depois os igarapés correm para um rio grande, como o Amazonas. Este fiozinho está correndo para um igarapé. Quando acharmos o igarapé, fazemos uma jangada, c a água leva a gente, o chão vai andar por nós. Viram como é simples meu plano, sem bússola, sem nada.

— Perfeito — disse Hugo Ciência. — Seguir a água, claro. — Merecemos um feriado por hoje — disse Pituca. — Estamos

envenenados, picados, doídos, inchados. — Negativo — disse o gordo. — Veneno de inseto mata bicho pequeno,

em nós só dói. Em frente. O gordo levantou e puxou a fila. Seguiram o sulco na direção da queda

da água, às vezes dava uma curva, um ziguezague, depois reta de novo, o dia terminou assim.

Antes de dormir Berenice falou para o Pituca, que ainda gemia de dor: — Estou novamente apaixonada pelo gordo. Que homem, que olhar

decidido. E emagreceu um pouquinho na floresta. Desbochechou. Pituca parou de gemer e riu: — Pode fabricar todas as qualidades que quiser para o gordo, mas

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desbochechado não. Você deve estar delirando, a cara dele está mais redonda que a lua cheia.

Berenice ajeitou o Asdrubal que nem travesseiro, pôs a cabeça em cima e fechou os olhos. Pituca pensou um pouco e perguntou:

— Você não sabe viver sem namorado? — Eu não.

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24 Sábado a coisa melhorou; três outros filetes d'água vieram se juntar ao

inicial, o sulco de cima da camada de folhagem ia se abrindo, formando dois barrancos de folhas, já se ouvia a água correr embaixo.

O bastão repelente evitava os mosquitos, mas outros bichinhos vinham incomodá-los: piuns, micuins, carrapatos, se metendo nos cabelos, agarrando na pele, pegaram frieiras entre os dedos do pé e nas virilhas, um toró de chuva deixou todos ensopados, tremendo de frio.

Berenice fazia a enfermeira, catava os bichinhos deles, demorando mais quando catava os do gordo.

Edmundo, depois de muito pelejar, aprendeu a usar o isqueiro para fazer fogo em galhos e gravetos e secar as roupas. Com o lençol de plástico conseguiram armar uma barraca para dormir, colocando folhas grandes e cipós para a proteção lateral. A fogueira valeu, uma onça, que os seguia, resolvera comer o gordo naquela noite; ficou indecisa com a fogueira, de manhã mudou de idéia e caçou um veadinho.

Domingo, o filete d'água, engrossado por mais outros, afastou duma vez a folhagem, apareceu inteiro, escorrendo límpido, sorrindo para as crianças.

Segunda-feira, os mantimentos acabaram. Não havia fruta, não tinham arma de caça, os cocos estavam muito altos,

o gordo é que não se apertou: fisgava formigas, torrava no isqueiro e comia satisfeito.

— Hum, esta formiga vermelhinha é crocante. Se tivesse um pouco de pimenta. Bom, a gente não pode querer tudo. Tem gosto, quer ver de que, tem gosto de... não sei, tem gosto de formiga vermelha. Eu digo gosto de formiga vermelha, para vocês não confundirem com o gosto desta formiga preta aqui, que também é deliciosa, mas tem gosto de.. .

— Já sei — falou Pituca — tem gosto de formiga preta. Berenice cuspiu: — Você parece filho de Tamanduá cruzado com Avestruz, gordo, que

nojeira. — Epa — disse o gordo — tem caracol ali, comida fina, coisa de

restaurante francês, "escargot". Ninguém fez refeição matinal, só o gordo. Seguiram a marcha, a fome

aumentando, e se a fome consegue provocar revolução, contra-revolução, pronunciamento e guerra mundial, é lógico que acabaria por derrotar as delicadezas de nossos amigos.

Na hora do almoço viram o Asdrubal com um rato do mato na boca, tiraram o rato do gato e fizeram um assado. E queriam continuar, depois de tirar o rato do gato, estavam prontos para comer o gato do rato, mas a Berenice não deixou:

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— O Asdrubal é meu. Ninguém mexe com ele. De noite, ao acamparem, descobriram que as lanternas atraíam as rãs que

moravam à beira do fio d'água. Ficaram especialistas em caçar rã, aderiram às formigas e aos caracóis do gordo, de vez em quando roubavam um rato do Asdrubal.

Terça-feira o Hugo Ciência e a Berenice não compareceram para doar sangue. A fuga foi descoberta.

— Fugiram cinco, inclusive o gordo — disse Der Moltzer. — Vão morrer na floresta, se é que não morreram — falou Fritz Von

Kramer. — Não sabem onde estão, não têm bússola, não têm o que comer; pena pelo gordo, o sangue dele valia muito.

— Brasileiro é assim, bicho ingrato, vive aprontando — falou Woodward. — A gente trata eles com filó e dá nisso.

— Esse gordo é finório — falou Der Moltzer. — Vou avisar o chefe. Em São Paulo, no apartamento da rua Augusta, Ship O'Connors tomava

aperitivo, com a professora Jandira no colo, fazendo cafuné. Michael Pat entrou no apartamento e disse: — Recebi uma mensagem pelo telégrafo. O gordo e mais quatro fugiram

para a floresta. — Mande quatro mateiros ferozes, aqueles cossacos, seguir o rastro. É

para matar sem piedade. Não quero mais problema com esse gordo. Der Moltzer foi avisado pelo telegrafista, chamou os quatro mateiros

cossacos, homens cruéis, nascidos à margem do Don. — Grisha, Grigory, Davydovich, Astakhov, sigam o rastro dos cinco que

fugiram e matem. — Oquêi tovarich. Der Moltzer despediu-se dos cossacos e, de repente, começou a rir. — Qual a graça? — perguntou Woodward. — O gordo não escapa mesmo — falou Der Moltzer. — Além dos

cossacos, vou soltar uma que chegará mais depressa, onde que o gordo esteja.

Foi para o pátio, mandou desligar a eletricidade, abriu a gaiola da sucuri e falou:

— Vai formosa, teu formoso te espera. A sucuri deu um bote fora da gaiola, agradecendo o dia da graça, saiu

pelo pátio, passou a cerca e furou pela floresta.

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25 A expedição de nossos heróis caminhava pela floresta, contentes, um

brincando com o outro, o filete d'água alargando, tinha até pedregulho nas margens, quase não chovia.

Pararam para jantar e acampar, o riachozinho fazia uma pequena lagoa rasa, de água clara, viram a primeira árvore que oferecia frutas vermelhas ao alcance deles.

Se regalaram de fruta, acharam um jabuti que tinha ovas dentro, o próprio casco do jabuti serviu de panela para fazerem o cozido, saiu todo mundo lambendo beiço.

Berenice aproximou-se do gordo, que estava deitado, digerindo, pronto para dormir.

— Gordinho, me desculpe, eu errei, vamos namorar de novo. — Nunca mais. — Gordinho, você é o rio Amazonas possante e caudaloso, e o meu

coração é um frágil igarapé que deságua em você, impelido pela força irresistível da natureza.

— Xê — disse o gordo. — Você está gastando metáfora nessa história. Sabe o que eu sou? Eu sou um caminhão grandão de estrada, que não dá carona para ninguém, e onde está escrito atrás: Amor só de Mãe.

Virou as costas e dormiu. Acordaram de manhã. O gordo descobriu no bolso do jeans um pedaço

de sabão, resolveu tomar um banho no riachinho, banho de sabão desta vez, para ficar limpinho da silva, e afastou-se um pouco, para baixo do riachinho.

Tirou o jeans, a cueca, a camisa, a meia e o tênis, molhou-se, assobiando aquelas coisas desafinadas que assobiamos ao tomar um banho bom, e foi passando sabão.

A sucuri veio vindo com todo o instinto cuidadoso que um bicho da floresta pode ter; sabia que, se desse sinal, o gordo corria como um deslambado.

O gordo, ensaboadíssimo, cheio de espuma, assobiava e achava o mundo perfeito.

Zum! Foi um bote. A sucuri se enrolou no peito do gordo, excitada, amada-amante, preparou

o apertão quebra-costela, concentrou os poderosos músculos e deu um quebra-costela de luxo, daria para esmagar um hipopótamo.

Acontece que o peito do gordo estava ensaboado, no que a sucuri apertou, ela escorregou em volta, quanto mais apertava, mais o sabão a fazia rodopiar, ela ficava com raiva e apertava mais, e, abraçando mais escorregava em dobro.

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O gordo, que estava de olho fechado, lavando a cara, ao receber o bote, não entendia nada, a cobra virava a duzentos quilômetros por hora em volta do peito dele, o gordo abriu o olho e só viu vento.

Pituca, que vinha vindo, gritou: — Olha o gordo! O gordo está ventando. Venham ver. — A ventania chega até aqui, arrasta o cabelo da gente — disse a

Berenice. — Gordo! Que negócio é esse de ficar ventando aí. Pára com isso!

Brincadeira besta. A sucuri desesperava, estava como a Fedra, do amor com todos os

furores, aumentou a força do apertão para o máximo, a velocidade do gira-gira cresceu para quinhentos por hora, o vento levantava loucamente a folharada do chão, não houve jeito, como uma hélice dessas de brinquedo, que a gente puxa um elástico, a sucuri subiu, girando, girando, alcançou oitocentos metros de altura, um gavião amazônico catou-a nas garras e levou para o ninho.

O gordo pôs o jeans e a Berenice falou: — Eu não gosto de você ventando gordo. Aqui é muito melhor. Vê se

não venta mais. Não tem graça nenhuma. Você é tão legal, tão inteligente, não precisa destas coisas para se mostrar.

O gordo calçou a meia, calçou o tênis, enfiou a camisa e falou: — Vão parar de pegar no meu pé! Eu vento a hora que eu quero,

ninguém manda em mim, quando eu quero ventar eu vento, quando eu não quero ventar eu não vento, acabou, azar de quem não gostou!

Desfizeram acampamento e a caravana retomou caminho.

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26 Para Grisha, Davydovich, Grigory e Astakhov, mateiros experientes, era

fácil seguir o caminho dos meninos. As folhas pisadas, os cipós afastados, as latas de conserva, as cinzas de

fogo, e mesmo sinais menores, eram para os olhos afiados dos cossacos como letreiros luminosos indicando o roteiro das crianças.

Estavam equipados para a matança sem perdão; cada um trazia uma carabina Remington e um revólver Smith and Wesson, além de uma vontade selvagem de acabar com a vida dos fugitivos.

— Engraçado este caminho que eles fizeram no começo — falou Grigory. — Não parecem ter direção definida, estão andando ao léu.

Ao cair da noite descobriram o buraco na folhagem. — Veja, procuravam um filete d'água para dar num igarapé — disse

Astakhov. — Daqui para a frente a coisa fica menos trabalhosa. Eles foram

andando sobre este sulco na folhagem que segue o caminho do fio d'água. São inteligentes.

— É o que eu disse — falou Davydovich. — Nunca subestimar o inimigo, por mais diminuto que ele pareça. Nossa vitória é certa, eles são pequenos, não têm armas, não têm experiência nem de combate, nem de floresta, é impossível que escapem, mas não vamos amolecer.

— Passe o litro de vodka para cá — falou Astakhov. — Esse Der Moltzer é pão duro, nos deu vodka nacional.

— Em três dias estamos em cima deles — falou Grisha. Acamparam, dormiram, acordaram, marcharam, caçaram duas

queixadas no almoço, cantaram canções populares da região do Don, e assim foi indo, nossos amigos andando na frente e os cossacos atrás, calçando botas enormes, ganhando caminho, encurtando a distância.

Na quinta-feira de noite, ao acamparem, Grigory falou: — Daqui em diante não se atira mais em caça, não se conversa mais e

nem se faz fogo. Estamos chegando perto, as pegadas são recentíssimas, eles não podem perceber a gente.

Na sexta-feira começaram a marchar com cuidado, em fila indiana, seguindo a trilha do riachinho, os fuzis na mão, engatilhados, prontos para atirar. As horas iam passando, o encontro com os meninos era coisa de instantes.

Davydovich virou-se para Astakhov e falou baixinho: — Não sei, tenho a impressão que... Não teve tempo de terminar a frase, deu um estalo na mata, depois um

barulhão, e quarenta árvores caíram sobre os cossacos, soterrando-os.

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Os que não tinham morrido direito foram rapidamente degolados por Edmundo e Bolachão, que surgiram da floresta, enfiando faca no que sobrava dos russos.

— Pronto — falou Bolachão. — Esses aí vão dançar balalaika e cantar otichórnia no quinto dos infernos.

Tinha acontecido o seguinte: o Asdrubal, que de noite virava travesseiro da Berenice, logo que ela dormia escapava e ficava especulando o mato, caçando rato selvagem, passeando, fazendo footing, brincando, dando susto em onça, apareceu, naquela manhã de sexta-feira com uma garrafa de vodka vazia, na boca, trazida pelo gargalo.

Bolachão, Edmundo, Pituca e Berenice não deram importância, só acharam engraçado, mas o Hugo Ciência, que morava há mais tempo no acampamento, contou que havia quatro mateiros cossacos, temidos por sua ferocidade e que bebiam vodka o dia inteiro.

— Estamos sendo rastreados — falou Bolachão. — Evidente — concordou Hugo. — O Asdrubal trouxe a garrafa dos

cossacos, que dormiam aqui perto. Hugo Ciência começou a tremer. — Estamos perdidos, a gente não escapa deles. — Güenta a mão aí 250 watts — falou o gordo. — Há um quilômetro

atrás, você me mostrou uma árvore morta, seca, e falou da impuca. Como é que é isso?

— Aqui na floresta amazônica, como se vê, as raízes das árvores são levantadas, não entram na terra, porque a terra não é fértil; elas se alimentam da camada de folhagem. Por isso as árvores não estão bem fixas no solo, não têm sustentação. Quando uma árvore apodrece de velha e cai, ela encosta nas outras, as outras não têm fixação e se forma um boliche amazônico, uma porção de árvores vão de emboléu. É a impuca.

— 250 watts, você é medroso mas tem serventia. Eu e o Edmundo vamos voltar atrás. Vocês esperem aqui.

O gordo e Edmundo acharam a árvore seca, de sessenta metros, bastava um empurrão para ela cair.

Ataram um cipó na árvore, levaram o cipó para o outro lado do riachinho, voltearam o cipó numa árvore forte, para fazer alavanca, se agacharam e ficaram de tocaia, os facões na mão.

Quando os cossacos passaram, andando em cima do riachinho, justo no caminho que as crianças haviam feito, o gordo e Edmundo, chamando a Deus todas as forças, puxaram o cipó, e o resto vocês sabem.

Os dois apareceram para Berenice, Hugo e Pituca, trazendo os despojos do combate: quatro carabinas Remington, quatro revólveres Smith and Wesson, munições e cinturões.

— Não trouxemos mantimentos — falou o gordo. — Era muita coisa para carregar. Desde o princípio fiz questão que fôssemos leves.

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— Mas esta garrafa de vodka eu trouxe — disse Edmundo. — Quando se ganha uma guerra é preciso festejar.

E festejaram, cantaram a canção do expedicionário, que, sendo bonita, ficou maravilhosa, ecoando na floresta.

Tomaram vodka, deram vivas ao Asdrubal, o gato salvador, deram vodka para o Asdrubal, dançaram entre si, dançaram com o Asdrubal.

A Berenice, astuciosamente, aproveitou a queda de resistência que a vodka deu no gordo, pegou na mão dele, e fez começar o namoro de novo.

Almoçaram, com as facas fizeram novos furos nos cinturões dos russos, para caberem nos meninos, e cortaram as pontas que sobraram.

E lá foram, carabina ao ombro, armas na cartucheira, cabeça erguida, intrépidos, atrevidos, petulantes, nossos bravos bandeirantes, em busca do igarapé.

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27 A marcha continuou, o córrego alargando, a vida aparecendo

modestamente na mata, pombos e mutuns, as frutas surgindo, o bacuri e o cupuaçu, de que faziam sucos, a palmeira bacaba, que, além do coco, dava um palmito bom, faziam exercício de tiro com revólver e carabina, preparando-se para enfrentar uma segunda expedição punitiva.

Sem desprezar os pratos novos, Bolachão não dispensou as formigas e caracóis; eram sua entrada para qualquer refeição.

Edmundo matou uma cobra, tinha gosto de peixe, não era ruim, cozida em fatias, regada a óleo de bacaba.

— Engraçado essa impuca, o boliche amazônico — falou Pituca. — Vou tirar patente disso e faturar em cima. Um cara jeitoso, dando um certo efeito no tronco podre, uma trivela, assim, consegue derrubar a floresta inteira.

— Quando descobrirem esse jogo, vai ser a mania — disse Edmundo. Na manhã do dia 8 de setembro, depois de duas semanas de marcha,

apareceu o igarapé, de água escura, largo de oito metros, correndo suave. O primeiro sentimento não foi de festa, foi de emoção, ficaram quietos,

olhando o igarapé correr, dar uma volta lá adiante; não se via o céu ainda, o teto da floresta permanecia fechado, no alto.

Depois abraçaram, deram gargalhadas, pularam e terminaram com a vodka.

Pois então, é isso, estava ali o chão-que-anda e os levaria ao rio Amazonas.

Demoraram quase dois dias construindo a jangada, para isso valeu o serrote que o gordo trouxe.

Pegavam troncos caídos, ou galhos grossos, iam serrando, amarrando com cipó, fazendo o corpo da jangada, fazendo o leme.

Com ramos, cipós e folhas de palmeira fizeram uma barraca no meio da jangada, para não tomarem chuva, puseram o mastro, onde o lençol serviria de vela.

— A vela não vai servir no igarapé, não tem vento, mas no rio Amazonas ela vai fazer a gente andar depressa.

— Vou tomar um banho de igarapé — falou a Berenice. — Não faça isso, pode ter piranha — falou o Hugo Ciência. — Eu resolvo isso já — falou a Berenice. Pegou no Asdrubal, amarrou com cipó na ponta de um galho e foi

mergulhando o gato em diversos lugares. — Ninguém entende essa menina — falou Pituca. — Outro dia ficou

furiosa porque queríamos comer o Asdrubal, vivia com Asdrubal isso, Asdrubal aquilo, gato queridinho, gato salvador, e agora está fazendo ele de

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boi de piranha. "É o que ela vive fazendo comigo" — pensou o gordo. Berenice, certificada que não havia piranha, desamarrou o Asdrubal, deu

um beijo nele, pulou n'água e ficou nadando, se esbaldando. — É fundo aí? — Aqui no meio não dá pé. É friozinho. Uma delícia. Todos imitaram a

Berê e nadaram e brincaram no igarapé. Na manhã de quinta-feira, dia 10 de setembro, estavam prontos para a viagem.

— É preciso dar um nome ao barco — falou Berenice. — Eu não ando em barco sem nome.

Hugo Ciência, que estava de ótimo humor, ajoelhou-se aos pés dela, abriu os braços e declamou Shakespeare:

"Que há num simples nome? O que chamamos rosa Sob outra designação Teria igual perfume." — Está bem — disse a Berenice, dando risada e mostrando os belos

dentes. — Em homenagem a seu poema o barco vai chamar Julieta. Edmundo, com tinta de frutos silvestres, pintou o nome no barco. — Estou curioso para saber se vamos sair na margem direita ou na

margem esquerda do Amazonas — disse o gordo. — Direita de quem sobe ou direita de quem desce? — perguntou Pituca. — Não se faça mais burro do que a natureza o fez — respondeu o gordo. — Mas nem sabemos se vamos dar no rio Amazonas — falou Hugo

Ciência. — Tem tanto rio grande aí. — Vamos sim — disse o gordo. — Tenho um palpite. Embarcaram, o

gordo ao leme, Edmundo, Pituca e Hugo Ciência com remos, para afastar da margem, caso chegasse muito, e para

remar também, se precisasse. Berenice, deitada na cabana, com um papagaio no ombro e o Asdrubal

no colo, representava uma Cleópatra brasileira. O Julieta foi deslizando, ora rápido, ora lento, e tudo bem.

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28 Na mesma manhã do dia 10 de setembro. Der Moltzer conversava com

Fritz Von Kramer, Ormoz, Woodward e Karl Hans. — Oito dias que os cossacos foram embora e não voltaram. Estranho. — Não havia possibilidade de falharem, são os melhores mateiros do

mundo e ainda larguei a sucuri em cima do gordo — falou Der Moltzer. — Podem ter encontrado índios. — Não há índios na redondeza. — E se forem índios migrantes? — Temos que fazer alguma coisa. — Vou mandar os outros quatro mateiros que temos para averiguar —

disse Der Moltzer. — São inexperientes — falou Ormoz. — Não se comparam aos

cossacos. Der Moltzer chamou os mateiros e ordenou que entrassem na floresta. — E a lista da turma que faz onze anos neste mês? — perguntou Der

Moltzer para Fritz Von Kramer. — Aqui está. Cinqüenta e dois. Alguns já fizeram. — Serão levados pelo Boeing do último domingo de setembro, dia 28.

Por enquanto parem de tirar sangue dos que vão fazendo onze anos. Preparem os bolinhos de aniversário e uns presentinhos.

— Amanhã chega um carregamento de quinhentas crianças. — Jóia. No quarto dia de navegação outro igarapé desaguou no dos meninos, a

corrente de água avolumou, abriu-se um claro no teto da floresta, o primeiro raio de sol, batendo na pele, foi recebido como uma bênção; enxergavam o céu e as estrelas.

Para ganhar tempo, navegavam de dia e de noite: as pilhas das lanternas acabaram, resolveram navegar só de dia.

Edmundo estava de pontaria boa, derrubava pássaros, de preferência pombos, havia muito jabuti, o gordo trouxera fisgas, fizeram anzóis, peixe é que não faltava, de vez em quando dava-se um tiro num jacaré, carne boa de comer.

Dormiam na cabana do barco, faziam comida na margem. Naquela noite cozinhavam sopa de tartaruga, o fogo aceso embixo do

casco, a sopa fervia, o gordo olhava a ebulição da sopa, se sentia lorde, comendo uma formiga aqui, um caracol ali.

— Chega de gastar isqueiro com formiga — falou Edmundo. — Queime a formiga na fogueira, daqui a pouco os isqueiros terminam.

— Tá bom.

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— Tá bom — repetiu Torquato, o papagaio da Berenice. — Um dia eu mato esse Torquato — disse o gordo. — Bicho tapado,

vive remedando o que a gente fala.

— Sabe de uma coisa, gordinho — falou a Berenice. — Vou te fazer

uma surpresa. — O que é? — Estou escrevendo o diário de nossa aventura na floresta — falou

Berenice. — Quando chegarmos em São Paulo eu publico e vou ganhar milhões. Fico imaginando a noite de autógrafos, uma badalação em cima de mim, para você eu dou um exemplar de graça.

— Como é que você pode escrever se não temos caneta nem papel? — Eu dito para o Hugo Ciência. A memória dele não esquece. — Conta um pouco — pediu Pituca. — Fala pra eles, Hugo — disse a Berenice. Hugo Ciência tomou sopa de tartaruga, desembaçou os óculos e

começou a dizer o livro. — Paixão Amazônica, por Anastácia Palova, primeira edição. — Essa é a capa — falou Berenice. — Tem uma fotografia minha, com

uma onça no colo, meu cabelo liso caindo na boca dela. — Você não chama Anastácia Palova. — Nome artístico. Soa melhor. — Tá certo, começa essa droga — falou o gordo. — Capítulo Primeiro — disse Hugo Ciência. — Era uma noite de abril.

O gordo aproximou-se de Berenice e falou: — Você é a paixão da minha vida, eu te amo, você é linda, inteligente, desejável. . .

O gordo deu um murro no chão. — Eu não falei nada disso. Começa o livro mentindo. — Não interrompa, gordo — disse Pituca. — Deixa o livro continuar. Hugo Ciência continuou: — Berenice beijou o gordo. Mostrava-se algo preocupada, a linda

menina; os músculos da face contraídos, como quem guarda um segredo importante. O gordo beijou-a de novo e perguntou: — Qual o segredo importante que você guarda, meu amor? Berenice ficou lívida...

— Lívida! —i disse o gordo. — Isso é vocabulário de locutor de futebol. Além de mentirosa escreve mal. Está péssimo este livro.

Hugo Ciência continuou: — . . .ficou lívida e confessou, após um instante, que pareceu eterno de

hesitação: — Gordinho, estou grávida de você, fui no laboratório e fiz o teste

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do sapo, deu positivo. Nós vamos ter um filho, um ente vivente, nascendo nas minhas entranhas. . . O gordo levantou-se, vermelho, furioso:

— Não! É demais! Você passou os limites da pouca vergonha! É pornográfico! É imoral! É sub-literatura! Vou entrar com um processo na justiça para impedir a publicação, meu pai tem um bom advogado. Inventa suas loucuras mas não me ponha no meio!

— A gente precisa de umas pitadas de imaginação na história — falou a Berenice. — Um pouco de sal, para agradar o povão; se a gente vai no tão-tá, o livro fica encalhado, não vende.

— Me recuso a escutar o resto — falou o gordo. — Não gosto de livro mentiroso. Vou para o barco dormir.

— Estou gostando do livro — disse Pituca. — Deixa o gordo, ele é cru em literatura, só lê revistinha. Pode continuar, Hugo.

O gordo foi para o barco, entrou na cabana, deitou, e Hugo Ciência continuou o livro da Berenice para os outros:

— Começou a chover, formou-se uma poça d'água no chão. O gordo atirou-se na poça d'água e falou para sua amada: — Passe por cima de mim, querida, não admito que se molhem os seus lindos pezinhos.

O gordo gritou um palavrão de dentro da cabana do barco.

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29 A navegação prosseguiu, o Julieta desfilando pela selva, mostrando aos

navegantes a beleza da Amazônia, flores coloridas, plantas aquáticas, trepadeiras, árvores bonitas, ramagens que debruçavam sobre o barco e roçavam a cabeça dos meninos, mil pássaros diferentes, o alfabeto da mata; os raios do sol faziam efeitos interessantes, penetrando no corredor do igarapé, Berenice só dizia: que lindo! nunca vi! olha aquilo!

O gordo firme no leme, era um barco bem construído; o Asdrubal, uma noite, foi beber água no riozinho, levou choque do peixe elétrico, ficou fosforescente, todo mundo riu.

Às três horas da tarde, no dia 18 de setembro, o rio Amazonas apareceu, não se via a outra margem, o Julieta dançou nas marolas do refluxo do encontro do rio com o igarapé, remaram para ajudar e saíram da mata, agora era só água e sol, ventava, o gordo ajustou a vela.

— Margem esquerda — disse Edmundo. — Vamos aproveitar o vento de través e passar para a outra margem —

falou o gordo. — Eles daqui a pouco estão na nossa cola, precisamos despistar.

O Julieta enviesou e foi atravessando o rio, água, só água, barrenta, feia; uma ilha flutuante, com árvores, pássaros e macacos, passou por eles.

— É o fenômeno das terras caídas — explicou Hugo Ciência. — O Amazonas costuma tirar um pedaço das margens, tão forte que ele é.

— Por um tempo não temos margem — disse Edmundo. — Calculo uma viagem entre cem c cento e trinta quilômetros até a outra

margem — disse Hugo Ciência. — Quanto demora, gordo? — Com esse vento, amanhã cedo chegamos. Os cipós rangeram entre os

troncos da jangada. Dava medo, dava susto, sair do riachinho e navegar naquela extensão de

água, sem ter onde socorrer. Todos olhavam, calados; o gordo manobrava o leme e segurava o cipó que prendia a vela.

— E se o vento mudar de noite? — perguntou Edmundo. — É capaz da gente voltar para essa margem.

— Não se preocupe — disse Hugo Ciência. — Estarei de olho no Cruzeiro do Sul.

— Comecem a pescar — disse o gordo. -— As minhocas estão embrulhadas naquela folha ali.

— Naquela folha ali — repetiu Torquato. — Papagaio cretino — disse o gordo. — Gordo besta — disse o Torquato. Berenice, os cabelos ao vento, falou para Hugo Ciência.

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— Vou continuar o livro. Está quase terminando. Vai ser um final rapsódico e dramático. Escreve aí na tua cachola: Capítulo 32. ..

— Deixa para uma outra hora — falou Hugo Ciência. — Minha memória não está boa para gravar livro. Estou com medo. Esse Amazonas assusta a gente, a gente se sente pequininho nesse barquinho.

— Tá bom. Mas o Paixão Amazônica está uma sensação. Você acha imoral aquela parte que eu fico grávida do gordo?

— Acho. — Ótimo. Vou balançar a estrutura das mentalidades burguesas. Naquele instante, no acampamento, os três mateiros suecos falavam para

Der Moltzer: — Achamos os cossacos mortos pela impuca. Foram assassinados, tinha

sinal de facão. — Cadê o outro mateiro? — O Jannsen. Ah, coitado, a surucucu pico-de-jaca deu uma corrida nele

e picou. Dessa cobra ninguém se salva. Ficou morto lá. — E daí? — Ficamos apavorados, não fomos em frente, esta floresta deixa

qualquer um maluco. — Vocês são uns mateiros pernetas. Vou telegrafar para Ship

O'Connors, ele resolverá. O Ship é perfeito, não falha nunca.

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30 No apartamento da rua Augusta, Ship O'Connors descansava o corpo,

fazendo palavras cruzadas. Jandira, recostada num almofadão, preparava sua aula de Estudos

Sociais. O apartamento, com o desvelo da mulher, estava bonito: samambaias

pendendo do teto, das paredes, surgindo do chão, surgindo não sei donde, rosas e margaridas, enfeites redondinhos, caixas de bombom abertas sobre os móveis.

Michael Pat entrou no apartamento, deu uma cabeçada num vaso de samambaia, tropeçou na samambaia do chão, conseguiu chegar até Ship.

— Os moleques mataram os cossacos. Estão fugindo por aí. Não sabemos o que fazer.

Ship O'Connors ficou alarmado, o seu império ameaçado por uns tampinhas.

— Arsenal completo contra eles. Helicóptero, Phanton, desfolhante laranja, napalm, o que for necessário.

— Ninguém sabe onde estão. Isto dificulta. — Telefone para Cabo Kennedy — falou Ship. — Lance um satélite

espião. Michael Pat telefonou para Cabo Kennedy. — Quero um satélite espião. — É quinze milhões de dólares. — Amanhã o dinheiro está aí. — Para achar o quê? — Cinco crianças na Amazônia. — Ah, coitadas. Preciso do cheiro delas — falou Cabo Kennedy. — Eles precisam do cheiro — falou Michael Pat para Ship O'Connors. — Mande as redes onde dormiam no acampamento. Estão impregnadas

do cheiro deles. — Vou mandar o cheiro — falou Pat, ao telefone — Chega depois de

amanhã. Deixe o satélite pronto, na rampa de lançamento. — OK. No dia seguinte, dúzias de aviões borrifavam desfolhante laranja, num

grande círculo do mapa, em volta do acampamento. O desfolhante laranja faz as folhas caírem, para o inimigo ficar visível;

como ia espalhando, as árvores ficavam só tronco, a selva sem verde, transparente, os aviões fotografando, as onças, macacos, porcos do mato, queixadas, veados, cobras, passarinhos, araras, papagaios, periquitos, aranhas, insetos, tudo numa tropelia; fugindo do apocalipse — a guerra tinha

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sido declarada. Ship O'Connors, em pessoa, no acampamento, examinava as fotos. Só

via bicho desesperado, das crianças nada. Numa fotografia, o olhar triste de uma paca chegava a ser comovente. Um tatu saiu da toca e falou: — Tâmo perdido. Esses caras. Dali a dois dias o satélite espião subiu, parou sobre a Amazônia, e, com

os cheiros de Edmundo. Bolachão, Berenice, Pituca e Hugo Ciência computados no cérebro eletrônico, começou a cheirar.

O primeiro cheiro que chegou foi o do Redimir, dez dias sem tomar banho e cortando cebola: o satélite vomitou.

O cheiro de um prefeito, gesticulante, fazendo discurso num palanque, em Alagoas, foi descomputado, mas fez o satélite ter engulho.

"Como fede esse Brasil" — pensou o satélite espião. O barco Julieta havia alcançado a margem direita do Amazonas, não sem

problemas. Houve uma tempestade, de noite, o gordo arriou a vela para não quebrar

o mastro, o Julieta pulava em cima das ondas, o teto da cabana foi arrancado, cipós que seguravam os troncos do chão quebraram, a tempestade foi curta, passou, veio a manhã, navegaram, chegaram.

O gordo e Edmundo consertaram o barco, fizeram nova cabana, traçaram novos cipós, serraram novos galhos, comeram um almoço quente de piracambucu na brasa e foram descendo o rio, abordando as margens com cuidado, não queriam desbarranca-mento.

Os dias passavam, Pituca falou: — Como demora para achar gente nessa Amazônia. — Felizmente estamos na margem direita — disse Hugo Ciência. —

Aqui é mais povoado. O gordo, que suava mais, foi o primeiro a ser computado pelo satélite

espião. Os outros foram computados também. O satélite transmitiu a latitude e a longitude de nossa turma, assim como

a mudança de movimento. Ship O'Connors olhou o aparelho especial receptor, olhou o mapa e ficou

admirado. — Como estes meninos estão longe. Que mobilidade. Incrível!

Atravessaram o Amazonas com um barco. — Seu helicóptero está pronto — falou Der Moltzer para Michael Pat. — Não é possível ir de helicóptero — falou Michael Pat. — A distância

é muita, o helicóptero não tem autonomia de vôo para ir lá e voltar. — Vai de Phanton — falou Ship O'Connors. — Carregue-o com bombas

napalm. Verifique as metralhadoras. Tome o mapa aqui. Michael Pat entrou no Phanton, verificou mapa, bússola, régua e

compasso, levantou vôo e foi, pra matar.

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31 O Julieta descia o Amazonas, ajudado pela correnteza e pelo vento que a

vela pegava. Iam contentes, depois de um almoço bom. O sol, que não havia na

floresta, e que, ao final do igarapé, aparecia em frestas, agora iluminava inteiro e as poucas e rápidas chuvas não deixavam umidade, os corpos secavam logo.

Edmundo apontou uma clareira na margem e falou: — Olha lá. Tem umas duzentas pessoas. — Devem ser caminhantes — disse o gordo. — Não vejo choupanas;

Vamos abordar. Atracaram na margem; eram duzentos maltrapilhos, sentados no chão,

olhando para um homem vestido de amarelo, muito magro, olhar alucinado, que discursava:

— O povo das cidades, corrompido e condenado, não quis ouvir o verbo da minha boca. O que eu digo é o que está escrito, o mundo acabou ontem, estamos no vale de Josafá.

— É aquele pirado do vendedor de Kibon que subiu na capota do carro no pedágio, lembram? — falou Pituca.

— Formou uma religião — disse Hugo Ciência. — Isso é comum. — Vamos chegar e falar com eles — disse Edmundo. — Podem dar

informações. Mas cuidado. Esses fanáticos são imprevisíveis. O Phanton de Michael Pat se aproximava. "Tenho que dar um desconto nas coordenadas do satélite" — pensou Pat.

"Os meninos estão em movimento, ah, a jangada deles está ali, tem um monte de gente na margem, eles estão no meio."

O avião deu um vôo rasante e largou três bombas napalm em cima da clareira.

O napalm é uma bomba incendiaria, gelatinosa, assim como toca no chão, faz correr, por centenas de metros, um rolo de fogo, queimando tudo. E a gelatina do napalm adere na pele.

Os meninos estavam com os instintos alertas, como toda pessoa que sabe que está sendo caçada, e, logo que o avião deu o pique, Edmundo fez sinal que se jogassem nágua.

— Pra água! Isso aí deve ser coisa do Ship. Mergulharam justo quando a bola de fogo rolou no meio dos fanáticos, os coitados viraram tocha, quem não morria na hora, corria com o corpo pegando fogo, a gelatina grudada na pele.

A gelatina do napalm alcançava também a superfície do rio, onde as crianças estavam mergulhadas, retendo a respiração. Não iriam poder resistir

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mais um minuto sem respirar, mas tiveram sorte, uma correnteza debaixo levou-os para longe do fogo.

Subiram à tona e esconderam-se na margem, entre o arvoredo. O Julieta incendiou, com o Asdrubal e o Torquato dentro, e desfez-se

inteiro. Michael Pat fez uma volta, reparou que queimara o barco e todo mundo

na clareira, deu umas metralhadas, largou mais uma bomba napalm, comunicou pelo rádio a missão cumprida e voltou ao acampamento.

Ship O'Connors o esperava de cara amarrada. — Seu imbecil, por que desligou o rádio depois de comunicar o

bombardeio? — Ora, não precisava mais de rádio, acabei com eles. — Não acabou. Venha ver a sinalização do satélite. Continuam vivos. — Então eu volto — disse Michael Pat, preparando-se para subir no

Phanton. — Não — falou Ship O'Connors. — O Phanton é contra-indicado para

objetivos minúsculos. Se ainda estivessem de barco, seria fácil, mas agora devem andar no meio do mato, estão invisíveis do alto. Vou mandar buscar vinte lanchas em São Paulo, de avião cargueiro, amanhã elas estão aqui, os helicópteros as depositam no rio, levamos um exército dentro, com o receptor do satélite, assim não há jeito deles escaparem.

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32 Edmundo, Pituca, Bolachão, Berenice e Hugo Ciência foram ver a

destruição. Era doloroso de assistir, alguns ainda não tinham morrido, estavam sem

pele, gemendo. Tentaram ajudar, deram água, era inútil, iam morrendo. O gordo olhou em redor e falou: — Estamos sem bastão repelente, sem pílulas contra doenças equatoriais,

sem isqueiro, sem carabina, sem revólver, sem serrote, sem nada. Tudo queimou e afundou com o Julieta.

Revistaram os cadáveres e os terecos dos fanáticos. — Só o que podemos aproveitar é os facões deles e estas fisgas de anzol. — Os facões perderam o fio com o napalm, podemos afiar naquelas

pedras. Edmundo afiou os facões nas pedras, o gordo fez novos anzóis. — Andando — falou o gordo. A margem do rio Amazonas não deixa espaço para andar, a floresta toma

conta de tudo, nossos amigos iam enfrentar a caminhada pela selva de novo. — Olha — disse Edmundo. — Os fanáticos estavam vindo de lá,

deixaram um carreiro para a gente, facilita um pouco. Ao chegar a noite, pararam, pescaram, comeram peixe cru, frutas, cocos,

palmitos. Edmundo tentou fazer fogo como os índios, esfregando um pau no outro,

mas desistiu, isso aí é fácil no cinema, na vida real não é. Deitaram nas folhas. Berenice, de repente, ficou de cócoras no chão e falou: — Sim senhores, seu Hugo Ciência, QI 250, e seu gordo, cabeça de

goiaba. Nós estamos num lugar, perdido na Amazônia, e vem um Phanton direitinho sobre nós, como se a cara da gente estivesse escrita no mapa. Vocês não pensaram nisso?

Hugo Ciência deu um pulo: — Uai! Eles têm um aparelho que faz referência sobre nós. Evidente!

Me ajuda aí, gordo, me ajuda a pensar. O gordo, estendido nas folhas, mascava uma planta aromática. — Ê um satélite — falou o gordo. — Um satélite que pega o cheiro da

gente. — Claro, claro — falou Hugo Ciência. — Vou dar um baile nesse satélite — falou o gordo. — Rá Rá. E dormiu. No dia seguinte acordaram às seis, comeram e marcharam. O efeito do bastão repelente terminou, agora eles iam ficar sabendo que

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o pior na Amazônia não é cobra, nem onça, nem nada, o pior é o inferno dos mosquitos. Era mosquito picando, mosquito picando, os meninos cocando, um ataque incessante, insuportável. A cada momento aumentava o número de buraquinhos vermelhos na pele deles, a Berenice chorava.

Iam pelo carreiro dos fanáticos, volta e meia achavam uma sepultura na terra, cavada recente.

Pararam para almoçar. As vinte lanchas, trazendo cento e oitenta bandidos, corriam em direção às crianças.

Ship O'Connors recebia do satélite a latitude e longitude dos meninos, conferia no mapa e esfregava as mãos, satisfeito:

— Amanhã alcançamos os pivetes. Berenice, que comia uma fruta, falou para o gordo: — Você não falou que ia dar um baile no satélite? Estou esperando. — É mesmo — disse o gordo. — Com essa coceira dos mosquitos já

tinha esquecido. O gordo tirou o tênis do pé direito e colocou na cabeça. Ninguém queira saber o que é chulé de pé de gordo, entranhado num

tênis que levou suor de pé de gordo durante 27 dias, na floresta mais quente do mundo. Edmundo, Berenice, Pituca e Hugo Ciência taparam o nariz, saíram correndo, dois gambás desmaiaram, uma jaguatirica teve um troço. Para o coitado do satélite cheirador, de centros olfativos supra-sensíveis, foi um fuá: a catinga do chulé do pé do gordo queimou os transistores, queimou as resistências, queimou os fusíveis, queimou os sensores, o chulé entrando lá dentro, o chulé chulezando tudo, o chulé esculhambando tudo, o satélite começou a fungar, o satélite começou a tossir, começou a sair fumacinha — o satélite explodiu.

— Olha lá o clarão no céu — falou Edmundo. — O chulé do gordo matou o satélite.

— Manda ele calçar esse tênis logo — disse Pituca. — Senão explodimos também.

Ship O'Connors mexia aflitamente nos botões do receptor dos sinais do satélite; as transmissões tinham parado.

— Diabo de máquina mal feita! O satélite estragou. — Não adianta continuar — falou Michael Pat. Ship O'Connors olhou para a linha de espuma que a lancha deixava no

rio Amazonas, pensou, pegou o mapa, fez umas contas na' calculadora e falou:

— Nada de desânimo. Antes de quebrar, o satélite marcou aqui no mapa a direção e a velocidade dos meninos. Devem continuar descendo rente à margem. Pelos cálculos que fiz, pegaremos eles por volta de onze e meia ou meio-dia.

As crianças seguiam o carreiro dos fanáticos, ensangüentados de mosquito, fizeram a marcha do dia e pararam para comer e dormir.

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De madrugada foram acordados pela voz de Hugo Ciência: — Estou com febre alta e muita dor de cabeça. Meu baço inchou. Peguei

malária. O auto-diagnóstico era correto; Hugo suava e tremia, sentindo muito trio,

e dali a pouco muito calor, depois frio de novo. — Ü ruim dos mosquitos — falou o gordo — é que infernizam e passam

doença. Eu e Hugo trocamos olhares, ao vermos aquelas covas dos religiosos; morreram de malária. Não falamos nada para não assustar a Berenice. Era inevitável que um de nós pegasse.

— Quem será o próximo? — perguntou Pituca. — Todos — disse o gordo. — Puxa — disse a Berenice. — Nos livramos do mais difícil para

sermos derrotados por mosquito. Não me conformo. Cortaram cipós, bem molhados, fizeram compressas, botaram na testa do

Hugo para baixar a febre, deram muito suco de fruta para ele, o Hugo sossegou um pouco, de manhã começou a delirar, dizendo:

— De camisola branca, deitada na alva cama da maternidade, Berenice contemplava o filho, gordo, redondo, igualzinho o pai. A jovem mãe sorria, sentia uma alegria que não cabia no mundo.

— Está recitando o meu livro — falou a Berenice. — Já imaginou se ele morre? Temos que salvá-lo, o Paixão Amazônica esta inteirinho na cabeça dele, fico sem livro se ele bate as botas.

— Interesseira — falou o gordo. — Esquisito este título — disse Pituca — Paixão vá lá, mas Amazônica?

É só filho pra lá, filho pra cá, não sai disso. Comeram, deram mais suco de fruta para o Hugo, fizeram uma maca,

com ramos, botaram o Hugo na maca e continuaram caminho. O gordo pegava na frente da maca e Edmundo atrás, Hugo, em seu

delírio de febre, ia contando o livro da Berenice. — O duro não é mosquito, nem carregar esse cara — falou o gordo. — O

duro é ficar ouvindo esse livro chato.

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33 Às onze e meia, Edmundo, Bolachão, Berenice e Pituca avistaram uma

clareira, casas, urna capela, galinhas, cachorros, cabras, jacamins, e um frade grande, bonito, galhardo, forte, corado. musculoso. barbudo, de batina marrom, sandálias e capuz; dava tremendas machadadas em uma enorme cruz de madeira que estava no chão.

— O frade limpou o suor e veio a eles: — Olá. Deus os proteja. Benvindos. Estou vendo que trazem um doente

de malária, vou mandar medicá-lo. Chamou dois frades barbudos, vestidos do mesmo jeito, que levaram

Hugo para a enfermaria, deitaram na cama e deram remédio. — Somos capuchinhos — falou o frade forte. — Meu nome é frade João.

sou descendente do Frère Jean des Entommeures, não sei se vocês ouviram falar. Tem uma reserva indígena aqui perto, nós damos assistência. Sou paraibano, vocês, pelo sotaque, já vi que são paulistas.

Naquele momento, as vinte lanchas, com os cento e oitenta capangas, todos de metralhadora, se aproximavam, em grande velocidade. Ship O'Connors ia em pé, na proa da lancha da frente, examinando a mata de binóculo.

— Que cruz colossal — falou a Berenice. — É você que fez? — Fiz ela do começo ao fim — disse o frade. Desde a árvore. Uma

beleza, não é? Vamos levantá-la domingo de manhã, na hora da missa, vai ficar bonita, na margem do rio. Sou orgulhoso desta cruz, falta um acabamento. Vocês devem estar ansiosos para comer uma coisa salgada, um frango ao molho pardo, com vinho tinto.

— Se estamos — disse o gordo. — Faz um mês que não comemos sal, só de pensar minha boca enche de saliva.

Pituca viu um pequeno avião Cessna pousado no fundo da clareira e falou:

— Frade João, nós queremos é fugir daqui, leve a gente naquele avião, o gordo explodiu o satélite que cheira mas os bandidos podem estar atrás de nós. São perigosos, matam sem piedade.

— Calma — disse frade João. — Vocês estão encaroçados de picada de mosquito, sujos, rasgados, vão tomar um banho primeiro, os chuveiros são lá.

Tomaram banho, uma ducha celestial, puseram roupas novas que o frade trouxe, passaram a pomada anestésica, as mordidas pararam de cocar, passaram repelex, os mosquitos pararam de picar.

O cheiro do frango ao molho pardo entrava no nariz deles. — Vamos! Vamos! Eia, avante, gordo demorado! Nunca vi gordo

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nenhum demorar tanto para tomar banho! — disse o frade. — O almoço está servido; enquanto comemos e bebemos vocês contam com mais detalhe essa história dos bandidos perseguirem vocês, gosto de ouvir aventuras. Uma boa conversa vale ouro.

— Pelo amor de Deus — pediu Pituca. — Leve a gente embora no avião, estamos em perigo.

— Pá Pá Pá — disse o frade. — Nem todos os bandidos do mundo me fariam adiar um bom almoço. Dai de comer a quem tem fome, dizem as Escrituras, eu sou homem de fé, obedeço o mandamento, cada vêz que tenho fome eu dou-me de comer.

Frade João deu a mão para Berenice e levou os meninos para o refeitório. No caminho ia falando:

— Você é muito bonita, minha paulista. Qual destes heróis é teu namorado?

— É o gordo. — Ah! Este gordo é um corisco — disse o frade. — Explode satélites,

conquista mulheres, o único defeito é que demora muito para tomar banho. Chegaram ao refeitório, dez frades capuchinhos estavam em volta da

mesa, cada um de pé, perante seu prato, de capuz marrom na cabeça, barbudos, parecia uma daquelas gravuras antigas de conto da carochinha. Havia talheres, copos e pratos para os meninos, frade João tinha lugar na cabeceira, ele fez a oração do almoço.

— Oh Deus, que estai nas alturas, Deus clemente, meu amigo Deus, fazei que estes frangos estejam ao ponto, tenros, saborosos, nem muito cozidos nem muito crus, fazei que o vinho esteja bom, protegei estas crianças, fazei que o almoço seja risonho.

Sentaram, começaram a comer, com apetite. — Você é um frade alegre — falou Berenice. — É que eu rezo muito, como muito, bebo vinho, e vivo ajudando os

outros, por isso tenho a alma pura e muitos amigos. Isto deixa a pessoa contente.

A conversa estava animada, Pituca contou o pedaço que a sucuri correu atrás do gordo, frade João sorveu um copo de vinho tinto, mordeu uma perna de frango e riu:

— Rá Rá. Essa é muito boa. O baiano falou que o gordo era o menino que a cobra não comeu. Rá Rá. Definição excelente. Quando a cobra não come a gente, a gente fica com a cara diferente mesmo.

— Puxa — falou Berenice. — O frade João já comeu trinta frangos! — E vou comer mais trinta, se Jesus me ajudar. Se você tivesse acordado

às quatro da manhã, derrubado e desgalhado uma árvore de sessenta metros para fazer uma cruz, estaria com tanta fome como eu.

— Você fez aquela cruz inteirinha hoje de manhã? — Faria duas, se vocês pedissem, meus valentes amigos paulistas.

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Edmundo olhou pela janela. — Olha aí! Vinte lanchas com um exército de capangas estão atracando

na margem. Os cento e oitenta bandidos entraram na clareira dos capuchinhos,

fizeram um semi-círculo em volta do refeitório, metralhadoras na mão. Ship O'Connors se adiantou, segurando um revólver, parou na porta do

refeitório e deu um tiro para o ar. — No meio do meu almoço — falou frade João. — No meio do meu

almoço. Como é que pode? No meio do meu almoço. .. Mas justo no meio do meu almoço.

Terminou de comer um frango, levantou-se, abaixou a cabeça para passar na porta, foi até Ship O'Connors e parou diante dele:

— Bom dia cavalheiro. Deus o tenha. Ouvi vosmecê bater na porta e vim atendê-lo.

Ship O'Connors riu, com ar superior. — Não bati em porta nenhuma, eu dei um tiro para o ar. Papa-hóstia!

Verme de frade! — Atirando para o ar vosmecê bateu na porta do céu, que é a

mesmíssima porta da nossa missão de capuchinhos. Papa-hóstia eu sou, é meu ofício, e verme de frade também sou, porque seu um frade humilde, terra-a-terra, vivo no chão, junto aos necessitados.

— Você conversa demais padreco. Está vendo estas cento e oitenta metralhadoras?

— Pela graça de Deus, não sou cego, enxergo bem. Agora vou dar um conselho a vosmecê: voltem para casa, deixe o papa-hóstia aqui terminar o almoço dele, que está esfriando, que vosmecê interrompeu, vão com a bênção de Deus e sejamos amigos.

— Nós só vamos matar as crianças. Elas estão no refeitório. Eu vi pela janela. Só isso. Se vocês não perturbarem, não lhes faremos nenhum mal. Só queremos matar as crianças. Do contrário matamos todo mundo. E chega de conversa padreco! Você fala pelos cotovelos.

— Ah. Só querem matar as crianças. Só isso? — Só isso. — Eu estava tratando vosmecês com civilidade — disse frade João. —

Vejo que não é possível. Terei que ser um pouco enérgico. Frade João, num zás-trás, deu um trompaço na fuça de Ship O'Connors,

que o atirou a trinta metros dali, curvou-se, pegou o pau da enorme cruz. levantou a meia-altura, deu uma volta em círculo, a cruz pegou impulso, a ponta da cruz zunindo, rasgou a barriga de quarenta e nove capangas, arrancou os intestinos deles para fora, era só intestino reto, grosso e delgado, movendo que nem lombriga pelo chão.

A um que dizia ai! o frade responde: — Corneta!

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Ao que dizia ui! o frade dizia: — Tigelinha! Ao que dizia mamãe! o frade ponderava: — Mane! Ao que gritava socorro! o frade gritava: — Mufafa! Ao que, puxando os intestinos do chão, dizia, "não posso mais", o frade

berrava: — Pinta rato! Os capangas sobreviventes alargaram o semi-círculo, sessenta deles

atiraram de metralhadora em frade João, mas a cruz protegia o frade, as balas ricocheteavam na madeira.

Frade João avançou nesses sessenta, xingando de pascácios, pacóvios, pataus, canguinhas, filisteus, chupistas, cotos, alpistes, mulhericos, pisa-estercos, fuça-esgotos, borra-botas, e assim como xingava e avançava, passou os braços da cruz pelas costas deles, puxou-os na sua direção, eles, com os braços da cruz nos fundi-lhos, vieram de cambulhada, se agachando e caindo; frade João ergueu mais a cruz, bateu de chapa com os braços da cruz no traseiro dos caídos, macetou os ossos do cóccix dos sessenta, com tal força que os fez vomitar a coluna vertebral, osso, por osso, vértebra por vértebra, para grande alegria dos cachorros da missão que iam mordendo os ossos fresquinhos e mastigando o tutano.

Os setenta e um que sobravam, completamente apavorados, como se estivessem vendo o demônio, em vez de um bom frade, largaram as metralhadoras e voltaram numa correria, a quem melhor-melhor, para as lanchas.

O frade chegou na margem, e Tum-Tum, era braçadada de cruz em cada lancha, as lanchas quebravam ao meio, pulavam baços, rins, fígados, olhos, dentes, maxilares, omoplatas, pâncreas, orelhas, joelhos, bexigas, dedos do pé, dedos da mão, pomos de Adão, artelhos, aortas. Michael Pat se atirou n'água, quando fez que ia nadar, reparou que estava sem pulmão, afundou e morreu.

Frade João viu que não sobrava ninguém, depositou a cruz no chão e voltou tranqüilamente para o refeitório, atacando-se a mais um frango.

Ship O'Connors acordava do piparote que levou do frade, observou a devastação em redor, seu exército escalongado, e fugiu para o mato.

O gordo percebeu e falou: — Esse desgraçado é meu. Por causa dele que mataram o Pirata. E entrou no mato, atrás de Ship O'Connors. Ship tentava correr pela selva, sobre a camada de folhas, mas o gordo

estava filho da floresta, fazia passo de ganso e passo de jabuti, corria melhor que a onça e muito mais do que a sucuri; num instante alcançou Ship O'Connors e gritou:

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— A nós dois, gringo sujo! O americano apontou o revólver, mas escorregou e afundou nas folhas, o

gordo envolveu-o em cipó, deu um laço no pescoço de Ship O'Connors, fez ponto de apoio com o pé no ombro dele, para puxar melhor o laço, e ia apertando e enforcando.

Ship O'Connors implorava: — Não me mate, gordo! Eu te dou dez bilhões de dólares, eu te dou a

Jandira, eu te dou meu Alfa Romeo, eu te dou a Amazônia, eu te dou o Brasil!

Quando o gordo ia dar a engasgada final em Ship O'Connors, lembrou que precisavam dele para indicar a posição do acampamento na floresta e ir lá salvar as crianças, por isso não matou.

Passou um peixe-elétrico, o gordo fez Ship O'Connors engolir o peixe-elétrico e trouxe o gringo amarrado ao pescoço, com cipó, que nem cabrito, dando choque, dando choque.

O gordo chegou na porta do refeitório, todos almoçavam, satisfeitos, e chamou frade João:

— Frade João! O Shipo Croma aqui quer lhe apertar a mão, quer ser seu amigo.

Frade João, com uma asa de frango na boca e o frasco de vinho na mão falou:

— Não custa nada apertar a mão de um bandido sem-vergonha. Jesus Cristo gostava de perdoar, vou seguir o exemplo.

Levantou o corpanzil da mesa, veio até a porta, apertou a mão de Ship O'Connors e levou um baita dum choque. O gordo riu. O frade abraçou o gordo e disse:

— Nessa você me pegou, gordo. Rá Rá. Você me pegou direitinho. Deixaram Ship O'Connors amarrado e voltaram a comer. — Mais frango, cozinheiro! — gritou frade João — Mais frango e mais

vinho! Esses bandidos quase nos fazem perder a paciência, não é, gordo? '.7- O gordo deu uma garfada e falou: — A paciência sim, mas não o apetite. Os dez capuchinhos caíram na gargalhada.

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JOÃO CARLOS MARINHO Nascido no Rio de Janeiro em 1935, João Carlos Marinho (cujo nome

completo é João Carlos Marinho Homem de Mello) fez os primeiros estudos em Santos, mudando-se logo para São Paulo onde cursou a admissão e o ginásio no Colégio Mackenzie. Em seguida, fixou residência em Lausanne, Suíça, onde obteve o certificado de Maturité Fédéfale Suisse. Em 1962, formou-se em Direito pela Faculdade do Largo São Francisco e passou a morar em Guarulhos onde foi titular do escritório de advocacia trabalhista J. C. MARINHO até 1987, ano em que voltou a morar em São Paulo.

Leia de João Carlos Marinho I

Aventuras da Turma do Gordo GÊNIO DO CRIME

CANECO DE PRATA SANGUE FRESCO

LIVRO DA BERENICE BERENICE DETETIVE

BERENICE CONTRA O MANÍACO JANELOSO

II Contos

PAI MENTAL E OUTRAS HISTÓRIAS

III Poesias

ANJO DE CAMISOLA O Gênio do Crime: Inaugurou em 1969 as aventuras da turma do gordo

(Bolachão), Berenice. Edmundo e Pituca. O Caneco de Prata: Biquinha. Mariazinha, Godofredo e Sílvia entram

para a turma. Primeira aparição da professora Jandira. Sangue Fresco: Prêmio Jabuti e Grande Prêmio da Crítica de 1982.

Hugo Ciência e Zé Tavares entram para a turma. Primeira aparição do frade João.

O Livro da Berenice: Um bandido grego, através de um sistema de

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computador, rouba o livro da Berenice, instantaneamente, enquanto ela o escreve. A turma e o frade João entram em ação. Primeira aparição do alucinante mordomo Abreu.

Berenice Detetive: Um mistério empolgante e uma obra-prima do suspense. Leia comentário na pagina seguinte.

Berenice contra o Maníaco Janeloso: Balas assassinas entram pelas janelas das escolas. O negócio é reagir. Mas é muito perigoso!

Pai Mental e outras histórias: Quatro histórias de uma beleza irresistível: quatro crianças em situações diversas, buscando compreender o mundo dos adultos, o mundo, e sobretudo a si próprias.

Anjo de Camisola: Obra poética que coloca João Carlos Marinho entre os poetas significativos da língua portuguesa.

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Opinião da renomada escritora Vivina de Assis Viana sobre o estilo de João Carlos Marinho e em especial sobre o livro BERENICE DETETIVE

Emoção na medida certa Quem estiver procurando, na literatura juvenil, obras quase mágicas,

sérias e divertidas ao mesmo tempo, contemporâneas e atemporais, aventurescas e científicas, não precisa ir longe, pedindo socorro aos escritores estrangeiros. A fórmula, ao alcance de todos, espalha-se fartamente pelos vários livros de João Carlos Marinho.

O último deles, Berenice Detetive (Global Editora, São Paulo), pode ser considerado como uma festa para os olhos e o espírito do leitor inteligente. Dominando com perfeição uma técnica difícil — a da literatura de suspense —, João Carlos Marinho transforma Berenice Detetive numa obra-prima do gênero policial.

Personagens e fatos, misturando-se e cruzando-se rápida e misteriosa-mente em ritmo crescente, fazem do livro de Marinho leitura imprescindível — para não dizer obrigatória, que soa mal — para jovens e adultos exigentes, acostumados ao compasso alucinante dos computadores ou fiéis à sintonia antiga dos realejos.

Não há como resistir ao fascínio da linguagem trabalhada pelo escritor paulistano, morando há alguns anos em Guarulhos, onde é advogado trabalhista.

Nessa linguagem, nada falta nem sobra, parecendo cronometrada para emocionar na medida certa. O cronômetro, magicamente, funciona. Se al-guém duvidar, é simples: basta ler o primeiro capítulo das aventuras in-críveis dessas crianças que, com as respectivas famílias, empregados e amigos, têm povoado os últimos livros do escritor.

De fato, para não se ler João Carlos Marinho, só há um jeito: não começar.

Começando, o processo, contagiante e contagioso, toma conta do leitor. E transforma-o num indivíduo mais rico e mais feliz interiormente. Um in-divíduo com a alma lavada, como se costuma dizer. Resultado da obra quase mágica do autor que enriquece o leitor desde o aparecimento do primeiro livro — O Gênio do Crime — em 1969.

Vivina de Assis Viana (Jornal da Tarde de 26/06/87) PRÊMIO MERCEDES-BENZ DE LITERATURA JUVENIL - 1988

MELHOR OBRA Considerado

"ALTAMENTE RECOMENDÁVEL PARA O JOVEM" pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil - 1988