José Gomes Ferreira

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Jos Gomes FerreiraNascido no Porto, muda-se com quatro anos para Lisboa onde, criado "longe das rvores, no roldo poeirento das cidades" (palavras do autor), se inicia nos poetas saudosistas - e especialmente Raul Brando - nos liceus de Cames e de Gil Vicente, com o Prof. Leonardo Coimbra. Dirige, muito novo, a revista Ressurreio. Dedica-se tambm msica, com composies musicais como o poema sinfnico "Idlio Rstico" (que compe depois de ouvir a 1 audio mundial da Sinfonia Clssica de Prokofiev e inspirado num conto de Os Meus Amores, de Trindade Coelho) executado pela primeira vez pela orquestra de David de Sousa, no Teatro Politeama, o que provocou em Leonardo Coimbra "um largo sorriso incitador". A sua conscincia poltica cedo se manifesta, em parte inspirada pelo pai, Fig. 1 um democrata republicano e traduz-se em desafios polmicos e aes de contestao, como quando queima, no caf Gelo, um retrato de Sidnio Pais, que, no muito tempo depois, vem a ser vtima de um atentado. Alista-se em 1919, acabado o treino militar em Tancos e perante a Proclamao da Monarquia do Norte, no Batalho Acadmico Republicano (j era tambm scio da Liga da Mocidade Republicana). Em 1924, licencia-se em Direito, trabalhando depois como Cnsul na Noruega (Kristiansund). De regresso a Portugal, em 1930, dedica-se ao jornalismo e colabora em diferentes revistas como Seara Nova, Descobrimento, Imagem (revista de cinema), Sr. Doutor (revista infantil, onde comea a publicar periodicamente as Aventuras de Joo Sem Medo) e Gazeta Musical e de Todas as Artes. Sob o pseudnimo de lvaro Gomes, faz traduo de filmes. O poema "Viver sempre tambm cansa", escrito a 8/5/1931, e publicado na Presena, n33 (julho-outubro), marca o incio da sua atividade potica e, apesar de j ter publicado anteriormente os livros Lrios do Monte (obra que depois renegou) e Longe (1918), s mais tardiamente comea a publicao sria do seu trabalho, nomeadamente com Poesia I (1948), que o autor considera o seu verdadeiro livro de estreia. Terminada a guerra com a vitria dos Aliados, nasce entre os antifascistas portugueses a iluso de que todas as ditaduras nazi-fascistas iro ser varridas pelas democracias vencedoras do conflito. Na verdade, no passa mesmo de uma iluso. O regime corporativo, onde a saudao de brao estendido, como na Itlia fascista ou na Alemanha nazi, foi ritual corrente e, por vezes, obrigatrio, transforma-se numa democracia orgnica. Jos Gomes Ferreira comparece a todos os grandes momentos "democrticos e antifascistas" e, pouco antes de aderir ao Movimento de Unidade Democrtica (MUD), (tal como a grande maioria dos intelectuais portugueses) colabora com outros poetas neo-realistas num lbum de canes revolucionrias compostas por Fernando Lopes Graa, com a sua cano "No fiques para trs, companheiro".Pgina 1 de 19

Muitos intelectuais so perseguidos pela PIDE, presos e torturados. Em 1947, criado o ramo juvenil do MUD e o poeta escreve a letra do hino da organizao, cuja msica composta por Fernando Lopes-Graa. Vale a pena conhecer:

JornadaNo fiques para trs, companheiro, de ao esta fria que nos leva. Para no te perderes no nevoeiro, Segue os nossos coraes na treva. Aqueles que se percam no caminho, que importa, chegaro no nosso brado. Porque nenhum de ns anda sozinho, e at os mortos vo ao nosso lado. Vozes ao alto! Vozes ao alto! Unidos como os dedos da mo havemos de chegar ao fim da estrada ao som desta cano. Durante as frequentes e intensas lutas estudantis dos anos sessenta, este hino cantado por jovens contestatrios. Jornada tambm o hino que serve de indicativo estao clandestina Rdio Portugal Livre que, nas instalaes da Rdio Praga, emite diariamente para Portugal, a partir de maro de 1962. Assim, a msica e a letra de Jornada transformam-se num hino da resistncia antifascista, ultrapassando as fronteiras do partidarismo sectrio. Embora Lopes-Graa seja um militante comunista, Jos Gomes Ferreira no o ainda, assumindo-se como um esprito aberto. A SUA OBRA VAI SAINDO DAS GAVETAS Entre 1950, quando editado O Mundo dos Outros histrias e vagabundagens, seleo de crnicas publicadas na Seara Nova, e o ano da sua morte, publica cerca de quatro dezenas de ttulos - coletneas de poemas, obras de fico, crnicas, livros de memrias, ensaios, peas teatrais, introdues, prefcios, comentrios, notas, tradues. Note-se que, nos primeiros cinquenta anos de vida, produziu pouco mais do que meia dzia de ttulos, mas, ainda que a publicao seja diminuta, Jos Gomes Ferreira escreve muito e vai enchendo gavetas com nuvens, para usar a expresso que ele prprio utiliza para classificar esses anos em que acumulou projetos que, por uma razo ou por outra, no eram concludos. Surpreendentemente, essas nuvens vo saindo das gavetas, transmudadas em sis luminosos e surgem, ento, as suas grandes obras, nomeadamente aquelas que lhe conferem o estatuto de um dos mais importantes escritores portugueses do sculo XX.Pgina 2 de 19

Em 1950, publicado o volume de Poesia II, sendo tambm editado o livro de fices O Mundo dos Outros histrias e vagabundagens, contos que publicara em crnicas na revista Seara Nova. Colabora ainda com Fernando Lopes-Graa em Lricas. Em 1956, publica Elctrico. Em 1960, a vez da obra de fico, O Mundo Desabitado e, no ano seguinte, -lhe atribudo o Grande Prmio da Poesia pela Sociedade Portuguesa de Escritores pelo seu livro Poesia III. Em 1962, editado o volume de Poesia IV e publicado o livro Os Segredos de Lisboa. O ano de 1963 marcado pela edio de Aventuras Maravilhosas de Joo Sem Medo.

Fig.2 Capa da 1 edio de As Aventuras Maravilhosas de Joo Sem Medo.

Em 1965, sai A Memria das Palavras ou o gosto de falar de mim.1966 o ano de publicao de Imitao dos Dias Dirio Inventado. Em 1969, publica o livro de contos Tempo Escandinavo. Em 1971, O Irreal Quotidiano histrias e Invenes. Em 1973, d a conhecer Poesia V. Em Outubro, publica-se os Estatutos da Associao Portuguesa de Escritores que sucede S.P.E. encerrada pela polcia poltica. Jos Gomes Ferreira assina um editorial do n. 1 do boletim da A.P.E. que conclui com a frase (que prope como divisa): Escritores: as diferenas, entre pessoas de qualidade, s as podem unir!. E em 1974 surge a to desejada revoluo - tempo de flores

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25 de Abril de 1974: Sinto os olhos a desfazerem-se em lgrimas.De manh cedo, Roslia acorda-o, dizendo-lhe que h movimentos de tropas em redor de Lisboa. Jos refila, rabugento. Levanta-se e espreita pela janela. Pouca gente na rua. Toca o telefone. o Carlos de Oliveira: Est l? Est l? voc, Carlos? Que se passa? Responde-me com uma pergunta qualquer do avesso. s oito da manh o Rdio Clube emite um comunicado ainda pouco claro. Depois a Roslia chama-me, nervosa: - Outro comunicado na Rdio. Vem, depressa. Corro e ouo. () Na Rdio a cano do Zeca Afonso Sinto os olhos a desfazerem-se em lgrimas.Jos Gomes Ferreira, Poeta Militante III Viagem do Sculo Vinte em mim, Moraes Editores, Lisboa, 1983

. tempo de cantar flores. Mas nos seus 74 anos de vida, o poeta j sofreu muitas desiluses. Por isso, num encontro com escritores portugueses antifascistas regressados a Portugal aps o 25 de abril, comenta: Que esta revoluo das flores no seja a revoluo das flores de retrica.

fig3 fig3 com escritores Aps o 25 de Abril, 1 portugueses regressados a2Portugal Que as fig3 flores de Abril, no sejam flores de retrica.

A Gaveta das NuvensEm 1975, sai Gaveta das Nuvens tarefas e tentames literrios e o volume de crnicas Revoluo Necessria. Entre1976 e 1978, surgem O SaborPgina 4 de 19

das Trevas Romance Alegoria, o novo volume de crnicas, Interveno Sonmbula e os volumes I, II e III de Poesia Militante e o Coleccionador de Absurdos e Cinco Caprichos Teatrais. Jos Gomes Ferreira eleito presidente da Associao Portuguesa de Escritores. Em 1979, nas eleies legislativas intercalares, candidato, por Lisboa, nas listas da APU (Aliana Povo Unido). O tempo das homenagens comea em 1980 - o presidente Ramalho Eanes, condecora-o como Grande Oficial da Ordem Militar de Santiago da Espada, recebendo depois o grau da grande oficial da Ordem da Liberdade. Por idealismo e no por oportunismo, no mesmo ano, filia-se no Partido Comunista Portugus. Seguem-se outros ttulos da vasta produo literria: O Enigma da rvore Enamorada Divertimento em forma de Novela quase Policial e o Relatrio de Sombras ou a Memria das Palavras II. Em 1983, homenageado pela Sociedade Portuguesa de Autores. Em 8 de Fevereiro de 1985, morre na sua casa da Avenida Rio de janeiro, em Lisboa, vtima de doena prolongada. Como ele prprio afirmava, Viver sempre tambm cansa: Viver sempre tambm cansa! O sol sempre o mesmo e o cu azul ora azul, nitidamente azul, ora cinza, negro, quase verde... Mas nunca tem a cor inesperada. O Mundo no se modifica. As rvores do flores, folhas, frutos e pssaros como mquinas verdes. As paisagens tambm no se transformam. No cai neve vermelha, no h flores que voem, a lua no tem olhos e ningum vai pintar olhos lua. Tudo igual, mecnico e exacto. Ainda por cima os homens so os homens. Soluam, bebem, riem e digerem sem imaginao. E h bairros miserveis, sempre os mesmos, discursos de Mussolini, guerras, orgulhos em transe, automveis de corrida... E obrigam-me a viver at Morte! Pois no era mais humano morrer por um bocadinho, de vez em quando, e recomear depois, achando tudo mais novo? Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses, morrer em cima dum div com a cabea sobre uma almofada,

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A 1 verso do poema "Viver sempre tambm cansa"

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confiante e sereno por saber que tu velavas, meu amor do Norte. Quando viessem perguntar por mim, havias de dizer com teu sorriso onde arde um corao em melodia: "Matou-se esta manh. Agora no o vou ressuscitar por uma bagatela." E virias depois, suavemente, velar por mim, subtil e cuidadosa, p ante p, no fosses acordar a Morte ainda menina no meu colo..."Jos Gomes Ferreira, Poeta Militante I, 4 edio, Publicaes Dom Quixote, Lisboa, 1990

O que descobrimos na sua obra?Na produo literria de Jos Gomes Ferreira, cruzam-se trs tendncias ou correntes literrias, sem que possamos inscrev-lo definitivamente em nenhuma delas: o eco da matriz saudosista que lhe fica da iniciao com o seu mestre Leonardo Coimbra, que o inspirou na sua devoo a Raul Brando e a Teixeira de Pascoais, a atrao pela forma inslita e onrica do surrealismo e o apelo constante do contedo do realismo socialista ou, como se chamou entre ns, do neo-realismo. Este ecletismo origina uma escrita muito pessoal, independente e originalssima, alheia a escolas e a classificaes que os crticos usam frequentemente como bssola.

Privilegiamos duas opinies sobre a sua obra:Gomes Ferreira foi principalmente o porta-voz de um sentimento de remorso e responsabilizao do intelectual por todas as brutalidades e injustias, pelo drama coletivo dos ltimos cinco decnios; as contradies da autossinceridade, j focadas por Raul Brando e Rgio, ganham com ele tons alternativos de sarcasmo, de nojo, de revolta, de melancolia, de perplexidade, anotados no quotidiano da resistncia.Antnio Jos Saraiva e scar Lopes, Histria da Literatura Portuguesa, 17 edio,1996

A dialctica da realidade e da irrealidade, de que tambm se encontram reflexos nos seus livros de histrias, vagabundagens e invenes, alarga-se a um outro tema que domina a poesia de Jos Gomes Ferreira: o conflito dentro da persona, entre as suas tendncias individualistas e a necessidade de partilhar o sofrimento e o drama dos outros homens.Fernando J.B. Martinho, Dicionrio de Literatura Portuguesa, organizado por lvaro Manuel Machado, Editorial Presena, Lisboa, 1996

Jos Gomes Ferreira - o poeta e o cidadoPgina 6 de 19

Quando perspetivamos o homem e a sua obra, nunca podemos ignorar o caminho trilhado pela inteligncia atravs de um sculo manchado por numerosos estigmas duas guerras mundiais com uma grave crise econmica de permeio, o deflagrar da Guerra Fria, a ameaa da destruio nuclear, e as vsperas do colapso do socialismo real. Em Portugal, o florescer e o ruir do sonho republicano, submerso no caos da I Repblica e do episdio da aventura sidonista, a ecloso do corporativismo, a guerra colonial, a Revoluo democrtica e a consequente desiluso que se lhe seguiu. Nos seus 85 anos de existncia, Jos Gomes Ferreira viveu empenhadamente e criticamente o seu tempo e a sua escrita traduz a luta de resistncia ativa que muitos intelectuais portugueses moveram contra a ditadura salazarista. Os seus versos, as pginas dos seus livros, as letras de canes que, musicadas por Lopes-Graa, inspiraram o pensamento e a ao de quem no se subjugava ao status quo e sonhava com uma sociedade mais justa e livre. A sua obra testemunha os caminhos de luz que todos os homens podem construir e percorrer, mesmo quando foroso vencer as noites mesquinhas e criminosas que sufocam os que aspiraram liberdade. Lendo a sua vasta obra, continuamos a ouvir o seu grito de inteligncia e percebemos como resistir e agir perante os regimes estranguladores. Concordando ou discordando das opes polticas de Jos Gomes Ferreira, devemos reconhecer a sua coragem e a independncia de quem nunca se preocupou com o que conveniente. Por isso, valorizamos o cidado e o escritor que sempre fez e disse o que lhe pareceu estar certo. Admiramos o seu percurso e escutamos, com ateno, as suas palavras luminosas e inspiradoras que foram rasgando as longas e temveis noites de escurido que, durante 48 anos, adormeceram Portugal.

Admiramos a sua imaginao, a sua arte e o seu esprito crtico:Ah! Se eu conseguisse inventar uma nova Arte ao mesmo tempo sria, profunda e de aparncia imbecil para interessar a maioria da gente portuguesa, grave, sem dvida, mas apenas sensvel ao analfabetismo superficial dos sentimentos! Jos Gomes Ferreira, Dias Comuns II. A Idade do Malogro, Dirio, Publicaes Dom Quixote, 1998

E seguimos, guardando, em ns, o maravilhamento e o espantoEntrei no caf com um rio na algibeira e pu-lo no cho, a v-lo correr da imaginao... A seguir, tirei do bolso do colete nuvens e estrelas e estendi um tapete de flores a conceb-las. Depois, encostado mesa, tirei da boca um pssaro a cantar e enfeitei com ele a Natureza das rvores em torno Pgina 7 de 19

a cheirarem ao luar que eu imagino.

E agora aqui estou a ouvir A melodia sem contorno Deste acaso de existir -onde s procuro a Beleza para me iludir dum destino.fig5

Quero voar -mas saem da lama garras de cho que me prendem os tornozelos. Quero morrer -mas descem das nuvens braos de angstia que me seguram pelos cabelos. E assim suspenso no clamor da tempestade como um saco de problemas -tapo os olhos com as lgrimas para no ver as algemas... (Mas qualquer balouar ao vento me parece liberdade.) Cala-te, voz que duvida e me adormece a dizer-me que a vida nunca vale o sonho que se esquece. Cala-te, voz que assevera e insinua que a primavera a pintar-se de lua nos telhados, s bela quando se inventa de olhos fechados nas noites de chuva e de tormenta. Cala-te, seduo desta voz que me diz que as flores so imaginao sem raiz. Cala-te, voz malditafig6

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que me grita que o sol, a luz e o vento so apenas o meu pensamento enlouquecido. (E sem a minha sombra o cho tem l sentido!) Mas canta tu, voz desesperada que me excede. E ilumina o Nada Com a minha sede. Vai-te, Poesia! Vai-te, poesia! Deixa-me ver friamente a realidade nua sem ninfas de iludir ou violinos de lua. Vai-te, Poesia! No transformes o mundo descarnado e terrvel num cu de esquecer com mendigos de nuvens famintos de estrelas e feridas a cheirarem a cravos - enquanto os outros, os de carne verdadeira, uivam em vo a sua fome de cadeias e de po. Vai-te, Poesia! Deixa-me ver a vida exacta e intolervel neste planeta feito de carne humana a chorar onde um anjo me arrasta todas as noites para casa pelos cabelos com bandeiras de lume nos olhos, para fabricar sonhos carregados de dinamite de lgrimas. Vai-te, Poesia!

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Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias (O soneto que s errado ficou certo)Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias para te dizer, com a simplicidade do bater do corao, que afinal ao p de ti apenas sinto as mos mais frias e esta ternura dos olhos que se do. Nem asas, nem estrelas, nem flores sem cho - mas o desejo de ser a noite que me guia e baixinho ao bafo da tua respirao contar-te todas as minhas covardias. Ao p de ti no me apetece ser heri mas abrir-te mais o abismo que me di nos cardos deste sol de morte viva. Ser como sou e ver-te como s: dois bichos de suor com sombra aos ps. Complicaes de luas e saliva. Deixa que a minha solido prolongue mais a tua para aqui os dois de mos dadas nas noites estreladas, a ver os fantasmas a danar na lua. D-me a tua mo at o Abismo da Ternura Derradeira

Homens do futuroHomens do futuro: ouvi, ouvi este poeta ignorado que c de longe fechado numa gaveta no suor do sculo vinte rodeado de chamas e de troves, vai atirar para o mundo versos duros e sonmbulos como eu. Versos afiados como dentes duma serra em mos de injria. Versos agrestes como azorragues de nojo.Pgina 10 de 19

Versos rudes como machados de decepar. Versos de lmina contra a Paisagem do mundo essa prostituta que parece andar s ordens dos ricos para adormecer os poetas. Fora, fora do planeta, tu, mulher lnguida de braos verdes e cantos de pssaros no corao! Fora, fora as rvores inteis ninfas paradas para o cio dos faunos escondidos no vento... Fora, fora o cu com nuvens onde no h chuva mas cores para quadros de exposio! Fora, fora os poentes com sangue sem cadveres a iludiremos de campos de batalha suspensos! Fora, fora as rosas vermelhas, flmulas de revolta para enterros na primavera dos revolucionrios mortos na cama! Fora, fora as fontes com gua envenenada da solido para adormecer o desespero dos homens! Fora, fora as heras nos muros vestirem de luz verde as sombras dos nossos mortos sempre de p! Fora, fora os rios a esquecerem-nos as lgrimas dos pobres! Fora, fora as papoilas, to contentes de parecerem o rosto de sangue herico dum fantasma ferido! Fora, fora tudo o que amolea de afrodites a teima das nossas garras curvas de futuro! Fora! Fora! Fora! Fora!Pgina 11 de 19

Deixem-nos o planeta descarnado e spero para vermos bem os esqueletos de tudo, fig7 at das nuvens. Deixem-nos um planeta sem vales rumorosos de ecos hmidos nem mulheres de flores nas plancies estendidas. Um planeta feito de lgrimas e montes de sucata com morcegos a trazerem nas asas a penumbra das tocas. E estrelas que rompem do ferro fundente dos fornos! E cavalos negros nas nuvens de fumo das fbricas! E flores de punhos cerrados das multides em alma! E barraces, e vielas, e vcios, e escravos a suarem um simulacro de vida entre bolor, fome, mos de splica e cadveres, montes de cadveres, milhes de cadveres, silncios de cadveres e pedras! Deixem-nos um planeta sem rvores de estrelas a ns os poetas que estrangulamos os pssaros para ouvirmos mais alto o silncio dos homens terrveis, espera, na sombra do cho sujo da nossa morte. Chove... Mas isso que importa!, se estou aqui abrigado nesta porta a ouvir a chuva que cai do cu uma melodia de silncio que ningum mais ouve seno eu? Chove... Mas do destino de quem ama ouvir um violino at na lama

Rei

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Nasci rei de um reinado sem rei, Num castelo sem cor e sem ponte, Meus comandos nos quadros da lei Mergulharam na clida fonte. Meus soldados de escudo no brao, Nunca espada tiveram na mo, Os tambores batidos no espao Percutiram lembranas em vo. A princesa do rei to silente No castelo vivia sem dor, Mas o reino do rei diferente Tinha a cor do castelo sem cor. Nasci rei de um reinado sem rei, Sem comando, sem povo e sem lei.

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Agora, apodrecerAgora, apodrecer. Nas ruas, no suor das mos amigas dos amigos, na pele dos espelhos... desespero sorrido, carne de sonho pblico, montras enfeitadas de olhos... ...mas apodrecer. Bolor a fingir de lua, rvores esquecidas do princpio do mundo... "como ests, ests bem?", o telefone no toca! devorador de astros... ... mas apodrecer. Sim, apodrecer de p e mecnico, a rolar pelo mundo nesta bola de vidro, j sem olhos para aguar peitos e o sol a nascer todos os dias no emprego burocrtico de dar razo aos relgios, cada vez mais necessrios para as certides da morte exata, Sim, apodrecer ... "...as mos, a clera, o frio, as plpebras, o cabelo a morte, as bandeiras, as lgrimas, a repblica, o sexo... ... mas apodrecer! Sujar estrelas.Pgina 13 de 19

A Minha Solido (Durante dias andei a ruminar estes versos)A minha solido no uma inveno para enfeitar noites estreladas... Mas este querer arrancar a prpria sombra do cho e ir com ela pelas ruas de mos dadas. ...Mas este sufocar entre coisas mortas e pedras de frio onde nem sequer h portas para o Calafrio. ...Mas este rir-me de repente no poo das noites amarelas... - nica chama consciente com boca nas estrelas. ...Mas este eterno S-Um (mesmo quando me queima a pele o teu suor) - sem carne em comum com o mundo em redor. ...Mas este haver entre mim e a vida sempre uma sombra que me impede de gozar na boca ressequida o sabor da prpria sede. ...Mas este sonho indeciso de querer salvar o mundo - e descobrir afinal que no piso o mesmo cho do pobre e do vagabundo. Mas este saber que tudo me repele no vento vestido de areia... E at, quando a toco, a prpria pele me parece alheia. No. A minha solido no uma invenoPgina 14 de 19

para enfeitar o cu estrelado... mas este deitar-me de sbito a chorar no cho e agarrar a terra para sentir um Corpo Vivo a meu lado.

Choro!Ningum v as minhas lgrimas, mas choro as crianas violadas nos muros da noite hmidos de carne lvida onde as rosas se desgrenham para os cabelos dos charcos. Ningum v as minhas lgrimas, mas choro diante desta mulher que ri com um sol de soluos na boca no exlio dos Rumos Decepados. Ningum v as minhas lgrimas, mas choro este sequestro de ir buscar cadveres ao peso dos poos onde j nem sequer h lodo para as estrelas descerem arrependidas de cu. Ningum v as minhas lgrimas, mas choro a coragem do ltimo sorriso para o rosto bem-amado naquela Noite dos Muros a erguerem-se nos olhos com as mos ainda procura do eterno na carne de despir, suada de iluso. Ningum v as minhas lgrimas, mas choro todas as humilhaes das mulheres de joelhos nos tapetes da splica todos os vagabundos cados ao luar onde o sol para atirar camlias todas as prostitutas esbofeteadas pelos esqueleto de repente dos espelhos todas as horas-da-morte nos casebres em que as aranhas tecem vestidos para o sopro do silncio todas as crianas com ces batidos no crispar das bocas sujas de misria...Pgina 15 de 19

Ningum v as minhas lgrimas, mas choro... Mas no por mim, ouviram? Eu no preciso de lgrimas! Eu no quero lgrimas! Levanto-me e probo as estrelas de fingir que choram por mim! Deixem-me para aqui, seco, senhor de insnias e de cardos, neste dio enternecido de chorar em segredo pelos outros espera daquele Dia em que o meu corao estoire de amor a Terra com as lgrimas pblicas de pedra incendiada a correrem-me nas faces num arrepio de Primavera e de Catstrofe!

Vivam ApenasVivam, apenas Sejam bons como o sol. Livres como o vento. Naturais como as fontes Imitem as rvores dos caminhos que do flores e frutos sem complicaes. Mas no queiram convencer os cardos a transformar os espinhos em rosas e canes. E principalmente no pensem na Morte. No sofram por causa dos cadveres que s so belos quando se desenham na terra em flores. Vivam, apenas. A Morte para os mortos!

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Escultura no Parque dos Poetas, em Oeiras.

Jos Gomes Ferreira foi um representante do artista social e politicamente empenhado, nas suas reaes e revoltas face aos problemas e injustias do mundo. Mas a sua potica acusa influncias to variadas quanto a do empenhamento neo-realista, o visionarismo surrealista ou o saudosismo, numa dialtica constante entre a irrealidade e a realidade, entre as suas tendncias individualistas e a necessidade de partilhar o sofrimento dos outros. Na memria e no papel fica a sua vasta obra, que marcou todo esse vasto perodo de quase um sculo.

Algumas obras do autor PoesiaPoeta Militante I, 1977 Poeta Militante II, 1978 Poeta Militante III, 1978 A Poesia Contnua, 1981

Fico:Mundo dos Outros - histrias e vagabundagens" - 1950 Aventuras de Joo Sem Medo, 1963 (histrias humorsticas do mundo juvenil) A Memria das Palavras I - 3, 1965 Coleccionador de Absurdos, 1978 Caprichos Teatrais, 1978 Enigma da rvore Enamorada, 1980Pgina 17 de 19

Imitao dos Dias, 1966 Tempo Escandinavo, 1969 (contos) Irreal Quotidiano - histrias e invenes - 1971 Gaveta de Nuvens - tarefas e tentames literrios - 1975 Revoluo Necessria, 1975 Interveno Sonmbula, 1977 O Mundo Desabitado, 1960 Os segredos de Lisboa,1962 ()

Memrias e DiriosA Memria das Palavras - ou o gosto de falar de mim - 1965 Imitao dos Dias - Dirio Inventado - 1966 Relatrio de Sombras - ou a Memria das Palavras II - 1980 Passos Efmeros - Dias Comuns I - 1990 ()

ContosContos - 1958 Tempo Escandinavo 1969

Ensaios e Estudos"Guilherme Braga" (colaborao na "Perspectiva da Literatura Portuguesa do sc. XIX") - 1948 "Lricas" (colaborao) - 1950 "Folhas Cadas" de Almeida Garrett (introduo) - 1955 "Contos Tradicionais Portugueses" (colaborao na escolha e comentao; prefcio) - 1958 "A Poesia de Jos Fernandes Fafe" - 1963 "Situao da Arte" (colaborao) - 1968 "Vietnam (os escritores tomam posio)" (colaborao) - 1968 "Jos Rgio" (colaborao no "In Memorium de Jos Rgio") - 1970 "A Filha do Arcediago" de Camilo Castelo Branco (nota preliminar) - 1971 "Lisboa na Moderna Pintura Portuguesa" (colaborao) - 1971 "Uma Intil Nota Preambular" de Aquilino Ribeiro (introduo a "Um Escritor confessa-se") - 1972

Tradues"A Casa de Bernarda Alba" de Frederico Garcia Lorca (colaborao) "O Livro das Mil e Uma Noites" - 1926

Discografia"Poesia" - Philips - 1969 srie "Poesia Portuguesa" "Poesia IV" - Philips - 1971 srie "Poesia Portuguesa" "Poesia V" - Decca / Valentim de Carvalho - 1973 srie "A Voz e o Texto" "Entrevista 12 - Jos Gomes Ferreira" - Guilda da Msica / Sassetti - 1973 sriePgina 18 de 19

"Disco Falado"

Para Saber + http://www.youtube.com/watch?v=z0ffTbXpa6M http://www.youtube.com/watch?v=_cBWRgLUCtg&feature=related http://www.youtube.com/watch?v=JH2w0LKQGZw&feature=related

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