José de Alencar - A pata da gazela

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MINISTRIO DA CULTURA Fundao Biblioteca Nacional Departamento Nacional do Livro A PATA DA GAZELA Jos de Alencar

I Estava parada na Rua da Quitanda, prximo da Assemblia, uma linda vitria, puxada por soberbos cavalos do Cabo. Dentro do carro havia duas moas; uma delas, alta e esbelta, tinha uma presena enca ntadora; a outra, de pequena estatura, muito delicada de talhe, era talvez mais linda que sua companh eira. Estavam ambas elegantemente vestidas e conversavam a respeito das compras que j t inham realizado ou das que ainda pretendiam fazer. Daqui aonde vamos? perguntou a mais baixa, vestida de roxo-claro. Ao escritrio de papai: talvez ele queira vir conosco. Na volta passaremos pela Ru a do Ouvidor, respondeu a mais esbelta, cujo talhe era desenhado por um roupo cinzento. O vestido roxo debruou-se de modo a olhar para fora, no sentido contrrio quele em q ue seguia o carro, enquanto o roupo, recostando-se nas almofadas, consultava uma carteirinha de lemb ranas, onde naturalmente escrevera a nota de suas encomendas. O lacaio ficou-se de uma vez! disse o vestido roxo com um movimento de impacincia . verdade! respondeu distraidamente a companheira. Estas palavras confirmavam o que alis indicava o simples aspecto da carruagem: as senhoras estavam espera do lacaio, mandado a algum ponto prximo. A impacincia da moa de vestido roxo era pa rtilhada pelos fogosos cavalos, que dificilmente conseguia sofrear um cocheiro agaloado. Depois de alguns momentos de espera, sobressaltou-se o roupo cinzento, e, concheg ando-se mais s almofadas, como para ocultar-se no fundo da carruagem, murmurou: Laura!... Laura!... E, como sua amiga no a ouvisse, puxou-lhe pela manga. O que , Amlia? No vs? Aquele moo que est ali defronte nos olhando.

Que tem isto? disse Laura sorrindo. No gosto! replicou Amlia com um movimento de contrariedade. H quanto tempo est ali e sem tirar os olhos de mim? Volta-lhe as costas! Vamos para diante. Como quiseres. Avisado o cocheiro, avanou alguns passos, de modo a tirar ao curioso a vista do i nterior do carro; mas o mancebo no desanimou por isso e, passando de uma a outra porta, tomou posio conveni ente para contemplar a moa com uma admirao franca e apaixonada. Simples no trajo e pouco favorecido a respeito de beleza; os dotes naturais que excitavam nesse moo alguma ateno eram uma vasta fronte meditativa e os grandes olhos pardos, cheios do brilho profundo e fosforescente que naquele momento derramavam pelo semblante de Amlia. Havia minutos que, percorrendo a Rua da Quitanda em sentido oposto direo do carro, avistara a moa recostada nas almofadas, e sentira a seu aspecto viva impresso. Sem disfarce ou a canhamento, recostando-se ombreira de uma porta de escritrio, esqueceu-se naquela ardente contemplao. O corao um solo. Vale onde brotam as paixes, como os outros vales da natureza inani mada, ele tem suas estaes, suas quadras de aridez ou de seiva, de esterilidade ou de abundncia. Depois das grandes borrascas e chuvas, os calores do sol produzem na terra uma f ermentao, que forma o humo; a semente, caindo a, brota com rapidez. Depois das grandes dores e das lgrim as torrenciais, forma-se tambm no corao do homem um humo poderoso, uma exuberncia de sentimento que precisa de exp andir-se. Ento um olhar, um sorriso, que a penetre, semente de paixo e pulula com vigor extremo. O moo parecia estar nessas condies: ele trajava luto pesado, no somente nas roupas n egras, como na cor macilenta das faces nuas, e na mgoa que lhe escurecia a fronte. Notando Amlia a insistncia do mancebo, ficou vivamente contrariada. Aquele olhar p rofundo, que parecia despedir os fogos surdos de uma labareda oculta, incutia nela um desassossego nt imo. Agitava-se impaciente, como uma criatura no meio de um sono inquieto ou mesmo de um ligeiro pesadelo. At que abriu o chapeuzinho-de-sol para interceptar a contemplao apaixonada de que e ra objeto. Nesta ocasio, Laura, que freqentemente se debruava para ver quando vinha o lacaio, retrai u o corpo com vivacidade: Enfim; a vem!

Felizmente! disse Amlia. O lacaio aproximava-se a passos medidos; trazia na mo um embrulho de papel azul, que o atrito dos dedos e a oscilao dos objetos envoltos desfizera, obrigando o portador a apert-lo de vez em q uando. Julgando ao cabo de alguns instantes que o lacaio j tocava o estribo da carruagem , Amlia, tomando um tom imperativo, disse para o cocheiro: Vamos! vamos! Ao aceno que lhe fez o cocheiro, o lacaio correu, chegando a tempo de apanhar o carro, que partia ao trote largo da fogosa parelha. Deitar o embrulho na caixa da vitria, rodear em dois sal tos e galgar o estribo da almofada, foi para o criado, habituado a essa manobra, negcio de um instante. No percebera ele, porm, que, abrindo-se o papel com a corrida, um dos objetos nele contidos escorregara e, justamente na ocasio d e deitar o embrulho na caixa do carro, cara na calada. Laura, que se inclinara com vivo interesse para tomar o embrulho das mos do lacai o, tivera um pressentimento do acidente, ao ver o papel desenrolado. Fechando-o rapidamente e escondendo-o por baixo do assento da vitria, ela debruou-se ainda uma vez para verificar se com efeito alguma coisa havia cado. Ao mesmo tempo acompanhava o movimento com estas palavras de contrariedade: Como ele manda isto! Por mais que se lhe recomende! Laura nada viu, porque j a vitria rodava ligeiramente sobre os paraleleppedos. Nesse momento, porm, dobrando a Rua da Assemblia, se aproximara um moo elegante no s no traje do melhor gosto, como na graa de sua pessoa: era sem dvida um dos prncipes da moda, um dos lees da Rua do Ouvidor; mas desse podemos assegurar pelo seu parecer distinto que no tinha usurp ado o ttulo. O mancebo viu casualmente o lacaio quando passara por ele correndo, e percebeu q ue um objeto cara do embrulho. Naturalmente no se dignaria abaixar para apanh-lo, nem mesmo deitar-lhe um olhar, se no visse aparecer ao lado da vitria o rosto de uma senhora, que o aspecto da carruagem indicava perten cer melhor sociedade. Ento apressou-se, para ter ocasio de fazer uma fineza e pretexto de conhecer a sen hora, que lhe parecera bonita. Os lees so apaixonadssimos de tais encontros; acham-lhes um sainete que des tri a monotonia das relaes habituais. Quando o moo ergueu-se com o objeto na mo, j o carro dobrava a Rua Sete de Setembro . Ficou ele um momento indeciso, olhando em torno, como se esperasse alguma informao a respeito d a pessoa a quem pertencia o

carro. Sem dvida a senhora era conhecida em alguma loja de fazendas; talvez tives se a feito compras. No obtendo, porm, informaes, nem colhendo resultado da pergunta que fizera a um caix eiro prximo, resolveu-se a meter o objeto no bolso e seguir seu caminho.

II Horcio de Almeida, o nosso leo, voltou a casa hora do costume, quatro da tarde. Os sucessivos encontros da Rua do Ouvidor; a conversa no Bernardo; a visita indi spensvel ao alfaiate; as anedotas do Alcazar na noite antecedente; a crnica anacrentica do Rio de Janeiro, chistosamente comentada; algumas rajadas de maledicncia, que a pimenta social; todas essas ocupaes importantes, que absorvem a vida do leo, distraram Horcio a ponto de se esquecer ele do objeto guardado no bolso do palet. Como admitir que um prncipe da moda no aproveitasse a aventura do carro, para sobr e ela bordar um romance de rua, com que excitasse a curiosidade dos amigos? Realmente admirvel; e seria incompreensvel se no fosse a circunstncia de ter poucos passos adiante encontrado uma das mais ricas h erdeiras do Brasil, a quem o nosso leo arrastava... ia dizer a asa, mas isso seria anacronismo; dizia-se no tempo e m que os lees se chamavam galos; hoje deve dizer-se arrastar a juba; mais bonito e indica mais submisso. Arrastar a asa enfunar-se; arrastar a juba prostrar-se. Foi s quando, recostado em sua otomana, descansava para o jantar, que Horcio, proc urando a carteira de charutos no bolso do fraque, lembrou-se do objeto. Teve ento curiosidade de exami n-lo; sabia o que era; na ocasio de apanh-lo reconhecera o p de uma botina de senhora; mas no fizera grande reparo. Agora, porm, que de novo o tinha diante dos olhos, a ss em seu aposento e despre ocupado da idia de o restituir, Horcio achou o objeto digno de sria ateno; e, aproximando-se da janela, c omeou um exame consciencioso. Era uma botina, j o sabemos; mas que botina! Um primor de pelica e seda, a conc ha mimosa de uma prola, faceira irm do lindo chapim de ouro da borralheira; em uma palavra a botina desab rochada em flor, sob a inspirao de algum artista ignoto, de algum poeta de ceir e torqus. No era, porm, a perfeio da obra, nem mesmo a excessiva delicadeza da forma, o que se duzia o nosso leo; eram sobretudo os debuxos suaves, as ondulaes voluptuosas que tinham deixado na pe lica os contornos do pezinho desconhecido. A botina fora servida, e muitas vezes; embora estivesse ainda bem conservada, o desmaio de sua primitiva cor bronzeada e o esfrolamento da sola indicavam bastante uso.

Se fosse um calado em folha, sado da loja, no teria grande valor aos olhos do nosso leo, habituado no s a ver, como a calar, as obras-primas de Millis e Camps. Talvez reparando muito naque la pea que tinha nas mos, notasse maior elegncia no corte e um apuro escrupuloso na execuo; porm, mais natural seria escapar-lhe essa mnima circunstncia. Mas a botina achada j no era um artigo de loja, e sim o traste mimoso de alguma be leza, o gentil companheiro de uma moa formosa, de quem ainda guardava a impresso e o perfume. O r osto estufava mostrando o firme relevo do pezinho arqueado. Na sola se desenhava a curva graciosa da plant a sutil, que s nas extremidades beijava o cho, como o silfo que frisa a superfcie do lago com a ponta das asas. H um aroma, que s tem uma flor na terra, o aroma da mulher bonita: fragrncia volupt uosa que se exala ao mesmo tempo do corpo e da alma; perfume inebriante que penetra no corao como o amo r volatilizado. A botina estava impregnada desse aroma delicioso; o delicado tubo de seda, que se elevava como a corola de um lrio, derramava, como a flor, ondas suaves. O mancebo colocara longe de si o charuto para no desvanecer com o fumo os bafejos daquele odor suave. No havia a o menor laivo de essncia artificial preparada pela arte do perfumista; era a pura exalao de uma ctis acetinada, esse hlito de sade que perspira atravs da fina e macia tez, e como atravs das ptalas de uma rosa. De repente uma idia perpassou no esprito do moo, que o fez estremecer. Essa botina grcil, em que mal caberia sua mo aristocrtica, essa botina mais mimosa do que sua luva de pelica, no podia ter um nmero maior do que o de seus anos, vinte e nove! Ser de uma menina! murmurou ele um tanto desconsolado.

Examinou novamente a obra-prima, voltou-a de todos os lados, apalpou docemente o salto e o bico, dobrou a orla da haste, sondou o interior da concha, que servira de regao ao feiticeiro pe zinho. Depois de alguns instantes deste exame profundo e minucioso, um sorriso expandiu o semblante de Horcio. de moa, de mulher! murmurou ele. Aqui esto os sinais evidentes; no podem falhar. A a de dipo uma verdade eterna: no enigma da esfinge est realmente o mito da vida. O home m o animal que de manh anda sobre quatro ps; ao meio-dia sobre dois; tarde sobre trs. Na infncia, a criatu ra, como a planta, conserva-se rasteira, brota, pulula, mas conchega-se mais ao solo, de que recebe toda a nutr io; as mos servem-lhe de ps. Depois da juventude, na poca da expanso, a criatura se lana para o espao, exalta-se: a rvore que hasteia e procura as nuvens; a planta pede ao cu os orvalhos e a luz do sol; a alma pede a crena, a f, a esperana, de que se geram as flores, que ns chamamos paixes. Na velhice, o homem se inclina de novo para a terr a, como o tronco carcomido; o p, que, depois de revoar no espao, deposita-se outra vez no cho. Ento o velho precis

a do bordo; uma das mos torna-se p e cala esse coturno da mais triste das tragdias humanas, a decrepitude. Horcio observou de novo atentamente o objeto que tinha entre as mos.

A menina de quinze anos j no a cora de quatro patas; no est mais na alvorada da vida, na puercia; tambm ainda no chegou ao meio-dia do qual aproxima-se. Contudo, seu andar conserva ainda aquela atrao para a terra; pesado; calca o cho com fora; tem o quer que seja de sacudido, que revela o s impulsos da alma para desprender-se do p e elevar-se; assemelha a singradura do batel, que ora se levan ta, ora submerge-se. Se esta botina fosse de uma menina, aqui estariam impressos esses caracteres de sua idade. A so la, em vez de levemente triturada nas extremidades, estaria estragada; o salto cambado. uma observao que todo sapateiro confirmaria: o menino gasta o calado pela sola, o homem pelo couro; a razo, o sapateiro a ignora, mas o filsofo a conhece: o menino o inseto que rasteja, a larva; o homem o inseto que voa, o besouro; aquele anda com o ventre, este com a asa. Horcio sorriu.

Esta botina de moa; e moa em todo o vio da juventude: a sola apenas roada junto pont , o salto quase intato, no esto descrevendo com a maior eloqncia a sutileza do passo ligeiro? Eu sin to, posso dizer, eu vejo, esse andar gentil, que manifesta a deusa, como disse o poeta; a deusa, a Vnus deste ol impo em que vivemos, a mulher. S quando toda a seiva se precipita para o corao, quando germinam os botes que mais ta rde abriro em flor, s nesse momento de assuno que a mulher tem este andar sublime e augusto. o andar do passar inho que, roando a relva, sente o impulso das asas; o andar do astro nascente, caminhando para a ascenso; o andar do anjo que, mesmo tocando a terra, parece prestes a fugir ao cu; , finalmente, a elao d'alma que aspi ra de Deus os eflvios do amor, do amor nico ambiente do corao! Nisto o moo descobriu na fivela do lao da botina alguma coisa que lhe excitou vivo reparo; chegando-se luz, viu as voltas de um fio, que prendeu entre as brancas unhas afiladas, verda deiras garras de leo da moda. Com alguma pacincia retirou um longo cabelo castanho e muito crespo. Outra prova de que alis no carecia! Este cabelo de mulher; no h menina que o possa te r. Quatro palmos, alm do que se partiu naturalmente! Bem se v que uma palmeira frondosa, e no um arbu sto! Tem o cabelo castanho e crespo, duas coisas lindas sem dvida, embora minha paixo seja a trana basta e lis a, negra como uma asa de corvo. Esse negrume d mulher o quer que seja de satnico: lembra que ela tambm gerou-se da terra; no anjo somente; no somente filha do cu. Eu no posso suportar a mulher-serafim, que parece desdenhar do mundo onde vive, e do p de que feita. Horcio voltou botina.

Mas seja embora castanha, ou mesmo loura, que uma cor inspida de cabelo! Que me im porta isto? Tenho alguma coisa com seu cabelo? O que amo nela o p: este p silfo, este p anjo, que me fascina, que me arrebata, que me enlouquece!... Horcio, que at ento se contentava com olhar e apalpar a botina, inclinou-se e beijo u-a no rosto; mas tmida e respeitosamente. No era essa a imagem do p sedutor, que ele adorava como um dolo? Mas onde encontr-lo? como reconhec-lo? idade da situao. exclamou dolorosamente Horcio, sentindo a real

Nenhum indcio que lhe revelasse o nome da mulher a quem pertencia essa gentil bot ina, ou lhe indicasse ao menos os traos de sua passagem. A lembrana vaga da libr de um lacaio era o nico vestg io que restava; mas com este dificilmente poderia descobrir o objeto de sua adorao. H tantos lacaios no Rio de Janeiro; e tantas librs que se confundem! Talvez nunca mais encontrasse aquele que procurava; e encontrando, ne m o reconhecesse. Desgraado! dizia o leo. uro deixara cair aquele bruto? Quase nem o olhaste; mas podias tu adivinhar, Horcio, que teso

O mancebo inclinara ao peito a bela cabea esmorecida; a ventura lhe tinha sorrido de longe, para escarnecer dele, o leo mais querido das belezas fluminenses, o tila do Cassino, o Genserico d a Rua do Ouvidor. De repente ergueu-se dum mpeto: Hei de possu-lo!... a sia. exclamou ele com o tom com que Alexandre se prometeu o imprio d

III Ningum imagina que belos talentos sorve essa voragem do mundo, que chamam a vida elegante. So como as rvores luxuriantes que se vestem de linda folhagem, e consomem toda a s eiva nessa gala estril e efmera. Nunca elas do fruto, nem sequer flor. Horcio de Almeida era uma de tantas inteligncias desperdiadas no incessante bulcio d a moda. Muitos poetas, dos que tm seu nome estampado em rosto de livro, no empregaram na fb rica de seus versos o aticismo, a inspirao e a graa com que o nosso leo torneava no baile um galanteio, ou aguava um epigrama. Pintores so festejados, que no sabem o segredo dos toques delicados e do supremo g osto, que Horcio imprimia no lao de sua gravata, em suas maneiras distintas, nos mnimos acidentes d

e seu trajo apurado. E a fisiologia? Poucos homens conheciam como Horcio o corao da mulher; porque bem raros o teriam es tudado com tanta assiduidade. O mais sbio professor ficaria estupefato da lucidez admirvel, com que o leo costumava ler nesse caos da paixo, que a anatomia chamou corao de mulher. A razo simples. O professor estudou no gabinete; consultou as obras dos mestres, coligiu observaes alheias, e arranjou um sistema sobre o que no sofre regras: sobre a paixo cuja essn cia o imprevisto, o anmalo, o indefinvel. Ao contrrio, Horcio tinha estudado na realidade da vida; devassara os refolhos do plipo, lhe sentira as pulsaes, e fizera experincias in anima vili. No fatigou sua memria com a intil bagagem dos termos tcnicos e das noes cientficas: lia os hierglifos do amor com a linguagem garrida do homem da moda. A perspiccia do olhar, a profundeza da investigao e a certeza de observao, com que o nosso leo sondava o abismo do corao e rastreava no semblante da mulher os vagos sintomas de uma incl inao nascente, ou de uma afeio expirante, s os grandes mdicos possuem to altos dotes. Assim gastava Almeida a mocidade, desfolhando seu belo talento pelas salas e pon tos de reunio. As riquezas de sua elevada inteligncia, as ia ele esparzindo nas elegantes futilidades de um c io to laborioso, como o far niente de um leo. Consumir o tempo no se apercebendo de sua passagem; livrar-se do fardo pesado das horas sem ocupao; h nada mais difcil para o homem que ignora o trabalho?

Se o Almeida poupasse desse tempo to esperdiado alguns momentos no dia para dedic-l os a um fim srio e til, cincia, literatura, arte, que belos triunfos no obteria sua rica imaginao ser a por um esprito cintilante? Mas o nosso leo tinha a este respeito idias excntricas.

A poltica , dizia ele, quando no d em especulao, passa a mistificao. A cincia, se e mania, torna-se uma gleba em que o sbio trabalha para o nscio. Literatura e arte so plgios; quem pode fazer poesia e romance ao vivo, no se d ao trabalho de reproduzi-los; nem contempla esttuas, quem lhes admira os modelos animados e palpitantes . Com tais paradoxos, Horcio no achava emprego mais digno para a inteligncia, do que a difcil cincia de consumir gradualmente a vida e atravessar sem fadiga e sem reflexo por este vale de lgrimas, em que todos peregrinamos. A mulher era para ele a obra suprema, o verbo da criao. Toda a religio como toda a

felicidade, toda a cincia como toda a poesia, Deus a tinha encarnado nesse misto incompreensvel do su blime e do torpe, do celeste e do satnico: amlgama de luz e cinzas, de lodo e nctar. Amar adorar a Deus na sua ara mais santa, a mulher. Amar estudar a lei da criao em seu mais profundo mistrio, a mulher. Amar admirar o belo em sua mais esplndida revelao; fazer poemas e esttuas como nunca as realizou o gnio humano. Mas o que sentia Horcio era apenas o culto da forma, o fanatismo do prazer. O amor, o verdadeiro amor consiste na possesso mtua de duas almas; e essa, pode o homem iludir-se alguma vez, mas quando se realiza, indissolvel. Nada separa duas almas gmeas que prende o vnculo de sua origem divina. O mancebo admirava na mulher a formosura unicamente: apenas artista, ele procura va um tipo. Durante dez anos atravessara os sales, como uma galeria de esttuas animadas e vivos painis, par ando um instante em face dessas obras-primas da natureza. Vieram uns aps outros todos os tipos: a beleza ardente das regies tpidas, ou a suav e gentileza da rosa dos Alpes; o moreno voluptuoso ou a alvura do jaspe; a fronte soberana e altiva ou o gesto gracioso e meigo; o talhe opulento e garboso ou as formas esbeltas e flexveis. Seu gosto foi-se apurando; e ao cabo de algum tempo tornou-se difcil. A beleza co mum j no o satisfazia; era preciso a obra-prima para excitar-lhe a ateno e comov-lo. Mas os sentidos se gastam; os mesmos primores da formosura caram na monotonia. J o leo no sentia pela mais bela mulher aqueles entusiasmos ardentes da primeira mocidade. Seu olhar er a frio e severo como o de um crtico. Ento comeou o moo a amar, ou antes a admirar, a mulher em detalhe. Sua alma embotad a carecia de um sainete. Foi a princpio uma boca bonita, cofre de prolas, de sorrisos, de beijos e harmonias. Veio depois uma trana densa e negra, como a asa da procela que se inflama. Uma cintura de slfide, um co lo de cisne, um requebro sedutor, um sinal da face, uma graa especial, um no-sei-qu: tudo recebeu culto do nosso leo. Como um conviva, a quem as iguarias do banquete j no excitam, sua alma babujava na sala essas gulosinas. Mas afinal embotou-se; e o prazer no foi para ela mais do que a vulgar satisfao de um hbito. O moo cortejava as senhoras como uma ocupao indispensvel sua vida, como o desempenho da tarefa diria; mas sem a menor comoo. Amar era um entretenimento do esprito, como passear a cavalo, freqentar o teatro, jogar uma partida de bilhar.

O amor j no tinha novidades nem segredos para ele, que o gozara em todas as formas ; na comdia e no drama; no idlio e na ode. Como Richelieu, diziam at que ele j o havia calcado com o taco da bota. Nestas circunstncias bem se compreende a impresso profunda que nele produzia a mim osa botina, achada naquela manh. Almeida tinha admirado a mulher em todos os tipos e em todos os seus encantos; m as nunca a tinha amado sob a forma sedutora de um pezinho faceiro. Era realmente para surpreender. Como lhe passara despercebido esse condo mgico da mulher, a ele que julgava ter es gotado todas as emoes do amor? Sucedeu, como era natural, que uma vez percutidas as energias dessa alma enervad a por longa apatia, a reao foi violenta. Inflamou-se a imaginao e especialmente com o toque do mistrio que tra zia a aventura. Se o dono da botina, o sonhado pezinho, se mostrasse desde logo, no produziria o mesmo efeito; no teria o sabor do desconhecido, que irmo do proibido. Imagine, quem conhecer o corao humano, a veemncia dessa paixo, excitada pelo tdio do passado e alimentada por uma imaginao ociosa. De que loucuras no capaz o homem que se torna l udbrio de sua fantasia? As extravagncias de Horcio, contemplando a botina, verdadeiras infantilidades de h omem feito, bem revelavam a agitao dessa existncia, embotada para o verdadeiro amor e gasta pelo pr azer. No se riam, homens srios e graves, no zombem de semelhantes extravagncias; so elas o delrio da febre de materialismo que ataca o sculo. Essa paixo de Horcio, o que seno uma aberrao da alma, consagrada ao culto da matria? voracidade insacivel do desejo vai criando dessas monstruosidades incompreensveis. Sucede a esta embriaguez do amor o mesmo que embriaguez do lcool. A princpio basta -lhe o vinho fino e aristocrtico; depois carece da aguardente; e, por fim, j no a satisfaz a infuso de g engibre em rum, isto , a lava de um vulco preparada guisa de grogue.

IV Ao mesmo tempo que o nosso leo, entrava Leopoldo de Castro na modesta habitao que e nto ocupava na Glria. Quando lhe fugira a celeste viso, o mancebo foi seguindo com o passo e com os olh os o carro que levava sua

alma presa quele rosto encantador. O passo era rpido e o olhar ardente; um ansiava por chegar; o outro quisera atrair pela fora da paixo, pelo m das centelhas magnticas que desferia a alma. Fosse iluso dos sentidos perturbados pela comoo interior, ou breve e confusa percepo da realidade, julgou o moo ver, no momento do dobrar o carro pela Rua Sete de Setembro, um talhe esbel to inclinar-se para a frente, e aparecer de relance um rosto alvo, donde escapou-se vivo e rpido olhar. Leopoldo no tinha o intento de alcanar, nem mesmo seguir, o carro que fugia com ve locidade; mas embalava-o a esperana de que um obstculo qualquer, impedindo por instantes o livre trnsito, lhe permitisse outra vez contemplar a moa. Quando, porm, isso no sucedesse, consolava-o a idia de conhecer a direo que tomaria a linda vitria. Se eu soubesse ao menos para que lado mora ela!... Esse ponto seria o meu horizon te, o meu cu. Eu me voltaria para ali quando adorasse a Deus e quando conversasse com ela. Amaria as estrelas, as nuvens e at as borrascas dessa banda do firmamento; amaria as ruas, as caladas e at a poeira desse arrabald e da cidade. O mancebo vagou assim durante duas horas, percorrendo as ruas sem destino. No era tanto a esperana de ver a moa, ou somente o carro, como a necessidade de ocupar seu esprito, o que o impel ia nessa perseguio de uma sombra.

Eu tornarei a v-la , pensava ele consigo; e ela me h de amar, tenho convico. O amor u agnetismo; eu acredito que o magnetismo se resume nele; que a lei da atrao no seno a lei da sim patia; os plos so a cabea e o corao, na terra como no homem. Se ela for a mesma que eu vi com os olhos de minh a alma, a mesma que se revelou minha paixo, aquela a que devo unir-me eternamente para formar um ser mais perfei to, eu caminharei para ela, como ela para mim, impelidos por uma fora misteriosa, por mtua aspirao . Com o nimo repousado por essa convico que nele se derramara, entrou Leopoldo em cas a. A o esperava o isolamento em que se ia escoando sua vida, depois da perda de uma irm a quem ador ava. Nessa irm tinha ele resumido todas as afeies da famlia, prematuramente arrebatada su a ternura; o amor filial, que no tivera tempo de expandir-se, a amizade de um irmo, seu companheiro de infncia, todos esses sentimentos cortados em flor, ele os transportara para aquele ente querido, que era a imagem de sua me. Essa perda deixara um vcuo imenso no corao de Leopoldo; a princpio enchera-o a dor, depois a saudade; agora essa mesma terna saudade sentia-se desamparada na profunda solido daquele c orao ermo. O mancebo carecia de uma afeio para povoar esse deserto de sua alma, de uma voz que repercutisse nes se lgubre silncio. to doce partilhar sua melancolia, ou seu prazer, com um outro eu, com um amigo ou uma es

posa. So dois ombros para a cruz, e dois peitos para a alegria; alivia-se o peso, mas duplica-se o gozo. Ao cair da tarde, quando o crepsculo j desdobrava sobre a cidade o vu de gaza parda centa, Leopoldo, sentado janela de peitoril de sua casa, fumava um charuto, com os olhos engolfad os no azul difano do cu, onde cintilava a primeira estrela. A seus ps desdobrava-se a baa plcida e serena como um lago, com a sua graciosa cintura de montanhas, caprichosamente recortadas. O esprito do moo no se embebia decerto na perspectiva dessa encantadora natureza, s empre admirada e sempre nova. Ao contrrio, abandonava-se todo s recordaes de seu encontro pela manh e aos enlevos que lhe deixara a contemplao da linda moa. Passava e repassava em sua memria, como em um cad inho, todas as circunstncias mnimas deste grande e importante acontecimento, desde o momento em q ue assomou a viso at que desapareceu por ltimo ao dobrar o canto da rua. Achava nisso o e os favos j saboreados: l os de mel eram movimentos, os mesmo prazer, que um menino guloso experimenta em chupar novament ficou um raio de mel, que o lbio vido colhe. Para Leopoldo, esses rai os olhares, os sorrisos da moa, avivados pela maior contenso do esprito.

Houve uma ocasio em que o mancebo quis representar em sua lembrana a imagem da moa; naturalmente comeou interrogando sua memria a respeito dos traos principais. Como era ela? Alta ou baixa, torneada ou esbelta, loura ou morena? Que cor tinham seus olhos? A nenhuma dessas interrogaes satisfez a memria; porque no recebera a impresso particu lar de cada um dos traos da moa. No obstante, a apario encantadora ressurgia dentro de sua alma; ele a revia tal como se desenhara a seus olhos algumas horas antes. Era a imagem difana de um sonho que t omara vulto gracioso de mulher. No me lembro de seus traos, no posso lembrar-me!... Eu a contemplei, como se contem pla uma luz brilhante: v-se a chama, o esplendor, e nem se repara no espectro que a flama env olve como uma roupagem. Ela minha luz; no sei a cor e a forma que tem, mas sei que cintila, que me deslumbra; que inunda meu ser de uma aurora celeste. No poderia descrev-la, como um poeta... Mas que importa? Pois que eu a si nto em mim; pois que eu a possuo em meu corao? As plpebras do mancebo cerraram-se coando apenas uma rstia de olhar, que se embebi a nas alvas espirais da fumaa do charuto. Percebia-se que naquela nvoa se debuxava sua imaginao a sedutora i magem, diante da qual ele caa em xtases de uma doura inefvel. Quem sabe? Talvez no seja ela o que nos bailes se chama uma moa bonita; talvez no te nha as feies lindas e o talhe elegante. Mas eu a amo!... O amor sol do corao; imprime-lhe o bri lho e o matiz! Vnus, a deusa da

formosura, surgindo da espuma das ondas, no outra coisa seno o mito da mulher amad a, surgindo dentre as puras iluses do corao! O que eu admiro nela, o que me enleva, sua beleza celeste; o anjo que transparece atravs do invlucro terrestre; a alma pura e imaculada que se derrama de seus lbios em sorris os, e a envolve como a cintilao de uma estrela. Leopoldo j no estava s na existncia; tinha para acompanh-lo na esperana essa doce apar io, como para partilhar a saudade tinha a memria querida de sua irm. O corao aproximou as duas ima gens; ligou-as por algum vnculo misterioso; e criou assim uma famlia ideal, em cujo seio viveu para o futur o, como para o passado. Nas horas do trabalho, o moo absorvia-se completamente nas ocupaes habituais e cerr ava sua alma para no deixar que as misrias do mundo a penetrando profanassem o templo de sua adorao, o te mplo da esperana e da saudade. Fora dessas longas horas, encerrava-se naquele asilo e a vivia. Alguns dias depois do encontro da Rua da Quitanda, o Castro, percorrendo distrai damente os jornais da manh, deu com os olhos sobre os anncios de espetculo, coisa que desde muito tempo no exis tia para ele. Representava-se no Teatro Lrico a Lucia de Lammermoor, o mais sublime poema de melancolia, que j s e escreveu na lngua dos anjos. O mancebo teve um desejo irresistvel de ir aquela noite ao espetculo, apesar de co nservar ainda o luto pesado. No compreendia esse capricho de seu corao; atribuiu-o ao encanto das remini scncias daquela msica to triste, e tambm daquele amor to estremecido, que os homens quiseram romper, mas a fatalidade uniu para sempre no tmulo. Ele ia saturar-se de tristeza; no havia, portanto, profanao de uma dor santa. Eram perto de dez horas; cantava-se o final do segundo ato da pera, e Leopoldo, s entado em uma cadeira, do lado direito, estava completamente absorvido no canto magistral de Lagrange e Mi rati. Um momento, porm, ergueu os olhos, e, volvendo-os lentamente, fitou-os em um camarote de segunda ordem. Estr emeceu; o olhar morno e bao que se escapava de sua pupila iluminou-se de fogos sombrios e ardentes. Vira a mulher amada. Amlia estava nessa noite em uma de suas horas de inspirao; a mulher bela tem, como o homem de inteligncia, em certos momentos, influies enrgicas de poesia; nessas ocasies ambos ir radiam: a mulher fica esplndida, o homem sublime. O talhe esbelto da moa desenhava-se atravs da nvea transparncia de um lindo vestido de tarlatana com laivos escarlates. Coroava-lhe a fronte o diadema de suas belas tranas, donde res valavam dois cachos soberbos, que brincavam sobre o colo. Os cabeleireiros chamam esses cachos de arrependimentos, repentirs. Por que motivo? A alma que se arrepende convolve-se daquela forma; o pesar a confrange. J se v que os cab eleireiros tambm so poetas.

No foi, porm, o suave perfil da moa, nem os contornos macios de suas formas gentis, o que arrebatou o esprito do mancebo. Ele s viu a luz, o brilho d'alma, rorejando do sorriso. Contem plava a rosa, embebia-se nela, sem contar-lhe as ptalas. Amlia, que apoiava o lindo brao sobre a almofada de veludo da balaustrada, prestav a ateno cena, recolhendo s vezes a vista para discorr-la vagamente pelos camarotes fronteiros. D epois que o pano caiu, conservouse na mesma posio, conversando com sua me e Laura que ali estava de visita. Ento vol tou rapidamente o rosto, e deixou cair sobre a platia um olhar sbito e vivo. Foi uma centelha eltrica, listran do no espao, para logo apagar-se. Revelou-se no semblante da moa alguma inquietao e visvel incmodo. Quis disfarar, mas a final ergueuse, para ocultar-se no interior do camarote, por detrs de Laura, a qual ocupava o outro lugar da frente. O olhar que deitara platia encontrou o olhar profundo e ardente de Leopoldo; e, b atendo de encontro a esse raio brilhante, reagiu como estilete para feri-la no corao. Leopoldo notou vagamente esse movimento; mas como entre a coluna e o busto de La ura ele via a sombra da mulher a quem amava, no se interrompeu seu enlevo. De vez em quando passava-lhe p elo rosto um lampejo sutil, no qual pressentia o olhar furtivo da moa.

V Estava a subir o pano. Amlia resolvera ficar onde estava, e no tomar o lugar da frente, apesar de Laura t er voltado a seu camarote. Mas essa resoluo, to solidamente calcada em seu corao, caiu de repente: bastou um olhar. Vira na platia, encostado balaustrada da orquestra, um elegante cavalheiro. Era Horcio. O sorriso brando que manava dos lbios da moa, como a onda pura e cristalina de um ribeiro, desapareceu ento sob outro sorriso mais brilhante, que borbulhava como a frol da cascata. Era o sorriso da vaidade, como o outro era da inocncia. A moa colocou-se na frente, fazendo realar com a graa de seus movimentos a suprema elegncia do talhe. Demorou-se mais do que era preciso nesse ato; e, sentando-se, houve em seu corpo um impulso quase imperceptvel de misteriosa expanso. Dir-se-ia que ela se queria debuxar no quadro iluminado do ca marote.

A causa desse elance no o adivinham? O leo tinha assestado seu binculo de marfim; e a moa com um irresistvel assomo de faceirice abandonava-se ao olhar do mancebo. Durante o ato, Amlia distraiu mais a ateno do semblante plido de Leopoldo. Enleava o s olhos na figura elegante de Horcio; prendia-se ao fino buo negro que sombreava o lbio desdenhoso do leo; embebia -se toda na graa de sua atitude, tentando assim resistir curiosidade incmoda que atraa sua ateno para o importuno desconhecido.

No sei por qu, Leopoldo, cuja adorao era infatigvel como a emanao de uma chama perene, sentiu naquela ocasio a necessidade de dar um repouso sua contemplao. Ento como se a luz qu e o deslumbrava se fosse tornando mais doce, ele pde ver destacar-se o perfil gracioso da moa. Tem o cabelo castanho! pena! Acreditava que a mulher a quem amasse algum dia, hav ia de ser loura. a cor do reflexo da luz, deve ser a cor desse vu casto que Deus fez para o pudor. A madeixa foi dada mulher para recatar a face que enrubesce e o seio que palpita; essa gaza preciosa deve ser d e ouro, ou antes de graa e esplendor. O moo j no olhava para Amlia; com as plpebras cerradas estava agora vendo-a na penumb ra d'alma. Mas para mim indiferente que tenha o cabelo castanho; podia t-lo negro como a trev a. Eu a amo, amo sua alma, sua essncia pura e imaculada! Se Deus me enviou um anjo para consolar-me em minha aflio, para amparar-me em meu isolamento, para encher de inefveis jbilos meu ser saturado de amarguras, p osso eu queixar-me por que o Senhor o vestiu de uma simples tnica de l, e no de um suntuoso manto de ouro? Eu go stava dos cabelos louros: pois agora s gosto, s quero, s vejo uns cabelos castanhos, porque pertencem a ela, se im pregnam de seu perfume e respiram seu hlito! Terminara o ato. Leopoldo, contemplando a moa, pela primeira vez lembrou-se de sa ber quem era, na sociedade, aquela mulher que lhe pertencia pelo pensamento. Tinha-se habituado a consider-la como uma coisa sua; parecia-lhe que ningum mais existia seno eles dois. Volveu os olhos em busca de algum conhecido, a quem dirigisse a pergunta. No enco ntrou; mas ao cabo de alguns instantes descobriu o leo em seu posto. Ah! l est Horcio que pode me informar, ele conhece todo o mundo! Justamente agora ps o binculo para o camarote. Como desejava sair, dirigiu-se para aquele lado; mas o leo, inquieto e preocupado , sara aodadamente, e subia de um pulo as escadas que o separavam da segunda ordem.

Aquela mo irm do meu adorado pezinho! No tem a graa dele, sem dvida, nem se compara c m aquele

mimo de amor; mas h um certo ar de famlia, um quer que seja!... Assim cogitando, Horcio chegara porta de um camarote, e pela fresta fitara com di sfarce o olhar em Laura, cuja mo, excessivamente pequena e calada por uma luva muito justa, custava a segur ar o binculo de madreprola. O moo, apenas reconheceu o vestido de seda violeta e a mozinha que lhe servira de fanal, abaixou o olhar para a fmbria do vestido a ver se descobria alguma coisa, o peito, a ponta, a som bra ao menos do pezinho mimoso, do dolo de sua alma. Mas no foi possvel: o vestido arrastava no cho; nenhum movimento f azia ondular a seda; e contudo o mancebo ali ficou imvel, palpitante de emoo, como se esperasse dos lbios d a mulher amada o monosslabo que devia decidir de seu destino. A paixo que o mancebo concebera pela dona incgnita da botina achada, longe de se d esvanecer, adquirira uma veemncia extrema. Horcio, o feliz conquistador, o corao fogoso e inflamvel, nunca ardera por mulher alguma como agora ardia por aquele pezinho idolatrado. Era um verdadeiro amor de leo, te rrvel e indmito; era um delrio, uma raiva. Seus amigos j no o reconheciam; ele aparecia nos bailes, nos teatros, nos pontos d e reunio, de relance, como um meteoro, seguindo aps uma idia fixa, ou uma sombra que fugia diante de seus pas sos. Conversou-se muito na Rua do Ouvidor a este respeito. Uns atribuam o fato inaudito primeira derrota. Horcio, dizia um de seus amigos, como Napoleo, s devia ser derrotado uma vez. Mas e ssa vez foi Waterloo! Que pensa ento? Que o pobre rapaz caminha para o seu rochedo de Santa Helena. Ou casa a com algum a mulher feia e rica, ou engorda como um cevado. Outros lembravam-se de algum desarranjo de fortuna, de alguma veleidade poltica, para explicar o mistrio. Mas sabia-se que o moo tinha bom e seguro rendimento; e quanto poltica, ele a comp arava a uma embriaguez causada pela mais ordinria zurrapa de taberna. Muitas vezes disse, gracejando, a seus amigos: Quando me quiser embriagar, em vez de zurrapa, beberei champanhe. mais fino, e t ambm mais barato, porque no deixa uma irritao de estmago, cujo preo muito superior ao de uma caixa de s uperior clicquot. A causa real da mudana do leo, ningum pois a sabia nem a suspeitava. Depois da achada da botina, sua vida tomara um aspecto muito diferente. Naquela mesma tarde em que o deixamos na sua casa de Botafogo, terminado o jantar, mandou aprontar o tlburi e voltou cidade. Seu aparecimento

quela hora na Rua do Ouvidor causou estranheza: um leo de raa, como ele, no passeia ao escurecer, sobretudo no centro do comrcio, onde s ficam os que trabalham. Seria misturar-se com os leopard os que aproveitam a ausncia dos reis da moda, para restolhar alguma caa retardada.

Correu Horcio todas as lojas de calado procura de informaes. Para disfarar sua paixo, inventara uma aposta, como pretexto sua curiosidade. A um fregus como ele, no se recusava to pequ eno favor, sobretudo quando levava o sainete de uma anedota de bom-tom. A todos eles o leo se dirigia mais ou menos nestes termos: Fiz uma aposta com uma senhora. Que em todo o Rio de Janeiro no se encontram trs m oas de dezoito anos que calcem n 29. Tenho todo o empenho em ganhar a aposta, no tanto pelos botes de punho, como porque, se ela perder, h de ser obrigada a mostrar-me seu p, para eu verificar se realmente d esse tamanho. Peo-lhe, pois, que me d uma nota das freguesas a quem costuma vender calado deste nmero. Nesta pesquisa gastou Horcio muitos dias, sem colher o menor resultado. Os poucos pares de calado n 29, vendidos pelas diferentes lojas, eram destinados a meninas de doze anos ou a pes soas desconhecidas, cuja idade se ignorava. Apesar de tudo o leo no desanimava; todas as manhs, ao acordar, levantava um plano de campanha, que punha em prtica durante o dia. Horcio sentira-se de repente tomado de indefinvel ternura por uma classe, de que a ntes s se lembrava para amaldio-la: a classe dos sapateiros. Quando via um sujeito de avental de couro e s ovela, o leo sentia-se atrado para aquele indivduo, que talvez encerrasse o segredo de sua felicidade, seu futuro, s ua existncia. Outras vezes, porm, tinha de repente uns acessos de cime selvagem. Lembrando-se que esse operrio talve z j houvesse tomado medida ao adorado pezinho, que essas mos calosas teriam tocado a ctis acetinada do anjo de s eus pensamentos, o mancebo sentia em si o furor de Otelo e procurava um punhal no seio; felizmente s achava a carteira, a adaga de ouro com que neste sculo se assassina mais cruelmente. Depois de consumir as horas em suas indagaes, ia contemplar a botina, prenda queri da de seu amor, e prosseguia noite sua porfia incansvel. Corria os espetculos e bailes, com o olhar rastejando para descobrir por baixo da orla do vestido, o ignoto deus de suas adoraes. No danava para observar melhor o arregaado dos vestidos; de ordinrio andava pelas escadas e portas, a fim de aproveitar o ensejo da subida e descida; muitas vezes ia fumar junto ao lugar onde se colocavam os lacaios, na esperana de conhecer o portador da botina. Quando as rainhas da moda, as deusas do salo, surpresas e atnitas, o viam passar s em distingui-las com uma palavra ou uma fineza, ele, atirando-lhes um olhar de compaixo, dizia consigo: Coitadas! no sabem que o leo viu a pata da gazela e fareja-lhe o rasto. Que lhe imp ortam as garras da pantera?...

Recolhendo, Horcio acendia duas velas transparentes e colocava-as a um e outro la do da almofada de veludo escarlate, sobre uma mesinha de charo, embutida de madreprolas. Tirava de um elega nte cofre de platina a mimosa botina, e com respeitosa delicadeza deitava-a sobre a almofada, de modo que se v isse perfeitamente a graciosa forma do p que habitara aquele ninho de amor. Ento acendia o charuto, sentava-se numa cadeira de espreguiar, defronte, porm dista nte, para que o fumo no se impregnasse na botina, e ficava em muda e arrebatada contemplao at alta noite. Sobre aquela botina via elevar-se como sobre um pedestal, um vulto de esttua, mas vago, indistinto; e contudo esse esboo sem formas sedutoras, aquela sombra sem alma e sem calor, lhe parecia de uma beleza deslumbrante. No era ela a mulher a que pertencia o mais formoso p do mundo, o mimo, a obra-prima da natureza? Recordava-se das mulheres mais bonitas que tinha visto, das mais lindas senhoras a quem amara com paixo, e sua memria as trazia todas, uma aps outra, para as colocar ao lado daquela figura vaga e desvanecida, que planava sobre a almofada como sobre uma nuvem de ouro. Como elas fugiam abatidas e humil hadas diante de seu impetuoso desdm! No so dignas , murmurava ele, nem de beijarem o cho pisado pela fada desta botina ! Eis qual tinha sido a vida de Horcio at o momento em que o vamos encontrar no mesm o lugar defronte da porta entreaberta do camarote. Laura percebeu-o afinal, e sorriu-lhe com ternura . A ateno do rei da moda era uma fineza, um ar de seu real agrado; cumpria-lhe agradecer. Fitando com mais fora o olhar na pupila da moa como para travar-lhe da vontade, Ho rcio abaixou lentamente esse olhar at a fmbria do vestido de chamalote com uma insistncia signif icativa. Laura fez-se escarlate; e a porta do camarote, rapidamente fechada, a subtraiu s vistas ardentes do leo.

ela! exclamou o corao do mancebo afogado em jbilo. No h dvida. Para sentir esse pu gerado e incompreensvel, preciso ter ali oculto um p como aquele que eu sonhei. Um p?... No ; um mimo, uma maravilha, um tesouro, um cu!... o pudor da violeta, que se esconde na sombra; o pudor da pro la, oculta na concha; o pudor do diamante, sumido no seio da terra; o pudor da estrela, imergindo-se no azul. O leo desceu as escadas murmurando: V-lo e morrer. Pouco depois terminou o espetculo. Amlia com um ressaibo de melancolia na fronte, embuou-se na pelia e desceu. Ela perdera de vista Horcio, e s o tornara a ver parado em frente porta do camarote de Laura. Desamparada pelo encanto do gentil mancebo, sofrera todo o resto do espetculo o desassossego que lhe incutia o olhar de Leopoldo.

Por mais que voltasse o rosto, sentia a fosforescncia estranha desse olhar repuls ivo, que entretanto a prendia, mau grado seu. Leopoldo esperava no corredor da entrada a passagem da moa, quando avistou a seu lado Horcio. O leo sfrego e impaciente volvia o olhar em vrias direes; naturalmente procurava algum, e r eceava que lhe escapasse. Adeus, Horcio. Boa-noite, Leopoldo. Amlia apareceu nesse momento. Conheces aquela moa, Horcio? Qual?... Espera! Horcio tinha avistado Laura, que descia o lano da escada oposta, e correra pressur oso, com os olhos fitos na fmbria de seda. Seu olhar tinha tal fora que parecia um croque a levantar a orla d o vestido. Debalde; nem a sombra do p: o encorpado estofo arrastava pesadamente pelo cho. Chegou a moa porta, onde o carro a esperava. Horcio teve um vislumbre de esperanas, porm nova decepo o esperava. No viu mais do que uma nuvem de sedas ondular e sumir-se. O leo fez um movimento de desespero. Senhor! por que em vez de homem no me fizeste estribo de um carro! Teria a felicid ade de ser pisado por aquele pezinho.

VI Seriam duas horas da tarde. Durante a manh tinha cado sobre a cidade uma forte neblina, que molhara as caladas. Leopoldo dirigia-se a casa pela Rua dos Ourives. Naturalmente vinha pensando na desconhecida que no vira desde a noite do teatro. Sua paixo era intensa e ardente; mas vivia de si mesma, nutria-se da prpria seiva. Esperava com plena confiana na pureza de seu amor. pequena distncia do canto da Rua do Ouvidor viu ele de repente a moa que passava n a companhia de outras pessoas. Amlia voltara o rosto. Seu olhar cruzou rapidamente com o olhar d o mancebo. Ela estremeceu com o costumado calafrio, e acelerou o passo. Vendo-a sumir-se, encoberta pela esquina, o mancebo tambm se apressou para acompa nh-la; mas chegou

tarde. A moa e as pessoas, que iam em sua companhia, acabavam de entrar em um car ro: na elegante vitria que j conhecemos. Leopoldo apenas vira um p, que, na precipitao de subir, levantara demai s a saia. Sem conscincia do que fazia, precipitou-se para a portinhola do carro. O lacaio q ue a fechava nesse momento, embargou-lhe o passo. Quando o carro partiu na direo de So Francisco de Paula, Amlia inclinou-se e lanou de esguelha um olhar vivo para a esquina. Leopoldo ficara na calada imvel e exttico de surpresa. O p que seus olhos descobriram, era uma enormidade, um monstro, um aleijo. Ao tama nho descomunal para uma senhora, juntava a disformidade. Pesado, chato, sem arqueao e perfil, parecia mais uma base, uma prancha, um tronco, do que um p humano e sobretudo o p de uma moa. Os traos especiais da beleza de Amlia no tinham deixado na memria de Leopoldo a mnima impresso, da primeira vez que a vira, apesar de contempl-la demoradamente. Entretanto o defei to no lhe escapou, embora passasse de relance diante de seus olhos. Parece uma singularidade; mas no . Ningum conta as ptalas da flor que admira; ningum repara na forma especial de cada uma das partes de que se compe um todo gracioso; porm a menor mcul a se destaca imediatamente. por isso que certos homens, no podendo distinguir-se entre a gente sisuda e hones ta, fazem-se ndoas da sociedade; tornam-se vcios e torpezas. Assim adquirem a celebridade, que no obteri am com sua virtude ambgua e seu mesquinho talento. O Castro, que no admirara o matiz da rosa, notou a mcula e desgostou-se dela. Ele sentia-se com foras para amar o feio e o desgracioso, mas no o disforme, o horrvel. Essa aberrao da figura hu mana, embora em um ponto s, lhe parecia o sintoma, seno o efeito de uma monstruosidade moral. Triste, acabrunhado por pensamentos acerbos, o moo continuou seu caminho pela Rua dos Ourives em direo a casa. Mal havia andado alguns passos, arrependeu-se; no queria levar sua ha bitao esse primeiro transbordamento de um dissabor to profundo; era melhor deix-lo escoar-se antes de recolher solido habitual. Se tivesse alguma coisa a fazer! Qualquer ocupao bem aborrecida e maante, que lhe serv isse de antdoto ao desgosto ntimo! Excogitou. Havia ali perto, na Rua Sete de Setembro, uma pequena loja de sapatei ro, ou antes uma tenda, porque alm do balco via-se apenas uma tosca vidraa, contendo a obra de trs oficiais que a trabalhavam. A loja pertencia a um mestre fluminense, que trabalhara por algum tempo na casa do Guilherme e do Camps, e se iniciara portanto em todos os segredos da arte. Ningum a exercia com mais ha

bilidade, esmero e entusiasmo do que ele; sua obra, quando queria, no tinha que invejar ao produto das melhores fbr icas de Paris, se no o excedia na elegncia e delicadeza. A razo cardeal de toda a superioridade humana sem dvida a vontade. O poder nasce d o querer. Sempre que o homem aplique a veemncia e perseverante energia de sua alma a um fim, ele vence r os obstculos, e se no atingir o alvo, far pelo menos coisas admirveis. Mas para que o homem se entregue assim a um a idia e se cative a um pensamento, necessrio ser atrado irresistivelmente, ser impelido pelo entusiasmo. o entusiasmo que faz o poeta e o artista, o sbio e o guerreiro; o entusiasmo que faz o homem-idia diferente do homem-mquina. A fbula de Prometeu no exprime seno a alegoria desse fogo celeste d'alma, que anima as esttuas de Galatia, embora depois dilacere o corao como a guia do rochedo. Uma fasc a dessa eletricidade moral opera maravilhas iguais centelha do raio. O que o telgrafo a par com a eloqncia? O Matos tinha o entusiasmo de sua arte; descobria nela segredos e encantos desco nhecidos aos mercenrios. Para ele o calado era uma escultura; copiava em seda e couro, assim como o cinzel copia em gesso e mrmore. Os outros artistas da forma reproduzem todo o vulto humano ou pelo menos o busto; e le s tinha um assunto, o p. Mas que importncia no tomava a seus olhos esta parte do corpo! Era preciso ouvi-lo, em algum momento de arroubo, para fazer idia de sua admirao por esse membro da criatura racional. Depois de trabalhar muitos anos em casas francesas, o mestre fluminense resolveu estabelecer-se por sua conta. Alugou uma pequena loja de duas portas, onde trabalhava com dois oficiais. A nec essidade de ganhar o po o obrigava a tornar-se mercenrio, fazendo obra de carregao para vender barato. Mas no meio des sa tarefa ingrata tinha ele suas delcias de artista. Meia dzia de fregueses, conhecedores da habilidade do sapateir o, preferiam seu calado ao melhor de Paris, e o pagavam generosamente. Essas raras encomendas, o Matos as executav a com enlevo; revia-se em sua obra, verdadeiro primor. Leopoldo no era um fregus da ltima classe; ele no conhecia a voluptuosidade de um ca lado macio, antes luva do que sapato; seu p no era um enfant gt, um benjamim acostumado a essas delcias ; desde a infncia o habituara a uma vida rude e austera entre a sola rija e o bezerro. Alm de que seu s haveres no chegavam para tais prodigalidades. O moo pertencia classe dos fregueses da obra de carregao, e preferia a loja do Mato s pela modicidade do preo, e boa qualidade do cabedal, como do trabalho. Que misteriosa associao de idias trouxera lembrana de Leopoldo, naquele momento, a t enda do sapateiro? E por que motivo se dirigiu ele para ali onde estivera na vspera, e no para qualquer outro lugar, em que poderia melhor espancar seu dissabor?

O motivo, nem ele mesmo o sabia naquele instante. Bom-dia! As botinas esto prontas? disse entrando. O Matos, que atendia a alguns fregueses perto da vidraa, olhou-o surpreso: No disse ontem a V. S. que s para o fim da semana? verdade! Tinha entre mos esta encomenda. Mas j acabei; agora posso ajudar os companheiros. O Matos indicara alguns pares de calado que estavam no mostrador sobre folhas de papel e prontos a serem embrulhados. Leopoldo, chegando-se para o balco, principiou a examinar a obra acabada, com a d istrada curiosidade de quem deseja esperdiar alguns momentos, para escapar a um aborrecimento ou para ap ressar um prazer. Era trabalho fino do mestre, e contudo no excitaria grande ateno da parte do moo, se no fosse um p ar de botinas de senhora j usadas e meio encobertas pelo papel com outra obra. A medida era enorme no compr imento e na altura; por isso, como pelo feitio, devia excitar-lhe reparo. Na vspera quando viera loja, casualmente observara a obra que o Matos estava acab ando. Vendo h pouco na Rua do Ouvidor o p monstruoso da moa, tivera uma confusa e tnue reminiscncia das botinas da loja. Fora esse o fio misterioso que o conduzira insensivelmente quela casa. Agora compreendia a en cadeao: a botina monstro pertencia sem dvida ao p aleijo. Leopoldo depois que entrevira sob a orla do vestido o p da moa, ainda alimentava u ma dvida, que pretendia cevar com todas as sutilezas e argcias de seu esprito. Talvez ele visse mal; talve z a sombra, o estribo do carro, qualquer outro objeto o tivesse iludido. O aleijo s existia em sua imaginao; fora um desvario dos sentidos. Com efeito, como supor que uma senhora pudesse andar graciosamente com semelhante pa ta de elefante? Mas as botinas a estavam sobre o balco que no lhe deixavam a menor dvida. O p disform e existia; era aquele o seu molde, o seu corpo de delito, e por ele se podia ver quanto devia s er horrvel a realidade. Agora Leopoldo podia apreciar os traos parciais que lhe tinham escapado pela manh; esse p era chei o de bossas como um tubrculo; no arremedava nem de longe o contorno dessa parte do corpo humano: era uma posta de carne, um cepo! Junto dessa deformidade morta, inventada para cobrir a deformidade viva, havia o utra obra que chamara a ateno do mancebo por sua singularidade. primeira vista era um volume semelhante ao das botinas monstruosas embora de linhas regulares: parecia uma ligeira almofada preta sobre a qual se e levasse uma botina de senhora, muito elegante apesar de comprida. O tubo cinzento ficava oculto sob frocos de cetim e

scarlate. Do rosto ao bico descia um galho de rosas, cujas hastes cingiam graciosamente, como uma grinalda, toda a vo lta do p at o calcanhar. Uma das botinas ainda tinha dentro a forma; enquanto a outra j estava sem ela. Na turalmente o Matos procedia quela operao quando foi distrado pelos fregueses e compradores; deixara-a p ois em meio, deitando em cima da obra, para encobri-la, uma folha de papel. A forma no podia passar despercebida ao observador. Vendo pouco antes a botina di sforme, Leopoldo a tinha considerado o modelo exato do p monstruoso, que ele avistara. Enganara-se: a boti na era j o disfarce, a mscara do aleijo. Sua cpia ali estava em horrvel nudez, no grosseiro toco de pau, cheio de bu racos e protuberncias. Mas se essa observao acabou de esmagar o corao do mancebo, levou insensivelmente seu esprito a apreciar pela primeira vez a superioridade do Matos em sua arte. Ali estava a im agem do aleijo, e o calado que outros sapateiros lhe fariam para cobrir a monstruosidade, sem a dissimular. Entretanto , o mestre fluminense conseguira, por um esforo feliz, desvanecer a deformidade sob a aparncia de uma botina elegante. A almofada sobre que parecia descansar a botina, era um solado alto, porm oco, on de as carnes moles do p monstruoso, comprimidas pela botina superior, podiam abrigar-se. Os frocos de cetim e as grinaldas de rosas enchiam as covas e desvaneciam as pro tuberncias sseas, com muita delicadeza, sem avolumar o tamanho do coturno. Na sola negra se debuxava, em proporo botina superior, a alva palmilha com seus contornos harmoniosos; de modo que, olhando-se andar a pe ssoa, no se perceberia facilmente o tamanho do calado. Acabara o Matos de aviar os fregueses, e, chegando-se para o balco, incomodou-se com ver o moo a observar a obra; ia talvez interromp-lo rispidamente, quando percebeu em seu rost o uma expresso viva de ardente admirao. O artista ficou lisonjeado com esse elogio to eloqente em sua mudez; e cont rariedade sucedeu a satisfao do amor-prprio. Foi Leopoldo, que, percebendo junto de si o sapateiro parado, afastou-se do balco , receando ter sido indiscreto. Ia sair, quando entrou na loja um lacaio de libr azul com vivos de es carlate e branco. O mancebo o reconheceu pelas feies; era o mesmo que o impedira de chegar portinhola do carro, na Rua do Ouvidor. Ah! exclamou o Matos, avistando o criado. Est quase pronto. No posso esperar! replicou o lacaio com a insolncia do rafeiro de casa rica. s embrulhar. Leopoldo disfarava; fingindo olhar o calado exposto na vidraa, viu de esguelha o sa pateiro tirar a forma da

outra botina, bater o ponto e dar o ltimo polimento sua obra; feito o que arranjo u o embrulho. Est bem amarrado? perguntou o lacaio. Olhe que da outra vez j se perdeu uma botina por sua causa, e eu que levei a culpa. No tenha susto; desta vez est bem seguro, respondeu o Matos. Foi-se o lacaio; e Leopoldo com o semblante carregado de tristeza, despediu-se, arrependido de ter ido loja. Que saudades tinha da sua dvida! A dvida, pensava ele, ainda um raio de esperana!

VII A esse tempo Horcio, sentado em uma poltrona na casa de Bernardo, fumava o seu co nchita, com o olhar, ora na calada, ora no espelho fronteiro, espreita do menor vulto de mulher. O leo pensava: Choveu; as ruas ainda esto molhadas. Qual a senhora que tendo um p mimoso e uma per na bonita, no aproveita um destes dias para atravessar a Rua do Ouvidor? Se deixarem escapar e stes pretextos de mostrar semelhantes maravilhas, morrero elas desconhecidas, apenas vistas por um dono avaro, mas nunc a admiradas, porque a admirao sentimento que precisa da luz plena, da grande expanso. Se a Vnus de Praxteles exis tisse, mas s para mim, palavra de honra que sua beleza no excitaria em minha alma o menor entusiasmo. Nessa ocasio Amlia passava diante da loja, e voltando-se recebeu a cortesia do leo, a quem respondeu com um sorriso amvel. Parando na vidraa, achou ela pretexto para entrar, e comprou uma galantaria. Durante esse tempo Horcio recebeu por diversas vezes o olhar e o sorriso da moa. Acompanhando com a vista o passo airoso e sutil de Amlia, Horcio exclamou, dirigin do-se ao caixeiro do Bernardo: Que passo gracioso! o andar da gara! Estas palavras foram ditas em voz bastante alta, para que a moa ouvisse; um ligei ro estremecimento que se notou na suave ondulao do talhe revelou que o leo lograra seu desejo. A moa ouvira c om efeito a fineza. Recostado de novo na poltrona o leo continuou a pensar: Realmente, que elegncia no andar! Eu seria capaz de apostar que esse andar era do pezinho, do meu adorado pezinho, se j no tivesse descoberto a dona do primor. Mas Laura no vem!... O criado

me disse que ao meio-dia, e quase uma hora! Ter mudado de resoluo?... No duvido; com aquele zelo feroz que tem por sua jia, talve z no quisesse vir para no ser obrigada a mostr-la. Um avaro no fecha com mais cuidado a burra, do que ela esconde seu tesouro. Que pecado! Subtrair ao mundo essa maravilha que Deus fez para ser admirada! Ah! eu desejava ser uma nao; assim como h demnios-legies, por que no pode haver homens-povos? Se o fosse, daria um trono a e ssa mulher, somente para que ela institusse o beija-p. Como eu seria corteso! Como eu a beijaria por minhas cem bocas de sdito! O mancebo sobressaltou-se; vira uma sombra que assomava no espelho fronteiro. Er a Laura. Que devia fazer? Correr porta para ser visto pela moa ou deixar-se ficar na poltrona para melhor d escobrir o p adorado? A atitude do leo revelava a hesitao de seu esprito; com o corpo lanado frente parecia fazer um esforo para se conservar sentado. Laura, que de seu lado j o tinha avistado no espelho, ficara em um estado de perturbao indizvel. Que tem, prima? perguntou-lhe um senhor que a acompanhava. Nada! balbuciou a moa. A princpio Laura fizera um movimento para recuar, mas arrependendo-se avanou com a foiteza, e passou rapidamente pela frente da loja, sem volver um olhar para dentro. Por mais que o leo se derreasse na poltrona, no logrou ver coisa alguma; a senhora arrastava a fmbria do vestido pela calada cober ta de lama, com o mesmo descuido que teria se caminhasse sobre rico tapete. Est zangada comigo; est furiosa! Desde a noite do teatro que no me pode ver; e parec e que se preparou para o assalto, porque achei as avenidas da praa j tomadas e vigorosamente defendi das. A mucama uma Grgona, o porteiro um Crbero; apenas consegui abrandar o moleque, porque um idiota!... Nunc a vi uma ferocidade igual; creio que a leoa da floresta no defende seu cachorrinho com sanha igual desta leoa de s ala. Parece incrvel; mas eu conheo de quanto capaz a vaidade da mulher. Todo este furor no mais do que um asso mo de faceirice; percebeu que estou apaixonado pelo pezinho mimoso, e quer-me trazer atado como um cativo ao seu carro de triunfo. Realmente uma moa bonita no pode ter maior satisfao: ver-me a mim, Horcio de Almeida, o primeir o conquistador do Rio de Janeiro, curvar-se humilde, no a seu olhar, a seu sorriso, beleza de seu rosto, o u graa de seu talhe, mas planta de seus ps divinos! Fazer-me tapete de seus passos!... Que pode mais desejar a rainh a dos sales fluminenses? O moo mordeu a ponta do bigode negro e ficou alguns instantes muito pensativo. preciso mudar o plano de ataque! Comecei maneira de Csar, atacando com impetuosida de. Vou contemporizar conforme a escola de Fbio: simulo uma retirada; o inimigo avana, eu

o envolvo; corto-lhe a retirada, e ele rende-se. Arraso o Humait daquele vestido que defende o meu pezinho adorado c omo uma casamata. A indiferena a serpente tentadora da mulher. Em conseqncia destas reflexes, Horcio deixou-se ficar onde estava, e no seguiu a moa. Quando sups que ela j ia distante, foi procurar algures, em um bilhar, o preservativo contra a tentao de cortej-la, ou antes o seu pezinho. Ela h de reparar no meu eclipse! murmurou com certa confiana. Entretanto, Laura, descendo a Rua do Ouvidor, encontrara pouco adiante, na casa do Masset, Amlia em companhia da me. As duas amigas no podendo vir juntas, tinham ajustado seu encontr o para aquele ponto. O primo despediu-se, e as senhoras continuaram seu itinerrio pelas diferentes lojas e cas as de modas. Ao cabo de duas ou trs horas, tomaram o carro que estava parado prximo Rua dos Our ives e partiram na direo do Catete. A poucos passos dali, Amlia perguntou ao lacaio sentado na almofad a: Trouxe? Sim, senhora; est a dentro. Bem! O carro aproximava-se do Largo da Lapa, quando Amlia disse: Podamos ir agora ao Passeio Pblico? To tarde! replicou Laura. Deixa-te disso! observou a me da moa. Por qu, mame? H tanto tempo que l no vamos. No h nada de novo. Ora, eu queria ver a gara. Ainda no a vi. Viste, sim! Mas no reparei numa coisa!... Em qu? Uma coisa. Depois direi. Tanto insistiu que a me cedeu a seu capricho, e deu ordem ao cocheiro que chegass e at o porto do Passeio Pblico. As senhoras desapareceram na curva de uma das alamedas do parque, em direo ao lago. Amlia queria ver o andar da gara, que Horcio tinha comparado ao seu. Nessa ocasio passava o tlburi do nosso leo, que vinha do lado da Ajuda. Um atropelo

, produzido por uma gndola mal conduzida, ia atirando o tlburi sobre o carro parado no porto do Passeio Pblico. Este incidente chamou a ateno do moo para o cocheiro, que derreado sobre a almofada no se movera. A memria apresenta s vezes um fenmeno curioso; conserva por muito tempo oculta e so pitada uma impresso de que no temos a menor conscincia. De repente, porm, uma circunstncia qualq uer evoca essa reminiscncia apagada; e ela ressurge com vigor e fidelidade. Foi o que sucedeu a Horcio. Minutos antes, por maiores esforos que fizesse para re cordar-se da libr do lacaio, portador da botina perdida, no o conseguiria decerto. Entretanto bastou-l he ver a roupa do cocheiro, para acudir-lhe imediatamente ao esprito a imagem desvanecida. Era esse o carro, que v ira quinze dias antes na Rua da Quitanda; no havia dvida. O leo mandou parar o tlburi e entrou no Passeio Pblico; depois de percorrer inutilm ente vrias alamedas, afinal descobriu entre as rvores, alm do lago, as ondulaes dos vestidos de algumas s enhoras acompanhadas por um lacaio, e tomou apressadamente aquela direo. O terreno estava mido da chuva da manh; e por isso o p dos passeadores deixava o ra sto impresso na branca e fina areia das alamedas. Notando esta circunstncia, Horcio procurou o vestgio de alguma botina irm da que achara, e guardava como uma relquia; ficou brio de contentamento reconhecendo entr e muitas pegadas o leve debuxo que deixara no cho o mimoso pezinho. Se no fosse o anelo de alcanar as senhoras e reconhecer a dona incgnita do tesouro, Horcio se houvera ajoelhado a beijar o rasto da fada de seus amores; mas as senhoras caminhavam ra pidamente para o porto. Por mais que se apressasse o leo, chegando sada, apenas viu o carro que partia. Fe lizmente adiantando-se pde reconhecer Amlia, que lhe sorriu e inclinou-se para acompanh-lo com os olhos. ela! Que pateta sou eu! Devia ter adivinhado. H pouco, vendo-a passar pela Rua do Ouvidor, tive um pressentimento! Aquele andar cheio de graa no podia enganar. No dia seguinte o leo fez-se apresentar ao pai de Amlia, abastado consignatrio de c af, estabelecido na Rua Direita. O encontro deu-se na Praa do Comrcio. Horcio a foi a pretexto de comprar apl ices; e um amigo, corretor de fundos, prestou-lhe aquele servio. O negociante ofereceu a casa ao moo que acei tou a fineza com efuso de contentamento. O Sr. Sales Pereira habitava nas Laranjeiras uma bela chcara. Amlia era filha nica, e seu dote, convertido em cem aplices, s esperava o noivo. Quanto mulher, tinha uma boa penso instituda no montepio geral. Seguro assim o futuro, vivia o negociante com certa largueza, economizando pouco ou nad a de seus lucros anuais.

Quando Horcio teve conhecimento destas particularidades domsticas, sorriu. Bem! O meu pezinho tem um dote para seu calado. Pode andar com luxo! A primeira vez que Horcio visitou a famlia de Sales Pereira, encontrou Laura na sa la; a moa fora passar a noite com a amiga, e conversava jovialmente. Apenas viu o leo, demudou-se; e inst antes depois, inventou um pretexto para retirar-se, apesar das instncias de Amlia. Horcio pouca ou nenhuma ateno deu mudana que se tinha operado em Laura, em sua retir ada repentina. Desde que a moa no era a dona feliz do mais lindo p do mundo, tornava-se para ele u ma criatura indiferente; tanto mais quanto sua alma estava ali de rojo, beijando a fmbria de seda, que lhe ocult ava o to ansiado tesouro. Em Amlia, vrias impresses produziu a apresentao do moo. No primeiro momento acreditou que o leo viera atrado por ela; mais tarde, lembrando-se do teatro, suspeitou que fosse ape nas um meio de aproximar-se de Laura; finalmente ocorreu-lhe que podia no passar de um encontro casual de seu pai, e de uma delicadeza da parte de Horcio. Suas dvidas porm se dissiparam poucos dias depois. Uma noite a moa, impelida por um movimento de faceirice, soltou estas palavras, n o meio de uma conversa com o leo: Laura est uma ingrata! H tanto tempo que no vem passar uma noite comigo. Ao mesmo tempo fitava os olhos no moo para ver a expresso de sua fisionomia. uma fineza de sua amiga, que eu agradeo de corao, respondeu Horcio. Uma fineza?... perguntou Amlia pressentindo laivos de ironia. Quando sua amiga est aqui, a senhora sem dvida no a deixa! muito natural. J v pois que eu tenho razo. Se ela viesse... Diga. Eu teria cimes, D. Amlia. A moa corou. Pois amanh Laura h de passar a noite comigo. Estas palavras foram ditas com o estouvamento da menina, que procura disfarar um prazer sob a mscara da contrariedade. Mas a mscara to risonha, que no ilude. Quer-me tanto mal assim? perguntou Horcio. No admira; uma paixo ardente e impetuosa , como eu sinto pela senhora, no devia ter outra sorte. O verdadeiro amor foi e ser sempre infeliz

; no h mulher que o compreenda. Amlia com as faces a arder no sabia que fizesse; sua mo trmula brincava com as flore s de um vaso, que vacilou sobre o consolo e caiu no cho. O fracasso da porcelana, despedaando-se, ch amou a ateno das pessoas que estavam na sala; assim rompeu-se o enleio de Amlia. A moa retirou-se confusa para o interior da casa. Momentos depois entrou de novo na sala, j serena e prazenteira. Seus olhos procuraram Horcio, para oferecer-lhe o meigo sorriso que trazia nos lbios. Esse sorriso dizia em sua eloqncia muda o seguinte: Se nunca a mulher soube compreender a verdadeira paixo, serei eu a primeira. Foi esta pelo menos a traduo de Horcio, perfeito fillogo do amor, e habituado a deci frar esses hierglifos dos lbios de mulher.

VIII No abandonemos o pobre Leopoldo sua amarga decepo. O moo chegara a casa mergulhado na tristeza profunda, que sobre ele derramaram os acontecimentos da manh. Talvez a morte de Amlia no lhe causasse tamanho pesar, como o daquela cruel d ecepo que estava presentemente curtindo. O aleijo excita geralmente uma invencvel repugnncia, repassada de terror. A aberrao d a forma humana abate o orgulho do bpede implume, fazendo-o descer abaixo do orangotango. Ao mesm o tempo, ameaa viva a uma das mais caras aspiraes do homem: a esperana de renascer em outra criatura, gerada de seu ser. Se a fatalidade pesar sobre a prole querida? Imagine-se que dor era a do mancebo, quando via a deformidade surgir de repente para esmagar em seu corao a imagem da mulher amada, da virgem de seus castos sonhos? O contraste sobretudo era terrvel. Se Amlia fosse feia, o seno do p no passara de um defeito; no quebraria a harmonia do todo. Mas Amlia era linda, e no somente linda; tinha a bel eza regular, suave e pura que se pode chamar a melodia da forma. A desproporo grosseira de um membro tornava-se poi s, nessa esttua perfeita, uma verdadeira monstruosidade. Era um berro no meio de uma sinfonia; era um disparat e da natureza, uma superfetao do horrvel no belo. Fazia lembrar os dolos e fetiches do Oriente, onde a imaginao doent ia do povo rene em uma s imagem o smbolo dos maiores contrastes. Nessa angstia passou Leopoldo o resto daquele dia e os que se lhe seguiram.

No amo a sua beleza material, oh, no! pensava o mancebo. O que eu adoro nela a belez a moral, a alma nobre e pura, a criatura celeste, a luz, o anjo. Qualquer que fosse o invlucro de seu esprito imaculado, creio que havia de ador-la tanto, como a adorei desde o momento em que primeiro a vi. Fosse ela feia para os outros, que chamam formosura o que lhes encanta os sentid os, para mim seria sempre bela, porque meus olhos haviam de v-la atravs de seu esplndido sorriso. O que o cor po humano no fim de contas? O que o contorno suave de um talhe elegante, e a ctis acetinada de um rosto ou de um colo mimoso? Um pouco de matria a que a luz transmite a cor, o esprito a vida. Tirem-lhe esses dois alentos , e vero que lodo impuro e nauseante ficam sendo aquelas formas sedutoras. Pois luz e esprito no eram a essncia da alma de Amlia? Quando essa alma a vestia com uma tnica resplandecente, que mulher se lhe podia comparar em lindeza? Ento no era somente f ormosa, flutuava em um ter de beleza deslumbrante. Mas ela no feia, aleijada!... Um soluo afogou as tristes lucubraes do mancebo. Ele repassou outra vez na mente as circunstncias de sua triste descoberta; quis duvidar, combateu pertinazmente sua prpria razo que lhe ap resentava a realidade, e afinal sucumbiu, curvando-se implacvel certeza. Tinha visto uma vez, e como essa no basta sse, o acaso lhe oferecera ocasio de apalpar a verdade e saciar-se dela. No se admira a Vnus de Milo, uma esttua mutilada? dizia o mancebo relutando contra su a viva repugnncia. No se admira o primor da arte grega, apesar de no restar dela mais do q ue uma cabea e um torso de mulher? Essa beleza truncada no vale a beleza aleijada? A mutilao no repugna tanto o u mais do que a deformidade? A razo de Leopoldo no o deixava embalar-se muito tempo nesse pensamento consolador . Replicava logo, refutando vigorosamente as argcias do corao:

A esttua mutilada, que excita a admirao do mundo, no a cpia integral da beleza que lh servia de tipo, mas um fragmento apenas dessa cpia. A alma, que se extasia na contemplao desse frag mento, recompe o ideal do artista. Admira-se a Vnus de Milo, como se admira um esboo no acabado de Rafael; co mo se admira a ptala de uma rosa, arrancada da corola. Mas, fosse embora aquele primor de estaturia a reproduo exata de uma mulher, a mutilao respeita a beleza; o aleijo a deturpa. Se a mulher que se ama perdesse um p, seria desgraada; com um p monstruoso, mais do que desgraada, repulsiva. Leopoldo deixava-se convencer por estas sugestes:

Infelizmente assim . Mas por que h de ser assim? A mutilao um fato humano; o aleijo fato

natural. Essa aberrao do princpio criador, esse desvio da forma primitiva indicam s em dvida um vcio na essncia do organismo. No se tem verificado que nos corpos malconformados de nascena habita sempre uma alma enferma? Nos corcundas sobretudo, porque a espinha dorsal o tronco da inteligncia. A defor midade de um membro, de um ramo apenas, no denota eiva to profunda do esprito, certo, mas revela que a alma no nobre e superior. No se concebe o anjo dentro de um aleijo. O resultado destas cogitaes era a gota de fel espremido, que ia filtrando a pouco e pouco no corao e acabaria por saturar todas as doces reminiscncias dos ltimos dias. Leopoldo conven ceu-se de que no devia amar a desconhecida: mas, ao contrrio, arrancar de sua alma os germes da paixo nascente. Tomando esta resoluo, o moo, que vivia muito retirado depois de suas desgraas de faml ia, esteve a lembrar-se de algumas antigas relaes. Veio-lhe o desejo de cultiv-las de novo. Um i nstinto lhe dizia que para gastar as primcias de um corao virgem, no h como o atrito do mundo. Entre as casas que outrora freqentava, escolheu para a primeira noite a de D. Cle mentina, amiga ntima de sua irm. Era uma senhora j no declnio da idade e da formosura; gostava muito de danar, e por isso reunia constantemente em sua sala as moas de sua amizade. Logo que se achavam presentes quatro pares, a dona da casa dava o sinal, o marido arredava a mesa do centro, o filho, menino de quinze anos, sen tava-se ao piano e... Chass-crois! gritava D. Clementina. Nesta casa Leopoldo tinha certeza, no s de ser bem recebido, como de encontrar bas tante arrudo para aturdir-se e abafar uns gemidos que sentia s vezes repercutirem no corao. Tinham de corrido cinco dias depois da decepo; s oito horas da noite entrou o moo na sala de D. Clementina, que o recebeu, com surpresa, cheia de amabilidades. Alm de estimado, acontecia que ele era justamente o quarto par. Tirado o dono da casa, o Sr. Campos, o filho Alfredo, e trs velhas, invlidas da dana, havia na sala cinco senhoras para dois cav alheiros; servindo uma senhora de cavalheiro, ainda faltava metade de um par. Quando a campainha anunciou mais uma visita, D. Clementina, de olhos fitos na po rta da sala, disps-se a receber o recm-chegado com o seu mais afvel sorriso. Vendo Leopoldo, correu a ele, e, desfolhando-lhe um ramalhete de amabilidades, tranou-lhe o brao; antes que o moo tomasse p na sala, era arrebatad o pela quadrilha, a compasso de galope. Realmente ele no podia escolher melhor. A agitao daquela dana rpida, sem pausa; a con fuso que os pares criavam de propsito para aumentar a animao; os risos e gracejos que provocava m os menores incidentes da quadrilha; todo esse rumor e atropelo tinham por tal forma sacudido o esprito de

Leopoldo, que as idias e recordaes tristes lhe caram, como as folhas secas de uma rvore abalada pelo vento rijo do ou tono. Sentiu o corao vazio, porm tranqilo; o prazer vivo e cintilante daquela reunio, apena s roava-lhe pela superfcie; no penetrava, mas tambm j no transudavam-lhe do ntimo as amarguras de que n os ltimos dias se tinha saturado. De repente operou-se na perspectiva da sala uma transformao inesperada. Amlia entra ra; e sua graa difundiu-se como um influxo celeste, no meneio de seu talhe elegante, na suavida de de sua voz, na irradiao de seus olhares. Leopoldo embebeu-se naquela suave apario, como da primeira vez que a vira, mas par a percorrer em um pice, as fases de seu amor, e cair de novo na esmagadora decepo. De repente aquela esttua luminosa escureceu a seus olhos, deixando apenas um resdu o negro: esqueleto calcinado que arrastava uma deformidade. Debalde Amlia se ostentava no fulgor de sua beleza, toucada pelos primeiros arrebis do amor; debalde as ondulaes de seu corpo debuxavam formas encant adoras, e o sorriso de seus lbios destilava uma fragrncia mstica de beijos puros; os olhos de Leopoldo no viam n enhum desses encantos. Atravs dos folhos do vestido roagante, sua vista fitava-se implacvel no p monstruoso que lhe esmagava o corao como a pata grosseira de um animal. Todos os encantos dessa criatura, ele os despia de seu manto sedutor e dissecava -os com frio rancor. A inflexo voluptuosa do talhe provinha da resistncia que opunha ao andar o enorme p; o passo ligeiro era um esforo supremo para disfarar o aleijo, o sorriso gracioso um enleio para prender os olhos estranh os, no permitindo que eles se abaixassem at fmbria do vestido. E por isso mesmo o olhar de Leopoldo, olhar frio, cruel, inexorvel, se tinha crav ado na orla da saia elegante, donde no havia foras para arranc-lo. Amlia sentiu esse olhar cruciante e estremeceu, tomada de um vago terror. Imediat amente sentou-se, e, arranjando as dobras do vestido, procurou disfarar; mas em vo: o olhar do moo conti nuava fito no mesmo ponto e produzia nela uma sensao incmoda. D. Amlia, filha de um negociante, chamado Sales. No conhece? Estas palavras foram dirigidas a Leopoldo por D. Clementina, que, sentando-se a seu lado, acompanhou-lhe o olhar fito. No, minha senhora. Ento vou apresent-lo.

Obrigado, D. Clementina; depois. No acha muito galante? Leopoldo hesitou: Oh! muito!... Viera-lhe nessa ocasio o mesmo mpeto que sentem de ordinrio os amantes em igual sit uao: o de criticar e desmerecer nas prendas da mulher que os faz sofrer. uma reao natural do corao; Leopo ldo, porm, julgou indigno de si tal procedimento; tinha o direito de afastar-se, de fugir com horror dessa mulher, mas no o de ofend-la. A culpa de am-la era sua; e no dela. Aproveitou um momento de distrao da dona da casa, para tomar o chapu e esquivar-se, sem que o percebessem. Amlia, porm, o viu; seus olhos ficaram por algum tempo presos na porta por onde ac abava o moo de sair. Quando, passado um instante, caiu em si, ficou surpreendida. Que tinha ela com a quele desconhecido? Ao chegar, vendo o rosto plido e os olhos profundos, que to desagradvel impresso hav iam deixado em seu esprito, a moa havia sentido um mal-estar ntimo. Vinha com a alma cheia das primeir as delcias de um amor nascente; com as doces emoes da declarao de Horcio. A presena de Leopoldo foi um travo . Mas tambm para que viera? Por que no ficara em sua casa esperando Horcio? Vo l sondar o corao feminino. Agora que se sabia amada, a moa queria gozar de seu tri unfo, e ver humilde e abatido a seus ps o rei da moda, o soberbo leo. O meio era fazer-se arde ntemente desejada, tornar-se difcil e esquiva, embora lhe custasse o sacrifcio dos momentos agradveis que podia passar junto de Horcio. A presena de Leopoldo em casa de D. Clementina a incomodara, e entretanto seu olh ar parecia agora sentir a ausncia do mancebo. A princpio havia ali uma pessoa demais; agora faltava alguma coisa. Se no era um h omem, era uma curiosidade, uma emoo. Amlia! A moa voltou-se para ouvir D. Clementina que a chamava. Quero apresentar-lhe um moo, que a acha muito bonita. Dizendo estas palavras, a dona da casa corria os olhos pela sala busca de algum. No o vejo agora. Quem ?

O Castro... Conhece?... No, senhora. Querem ver que j se retirou? Amlia pde reter o monosslabo que ia cair-lhe do lbio, confirmando a suposio da dona da casa. Tinha adivinhado que se tratava do seu desconhecido. Ento ele me acha bonita? O Castro?... Muito. Creio que ficou apaixonado! Se visse os olhos que lhe deitav a quando a senhora chegou! Ento foi de paixo que ele fugiu? Quem sabe? A paixo como o vinho que em uns d para rir e em outros para chorar. H na morados que perseguem, e outros que fogem! Amlia julgou prudente desviar a conversa daquele assunto escabroso, no qual D. Cl ementina se comprazia, porque lhe recordava sua mocidade j desvanecida.

IX Depois daquela noite Leopoldo viu Amlia duas ou trs vezes; e de todas sentiu a mes ma impresso que lhe causara a presena da moa em casa de D. Clementina. Era o mesmo desencanto, a mesma insistncia de seu esprito para enxergar a formosur a da donzela atravs de um prisma deforme e caricato. Nessas ocasies ele sofria diante da moa a fascinao do horrvel, como o poeta sofre muitas vezes a fascinao do Belo em face de um objeto desgracioso. Era ento um poeta pelo avesso; um vate do monstruoso. Tinha na imaginao um gnomo de Victor Hugo: criava Quasmodos e Gwynplain es do sexo feminino com uma fecundidade espantosa. Quando, porm, a moa desaparecia de seus olhos, operava-se em seu esprito completa m utao. Esquecia completamente o aleijo, para s lembrar a linda e graciosa figura, que poucos momen tos antes sua vista repelia. Amlia ausente vingava Amlia presente. O corao do mancebo detestava tanto esta, quant o adorava ainda a outra.

Este amor um inferno , pensava ele; tem um vcio orgnico. H de viver de dores e lgrima h de alimentar-se de minhas tristezas. E assim ir definhando at morrer de consuno, depois que me tiver devorado todo o corao. Que importa?

Servirei de pasto a este abutre. O que somos ns afinal de contas? Uma presa; enqu anto vivos, a presa das molstias e das paixes prprias ou alheias; depois de mortos, a presa dos vermes ou d as chamas . Com tal disposio de esprito voltou ele dias depois casa de D. Clementina. Nesta noi te havia uma pequena partida; Leopoldo contava, pois, encontrar Amlia. Ali estava com efeito, vestida de escarlate e branco; e adornada com a sua graa a rrebatadora. Quando o moo entrou, ela danava com as costas voltadas para a porta e no o viu; porm, momentos depois virou o rosto como se obedecesse a um impulso estranho, e encontrou o olhar ardente de Leopoldo. A moa fez insensivelmente um movimento para afastar-se, que entretanto a aproximo u da porta. Aquele olhar que a atraa ao mesmo tempo que a repelia, causou-lhe um desvanecimento misturado de terror. Felizmente a terceira figura da marca da contradana comeava, e a distraiu de sua emoo. Estava ela outra vez parada conversando com o par, quando sentiu um calafrio; se m ver, conheceu que o mancebo se aproximava, que seus lbios se abriam para dirigir-lhe a palavra: Minha senhora, terei a honra de danar com V. Ex a seguinte quadrilha... Continham uma pergunta ou uma asseverao estas palavras? Fora impossvel diz-lo. O tom parecia mais afirmativo do que interrogativo, porm o olhar do mancebo esperava, seno exigia res posta. A confuso da dana permitiu a Amlia esquivar-se, sem responder. Quando, terminada a quadrilha, voltou a seu lugar, ficou perplexa. Tinha ela se comprometido ou no a danar a seguinte quad rilha com Leopoldo? No respondera, certo; mas recordava-se vagamente de ter feito uma leve inclinao com a cabea. Sem dvida o moo vira esse movimento e o tomara por um sinal de assentimento. Quando um de seus inmeros admiradores vinha pedir-lhe a prxima quadrilha, ela resp ondia hesitando que j tinha par; apenas o cavalheiro se afastava, arrependia-se de no o ter aceitado, r ompendo assim o compromisso tcito; e ficava ansiosa por outro convite. Entretanto novo par se apresentava, que recebi a a mesma recusa. Nesse jogo, muitas vezes repetido, passou o intervalo. O piano deu o sinal da qu adrilha; Leopoldo aproximouse de Amlia, e, inclinando-se, sentiu no seu estremecer o brao tpido de Amlia. A moa no teve conscincia do que se passou at o momento em que o moo a conduziu a seu lugar. Recordava-se apenas de que seu par lhe falara por muito tempo, com a voz baixa, porm palpitante de emoo. Assim fora. Passada a primeira confuso da quadrilha, Leopoldo, fitando o olhar no semblante da moa, deu expanso aos sentimentos que lhe tumultuavam dentro d' alma. Com a fronte baixa e as faces cheias de rubores, Amlia

parecia absorvida e reconcentrada enquanto o moo falava. Dir-se-ia que ela no o ou via. A senhora acredita, D. Amlia, na atrao irresistvel, que impele duas almas entre si, e as chama fatalmente a se unirem e absorverem uma na outra?... Eu acreditava nessa fora misteriosa, ma s ainda no tinha chegado o momento de experiment-la em mim; de sentir em meu ser este elo divino que prende as almas atravs do tempo e da matria. Senti-o h vinte dias, quando a vi pela primeira vez, quando a senhora se r evelou ao meu corao. Leopoldo referiu as emoes que sentira, na ocasio de seu primeiro encontro com Amlia; a impresso que ela deixara em seu esprito; e os sonhos em que se embalara sua imaginao nos dias seguin tes. Tive ento, continuou o mancebo com acento profundo e comovido, tive ento, e depois , a prova de que esse enlevo de meu ser, essa abstrao de minha existncia para absorver-se noutra, er a a atrao moral e nada mais. Via, admirava, adorava na senhora uma coisa somente: sua alma. No sabia, ainda ho je no sei, se a mulher que eu amo bonita para os outros; sei que para mim de uma beleza divina. Perdesse ela a graa e a formosura que aos outros seduz, para mim seria a mesma; eu havia de ador-la com o mesmo ardor. Sua alma fi lha de Deus e como Ele de uma magnificncia imortal. uma estrela que no tem eclipse. Leopoldo inclinou a fronte para falar quase ao ouvido da moa: Outrora julgava impossvel que se amasse o horrvel. Agora reconheo que tudo possvel a o amor verdadeiro, ao amor puro e imaterial. No s reconheo, mas sinto-me capaz de nutrir u ma dessas paixes mrtires! Oh! sinto-me capaz de amar o anjo ainda mesmo encarnado em um aleijo!... Leopoldo falou ainda por muito tempo de seu amor a Amlia, sem que ela se animasse a interromp-lo. Aquela palavra ardente, impetuosa, embora vendada por certo pudor d'alma, a subjugava; ela no tinha coragem, nem mesmo vontade de subtrair-se sua influncia. Quando Amlia, conduzida por Leopoldo, se dirigia a uma cadeira, D. Clementina apr oximou-se: Ah! Eu queria apresent-lo, disse a Leopoldo; mas no teve pacincia para esperar. Depois reclinando ao ouvido de Amlia, perguntou-lhe: Ento? No lhe disse que a achava muito bonita? Ao contrrio, D. Clementina; deu-me a entender que me acha horrvel. Ande l. Deveras! impossvel.

Amlia, sentando-se, evocou a lembrana de Horcio, para fazer no seu esprito o paralel o entre o elegante leo e o estranho mancebo com quem acabava de danar. Um tinha todas as prendas que sed uzem a imaginao: era formoso, trajava com esmero, conversava com muita graa. O outro no possua nenhum de sses atrativos; seu exterior alheava as simpatias; quando falava difundia a tristeza no esprito dos que o escu tavam. A moa no concebia que se preferisse Leopoldo a Horcio; e contudo no podia esquivar-s e completamente influncia daquela imagem plida, que lhe aparecia no meio dos sonhos mais brilhante s. Muitas vezes, depois de algumas horas agradveis passadas junto do leo, quando a moa , recolhida sua alcova, repassava na memria os doces protestos de amor que ainda lhe ressoavam ao ouvido, de repente surgia a lembrana de Leopoldo. Parecia-lhe ento que da fronte do mancebo se desprendia uma sombra para anuviar seus pensamentos risonhos. Horcio, sabendo onde Amlia passava as noites em que ele a no via, mostrara desejos de freqentar a casa de D. Clementina; a moa, porm, ops-se. Duas razes atuaram em seu esprito. Aquela casa servia-lhe de abrigo contra a seduo que exercia em seu esprito a elegnci a de Horcio. Quando se sentia vencida, fugia para ali, onde recobrava foras para resistir e domar com pletamente o leo, soberbo de suas conquistas passadas. Era essa uma das razes; a outra era o receio de achar-se em face dos dois moos, re partida entre a seduo de um e a fascinao do outro. Pressentia que desse conflito resultaria alguma coisa, q ue ela no podia definir, mas que a enchia de sustos e inquietaes. Por isso exigiu de Horcio que no fosse casa de D. Clementina: Costumam l ir algumas dessas pessoas que se ocupam em inventar novidades. Sua apr esentao, Sr. Horcio, daria pretexto a algum romance. Mas por que ainda freqenta semelhante casa? Pedidos... bem sabe; nem sempre uma pessoa se pode recusar. Mas se o senhor apar ecer l, eu deixarei de ir. Esteja tranqila. Amlia continuou a passar de vez em quando uma noite em casa de D. Clementina. A p rincpio no tinha dia certo, e sucedeu por isso que Leopoldo desencontrou-se dela duas vezes. Uma noit e, porm, o moo perguntou-lhe: Vem sbado? Talvez.

Desde ento o dia escolhido era o sbado, a menos que no precedesse aviso especial da dona da casa para alguma partida. Nunca mais houve desencontro; Amlia achava sempre o mancebo no se u posto, defronte da porta para v-la entrar. Em uma dessas noites deu-se um incidente que preciso referir. Falava-se a respeito de uma sen