Josué de Castro A Fome

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/29/2019 Josu de Castro A Fome

    1/6

    A FomeJosu de Castro

    A fome , conforme tantas vezes tenho afirmado, a expresso biolgica demales sociolgicos. Est intimamente ligada com as distorses econmicas,a que dei, antes de ningum, a designao de "subdesenvolvimento".(10)

    A fome um fenmeno geograficamente universal, a cuja ao nefastanenhum continente escapa. Toda a terra dos homens foi, at hoje, a terra dafome. As investigaes cientficas, realizadas em todas as partes do mundo,constataram o fato inconcebvel de que dois teros da humanidade sofre, demaneira epidmica ou endmica, os efeitos destruidores da fome.(5)

    A fome no um produto da superpopulao: a fome j existia em massaantes do fenmeno da exploso demogrfica do aps-guerra. Apenas estafome que dizimava as populaes do Terceiro Mundo era escamoteada, eraabafada era escondida. No se falava do assunto que era vergonhoso: afome era tabu.(4)

    No mangue, tudo , foi ou ser caranguejo, inclusive o homem e a lama.(1)

    No foi na Sorbonne, nem em qualquer outra universidade sbia que traveiconhecimento com o fenmeno da fome. A fome se revelou

    espontaneamente aos meus olhos nos mangues do Capiberibe, nos bairrosmiserveis do Recife - Afogados, Pina, Santo Amaro, Ilha do Leite. Esta foia minha Sorbonne. A lama dos mangues de Recife, fervilhando decaranguejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejo,pensando e sentindo como caranguejo.(1)

    So seres anfibios - habitantes da terra e da gua, meio homens e meiobichos. Alimentados na infncia com caldo de caranguejo - este leite delama -, se faziam irmos de leite dos caranguejos.(1)

    Cedo me dei conta desse estranho mimetismo: os homens se assemelhandoem tudo aos caranguejos. Arrastando-se, acachapando-se como caranguejospara poderem sobreviver.(1)

    A impresso que eu tinha, era de que os habitantes dos mangues - homens ecaranguejos nascidos beira do rio - medida que iam crescendo, iam cadavez se atolando mais na lama.(1)

    Foi assim que senti formigar dentro de mim a terrvel descoberta da fome.

    (1)

  • 7/29/2019 Josu de Castro A Fome

    2/6

    Pensei a princpio que era um triste privilgio desta rea onde eu vivo - area dos mangues. Depois verifiquei que, no cenrio de fome do Nordeste,os mangues eram uma verdadeira terra da promisso, que atraa homensvindos de outras reas de mais fome ainda - das reas da seca e damonocultura da cana-de-acar, onde a indstria aucareira esmagava, coma mesma indiferena, a cana e o homem, reduzindo tudo a bagao.(1)

    V-los agir, falar, lutar, viver e morrer, era ver a prpria fome modelandocom suas despticas mos de ferro, os heris do maior drama dahumanidade - o drama da fome.(1)

    E foi assim que, pelas histria dos homens e pelo roteiro do rio, fiqueisabendo que a fome no era um produto exclusivo dos mangues. Que osmangues apenas atraram os homens famintos do Nordeste: os da zona da

    seca e os da zona da cana. Todos atrados por esta terra de promisso, vindose aninhar naquele ninho de lama, construdo pelos dois e onde brota omaravilhoso ciclo do caranguejo. E quando cresci e sa pelo mundo afora,vendo outras paisagens, me apercebi com nova surpresa que o que eupensava ser um fenmeno local, era um drama universal. Que a paisagemhumana dos mangues se reproduzia no mundo inteiro. Que aquelespersonagens da lama do Recife eram idnticos aos personagens de inmerasoutras reas do mundo assolados pela fome. Que aquela lama humana doRecife, que eu conhecera na infncia, continua sujando at hoje toda apaisagem de nosso planeta como negros borres de misria: as negras

    manchas demogrficas da geografia da fome.(1)

    O assunto deste livro bastante delicado e perigoso. A tal ponto delicado eperigoso que se constituiu num dos tabus de nossa civilizao. realmenteestranho, chocante o fato de que, num mundo como o nosso, caracterizadopor to excessiva capacidade de escrever-se e publicar-se, haja at hoje topouca coisa escrita acerca do fenmeno da fome, em suas diferentesmanifestaes.(2)

    Quais so os fatores ocultos desta verdadeira conspirao de silncio emtorno da fome? Trata-se de um silncio premeditado pela prpria alma dacultura: foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordempoltica e econmica de nossa chamada civilizao ocidental que tomaram afome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhvel de ser abordadopublicamente.(2)

    Ao lado dos preconceitos morais, os interesses econmicos das minoriasdominantes tambm trabalhavam para escamotear o fenmeno da fome dopanorama espiritual moderno. que ao imperialismo econmico e ao

    comrcio internacional a servio do mesmo interessava que a produo, adistribuio e o consumo dos produtos alimentares continuassem a se

  • 7/29/2019 Josu de Castro A Fome

    3/6

    processar indefinidamente como fenmenos exclusivamente econmicos -dirigidos e estimulados dentro de seus interesses econmicos - e no comofatos intimamente ligados aos interesses da sade pblica.(2)

    Um dos grandes obstculos ao planejamento de solues adequadas aoproblema da alimentao dos povos reside exatamente no poucoconhecimento que se tem do problema em conjunto, como um complexo demanifestaes simultaneamente biolgicas, econmicas e sociais.(2)

    Por outras palavras, procuraremos realizar uma sondagem de naturezaecolgica, dentro deste conceito to fecundo de Ecologia, ou seja, do estudodas aes e reaes dos seres vivos diante das influncias do meio.(2)

    Neste ensaio de natureza ecolgica tentaremos, pois, analisar os hbitos

    alimentares dos diferentes grupos humanos ligados a determinadas reasgeogrficas, procurando de um lado, descobrir as causas naturais e as causassociais que condicionaram o seu tipo de alimentao, com suas falhas edefeitos caractersticos, e de outro lado, procurando verificar at onde essesdefeitos influenciam a estrutura econmico-social dos diferentes gruposestudados.(2)

    O objetivo analisar o fenmeno da fome coletiva - da fome atingindoendmica ou epidemicamente as grandes massas humanas. No s a fometotal, a verdadeira inanio que os povos de lngua inglesa chamam de

    starvation, fenmeno, em geral, limitado a reas de extrema misria e acontingncias excepcionais, como o fenmeno muito mais freqente e maisgrave, em suas consequncias numricas, da fome parcial, da chamada fomeoculta, na qual pela falta permanente de determinados elementos nutritivos,em seus regimes habituais, grupos inteiros de populaes se deixam morrerlentamente de fome, apesar de comerem todos os dias. principalmente oestudo dessas coletivas fomes parciais, dessas fomes especficas, em suainfinita variedade, que constitui o objetivo nuclear do nosso trabalho.(2)

    que existem duas maneiras de morrer de fome: no comer nada e definharde maneira vertiginosa at o fim, ou comer de maneira inadequada e entrarem um regime de carncias ou deficincias especficas, capaz de provocarum estado que pode tambm conduzir morte. Mais grave ainda que a fomeaguda e total, devido s suas repercusses sociais e econmicas, ofenmeno da fome crnica ou parcial, que corri silenciosamente inmeraspopulaes do mundo.(5)

    A noo que se tem, correntemente, do que seja a fome , assim, uma noobem incompleta. E este deconhecimento, por parte das elites europias, da

    realidade social da fome no mundo e dos perigos que este fenmenorepresenta para a sua estabilidade social, constitui uma grave lacuna tanto

  • 7/29/2019 Josu de Castro A Fome

    4/6

    para a anlise dos acontecimentos polticos da atualidade, que se produzemem diversas regies da terra, como no que se refere atitude que os pasesda abundncia deveriam ter face aos pases subdesenvolvidos,permanentemente perseguidos pela penria e pela misria alimentar.(4)

    Nenhum fator mais negativo para a situao de abastecimento alimentardo pas do que a sua estrutura agrria feudal, com um regime inadequado depropriedade, com relaes de trabalho socialmente superadas e com a noutilizao da riqueza potencial dos solos.(2)

    Apresenta-se deste modo a Reforma Agrria como uma necessidadehistrica nesta hora de transformao social que atravessamos como umimperativo nacional.(2)

    que cerca de 60% das propriedades agrcolas no Brasil so constitudaspor glebas de reas superiores a 50 hectares de terra, das quais 20%possuem mais de 10.000 hectares. No recenseamento de 1950 ficouevidenciada a existncia no Brasil de algumas dezenas de propriedades queso verdadeiras capitanias feudais: proriedades com mais de 100.000hectares de extenso.(2)

    Do latifndio decorre tambm a existncia das grandes massas dos sem-terra, dos que trabalham na terra alheia, como assalariados ou como servosexplorados por esta engrenagem econmica de tipo feudal. Por sua vez, o

    minifndio significa a explorao antieconmica da terra, a misria crnicadas culturas de subsistncia que no do para matar a fome da famlia.(2)

    O tipo de reforma que julgamos imperativo da hora presente no umsimples expediente de desapropriao e redistribuio da terra para atenders aspiraes dos sem-terra. Processo simplista que no traz soluo real aosproblemas da economia agrria. Concebemos a reforma agrria como umprocesso de reviso das relaes jurdicas e econmicas, entre os que detma propriedade agrcola e os que trabalham nas atividades rurais.

    Precisamos enfrentar o tabu da reforma agrria - assunto proibido,escabroso, perigoso - com a mesma coragem com que enfrentamos o tabuda fome. Falaremos abertamente do assunto, esvaziando desta forma o seucontedo tabu, mostrando atravs de uma larga campanha esclarecedora quea reforma agrria no nenhum bicho-papo ou drago malfico que vengolir toda a riqueza dos proprietrios de terra, como pensam os mal-avisados, mas que, ao contrrio, ser extremamente benfica para todos osque participam socialmente da explorao agrcola...(2)

    evidente que no bastaria dispor de alimentos em quantidade suficiente esuficientemente diversificados para cobrir as necessidades alimentares da

  • 7/29/2019 Josu de Castro A Fome

    5/6

    populao mundial. O problema da fome no apenas um problema deproduo insuficiente de alimentos. preciso que a massa desta populaodisponha de poder de compra para adquirir estes alimentos.(4)

    A fome age no apenas sobre os corpos das vtimas da seca, consumindosua carne, corroendo seus rgos e abrindo feridas em sua pele, mastambm age sobre seu esprito, sobre sua estrutura mental, sobre suaconduta moral. Nenhuma calamidade pode desagregar a personalidadehumana to profundamente e num sentido to nocivo quanto a fome,quando atinge os limites da verdadeira inanio. Excitados pela imperiosanecessidade de se alimentar, os instintos primrios so despertados e ohomem, como qualquer outro animal faminto, demonstra uma condutamental que pode parecer das mais desconcertantes.(5)

    Querer justificar a fome do mundo como um fenmeno natural e inevitvelno passa de uma tcnica de mistificao para ocultar as suas verdadeirascausas que foram, no passado, o tipo de explorao colonial imposto maioria dos povos do mundo, e , no presente, o neocolonialismo econmicoa que esto submetidos os pases de economia primria, dependentes,subdesenvolvidos, que so tambm pases de fome.(4)

    As massas humanas se deram conta de que a fome e a misria no soindispensveis ao equilbrio do mundo, e que hoje, graas aos progressos dacincia e da tcnica, surgiu pela primeira vez na histria um tipo de

    sociedade na qual a misria pode ser suprimida e com ela a fome. (12)

    1 - A DESCOBERTA DA FOMEPrefcio ao livro Homens e Caranguejos, Lisboa 1966.

    2 - GEOGRAFIA DA FOMEPrefcio da ltima edio, includo no livro Fome, Um Tema Proibido.

    3 - GEOPOL TICA DA FOMERio de Janeiro: Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1951

    4 - A EXPLOSO DEMOGR FICA E A FOME NO MUNDOTrabalho publicado na revista Civillit delle Machine, de julho/agosto de1968, Roma. Includo no livro Fome, Um Tema Proibido.

    5 - FOME COMO FORA SOCIAL: FOME E PAZ

    Trabalho publicado na revista Pourquoi, nmero especial, maro de 1967,Paris. Includo no livro Fome, Um Tema Proibido.

  • 7/29/2019 Josu de Castro A Fome

    6/6

    6 - A CI NCIA A SERVIO DO DESENVOLVIMENTO ECON MICOPublicado na revista Tiers Monde, vol. V n 20, outubro-dezembro de 1964,Paris. Includo no livro Fome, Um Tema Proibido.

    7 - DE BANDUNG A NOVA DELHI: A GRANDE CRISE DOTERCEIRO MUNDOPublicado na Revue Gnrale Belge, n 4, abril de 1968,Bruxelas.Traduzido do francs por Lusa Ducla Soares

    8 - ESTRAT GIA DO DESENVOLVIMENTOTrabalho apresentado na Conferncia Environment and Society inTransition e publicado no Annals of the New York Academy of Sciences,sob o patrocnio da American Geographical Society e da American Division

    os the World Academy of Art and Science, Nova Iork, 1970. Includo nolivro Fome, Um Tema Proibido.

    9 - SUBDESENVOLVIMENTO: CAUSA PRIMEIRA DE POLUIOTrabalho apresentado no "Colquio sobre o Meio", em junho de 1972, emEstocolmo. Publicado na revista O Correio da UNESCO, ano I, n 3, marode 1973. Includo no livro Fome, Um Tema Proibido.

    10- ENTREVISTA A GONALVES DE ARA JO (1969)

    11- ENTREVISTA A FERNANDO DIL (1970)

    12- ENTREVISTA A HENRI CHANTAL(Servio Especial de Imprensa Latina)

    13- ENTREVISTA TERRE ENTI RENumero Double, sept. 1972 (Entrevista feita por Jean Prdine e RogerWellhoff)

    http://www.josuedecastro.com.br