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José Paulo Paes - Vamos brincar de poesia? "Como dizia aquele bem-te-vi que ficou míope: "bem te via ... bem te via ..." No Em Revista dessa edição, vida , obra e ensaios do poeta José Paulo Paes. ( Leia completo) Índice : Pág. 01 - Ensaio : Um lugar para José Paulo Paes, por Régis Bonvincino Pág. 02 - 50 poemas de José Paulo Paes Pág. 03 - Ensaio : O jogo verbal em José Paulo Paes, por Maria Teresa Gonçalves Pereira Pág. 04 - Vida e Obra UM LUGAR PARA JOSÉ PAULO PAES José Paulo Paes morreu em 8 de outubro de 1998, um ano e um dia exatamente antes que João Cabral de Melo Neto, morto em 9 de outubro de 1999. A morte dos dois teve repercussões diversas: a de Cabral imensa, com jornais e revistas, especializadas ou não, oferecendo-lhe capas e cadernos inteiros ; a de Paes, discreta, mesmo quando algum veículo chegou-lhe a dar registro mais visível. Paradoxal: quando vivo, Paes estava constantemente na "media" e Cabral não.Há cerca de um ano, lastimei, com amigos, o "desaparecimento" de Paes das menções e citações, por parte de críticos e poetas, sua ausência das listas (mesmo sabendo-as perecibilíssimas) de "melhores" - uma espécie de morte da morte da qual ora ele se resgata por meio do lançamento de "Socráticas" e de "Vejam como eu sei escrever", este infantil, dirigido a crianças e adolescentes."Socráticas" reúne peças que estava escrevendo para o que seria um livro novo de poemas, com esse título e certa organização. É, portanto, inconcluso. Não se pode lê-lo sem pensar que seu autor morreu antes de terminá-lo. Seriam pois as tais um tipo de "memórias póstumas". Seu "tom" não diverge do de "Vejam como eu sei escrever", concluido ainda em 1998, antes de sua morte física. Nos dois volumes, Paes adota uma dicção simples, direta, numa linguagem quase unívoca, como se nos quisesse deixar "membretes", recados. Assim, filiá-los à esta ou àquela tendência literária é pura tolice ou mera capacidade de "incompreensão".A palavra "recado" vem do latim: recapitu, recapitare, receptare, que quer dizer "receber", "acolher" e "recuperar". Fixo-me na acepção de "recuperar". Paes quis, com suas "Socráticas", recuperar, para a poesia também, certos valores éticos. Esta é a inflexão que torna extremamente legíviel o conjunto: a cívica, de protesto contra os (des) valores atuais da sociedade. Leia-se por exemplo "Apocalipse": "o dia em que cada / habitante da China / tiver o seu volksvagen". Ou o verso "Quem já não passou por isso?", de "Fenomenologia da resignação". Nunca é demais, nestes tempos de apagões e corrupções, transcrever um texto como "Do credo neoliberal": "laissez faire / sauve qui peut!". É contra este sentimento de "salve-se quem puder" que se volta o poeta, tanto em "Socráticas", quanto em "Vejam como eu sei escrever", trabalho que civicamente tenta captar a atenção das crianças para o verbo e a palavra, numa perspectiva de "solidariedade".Entre as peças de "Socráticas" destacaria duas. A primeira, "Lição de coisas" : "Uma nêspera branca! / transtornou-se acaso a ordem do universo? / Mordo-lhe a polpa: o mesmo / gosto das nêsperas amarelas. / Tudo é superfície". Aí, a linguagem simples encontra coerência filosófica, materializando-se: a impossibilidade do habitar-se em profundidade tanto a coisa (o mundo) quanto a palavra. O poema registra a fragilidade fraudulenta das mudanças contemporâneas e aponta para a impotência da poesia: nêspera branca, que nada transtorna. A outra peça seria "Momento": "Visto assim do alto / no cair da tarde / o automóvel imóvel / sob os galhos da árvore / parece estar rumo / a algum outro lugar / onde abolida a própria / idéia de viagem / as coisas pudessem / livremente se entregar / ao gosto inato / da dissolução - e é noite". A imobilidade do objeto (automóvel), flagrada, leva o poeta a imaginar para ele um outro tipo de percurso, o de coisa pura, que adquire um ritmo natural e se dissolve, mas, na noite. Aqui reaparece a questão ética: a da mecanicidade do mundo, de sua falta de reflexão.Da interdição da reflexão livre: a imagem da noite, plurívoca, interronpendo o rumo "a algum outro lugar"."Vejam como eu sei escrever" é igualmente, como já se disse, um livro cívico. Diz às crianças que "escrever" não é difícil e procura afastá-las do óbvio mundo das imagens. É feito de estranhamentos: "O elefante não dá muito trabalho ao dentista / do zoológico porque só tem dois dentes". Os dois livros colocam questão para a poesia: como reunir, num só trabalho, ética e estética, mundo e linguagem ?. A obra de Paes é um das respostas possíveis para esta equação e, certamente, merece permancer. Régis Bonvicino ( Artigo gentilmente cedido pelo autor ao LetraseLivros) Sobre o autor : RÉGIS BONVICINO nasceu na cidade de São Paulo, em 25 de fevereiro de 1955. Formou-se em Direito pela USP, em 1978. Trabalhou como articulista do jornal Folha de S. Paulo e de outros veículos até ingressar na magistratura, em http://www.letraselivros.com.br - Letras e Livros Powered by Mambo Generated: 9 November, 2010, 17:23

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José Paulo Paes - Vamos brincar de poesia?

"Como dizia aquele bem-te-vi que ficou míope: "bem te via ... bem te via ..." No Em Revista dessa edição, vida , obra eensaios do poeta José Paulo Paes. ( Leia completo)

Índice :

Pág. 01 - Ensaio : Um lugar para José Paulo Paes, por Régis Bonvincino

Pág. 02 - 50 poemas de José Paulo Paes

Pág. 03 - Ensaio : O jogo verbal em José Paulo Paes, por Maria Teresa Gonçalves Pereira

Pág. 04 - Vida e Obra

UM LUGAR PARA JOSÉ PAULO PAES

  José Paulo Paes morreu em 8 de outubro de 1998, um ano e um dia exatamente antes que João Cabral de Melo Neto,morto em 9 de outubro de 1999. A morte dos dois teve repercussões diversas: a de Cabral imensa, com jornais erevistas, especializadas ou não, oferecendo-lhe capas e cadernos inteiros ; a de Paes, discreta, mesmo quando algumveículo chegou-lhe a dar registro mais visível. Paradoxal: quando vivo, Paes estava constantemente na "media" e Cabralnão.Há cerca de um ano, lastimei, com amigos, o "desaparecimento" de Paes das menções e citações, por parte de críticose poetas, sua ausência das listas (mesmo sabendo-as perecibilíssimas) de "melhores" - uma espécie de morte damorte da qual ora ele se resgata por meio do lançamento de "Socráticas" e de "Vejam como eu sei escrever", esteinfantil, dirigido a crianças e adolescentes."Socráticas" reúne peças que estava escrevendo para o que seria um livronovo de poemas, com esse título e certa organização. É, portanto, inconcluso. Não se pode lê-lo sem pensar que seu autormorreu antes de terminá-lo. Seriam pois as tais um tipo de "memórias póstumas". Seu "tom" não diverge do de "Vejamcomo eu sei escrever", concluido ainda em 1998, antes de sua morte física. Nos dois volumes, Paes adota uma dicçãosimples, direta, numa linguagem quase unívoca, como se nos quisesse deixar "membretes", recados. Assim, filiá-los àesta ou àquela tendência literária é pura tolice ou mera capacidade de "incompreensão".A palavra "recado" vem dolatim: recapitu, recapitare, receptare, que quer dizer "receber", "acolher" e "recuperar". Fixo-me na acepção de"recuperar". Paes quis, com suas "Socráticas", recuperar, para a poesia também, certos valores éticos. Esta é ainflexão que torna extremamente legíviel o conjunto: a cívica, de protesto contra os (des) valores atuais da sociedade.Leia-se por exemplo "Apocalipse": "o dia em que cada / habitante da China / tiver o seu volksvagen". Ou o verso "Quemjá não passou por isso?", de "Fenomenologia da resignação". Nunca é demais, nestes tempos de apagões e corrupções,transcrever um texto como "Do credo neoliberal": "laissez faire / sauve qui peut!". É contra este sentimento de "salve-sequem puder" que se volta o poeta, tanto em "Socráticas", quanto em "Vejam como eu sei escrever", trabalho quecivicamente tenta captar a atenção das crianças para o verbo e a palavra, numa perspectiva de "solidariedade".Entre aspeças de "Socráticas" destacaria duas. A primeira, "Lição de coisas" : "Uma nêspera branca! / transtornou-se acaso aordem do universo? / Mordo-lhe a polpa: o mesmo / gosto das nêsperas amarelas. / Tudo é superfície". Aí, a linguagemsimples encontra coerência filosófica, materializando-se: a impossibilidade do habitar-se em profundidade tanto a coisa(o mundo) quanto a palavra. O poema registra a fragilidade fraudulenta das mudanças contemporâneas e aponta para aimpotência da poesia: nêspera branca, que nada transtorna. A outra peça seria "Momento": "Visto assim do alto / nocair da tarde / o automóvel imóvel / sob os galhos da árvore / parece estar rumo / a algum outro lugar / onde abolida aprópria / idéia de viagem / as coisas pudessem / livremente se entregar / ao gosto inato / da dissolução - e é noite". Aimobilidade do objeto (automóvel), flagrada, leva o poeta a imaginar para ele um outro tipo de percurso, o de coisa pura,que adquire um ritmo natural e se dissolve, mas, na noite. Aqui reaparece a questão ética: a da mecanicidade domundo, de sua falta de reflexão.Da interdição da reflexão livre: a imagem da noite, plurívoca, interronpendo o rumo "aalgum outro lugar"."Vejam como eu sei escrever" é igualmente, como já se disse, um livro cívico. Diz às crianças que"escrever" não é difícil e procura afastá-las do óbvio mundo das imagens. É feito de estranhamentos: "O elefante não dámuito trabalho ao dentista / do zoológico porque só tem dois dentes". Os dois livros colocam questão para a poesia: comoreunir, num só trabalho, ética e estética, mundo e linguagem ?. A obra de Paes é um das respostas possíveis para estaequação e, certamente, merece permancer.

Régis Bonvicino

( Artigo gentilmente cedido pelo autor ao LetraseLivros)

Sobre o autor :

RÉGIS BONVICINO nasceu na cidade de São Paulo, em 25 de fevereiro de 1955. Formou-se em Direito pela USP, em1978. Trabalhou como articulista do jornal Folha de S. Paulo e de outros veículos até ingressar na magistratura, emhttp://www.letraselivros.com.br - Letras e Livros Powered by Mambo Generated: 9 November, 2010, 17:23

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1990. É casado, desde 1992, com a psicanalista Darly Menconi e tem três filhos: João, 27, Marcelo Flores, 20, e Bruna,14.Seus três primeiros livros, Bicho papel (1975), Régis Hotel (1978) e Sósia da cópia (1983) foram por ele mesmo editados.Hoje, estão reunidos no volume Primeiro tempo (Perspectiva, 1995).Entre suas participações em leituras de poesia destacam-se as atuações em Buenos Aires (1990); Miami (Miami Book Fair,1992); Copenhague (1993); na III Bienal Internacional de Poetas em Val-de-Marne (1995), fazendo leituras em Paris(Maison de La Amerique Latine) e Marselha (Centro Internacional de Poesia); Berkeley (1996), com Michael Palmer, ena San Francisco State Universty. Em 1998, apresentou-se com Charles Bernstein no Segue Performance Foundation,de Nova York; no ano de 1999 esteve em Santiago de Compostela, na Universidade de Santiago. Fez leituras em IowaCity (2000), com Michael Palmer, e em Chicago; participou do IV Encontro Internacional de Poetas de Coimbra (2001).Destaca-se ainda sua participação na Feira do Livro da Cidade do México (2004). Seu trabalho está traduzido para oinglês, espanhol, francês, chinês, catalão, finlandês e dinamarquês.Entre 1975 e 1983, dirigiu as revistas de poesia Qorpo Estranho – com três números –, Poesia em Greve e Muda.Fundou, em 2001, e co-dirige, ao lado de Charles Bernstein, a revista Sibila (http://www.sibila.com.br), publicadaatualmente pela Martins Editora.

http://regisbonvicino.com.br

50 Poemas de José Paulo Paes 

1) Acima de qualquer suspeita

a poesia está morta mas juro que não fui eu

eu até que tentei fazer o melhor que podia para salvá-la

imitei diligentemente augusto dos anjos paulo torres car-      los drummond de andrade manuel bandeira murilo      mendes vladmir maiakóvski joão cabral de melo neto      paul éluard oswald de andrade guillaume appolinaire      sosígenes costa bertolt brecht augusto de campos

não adiantou nada

em desespero de causa cheguei a imitar um certo (ou       incerto) josé paulo paes poeta de ribeirãozinho estrada       de ferro araraquarense

porém ribeirãozinho mudou de nome a estrada de ferro       araraquarense foi extinta e josé paulo paes parece       nunca ter existido

nem eu

2) Passarinho fofoqueiro

Um passarinho me contou que a ostra é muito fechada, que a cobra émuito enrolada, que a arara é uma cabeça oca, e que o leão marinho e a foca.. xô , passarinho! chega de fofoca!

3) Acidentehttp://www.letraselivros.com.br - Letras e Livros Powered by Mambo Generated: 9 November, 2010, 17:23

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Atirei um pau no gato, mas o gato não morreu, porque o pau pegou no rato que eu tentei salvar do gato e o rato (que chato!) foi quem porreu.

4) Convite

Poesia é brincar com palavras como se brinca com bola, papagaio, pião.

Só que bola, papagaio,pião de tanto brincar se gastam.

As palavras não: quanto mais se brinca com elas mais novas ficam.

Como a água do rio que é água sempre nova.

Como cada dia que é sempre um novo dia.

Vamos brincar de poesia?

5) Raridade

A araraé uma ave rarapois o homem não párade ir ao mato caçá-lapara a pôr na salaem cima de um poleiroonde ela fica o dia inteirofazendo escarcéuporque já não pode voar pelo céu.

E se o homem não párade caçar arara,hoje uma ave rara,ou a arara someou então muda seu nomepara arrara.

6) HINO AO SONO

sem a pequena mortede toda noitehttp://www.letraselivros.com.br - Letras e Livros Powered by Mambo Generated: 9 November, 2010, 17:23

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como sobreviver à vidade cada dia?

7) AO ESPELHO

O que mais me aproveitaem nosso tão freqüentecomércio é a tuapedagogia de avessos.Fazem-se em nós defeitosas virtudes que ensinas:o brilho de superfíciea profundidade mentirosao existir apenasno reflexo alheio.No entanto, sem tisequer nos saberíamoso outro de um outrooutro por sua vezde algum outro, em infinitocorredor de espelhos.Isso até o últimovazio de toda imagemespelho de um si mesmoanterior, posteriora tudo, isto é, nada.

8) DÚVIDA

Não há nada mais tristedo que um cão em guardaao cadáver de seu dono.

Eu não tenho cão.Será que ainda estou vivo?

9) Madrigal

   Meu amor é simples, Dora,

   Como a água e o pão.

   Como o céu refletido

   Nas pupilas de um cão.

  

DE NOVAS CARTAS CHILENAS (1954)

  

11) L'Affaire Sardinha

   O bispo ensinou ao bugre

   Que pão não é pão, mas Deus

   Presente na eucaristia.

  

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   E como um dia faltasse

   Pão do bugre, ele comeu

   O bispo, eucaristicamente.

  

DE EPIGRAMAS (1958)

  

12) Bucólica

   O camponês sem terra

   Detêm a charrua

   E pensa em colheitas

   Que nunca serão suas.

  

DE RESÍDUO (1980)

  

13) Epitáfio para Rui

   ... e tenho dito

   Bravos!

   (mas o que foi mesmo que ele disse?)

  

14) Um Sonho Americano

   CIA limitada

  

DE CALENDÁRIO PERPLEXO (1983)

  

15) A Verdadeira Festa (12 de junho - namorados)

   mas pra que fogueira

   rojão

   quentão?

 

   basta o fogo nas veias

   e a escuridão

   coração.

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DE A POESIA ESTÁ MORTA MAS JURO QUE NÃO FUI EU (1988)

  

16) Curitiba

   O inventor no estado

   era um pinheiro inabalável

 

   inabaláveis pinheiros igualmente

   o secretário da segurança pública

   o presidente da academia de letras

   o dono do jornal

   o bispo o arcebispo o magnífico reitor

 

   ah se naqueles tempos

   a gente tivesse

   (armando glauco dalton)

   um bom machado!

  

17) Pisa: A torre

   em vão se inclinas pedagogicamente

   o mundo jamais compreenderá a abliqüidade dos

   bêbados ou o mergulho dos suicidas.

18) auto-epitáfio n.2  

para quem pediu sempre                                /tão pouco o nada é positivamente                                /um exagero.

poema publicado na f. de são paulo - 18/10/98    

19) DECLARAÇÃO DE BENS  

meu deus minha pátria minha família

minha casa http://www.letraselivros.com.br - Letras e Livros Powered by Mambo Generated: 9 November, 2010, 17:23

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meu clube meu carro  

minha mulher minha escova de dentes  

minha vida meu câncer meus vermes    

20) CANÇÃO DE EXÍLIO FACILITADA  

lá ? ah! sabiá... papá... maná... sofá... sinhá...

cá ? bah!

21) 1º de janeiro

BRINDE  

ano novo: vida nova dívidas novas dúvidas novas ab ovo outra vez: do revés ou talvez (ou ao tanto faz como fez)

hora zero: soma do velho? idade do novo? o nada: um ovo salve(-se) o ano ano novo!    

22) O SEGUNDO IMPÉRIO    

Sejamos filosóficos, frugais, Eruditos, ordeiros, recatados Um casebre, se digno, vale mais Que palácio de alfaias atestado. Sejamos sobretudo liberais E, ao figurino inglês afeiçoados, Tolerantes, medíocres, legais, Por jeito d'alma e por razões de Estado.

Sejamos, na cozinha, escravocratas, http://www.letraselivros.com.br - Letras e Livros Powered by Mambo Generated: 9 November, 2010, 17:23

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Mas abolicionistas de salão: A dubiedade é-nos virtude grata.

Com ela se garante bom quinhão Dessa imortalidade compulsória Que é justiça de Deus na voz da História.    

23) A MARCHA DAS UTOPIAS    

não era esta a independência que eu sonhava não era esta a república que eu sonhava

não era este o socialismo que eu sonhava

não era este o apocalipse que eu sonhava  

24) ÁLIBI  

se os poetas não cantassem o que teriam os filósofos a explicar ?    

25) O ÚLTIMO HETERÔNIMO  

o poema é o autor do poeta    

26) TROVA DO POETA DE VANGUARDA                                 OU THE MEDIUM IS THE MASSAGE    

se me decifrarem recifro se me desrecifrarem rerrecifro se me desrrerrecifrarem então meus correrrerrecifradores serão    

27) ORAÇÃO DO PUBLICITÁRIO  

louvado seja o santo anunciante jamais usaremos seu nome em vão

28) DE SENECTUTE

 

já antecipa a língua http://www.letraselivros.com.br - Letras e Livros Powered by Mambo Generated: 9 November, 2010, 17:23

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afeita à alegoria

na carne da vida

o verme da agonia

 

já tritura o olho

no gral da apatia

o carvão da noite

a brasa do dia

 

já se junta um pé

a outro em simetria

de viagem além

da cronologia

 

já por metafísico

o medo anuncia

sua máquina de espantos

à alma vazia

 

29) A Casa  

Vendam logo esta casa, ela está cheia de fantasmas.

Na livraria, há um avô que faz cartões de boas-festas com corações de purpurina.

Na tipografia, um tio que imprime avisos fúnebres e programas de circo.

Na sala de visitas, um pai que lê romances policiais até o fim dos tempos.

 

No quarto, uma mãe que está sempre parindo a última filha.

Na sala de jantar, uma tia que lustra cuidadosamente o seu próprio caixão.

Na copa, uma prima que passa a ferro todas as mortalhas da família.

Na cozinha, uma avó que conta noite e dia histórias do outro mundo.

 

No quintal, um preto velho que morreu na Guerra do Paraguai rachando lenha.

 

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E no telhado um menino medroso que espia todos eles;

só que está vivo: trouxe-o até ali o pássaro dos sonhos.

Deixem o menino dormir, mas vendam a casa, vendam-na depressa.

Antes que ele acorde e se descubra também morto.

30) O aluno

São meus todos os versos já cantados:A flor, a rua, as músicas da infância,O líquido momento e os azuladosHorizontes perdidos na distância.Intacto me revejo nos mil ladosDe um só poema. Nas lâminas da estânciaCirculam as memórias e a substânciaDe palavras, de gestos isolados.São meus também, os líricos sapatosDe Rimbaud, e no fundo dos meus atosCanta a doçura triste de Bandeira.Drummond me empresta sempre o seu bigode,Com Neruda, meu pobre verso explodeE as borboletas dançam na algibeira.

(in O Aluno, 1947

31) Lápide para um poeta oficial

a morte enfim torceuo pescoço à eloqüência

(in Meia Palavra, cívicas, eróticas e metafísicas, 1973)

 

32) Neopaulística

pelo mesmo tietêonde outrora viajavambandeirantes heris

só viajam agoraos dejetos: bandeirade seus filhos fabris

(in Resíduos, 1980)

 

33) Epitáfio

poeta menormenormenormenormenormenormenormenormenormenor enorme

(in Calendário Perplexo, 1983)

 34) Descartes e o computador

Você pensa que pensaou sou eu quem pensaque você pensa?

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Você pensa o que eu pensoou eu é que pensoo que você pensa?

Bem, vamos deixar a questão em suspensoenquanto você pensa e já pensae eu peno se ainda penso.

35) Momento

Visto assim do altono cair da tardeo automóvel imóvelsob os galhos da árvoreparece estar rumoa algum outro lugaronde abolida a própriaidéia de viagemas coisas pudessemlivremente se entregarao gosto inatoda dissolução - e é noite.

36) A Verdadeira Festa (12 de junho - namorados)

mas pra que fogueira

rojão

quentão?

 

basta o fogo nas veias

e a escuridão

coração.

 

37) Curitiba

O inventor no estado

era um pinheiro inabalável

 

inabaláveis pinheiros igualmente

o secretário da segurança pública

o presidente da academia de letras

o dono do jornal

o bispo o arcebispo o magnífico reitor

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ah se naqueles tempos

a gente tivesse

(armando glauco dalton)

um bom machado!

38) CANÇÃO DO ADOLESCENTE

 

Se mais bem olhardes

notareis que as rugas

umas são postiças

outras literárias.

Notareis ainda

o que mais escondo:

a descontinuidade

do meu corpo híbrido.

Quando corto a rua

para me ocultar

as mulheres riem

(sempre tão agudas!)

do meu corpo.

Que força macabra

misturou pedaços

de criança e homem

para me criar?

Se quereis salvar-me

desta anatomia,

batizai-me depressa

com as inefáveis

as assustadoras

águas do mundo.

39) OUTRO RETRATO

 

O laço de fita

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que prende os cabelos

da moça do retrato

mais parece uma borboleta.

 

Um ventinho qualquer

e sai voando

rumo a outra vida

além do retrato.

 

Uma vida onde os maridos

nunca chegam tarde

com um gosto amargo

na boca.

40) À TINTA DE ESCREVER

 

Ao teu azul fidalgo mortifica

registrar a notícia, escrever

o bilhete, assinar a promissória

esses filhos do momento. Sonhas

 

mais duradouro o pergaminho

onde pudesses, arte longa em vida breve

inscrever, vitríolo o epigrama, lágrima

a elegia, bronze a epopéia.

 

Mas já que o duradouro de hoje nem

espera a tinta do jornal secar,

firma, azul, a tua promissória

ao minuto e adeus que agora é tudo História.

41) Poética

Não sei palavras dúbias. Meu sermãoChama ao lobo verdugo e ao cordeiro irmão.

Com duas mãos fraternas, cumplicioA ilha prometida à proa do navio.http://www.letraselivros.com.br - Letras e Livros Powered by Mambo Generated: 9 November, 2010, 17:23

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A posse é-me aventura sem sentido.56 compreendo o pão se dividido.

Não brinco de juiz, não me disfarço em réu.Aceito meu inferno, mas falo do meu céu

42) MUNDO NOVO

 

Como estás vendo, não valeu a pena tanto esforço:

a urgência na construção da Arca

o rigor na escolha dos sobreviventes

a monotonia da vida a bordo desde os primeiros dias

a carestia aceita com resmungos nos últimos dias

os olhos cansados de buscar um sol continuamente adiado.

 

E no entanto sabias de antemão que seria assim. Sabias que a pomba iria trazer não um ramo de oliva mas deespinheiro.

 

Sabias e não disseste nada a nós, teus tripulantes, que ora vês lavrando com as mesmas enxadas de Caim e Abel aterra mal enxuta do Dilúvio.

 

Aliás, se nos dissesses, nós não te acreditaríamos.

 

43)

A torneira seca(mas pior: a faltade sede)

A luz apagada(mas pior: o gostodo escuro)

A porta fechada(mas pior: a chavepor dentro).

O Poeta...

44)

"Poesiaé brincar com as palavrascomo se brincacom bola, papagaio, pião.

Só quehttp://www.letraselivros.com.br - Letras e Livros Powered by Mambo Generated: 9 November, 2010, 17:23

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bola, papagaio, piãode tanto brincarse gastam."

45) CANÇÃO DO EXÍLIO

Um dia segui viagemsem olhar sobre o meu ombro.

Não vi terras de passagemNão vi glórias nem escombros.

Guardei no fundo da malaum raminho de alecrim.

Apaguei a luz da salaque ainda brilhava por mim.

Fechei a porta da ruaa chave joguei ao mar.

Andei tanto nesta ruaque já não sei mais voltar.

( "Prosas seguidas de Odes Mínimas" (Companhia das Letras, 1992)

 46)

Pernas para que vos quero?  Se já não tenho por que dançar  Se já não pretendo ir a parte alguma.  Pernas? Basta uma. 

47)

 Chegou a hora de nos despedirmos um do outro, minha cara data vermibus perna esquerda.   48)

 Longe do corpo terás doravante de caminhar sozinha até o dia do Juízo não há pressa nem o que temer: haveremos de oportunamente te alcançar. http://www.letraselivros.com.br - Letras e Livros Powered by Mambo Generated: 9 November, 2010, 17:23

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49) DRUMMONDIANA  Quando as amantes e o amigo Te transformarem num trapo Faça um poema, Faça um poema, Joaquim! 

50) CANÇÃO SENSATA 

Dora, que importa O juiz que escreve Exemplos na areia,  Se livres seguimos O rastro dos faunos, A voz das sereias?  Dora, que importa a herança do avô Sobre a pedra, nua,  Se do ar colhemos Moedas de sol,  Guirlandas de lua?  De maior beleza É, pois, nada prever E à fina incerteza De amor ou viagem Abrir nossa porta. Dora, isso importa.  

51) DÚVIDA REVOLUCIONÁRIA 

ontem foi hoje? ou hoje é que é ontem? 

52) AOS ÓCULOS 

só fingem que põem o mundo ao alcance dos meus olhos míopes.  já não vejo as coisas como são: vejo-as como querem que eu as veja.  logo, são eles que vêem, não eu que, cônscio do logro, lhes sou grato  por anteciparem em mim o édipo curioso de suas próprias trevas. 

53) À BENGALA 

contigo me faço pastor do rebanho de meus próprios passos. 

54) FOLHA CORRIDA 

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Vão-se as amadas despetaladas      no turbilhão e o ex-adolescente conta ao espelho as primeiras rugas. 

55) MOMENTO 

Visto assim do alto no cair da tarde o automóvel imóvel sob os galhos da árvore parece estar rumo a algum outro lugar onde abolida a própria idéia de viagem as coisas pudessem livremente se entregar ao gosto inato da dissolução ? e é noite. 

56) OS FILHOS DE NIETZSCHE 

- Deus está morto, tudo é permitido! - Mas que chatice! 

O JOGO VERBAL EM JOSÉ PAULO PAESMARCA DE UM ESTILO PECULIARMaria Teresa Gonçalves Pereira (UERJ)

Para seduzir o leitor e envolvê-lo, um texto deve apresentar características que tornarão a leitura puro deleite. No quetange a José Paulo Paes, dentre outras marcas, o ludismo verbal responde pelo prazer maior do ato de ler.

O seu fazer literário manifesta-se na articulação criativa dos planos fonológico, morfológico, sintático e semântico. A palavraé manipulada com mestria, assumindo a forma pretendida pelo talento do autor, submetendo-se docilmente, gerando asvariações infinitas do jogo verbal que encanta e seduz.

Usa-se a linguagem coloquial concomitantemente à culta, uma não ofuscando a outra, ambas servindo de suporte aopoético. A gíria renova-se tanto quanto os clichês, revitalizados em construções e textos inovadores, destacando-se asparlendas, textos oriundos da cultura popular, sem preocupação com formalismos e regras. Dialogam entre si, numapolifonia de épocas e lugares revisitados pelo poeta.

Na tessitura do texto, as palavras prestam-se a comparações, a decodificações, a repetições, a inversões baseadas esustentadas por evocações latentes ou contextuais nas quais estão presentes, no mesmo ambiente, até palavrasrelacionais, como as preposições, assumindo papel fundamental para a dinâmica do texto.

O ludismo verbal multiplica-se em evidências. As palavras são, a um só tempo, instrumentos para o jogo e companhiasno ato de jogar. Transformam-se em peças que possibilitam essa ludicidade, conduzindo leitores de qualquer idade àparticipação na brincadeira. Assim, no texto, há solicitação à presença e à cumplicidade do leitor, um convite à obra, simplesna transmissão de mensagens e complexa em consubstanciar-se na variedade dos fatores inerentes ao circuitocomunicativo.

José Paulo Paes é um artífice que instrumentaliza a poesia em perfeita inter-relação de modalidades lingüísticas ao lado deeficiente quebra de barreiras formais. Dirige-se ao público infanto-juvenil, conjugando autor-leitor, na certeza de que aexpressividade e a plenitude da língua não se escondem em construções elaboradas e herméticas, realizando-se portodos e para todos, além do que se associam escolhas primorosas fornecidas pelo sistema lingüístico à eficácia no atocomunicativo.

Convite

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Poesia

é brincar com palavras

como se brinca

com bola, papagaio, pião.

Só que

bola, papagaio, pião

de tanto brincar se gastam.

As palavras não:

quanto mais se brinca

com elas

mais novas ficam.

Como água do rio

que é água sempre nova.

Como cada dia

que é sempre um novo dia.

Vamos brincar de poesia ?PPB

O autor resgata a sensibilidade lingüística oriunda da escolha vocabular, do material gramatical disponível, da ordem daspalavras nas frases e da sua musicalidade, consolidando o valor plural dos textos na percepção de mundo e na suatradução através da Língua Portuguesa.

As manipulações lingüísticas ocorrem segundo a elaboração da mensagem, dos conteúdos afetivos na construção dospoemas em que a poesia potencializa-se no manejo da língua, resultado de fatos complexos e variáveis, porémacessíveis, para quem se dispõe a trabalhá-los e desvendá-los, apostando sempre na literariedade do texto.

Dedicada pretensamente ao público infanto-juvenil, a obra é um acervo literário comparável a qualquer produçãodedicada ao adulto. O cotidiano lingüístico caminha junto aos recursos elaborados, o coloquial ao padrão culto,monitorados constantemente pelo autor. São rompidos limites impostos pelo tradicional e pelo erudito, em princípiosnorteados por valores artísticos rígidos e anacrônicos, superados por um trabalho eficiente, centrado na função poética,como o de José Paulo Paes.

No fragmento seguinte, encontra-se em sintonia perfeita o modelo formal, na regência do verbo pisar; a metáfora, nacaracterização da história - descalça; a mistura de imagens e sensações, em cabelos despenteados pelo vento; e o diálogoaberto com os leitores estabelecidos pelo pronome lhes e pela forma verbal esperem, integrando os vários planos dosistema lingüístico.

Vou lhes contar uma história

meio sem pé nem cabeça

e que por isso não usa

nem sapato nem chapéu.

É uma história descalça

que gosta de pisar grama

e de sentir os cabelos

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despenteados pelo vento.

Vou lhes contar uma história,

esperem só um momentoOMOD

Trata-se de um poeta que conhece o leitor, considerando-o, respeitando-o e apostando na sua inteligência.Trabalhando a Língua Portuguesa, não desvaloriza ou hierarquiza qualquer aspecto lingüístico, usando todo o potencialexpressivo das variedades dialetais, regionais e culturais, José Paulo Paes mostra que a qualidade não se prende auma só vertente literária ou a uma modalidade de língua.

Para os estudiosos da linguagem, o reconhecimento de trabalho tão especial na abordagem da Língua Portuguesa trazsatisfação, principalmente em se tratando de literatura dedicada ao público infanto-juvenil. Há extremo cuidado com aspalavras, o que nem sempre se observa em obras "literárias" para leitores dessa faixa etária, considerados poucoexigentes e incapazes de perceber certos refinamentos.

Respeita-se a língua, principal símbolo da cultura, não como objetivo em si mesma, mas como passaporte para interferirem todos os aspectos da vida do homem. (...) o poeta tem de descobrir o tom certo para interessar seus pequenosleitores. Um tom que seja ligeiro sem ser vulgar ou adocicado, que seja aliciante sem ser sentimental ou moralizador.(QEUPQ)

Em nenhum momento o escritor é leviano em suas intervenções, mesmo em se tratando da linguagem coloquial que, naobra, adquire nova expressão. A mestria do autor no trabalho com as palavras revela sensibilidade e intuição apuradas noaproveitamento de recursos que o sistema lingüístico oferece. As construções são primorosas, assim como orestabelecimento de sentidos perdidos, como a expressão cabeça cheia de minhocas, que se atualiza, ressignificando-se.

Pescaria

Um homem

que se preocupava demais

com coisas sem importância

acabou ficando com a cabeça cheia de minhocas.

Um amigo lhe deu então a idéia

de usar as minhocas

numa pescaria para se distrair das preocupações.

O homem se distraiu tanto

pescando

que sua cabeça ficou leve

como um balão

e foi subindo pelo ar

até sumir nas nuvens.

Onde será que foi parar?

Não sei

nem quero me preocupar com isso.

Vou mais é pescar.PPB

Paes mostra-se capaz de unir o denotativo ao conotativo, distanciando-se do rebuscado e hermético, respeitando aemoção do leitor, nunca se esquecendo do objetivo maior da língua - a comunicação - chegando a efeitos surpreendentesna utilização de fatos corriqueiros. As barreiras da especificidade e adequação da obra para determinado público sãohttp://www.letraselivros.com.br - Letras e Livros Powered by Mambo Generated: 9 November, 2010, 17:23

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desfeitas, independentemente de idade ou nível cultural, possibilitando identificação imediata com o texto.

José Paulo Paes faz parte da galeria de autores que são "verdadeiros artífices da palavra, trabalhando-aartesanalmente, garimpando, na infinita gama de possibilidades lingüísticas, aquelas que vão instaurar o toque mágicoque abrirá corações e mentes". (PEREIRA; 1999:143).

Para efeitos de exemplificação do ludismo verbal, selecionamos algumas poesias cujas ocorrências comentaremos. Avisualização do fenômeno torna-se mais eficiente do que qualquer teoria:

O L é uma letra louca.

Transforma a nota mi em 1000

e faz a uva andar de luva,

cabra descobrir o Brasil.ULPO

Trabalha com as potencialidades das palavras, quase sempre misturando os recursos quanto a significantes, sons econstituintes formais, e significados, a forma das palavras construída graficamente pelas letras. A ambigüidade tambémajuda a produção, criando ambiente favorável para que se processe no leitor as impressões sugeridas pelo texto.

Então, mi pode ser a nota musical ou o papel que representa dinheiro. A transformação de um significado em outro épossível através da letra L: mi ® 1000. Há mudanças inesperadas como uva estar usando luva e cabra descobrir o Brasil,proporcionadas pela loucura da letra L; o autor passa do nonsense para a realidade pela sugestão do fato histórico,mesclando elementos do fantástico, da realidade e de humor. As mudanças são relevantes, principalmente em cabradescobrir o Brasil. A distância entre o animal cabra e o nome do descobridor do Brasil Cabral é imensa, só transpondo-sepelo jogo mágico com as letras, no caso específico, o L. Aparentemente um recurso simples, provoca possibilidadesinfinitas, mas que prendem a atenção do leitor, aguçando sua percepção.

Em Raridade, observamos a elaboração da forma criada pelo autor com a finalidade de nomear o animal em extinçãoarara, originando um neologismo, acentuado pela fragmentação da palavra em seus constituintes fônicos. A palavraonomatopaica lembra a voz do animal. A sonoridade traduz o som e representa semanticamente a mensagem dopoema, remetendo ao título Raridade, que lembra o futuro desaparecimento da "arara", adequadamente chamada dearrara.

Raridade

A arara

é uma ave rara

pois o homem não para

de ir ao mato caçá-la

para a pôr na sala

em cima de um poleiro

onde ela fica o dia inteiro

fazendo escarcéu

porque já não pode

voar pelo céu.

E se o homem não pára

de caçar arara

hoje uma ave rara,

ou a arara some

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ou então muda seu nome

para arrara.OOB

Além do recurso neológico, salientamos também as possibilidades sonoras que as rimas caçá-la/na sala sugerem, assimcomo céu estar contido na palavra escarcéu.

No poema seguinte, verificamos a novidade na forma bem te via, aproveitando-se o sistema flexional dos verbos para aelaboração de novo vocábulo.

Correção

Como dizia

Aquele bem-te-vi que ficou míope:

"bem te via ... bem te via ..."EIA

O processo de flexão submete o vocábulo à flexão inusitada em se tratando de sua classe: verbo. Morfemas flexionaisnormalmente não são elementos usados para a criação de vocábulos como os derivacionais e lexicais.

Especificamente no poema, a forma verbal via aparece em oposição a vi. Fundem-se os recursos semânticos emorfológicos. O elemento vi do substantivo bem-te-vi transforma-se em verbo via na nova criação bem te via, opondotambém tempo passado concluso (pretérito perfeito) a inconcluso (pretérito imperfeito).

Vejamos agora um fragmento do poema Gato da China.

(...)

que quando espirrava

só fazia "chin!"

(...)

e quando tinha fome

miava "ming-au!"

(...)PPB

O traço inovador está presente na elaboração das formas chin e ming-au, ambas destacadas no corpo do texto por aspas.Animal chinês, o personagem não espirrava ou pedia alimento como os gatos comuns. Desconsiderando apersonificação, é diferente porque o som produzido por seus espirros é chin e não a onomatopéia tradicional pararepresentá-lo, atchin. O pedido por comida, o mingau, se transforma pelo desmembramento em partes: ming-au.

A especialidade da criação reside na nacionalidade chinesa do personagem propiciando ao autor referências às dinastiasantigas ming e ching. Além do jogo verbal, produzido pelos sons e pelas formas, há manifestação de intertextualidade.

O jogo de palavras instiga a inteligência, mostrando as infinitas possibilidades do vir-a-ser lingüístico. Ao interagir com oleitor, oferece-lhe um texto de excelência, levando-o à construção de diferentes sentidos, mais plenos do que aquelesproporcionados por uma linguagem correta, mas convencional.

Lendo-se e deliciando-se com sua produção poética, constatamos que suas preocupações eram completamenteinfundadas: "Os livros são escritos para ser lidos; quando não o são, frustram-se em sua finalidade precípua".

Para sempre vivo em suas obras, Paes revela sabedoria ao afirmar no encarte do seu último livro Vejam como eu seiescrever : "É pelo trampolim do riso, não pela lição de moral, que se chega ao coração das crianças. Até lá procuraria euchegar com as brincadeiras de palavras de meus poemas infantis".BIBLIOGRAFIA

ALVIM, Laila Maria Handam. Manifestações do ludismo verbal em José Paulo Paes. Dissertação de Mestrado em LínguaPortuguesa (Orientação: Maria Teresa Gonçalves Pereira). UERJ, 2000

PAES, José Paulo. É isso ali. 10ª ed. Rio de Janeiro. Salamandra. 1993.

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------. Olha o bicho. 9ª ed. São Paulo. Ática, 1997

------. O menino de Olho-d’Água. São Paulo: Ática, 1991

------. Poemas para brincar. 12ª ed. São Paulo: Ática, 1997

------. Uma letra puxa outra. São Paulo: Cia. das Letras, 1998

------. Quem, eu ? Um poeta como outro qualquer. São Paulo: Atual, 1996

------. Vejam como eu sei escrever. São Paulo: Ática, 2001

PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves. Língua portuguesa e sedução: do binômio possível nos textos de literatura infanto-juvenil; in Perspectiva, ano 17, nº 31. Florianópolis: UFSC, 1999.

( Artigo de autoria de Maria Teresa Gonçalves Pereira. Publicado em http://www.filologia.org.br/viicnlf/anais/caderno10-12.html)

Biografia e obras Intelectual brasileiro nascido em Taquaritinga, SP, um dos mais refinados intelectuais do País, tradutorrespeitado de Seféris e autor de quase 30 livros de poesia. Estudou química industrial em Curitiba e ligou-se à Geração de1945 e escreveu na revista Joaquim, editada no Paraná. Aproximou-se também da Poesia Concreta em sua faseinicial e publicou seu primeiro livro, O Aluno (1947). Esse livro de estréia foi profundamente marcado pela influência dasintaxe drummondiana. Numa carta enviada ao colega, Drummond o aconselhou a ler poetas de outras línguas para selivrar da dicção poética de seus próximos, conselho que ele aceitou, tornando-se o grande divulgador da obra de poetascomo Ungaretti. A partir daí começou a escrever com regularidade para diversos jornais e periódicos (1948). Autodidata,aprendeu  grego moderno por intermédio de um curso de Linguaphone para produzir uma antologia de poesia grega,que lhe custou três anos de trabalho, e lançar uma versão definitiva dos poemas de Kaváfis. Casado com a professorade dança Dora, a quem dedicou poemas em seu segundo livro, Cúmplices (1951), morou em Santo Amaro, numa casafreqüentada pelos maiores intelectuais de São Paulo. Toda sua obra poética foi reunida sob o título Um por todos (1986).Dirigiu uma oficina de tradução de poesia na UNICAMP (1987) e foi indicado para o Prêmio Multicultural Estadão (1998).Comemorou seus 50 anos de atividade poética lançando o livro Os Perigos da Poesia e Outros Ensaios, EditoraTopbooks (1997). Morreu  aos 72 anos, a 9 de outubro, vítima de edema pulmonar agudo, no Hospital BeneficênciaPortuguesa, e seu corpo foi levado para o Crematório da Vila Alpina. Colaborador habitual do jornal Estado de São Paulo,jamais deu sinais de desânimo, mesmo quando teve sua perna esquerda amputada (1985). O drama foi tratado semtristeza no poema Ode à Minha Perna Esquerda.

 

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