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1 UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE ANGÉLICA LUCIÁ CARLINI JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL: Causas e Possibilidades de Solução SÃO PAULO 2011

JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL: Causas e ... · 2 C282j Carlini, Angelica Luciá Judicialização da saúde no Brasil: causas e possibilidades de solução / Angelica

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

ANGÉLICA LUCIÁ CARLINI

JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL:

Causas e Possibilidades de Solução

SÃO PAULO

2011

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C282j Carlini, Angelica Luciá

Judicialização da saúde no Brasil: causas e possibilidades de solução / Angelica Luciá

Carlini. São Paulo, 2012.

202 f. ; 30 cm

Referências: p. 188-195

Tese (Doutorado em Direito Político e Econômico)- Universidade Presbiteriana

Mackenzie, São Paulo, 2012.

1.Direito. 2. Saúde Pública. 3. Judicialização. 4. Neoconstitucionalismo. 5. Saúde.

6. Constituição Federal. I. Título.

CDD 341.256

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ANGÉLICA LUCIÁ CARLINI

JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL:

Causas e Possibilidades de Solução

Tese apresentada à

Universidade Presbiteriana

Mackenzie, como requisito

parcial para a obtenção do

título de Doutora em Direito

Político e Econômico.

Orientador – Prof. Dr. José Francisco Siqueira Neto

SÃO PAULO

2011

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ANGÉLICA LUCIÁ CARLINI

A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL:

Causas e Possibilidades de Solução

Tese apresentada ao Curso de Pós-

Graduação em Direito da Universidade

Presbiteriana Mackenzie, como requisito

parcial para a obtenção de título de

Doutora em Direito Político e Econômico.

Aprovada em BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. José Francisco de Siqueira Neto Prof. Dr. José Renato Nalini ______________________________________________________Prof. Dr. José Marcos Lunardelli Prof. Dr. Gianpaolo Poggio Smanio ______________________________________________________Prof. Dr. José Carlos Francisco

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DEDICATÓRIA

Este trabalho é dedicado a todos aqueles que sonham com um Brasil

justo, que proteja de fato seus cidadãos em especial os mais carentes.

É dedicado muito especialmente à Paulinha, que partilha os sonhos e não

se cansa de incentivar para que eu os realize. Ao mesmo tempo não me

deixa parar de sonhar e isso faz a minha vida ter sentido. Obrigada

sempre!

Para a sábia Dona Laura, minha mãe, e para toda a coalisão Pioto-Carlini

que sempre torce por mim, em especial os sobrinhos lindos que meus

queridos irmãos me deram. E a Sandra, que faz toda a diferença!

Para os colegas de docência; para os amigos de Monte Verde; para o

pessoal da CQA da Unip (Roni, Chris, Betisa, Diana, muito obrigada);

para a Dra. Marília Ancona-Lopez (obrigada de coração); para os amigos

da Facamp; para o Wilson e a Jacque, que sabem o quanto é difícil e

apoiram muito; para os da Associação Internacional de Direito de Seguro;

para as Dras. Gloria Faria e Solange Beatriz, que partilharam as primeiras

ideias desta pesquisa; para o Luiz Celso que me incentiva tanto; para o

Mario Viola com quem estou dividindo um novo sonho; para o Otávio e a

Luciana Clark que me ensinaram o que é Medicina Baseada em

Evidências; para o Tonico Siqueira, a Valéria Pachá e o Henrique Saraiva,

da Mútua dos Magistrados do Rio de Janeiro, que tantas oportunidades

me deram para pensar sobre saúde e direito, enfim, para os amigos e

colegas que comigo partilham a vida. Muito obrigada por estarem ao meu

lado!

Para o meu pai que adorava medicamentos e médicos e que felizmente,

não viveu para ver como esse setor ficou complicado.

Para todos os colegas advogados da Carlini Sociedade de Advogados.

E para os amigos de toda uma vida! Verinha e Sandra, continuaremos

juntas por toda a eternidade!

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AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. José Francisco Siqueira Neto, pela orientação segura e

determinada que fez de um amontoado de ideias uma tese de doutorado.

Aos professores do Programa de Mestrado e Doutorado em Direito

Político e Econômico, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, pela

dedicação e entusiasmo com que conduziram seu trabalho.

Aos colegas da primeira turma de doutorandos em direito do Mackenzie,

Wilson, Ricardo, Renato e Ivo, foi um enorme prazer dividir as aulas com

vocês.

Aos coordenadores e professores dos cursos de Direito em que eu

trabalho, Universidade Paulista e Faculdade Campinas, em especial aos

meus alunos que me ensinam tanto.

Aos professores que aceitaram o convite para compor as bancas de

qualificação e de defesa, pela contribuição decisiva para a qualidade do

trabalho.

Ao Renato Santiago, da secretaria do Programa, um amigo querido, um

pai maravilhoso e uma fonte de serenidade em meio ao caos do final da

tese. Muito obrigada, meu amigo!

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RESUMO

A pesquisa identifica elementos que dão origem ao surgimento da

judicialização da saúde pública no Brasil, tratado no trabalho como um

fenômeno social que merece investigação científica de suas causas e

consequências. O trabalho identifica na constitucionalização do direito o

ponto de partida da construção da judicialização da saúde pública, assim

como na construção histórica do conceito de saúde que se mostra

bastante dependente do olhar do médico que é quem determina, em

última análise, se um estado pode ser considerado de saúde ou de

doença em uma determinada pessoa. A pesquisa analisa julgados que

aplicam a Constituição Federal como elemento fundamental para a

concessão de acesso à saúde e estuda mecanismos não judiciais de

solução da judicialização.

PALAVRAS-CHAVE – Direito, saúde pública, judicialização,

neoconstitucionalismo, saúde, Constituição Federal.

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ABSTRACT

This search identifies elements thtat give rise to tlhe appearance of the

judicialization of public health in Brazil, treated at this work as a social

phenomenon that deserves scientific investigation of its causes and

consequences. The work focuses on the constitucionalization of the right

the starting point for the construction of the judicialization of public health,

as well as the historical construction of the concept of health which proves

to be quit dependent on the gaze of the physician who determines,

ultimately, if a state can be considered health of disease in a particular

person. The research analyzes applying the Constitucion as a

fundamental element for the ensure acces to health studies and non-

judicial mechanisms for resolution of the judicialization.

KEYWORDS – law, public health, judicialization, neoconstitucionalism,

health, the Federal Constitucion.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..............................................................................................09

CAPÍTULO I – CONCEITO E MARCOS REGULATÓRIOS DA SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL ..............................................................................................................14 1. A construção política e jurídica do conceito médico de saúde.......................14

2. A saúde pública no Brasil........................................................... ..................42

2.1. A Constituição de 1988 – expectativas e propostas na área da saúde pública..42

2.2. O direito à saúde na Constituição Federal de 1988..............................................47

2.3. O direito à saúde como seguridade social............................................................51

2.4. A lei 8.080/90 e o Sistema Único de Saúde.........................................................55

CAPÍTULO II – A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEA NO BRASIL E A

CONSTRUÇÃO DA EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS .................................62

1. Apontamentos sobre direitos fundamentais.....................................................62

2. Dimensões da dignidade da pessoa humana..................................................65

3. Direito ao mínimo existencial e reserva do possível........................................78

CAPÍTULO III – ESTUDO DA FUNDAMENTAÇÃO DE DECISÕES JUDICIAIS NA ÁREA DE

SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL ....................................................................................85

1. Análise por amostragem de argumentos que fundamentam algumas decisões judiciais sobre saúde no Brasil........................................................................107

1.1. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais...................................................108

1.2. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.................................................111

1.3. Tribunal de Justiça do Estado da Bahia...............................................................115

1.4. Tribunal de Justiça do Estado do Pernambuco....................................................119

1.5. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul...........................................123

1.6. Supremo Tribunal Federal ...................................................................................129

CAPÍTULO IV – SOLUÇÕES POSSÍVEIS PARA DIMINUIR A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

........................................................................................................................138

CONCLUSÃO ....................................................................................................179

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................188

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INTRODUÇÃO

A judicialização da saúde acontece no Brasil no âmbito da saúde pública e da

saúde privada, e se desenvolveu com especial vigor a partir da década de 90.

É um fenômeno social e jurídico no sentido de ser um fato de interesse

científico, que deve ser estudado de forma sistemática e rigorosa pelo Direito.

Consiste em buscar a efetividade do atendimento às necessidades de saúde

por meio de decisões judiciais que determinam que uma instituição pública ou

privada deve atender àquilo que o sujeito de direito, autor da ação, entende

como um direito subjetivo. Na quase totalidade dos casos pesquisados, lidos e

analisados para esta pesquisa, obtidos junto aos tribunais estaduais e

superiores brasileiros, o pedido apresentado pela parte está ancorado em

relatório médico que sustenta ser aquele o procedimento (tratamento,

medicamento, órtese, prótese, transplante, entre outros pesquisados)

recomendado para o caso concreto.

A judicialização da saúde ocorre nos vários Estados brasileiros tanto como

meio de acesso a tratamentos médico-hospitalares sofisticados como também

para tratamentos mais comuns não disponíveis em uma determinada unidade

de saúde pública.

É utilizada ainda para dispensação de medicamentos comuns e de alto custo,

medicamentos não consignados na lista da Agência Nacional de Vigilância

Sanitária, medicamentos experimentais, órteses, próteses, produtos

específicos para determinadas doenças (stents coronarianos, parafusos e

placas para tratamentos de ortopédicos, cânulas, tipos de linha ou de agulhas,

ou ainda ferramentas especiais solicitadas por médicos), tratamentos no

exterior, obtenção de vagas em unidades de terapias intensivas ou em leitos de

unidades específicas (cardiologia, pediatria, queimados, entre outros),

fornecimento de alimentos especiais, de fraldas descartáveis para crianças e

idosos, para tratamento de emagrecimento inclusive cirurgias bariátricas

(redução de estômago ou colocação de mecanismos de indução à saciedade),

e até para pedido de fornecimento de cuidadores, ou seja, pessoas qualificadas

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em saúde que possam ficar com os pacientes que estão em tratamento

prolongado mas já não podem mais ficar em hospitais.

Para alguns juristas a judicialização é positiva e tem o condão de garantir a

efetividade dos direitos sociais previstos na Constituição Federal. Para outra

parcela dos estudiosos isso causa preocupação e instiga reflexões sobre as

consequências que essa prática provoca, não apenas no universo do

Judiciário, mas também na sociedade civil brasileira.

Este trabalho pretende analisar a judicialização de forma crítica e, nessa

medida, propor alternativas que viabilizem a diminuição dessa prática por partir

do pressuposto de que a judicialização do acesso à saúde pública não garante

efetividade dos direitos sociais para todos. Ao contrário, garante o acesso

apenas àqueles que têm a compreensão de que é possível ir ao Judiciário para

requerer o direito e que concretizam os meios para fazê-lo.

Nenhuma alternativa apresentada por esta pesquisa poderá garantir a extinção

da judicialização da saúde pública, em especial porque as ciências médicas

vivem um momento de especial desenvolvimento decorrente do avanço

tecnológico que permite o aumento de pesquisas e de possibilidades de

criação de novos recursos terapêuticos. Mas é possível pesquisar e propor a

implantação de práticas não judiciais capazes de mitigar a judicialização da

saúde pública.

Este trabalho tem por hipótese que mitigar o número de ações judiciais que

pleiteiam acesso à saúde pública é importante para garantir que os recursos

públicos para a saúde sejam utilizados de forma planejada, desde a atenção

primária até a atenção aos casos mais sofisticados e específicos.

Aa utilização do Judiciário como instrumento de acesso à saúde pública

provoca a instabilidade do planejamento público, porque o planejamento

orçamentário é descumprido em razão da necessidade de atender de imediato

as ordens judiciais que determinam a utilização dos recursos para outras

necessidades que não aquelas previamente planejadas.

Embora a pesquisa não mensure o impacto das decisões judiciais sobre os

orçamentos públicos municipais, estaduais e federais para a área da saúde,

não é possível ignorar que sucessivas decisões judiciais determinando a

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concessão de tratamentos ou medicamentos interferem no planejamento

econômico da área, inclusive para diminuir a efetividade de políticas públicas

planejadas. Esse risco é concreto e foi um motivador desta investigação.

O objeto trabalho é analisar o protagonismo do Poder Judiciário na efetividade

do direito social à saúde como caminho preferencial buscado pela sociedade

brasileira no atual momento histórico.

A efetividade dos direitos sociais é tarefa dos três poderes da República, mas

no Brasil contemporâneo tem sido realizada de forma destacada pelo Poder

Judiciário -- pelo menos no âmbito da saúde.

É preciso responder à indagação: afinal, a busca do Poder Judiciário é sinal de

fortalecimento das instituições democráticas ou, ao contrário, é sintoma de

imaturidade das instituições políticas, que deveriam promover o debate coletivo

da efetividade da saúde pública?

Nesta pesquisa a judicialização da saúde é analisada em múltiplos aspectos,

mas essencialmente o que se pretende responder é: ela pode ser considerada

um elemento para a despolitização da sociedade civil brasileira

contemporânea? Ou, em outras palavras: pode a judicialização da saúde

pública ser um instrumento de individualização de direitos em área social lócus

em que as soluções deveriam ser pensadas no âmbito coletivo?

O objeto de pesquisa foi aqui delimitado para atingir dois objetivos:

compreender o fenômeno da judicialização do acesso à saúde pública no

Brasil, e pesquisar formas de mitigar o protagonismo do Poder Judiciário na

garantia da efetividade do direito fundamental à saúde.

Para atingir esses objetivos o método utilizado foi o de análise qualitativa, a

qual tem sido utilizada com frequência nas pesquisas das áreas de Ciências

Humanas e Ciências Sociais Aplicadas, exatamente porque elas pretendem

compreender o comportamento do homem no contexto histórico, econômico,

social e cultural em que ele está inserido.

ANTONIO CHIZZOTI1 nos ensina sobre os pesquisadores que adotam uma

abordagem qualitativa:

1 CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais. S.Paulo: Cortez, 5ª edição, 2001, p. 79.

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Afirmam, em oposição aos experimentalistas, que as ciências humanas têm sua

especificidade – o estudo do comportamento humano e social – que faz delas

ciências específicas, com metodologia própria. Consideram, ainda, que a adoção

de modelos estritamente experimentais conduz a generalizações errôneas em

ciências humanas, baseiam-se em um simplismo conceitual que não apreende um

campo específico e dissimulam, sob pretexto de um modelo único, o controle

ideológico das pesquisas.

ORIDES MEZZAROBA e CLAUDIA MONTEIRO2, por sua vez, fazem lembrar:

A pesquisa qualitativa também pode possuir um conteúdo altamente descritivo e

pode até lançar mão de dados quantitativos incorporados em suas análises, mas o

que vai preponderar sempre é o exame rigoroso da natureza, do alcance e das

interpretações possíveis para o fenômeno estudado e (re)interpretado de acordo

com as hipóteses estrategicamente estabelecidas pelo pesquisador.

A partir da escolha por uma pesquisa qualitativa, o instrumental teórico

bibliográfico foi o utilizado preferencialmente, embora também tenhamos

lançado mão dos estudos julgados de tribunais brasileiros.

As hipóteses construídas são: a) a judicialização da saúde pública é

decorrência de uma sociedade prioritariamente urbana que se organiza em

torno da produção para o consumo e faz desse consumo o elemento essencial

de suas práticas econômicas e sociais, acrescentando a saúde como um

elemento de consumo; b) a judicialização da saúde é decorrente da falta de um

debate consistente da sociedade civil no equacionamento da utilização das

verbas públicas para essa área; e, c) a ausência de um debate coletivo

consistente que aponte soluções para a falta de qualidade da saúde pública no

Brasil é decorrente da despolitização da sociedade que, cada vez confia menos

nos Poderes Legislativo e Executivo e, em contrapartida, confia mais no Poder

Judiciário que, em que pese a ausência de celeridade, ainda é mais confiável

que os demais.

A pesquisa qualitativa teórica realizada nesta tese pretende contribuir para a

construção de meios que minimizem o acesso à Justiça como instrumento

prioritário da efetividade do direito fundamental à saúde pública no Brasil. Por

conseguinte, a pesquisa vai além da análise da judicialização da saúde para

2 MEZZAROBA, Orides. MONTEIRO, Cláudia Servilha. Manual de Metodologia da Pesquisa no Direito. 2ª edição. S.Paulo: Saraiva, 2004, p.110.

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discutir mecanismos que possam produzir efeitos concretos na diminuição do

fato. Nesse aspecto está o traço de originalidade que o trabalho pretende

apresentar.

A pesquisa foi organizada em quatro capítulos.

No primeiro, o conceito de saúde é apresentado como uma construção

histórica e não apenas como um dado jurídico. O objetivo é pesquisar suas

origens e a forma como ele foi corporativamente trabalhado. Para isso a

pesquisa estuda aspectos da história da Medicina e da profissão médica.

O Capítulo II expõe o fenômeno do neoconstitucionalismo e do neopositivismo

que ocorreram no País no final da década de 90 e no início do século XXI,

trazendo como consequência novas propostas para a hermenêutica e a

aplicação do Direito constitucional. Discute a definição de direitos

fundamentais, as dimensões do conceito de dignidade da pessoa humana

tratados na Constituição Federal de 1988 no Brasil e, a nova dimensão que

passou a ser dada às normas constitucionais programáticas e sua

aplicabilidade. Apresenta, ainda, os conceitos de mínimo existencial e reserva

do possível como contraponto ao ideário de ampla realização de todos os

direitos fundamentais. Os conceitos construídos historicamente para reserva do

possível e mínimo existencial, a aproximação do Direito e da Economia para

fundamentação desses conceitos e, principalmente, a aplicação da reserva do

possível como suposta motivação para a não efetividade dos direitos

constitucionais fundamentais são outras abordagens do capítulo.

O Capítulo III analisa algumas decisões do Supremo Tribunal Federal e de

Tribunais de Justiça estaduais sobre a efetividade do direito à saúde pública e

a argumentação utilizada. O objetivo é analisar os fundamentos das decisões e

como as dimensões do princípio da dignidade da pessoa humana são tratadas

em juízo.

O Capítulo IV estuda alternativas para minimizar a via do Judiciário como

caminho preponderante da efetividade do direito à saúde: a criação de câmaras

de saúde para auxiliar os magistrados de Primeiro e Segundo Grau nas

decisões (em especial nos casos em que o principal argumento é a urgência ou

a emergência; a consulta a auditores de saúde pública em processos judiciais e

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a viabilidade de formação de instâncias para a tentativa de mediação entre as

partes antes da propositura da demanda judicial. O objetivo é ponderar sobre a

possibilidade de redução dos conflitos judiciais, subtraindo do Direito e,

consequentemente, do Poder Judiciário a exclusividade da responsabilidade

pela efetividade do direito social constitucional de acesso à saúde pública.

CAPÍTULO I

O CONCEITO E OS MARCOS REGULATÓRIOS DA SAÚDE NO BRASIL .

1. A construção política e jurídica do conceito mé dico de saúde

Saúde é um conceito histórico, político e social construído principalmente por

médicos. O aspecto jurídico desse conceito expresso especialmente na

Constituição Federal de 1988 é resultado dessa construção histórica, política e

social, bem como da trajetória da Medicina como profissão legalmente

instituída para definir o que é saúde, o que é doença e o que é tratamento

prescrito para uma doença.

No mundo contemporâneo os médicos quase sempre são os únicos

autorizados a fixar conceitos de saúde, de doença e, em decorrência disso, os

únicos autorizados a determinar o tratamento adequado para as pessoas.

Quem pretender realizar tratamento de saúde por outros meios que não pela

consulta a um médico estará sujeito, no Brasil, a ser fiscalizado pelo Estado,

que proíbe a prática de atos médicos por aqueles que não estejam legalmente

habilitados a exercê-los.

A prática médica é regulada e fiscalizada pelo Estado, e isso afasta, desde

logo, a possibilidade de outras práticas alternativas à Medicina.

Não há proibição para práticas religiosas de cura que, por sinal, em um país de

forte sincretismo religioso são até bastante comuns. Mas aquele que pretender

se estabelecer como curandeiro e prometer a cura de doenças por meio de

suas práticas estará sujeito à fiscalização do Estado e será coibido de

continuar a praticar seus atos de cura.

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Fatores históricos, políticos e sociais justificam que a opinião médica seja tida

como a única abalizada para detectar se o indivíduo está ou não saudável e, se

não está que procedimentos deverão ser adotados.

Esse poder de dizer a saúde e a doença bem como de determinar o tratamento

a ser seguido foi obtido ao longo de muitos anos e com grande protagonismo

dos médicos para conseguir a exclusividade e, concomitantemente, afastar os

possíveis concorrentes na tarefa de estabelecer o que é doença e o que é cura.

JOFFRE M. DE REZENDE3 relata:

Somente no século V a.C, com o surgimento da medicina hipocrática na Grécia,

foi a mesma separada da religião, das crenças irracionais e do apelo ao

sobrenatural. Desde então, por caminhos tortuosos, com avanços e recuos,

chegou à Idade Média, quando tiveram início os cursos médicos oficiais. Até

então, o ensino da arte médica era informal e se fazia de mestre e aluno através

de gerações, como consta do juramento de Hipócrates.

Conforme ressaltou Bullough, em seu livro The Development of Medicine as a

Profession, a medicina só foi institucionalizada a partir da Idade Média, após a

fundação da escola de Salerno e das primeiras universidades europeias. Dentre

elas teve atuação destacada a de Pádua, onde se formaram e ensinaram grandes

personagens que revolucionaram a medicina, como Vesalius, Morgagni, Harvey e

outros.

No Brasil, entre 1808 e 1828, eram expedidas licenças e cartas para aqueles

que pretendessem exercer alguma atividade relacionada com a prática da cura.

A regulamentação era semelhante à praticada em Portugal e as atividades

eram fiscalizadas pela Fisicatura, órgão que existiu até 1828.

TANIA SALGADO PIMENTA4 afirma sobre a expedição de cartas e licenças para as

atividades de sangradores, parteiras, curandeiros, curadores de moléstias,

entre outros:

Não obstante a hierarquização, a oficialização das práticas de cura populares

significava o reconhecimento desse saber como legítimo, o que permitia a inclusão

dos terapeutas populares entre as pessoas autorizadas a exercer alguma

atividade de cura. Isso se dava no contexto de uma sociedade na qual as relações

3 REZENDE. Joffre M. “O Ato Médico através da História”. In: À Sombra do Plátano. S.Paulo: UNIFESP, 2009. P. 01-06. 4 PIMENTA. Tania Salgado. “Terapeutas Populares e Instituições Médicas na Primeira Metade do Século XIX”. CHAULHOB, S. et al. Artes e Ofícios de Curar no Brasil. Campinas: UNICAMP, 2003, p. 307-330.

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eram traçadas por meio de redes de dependências pessoais que se construíam a

partir de favores, lealdades, obediências e proteção, materializadas muitas vezes

em nomeações para cargos públicos ou em privilégios em processos burocráticos.

As práticas de curas dos sangradores e curadores estavam relacionadas às visões

cosmológicas dessas pessoas – na maior parte africanos e descendentes de

africanos-, em que as doenças eram associadas a elementos espirituais. O vasto

conhecimento que tinham sobre plantas medicinais, reconhecido pelos médicos

acadêmicos, também estava relacionado às suas crenças religiosas. Ainda que os

curadores tivessem influências de outras tradições culturais, como as indígenas ou

as relativas a setores populares europeus, também nesses casos existia a crença

de que as doenças poderiam ser causadas por problemas espirituais.

Os médicos diplomados, por sua vez, estavam cada vez mais afastados dessas

concepções e mais envolvidos na luta pelo monopólio da Medicina. Essa distância

acentuada entre as concepções médicas populares e a acadêmica evidencia-se

com a grande popularidade, nas décadas de 1840 e 1850, da homeopatia, que,

como as primeiras, também se baseava numa visão espiritualizada da doença e

da saúde.

Reforçando essa constatação histórica, manifesta-se REGINA XAVIER5:

Os médicos, por sua vez, pareciam buscar causas materiais para as doenças,

temendo os miasmas, a insalubridade, a falta de higiene, percebendo-os como

possíveis causas dos males da população. Apesar de suas ações serem muitas

vezes ambíguas, em nenhum momento de suas declarações, pelo menos as que

encontramos, manifestam qualquer preocupação em reelaborar essa relação entre

o sobrenatural e os males do corpo. No intuito de se diferenciarem e de

construírem para si um lugar privilegiado de ação, faziam-no em nome de

conhecimentos científicos que tendiam a distanciá-los do resto da população,

muitas vezes mais crédula. Não podiam, portanto, concorrer com os curandeiros,

que tinham outras formas de entender as doenças, relacionando sua religiosidade

com seus tratamentos e garantindo, por conseguinte, a conquista de espaço social

e político.

Os estudos sobre a Medicina e seu papel político e social pertencem ao que

hoje chamamos de sociologia do conhecimento médico, que possui estudos 5 XAVIER, Regina. Dos Males e Suas Curas. In: CHALHOUB. S. et al. Artes e Ofícios de Curar. Campinas: Unicamp. 2003, p. 146-147

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que têm contribuído para a compreensão do papel do médico nas sociedades

contemporâneas, principalmente em relação ao poder que exercem para a

caracterização do que é doença e do que é saúde e, em consequência, para a

definição da aplicação dos recursos públicos e privados na prevenção e no

tratamento de moléstias, realização de exames, utilização de medicamentos e

outras terapias de cura.

Esses estudos são essenciais para a compreensão dos problemas objeto desta

pesquisa, porque a busca pela proteção jurisdicional para a obtenção de

acesso a tratamentos de saúde que tem ocorrido de forma sistemática na

sociedade brasileira contemporânea está sempre fundamentada no parecer do

médico que assiste o sujeito de direitos que vai ao Judiciário.

E contrariar o parecer técnico do médico é inviável para os magistrados, seja

pela complexidade do conhecimento, seja pela exclusividade que se atribui ao

médico para tratar dos assuntos referentes à saúde e sua manutenção. Não

raro a opinião de outro médico sobre o mesmo caso é questionada,

principalmente se ele não possuir os mesmos predicados daquele que

formalizou o diagnóstico e prescreveu o tratamento.

FREIDSON6 esclarece que:

A Medicina, entretanto, não é simplesmente a principal profissão de nosso tempo.

Entre as profissões estabelecidas nas universidades europeias da Idade Média, é

a única que tem desenvolvido uma conexão sistemática com a ciência e a

tecnologia. Diferindo do Direito e do Sacerdócio, que não estabeleceram nenhuma

importante conexão com a ciência moderna e a tecnologia, a Medicina se

desenvolveu no interior de uma complexa divisão de trabalho, organizando um

crescente número de prestadores de serviços e técnicos em torno da tarefa central

do diagnóstico e do tratamento de doenças da humanidade. Além disso,

ultrapassou outras profissões em preeminência. Isso aconteceu porque, nas

sociedades pós-industriais, a produção de bens e de outras formas reais de

propriedade passaram a ser um problema menor que o bem-estar dos cidadãos. O

bem-estar passou a ser definido em termos exclusivamente seculares e não mais

religiosos; e a noção de doença se expandiu, muito mais do que em anos

anteriores, incluindo muitas outras facetas do bem-estar humano; a Medicina tirou

o Direito e o Sacerdócio de suas posições de dominância. [...]

6 FREIDSON, Eliot. Profissão Médica – Um Estudo de Sociologia do Conhecimento Aplicado. S.Paulo: Unesp. Porto Alegre: Editora do Sindicato dos Médicos. 2009, p. 16-17.

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Como as profissões são empreendimentos humanos coletivos, além de

organizações com os próprios conhecimentos, crenças e habilidades especiais, a

Sociologia pode enfoca-las como organizações comuns de grupos, separados de

seus conceitos diferentes, provendo aqueles gerais pelos quais as profissões

poderiam ser individualmente comparáveis.

Destaca FREIDSON7:

Se considerarmos a profissão médica atualmente, fica claro que sua principal

característica é a preeminência. É preeminente não apenas no prestígio, mas

também na autoridade relativa à sua especialidade. Isto para dizer que o

conhecimento médico sobre doenças e seu tratamento é considerado autorizado e

definitivo. Apesar das exceções interessantes, como a quiroprática e homeopatia,

não existem representantes de ocupações em competição direta coma Medicina

que tenham conseguido posições semelhantes na formulação de políticas

relacionadas à saúde. A posição da Medicina hoje em dia está próxima das

antigas religiões de Estado – ela tem um monopólio aprovado oficialmente sobre o

direito de definir o que é saúde e doença e de trata-la. Além disso, ela é altamente

reconhecida pelo público, o que reflete o grande prestígio que possui.

Essa posição de grande importância e confiabilidade social dos médicos foi

construída ao longo de diferentes períodos históricos, em especial na Europa.

A prática médica se constrói fundamentada em alguns pressupostos que a

caracterizam até hoje: o atrelamento do saber médico ao saber científico; a luta

pelo reconhecimento legal e social da exclusividade do conhecimento científico

da saúde e, consequentemente, o combate aos curandeiros e curadores de

qualquer espécie que não os médicos; e a participação dos médicos na

organização social, inclusive na utilização de recursos públicos, na arquitetura

dos grandes centros urbanos, na definição das práticas recomendadas e das

vetadas aos trabalhadores e membros das comunidades sociais.

MICHEL FOUCAULT8 escreve:

A Medicina como técnica geral de saúde, mais do que como serviço das doenças

e arte das curas, assume um lugar cada vez mais importante nas estruturas

administrativas e nesta maquinaria de poder que, durante o século XVIII, não

cessa de se estender e de se afirmar. O médico penetra em diferentes instâncias

7 Obra citada, p. 25 8 FOUCAULT. Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 202-203.

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de poder. A administração serve de ponto de apoio e, por vezes, de ponto de

partida aos grandes inquéritos médicos sobre a saúde das populações; por outro

lado, os médicos consagram uma parte cada vez maior de suas atividades a

tarefas tanto gerais quanto administrativas que lhe foram fixadas pelo poder.

Acerca da sociedade, de sua saúde e suas doenças, de sua condição de vida, de

sua habitação e de seus hábitos, começa a se formar um saber médico-

administrativo que serviu de núcleo originário à “economia social” e à sociologia do

século XIX. E constitui-se, igualmente, uma ascendência político-médica sobre

uma população que se enquadra com uma série de prescrições que dizem

respeito não só à doença mas às formas gerais da existência e do comportamento

(a alimentação e a bebida, a sexualidade e a fecundidade, a maneira de se vestir,

a disposição geral do habitat).

FOUCAULT analisa o ato médico da Idade Média, que foi basicamente calcado

no isolamento do doente para longe do convívio social, como forma de proteger

a sociedade do contágio, ou no caso da loucura dos atos praticados pelos

insanos e que poderiam ser prejudiciais.

A Medicina dita as regras para a arquitetura das cidades, as quais se

transformam a partir da Idade Média em grandes centros de comércio e

produção manufatureira. Assim, os grandes centros urbanos se higienizam, se

purificam e se transformam por meio de tais recomendações médicas, que

estabelecem o que é bom e o que não é para garantir a saúde, como devem

circular as pessoas, como devem morar, como devem circular as águas e o ar.

Além disso, o planejamento de acesso às fontes de água de beber e o da

distribuição das águas de esgoto, o alargamento de avenidas para a circulação

do ar, a retirada das casas que estavam construídas sobre pontes para que o

ar pudesse circular livremente, a construção de cemitérios com covas

individuais e afastados do centro das cidades - todos esses aspectos estão

presentes na história das cidades durante e após a Idade Média e são

decorrentes da influência dos conhecimentos médicos.

Mas o conhecimento médico determinou também a necessidade de exclusão

dos doentes para fora do convívio familiar e social, para confiná-los em

hospitais, hospícios e colônias de moradia de leprosos.

FOUCAULT9 afirma:

9 Obra citada, p. 88-89.

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Medicalizar alguém era mandá-lo para fora e, por conseguinte, purificar os outros.

A medicina era uma medicina de exclusão. O próprio internamento dos loucos,

malfeitores, etc, em meados do século XVII, obedece ainda a esse esquema. [...]

O poder político da medicina consiste em distribuir os indivíduos uns ao lado dos

outros, isolá-los, individualiza-los, vigiá-los uma a um, constatar o estado de saúde

de cada um, ver se está vivo ou morto e fixar, assim, a sociedade em um espaço

esquadrinhado, dividido, inspecionado, percorrido por um olhar permanente e

controlado por um registro, tanto quanto possível completo, de todos os

fenômenos.

O apoio político do Estado era fundamental para que a Medicina fosse

reconhecida como um saber exclusivo na definição de saúde e de tratamento

de doenças. É preciso reconhecer que a prática médica sempre foi obrigada a

conviver com inúmeros saberes populares que, não raro, e até os dias de hoje,

recomendam práticas de cura completamente diferentes daquelas prescritas

pelos médicos, por vezes até em evidente agressão ao bom senso, como

acontece com alguns tratamentos fundados em crenças religiosas.

Por essa razão, os médicos tiveram que trabalhar de forma solidária,

organizados em associações ocupacionais para conquistar um espaço

exclusivo de atuação superior à influência das práticas populares e religiosas.

Contar com o apoio do papel político do Estado foi fundamental para a garantia

da exclusividade.

Outro importante aspecto para a consolidação da exclusividade da prática

médica foi sua fundamentação científica, conquistada a partir dos avanços das

pesquisas nas áreas da Física, da Química e da Biologia, principalmente.

Nenhuma outra profissão se beneficiou tanto dos avanços da pesquisa dessas

áreas como a Medicina, porque esses conhecimentos permitiram detectar as

doenças com maior facilidade e, promover tratamentos mais eficientes em

maior número de casos.

E. FREIDSON10 constata:

Com o desenvolvimento de uma fundamentação tecnológica ou científica

adequada do trabalho médico, desenvolveu-se uma fundamentação sociológica

para criar uma ocupação tão bem estabelecida na sociedade que se tornou uma

verdadeira profissão de consulta – comandando os critérios que qualificam os

10 Obra citada, p. 37.

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homens ao trabalho de cura, com exclusiva competência para determinar o

conteúdo correto e o método efetivo de exercer sua atividade, sendo consultado

livremente pelos que necessitam de sua ajuda.

A racionalidade e objetividade do positivismo contribuiriam ao longo da História

para tornar a Medicina fundamentada no saber científico e comprovável, uma

área do conhecimento quase indiscutível, inquestionável, tornando os médicos

depositários do imaginário daquele que tudo sabe. Esse imaginário ainda hoje

é cultivado pela população em todos os extratos sociais, em muitos países

ocidentais.

No Brasil, o Congresso Nacional dos Práticos ocorrido em 1922 marca um

momento importante para a Medicina em seu caminho de construção da

exclusividade do saber sobre a saúde.

O País vivia naquele momento histórico mudanças importantes porque havia

não só superado a dependência colonial após a implantação da República

como também estabelecido novas formas de produção econômica a partir do

fim da escravidão, e estava implantando a produção industrial com a chegada

dos imigrantes europeus e de seu conhecimento tecnológico de produção.

As cidades daquela época se tornam centros maiores de produção, comércio,

circulação e moradia de pessoas, o que provoca, maior preocupação com a

saúde pública, sobretudo por parte do Estado, e em especial na adoção de

medidas de caráter preventivo.

O poder público se envolve em questões como hábitos de higiene da

população em relação ao seu próprio corpo e à sua moradia, mas também se

preocupa com a organização dos serviços de assistência médica estatal.

Enfim, a ideia que prepondera no início do século XX nas grandes cidades

brasileiras é a de que o desenvolvimento econômico também será decorrente

da preservação da saúde dos trabalhadores, razão pela qual se justifica a

presença do Estado para gerir os recursos que possam garantir prevenção e

tratamento.

No entanto, a disputa entre os médicos e os higienistas no debate sobre qual

conhecimento deveria prevalecer no tratamento das questões de saúde, não

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tardou a aparecer. PEREIRA NETO11 descreve o embate que começava a se

delinear e que atinge ponto alto no Congresso dos Práticos, em 1922:

Aos poucos, o mercado de trabalho médico se tornava mais complexo e a relação

assalariada começava a ser introduzida. O médico que balizava sua relação com

seu paciente de forma individualizada e liberal via seu espaço de prestígio e

poder, no mercado de trabalho, ser ameaçado pelo médico funcionário público,

trabalhando em um hospital. Esta instituição foi deixando, aos poucos, de ser o

asilo dos pobres, imprestáveis e incuráveis, aguardando a morte, para tornar-se o

espaço da ciência, da racionalidade, da capitalização e da recuperação para vida.

A profissão médica integrou desta maneira, o processo de parcialização do

trabalho que se desenvolvia nas demais atividades produtivas. Começava a se

restringir o lugar do médico que vivia exclusivamente do exercício liberal de sua

atividade. [...]

O debate sobre a questão do mercado de trabalho estava organizado em torno de

sua restrição ou ampliação. Para alguns médicos, o assalariamento era visto como

uma ameaça à sobrevivência da profissão, pois comprometia a liberdade do

profissional em estabelecer o valor da sua consulta. Além disso, os

estabelecimentos públicos de assistência médica eram vistos como agentes

captadores de uma clientela que detinha poder aquisitivo suficiente para ser

atendida no consultório particular. O mercado de trabalho parecia se restringir.

Para outros, a entrada do Estado na organização de uma rede de assistência

médica promovia a ampliação do mercado de trabalho, já que oferecia seus

serviços a uma clientela não alcançada pelo sistema liberal. Além disso, esta

introdução representava uma renda fixa que o médico passaria a ter. O debate

estava claramente instaurado e o mercado de trabalho começava a se modificar,

no início deste século, de forma significativa.

O resgate histórico do trabalho de PEREIRA NETO permite afirmar que o debate

em torno da mercantilização da Medicina é muito anterior e remonta ao início

do século XX e não ao século XXI, quando essa polêmica é retomada pelos

estudiosos do fenômeno de judicialização da saúde pública e privada.

Tampouco a preocupação da classe médica com condições mais rentáveis

para o exercício de sua atividade profissional é contemporânea, embora tenha

se tornado mais visível na quadra histórica que vivemos.

11 PEREIRA NETO. André de F. A Profissão Médica em Questão (1922): Dimensão Histórica e Sociológica. Cadernos de Saúde Pública v. 11, n. 4. Rio de Janeiro out/dez de 1995, p. 4.

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No século XX os médicos se organizaram em associações e realizaram

congressos não apenas para debater a exclusividade da atividade de

caracterização da saúde e do tratamento para a doença, mas também para

discutir como seria seu posicionamento profissional num país que iniciava de

forma marcante a formação de um mercado para ser palco da produção, do

consumo e das relações de produção.

Esse momento marca o final (ou, pelo menos, o começo do fim) da relação

idealizada entre médico e paciente, individualizada e global, exercida de forma

direta e sem intermediários, na qual a habilidade, a paciência de ouvir o

paciente e suas estórias, e a autonomia para cobrar as consultas e recomendar

o tratamento eram as características essenciais.

O médico generalista, capaz de tratar qualquer tipo de doença, que atendia o

paciente em seu consultório com disponibilidade de tempo para ouvir todas as

peculiaridades de seus sintomas, que tratava o corpo do doente como um todo

indivisível, que associava prescrição médica à recomendação de boas

condutas morais, que era livre para receitar e acompanhar o cotidiano dos

pacientes, inclusive em encontros sociais e eventuais na vizinhança, começa a

deixar de ser o perfil majoritário.

Temas como mercado e a necessidade de aumento do conhecimento para

fazer frente às novas exigências da área médica passam a integrar o cotidiano

dos médicos e de suas preocupações profissionais.

Acreditar que as controvérsias e contradições que os médicos vivenciam no

século XXI são fruto do aumento do acesso à tecnologia e ao desenvolvimento

da farmacologia é ignorar que a classe médica enfrentava no Brasil, desde o

início do século XX, problemas na consolidação de seu espaço no mercado de

trabalho e que isso se avolumou ao longo de todo o século com o surgimento

de novas tecnologias, com a construção de novos saberes científicos e com a

criação de novas formas de exercício do trabalho, como a saúde suplementar e

o sistema de cooperativas médicas, entre outros.

Uma das primeiras reações organizadas pelos médicos para fazer frente às

mudanças que viviam foi cuidar do estabelecimento de uma hierarquização

entre as diversas áreas profissionais da saúde de modo a terem supremacia

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sobre enfermeiras, parteiras e farmacêuticos. Todas foram consideradas áreas

subordinadas aos saberes médicos, supostamente mais abrangentes,

científicos e competentes para determinar os estados mórbidos e seus

tratamentos.

Esse fenômeno não é apenas brasileiro; ao contrário, ocorreu em vários países

do mundo ocidental nos quais a Medicina se firmou como área profissional de

controle de outras, normalmente denominada de paramédica.

FREIDSON12 afirma que o pessoal não médico, da área de saúde, possui

capacitação técnica para realizar grande parte das atividades tradicionais de

cura realizadas pelos médicos. Os critérios técnicos não são, portanto, o

diferencial fundamental da do médico em relação aos paramédicos. O controle

exercido com exclusividade pelo médico é, ao contrário do conhecimento

técnico, o elemento fundamental para a diferenciação das duas categorias

profissionais.

Os paramédicos são, assim, parte integrante da equipe que se dedica ao

trabalho de diagnóstico de doenças e promoção de atos para recuperação da

saúde e de formas científicas de prevenção de males, mas integram uma

equipe de saúde na condição de dependentes da ordem do médico que chefia

essa equipe. Realizam suas atividades a partir do pedido e da supervisão do

profissional médico.

A supervisão e controle dos médicos em relação aos paramédicos não passa

despercebida para a sociedade, que atribui menor prestígio a eles que aos

profissionais de Medicina, na medida em que identifica neles a falta de

autonomia e o aspecto subalterno aos médicos. Desse modo, os médicos

reforçam a ideia de que possuem maior quantidade e qualidade de

conhecimento científico.

A hierarquia se estende aos próprios paramédicos e suas múltiplas divisões,

enfermeiras graduadas, auxiliares de enfermagem, técnicos em enfermagem,

entre outros, criando um rígido sistema que passa pelo grau de formação

educacional, mas que, mesmo em casos em que seja obrigatória a formação

12 Obra citada, p. 68.

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universitária como Enfermagem e Fisioterapia, há subordinação ao médico,

que é o único autorizado a determinar o ato que será praticado no paciente.

Na busca da construção de identidade, autonomia e prevalência como prática

profissional, os médicos se adequaram perfeitamente ao sistema de produção

capitalista que marca de forma expressiva a produção econômica mundial a

partir da Segunda Guerra e, de forma hegemônica, a partir da década de 90

com o fim do socialismo nos países europeus.

WRIGHT, citado por MARCOS DE SOUZA QUEIROZ13, afirma que, estudando a

Medicina na Inglaterra no século XVII, é possível concluir que ela não se tornou

hegemônica pelo fato de seu conhecimento ser mais válido ou sua eficácia

terapêutica maior. Para WRIGHT, a única explicação para o sucesso histórico

dessa forma de Medicina se encontra na compatibilidade cultural com o novo

modo de produção capitalista.

Além disso, o poder de determinar, coordenar e fiscalizar as ações em prol da

detecção dos problemas de saúde e de sua cura avançou com o acesso a

novas tecnologias disponíveis no século XX e no século XXI, consolidando a

posição de que somente os médicos podem dizer o que é a doença, o que é

saúde e o que é necessário para curar – e ninguém mais. E, ainda, que esse

trabalho deverá ocorrer de forma sincronizada com o mercado que se

desenvolveu no âmbito da saúde e da Medicina.

O século XX e o século XXI estão marcados pelo avanço científico e

tecnológico e pela necessidade de enfrentamento das consequências desse

avanço.

Em um primeiro momento histórico (que, segundo ULRICH BECK14, seria até a

metade do século XX), a ciência foi considerada como verdade inabalável, área

de saber especializado em que somente podiam transitar aqueles que

detivessem conhecimento suficiente e comprovado para isso. Porém, a partir

da segunda metade do século XX a visibilidade da ciência se modifica. BECK

destaca que a ciência não é mais recebida unicamente como fonte de

13 WRIGHT, P.W.G. Study in the legitimation of knwoledge: the “sucess” of medicine and the “failure” of astrology. Social. Rev. Monog. 27:85-99, 1979. In: QUEIROZ, Marcos de Souza. “O Paradigma Mecanicista da Medicina Ocidental Moderna: uma Perspectiva Antropológica”. Revista de Saúde Pública, v. 20, n. 4, São Paulo, agosto de 1986, p. 6. 14 BECK. Ulrich. Sociedade de Risco. S.Paulo: 34, 2010, p. 236.

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soluções, mas também como fonte de problemas. Os cientistas foram

confrontados com seus êxitos e também com seus fracassos e os riscos deles

decorrentes.

A consequência dessa prática crítica de uma ciência que se autoquestiona é a

produção de mais ciência, compreendida agora como espaço que também é

capaz de produzir mitos e tabus que devem ser sistematicamente superados.

Em outras palavras, para vencer o tabu de inalterabilidade do conhecimento

científico é preciso questionar, checar e modificar o conhecimento de forma

ininterrupta. Explica BECK que prevalece a máxima de que o que por homem foi

feito pode também ser por homem alterado.15

Tal pressuposto provoca uma desmistificação da ciência e, ao mesmo tempo, a

busca incessante por novos estudos e comprovações que possam permitir que

o conhecimento se altere e avance sempre para permitir o afastamento da

descoberta que não se sustenta diante dos métodos científicos cada vez mais

rigorosos. O temor da ciência é produzir o inquestionável e vê-lo ser superado

por outra pesquisa.

Essa busca insistente por novos conhecimentos não ocorre, no entanto, em

condições de neutralidade ou sem pressões do poder econômico e social.

ANDRÉ MARTINS,16 em estudo sobre biopolítica, ressalta que a Medicina

contemporânea se orgulha de ser “científica”, mas é necessário debater e

estudar o sentido e a extensão da expressão científica. Segundo o autor, a

ciência pretende ser um conhecimento com capacidade de universalização e,

para isso, é necessário que o conhecimento produzido no estudo de um caso

possa ser extensível a vários outros. Nessa medida, a ciência reduz a

complexidade do objeto estudado e enseja a solução de outros casos análogos

àquele que foi estudado e que permitiu a construção do conhecimento

Mas, questiona o autor17:

[...] uma pesquisa feita com financiamento de indústrias sobre o que elas próprias

produzem, é isenta? Pesquisas sobre uma suposta não nocividade do asbesto

15 Obra citada, p. 238. 16 MARTINS, André. “Biopolítica: O poder médico e a autonomia do paciente em uma nova concepção de saúde”. In: Interface – Comunicação, Saúde e Educação, v.8, n.14, p. 21-32, setembro 2003- fevereiro 2004, p. 21-32. 17 Obra citada, p. 23.

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para trabalhadores, financiada por uma indústria de amianto, serão científicas?

(Bittar, 2000) Uma indústria farmacológica que faz pesquisas que mostrem os

supostos benefícios de suas drogas sem contextualizar as demais questões

envolvidas em seu uso, estas serão científicas? O problema é que a resposta aqui

é: sim, pode ser científica.

Se os critérios utilizados pela pesquisa forem formais, reconhecidos como

técnicos pela comunidade científica, ou seja, se houver sido adotado o método

científico, a pesquisa será reconhecida como tal, embora nem sempre seus

resultados sejam verdadeiros. ANDRÉ MARTINS defende que a cientificidade não

é índice de veracidade.

Mas por adotar métodos rigorosos que podem ser reproduzidos a qualquer

tempo e em qualquer lugar, a ciência contemporânea adquire características

que o mencionado autor denomina de oráculo que revelaria a verdade do

objeto estudado.18

E afirma:

Quando a Medicina se arvora em se considerar ‘científica’, em primeiro lugar

incorre num erro: ela não é científica, mas sim utiliza a Ciência. Em segundo lugar,

em geral considera que está do lado da ‘verdade’, que é uma Medicina verdadeira,

que seus dados são verdadeiros ou dizem a verdade, que suas reduções são a

verdade (a essência verdadeira) do objeto em questão. Em terceiro lugar,

justamente por estes dois pontos anteriores, por julgar-se científica e entender que

é verdadeira por isso, em geral a Medicina tende a esquecer que seu ‘objeto’ é um

paciente real, concreto, que ultrapassa em complexidade os esquemas orgânicos,

fisiopatológicos, fisioquímicos, que sua ‘ciência’ pode abarcar. A Ciência pode ser

tida como ‘exata’, mas o ser humano não o é nem nunca o será.

E encerra sua reflexão afirmando que a Medicina tem também uma dimensão

terapêutica e que, ao pretender tratar o paciente apenas com o viés científico,

limita a compreensão do processo de saúde e doença. Além disso, ter

conhecimentos sobre a ciência e sua aplicação aos diferentes estados

mórbidos associa a figura do médico àquele que é o detentor da verdade, que

tem poder absoluto para dizer o que pode e o que não pode ser feito em um

determinado caso concreto, o dono do corpo e da mente do paciente que, pelo

18 Obra citada, p. 24

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simples fato de estar doente, deve se submeter integralmente aos comandos

do médico por não ter condições de avaliar sua situação de forma científica e,

supostamente, verdadeira.

MARCOS DE SOUZA QUEIROZ19 afirma que a Medicina, ao enfatizar sua dimensão

terapêutica no processo fisiológico humano, passou a tratar as doenças por

meio de uma estrutura celular e não mais patológica, e transformou o paciente

em um objeto a ser manipulado, e não em um caso clínico a ser conhecido e

tratado.

Enquanto se degradam progressivamente as condições de qualidade de vida

nas grandes concentrações urbanas, com aumento do desgaste psicológico, da

poluição do ar, menor espaço físico para as moradias, redução substancial do

tempo e do significado do lazer, mudança profunda das estruturas familiares,

aumento dos problemas emocionais derivados da frustração, da ansiedade e

da perda de ideologias motivadoras, a Medicina contemporânea concentra sua

conduta terapêutica no resultado de exames e no estudo de casos

paradigmáticos, priorizando a análise do aspecto científico em detrimento de

qualquer outro.

QUEIROZ conclui:

A Medicina ocidental moderna desenvolveu-se mudando uma cosmologia voltada

para a pessoa humana para uma cosmologia voltada para o objeto. Tem havido

ganhos e perdas nesse processo. Por um lado, houve aperfeiçoamento de

técnicas terapêuticas e o desenvolvimento de um corpo consistente de

conhecimentos com a concomitante redução da controvérsia sobre a natureza da

doença e de seu tratamento; por outro lado, a medicina perdeu sua visão

unificadora do paciente em particular e da vida em geral como agentes que

resultam, na saúde e na doença, em fatores ambientais, sociais e econômicos,

além dos fatos biológicos. A Medicina ocidental moderna necessita recuperar, na

sua prática, essa dimensão, porque ela é teoricamente mais rica, equilibrada e

próxima das causas reais que envolvem a saúde e a doença em seres humanos.

Para isso ela necessita reordenar o enorme conjunto de conhecimentos e

tecnologias até hoje acumulados, como solução para a sua crise e em alternativa

ao seu paradigma mecanicista dominante.

19 QUEIROZ. Marcelo de Sousa. “O paradigma mecanicista da medicina ocidental moderna: uma perspectiva antropológica”. Revista de Saúde Pública, v. 20, n. 04, São Paulo, agosto de 1986, p. 6.

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Com o aumento dos processos tecnológicos aplicáveis à Medicina, em especial

na área de exames de imagem e com o avanço das pesquisas na área de

fármacos, a dimensão terapêutica desta ciência avança no sentido de priorizar

dados científicos que comprovem o estado de morbidez.

O doente contemporâneo é definido pelo resultado dos exames: as consultas

médicas são um ritual de pedidos de exames e análise de resultados sem

disponibilidade de tempo para o diálogo, seja no âmbito do serviço público ou

do serviço privado.

No âmbito público não há tempo para o diálogo porque o serviço não dispõe de

número suficiente de médicos para o atendimento, o que quase sempre

provoca a concentração de grande quantidade de pacientes para serem

atendidos por um único médico, que se vê obrigado a dedicar pouco tempo a

cada consulta para poder atender uma quantidade significativa de pacientes.

No setor privado as consultas são rápidas porque os valores pagos por

consulta quase sempre são inferiores àqueles considerados ideais pelos

médicos, sendo obrigados a atender um número grande de pacientes por dia

para poderem receber uma remuneração razoável para suas pretensões e

necessidades.

Em ambos os casos, a redução do tempo de diálogo da consulta parece ser

compensada pela aparente certeza proporcionada pelos resultados dos

exames, até porque independem do estado emocional do paciente, de sua

lucidez, da capacidade de descrição dos sintomas. Um exame, em tese, é

neutro, é científico e nessa medida, parece ser sempre verdadeiro. Por

conseguinte, o conceito contemporâneo de saúde é limitado (por grande parte

do corpo médico) aos resultados dos exames mais corriqueiramente

realizados, em especial os exames laboratoriais e de imagem.

O Projeto de Lei 7703, de 2006, aprovado na Câmara Federal e em tramitação

no Senado da República, pretende normatizar o exercício da profissão médica

da seguinte forma:

O Congresso Nacional decreta:

Art. 1º O exercício da medicina é regido pelas disposições desta Lei.

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Art. 2º O objeto da atuação do médico é a saúde do ser humano e das

coletividades humanas, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo,

com o melhor de sua capacidade profissional e sem discriminação de qualquer

natureza.

Parágrafo único. O médico desenvolverá suas ações profissionais no campo da

atenção à saúde para:

I – a promoção, a proteção e a recuperação da saúde;

II – a prevenção, o diagnóstico e o tratamento das doenças;

III – a reabilitação dos enfermos e portadores de deficiências.

Art. 3º O médico integrante da equipe de saúde que assiste o indivíduo ou a

coletividade atuará em mútua colaboração com os demais profissionais de saúde

que a compõem.

Art. 4º São atividades privativas do médico:

I – formulação do diagnóstico nosológico e respectiva prescrição terapêutica; [...]

A exemplo do que já ocorre na atualidade, a legislação, quando aprovada,

determinará que somente o médico poderá estabelecer com certeza o que é

saúde e o que é doença, bem como qual o tratamento indicado. Essa

autonomia deverá ser exercida em mútua colaboração com os demais

membros da equipe de saúde que assiste o paciente, o que, na vida prática,

nem sempre ocorre de forma efetiva. A observação dos casos práticos no

cotidiano permite concluir que a opinião do médico assistente do paciente

sempre prevalece, por vezes até em relação à opinião contrária de outros

médicos ou de outros membros da equipe.

A decisão do médico é tratada como soberana e, não raro, se impõe até contra

os administradores de planos de saúde privada ou gestores do serviço público.

O imaginário social construído ao longo de muitos anos associa o médico com

o único profissional competente para dizer o que é certo e o que é errado em

saúde. Essa proeminência da opinião do médico assistente é reforçada no

Código de Ética Médica, Resolução 1931, de 2009, que no Capítulo I trata dos

Princípios Fundamentais e determina:

VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a

prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não

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deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de

urgência ou emergência, quando sua recusa possa trazer danos à saúde do

paciente.

VIII – O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto,

renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou

imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho. [...]

XVI – Nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital ou de instituição,

pública ou privada, limitará a escolha, pelo médico, dos meios cientificamente

reconhecidos a serem praticados para o estabelecimento do diagnóstico e da

execução do tratamento, salvo quando em benefício do paciente.

XVII – As relações do médico com os demais profissionais devem basear-se no

respeito mútuo, na liberdade e na independência de cada um, buscando sempre o

interesse e o bem-estar do paciente.

A autonomia como pressuposto essencial da prática da atividade médica é

importante para garantia do melhor tratamento para o paciente, porque permite

ao profissional enfrentar todo tipo de pressão, seja pela redução de custos no

tratamento, seja pela não realização do mesmo.

Mas essa é uma face do problema, a outra é que a autonomia pode ser

utilizada para impor tratamentos cujos resultados ainda não estão

satisfatoriamente comprovados, medicamentos de alto custo em lugar de

outros mais baratos, inserção de novas tecnologias sem a necessária avaliação

da relação custo-benefício, e, por vezes, a adoção de procedimentos provindos

de pressão da indústria de produção de aparelhos, próteses, órteses ou de

medicamentos.

NELSON TEICH 20 afirma

A percepção pela maioria das pessoas que o aumento dos cuidados em saúde

está diretamente e proporcionalmente relacionado com os ganhos em saúde, faz

com que exista uma enorme demanda por cuidados em saúde. Essa relação

infelizmente não é real, e existem inúmeros outros fatores que podem estar

relacionados com o nível de saúde de uma pessoa ou de uma população, como

20 TEICH, Nelson. “Economia da Saúde como Instrumento Decisório em Auditoria”. In: GONÇALVES, Viviane Fialho. Fronteiras da Auditoria em Saúde – Volume I. S.Paulo: Farol do Forte, 2009, p. 33-41.

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educação, hábitos de vida, fatores genéticos, fatores ambientais, saneamento e

nível de remuneração. [...]

A estrutura da saúde, seja pública ou privada, é baseada em um modelo onde

aquele que paga pelos serviços não é aquele que recebe o benefício, e os que

decidem sobre o uso dos recursos em saúde, prestador e usuário, não sofrem

perdas financeiras com o uso indevido dos recursos.

O avanço do conhecimento científico permitiu o surgimento de aparelhos para

realização de exames de imagem que eram inimagináveis há pouco mais de

cinquenta anos atrás. Tomógrafos, ultrassons, aparelhos de ressonância

magnética e inúmeros outros abriram caminho para o surgimento de tecnologia

avançada na área de exames, contribuindo certamente para a precisão dos

diagnósticos e, ao mesmo tempo, aumentando os custos dos tratamentos de

saúde em todo o mundo.

A incorporação de novas tecnologias nessa área é peculiar porque ocorre de

forma cumulativa com tecnologias já consagradas pelo uso. Assim, uma lesão

em membro superior ou inferior poderá ser detectada com o uso da radiografia

já conhecida há muitos anos, mas cumulada com a realização de ressonância

magnética, que é uma tecnologia bem mais recente. O médico poderá exigir a

realização de ambos os exames para concluir seu diagnóstico e, em princípio,

não poderá ser questionado por isso, embora o custo seja maior.

Em uma sociedade como a contemporânea, que se caracteriza pelo elevado

apelo ao consumo e, consequentemente, pelo extremado gosto por novidades

tecnológicas, a área da saúde não escapou ao apelo comercial: consumir

novas tecnologias, tratamentos e medicamentos é também símbolo de

destaque social, porque essas novas propostas nem sempre são acessíveis a

todos os estratos sociais. Nem todos podem pagar por novidades tecnológicas

em qualquer área e, na saúde, isso não é diferente.

O apelo mercadológico permite que algumas tecnologias sejam divulgadas

para além do ambiente médico, dos congressos, consultórios e seminários

científicos. As novas tecnologias para exames e tratamentos são divulgadas na

mídia e anúncios publicitários em jornais e revistas de grande circulação,

exercendo um indiscutível fascínio sobre a parcela da população que pode ter

acesso a realização de novos exames ou ao uso de novos tratamentos. É o

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que acontece, por exemplo, com o uso de ultrassonografia durante a gravidez.

As gestantes são incentivadas pela publicidade a realizar exames com imagens

em terceira ou quarta dimensão, cujas fotos são transferidas depois para os

aparelhos celulares dos pais, ou como descanso de tela de computadores.

Na atualidade existem estudos científicos que discutem a efetiva necessidade

de realização de vários exames de ultrassom ao longo do período de gestação.

Vejamos, por exemplo, o que diz a Organização Mundial da Saúde21:

A Organização Mundial da Saúde salienta que as tecnologias ligadas à saúde

deveriam ser avaliadas com profundidade antes de terem seu uso extensamente

difundido. O exame por ultrassom durante a gravidez tem atualmente seu uso

difundido sem avaliação suficiente. A pesquisa demonstrou sua eficácia para

determinadas complicações da gravidez, mas o material publicado não justifica o

uso rotineiro do ultrassom em mulheres grávidas. Há também informação

insuficiente no que diz respeito à segurança do uso do ultrassom durante a

gravidez. Ainda não há também qualquer avaliação detalhada, multidisciplinar do

uso do ultrassom durante a gravidez, incluindo: eficácia clínica, efeitos

psicológicos, considerações éticas, implicações legais, relação custo- benefício e

segurança.

A OMS endossa fortemente o princípio de escolha consciente no que diz respeito

ao uso da tecnologia. Os agentes de saúde têm a responsabilidade moral: de

informar inteiramente o público sobre o que é sabido e não sabido sobre os

exames de ultrassom durante a gravidez; e de informar inteiramente cada mulher

antes de um exame de ultrassom e na indicação clínica do ultrassom, sobre os

benefícios esperados, os riscos potenciais e as alternativas disponíveis, se

houver.

Apesar dessa recomendação, são conhecidos e divulgados na mídia casos de

celebridades que adquirem seus próprios aparelhos de ultrassonografia para

utilizar em casa durante a gestação, para poder acompanhar com frequência o

desenvolvimento do bebê.

Essa aproximação entre novas tecnologias na área da saúde e produtos e

serviços de consumo se estende a hospitais, medicamentos, órteses e

próteses, entre outros recursos de saúde. Alguns hospitais são referenciados

21 WAGNER. Marsden. Ultrassom: mais prejudicial que benéfico? Disponível em: http://www.amigasdoparto.com.br/ac016.html. Acesso em 21 de agosto de 2011.

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como excelentes pela população em razão da hotelaria que fornecem, ou pelo

fato de serem utilizados por pessoas de renome, como artistas e políticos.

Os medicamentos são referenciados como “de última geração”, atraindo a

preferência porque teoricamente são o que existe de mais novo, mais moderno;

e, por estarem associados ao novo e ao moderno, constituem um referencial

importante numa sociedade como a nossa, que constrói sua identidade

também pelos hábitos de consumo que possui.

Assim, a incorporação de novas tecnologias na área da saúde não está

relacionada apenas com eficiência e melhores resultados para o paciente, mas

também com os apelos comerciais a que todos se encontram expostos e

sensíveis, tanto os médicos como os próprios pacientes e, muitas vezes, seus

familiares.

Nesse ambiente é que o Direito tem sido chamado a determinar quem pode e

quem não pode ter acesso a essas novas tecnologias, ao decidir pedidos de

tutela antecipada ou de liminares para que o paciente possa ser tratado com

uma tecnologia ou um medicamento ainda não disponível para todos, porém

recomendado pelo médico que o assiste e considerado imprescindível para o

êxito do tratamento.

CECÍLIA MARIA GUIMARÃES FIGUEIRA22 assinala

A incorporação de inovações tecnológicas na área de saúde é inevitável e

apresenta características importantes:

- é cumulativa – significa que a nova tecnologia se soma, e não substitui a já

existente.

- é assimilada com grande rapidez – decorrente dos intensos meios de divulgação

da indústria responsável pela mesma.

- é incorporada sem avaliação rigorosa – decorrente da pressão da indústria sobre

os organismos responsáveis pelos estudos de demanda, efeitos colaterais, custo-

efetividade, custo-benefício.

- a demanda é induzida pela oferta – é incorporada onde a nova tecnologia está

presente.

22 FIGUEIRA, Cecília Maria Guimarães. “Incorporação de Tecnologias em Saúde”. In: GONÇALVES, Viviane Fialho. Fronteiras da Auditoria em Saúde – Volume I. S.Paulo: Farol do Forte, 2009, p. 65-66.

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- dificuldade de informação objetiva e estruturada sobre a mesma – a pressão

intensa pela liberação da inovação tecnológica impede a análise mais detalhada

da mesma.

Outra característica importante que pode ser acrescida a essas é o fato de que

as inovações tecnológicas quase sempre são de alto custo, o que impacta os

orçamentos da saúde pública e privada. É nessa medida que a opinião médica

adquire na atualidade outra dimensão quase desconhecida durante a trajetória

histórica da prática médica: são as decisões médicas que irão determinar os

custos dos tratamentos de saúde. É a indicação médica para o uso de um

determinado medicamento ou para a realização de um exame específico de

imagem que irá decretar a viabilidade econômica do serviço de saúde público

ou privado.

Quando o médico, apoiado em seu conhecimento, experiência clínica e

autoridade da qual a profissão é revestida socialmente, determina que somente

um determinado produto medicamentoso deva ser utilizado por um paciente ou

que somente a utilização de uma prótese específica poderá ser benéfica para

outro paciente, ou, ainda, que somente um determinado equipamento fabricado

por um produtor claramente identificado poderá ser utilizado no transplante do

paciente, ele transfere sua credibilidade historicamente construída para o

produto ou o equipamento indicado, o qual se torna, a partir de então, o único a

merecer confiança do paciente, de seus familiares e por extensão, da

sociedade.

As decisões médicas têm por objetivo garantir o melhor tratamento para a

saúde do paciente, mas na atualidade é inegável que há repercussão

econômica dessas decisões, e isso tem motivado a própria ciência médica a

expandir suas áreas de pesquisa e estudo, incorporando conhecimentos da

economia para garantia da viabilidade da saúde pública e privada.

O Ministério da Saúde dispõe de um Departamento de Economia e

Desenvolvimento (DESD) que tem como função uma área governamental

responsável por subsidiar o Ministério da Saúde no tocante a aspectos

econômicos dos programas e projetos formulados no seu âmbito de atribuição

e na formulação de políticas, diretrizes e metas para as áreas e temas

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estratégicos. O DESD também tem como atribuições institucionalizar e

fortalecer a economia da saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS),

bem como acompanhar e consolidar os dados de gastos em ações e serviços

públicos em saúde, das três esferas de governo, monitorando o financiamento

do SUS, entre outras pertinências. 23

O Departamento de Economia da Saúde e Desenvolvimento conta com o

Núcleo Nacional de Economia da Saúde (NUNES)24, que tem como um de

seus objetivos realizar avaliações econômicas de tecnologias de saúde.

23 Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/saude/profissional/area.cfm?id_area=1001. Acesso em 21 de agosto de 2011. Decreto nº 6.860 de 27 de maio de 2009, que aprovou a nova estrutura regimental do Ministério da Saúde, reconstituiu a Economia da Saúde como Departamento de Economia da Saúde e Desenvolvimento - DESD, vinculado à Secretaria Executiva. São atribuições do DESD:

I - institucionalizar e fortalecer a economia da saúde no âmbito do SUS; II - subsidiar o Ministério da Saúde na formulação de políticas, diretrizes e metas para as áreas e temas estratégicos, necessários à implementação da Política Nacional de Saúde, no âmbito de suas atribuições; III - analisar a viabilidade de investimentos públicos no setor de saúde; IV - subsidiar as decisões do Ministério da Saúde no tocante a aspectos econômicos dos programas e projetos formulados no seu âmbito de atribuição; V - analisar e propor políticas para redução de custos na área de saúde, bem como para ampliar o acesso da população ao SUS; VI - coordenar e realizar pesquisas sobre componentes econômicos do SUS; VII - coordenar e consolidar o Banco de Preços em Saúde - BPS e da unidade catalogadora do Catalogo de Materiais - CATMAT do Ministério da Saúde visando subsidiar à aquisição de insumos estratégicos para a saúde; VIII - coordenar a formulação do Plano de Investimentos em Saúde do Ministério da Saúde e a avaliação dos resultados de suas ações; IX - analisar e avaliar os gastos do Ministério da Saúde e propor ações de otimização; e X - acompanhar e consolidar os dados de gastos em ações e serviços públicos em saúde, das três esferas de governo, e monitorar o financiamento do SUS.

24 Atividades do Núcleo Nacional de Economia da Saúde (NUNES) 1. Avaliação da estrutura de financiamento do SUS, com o propósito de encontrar

alternativas para superar os limites das finanças da União, estados, Distrito Federal e municípios; 2. Avaliação da necessidade de financiamento para novos programas e projetos, a fim de mensurar as necessidades de recurso para o alcance de resultados pré-determinados; 3. Análise da alocação de recursos no SUS frente ao modelo vigente de atenção à saúde; 4. Realização de estudos e de propostas de critérios e instrumentos para orientar a tomada de decisão e a alocação de recursos do SUS; 5. Avaliação das necessidades de investimento nas regionais de saúde (estabelecidas nos Planos Diretores de Regionalização – PDR), a partir da análise da disponibilidade de recursos para a oferta de ações e serviços de saúde;

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Em 2008 o Ministério da Saúde publicou o fascículo Avaliação Econômica em

Saúde25, que introduziu uma reflexão a respeito da importância dos estudos de

6. Análise da composição dos gastos no SUS, tanto do ponto de vista orçamentário quanto da estrutura de organização da atenção à saúde; 7. Análise das condições de oferta, acesso e qualidade dos serviços de saúde; 8. Análise do impacto de desonerações fiscais para o setor saúde; 9. Realização de estudos sobre a regulação econômica do setor saúde; 10. Capacitação de gestores e profissionais de saúde para o uso de ferramentas e sistemas de gerenciamento de custos em instituições de saúde; 11. Proposição de ferramentas para a gestão de custos em instituições de saúde; 12. Mensuração da eficiência técnica de secretarias de saúde, instituições, programas e projetos; 13. Mensuração e avaliação de custos de produção de medicamentos fitoterápicos; 14. Mensuração dos custos de doenças crônicas, especialmente as crônicas não-transmissíveis; 15. Realização de avaliações econômicas de tecnologias em saúde; 16. Mensuração dos custos de procedimentos em saúde para subsidiar decisões sobre reajustes das tabelas de procedimentos do SUS; 17. Avaliação do impacto orçamentário de reajustes das tabelas de procedimentos do SUS; 18. Realização de estudos sobre as experiências de sistemas de saúde que se assemelham ao SUS para orientar reestruturações administrativas, no sentido da consolidação do atendimento universal e integral; 19. Mensuração do impacto das políticas de saneamento, educação, habitação, segurança pública e do trânsito na saúde; 20. Avaliação do impacto econômico de políticas de prevenção versus tratamento e recuperação da saúde, inclusive na perspectiva da melhora do ganho de bem estar social; 21. Capacitação de gestores e profissionais da saúde para o uso de ferramentas da economia de saúde na gestão do SUS; 22. Divulgação de estudos e o tema economia da saúde para subsidiar a tomada de decisão na formulação e implementação das políticas de saúde; 23. Assessoria à direção do departamento nos temas relacionados à economia da saúde. http://portal.saude.gov.br/portal/saude/profissional/visualizar_texto.cfm?idtxt=27910 acesso em 21 de agosto de 2011.

25 Inserido neste cenário, o contexto sócio-sanitário brasileiro apresenta inúmeros desafios à configuração de políticas e prestação de serviços de saúde pública. Esses envolvem a necessidade de expansão da oferta e da cobertura de serviços, incorporação de novas tecnologias e adoção de mecanismos de monitoramento e avaliação da qualidade da assistência. Em termos assistenciais, importantes avanços foram feitos nas últimas décadas na prevenção, no diagnóstico, na avaliação e no manejo de diversas condições de saúde. O que parecia impossível há alguns anos, atualmente é realidade científica, p. e., indivíduos com aids em 1991 tinham uma expectativa média de cinco meses de vida, e em 2004 estes valores chegam a 58 meses (GOTLIEB; CASTILHO; BUCHALLA, 2002). Felizmente, isto é possível devido a uma combinação de fatores que incluem inúmeras descobertas nas áreas de pesquisa básica, experimental, clínica e de saúde pública, culminando na detecção precoce dos indivíduos doentes, desenvolvimento e uso de medicamentos que comprovadamente retardam o avanço da doença e reduzem a carga de morbidade. Para esta condição, atualmente são necessárias combinações de fármacos de uso regular, vários

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economia para a saúde, sobretudo em razão da necessidade de otimização

dos recursos finitos e da racionalização da utilização para obtenção dos

melhores resultados para toda a população. Nesse estudo foram apresentadas

experiências de outros países do mundo que também adotaram estudos

econômicos prévios para determinar a inserção de um novo medicamento na

lista de produtos distribuídos gratuitamente à população. A Austrália foi um dos

países a implantar esse sistema e, embora muito criticado por atrasar a

implantação de novas possibilidades de tratamento medicamentoso, os

estudos demonstraram que, em longo prazo, o resultado foi positivo porque

houve decréscimo ou estabilização dos preços dos medicamentos adquiridos

pelo governo para serem distribuídos gratuitamente para a população.

Canadá e Estados Unidos também tem experiências em economia da saúde

que são relatados nesse estudo do Ministério da Saúde do Brasil.

O IPEA – Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas também realiza

estudos na área de economia da saúde.

No âmbito privado existem instituições internacionais dedicadas a estudos

sobre economia da saúde como a Sociedade Internacional de

medicamentos preventivos, além do acompanhamento médico e de equipes multidisciplinares. Apesar da cura não ter sido alcançada, novas terapias têm sido constantemente testadas neste cenário. Para profissionais de saúde surge a questão rotineira: o novo medicamento deve ou não ser disponibilizado? Qual o benefício real, quanto custa, há recursos para sua implementação, existem alternativas e como se comparam? As respostas a estas questões têm sido foco de programas mundiais envolvendo a prestação de serviço em saúde ao redor do mundo. O novo paradigma da prática sanitária cada vez mais

preconiza a adoção de conceitos de Medicina Baseada em Evidência para a tomada de decisão. Embora o processo decisório seja complexo e inúmeros fatores técnicos, políticos, sociais, culturais e éticos estejam envolvidos, é unânime e crescente o emprego de evidências clínicoepidemiológicas para auxiliar no processo de decisão. Estabelecer se uma nova terapia é eficaz e efetiva depende da existência de comprovação adequada conduzida sob determinados padrões metodológicos. Entretanto, estabelecer a efetividade é apenas um dos componentes do processo decisório sobre ações no sistema de atenção à saúde. É de conhecimento que os recursos financeiros no setor são findáveis; a alocação de verbas no setor Saúde em termos relativos não teve incrementos significativos nos últimos anos, embora as necessidades e demandas cresçam exponencialmente. Deste modo, na maioria das vezes, o emprego de recursos em uma nova tecnologia significa restrição de recursos de outra área. À medida que a responsabilidade e demanda pelo sistema de saúde público têm aumentado e os recursos se tornado cada vez mais escassos, o sistema de saúde, assim como a prática da Medicina, têm sido forçados a reexaminar os benefícios e custos de suas ações para assegurar que haja uma implementação efetiva das intervenções e alocação eficiente de recursos. As análises econômicas são ferramentas básicas para atender a esse objetivo. Esse fascículo parte de uma série editada pelo Ministério da Saúde, é dedicado a este aspecto do processo de decisão.

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Farmacoeconomia e Pesquisa de Desfechos (ISPOR), que tem uma unidade

no Brasil.

Também existe a Associação Brasileira de Economia da Saúde, fundada em

1989, com o objetivo de congregar técnicos, docentes e outros profissionais

com interesse na área da economia da saúde e, nesse campo, contribuir para o

desenvolvimento, a difusão e a aplicação de técnicas, métodos e

conhecimentos. Promove encontros científicos, financia programas de

capacitação e projetos de pesquisa e de cooperação com instituições

internacionais que se dedicam aos mesmos objetivos.

Cursos de pós-graduação, especialização e publicações específicas sobre o

assunto, jornais e livros principalmente, surgiram em grande número nos

últimos anos, evidenciando que o tema ganha destaque na área dos estudos e

pesquisas de saúde.

NELSON TEICH26 esclarece:

[...] economia é uma ciência que estuda as escolhas sobre alocação de recursos

escassos. Ela pode nos ajudar a entender como e porque os recursos são

alocados nas diferentes atividades, quais os racionais que levaram a tais

alocações e como elas deveriam ter sido feitas de forma a maximizar os

benefícios para as pessoas e para a sociedade com os recursos disponíveis.[...]

Talvez a maior contribuição da economia da saúde para os sistemas de saúde e

principalmente para as pessoas, seja trazer a discussão dos cuidados em saúde

para uma esfera mais técnica. Não se trata de tentar dar valor à vida, mas sim de

entender através de números e métricas o real benefício para as pessoas do que

é oferecido a elas pelo sistema de saúde.

Entender a importância da educação, dos níveis de remuneração, dos fatores

ambientais e genéticos no nível da saúde das pessoas e da sociedade é

fundamental. Com esse tipo de informação vamos poder definir onde e como

alocar recursos, que sempre serão escassos quando comparados aos que

gostaríamos de ter para investir simultaneamente em diferentes áreas da

sociedade.

O assunto é polêmico e provoca incontáveis reações entre os envolvidos:

médicos, gestores públicos e privados, pacientes, indústria de fármacos e de

26 Obra citada, p. 35-57

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produtos de saúde, operadoras de saúde suplementar, políticos que se

dedicam ao tema da saúde, Judiciário, advogados, entre tantos outros.

Para alguns, saúde e economia são áreas do conhecimento que não podem

caminhar juntas porque não se restringem esforços para salvar uma vida. Para

outros, saúde e economia já caminham juntas porque os médicos e gestores

estão sensíveis aos avanços tecnológicos e aos apelos incessantes do

mercado de produtos farmacêuticos e de produtos para a área médica. Para

muitos, por fim, é urgente repensar os conceitos que nos trouxeram até esta

fase da história da humanidade, e introduzir novas perspectivas de reflexão

sobre alocação de recursos na saúde.

O que se pode constatar é que o conceito de saúde na atualidade não é

construído pelos médicos apenas a partir de dados clínicos e resultantes do

estudo e da experiência do médico: há uma pressão externa de mercado

presente de forma permanente, tanto na saúde pública como na saúde privada,

e que, por vezes, remete o paciente para o Judiciário, amparado em uma

prescrição de tratamento prescrita por seu médico, para tentar obter por

sentença ou por decisão liminar os meios necessários e não providos nos

âmbitos público ou privado.

Por vezes os recursos buscados no Judiciário são para tratamentos ainda em

fase experimental ou para medicamentos ainda não autorizados pela Agência

Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Outras vezes são para obtenção de

recursos para tratamentos no exterior, ou continuidade de tratamento

quimioterápico para pacientes em estágio avançado da doença e para os quais

não há perspectiva de cura. Existem ainda os pedidos para obtenção de

próteses ou órteses de determinado fabricante estrangeiro, supostamente mais

eficientes do que as de fabricação nacional.

Esses casos em que é possível uma discussão sobre a pertinência do pedido

ocorrem concomitantemente a outros em que a solicitação é flagrantemente

justa, como acontece nos pedidos de fornecimento de medicamentos de uso

continuado para pacientes crônicos de hipertensão arterial ou diabetes, por

exemplo.

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Todos esses casos colocados perante o Poder Judiciário atestam de forma

clara que o debate sobre saúde adquiriu novos participantes, não se

restringindo mais apenas aos médicos. O ponto central é propiciar ao Judiciário

que participe desse debate em igualdade de condições ou, pelo menos, em

condições de melhor compreensão do conceito de saúde, do ato médico, das

prescrições e tratamentos e da incorporação de novas tecnologias e

medicamentos.

O Conselho Nacional de Justiça ingressou no debate a partir da Resolução n.

10727, que instituiu o Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento das

demandas de assistência à saúde.

27 Resolução nº 107, de 06 de abril de 2010. Institui o Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento e resolução das demandas de assistência à saúde. (Publicada no DJ-e nº 61/2010, em 07/04/2010, p. 6-9). RESOLUÇÃO Nº 107, DE 6 ABRIL DE 2010 Institui o Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento e resolução das demandas de assistência à saúde O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, no uso de suas atribuições constitucionais e regimentais, e, CONSIDERANDO o elevado número e a ampla diversidade dos litígios referentes ao direito à saúde, bem como o forte impacto dos dispêndios decorrentes sobre os orçamentos públicos; CONSIDERANDO os resultados coletados na audiência pública nº 04, realizada pelo Supremo Tribunal Federal para debater as questões relativas às demandas judiciais que objetivam prestações de saúde; CONSIDERANDO o que dispõe a Recomendação nº 31 do Conselho Nacional de Justiça, de 30 de março de 2010; CONSIDERANDO o deliberado pelo Plenário do Conselho Nacional de Justiça na 102ª Sessão Ordinária, realizada em 6 de abril de 2010, nos autos do ATO 0002243-92.2010.2.00.0000; R E S O L V E : Art. 1º Fica instituído, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, o Fórum Nacional para o monitoramento e resolução das demandas de assistência à saúde, com a atribuição de elaborar estudos e propor medidas concretas e normativas para o aperfeiçoamento de procedimentos, o reforço à efetividade dos processos judiciais e à prevenção de novos conflitos. Art. 2º Caberá ao Fórum Nacional: I - o monitoramento das ações judiciais que envolvam prestações de assistência à saúde, como o fornecimento de medicamentos, produtos ou insumos em geral, tratamentos e disponibilização de leitos hospitalares; II - o monitoramento das ações judiciais relativas ao Sistema Único de Saúde; III - a proposição de medidas concretas e normativas voltadas à otimização de rotinas processuais, à organização e estruturação de unidades judiciárias especializadas; IV - a proposição de medidas concretas e normativas voltadas à prevenção de conflitos judiciais e à definição de estratégias nas questões de direito sanitário; V - o estudo e a proposição de outras medidas consideradas pertinentes ao cumprimento do objetivo do Fórum Nacional. Art. 3º No âmbito do Fórum Nacional serão instituídos comitês executivos, sob a coordenação de magistrados indicados pela Presidência e/ou pela Corregedoria Nacional de Justiça, para coordenar e executar as ações de natureza específica, que forem consideradas relevantes, a partir dos objetivos do artigo anterior. Parágrafo único. Os relatórios de atividades do Fórum deverão ser apresentados ao Plenário do CNJ semestralmente.

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Em 30 de março de 2010 a Resolução 3128 recomendou aos Tribunais a

adoção de medidas visando a melhor subsidiar os magistrados e demais

Art. 4º O Fórum Nacional será integrado por magistrados atuantes em unidades jurisdicionais, especializadas ou não, que tratem de temas relacionados ao objeto de sua atuação, podendo contar com o auxílio de autoridades e especialistas com atuação nas áreas correlatas, especialmente do Conselho Nacional do Ministério Público, do Ministério Público Federal, dos Estados e do Distrito Federal, das Defensorias Públicas, da Ordem dos Advogados do Brasil, de universidades e outras instituições de pesquisa. Art. 5º Para dotar o Fórum Nacional dos meios necessários ao fiel desempenho de suas atribuições, o Conselho Nacional de Justiça poderá firmar termos de acordo de cooperação técnica ou convênios com órgãos e entidades públicas e privadas, cuja atuação institucional esteja voltada à busca de solução dos conflitos já mencionados precedentemente. Art. 6º O Fórum Nacional será coordenado pelos Conselheiros integrantes da Comissão de Relacionamento Institucional e Comunicação. Art. 7º Caberá ao Fórum Nacional, em sua primeira reunião, a elaboração de seu programa de trabalho e cronograma de atividades. Art. 8º As reuniões periódicas dos integrantes do Fórum Nacional poderão adotar o sistema de videoconferência, prioritariamente. Art. 9º Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação. Ministro GILMAR MENDES 28 Recomendação nº 31, de 30 de março de 2010 Recomenda aos Tribunais a adoção de medidas visando a melhor subsidiar os magistrados e demais operadores do direito, para assegurar maior eficiência na solução das demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde. (Publicado no DJ-e nº 61/2010, em 07/04/2010, p. 4-6) RECOMENDAÇÃO Nº 31, DE 30 DE MARÇO DE 2010 Recomenda aos Tribunais a adoção de medidas visando a melhor subsidiar os magistrados e demais operadores do direito, para assegurar maior eficiência na solução das demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde. O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA - CNJ, no uso de suas atribuições, e CONSIDERANDO o grande número de demandas envolvendo a assistência à saúde em tramitação no Poder Judiciário brasileiro e o representativo dispêndio de recursos públicos decorrente desses processos judiciais; CONSIDERANDO a relevância dessa matéria para a garantia de uma vida digna à população brasileira; CONSIDERANDO que ficou constatada na Audiência Pública nº 4, realizada pelo Supremo Tribunal Federal para discutir as questões relativas às demandas judiciais que objetivam o fornecimento de prestações de saúde, a carência de informações clínicas prestadas aos magistrados a respeito dos problemas de saúde enfrentados pelos autores dessas demandas; CONSIDERANDO que os medicamentos e tratamentos utilizados no Brasil dependem de prévia aprovação pela ANVISA, na forma do art. 12 da Lei 6.360/76 c/c a Lei 9.782/99, as quais objetivam garantir a saúde dos usuários contra práticas com resultados ainda não comprovados ou mesmo contra aquelas que possam ser prejudiciais aos pacientes; CONSIDERANDO as reiteradas reivindicações dos gestores para que sejam ouvidos antes da concessão de provimentos judiciais de urgência e a necessidade de prestigiar sua capacidade gerencial, as políticas públicas existentes e a organização do sistema público de saúde; CONSIDERANDO a menção, realizada na audiência pública nº 04, à prática de alguns laboratórios no sentido de não assistir os pacientes envolvidos em pesquisas experimentais, depois de finalizada a experiência, bem como a vedação do item III.3, "p", da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde; CONSIDERANDO que, na mesma audiência, diversas autoridades e especialistas, tanto da área médica quanto da jurídica, manifestaram-se acerca de decisões judiciais que versam sobre políticas públicas existentes, assim como a necessidade de assegurar a sustentabilidade e gerenciamento do SUS; CONSIDERANDO, finalmente, indicação formulada pelo grupo de trabalho designado, através da Portaria nº 650, de 20 de novembro de 2009, do Ministro Presidente do Conselho

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operadores do Direito, para assegurar maior eficiência na solução das

demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde.

Foi recomendada a realização de seminários para estudo e

mobilização na área da saúde com a presença de magistrados, membros do

Ministério Público e gestores, para propiciar melhor entrosamento sobre a

matéria.

Também recomenda o Conselho Nacional de Justiça que o Direito sanitário

seja incorporado como disciplina nos cursos de formação, vitaliciamento e

aperfeiçoamento de magistrados. Nacional de Justiça, para proceder a estudos e propor medidas que visem a aperfeiçoar a prestação jurisdicional em matéria de assistência à saúde; CONSIDERANDO a decisão plenária da 101ª Sessão Ordinária do dia 23 de março de 2010 deste E. Conselho Nacional de Justiça, exarada nos autos do Ato nº 0001954-62.2010.2.00.0000; RESOLVE: I. Recomendar aos Tribunais de Justiça dos Estados e aos Tribunais Regionais Federais que: a) até dezembro de 2010 celebrem convênios que objetivem disponibilizar apoio técnico composto por médicos e farmacêuticos para auxiliar os magistrados na formação de um juízo de valor quanto à apreciação das questões clínicas apresentadas pelas partes das ações relativas à saúde, observadas as peculiaridades regionais; b) orientem, através das suas corregedorias, aos magistrados vinculados, que: b.1) procurem instruir as ações, tanto quanto possível, com relatórios médicos, com descrição da doença, inclusive CID, contendo prescrição de medicamentos, com denominação genérica ou princípio ativo, produtos, órteses, próteses e insumos em geral, com posologia exata; b.2) evitem autorizar o fornecimento de medicamentos ainda não registrados pela ANVISA, ou em fase experimental, ressalvadas as exceções expressamente previstas em lei; b.3) ouçam, quando possível, preferencialmente por meio eletrônico, os gestores, antes da apreciação de medidas de urgência; b.4) verifiquem, junto à Comissão Nacional de Ética em Pesquisas (CONEP), se os requerentes fazem parte de programas de pesquisa experimental dos laboratórios, caso em que estes devem assumir a continuidade do tratamento; b.5) determinem, no momento da concessão de medida abrangida por política pública existente, a inscrição do beneficiário nos respectivos programas; c) incluam a legislação relativa ao direito sanitário como matéria individualizada no programa de direito administrativo dos respectivos concursos para ingresso na carreira da magistratura, de acordo com a relação mínima de disciplinas estabelecida pela Resolução 75/2009 do Conselho Nacional de Justiça; d) promovam, para fins de conhecimento prático de funcionamento, visitas dos magistrados aos Conselhos Municipais e Estaduais de Saúde, bem como às unidades de saúde pública ou conveniadas ao SUS, dispensários de medicamentos e a hospitais habilitados em Oncologia como Unidade de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia - UNACON ou Centro de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia - CACON; II. Recomendar à Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM, à Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho - ENAMAT e às Escolas de Magistratura Federais e Estaduais que: a) incorporem o direito sanitário nos programas dos cursos de formação, vitaliciamento e aperfeiçoamento de magistrados; b) promovam a realização de seminários para estudo e mobilização na área da saúde, congregando magistrados, membros do ministério público e gestores, no sentido de propiciar maior entrosamento sobre a matéria; Publique-se e encaminhe-se cópia desta Recomendação a todos os Tribunais. Ministro GILMAR MENDES

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Além desses esforços, o Conselho Nacional de Justiça realizou encontros

nacionais sobre o tema e publicou uma obra com a participação de todos os

palestrantes convidados para o primeiro encontro nacional.

O debate sobre a saúde e o acesso aos meios de prevenção e tratamento se

alargou muito na última década no Brasil, incorporou novos participantes e

colocou o médico, os gestores e todos os envolvidos no processo em um

cenário em que saúde, Direito e economia transitam em conjunto.

2. A saúde pública no Brasil

2.1. A Constituição de 1988 – expectativas e propos tas na área da saúde pública.

No imaginário de grande parte da população brasileira a Constituição Federal

de 1988 teria o condão de, por si só, determinar os caminhos necessários para

a efetividade do Estado Democrático de Direito, garantindo a todos a garantia

dos direitos individuais e sociais necessários para o bem-estar de toda a

nação.

Mas desde o início dos trabalhos da Subcomissão de Saúde, Segurança e

Meio Ambiente ficou claro que o tema da saúde, assim como nenhum outro

direito social, seria tratado sem conflitos no âmbito da Assembleia Nacional

Constituinte, que congregava forças sociais com múltiplas ideologias e

interesses políticos diversificados.

A 8° Conferência Nacional de Saúde, realizada no pe ríodo de 17 a 21 de março

de 1986, em Brasília, cumpriu o papel de iniciar um amplo debate sobre a

saúde pública, resgatando, conforme consta de seus anais, o papel doutrinário

que antes fora realizado na 3ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em

1963. Era o resgate do debate democrático em torno da questão da saúde,

impossível de ser praticado no período de 63 a 86 em razão da ditadura militar

instalada no País em 01 de abril de 1964.

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A Dra. CARMEN BARROSO29, atuando como debatedora na 8ª Conferência

Nacional de Saúde, afirmou:

O direito à saúde implica no direito a participar ativamente da formulação

de políticas de saúde. E se vamos ultrapassar o nível da retórica vazia,

que repete inúmeras boas intenções sem jamais concretizá-las, ou seja, se

há realmente a vontade política de democratizar a saúde, esta

Confer6encia não pode terminar sem medidas concretas e imediatas para

combater a quase total ausência de mulheres na definição de políticas de

saúde.

SERGIO AROUCA30, que proferiu palestra na 8ª Conferência Nacional de Saúde,

realizada de 17 a 21 de março de 1986, propunha o debate com a comunidade

como forma eficaz de encontrar mecanismos de mudança para a saúde pública

no Brasil.

Para que não houvesse nenhuma mudança durante o ano de 1985 – e essa idéia

foi muito importante –, surgiu uma crítica bastante séria de que o conjunto das

propostas em que estava baseada a reformulação do sistema de saúde ainda não

havia sido debatido o suficiente com a sociedade brasileira e que qualquer

mudança no sistema de saúde não podia ser feita simplesmente por uma lei.

Tinha que haver uma mudança a partir do instante que existisse uma consciência

nacional tão profunda, tão séria, que se transformasse em desejo político, num

desejo político irreversível, eu diria quase que suprapartidário, que levasse à

noção de que o sistema de saúde brasileiro tem que ser mudado.

JAIRNILSON SILVA PAIM31, em palestra proferida na 8ª Conferência Nacional de

Saúde, colocou em pauta o debate sobre a saúde como um conceito social,

quando afirmou

[...] é possível resgatar a ideia do direito à saúde como noção básica para a

formulação de políticas. Esta se justifica à medida em que não se confunda o

29 BARROSO, Carmen. Anais da 8ª Conferência Nacional de Saúde, p. 166. http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/area.cfm?id_area=1124. Acesso em 20/07/2010. 30 AROUCA, Sérgio. Anais da 8ª Conferência Nacional de Saúde, p. 38-39. Disponível em http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/area.cfm?id_area=1124, acessado em 20 de julho de 2010. 31 PAIM, Jairnilson Silva. Anais da 8ª Conferência Nacional de Saúde, p.46-47, Disponível em http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/area.cfm?id_area=1124, acessado em 20 de julho de 2010.

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direito à saúde com o direito aos serviços de saúde ou mesmo com o direito à

assistência médica.

Esta ambiguidade também se faz presente na expressão “necessidade de saúde”,

quando se procede um deslocamento da questão da dimensão do estado de

saúde para a questão dos serviços. Tem o sentido de ocultar as condições

necessárias para a obtenção da saúde, permitindo “considerar-se a assistência

médica como o principal fator determinante do nível de saúde.”

A saúde, independentemente de qualquer definição idealista que lhe possa ser

atribuída, é produto de condições objetivas de existência. Resulta das condições

de vida – biológica, social e cultural – e, particularmente, das relações que os

homens estabelecem entre si e com a natureza, através do trabalho. Portanto, é

através das relações sociais de produção que se erguem as formas concretas de

vida social. E o estado de saúde corresponde a uma das revelações dessas

formas de vida, isto é, “um modo de andar a vida”.

Nesse contexto, promover saúde implica em conhecer como se apresentam as

condições de vida e de trabalho na sociedade, para que seja possível intervir

socialmente na sua modificação, enquanto que respeitar o direito à saúde significa

mudanças na organização econômica determinante das condições de vida e

trabalho insalubres e na estrutura jurídico-política perpetuadora de desigualdades

de distribuição de bens e serviços.

O professor JAIRNILSON PAIM, da Universidade Federal da Bahia,

coloca em sua palestra uma importante dimensão da reflexão sobre saúde,

deslocando o foco do acesso a serviços de saúde para a ação mais incisiva na

prevenção, compreendida esta não apenas em relação ao corpo de cada

indivíduo, mas principalmente em relação às suas condições de vida, materiais

e sociais. Esse enfoque proposto pelo mencionado professor é fundamental no

debate contemporâneo de acesso à saúde, que trata muito mais do acesso a

hospitais, tratamentos e medicamentos do que das condições de vida da

população que depende exclusivamente da estrutura da saúde pública no

Brasil.

E nessa medida, defende Jairnilson Paim32 que

[...] as políticas sociais de uma república que se quer verdadeiramente nova

deverá ampliar os canais para a democratização da saúde, de modo que os

32 Texto citado, p. 54.

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indigentes de ontem e os consumidores de hoje possam amanhã, enquanto

cidadãos, lutar pelos seus direitos e organizar-se politicamente para conquistá-los.

A 8ª Conferência Nacional de Saúde apresentou contradições que igualmente

se encontram presentes no debate contemporâneo sobre a saúde pública no

Brasil. De um lado, o professor JOSÉ GERALDO DE SOUSA JÚNIOR, às fls. 67 dos

Anais, afirmava que era imprescindível à garantia da saúde da população a

definição de instrumentos de participação das organizações populares na

fixação de diretrizes de planificação, assim como a participação popular na

administração da Justiça, com tribunais populares e assessoria técnica para

julgamento de questões determinadas, como moradia, meio ambiente e

consumo, entre outras.

De outro lado e na mesma Conferência, às fls. 73 dos Anais, HÉLIO PEREIRA

DIAS, então assistente jurídico do Ministério da Saúde, já defendia que “(...) a

saúde dos habitantes deveria constituir, também, matéria de tutela estatal

como direito subjetivo daqueles que seriam seus legítimos titulares”.

A tensão entre a efetividade do direito à saúde (como direito subjetivo a ser

obtido também por uma sentença judicial) e a efetividade por meio de amplo

debate com a sociedade organizada (a quem incumbe decidir as prioridades na

área da saúde pública) é ainda presente no cenário jurídico-político

contemporâneo, e objeto de reflexão desta pesquisa.

Em sua participação na 8ª Conferência Nacional de Saúde Pública, a

professora SONIA MARIA FLEURY TEIXEIRA33, da Escola Brasileira de

Administração Pública Getúlio Vargas e da Escola Nacional de Saúde Pública

da Fundação Oswaldo Cruz, p. 91 dos Anais, destaca que o regime autoritário

iniciado em 1964 rompeu com o populismo “(...) no qual as demandas sociais

emergentes face ao processo de industrialização e urbanização foram

canalizadas através de instrumentos corporativos de cooptação das massas

populares, colocadas na condição de suporte legitimador de um Estado

33 TEIXEIRA, Sonia Maria Fleury. Anais da 8ª Conferência Nacional de Saúde, p.91, http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/area.cfm?id_area=1124. Consultado em 20 de julho de 2010.

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autoritário, representante dos interesses de um amplo compromisso entre as

diferentes frações da elite dominante.”

E continua a professora FLEURY TEIXEIRA34:

Embora esta trajetória histórica dirija-se para – nos limites do processo de

acumulação e da luta de classes – absorver as demandas sociais, consolidando-

se em ganhos substantivos em termos de justiça social, não deu origem ao

desenvolvimento da cidadania enquanto mediação precípua entre o Estado

democrático e o conjunto de indivíduos pertencentes à nação.

A inserção das classes populares urbanas no populismo se deu sempre de forma

corporativa, fragmentada em função do poder de barganha de cada categoria

funcional, inconsciente sobre a ausência política imposta aos camponeses, de tal

forma que as conquistas sociais alcançadas conformaram-se melhor como

privilégios setoriais do que como direitos universais dos cidadãos.

O debate em torno da participação popular ou do exercício da cidadania –

compreendida como direito de participar de todas as decisões políticas e de

orientar a atividade estatal em benefício do interesse público – foi o centro das

preocupações e propostas da 8º Conferência Nacional de Saúde, realizada

pouco antes da instalação da Assembleia Nacional Constituinte.

Quase todas as palestras e painéis enfatizaram, em alguma medida, a

importância da participação popular na escolha das políticas sociais de saúde e

na fiscalização da aplicação e dos resultados dessas políticas. A ideia de

“construir juntos” (Estado e cidadãos) uma saúde pública de melhor qualidade

para a população brasileira norteou os debates da 8ª Conferência e migrou

para o interior da Subcomissão de Saúde, Segurança e Meio Ambiente da

Assembleia Nacional Constituinte.

Estava criado o ambiente político e jurídico para a inserção da saúde na

Constituição Federal de 1988 da forma como efetivamente ocorreu.

2.2. O direito à saúde na Constituição Federal de 1988

34 Obra citada, p. 91.

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Nesses vinte e três anos de história da Constituição Federal e de seu

expressivo número de Emendas Constitucionais, a população brasileira tem se

dado conta de que os projetos políticos e sociais abrigados pela Carta

Constitucional não foram suficientes para fazer o País atingir a igualdade de

tratamento para todos os cidadãos, a diminuição das desigualdades sociais e,

consequentemente, o acesso aos direitos individuais e sociais.

A falta de políticas mais claras de distribuição de renda, de acesso à educação

e saúde públicas de boa qualidade, de pleno emprego, de financiamentos que

permitam a aquisição de moradia, além das dificuldades econômicas com a

inflação e o desemprego enfrentados em boa parte dos anos de vigência da

Constituição Federal, criaram na população brasileira certa descrença quanto

aos seus direitos sociais, embora seus direitos políticos estejam plenamente

materializados com sucessivas eleições ocorrendo, de forma sistemática e

ininterrupta a cada dois anos, para todos os postos legislativos e executivos.

Mas a Constituição Federal de 1988, no âmbito do elenco de direitos e

garantias individuais e coletivos e de direitos sociais, cumpriu integralmente

seu papel, consignando no texto todos os direitos fundamentais para a garantia

da dignidade da pessoa humana nas múltiplas variáveis que essa garantia

pode assumir em nossos dias.

Assim, no Título II da Constituição Federal estão os Direitos e Garantias

Fundamentais divididos em cinco capítulos: Direitos e Deveres Individuais e

Coletivos; Direitos Sociais; Nacionalidade; Direitos Políticos e Partidos

Políticos.

Direitos e deveres individuais e coletivos (capítulo I) e Direitos Sociais (capítulo

II) são, portanto, parte dos direitos e garantias fundamentais da Constituição

Federal.

O artigo 5° estabelece a igualdade entre todos os b rasileiros e estrangeiros

residentes no País e a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade,

à segurança e à propriedade, nos termos que são definidos em seus setenta e

oito incisos.

O parágrafo primeiro do artigo 5° determina que as normas definidoras dos

direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Não há indicativo de

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que sejam de aplicação imediata apenas os direitos e deveres individuais e

coletivos previstos no caput do artigo, mas sim os direitos e garantias

fundamentais. Disso decorre, na atualidade, o argumento de que o direito à

saúde é de aplicação imediata porque contemplado no Título II (Direitos e

Garantias Fundamentais). Essa reflexão será enfrentada no capítulo III deste

trabalho.

O parágrafo segundo do artigo 5º determina: “Os direitos e garantias expressos

nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios

por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República

Federativa seja parte.”

E o parágrafo 3º do mesmo artigo, com redação dada pela Emenda

Constitucional nº 45, de 2004, que o inseriu na Constituição Federal, completa

a previsão, determinando que os tratados e convenções internacionais sobre

direitos humanos que forem aprovados em cada Casa do Congresso Nacional,

em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão

equivalentes às emendas constitucionais.

Os três parágrafos estão no artigo 5°, mas não nece ssariamente se referem

apenas aos direitos previstos naquele artigo, estando sinalizado, pela própria

redação, que seus efeitos se irradiam para todo o ordenamento constitucional,

abrangendo outros direitos fundamentais ali expressamente não contemplados,

como, por exemplo, o direito à saúde.

O artigo 6°, com redação determinada pela Emenda Co nstitucional 26, de

2000, determina:

São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a

segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a

assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Na redação original o artigo 6° determinava

São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a

previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos

desamparados, na forma desta Constituição.

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O direito à moradia foi constitucionalizado em 14 de fevereiro de 2000, quando

a Emenda Constitucional nº 26 foi aprovada.

Comentando o arranjo constitucional dos artigos 5º e 6º da Constituição

Federal, VIDAL SERRANO NUNES JÚNIOR35 afirma:

[...] A Constituição Federal trouxe um conjunto de direitos denominados

fundamentais, de cuja análise deve o intérprete extrair o seu conteúdo essencial,

para, desta forma, entender quais outros direitos que, compartilhando da mesma

natureza, devem ficar abrigados sob a mesma rubrica semântica.

Nesse sentido, a Constituição Federal, ao indicar, em seu art. 1°, inc. III, o

princípio da dignidade humana como fundamento do Estado brasileiro, buscou,

dentre outras coisas, atribuir uma unidade valorativa ao sistema de direitos

fundamentais.

Note-se que a noção de dignidade, a nosso ver, deve ter como parâmetro não só

o indivíduo enquanto tal, mas também enquanto parte da sociedade em que se

integra. [...]

[...] os direitos fundamentais, de um lado, prendem-se ao objetivo de preservação

da liberdade do indivíduo e, de outro, ao objetivo de inseri-lo no contexto social,

quer do ponto de vista político, quer do ponto de vista econômico, o que rende

ensejo à afirmação de que, como membros da sociedade, o indivíduo tem o direito

de partilhar de suas decisões e participar dos resultados dos esforços comuns. [...]

Destarte, quer nos parecer que, analisando o conteúdo dos direitos fundamentais

incorporados ao nosso texto constitucional, podemos delimitar que o critério

material que deles deflui está consubstanciado em três valores caudatários da

dignidade humana: a liberdade, a democracia política e a democracia econômica e

social.

Essa afirmação de VIDAL SERRANO vem ao encontro da reflexão de

BOBBIO36:

[...] o debate atual cada vez mais difuso sobre os direitos do homem – a ponto de

ser colocado na ordem do dia das mais respeitadas assembleias internacionais –

podia ser interpretado como um “sinal premonitório”, talvez o único, de uma

tendência da humanidade, para retomar a expressão kantiana “para melhor”. [...]

35 NUNES JR. Vidal. A Cidadania Social na Constituição de 1988. S.Paulo: Verbatim, 2009, p. 33-34. 36 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 2ª Tiragem. S.Paulo: Elsevier, 2004, p. 221-223.

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[...] a enorme importância do tema dos direitos do homem depende do fato de ele

estar extremamente ligado aos dois problemas fundamentais do nosso tempo, a

democracia e a paz. O reconhecimento e a proteção dos direitos do home são a

base das constituições democráticas e, ao mesmo tempo, a paz é o pressuposto

necessário para a proteção efetiva dos direitos do homem em cada Estado e no

sistema internacional.

Sem discordar, mas apresentando outro viés possível para a reflexão,

BERCOVICI37 afirma sobre a Constituição brasileira de 88:

O sentido de Constituição dirigente no Brasil está vinculado, na minha visão, à

concepção da Constituição como um projeto de construção nacional. A

constituição tem vários significados e funções, como bem demonstrou a exposição

célebre de Hans Peter Scheneider. Dentre estas, no entanto, merece destaque a

visão, fundada em Rudolf Smend, da constituição como um símbolo da unidade

nacional. Herbert Krüger vai além, e entende a constituição como um projeto de

integração nacional, o que, no nosso caso, seria interessante para compreender a

ideia de constituição como um projeto nacional de desenvolvimento. Uma hipótese

de trabalho seria a de tentar entender se os Estados que buscam terminar a sua

construção nacional, como o Brasil, acabam adotando a ideia de constituição

como um plano de transformações sociais e do Estado, fundada na visão de um

projeto nacional de desenvolvimento. Esta hipótese poderia explicar a concepção

de constituição adotada dirigente adotada pela Assembleia Nacional Constituinte

de 1987-1988. E o corolário disto seria a visão de que a crise constituinte

brasileira seria superada com o cumprimento do projeto constitucional de 1988,

que concluiria a construção da nação.

[...] enquanto pretensão de constitucionalizar tudo, portanto, constitucionalizando,

na prática, o nada, a constituição dirigente não faz sentido. Acaba se tornando

uma teoria constitucional esvaziada da política e do Estado, portanto, estéril. No

entanto, ela faz sentido enquanto projeto emancipatório, que inclui expressamente

no texto constitucional as tarefas que o povo brasileiro entende como

absolutamente necessárias para a superação do subdesenvolvimento e conclusão

da construção da Nação, e que não foram concluídas. Enquanto projeto nacional e

como denúncia desta não realização dos anseios da soberania popular no Brasil,

ainda faz sentido falar em constituição dirigente.

37 BERCOVICI, Gilberto. “Ainda Faz Sentido a Constituição Dirigente?” In: 20 Anos de Constitucionalismo Democrático – E Agora? Porto Alegre-Belo Horizonte: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2008, p.158-159.

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É na perspectiva de BERCOVICI que este trabalho reflete sobre a forma como a

saúde foi tratada na Constituição Federal de 88, no Brasil, na perspectiva da

promessa ainda não cumprida da soberania popular que esteve presente no

debate que antecedeu a formação da Assembleia Nacional Constituinte e

também na própria Constituinte, conforme tratado no capítulo anterior.

Essa ausência de soberania popular ou de participação popular mais efetiva e

aguda na deliberação dos destinos da saúde afasta a dimensão política do

Direito e atribui a este a missão de solucionar os problemas de carência e de

injusta distribuição de acesso a direitos sociais, papel que o Direito não pode

exercer sozinho numa República e que sequer se pode atribuir a ele como

destino histórico.

A “Era dos Direitos”38 como se referiu BOBBIO, ou a importância dos valores

caudatários da dignidade humana, como afirmou VIDAL SERRANO NUNES, não

pode afastar a realidade preconizada por BERCOVICI: a Constituição dirigente

não pode tudo.

É nessa perspectiva crítica que esta pesquisa analisa a organização que a

Constituição Federal deu ao tema da saúde, e os mecanismos criados para

sustentar esse projeto de saúde para todos.

2.3. O direito à saúde como seguridade social

No Título VIII, a Constituição Federal de 88 vai tratar da Ordem Social; e o

Capítulo I, com apenas um artigo, o 193, determina: “A ordem social tem como

base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.”

No Capítulo II, da Seguridade Social, Seção I, o legislador constituinte tratou da

definição e do custeio da seguridade social, definindo desde logo a origem dos

recursos destinados a esse objetivo.

A definição de seguridade social adotada pela Constituição Federal de 1988 é

“(...) o conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da 38 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. R.de Janeiro:Elsevier, 2004.

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sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência

e à assistência social.”

E o parágrafo único fixa os objetivos.39

Em seguida, a Constituição Federal de 88 determina que a seguridade social

seja financiada por toda a sociedade, de forma direta ou indireta. E no

parágrafo 2° do artigo 195 prevê que o orçamento da seguridade social será

elaborado de forma integrada pelos órgãos responsáveis pela saúde,

previdência social e assistência social, tendo em vista as metas e prioridades

estabelecidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias, assegurada a cada área a

gestão de seus recursos.

O parágrafo 5° do artigo 195 explicita que nenhum b enefício ou serviço da

seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a

correspondente fonte de custeio total.

No artigo 196, a Constituição Federal de 1988 define a saúde como um direito

de todos e um dever do Estado, que deverá ser garantido por meio de políticas

sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros

agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua

promoção, proteção e recuperação.

O artigo 198, por sua vez, traça as linhas mestras do Sistema Único de Saúde

(SUS), quando determina:

As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e

hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as

seguintes diretrizes:

I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem

prejuízo dos serviços assistenciais;

39 I – universalidade da cobertura e do atendimento; II – uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; III – seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; IV – irredutibilidade do valor dos benefícios; V – equidade na forma de participação do custeio; VI – diversidade da base de financiamento; VII – caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, os empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.

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III - participação da comunidade.

Os três primeiros parágrafos do artigo 198 são dedicados a explicitar de que

forma será feito o custeio do sistema único, detalhando quais os impostos

serão destinados à saúde e os percentuais. Todos os três parágrafos foram

alterados do original pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000.

O artigo 200, por fim, estabelece as atribuições do sistema único de saúde, e a

análise dos VIII incisos do artigo permite compreender que, em boa parte, o

Brasil não adotou as linhas mestras da Organização Mundial de Saúde para

conceituar saúde.

Ao fixar as atribuições do Sistema Único de Saúde, a Constituição Federal se

concentra em aspectos diretamente relacionados com a saúde corporal sem

abordar, de forma mais sistemática, a proteção social e psíquica que, como

vimos, são aspectos fundamentais na definição de saúde da OMS e no debate

travado por especialistas e pelos movimentos sociais antes da Constituinte.

O inciso I determina a atribuição de controle e fiscalização de procedimentos,

produtos e substâncias de interesses para a saúde e a participação na

produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e

outros insumos.

O inciso II trata da execução das ações de vigilância sanitária e epidemiológica,

bem como as de saúde do trabalhador.

O inciso III prevê a necessidade de formação de recursos humanos para a área

da saúde; e o IV, a participação na formulação da política e da execução das

ações de saneamento básico.

No inciso V há previsão para o incremento do desenvolvimento científico e

tecnológico; e no VI, para fiscalização e inspeção de alimentos, inclusive no

tocante a controle do teor nutricional, bem como de bebidas e de água para

consumo humano.

Os incisos VII e VIII tratam, respectivamente, da participação no controle e

fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e

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produtos psicoativos, tóxicos e radioativos e da colaboração na proteção ao

meio ambiente.

É possível constatar que os oito incisos são direcionados quase que

exclusivamente para aspectos voltados para a saúde física, exceção feita à

preocupação com a colaboração na proteção ao meio ambiente.

Criticada por ser uma Constituição muito detalhista que, para muitos

estudiosos, teria tratado de temas que não eram de sua competência

legislativa, a Constituição Federal de 1988, nesse aspecto, poderia ter traçado

com maior vigor as linhas mestras da proteção à saúde, ou seja, de forma mais

ampla, contemplando também os aspectos essenciais discutidos no capítulo

anterior, em especial no que tange ao meio social em que o indivíduo está

inserido e sua relação com a família, o trabalho, o lazer, entre outros.

JOANA DE SOUZA MACHADO40 afirma:

A Constituição brasileira de 1988 é comumente tomada como exemplo de pauta

constitucional alargada, por ter tratado de modo minucioso de assuntos antes

regulados apenas pela legislação infraconstitucional. Trata-se de uma tendência

entre as Constituições mais recentes, promulgadas, sobretudo, nos últimos vinte

anos.

No âmbito da definição de um ideário de saúde a ser construído pelo Estado

com participação de todos os agentes políticos e da sociedade, o texto

constitucional não ampliou os objetivos para a efetividade da qualidade de vida

dos brasileiros, atendo-se, de forma até tímida, a aspectos físicos que

compõem os cuidados com a saúde, mas que a eles não se limitam.

ANDRÉ FEIJÓ BARROSO41 assim leciona a respeito do assunto:

Compreender a saúde de uma forma ampla permite-nos entendê-la como um

processo sistêmico, interdependente de diversos outros fatores e direitos que

constituem “os direitos afins ao direito à saúde”, direitos esses que, no dizer de

40 MACHADO, Joana de Souza. “Protagonismo Judicial no Trato dos Direitos Fundamentais: Reflexões sobre o Des(Arranjo) Brasileiro”. In: Anais do XVIII Congresso Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa em Direito – CONPEDI, Fortaleza, junho de 2010, p.02. 41 BARROSO, André Feijó. Aspectos Relacionados à Efetivação do Direito à Saúde no Brasil através do Poder Judiciário. Disponível em www.leps/ufrj/dowload/andre. Acesso em 28 de agosto de 2010. P. 06

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GERMANO SCHWARTZ (2001), são direitos afins à qualidade de vida, direitos que

influirão no conceito de saúde.

Deixa a saúde de ser um conceito apenas somático e/ou psíquico, e transforma-se

em um processo que tem um objetivo a ser alcançado, que depende de condições

a serem preservadas, tanto sob a ótica do indivíduo, como sob a ótica do

ambiente em que as pessoas estão.

Esse debate é fundamental, porque, na medida em que a saúde a ser

protegida é a saúde física, apartada de todos os outros aspectos sociais

indispensáveis à sua garantia, fica mais fácil exigi-la por meio do custeio

imediato de tratamentos ou medicamentos sem que seja necessário discutir

outros aspectos, como programas de moradia, acesso à educação pública de

qualidade, ações afirmativas que acelerem o processo de inclusão social dos

setores historicamente excluídos da sociedade brasileira, entre outros aspectos

políticos e sociais.

Considerar que a garantia da saúde possa ser efetivada a partir das atribuições

constitucionais do Sistema Único de Saúde é afastar do debate aspectos mais

abrangentes que, se tivessem sido inseridos, poderiam facilitar a compreensão

do papel dos diversos agentes políticos e atores sociais na construção da

saúde pública no Brasil.

A leitura dos artigos 196 a 200 da Constituição Federal não concretiza o

conceito de saúde nem os objetivos mais amplos pretendidos tanto pelos

movimentos sociais como pelos especialistas nos debates anteriores à

Constituinte. Ao contrário, o conceito de saúde e de efetividade de sua

proteção no texto constitucional de 1988 tem menor amplitude, e está focado

nos aspectos eminentemente pragmáticos de garantia de mecanismos de

saúde física.

2.4. A Lei 8.080/90 e o Sistema Único De Saúde

Em 19 de setembro de 1990 entrou em vigor a Lei 8.080, que dispõe sobre as

condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização

e o funcionamento dos serviços correspondentes.

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No artigo 3° está consignado:

Art. 3º A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a

alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a

renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços

essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e

econômica do País.

Parágrafo único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do

disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade

condições de bem-estar físico, mental e social.

O conceito de saúde adotado pela Lei 8.080, de 1990, é mais abrangente que o

da Constituição Federal e se aproxima do sentido proposto pela Organização

Mundial de Saúde que, de certo modo, também é aquele defendido nos

debates que antecederam à Constituinte.

O conceito da Lei 8.080 aponta para a integralidade dos esforços federativos,

tanto no âmbito político como no contexto técnico, mobilizando a sociedade e o

Estado para que busquem a construção de várias políticas sociais interligadas

e interdependentes, no sentido de alcançar qualidade não apenas em saúde,

mas também em moradia, pleno emprego, lazer, educação de qualidade,

transporte coletivo adequado, ou, em uma única expressão, organização social

e econômica eficiente, e com objetivos bem definidos.

Esse programa – de ação conjunta e processual – proposto pela Lei 8.080/90,

é o que melhor se adequava às necessidades que o País tinha naquele

momento histórico e, em grande medida, que continua tendo até hoje.

Ao definir que a saúde é parte de um contexto em que estão incluídos outros

aspectos e em caráter complementar, a lei federal autoriza e incentiva todos os

agentes políticos e sociais a fiscalizarem a implementação de políticas públicas

para garantir que elas atendam a premissa de integração e complementaridade

propostas pelo caput do artigo.

O artigo 196 da Constituição Federal poderia ter recebido essa redação e, com

isso, sinalizado de forma definitiva que no Brasil o acesso a equipamentos de

saúde física, a medicamentos e a tratamentos especializados é apenas parte

da efetividade do direito fundamental à saúde. Outros elementos também

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precisam ser efetivados para que se possa garantir saúde, como moradia,

educação, lazer, e todos os demais citados no artigo 3º da Lei 8.080, de 1990.

O artigo 7º42 da Lei 8080, de 1990, traça os princípios e diretrizes do Sistema

Único de Saúde.

A Lei 8.142, de 28 de dezembro de 1990, regulou a participação da

comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde43.

42 Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios: I - universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; II - integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema; III - preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral; IV - igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie; V - direito à informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde; VI - divulgação de informações quanto ao potencial dos serviços de saúde e a sua utilização pelo usuário;

VII - utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação programática; VIII - participação da comunidade; IX - descentralização político-administrativa, com direção única em cada esfera de governo: a) ênfase na descentralização dos serviços para os municípios; b) regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde; X - integração em nível executivo das ações de saúde, meio ambiente e saneamento básico; XI - conjugação dos recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na prestação de serviços de assistência à saúde da população; XII - capacidade de resolução dos serviços em todos os níveis de assistência; e XIII - organização dos serviços públicos de modo a evitar duplicidade de meios para fins idênticos. 43 Art. 1° O Sistema Único de Saúde (SUS), de que trata a Lei n° 8.080, de 19 de setembro de 1990, contará, em cada esfera de governo, sem prejuízo das funções do Poder Legislativo, com as seguintes instâncias colegiadas: I - a Conferência de Saúde; e II - o Conselho de Saúde. § 1° A Conferência de Saúde reunir-se-á a cada quatro anos com a representação dos vários segmentos sociais, para avaliar a situação de saúde e propor as diretrizes para a formulação da política de saúde nos níveis correspondentes, convocada pelo Poder Executivo ou, extraordinariamente, por esta ou pelo Conselho de Saúde. § 2° O Conselho de Saúde, em caráter permanente e deliberativo, órgão colegiado composto por representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários, atua na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões serão homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera do governo.

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Em 1993 foram criadas as Comissões Intergestores por meio de portarias do

Ministério da Saúde, divididas em Comissão Intergestores Tripartite (CIT),

composta paritariamente por representantes do Ministério da Saúde, da

entidade de representação do conjunto dos secretários estaduais de saúde do

País e da entidade de representação do conjunto dos secretários municipais de

saúde; e a Comissão Intergestores Bipartite, composta paritariamente por

representantes da Secretaria Estadual de Saúde e da entidade de

representação do conjunto dos secretários municipais de saúde do estado.

É importante observar que a participação dos Conselhos Municipais de Saúde

não fica adstrita ao debate teórico em torno de ações e programas de saúde,

mas contempla igualmente a formulação de estratégias e o controle da

execução da política de saúde, inclusive nos aspectos econômicos e

financeiros. É evidente que a homologação das decisões deverá ser feita pelo

chefe do governo municipal, mas os conselhos podem, por força de lei, debater

o uso dos recursos econômicos e financeiros nas políticas públicas de saúde.

O contrário disso seria um Conselho de Saúde alijado do poder de decisão,

restrito a aspectos programáticos, porém sem condições legais de definir

prioridades e estratégias de atuação porque sem acesso a dados referentes

aos recursos econômicos e financeiros destinados à saúde.

Apesar do poder legalmente constituído, a experiência dos Conselhos

Municipais de Saúde no Brasil ainda não se consolidou integralmente no

âmbito de uma participação ativa, independente e, principalmente, com caráter

de fiscalização sistemática das práticas do Poder Executivo municipal na

efetividade dos serviços de saúde para a população.

ANDRÉA VALENTE HEIDRICH44 destaca:

§ 3° O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems) terão representação no Conselho Nacional de Saúde. § 4° A representação dos usuários nos Conselhos de Saúde e Conferências será paritária em relação ao conjunto dos demais segmentos. § 5° As Conferências de Saúde e os Conselhos de Saúde terão sua organização e normas de funcionamento definidas em regimento próprio, aprovadas pelo respectivo conselho. 44 HEIDRICH, Andréa Valente. O Conselho Municipal de Saúde e o Processo de Decisão sobre a Política de Saúde Municipal. Dissertação de Mestrado em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2002, p. 59.

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A última conferência nacional de saúde foi realizada em 2001 com o tema

“Aprofundando o Controle Social” e também apontou uma série de entraves em

seu Relatório Final sobre a efetivação dos Conselhos como mecanismos de

participação na gestão do SUS. [...]

O Relatório aponta uma série de dificuldades na prática dos conselhos de saúde,

como carência de estrutura, capacitação e assessoria para assumir tarefas

decorrentes de uma postura mais ativa; carência de autonomia frente ao Executivo

e a falta de compromisso político de alguns gestores. Diante destas questões,

percebe-se que os conselhos de saúde, muitas vezes, ainda carecem de

legitimidade perante o poder executivo municipal e à sociedade.

Mesmo assim, em meados de 2000, 97,04% dos municípios do país haviam

municipalizado seus serviços de saúde (Cortez, 2001:04). Portanto, pressupõe-se

que em todos eles havia o conselho, o fundo e a conferência municipal de saúde.

O fato de a criação dos conselhos ser critério sine qua non para recebimento de

recursos tem gerado desconfiança com relação à possibilidade destes

mecanismos estarem, de fato, se constituindo em canais de participação da

população na definição da política de saúde.

Outros estudos apontam fragilidades no funcionamento dos

Conselhos Municipais de Saúde em todo o País, em especial no que diz

respeito à carência de formação dos participantes para a atuação na esfera

pública, mas também em relação à tensão existente em face das diferentes

necessidades de cada setor representado. Também apontam para a cooptação

dos participantes em relação aos poderes políticos instituídos, considerando-a

um fator que fragiliza a dinâmica de funcionamento dos Conselhos.

Ocorre que a tradição do Estado brasileiro não é a de participação social

significativa, sobretudo em aspectos referentes ao uso do dinheiro público: ao

contrário, a tradição brasileira é de Estado centralizador e autoritário.

O longo período da história brasileira em que a sociedade civil foi ora cooptada

por mecanismos populistas, ora simplesmente afastada da cena política pela

ditadura militar, repercute até hoje e ainda repercutirá por muito tempo no

âmbito da mobilização social para o exercício efetivo dos direitos do cidadão,

inclusive e principalmente, o direito de participar da cena política institucional.

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ROGÉRIO GESTA LEAL45 afirma:

Em verdade, ao longo do período de toda a República Velha, a Administração

Pública brasileira padeceu de frágil estruturação institucional, e isto porque os

chefes do Poder Executivo, dos três níveis federativos, em regra, eram eleitos de

maneira pouco séria, decorrência dos vínculos mantidos com as oligarquias locais,

vinculadas, por sua vez, à Presidência da República, formando uma rede política

de interesses que se alojava e refletia na atuação administrativa.

Aqui, sequer se cogitava da participação social ou representativa da comunidade,

eis que tal tarefa estava restrita aos cânones e mecanismos institucionais da

política estatal.

Assim, desenvolveu-se a Administração Pública, praticamente, até a década de

80, com avanços e recuos institucionais, maiores em determinados momentos

(como na era Vargas), ou menores (como ao longo do regime militar). [...]

[...] na maior parte do seu território, o Estado brasileiro (aqui entendido na sua

perspectiva institucional) e seu sistema legal, não conseguem assegurar a

vigência de uma ordem e pacificação social, ainda que fundada em relações

assimétricas, garantidoras de expectativas estáveis e uma mínima previsibilidade

de comportamentos consistentes com a lei.

Na mesma direção, temos Guillermo O’Donnell, sustentando que o modelo de

democracia em países com as relações de força como as do Brasil, pode ser

considerado como delegativo, eis que ele supõe um precário funcionamento das

instituições políticas, o que faz com que a figura do chefe do Executivo, presidente

eleito ou chefe do movimento, assuma um caráter ainda mais central no processo

político, pois recebe ou avoca delegação para governar acima dos partidos e

demais instituições democráticas. Decorrência lógica e material disto é a falta de

garantia de igualdade perante a lei e de acesso à justiça, bem como outras formas

de prestações públicas, seja porque os indivíduos, escaldados, renunciam à sua

mediação, preferindo agir por conta própria, seja porque o Estado é incapaz de

assegurar uma ordem igualitária ao tecido social.

Assim, embora se possa saudar a criação dos Conselhos Municipais

de Saúde como um caminho efetivo para a democracia participativa e,

consequentemente, para a efetividade do direito à saúde, é necessário

compreender que há um processo histórico a ser construído e isso demanda

tempo e insistência. 45 LEAL, Rogério Gesta. Estado, Administração Pública e Sociedade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 87-88.

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Ante a falta de capital cultural de participação social no Brasil, aliada à tradição

histórica da saúde como assistência e não como direito, e à influência de uma

sociedade que se torna cada vez mais egoísta e consumista, os Conselhos

Municipais de Saúde terão ainda dificuldades concretas a superar em sua

trajetória. No entanto, felizmente, existem condições para que essa superação

ocorra.

A consolidação do processo democrático brasileiro e as dificuldades de acesso

a serviços de saúde são fatos da realidade que poderão incentivar maior

atividade dos referidos Conselhos. Lentamente o cidadão brasileiro se dá conta

de que a eleição não concretiza necessidades sociais e que há grande

distanciamento entre o político eleito e o ator social que o elegeu. Diminuir esse

distanciamento e aproximar o cidadão das instâncias de decisão têm sido

objeto de debate na sociedade brasileira contemporânea, e os Conselhos

Municipais, em especial os de saúde e educação, poderão cumprir importante

papel no amadurecimento da democracia participativa no País.

Vinte e três anos de experiência constitucional ainda não foram suficientes para

efetivar todos os direitos sociais, mas contribuíram de maneira decisiva para

permitir duas conclusões: a de que a positivação dos direitos é um passo

fundamental, mas não é suficiente por si só; e a de que participação social é

um caminho ainda não construído plenamente na democracia brasileira,

necessitando de mecanismos de incentivo que ainda não se encontram

plenamente implementados.

A atividade efetiva dos Conselhos Municipais de Saúde poderá se constituir em

importante elemento de planejamento da destinação dos recursos do sistema

de saúde brasileiro e, nessa medida, contribuir para restringir o acesso à

Justiça como mecanismo de obtenção de medicamentos e tratamentos

individualizados. Inserir os Conselhos no debate sobre a judicialização da

saúde é politizar essa questão e demonstrar que o Direito não é o único

caminho de arranjo e equilíbrio da ordem social.

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CAPÍTULO II A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

E A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

O fim da ditadura militar em 1985 trouxe o País de volta para o debate em torno

de direitos. Esse questionamento, que havia começado em meados da década

de 70 com os movimentos sociais urbanos, ganhou força com a reconstrução

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do movimento sindical no ABC e com a Campanha Diretas Já, que se expandiu

por toda a nação em 83-84.

Após a eleição indireta de TANCREDO NEVES e JOSÉ SARNEY, o cenário político

foi ocupado pela exigência da eleição de uma Assembleia Nacional

Constituinte que elaborasse o documento de retorno do País ao Estado

Democrático de Direito.

Outorgada em 05 de outubro de 1988, a Constituição Federal se tornou

símbolo do projeto de uma nova sociedade brasileira, livre, justa e solidária,

alicerçada no princípio da dignidade de pessoa humana.

Alguns juristas afirmam que a Constituição Federal é excessivamente

detalhista ao cuidar de aspectos que poderiam ter sido delegados para a

legislação ordinária. Em linhas gerais também criticam o modelo de Estado

Social adotado no âmbito dos Direitos Sociais e o caráter neoliberal da Ordem

Econômica, destacando que esse conflito compromete a efetividade da

Constituição brasileira.

O presente capítulo pretende discutir a hermenêutica constitucional adotada no

Brasil por parte dos juristas que, sob a inspiração do Direito constitucional

alemão, pretenderam a máxima efetividade dos direitos sociais. Tal proposta

hermenêutica é aqui analisada tendo como pano de fundo a efetividade da

saúde pública para todos, ou seja, o acesso irrestrito e imediato que se torna

um dos fundamentos do fenômeno da judicialização da saúde.

Para isso será abordado o conceito de direitos fundamentais e de normas

programáticas, além das novas propostas hermenêuticas utilizadas no Brasil

contemporâneo e calcadas na força e na efetividade dos princípios.

1. Apontamentos sobre direitos fundamentais

Definir direitos fundamentais na perspectiva da garantia de sua efetividade é

tarefa complexa que, na atualidade, é enfrentada por muitos estudiosos, tanto

de direitos humanos como de direitos e princípios constitucionais.

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JOSÉ AFONSO DA SILVA46 afirma:

No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações

jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive, e às vezes,

nem sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual,

devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente

efetivados.

Por sua vez, JANE REIS GONÇALVES PEREIRA47 esclarece:

Quando se fala em direito fundamental, aborda-se uma categoria jurídica

complexa, que pode ser analisada a partir de múltiplos enfoques. Isso ocorre

porque o significado que os direitos fundamentais assumem no constitucionalismo

contemporâneo é resultado de um longo processo histórico em que foram sendo

ampliados, de forma progressiva, seu alcance e força vinculante no ordenamento.

Do ponto de vista terminológico, o vocábulo direito fundamental expressa uma

noção própria da teoria constitucional recente. A despeito de diversos desacordos

terminológicos que envolvem a linguagem dos direitos, há certa tendência em

utilizar a referida expressão para designar os direitos humanos reconhecidos e

positivados em determinada ordem constitucional. O termo direitos humanos tem

um alcance mais amplo, sendo empregado, de modo geral, para fazer referência

aos direitos do homem reconhecidos na esfera internacional, sendo também

entendidos como exigências éticas que demandam positivação, ou seja, como “um

conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico,

concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade, as quais

devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível

nacional e internacional.” (PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos,

Estado de Derecho y Constitución. Madrid: Tecnos, 1999, p. 30.)

JEAN CARLOS DIAS48 constrói uma reflexão importante para a compreensão dos

direitos fundamentais quando destaca:

Um dos referenciais que se pode desde logo adotar é que o exame dos direitos

fundamentais não pode ser tomado contemporaneamente sem a previa

investigação genética das concepções teóricas que cada vertente dogmática

46 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 21ª edição, S.Paulo: Malheiros, 2002, p. 178. 47 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais. R. de Janeiro: Renovar, 2006, p. 75. 48 DIAS, Jean Carlos. “Problemas Contemporâneos de Teoria dos Direitos Fundamentais: Esboço para uma Investigação Abrangente”. In: KLAUTAU FILHO, Paulo. DIAS, Jean Carlos. Direitos Fundamentais, Teoria do Direito e Sustentabilidade. R. de Janeiro: Forense. S.Paulo: Método, 2009, p. 21-22.

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sustenta. Desse modo, é inequívoco que, nos nossos dias, não se pode falar em

uma teoria, mas sim, em teorias (no plural) dos direitos fundamentais.

Ao lado desse primeiro referencial, deve se acrescer um outro: que a base ética

dos direitos fundamentais também necessita de aprofundamento. A derivação do

primado da dignidade humana, a estratégia dominante em nossos estudos,

apresenta algumas inconsistências em relação à possibilidade de concretização.

Como o conceito geralmente tem sido concebido como uma escala móvel de certo

modo estruturada em função da teoria da argumentação é pouco convincente que

sociedades que não adotem uma concepção compartilhada de dignidade e que

possuam meios institucionais de debate público sejam capazes de eleger os

direitos fundamentais sob esse modelo.

A ideia de dignidade da pessoa humana como fonte de direitos fundamentais está,

aparentemente, presa a uma tautologia: para adotá-la é necessário que uma

sociedade compartilhe uma visão de vida digna e que possua meios institucionais

de exteriorização da razão pública.

Sem que esses dois dados estejam presentes, a estratégia teórica é insustentável.

Vale lembrar que uma parte significativa da recusa ao caráter universal dos

direitos fundamentais deriva, exatamente, da recusa por certas sociedades que

não assume esses dois marcos institucionais. [...]

A dogmática dos direitos fundamentais, se é que podemos afirmar que ela exista,

precisa manter-se aberta a esse conjunto de considerações que a impedem de

assumir a feição de um conhecimento definitivamente consolidado.

Nas definições dos estudiosos é possível perceber a complexidade do

conceito, a dificuldade de delimitá-lo e de traçá-lo com precisão, o que permite

antever os problemas quando se trata de efetivar direitos fundamentais.

É evidente que os aspectos essenciais da dignidade da pessoa humana são

sobejamente conhecidos nas sociedades ocidentais contemporâneas: são os

direitos à saúde, à educação, à moradia, ao trabalho, à assistência social para

os vulneráveis. Mas a medida exata de aplicação desses direitos em cada caso

concreto, e a solução do caso concreto quando os direitos fundamentais de um

indivíduo se chocam com os de outro ou de outros indivíduos (todos portadores

dos mesmos direitos em uma dada sociedade) torna a tarefa de efetivar os

direitos fundamentais ainda mais complexa.

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O artigo 6° da Constituição Federal, com redação da da pela Emenda

Constitucional n. 06, de 2000, contemplou várias modalidades de garantia da

dignidade da pessoa humana ou de situações jurídicas sem as quais a

sobrevivência, como afirma JOSÉ AFONSO DA SILVA, não é possível. Lá se

encontram expressamente consignados a educação, a saúde, o trabalho, a

moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e

à infância, a assistência aos desamparados.

Como efetivar esses direitos para todos sem privilégios?

2. Dimensões da dignidade da pessoa humana

Tudo o que envolve o ser humano e suas manifestações é complexo, histórico,

cultural e sensível. Milênios de trajetória histórica do ser humano na Terra nos

permitiram compreender que a pessoa humana está permanentemente envolta

em aspectos objetivos e subjetivos que se entrelaçam, se complementam e se

negam sucessivamente.

É por isso que a caminhada e a perspectiva de futuro dos homens não podem

ser compreendidas por apenas uma área do conhecimento; ao contrário,

impõem a todos os variados ramos do conhecimento que sobre elas se

debrucem apresentar suas contribuições. Muitas vezes, ainda, o conhecimento

científico será ineficaz para permitir a compreensão dos inúmeros aspectos que

envolvem o ser humano, ocasião em que avulta a busca pela compreensão

metafísica, hoje personificada nos cultos religiosos, na Medicina alternativa,

nas práticas hindus e na chamada literatura de autoajuda.

Esse é o retrato da busca da proteção da dignidade humana em um mundo

complexo, de incertezas, de inesgotável progresso tecnológico, sociedade de

risco e consumista, multi e intercultural, na qual trafegamos quase sempre

entre crises e conflitos.

INGO WOLFGANG SARLET 49 afirma:

49 SARLET, Ingo Wolfgang. “As Dimensões da Dignidade da Pessoa Humana: Construindo uma Compreensão Jurídico-Constitucional Necessária e Possível”. In SARLET, Ingo Wolfgang

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[...] não há como negar – a despeito da evolução ocorrida especialmente no

âmbito da Filosofia – que uma conceituação clara do que efetivamente é a

dignidade da pessoa humana, inclusive para efeitos da definição do seu âmbito de

proteção como norma jurídica fundamental, se revela no mínimo difícil de ser

obtida. Tal dificuldade, consoante exaustiva e corretamente destacado na

doutrina, decorre certamente (ao menos também) da circunstância de que se

cuida de um conceito de contornos vagos e imprecisos caracterizados por sua

“ambiguidade e porosidade” assim como por sua natureza necessariamente

polissêmica, muito embora tais atributos não possam ser exclusivamente

atribuídos à noção de dignidade humana.

Uma das principais dificuldades, todavia – e aqui recolhemos a lição de Michel

Sachs – reside no fato de que no caso da dignidade da pessoa humana,

diversamente do que ocorre com as demais normas jusfundamentais, não se

cuida de aspectos mais ou menos específicos da existência humana (integridade

física, intimidade, vida, propriedade, etc.), mas, sim, de uma qualidade tida para

muitos – possivelmente a esmagadora maioria – como inerente a todo e qualquer

ser humano, de tal sorte que a dignidade - como já restou evidenciado – passou a

ser habitualmente definida como constituindo o valor próprio que identifica o ser

humano como tal, definição esta que, todavia, acaba por contribuir muito para uma

compreensão satisfatória do que efetivamente é o âmbito de proteção da

dignidade, pelo menos na sua condição jurídico-normativa.

SARLET aponta com precisão a dificuldade que advém da polissemia da

expressão que, a rigor, comporta a proteção de todos os direitos da pessoa dos

mais elementares aos mais complexos, muito dos quais sequer

satisfatoriamente definidos, como acontece no âmbito da bioética ou da

privacidade no meio eletrônico (rede mundial de computadores), por exemplo.

Essa proteção à dignidade da pessoa humana deve ocorrer até mesmo quando

ela não se encontra de posse de toda sua autodeterminação, como nos casos

de coma profundo ou de perda total ou parcial de raciocínio.

A sociedade brasileira pós-88 também foi chamada a participar do debate

sobre a concretização ou efetividade do princípio da dignidade da pessoa

humana, seja em casos mais simples como o acesso à saúde e à educação

(organizador) Dimensões da Dignidade. Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 18.

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públicas, seja em casos mais tecnologicamente sofisticados, como o uso de

células-tronco embrionárias para pesquisa, julgado pelo Supremo Tribunal

Federal após audiência pública com cientistas e pesquisadores, e com o

trabalho dos “amigos da corte”, que participaram com suas reflexões e

argumentos.

Em todas as dimensões, no entanto, os casos concretos apresentam

peculiaridades que podem dificultar a aplicação do fundamento constitucional.

Nessa medida, o atributo da dignidade da pessoa humana se afasta muito de

seu limiar histórico pós-Segunda Guerra Mundial, quando os horrores

perpetrados por todos os contendores em Auschwitz, Dachau, Dresden,

Hirochima e Nagasaki, sinalizavam que a dignidade se concretizava no respeito

à continuidade da vida, ao fim de todo e qualquer tratamento violento ou que

impedisse acesso às condições mínimas de sobrevivência como comida, água,

abrigo e tratamento de saúde.

A dignidade da pessoa humana como reação a situações-limite (como aquelas

historicamente vivenciadas na Segunda Grande Guerra Mundial) era mais fácil

de ser compreendida e concretizada do que na atualidade, quando a sociedade

complexa, plural, tecnológica e consumista em que vivemos nos propõe, a

cada momento, novas possibilidades de agressão ou de desrespeito ao ser

humano.

É preciso enfrentar a dificuldade de aplicar o princípio da dignidade da pessoa

humana para situações em que efetivamente estejam em risco aspectos

essenciais para o respeito a uma dada pessoa em uma determinada situação

histórica e social.

MARCELO NOVELINO50 afirma:

A dignidade em si não é um direito, mas um atributo inerente a todo ser humano,

independentemente de sua origem, sexo, idade, condição social ou qualquer outro

requisito. O ordenamento jurídico não confere dignidade a ninguém, mas tem a

função de proteger e promover esse valor. O reconhecimento da dignidade como

fundamento impõe aos poderes públicos o dever de respeito, proteção e

promoção dos meios necessários para uma vida digna.

50 NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. S.Paulo: Método, 2009, p. 348.

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O dever de respeito impede a realização de atividades prejudiciais à dignidade

(“obrigação de abstenção”). O dever de proteção exige uma ação positiva dos

poderes públicos na defesa da dignidade contra qualquer espécie de violação,

inclusive por parte de terceiros. O dever de promoção impõe ao Estado uma

atuação no sentido de proporcionar os meios indispensáveis a uma vida digna.

É no mesmo sentido a reflexão de VIDAL SERRANO NUNES JÚNIOR51:

[...] podemos conceituar dignidade humana como o postulado ético que,

incorporado ao ordenamento jurídico, consubstancia o princípio segundo o qual o

ser humano, quer nas suas relações com seus semelhantes quer nas suas

relações com o Estado, deve ser tomado como um fim em si mesmo, e não como

um meio, o que o faz dignitário de um valor absoluto, donde exsurge um regime

jurídico que apresenta uma feição negativa e uma positiva. A primeira impõe aos

demais e ao Estado o dever de respeito à sua incolumidade física, psíquica e

social (entendida aqui como a liberdade para se autodeterminar e para, com os

demais, participar da autodeterminação da comunidade na qual se integra). A

segunda consubstancia a exigência de prestações do Estado que se afiancem os

pressupostos materiais mínimos para a preservação da vida e a inclusão na

sociedade, bem como a proteção em relações privadas, em que se saliente sua

situação de vulnerabilidade ( por ex. relações de trabalho, consumo, etc.).

O conceito de dignidade humana contempla, portanto, uma dimensão de não

fazer por parte do Estado e de outros cidadãos, e uma dimensão de

proporcionar, de fazer, para que a pessoa tenha acesso aos meios necessários

para uma vida digna.

O não fazer ou a abstenção por parte do Estado está próxima dos chamados

direitos humanos de primeira dimensão, que são os direitos civis e políticos,

supostamente sem custo para o Estado.

Hoje se sabe que não existem direitos sem custo. Os direitos civis e políticos,

para serem plenamente exercidos, comportam custos e gastos estatais, em

especial em um país com a dimensão geográfica brasileira em que uma eleição

para presidente obriga a colocação de urnas eletrônicas em locais de difícil

acesso, como aqueles em que reside a população ribeirinha da Amazônia. É

necessária tecnologia de alto custo para que todos os brasileiros possam votar

51 Obra citada, p. 114.

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com segurança e para que os resultados sejam conhecidos em pouco tempo,

como acontece no Brasil já há alguns anos.

Os direitos de promoção do Estado são os chamados direitos humanos de

segunda geração, ou seja, os direitos sociais, econômicos e culturais para os

quais o Estado deve alocar recursos financeiros de modo a propiciar o acesso

de todos os cidadãos, de forma contínua e na quantidade necessária para que

o respeito à vida digna se concretize.

A dificuldade em aplicar o dever de promoção à vida digna em cada caso

concreto, com suas especificidades e características próprias, contribuiu para a

formação de uma nova corrente de pensamento na hermenêutica

constitucional, que se iniciou pela crítica às normas programáticas, trabalhou

no sentido da efetividade dos direitos fundamentais e, como consequência, a

efetividade da promoção aos meios indispensáveis a uma vida digna.

JOSÉ AFONSO DA SILVA52 ensina:

[...] podemos conceber como normas programáticas aquelas normas

constitucionais através das quais o constituinte, em vez de regular, direta e

imediatamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes os princípios

para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e

administrativos), como programa das respectivas atividades, visando à realização

dos fins sociais do Estado. [...]

Elas se localizam como vimos, entre as de eficácia limitada. [...]

Essa doutrina, que aqui reafirmamos, foi certamente um passo avançado na

compreensão das disposições constitucionais programáticas. Contudo, talvez ela

ainda se ressentisse de certa dubiedade no que tange à aplicabilidade dessas

disposições. Pois a afirmação, mesmo peremptória, do caráter jurídico e positivo

dessas normas não basta para que surtam os efeitos que seu conteúdo

geralmente requer. Restou, na nossa afirmativa de sua eficácia limitada e de sua

aplicabilidade dependente de emissão de uma normatividade futura, a ideia de

que não sejam autêntico direito atual, de imediata aplicabilidade, concepção que

se entende, na justa observação de Canotilho, “como linhas programáticas

dirigidas ao legislador, e não como autênticas normas jurídicas imediatamente

preceptivas e diretamente aplicáveis pelos tribunais ou quaisquer outra

52 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 7ª, S.Paulo: Malheiros, 2009, p. 138-140.

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autoridades. Essa é a linha que as constituições e doutrina (alemã, especialmente,

com reflexo em Portugal) vêm tentando superar. [...]

O problema que se coloca agudamente na doutrina recente consiste em buscar

mecanismos constitucionais e fundamentos teóricos para superar o caráter

abstrato e incompleto das normas definidoras de direitos sociais, ainda concebidas

como normas programáticas, a fim de possibilitar sua concretização prática.

Cogita-se de responder à seguinte questão, posta por Canotilho: “Em que medida

pode uma lei fundamental transformar-se em programa normativo do Estado e da

sociedade? Mais concretamente: Como pode (se é que pode) uma Constituição

servir de fundamento normativo para o alargamento das tarefas estaduais e para a

incorporação de fins econômico-sociais, positivamente vinculantes das instâncias

de regulação jurídica?”

E PAULO BONAVIDES53, ainda a respeito das normas programáticas, afirma:

O Estado de direito do constitucionalismo precisa absorver a programaticidade das

normas constitucionais.

Atribuindo-se eficácia vinculante à norma programática, pouco importa que a

Constituição esteja ou não repleta de proposições desse teor, ou seja, de regras

relativas a futuros comportamentos estatais. O cumprimento dos cânones

constitucionais pela ordem jurídica terá dado um passo à frente. Já não será fácil

com respeito à Constituição tergiversar-lhe a aplicabilidade e eficácia das normas

como os juristas abraçados à tese antinormativa, os quais, alegando

programaticidade de conteúdo, costumam evadir-se ao cumprimento ou

observância de regras e princípios constitucionais.

É óbvio que o problema de limitar poderes e competências a um instrumento

constitucional não se resolve declarando apenas a juridicidade de seu conteúdo.

Haverá sempre uma instância invisível, um poder latente ao lado da Constituição

formal, decidindo, modificando, renovando comportamentos. Essa instância é

política. A programaticidade traz a sua presença tanto quanto possível para dentro

da Constituição, em ordem a apagar o funesto dualismo que gravita ao redor da

suposta incompatibilidade dos fundamentos políticos com os fundamentos

jurídicos da Constituição.

Afigura-se- nos que a compreensão correta das normas programáticas como

normas jurídicas contribui consideravelmente para reconciliar os dois conceitos da

53 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 25ª edição. S.Paulo: Malheiros, 2010, p. 237.

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histórica crise constitucional de dois séculos: o conceito jurídico e o conceito

político da Constituição.

PAULO BONAVIDES resgata o debate a respeito da aplicabilidade imediata das

normas constitucionais ou de seu caráter meramente programático a esperar

por complementar para regulamentar o comando, ou ainda a iniciativa estatal

para definir projeto e custeio para realização do comando da norma.

Esse debate alcança especial importância com a Constituição de 1988, a qual,

mais do que um projeto político para o Brasil que retornava ao Estado de

Direito, era fruto da construção histórica de forças sociais que se organizaram

para isso, como os movimentos sociais e o novo sindicalismo. A expectativa

popular era que essa Constituição cumprisse o papel de colocar em prática de

forma imediata e plena os direitos sociais nela contemplados.

A discussão em torno da programaticidade das normas que deveriam esperar o

melhor momento para a aplicação porque não eram de aplicação imediata (em

contraposição àqueles que entendiam pela força normativa constitucional e,

portanto, a possibilidade de aplicação imediata ao caso concreto), adquire

maior vigor com os estudos sobre o neoconstitucionalismo e a nova

hermenêutica constitucional, que ganham força nos anos 90 no Brasil.

Parte dos juristas brasileiros adotou a ideia central de LASSALLE que LUIS

ROBERTO BARROSO54 resgatou:

[...] a Constituição de um país é, em essência, a soma dos fatores reais do poder

que regem a sociedade. Em outras palavras, o conjunto de forças políticas,

econômicas e sociais, atuando dialeticamente, estabelecem uma realidade, um

sistema de poder: esta é a Constituição real, efetiva do Estado. A Constituição

jurídica, mera “folha de papel”, limita-se a, em um documento escrito, converter

esses fatores reais do poder em instituições jurídicas, em Direito.

As forças políticas e econômicas em tensão após a entrada em vigor da

Constituição Federal de 1988 acenderam o debate em torno da efetividade das

normas constitucionais, e trouxeram para o centro do interesse dos juristas

54 BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. 8ª edição, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 65.

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questões como o neoconstitucionalismo, a força dos princípios, o sopesamento

de princípios, o conceito de reserva do possível, de mínimo ético exigível e o

direito ao mínimo existencial, entre outros temas que ainda frequentam o

debate e a pesquisa acadêmica e que, no início do novo século, igualmente se

tornaram presentes na fundamentação das decisões judiciais.

A ideia recorrente de parte dos juristas e magistrados é que a Constituição

Federal deva ser integralmente aplicada no âmbito dos direitos fundamentais,

ainda que pela via judicial. Há uma sensação de que a esfera do político havia

se esgotado ou se mostrado incapaz de efetivar os direitos previstos no texto

constitucional.

Essa ambiência histórica e social se mostra permeável à ideia do chamado

neoconstitucionalismo, ou seja, o fenômeno da superação da validade

meramente formal do Direito que avança para compreender o âmbito da

efetividade tendo a dignidade da pessoa humana como núcleo essencial a ser

buscado.

O fenômeno já havia ocorrido na Europa após a Segunda Guerra Mundial, em

especial na Constituição alemã do pós-guerra.

Conforme explica RICARDO CAIADO AMARAL55:

A Lei Fundamental da Alemanha nasceu quatro anos após a Segunda Guerra

Mundial como lei constitucional provisória da parte da Alemanha então ocupada

pelos aliados ocidentais. Tornou-se definitiva como a Constituição Federal da

Alemanha, por efeito da criação dos dois Estados alemães, uma parte ocidental e

outro na parte oriental. Com a derrubada do Muro de Berlim, em 1989-90, e a

consequente unificação alemã, a Lei Fundamental de Bonn de 1949, voltou a ser a

Lei Maior de toda a Alemanha. [...]

Dessa forma, a Grundgesetz, simboliza um verdadeiro pacto social. A fonte dos

desejos, anseios e esperanças da nação alemã. Seria, a partir dela, então, que o

povo alemão se embasaria para construir o seu Estado e a sua sociedade. Um

Estado que teria como tarefa principal a realização e a preservação dos direitos

55 AMARAL, Roberto. “A Democracia Representativa está Morta; Viva a Democracia participativa!” In GRAU, Eros Roberto. GUERRA Filho. Willis Santiago (organizadores) Direito Constitucional – Estudos em Homenagem a Paulo Bonavides. S.Paulo: Malheiros, 2004, p. 152-154.

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fundamentais consagrados na Lei Fundamental, o que não ocorria no regime

nazista. Elegendo, para tanto, como fundamento principal o respeito à dignidade

da pessoa humana, definida por Häberle como premissa antropológico-cultural do

Estado Constitucional.

No Brasil a reconstrução democrática tem contornos dramáticos com a morte

do presidente eleito pelo colégio eleitoral, de forma indireta, porém caudatário

das melhores esperanças de construção da democracia. O vice-presidente que

assume é fortemente ligado às forças políticas e militares que lideraram o País

durante o regime militar e, não apenas por isso, mas também por isso, visto

com enorme desconfiança pela vanguarda do pensamento político e pelos

atores sociais organizados. A primeira eleição direta coloca no poder um

representante da oligarquia canavieira de um dos estados mais pobres da

federação e, na sequência, denúncias de corrupção provocam seu

impeachment colocando em teste a frágil democracia até então construída.

Esses percalços políticos se desenrolam em meio a fortes crises econômicas,

com índices inflacionários inimagináveis para os padrões contemporâneos,

com várias tentativas e erros de planos econômicos que quase sempre

causaram mais prejuízo do que encontraram soluções eficientes, diminuindo o

acesso ao emprego, o poder de compra da população de baixa renda, e

tornando os problemas sociais urbanos e rurais de grande magnitude.

Tal cenário de injustiça social em um país cuja Constituição Federal é

primorosa em prever direitos contribuiu para que o neopositivismo começasse

a ser pesquisado e praticado no âmbito jurídico brasileiro.

EDUARDO CAMBI 56 descreve:

O neopositivismo como consequência filosófica do neoconstitucionalismo,

apresenta-se como uma nova forma de interpretação e de aplicação do direito.

Parte das bases do positivismo jurídico, procurando mostrar uma outra forma de

compreensão do fenômeno jurídico. [...]

A norma não se confunde com o texto. Interpretar é determinar o significado

objetivo de um texto: antes da interpretação, não há norma, apenas um texto. Não

há um significado interno ou intrínseco ao texto, que prescinda da interpretação;

56 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. Direitos Fundamentais, Políticas Públicas e Protagonismo Judicial. S.Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 83-85.

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por isto, interpretar não é declarar algo já existente (latente e pronto a ser

descoberto) no texto, mas resultante da decisão do intérprete que, com o uso da

linguagem, constrói versões de significado. [...]

O texto, ainda que constitucional, é apenas o ponto de partida do processo de

interpretação-concretização normativa. Isto significa que o texto ou a letra da

Constituição ou da lei não contém, antecipada e automaticamente, a decisão do

problema a ser resolvido concretamente. [...]

A interpretação jurídica, pois, possui um caráter bipolar, posto que a construção da

norma adequada depende tanto da análise do ordenamento jurídico quanto do

exame das circunstâncias do caso concreto. Por isto, a palavra “interpretação” é

precedida pela preposição inter, que significa atividade intermediadora ou

mediadora entre o caso real e a regra ou o princípio que devem regulá-lo,

vinculando a realidade ao direito. O direito, antes de ser uma regra ou instituição,

é uma obra hermenêutica, um discurso, que se articula entre a regra e o fato, a

letra e o espírito, a ordem e a desordem, a força e a justiça.

O positivismo, até então muito forte no pensamento jurídico brasileiro, marcado

pela perfeita identificação do Direito com a lei, pela objetividade e pela

completude do Direito, que raramente admitia antinomias ou lacunas (pelo não

reconhecimento de normatividade aos princípios que eram apenas

sinalizadores e não para serem aplicados ao caso concreto, pela legitimidade

da norma a partir de sua legalidade e, principalmente, pelo formalismo jurídico

como pressuposto da segurança jurídica), começou a ser questionado pela

construção teórica e pela aplicabilidade dos pressupostos neopositivistas e

neoconstitucionais.

Uma nova forma de interpretar começa a ser estudada e aplicada, afastando a

subsunção automática do centro do debate e incluindo aspectos até então

relegados a plano secundário, como a importância da linguagem para o Direito.

BARROSO57 afirma:

A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo

abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca

do direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo é a designação

provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das

relações entre os valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova

57 BARROSO, Luis Roberto. BARCELLOS, Ana Paula. “O Começo da História: A Nova Interpretação Constitucional”. In: SILVA, Virgílio Afonso da (organizador). Interpretação Constitucional. S.Paulo: Malheiros, 2007, p.276-278.

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hermenêutica constitucional e a teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o

fundamento da dignidade humana. A valorização dos princípios, sua incorporação

explícita ou implícita, pelos textos constitucionais e o reconhecimento pela ordem

jurídica de sua normatividade fazem parte desse ambiente de reaproximação entre

direito e ética.

Gradativamente, diversas formulações antes dispersas ganham unidade e

consistência, ao mesmo tempo em que se desenvolve o esforço teórico que

procura transformar o avanço filosófico em instrumental técnico-jurídico aplicável

aos problemas concretos. O discurso acerca dos princípios, da supremacia dos

direitos fundamentais e do reencontro com a ética – ao qual, no Brasil, se deve

agregar o da transformação social e o da emancipação – deve ter repercussão

sobre o ofício dos juízes, advogados e promotores, sobre a atuação do poder

público em geral e sobre a vida das pessoas. Trata-se de transpor a fronteira da

reflexão filosófica, ingressar na dogmática jurídica e na prática jurisprudencial e,

indo mais além, produzir efeitos positivos sobre a realidade.

Em relação aos direitos fundamentais, a nova hermenêutica ou a

constitucionalização (ou, ainda, o neopositivismo) começaram a ser aplicados

na busca da máxima efetividade dessa categoria de direitos, alicerçados pelo

ideário de amplificar a Constituição Federal de 88 como um projeto que

finalmente fosse aplicado em sua totalidade e não apenas no âmbito dos

direitos políticos.

O fenômeno da “constitucionalização do Direito” adquiriu contornos de

movimento que rompeu a histórica separação público-privado, e, alcançou

variadas dimensões da vida nacional.

O neoconstitucionalismo foi aplicado na discussão em torno do papel e dos

limites da administração pública, no debate sobre aplicação da legislação

tributária, locus onde tradicionalmente sempre foi de fundamental importância;

mas, também foi aplicado no âmbito das relações privadas, na interpretação

dos contratos, no alargamento da responsabilidade civil, sempre na busca da

concretização máxima da dignidade da pessoa humana.

Foi o momento da revisão da teoria contratual que apontava o princípio do

pacta sunt servanda como diretriz máxima das relações contratuais. Começou

a ser construída uma nova teoria dos contratos, que apontou o equilíbrio como

o principal aspecto a ser priorizado; e, nos contratos de adesão já amplamente

utilizados no Brasil do início do século XXI, a necessidade de uma

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interpretação sempre mais benéfica ao aderente, conforme consignado

expressamente no Código de Defesa do Consumidor e, a partir de 2003, no

Código Civil brasileiro.

Surgiram os estudos de Direito civil constitucional apontando para a

necessidade de discutir as relações privadas tendo como pano de fundo os

princípios constitucionais, entre eles (e principalmente) o respeito à dignidade

da pessoa humana e a função social da propriedade e dos contratos.

O estudo dos princípios e de sua força normativa foi impulsionado nos

programas de pós-graduação em Direito no início do século XXI, dando ensejo

à grande quantidade de trabalhos de pesquisa nessa área do conhecimento.

O final dos anos 90 e o início do século XXI, impulsionados por momentos

marcantes da história social, econômica e política, nacional e internacional,

colocaram no centro do debate jurídico brasileiro a relativização da autonomia

da vontade das partes como elemento fundamental para os contratos; a

relativização da coisa julgada como novo modo de construir justiça; a

perspectiva do Judiciário com menor característica de “boca da lei” e mais

preocupado com o conhecimento das peculiaridades do caso concreto; a

função social como novo paradigma das relações de propriedade.

A segurança jurídica que fora construída sobre o pilar de decisões iguais para

casos concretos que se subsumiam à vontade da lei, aplicada esta por um juiz

racional, imparcial, propositadamente distante e colocado em posição

fisicamente superior na sala de audiências, começou a sentir o abalo de

decisões proferidas por juízes que relativizaram o formalismo e a tradição em

que o Direito sempre se apoiou em nome de uma ideia resumida como

constitucionalização do Direito.

Toda essa movimentação não se construiu sem críticas e sem resistência. Em

grande parte dos cursos de Direito em todo o País o que ainda se estuda são

os ícones tradicionais que sempre alimentaram a reflexão em torno dessa

disciplina, ou seja, o texto da lei e sua aplicação em casos exemplares, embora

nem sempre compatíveis com a realidade.

Mas a nova interpretação constitucional defendida por muitos juristas foi no

sentido de que a Constituição Federal deveria estar presente em todos os

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conflitos, provocando um primado constitucional até então sem precedentes na

história jurídica nacional.

LUIS ROBERTO BARROSO58

afirma:

A nova Constituição passa a ser, assim, não apenas um sistema em si – com sua

ordem, unidade e harmonia – mas também um modelo de olhar e interpretar todos

os demais ramos do direito. Este fenômeno, identificado por alguns autores como

filtragem constitucional, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e

apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela

consagrados. A constitucionalização do direito infraconstitucional não identifica

apenas a inclusão na Lei Maior de normas próprias de outros domínios, mas,

sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional.

A ascensão científica e política do direito constitucional brasileiro é

contemporânea da reconstitucionalização do país com a Carta de 1988, em uma

pretensão relação de causa e efeito. A Assembleia Constituinte foi cenário de

ampla participação da sociedade, que permanecera alijada do processo político

por mais de duas décadas. O produto final de seu trabalho foi heterogêneo. De um

lado, avanços como a inclusão de uma generosa carta de direitos, a recuperação

das prerrogativas dos Poderes Legislativo e Judiciário, a redefinição da

Federação. De outro, no entanto, o texto casuístico, prolixo, corporativo, incapaz

de superar a perene superposição entre o espaço público e o espaço privado no

país. A Constituição de 1988 não é a Carta da nossa maturidade institucional, mas

das nossas circunstâncias.

Nesse contexto, a Constituição Federal e seus princípios passaram a ser

utilizados na solução de inúmeros conflitos que, anteriormente, não

comportavam princípios constitucionais como argumento. Foi o que ocorreu,

por exemplo, na interpretação de contratos privados de adesão, como os de

operadoras de saúde, por exemplo. Muitas restrições contratuais eram

alargadas em juízo com o argumento de que ofendiam a dignidade da pessoa

humana e, nessa medida, não poderiam vigorar entre as partes.

58 BARROSO, Luis Roberto. “Fundamentos Teóricos e Filosóficos do novo Direito constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo)”. In BARROSO, Luis Roberto (organizador). A Nova Interpretação Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 44.

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Se no âmbito do Direito privado a aplicação da constitucionalização teve

adeptos e defensores, na esfera pública isso ocorreu com muito mais

facilidade.

O universo jurídico brasileiro passou de normas programáticas (que nunca se

materializavam porque apenas sinalizavam programas a serem cumpridos

quando e se possível, dependendo integralmente da vontade política do

governante) para a aplicação imediata da Constituição Federal, por sentença

judicial e que contribuísse para efetivar a dignidade da pessoa humana em

suas mais variadas dimensões. Em suma, um salto significativo, porém nem

sempre possível de ser concretizado.

RICARDO LOBO TORRES59 sistematiza essas ideias:

No plano da doutrina passou a prevalecer a ideia de que os direitos sociais eram

direitos a prestações originárias, por influência do constitucionalismo alemão de

corte social-democrata das décadas de 50 a 70 e da obra do jurista português J.J.

Gomes Canotilho.

Com efeito, a corrente da social-democracia, principalmente na Alemanha,

radicalizara o seu discurso, para defender o primado dos direitos sociais. O

notável grupo de constitucionalistas germânicos que pontificou nas “décadas de

ouro” do século XX (1950 a 1970), quando o Ocidente assistiu ao extraordinário

incremento da riqueza das nações, defendia a prevalência dos direitos sociais

mediante algumas teses básicas:

a) Todos os direitos sociais são direitos fundamentais sociais;

b) Os direitos fundamentais sociais são plenamente justiciáveis,

independentemente da intermediação do legislador;

c) Os direitos fundamentais sociais são interpretados de acordo com princípios

de interpretação constitucional, tais como os da máxima efetividade,

concordância prática e unidade da ordem jurídica. [...]

No Brasil a influência do pensamento germânico se fez sentir sobretudo através

das traduções e referências feitas por Canotilho. A doutrina brasileira dos anos 80

passou a defender o primado dos direitos sociais e a sua plena efetividade.

59 TORRES, Ricardo Lobo. “O Mínimo Existencial, os Direitos Sociais e Os Desafios de Natureza Orçamentária”. In: SARLET. Ingo Wolfgang. TIMM, Luciano Benetti (organizadores). Direitos Fundamentais – Orçamento e Reserva do Possível. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 70-71.

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Paulatinamente, outros estudos começaram a surgir como contribuição ao

pensamento jurídico em torno da efetividade dos direitos sociais. Uma das

vertentes estudadas é a do mínimo existencial, debatida entre outros por

RICARDO LOBO TORRES, GUSTAVO AMARAL e ANA PAULA DE BARCELLOS, entre

outros.

Esses estudos abriram espaço para que as discussões em torno da reserva do

possível e da reserva orçamentária não só ganhassem espaço mas também se

constituíssem num importante contraponto àquele momento inicial em que

parecia possível realizar todos os direitos fundamentais sociais pela via da

determinação judicial.

3. Direito ao mínimo existencial e reserva do possí vel

O conceito de reserva do possível e de direito ao mínimo existencial sofreram,

de início, certo repúdio dos juristas brasileiros preocupados em construir

estudos sobre a efetividade dos direitos fundamentais. Esses conceitos

pareciam resgatar a ideia de normas programáticas como aquelas que apenas

sinalizam condutas a serem adotadas quando e se o executivo desejar, ou

seja, dependentes de uma vontade política nem sempre possível de se

concretizar.

O conceito de reserva do possível, em especial, parecia se contrapor ao

avanço que havia sido conquistado pelos neoconstitucionalistas quando

colocaram no centro do debate jurídico a efetividade da Constituição Federal

como norma de pronta aplicação, independente de qualquer outra vontade que

não a do Judiciário.

Termo importado do Direito germânico do pós-guerra, a expressão de fato

sugere que a efetividade dos direitos fundamentais estará condicionada à

existência de reservas obtidas a partir da arrecadação de tributos, atribuindo ao

Poder Executivo e ao Poder Legislativo a supremacia pela decisão de onde

investir o dinheiro público, sabido que no sistema brasileiro, o orçamento é

construído pelo Executivo e pelo Legislativo que o aprova em forma final.

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Além disso, a reserva do possível promovia uma aproximação do Direito com a

Economia, áreas do conhecimento que, quando se aproximam, são vistas com

preocupação por alguns juristas, em especial aqueles que temem a supremacia

da Escola de Chicago no pensamento econômico. Os pressupostos do livre

mercado, da livre formação de preços, da defesa da propriedade privada, da

baixa carga tributária, do governo mínimo, do liberalismo econômico e do fim

da social democracia estão presentes no pensamento de vários estudiosos que

se inspiraram na chamada Escola de Chicago e, nessa medida, merecem a

repulsa dos juristas favoráveis à efetividade dos direitos fundamentais.

Essa aversão à aproximação entre Direito e Economia não é pacífica entre os

juristas. LUCIANO BENETTI TIMM60 afirma

Por que o Direito deveria dialogar e se aproximar da Economia? Brevemente, em

primeiro lugar, porque a Economia é a ciência que descreve de maneira

suficientemente adequada o comportamento dos seres humanos em interação no

mercado, que é tão importante para a vida real em sociedade. Em segundo lugar,

porque a Economia é uma ciência comportamental que atingiu respeitável e

considerável padrão científico, sendo hoje uma das estrelas dentre as ciências

sociais aplicadas pelo grau de comprovação matemático e econométrico dos seus

modelos. Em terceiro lugar, a Ciência Econômica preocupa-se com a eficiência do

manejo dos recursos sociais escassos para atender ilimitadas necessidades

humanas – que é um problema-chave quando se falam de direitos sociais ou mais

genericamente fundamentais.”

Os estudos de análise econômica de Direito podem ter também esse viés

apontado pelo professor TIMM, ou seja, de um diálogo de ciências, podendo

contribuir, uma para com a outra, visando ao aprofundamento de pesquisas e

reflexões, e à descoberta de soluções sociais eficazes. A economia comporta

as dimensões da justiça e da ética tanto quanto o próprio Direito, embora

existam práticas econômicas de mercado que neguem por completo essas

dimensões.

60 TIMM, Luciana Benetti. “Qual a Maneira Mais Eficiente de Prover Direitos Fundamentais: Uma Perspectiva de Direito e Economia”. In SARLET. Ingo Wolfgang. TIMM, Luciano Benetti (organizadores). Direitos Fundamentais – Orçamento e Reserva do Possível. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 57.

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A compreensão da reserva do possível vai depender, em alguma medida, da

aproximação com a Economia, principalmente dos estudos de gastos públicos,

de composição de orçamentos e de impacto das decisões judiciais em toda a

cadeia de distribuição de rendas. Nesse sentido, ao inserir os conceitos de

reserva do possível e de mínimo ético irredutível no âmbito do Direito, em

especial no debate sobre a efetividade dos direitos fundamentais, deixar de

fora a contribuição da Economia é compreender o problema de forma restrita e,

como tal, incompleta.

SARLET e FIGUEIREDO61 historicizam a construção do conceito de mínimo

existencial :

Na doutrina do Pós-Guerra, o primeiro jurista de renome a sustentar a

possibilidade do reconhecimento de um direito subjetivo à garantia positiva dos

recursos mínimos para uma existência digna foi o publicista Otto Bachof, que, já

no início da década de 1950, considerou que o princípio da dignidade da pessoa

humana (art. 1°, da Lei Fundamental da Alemanha, na sequência referida como

LF) não reclama apenas a garantia da liberdade, mas também um mínimo de

segurança social, já que, sem os recursos materiais para uma existência digna, a

própria dignidade da pessoa humana ficaria sacrificada. Por esta razão, o direito à

vida e integridade corporal (art. 2°, inci. II, da LF) não pode ser concebido

meramente como proibição de destruição da existência, isto é, como direito de

defesa, impondo, ao revés, também uma postura ativa no sentido de garantir a

vida. Cerca de um ano depois da paradigmática formulação de Bachof, o Tribunal

Federal Administrativo da Alemanha (Bundesverwaltungsgericht) já no primeiro

ano de sua existência, reconheceu um direito subjetivo do indivíduo carente a

auxílio material por parte do Estado, argumentando, igualmente com base no

postulado da dignidade da pessoa humana, no direito geral de liberdade e no

direito à vida, que o indivíduo, na qualidade de pessoa autônoma e responsável,

deve ser reconhecido como titular de direitos e obrigações, o que implica

principalmente a manutenção de suas condições de existência.

De fato, a vida de uma pessoa não se resume à mera existência. Ao contrário,

existem condições mínimas sem as quais é até difícil separar o homem do

animal. Essas condições, evidentemente, se referem à alimentação adequada,

61 SARLET, Ingo Wolfgang. FIGUEIREDO, Mariana Filchtine. “Reserva do Possível, Mínimo Existencial e Direito à Saúde: Algumas Aproximações”. In: SARLET. Ingo Wolfgang. TIMM, Luciano Benetti (organizadores). Direitos Fundamentais – Orçamento e Reserva do Possível. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 19.

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lugar minimamente confortável para morar e, principalmente, condições de

exercer opções que permitam, a partir do seu trabalho e da sua iniciativa,

modificar as condições de vida para melhor.

Essas opções devem ser fornecidas pelo Estado a partir do uso racional e

correto dos recursos públicos, competindo-lhe fornecer saúde, educação,

acesso a crédito para aquisição de moradia, formação profissional que permita

a inserção no mundo do trabalho e, nas situações limite em que o indivíduo se

encontra, fornecer a alimentação necessária para que ele não sucumba.

Leciona RICARDO LOBO TORRES62:

Só os direitos da pessoa humana, referidos a sua existência em condições dignas,

compõem o mínimo existencial. Assim, ficam fora do âmbito do mínimo existencial

os direitos das empresas ou das pessoas jurídicas, ao contrário do que acontece

com os direitos fundamentais em geral.

O direito a existência deve ser entendido no sentido que lhe dá a filosofia, ou seja,

como direito ancorado no ser-aí (Da-sein) ou no ser-no-mundo (in-der-Welt-sein).

Integra a ‘estrutura de correspondências de pessoas ou coisas’, em que afinal

consiste o ordenamento jurídico. Não se confunde com o direito à vida, que tem

duração continuada entre o nascimento e a morte e extensão maior que o de

existência, que é situacional e não raro transitória. A Corte Constitucional da

Alemanha define o mínimo existencial como o que é ‘necessário à existência

digna’ (ein menschenwurdiges Dasein notwendig sei).

As definições são carregadas de intersubjetividade como é próprio a tudo o que

diz respeito à dignidade da pessoa humana. Assim, definir o mínimo existencial

e as pessoas a quem esse mínimo deva ser garantido são os problemas

concretos que a efetividade dos direitos fundamentais propõe para os

estudiosos de Direito.

FERNANDO FACURY SCAF63 afirma:

Os economistas possuem uma expressão bastante interessante, denominada

‘Limite do Orçamento’, que depois foi trasladada para o Direito, a partir de uma

62 TORRES, Ricardo Lobo. O Direito ao Mínimo Existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, 36-37. 63 SCAF, Fernando Facury. “Sentenças Aditivas, Direitos Sociais e Reserva do Possível”. In: SARLET. Ingo Wolfgang. TIMM, Luciano Benetti (organizadores). Direitos Fundamentais – Orçamento e Reserva do Possível. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 169.

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decisão do Tribunal Constitucional Alemão, com o nome de ‘Reserva do Possível’.

O significado é o mesmo: todo orçamento possui um limite que deve ser utilizado

de acordo com as exigências de harmonização da econômica geral.

A reserva do possível como construção teórica também tem origem na

Alemanha do pós-guerra, e propõe que a prestação por parte do Estado dos

elementos essenciais para a garantia do mínimo existencial esteja

condicionada aos recursos arrecadados e disponibilizados pelo Estado em

consonância com o orçamento público. Em outras palavras, sendo o Estado o

agente arrecadador e organizador do orçamento, cabe a ele, pela via do

Executivo e do Legislativo, construir o orçamento a partir de escolhas que

estariam inseridas no âmbito da discricionariedade do Estado.

ANA PAULA DE BARCELLOS64 expõe sua opinião a respeito do assunto:

De forma geral, a expressão reserva do possível procura identificar o fenômeno

econômico da limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades quase

sempre infinitas a serem por eles supridas. (...) a reserva do possível significa que,

para além das discussões jurídicas sobre o que se pode exigir judicialmente do

Estado – e em última análise da sociedade, já que é esta que o sustenta -, é

importante lembrar que há um limite de possibilidades materiais para esses

direitos. Novamente: pouco adiantará, do ponto de vista prático, a previsão

normativa ou a refinada técnica hermenêutica se absolutamente não houver

dinheiro para custear a despesa gerada por determinado direito subjetivo.

A rigor, sob o título da reserva do possível convivem ao menos duas espécies de

fenômenos. O primeiro deles lida com a inexistência fática de recursos, algo

próximo da exaustão orçamentária, e pode ser identificado como reserva do

possível fática. (...) O segundo fenômeno identifica uma reserva do possível

jurídica já que não descreve propriamente um estado de exaustão de recursos, e

sim a ausência de autorização orçamentária para determinado gasto em particular.

Após afirmar que a reserva do possível não mereceu estudos mais

sistematizados no Brasil até a década de 90, a referida autora ressalta:

64 BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. 2ª edição. R. de Janeiro: Renovar, 2008, p. 261.

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Na ausência de um estudo mais aprofundado, a reserva do possível funcionou

muitas vezes como o moto mágico, porque assustador e desconhecido, que

impedia qualquer avanço na sindicabilidade dos direitos sociais. A iminência do

terror econômico, anunciada tantas vezes pelo Executivo, cuidava de reservar ao

Judiciário o papel de vilão nacional, caso determinadas decisões fossem tomadas.

De fato, esse é o grande risco que aparece como resultado da falta de estudos

mais sistematizados sobre o tema da reserva do possível. Trata-se de um

conceito que não pode ser demonizado como sinônimo de falta de decisão dos

poderes republicanos em efetivar os direitos fundamentais; e que, por outro

lado, não pode ser negado porque, realmente, representa um sentido de justiça

na aplicação dos recursos que são públicos e, portanto, de todos os atores

sociais.

Nos países latino-americanos cuja marca central da administração pública tem

sido a má gestão dos recursos (em especial como decorrência da corrupção), a

utilização da reserva do possível como argumento para sustentar a negativa de

acesso a direitos fundamentais suscita controvérsias.

Há um temor generalizado entre a população e os juristas no sentido de que a

alegação do Estado sobre reserva do possível seja, na verdade, apenas fruto

da má administração dos recursos, muitos deles utilizados forma

absolutamente indevida e ilegal, para favorecer interesses de administradores

públicos e seus aliados políticos.

CARLOS ANTONIO LEITE BRANDÃO65 nos ensina:

[...] Do ponto de vista da polis, dá a corrupção quando dilui-se o “muro” entre a

esfera pública e o interesse privado, facultando a este roubar – privare – aqueles

bens e serviços comuns. Corrompe-se, assim, não apenas o patrimônio público,

mas, antes, o próprio corpo político que o constituiu e as leis que o mantinham.

Não se trata de pensar a corrupção apenas como degeneração moral do

governante ou do agente público, mas, principalmente, como deterioração da polis

e das idéias de cidade e de bem público no interior de toda a comunidade política;

não apenas de condenar o legislador ou funcionário público corrupto, mas também

o próprio corruptor anônimo que se fortalece num universo em que o bem comum,

a polis, e sua lei encontram-se fragilizados.

65 BRANDÃO, Carlos Antonio Leite. “Corrupção e Cidade”. In: AVRITZER, Leonardo (et all.) Corrupção: Ensaios e Críticas. Belo Horizonte: UFMG, 2008, p. 194.

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No Brasil, o acúmulo de denúncias de corrupção, de malversação do dinheiro

público e também de mero desperdício e falta de planejamento na gestão do

interesse social, constrói o senso comum de que existem recursos para todas

as necessidades sociais; e, se eles não aparecem para supri-las, é porque

foram roubados ou desviados. A mídia contribui em boa parte para corroborar

esse ideário ingênuo de que existem recursos públicos infinitos e que os gastos

são sempre realizados de forma propositadamente errada, ou que os recursos

são desviados antes mesmo de sua utilização.

Na verdade tudo isso ocorre: corrupção, má utilização dos recursos, perdas

consideráveis por total falta de planejamento. Mas, para algumas

necessidades, os recursos jamais serão integralmente suficientes, como

acontece no caso da saúde pública. São tantas e tão diversificadas as

hipóteses, as variáveis, as necessidades e os que precisam de acesso a ela,

que a conta muito dificilmente fechará. Em se tratando de saúde pública é

possível afirmar que os recursos jamais serão suficientes para suprir todas as

necessidades dos cidadãos brasileiros. É preciso, portanto, administrar os

recursos com planejamento técnico e estratégico, de modo a atender a maior

quantidade possível de necessidades.

Portanto, o conceito de reserva do possível pode ser aplicado à saúde pública

no Brasil contemporâneo. Não é apenas uma construção teórica para ser

utilizada para afastar a responsabilidade do Estado em relação à efetividade

dos direitos fundamentais, em especial os direitos sociais; ao contrário, esse

conceito se inclui no âmbito maior da ideia de planejamento das atividades

públicas para que elas possam suprir a maior quantidade de necessidades,

com eficiência e democracia.

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CAPÍTULO III ESTUDO DOS FUNDAMENTOS JURÍDICOS DE JULGADOS SOBRE SAÚDE PÚBLICA .

Neste capítulo serão analisados alguns julgados de Tribunais de Justiça

Estaduais, do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal,

todos decidindo pedidos individuais de concessão de medicamentos,

tratamentos médicos ou fornecimento de órteses e próteses no âmbito da

saúde pública.

O objetivo é estudar os argumentos utilizados pelos desembargadores e

ministros na concessão ou negativa dos pedidos individuais levados ao Poder

Judiciário, e a forma como o debate em torno da questão do direito à saúde

versus utilização dos recursos públicos se coloca no âmbito das decisões

judiciais.

A reflexão sobre a competência das diversas esferas de poder (federal,

estadual e municipal) para oferecimento de serviços de saúde não é objeto

deste Capítulo, assim como não será analisado o argumento da ingerência do

Judiciário sobre o Executivo e do suposto desequilíbrio da harmonia e

independência dos poderes. Tais temas, embora relevantes, não são objeto do

presente estudo, que pretende analisar os argumentos utilizados pelo Judiciário

na aplicação dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e

do direito à saúde.

A análise dos argumentos tem por objetivo estudar em que medida as

categorias ativismo judicial ou protagonismo judicial são adequadas para

explicar o que ocorre no âmbito das decisões individualizadas dos processos

judiciais sobre saúde pública. Também adquire especial relevância a

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discussão em torno dos elementos fundamentais que compõem os argumentos

decisórios no sentido de detectar se eles limitam a interpretação do texto

constitucional ou migram para o debate político em torno do direito à saúde.

A questão ativismo ou protagonismo judicial se avoluma na esteira da

participação crescente do Poder Judiciário na solução de uma enorme gama de

assuntos no cotidiano da sociedade brasileira. É tema de estudos no âmbito do

Direito, mas também da Ciência Política.

A sociedade brasileira pós-Constituição Federal de 1988 passou a acreditar no

Poder Judiciário como instância em que os problemas são resolvidos, embora

o decurso de tempo para obter a decisão seja sempre muito longo e

incompatível com as necessidades mais urgentes. No entanto, para as

situações que demandam urgência existe a possibilidade de utilização de

institutos processuais como as tutelas antecipadas e a obtenção de medidas

liminares.

Essa credibilidade do Poder Judiciário é compatível com uma sociedade em

que os cidadãos começam a se perceber como sujeitos de direito e não apenas

como sujeitos de deveres. O período da ditadura militar foi bastante marcado

por um sentimento de nacionalismo como dever, expresso em mensagens

publicitárias que lembravam ao brasileiro suas obrigações para com a pátria.

Os direitos eram garantidos pelo poder militar e pouco comentados.

Os movimentos sociais que ocorreram ao final da década de 70 e durante

quase toda a década de 80, em especial nos grandes centros urbanos, deram

início à construção de uma identidade cidadã que teria seu apogeu na

promulgação da Constituição Federal, quando então o próprio Deputado

ULYSSES GUIMARÃES, presidente dos trabalhos da Assembleia Nacional

Constituinte, se incumbiu de forjar a expressão até hoje consagrada –

Constituição cidadã. Uma Constituição cidadã para uma sociedade que

resgatava a liberdade democrática e que, fundamentalmente, retomava a

possibilidade de ter e exercer direitos.

E quem consagra o direito? Quem diz o direito? Quem determina quem tem e

quem não tem direito? O Poder Judiciário!

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Também contribuiu para o protagonismo do Poder Judiciário após a

promulgação da Constituição Federal de 1988 os sucessivos problemas

vivenciados pelo Executivo e pelo Legislativo, com parte de seus membros

envolvidos em graves suspeitas de prática de corrupção, improbidade e quebra

de decoro, o que gerou inúmeras Comissões Parlamentares de Inquérito

transmitidas ao vivo pelas redes televisivas e pelas rádios, noticiadas à

exaustão nos jornais e revistas semanais e satirizadas em programas de humor

de grande audiência, fazendo com que a credibilidade desses poderes

descesse a índices muito baixos.

A introdução da TV Justiça com transmissão de sessões do Supremo Tribunal

Federal familiarizou a sociedade brasileira com essa instância decisória. Temas

de forte apelo emocional que foram decididos pelo STF nos últimos anos (uso

de células-tronco embrionárias para pesquisas e casamento entre pessoas do

mesmo sexo, entre outros), fizeram com que a mídia passasse a divulgar

sistematicamente as atividades do órgão julgador tornando-o mais presente no

cotidiano nacional.

Outro fator que contribuiu para que o Poder Judiciário se tornasse o locus

prioritariamente procurado por parte da população para solução de seus

problemas cotidianos foi a formação dos profissionais de Direito brasileiros,

marcadamente processualista, e que se gradua acreditando na demanda

judicial como solução de todos os problemas. A análise dos currículos dos

cursos de Direito em todo o País permite verificar a quantidade de períodos em

que se estuda Direito processual em contraposição ao pouco tempo dedicado à

capacitação do aluno para a solução de conflitos por outros meios.

Não temos no Brasil a tradição da solução de conflitos por mediação ou

arbitragem. Embora sejam institutos regulados por lei, são praticamente

inutilizados para os conflitos cotidianos. Na atualidade, as controvérsias

empresariais contratuais de maior porte já começam a ser solucionadas

prioritariamente por arbitragem em razão da celeridade que essa solução

propicia. Mas a mediação ainda não alcança a efetividade desejada para

desafogar o Poder Judiciário e solucionar com rapidez as questões mais

corriqueiras que envolvem a população.

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Dois aspectos, portanto, são identificados neste trabalho como fundamentais

para explicar o fenômeno da judicialização que tem ocorrido no Brasil nos

últimos anos: a credibilidade do Poder Judiciário frente aos demais poderes

republicanos, e a formação jurídica brasileira, que aponta o litígio processual

como principal fonte de solução de controvérsias de qualquer natureza. A

formação jurídica tampouco será objeto de análise nesta pesquisa, até porque

foi tratada em tese de doutorado da pesquisadora na área de Educação66. O

objetivo é compreender quais argumentos têm sido utilizados pelos

magistrados de Segunda Instância nas decisões proferidas em favor de

requerentes que pretendem acesso à saúde pública, e se esses argumentos

caracterizam os fenômenos do ativismo ou do protagonismo judicial.

Os termos ativismo e protagonismo judicial têm sido utilizados com maior

frequência nos estudos jurídicos, assim como judicialização da política, objeto

de vários estudos na área de Ciências Políticas.

Utilizando como base de reflexão crítica o trabalho de TORNBJORN VALLINDER

(When Courts Go Marching In), KOERNER, INATOMI E BARRATO67 relatam:

Num primeiro sentido, este conceito é sinônimo da “expansão global do Poder

Judiciário”, que se refere à infusão de processos decisórios judiciais ou análogos a

eles em arenas políticas nas quais eles não ocorriam previamente. [...]

Ele diferencia as características das cortes e das legislaturas em função dos

seguintes critérios: atores, métodos de trabalho, regras básicas de decisão, a

resposta e as implicações das decisões. As cortes têm como atores as duas

partes do litígio e um terceiro, que atuam num processo de produção de

evidências e argumentação em audiências públicas; a decisão é tomada por um

juiz imparcial e se fixa em casos individuais, cujos fatos ela determina e

estabelece a regra relevante. A decisão adquire o estatuto de “a única solução

correta”. Na legislatura há múltiplos atores, que estabelecem relações de

barganha, compromissos e alianças ocasionais; a decisão é tomada pelo princípio

66 CARLINI. Angélica L. Aprendizagem Baseada em Problemas Aplicada ao Ensino de Direito: Projeto Exploratório na Área de Relações de Consumo. São Paulo: PUC, 2006, Tese, Programa de Pós-Graduação em Educação: Currículo. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaPeriodicoForm.do. Acesso em 12 de outubro de 2011. 67 KOERNER, Andrei. INATOMI, Celli Cook. BARATTO, Márcia. “Sobre o Judiciário e a Judicialização”. In MOTA, Maurício. MOTTA, Luiz Eduardo. O Estado Democrático de Direito Em Questão. S.Paulo: Elsevier, 2011, p. 149-179.

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majoritário e tem o caráter de fixar regras gerais sobre políticas, implicando a

alocação de valores na comunidade política. A decisão tem o caráter de “a

solução politicamente possível”. [...]

As democracias contemporâneas estariam passando por um processo de

expansão do Poder Judiciário, que levaria ao domínio dos juízes sobre as

decisões políticas em detrimento dos representantes eleitos, presentes nas

instituições majoritárias.

VALLINDER, KORNER, INATOMI e BARATTO ainda destacam que a matriz do

fenômeno social da judicialização da política é a reorganização das

democracias europeias após a Segunda Guerra Mundial, uma forma de

prevenir os acontecimentos que permitiram a ascensão do nazismo e do

fascismo ao poder. Também as reações ao planejamento estatal da economia

e a restauração das teorias políticas deontológicas e/ou de direito natural em

resposta ao utilitarismo que havia predominado na primeira metade do século

XX são apontadas como fatores determinantes para o surgimento do fenômeno

da judicialização da política.

Parece claro que o fenômeno implica o fortalecimento do papel do Judiciário e

o consequente enfraquecimento dos poderes Executivo e Legislativo, que

acontece em democracias em processo de reorganização após momentos

históricos de desrespeito ao Estado Democrático de Direito.

No Brasil o fenômeno da judicialização da política é contemporâneo ao início

da vigência da Constituição Federal de 1988, e se acentua a partir da década

de 90 quando, envolvidos em outros problemas, os poderes Executivo e

Legislativo não conseguem dar as respostas de efetividade de direitos

fundamentais sociais para todos os cidadãos, criando um clima de marcada

frustração com a democracia.

Essa efetividade dos direitos sociais começa a ser garantida pelo Poder

Judiciário, e ocupa um espaço cada vez maior no século XXI, quando estudos

sobre o tema começam a ser produzidos em boa escala.

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No entanto, para KOERNER68 o fenômeno da judicialização da política pode nem

existir e ser, na verdade, outra forma de fazer política nesta quadra histórica.

Para ele o Poder Judiciário integra o sistema político assim como o Legislativo

e o Executivo, e, portanto, a judicialização da política neste momento histórico

seria apenas uma nova forma de os cidadãos participarem do jogo

democrático, sem que isso possa levar à conclusão de que existe, de fato, uma

preponderância do Poder Judiciário sobre os demais.

No âmbito da saúde pública, essa ponderação de KOERNER é importante

porque o tema é tão fundamental para a vida social que não deixa de ser

tratado em nenhuma das esferas de poder. De forma continuada existem

participações do Legislativo, do Executivo e do Judiciário no debate sobre a

efetividade da saúde pública.

Projetos de lei são debatidos, medidas administrativas implementadas e parte

da população participando dos Conselhos Municipais de Saúde. Há, portanto,

participação conjunta do Legislativo e do Executivo no debate da saúde

pública, ao mesmo tempo em que são adotadas decisões judiciais sobre o

mesmo tema.

O que essa pesquisa pretende saber é se os resultados obtidos por meio de

decisões judiciais na saúde pública poderiam ser obtidos fora desse espaço

com ganho social efetivo, porque desafogariam o Poder Judiciário, tornariam

mais céleres as decisões que efetivamente só ele pode fornecer e se

ampliariam o campo de efetividade dos direitos fundamentais. Em outras

palavras, não se trata de debater se o Poder Judiciário pode ou não decidir

acesso à saúde pública, mas refletir sobre que demandas têm sido levadas a

esse poder republicano, e, se necessariamente elas deveriam ser alvo de

decisão judicial, ou se poderiam ser solucionadas em outras esferas da vida

política.

ALEXANDRE VERONESE69 critica a posição de KOERNER quando afirma:

68 KOERNER, Andrei. Judiciário e Cidadania na Constituição da República Brasileira. S.Paulo: Hucitec, 1998, p. 127. 69 VERONESE, Alexandre. “A Judicialização da Política na América Latina: Panorama do Debate Teórico Contemporâneo”. In: COUTINHO. Jacinto Nelson de Miranda. FRAGALE FILHO, Roberto. LOBÃO, Ronaldo (organizadores) Constituição & Ativismo Judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p.

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Uma crítica à perspectiva de Koerner pode ser feita a partir da indicação de que ele

reduziu conceitualmente as decisões judiciárias ao mesmo patamar das decisões

políticas. [...]

Ao contrário, se a pista de Koerner for seguida e o sistema judiciário for entendido

como parte do sistema político, sem especificidade, terá o desaparecimento desta

tarefa do judiciário: a busca de um quadro que sirva de referência para ações

sociais, separada funcionalmente da via política. Portanto, ter-se-á liquidado –

previamente, do ponto de vista analítico – a compreensão de que os atores sociais

entendem as decisões políticas como baseadas em uma fonte de autoridade e

legitimidade diversa das decisões judiciárias. Será que esta pressuposição

analítica é razoável para fundar uma base teórica?

De fato, há certo reducionismo em pensar a atuação do Judiciário como uma

nova dimensão da esfera do político, sobretudo porque, no âmbito da saúde, as

decisões continuam sendo individuais, sem a necessária repercussão na

melhoria do sistema coletivo, que deve ser a prioridade quando se trata de

direitos sociais.

Mas, por outro lado, a posição de VERONESE também pode merecer crítica, na

perspectiva de que o imaginário social distingue claramente as decisões

políticas das decisões jurídicas a partir do caráter de decidibilidade que é

inerente às jurídicas e não tão aparente quando se trata das políticas.

As decisões políticas têm por característica fundamental o sopesamento de

interesses dos diversos grupos organizados em partidos ou em outras formas,

como organizações, associações e sindicatos, por exemplo. Essas decisões

atendem a interesses que se sobrepõem a outros não necessariamente com

clareza de intenções, mas quase sempre por acordo dos atores sociais

envolvidos.

As decisões judiciais atendem à lógica da aplicação do Direito ao caso

concreto e, por isso, supostamente são justas ou injustas, mas não possuem

dimensão de articulação de interesses ou de arranjo político.

BARROSO70 distingue judicialização e ativismo, embora reconheça nos dois

conceitos traços de certa similitude. Para ele a judicialização no Brasil decorre

70 BARROSO. Luis Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. In: COUTINHO, FRAGALE FILHO e LOBÃO, obra citada, p. 279.

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do modelo constitucional, enquanto o ativismo é uma forma proativa de

interpretar a Constituição Federal em especial em momentos de retração do

Poder Legislativo.

Afirma o mencionado autor71:

A ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e

intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com

maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura

ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação

direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto

e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de

inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em

critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii)

a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em

matéria de políticas públicas.

As decisões judiciais no âmbito da saúde pública, para BARROSO, se encontram

na categoria de ativismo judicial mediante imposição de condutas ou de

abstenções ao Poder Público, principalmente em matérias de políticas públicas.

Ele exemplifica com o caso de distribuição de medicamentos e determinações

de terapias mediante decisão judicial.

Ocorre que a imposição judicial, no mais das vezes, é de caráter individual e

não influi nas políticas públicas, até prejudicando a realização delas nas

ocasiões em que comprovadamente a Prefeitura é obrigada, por decisão

judicial, a custear medicamento de alto preço para uma situação individual

específica, o que permite inferir que tais valores não serão utilizados em

políticas públicas de saúde que haviam sido planejadas e orçadas por aquele

governo municipal.

É claro que nos casos em que o Poder Judiciário determina, por exemplo, que

é direito de todos exigirem o fornecimento de medicamentos de uso continuado

para doenças crônicas, a situação é de imposição de políticas públicas; mas

nas decisões individualizadas, que chegam em número expressivo aos

71 Obra citada, p. 279.

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Tribunais brasileiros, a aplicação da Constituição Federal ao caso concreto não

tem o condão de gerar o planejamento e a implantação de uma política de

saúde.

Nesse sentido, o próprio LUIS ROBERTO BARROSO72 afirma:

Ao lado de intervenções necessárias e meritórias, tem havido uma profusão de

decisões extravagantes ou emocionais em matéria de medicamentos e terapias,

que põem em risco a própria continuidade das políticas públicas de saúde,

desorganizando a atividade administrativa e comprometendo a alocação dos

escassos recursos públicos. Em suma: o Judiciário quase sempre pode, mas nem

sempre deve interferir. Ter uma avaliação criteriosa da própria capacidade

institucional e optar por não exercer o poder, em autolimitação espontânea, antes

eleva do que diminui.

Por capacidade institucional BARROSO define a determinação de qual Poder

está mais capacitado tecnicamente para produzir a melhor decisão acerca de

determinado assunto socialmente relevante. Ele menciona, como exemplo, as

decisões recentes do Supremo Tribunal Federal a respeito da demarcação de

terras indígenas e da transposição de rios, que são de caráter extremamente

técnico e nem sempre ao alcance do Poder Judiciário.

O Supremo Tribunal Federal realizou audiências públicas para conhecer mais

detalhadamente aspectos referentes à saúde (em 27, 28 e 29 de abril, e em 4,

6 e 7 de maio de 2009), bem como para conhecer melhor a opinião de

especialistas sobre o início da vida (16 de abril de 2007), com vistas à

interpretação da lei que permite o uso de células-tronco embrionárias para

pesquisas.

Nessas duas oportunidades o Supremo Tribunal Federal buscou a contribuição

técnica de especialistas para construir um posicionamento sobre temas de

relevância social expressiva.

Na abertura da audiência publica de saúde, o Ministro GILMAR MENDES 73

afirma:

72 Obra citada, p. 285. 73 MENDES, Gilmar. Discurso de Abertura da Audiência Pública n. 04, convocada em 05 de março de 2009. Disponível em

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A Audiência objetiva esclarecer as questões técnicas, científicas, administrativas,

políticas e econômicas envolvidas nas decisões judiciais sobre saúde.

Por estar relacionada aos vários pedidos de suspensão que tratam da matéria,

esta Audiência Pública distingue-se das demais pela amplitude do tema em

debate. Todos nós, em certa medida, somos afetados pelas decisões judiciais que

buscam a efetivação do direito à saúde.

O fato é que a judicialização do direito à saúde ganhou tamanha importância

teórica e prática que envolve não apenas os operadores do direito, mas também

os gestores públicos, os profissionais da área de saúde e a sociedade civil como

um todo.

Se, por um lado, a atuação do Poder Judiciário é fundamental para o exercício

efetivo da cidadania e para a realização do direito social à saúde, por outro, as

decisões judiciais têm significado um forte ponto de tensão perante os

elaboradores e executores das políticas públicas, que se veem compelidos a

garantir prestações de direitos sociais das mais diversas, muitas vezes

contrastantes com a política estabelecida pelos governos para a área da saúde e

além das possibilidades orçamentárias. A ampliação dos benefícios reconhecidos

confronta-se continuamente com a higidez do sistema.

As considerações que serão apresentadas aqui interessam, de diferentes formas,

aos jurisdicionados e a todo o Poder Judiciário de todo o país e poderão ser

utilizadas para a instrução de qualquer processo no âmbito do Supremo Tribunal

Federal.

A fala do então Presidente do Supremo Tribunal Federal evidencia que o

âmbito político das decisões judiciais adotadas para os casos de saúde estava

claro para a Corte Suprema, assim como as consequências das decisões

judiciais no plano político-administrativo municipal.

Por outro lado, a declaração não expressa preocupação do Judiciário com a

ausência de dados técnicos precisos para avaliar o caso individualizado e as

consequências administrativo-financeiras da decisão para o município que terá

que cumpri-la. Nem sopesa que, em alguns casos, o Judiciário deveria deixar a

decisão para órgãos técnicos que pudessem avaliar o pedido com maior

amplitude de análise, considerando não apenas a necessidade individual, mas

também as consequências para a sociedade. http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSade/anexo/Abertura_da_Audiecia_Publica__MGM.pdf. Acesso em 12 de outubro de 2011.

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Em outras palavras, o Judiciário quer elementos técnicos para continuar a

proferir decisões e não para decidir que não deve atuar em casos para os quais

a solução não seja o debate em torno do cabimento do direito fundamental,

mas a insuficiência de recursos ou a impropriedade de utilizá-los para aquele

caso específico em detrimento de muitos outros que reclamam solução

coletiva.

Para JOANA DE SOUZA MACHADO74 é preciso reconhecer, a partir da análise da

realidade brasileira, marcada pela presença de uma Constituição substantiva e

pela fragilidade da cidadania, que judicialização da política e ativismo judicial

são conceitos diferentes.

Para ela, “(...) a judicialização da política, aqui compreendida como a

intervenção judicial em pautas substanciais, pode se fazer necessária em

contextos como o brasileiro. Isso não justifica, sob qualquer hipótese, a ideia de

que as jurisdições constitucionais assumam-se como protagonistas da

construção de uma moralidade pública." 75

E conclui:

Em sociedades pluralistas, não há uma concepção de bem, ou de política, pronta,

partilhada, que possa ser buscada na Constituição por intérpretes especializados.

Há, ao contrário, um desacordo permanente que só é estabilizado pelo Direito

quando este se produz em ambiente de ampla participação política.

A partir dessas premissas, a pesquisa definiu como manifestação de ativismo

judicial, ou, prática jurisdicional exorbitante, a tentativa de um protagonismo moral

ou político pelos Tribunais Constitucionais, pois nem mesmo o reconhecimento da

importância dessas instituições em sociedades órfãs de instituições políticas

sólidas pode autorizar que se implemente uma tecnocracia judicial.

No entender de JOANA DE SOUZA MACHADO, o ativismo judicial não contribui

para a efetividade democrática, até porque invade a esfera do debate político

necessário nas sociedades plurais.

74 MACHADO, Joana de Souza. Ativismo Judicial no Supremo Tribunal Federal. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2008, 120 páginas, dissertação. Programa de Teoria do Estado e Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2008, p. 108. 75 Obra citada, p. 108.

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Entendimento semelhante tem ELIVAL DA SILVA RAMOS76:

[...] por ativismo judicial deve-se entender o exercício da função jurisdicional para

além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe,

institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições

subjetivas (conflitos de interesses) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva

(conflitos normativos). Há, como visto, uma sinalização claramente negativa no

tocante às práticas ativistas, por importarem na desnaturação da atividade típica

do Poder Judiciário, em detrimento dos demais poderes. Não se pode deixar de

registrar que o fenômeno golpeia mais fortemente o Poder Legislativo, o qual tanto

pode ter o produto da legiferação irregularmente invalidado por decisão ativista

(em sede de controle de constitucionalidade), quanto o seu espaço de

conformação normativa invadido por decisões excessivamente criativas.

O debate se acirra exatamente nesse aspecto: a divisão entre aqueles que

acreditam que a atuação do Poder Judiciário deva ocorrer como forma de

efetivar os direitos fundamentais que a fragilidade do Executivo e do Legislativo

tem impedido no Brasil pós-88, e a corrente do pensamento contemporâneo,

que detecta mais problemas do que soluções na atuação do Poder Judiciário

no âmbito das questões políticas, situação essa que contribui para fragilizar

ainda mais o sistema democrático.

Esse debate não é recente!

SAMPAIO DÓRIA77, em 1926, já se pronunciava sobre o tema:

O que é preciso antes do mais é não cair na armadilha de que as questões

políticas são fenômenos simples e unilaterais. Não há uma só questão, mas

questões várias, na “questão política”. E estas várias questões que se encerram

na “questão política”, ora são realmente e exclusivamente políticas, ora realmente

e exclusivamente judiciais. É política, quando se resolve pela apreciação arbitrária

das conveniências, sem que haja direitos legais em jogo. É judicial, quando se

resolve pela aplicação da lei a direitos individuais, certos e líquidos.

Mais recentemente, CASS SUSTEIN78 afirmou:

76 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial. Parâmetros Dogmáticos. S.Paulo: Saraiva, 2010, p. 129. 77 DORIA, Sampaio. Princípios Constitucionais. Apud RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial. Parâmetros Dogmáticos. S.Paulo: Saraiva, 2010, p. 147. 78 SUSTEIN, Cass. A Constituição Parcial. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 186-190.

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As cortes possuem graves limites institucionais, os quais são argumentos contra

um papel judicial de maior importância nas reformas sociais. São três os

problemas de maior interesse: 1) depender das cortes poderá prejudicar os canais

democráticos utilizados para a busca de mudanças, e de duas maneiras. Poderia

distrair as energias e recursos da política, e a eventual decisão judicial poderia

barrar um desfecho político; (...) 2) as decisões judiciais são notavelmente

ineficazes para propalar mudanças sociais. Estudos diversos chegaram a

documentar essa conclusão (...) 3) a adjudicação é um sistema excepcionalmente

fraco para reforma social em grande escala. Raramente os tribunais se tornam

especialistas nas áreas em questão. Ademais, o enfoque nos casos sob litígio

dificulta aos juízes a compreensão dos efeitos complexos e frequentemente

imprevisíveis da intervenção judicial. O conhecimento desses efeitos é crucial mas

às vezes está inacessível.

Alinhando-se entre os que defendem a preponderância do papel do Poder

Judiciário, MARCO AURÉLIO ROMAGNOLI TAVARES79 afirma:

Dentro das relações de poder, intrínsecas ao Estado, surge a figura proeminente

do Judiciário, hoje o poder em voga no Brasil, já que está em curso uma gradativa

execução de uma forma de ativismo judicial, capitaneado pelo STF, ou seja, diante

da clara impossibilidade da existência de vácuo de poder, decorrente diretamente

de um legislativo inoperante, dominado por escândalos de corrupção, bem como

de um executivo anabolizado, que busca dominar politicamente todas as esferas

de poder. Surge a figura protagonista dos tribunais e de magistrados que aos

poucos buscam limitar os excessos praticados pelas administrações, assim como

suprir a ausência de definições legislativas que deveriam acompanhar os avanços

econômicos, sociais e científicos. [...]

O Judiciário nacional, porém, encontra-se em uma encruzilhada pois necessita

atuar cada vez mais, já não somente para adequar a constituição jurídica à

constituição real como defende Hesse, mas para se fazer presente em áreas não

afeitas à sua concepção original. Frise-se que esta expansão se faz primordial

para a manutenção da paz social e integridade das instituições governamentais,

mas cria distorções já que o sistema tripartite clássico não responde

adequadamente às necessidades sociais dos dias atuais.

E ressalta ROMAGNOLI TAVARES,

79 TAVARES, Marco Aurélio Romagnoli. Ativismo Judicial e Políticas Públicas. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2011, p.105-112.

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[...] quando se fala em uma jurisdição ativa, fala-se, na realidade, na necessidade

de intervenção do Estado-juiz dotado de consciência social e formação política

suficientes para identificar as causas que reivindicam a sua interferência,

buscando-se sempre o equilíbrio social das desigualdades e a aproximação dos

direitos fundamentais daqueles que somente os conhecem por ouvir dizer. [...]

[...] a vontade popular manifestou-se na Constituinte e foi a de que se iniciasse de

imediato o cumprimento pelo Estado dos direitos individuais e sociais

fundamentais previstos, não cabendo, no presente momento, a retomada de

qualquer discussão a esse respeito, em qualquer esfera de poder.

Dessa forma, encontra-se a atuação do Juiz com consciência sociopolítica, ao

interferir no ato administrativo ou legislativo, fundamentada no tripé básico que

sustenta o Estado democrático de direito contemporâneo, qual seja, na Justiça, no

Direito e na Lei.

A ênfase em uma Justiça que possa realizar sozinha o processo democrático

não é opinião isolada de ROMAGNOLI TAVARES. Não raro é defendida por

magistrados que acreditam que a fragilidade do Executivo e do Legislativo

possa ser compensada com êxito por decisões judiciais individuais que obrigue

o Estado a realizar a efetividade do direito de quem requereu.

Essa linha de pensamento evidencia o quanto a prática política perdeu

credibilidade no Brasil, associada hoje mais comumente a uma atividade inútil,

quando não voltada exclusivamente para o atendimento dos interesses

particulares dos parlamentares e membros do Executivo. O cidadão brasileiro

contemporâneo, em sua maioria, identifica como prática política apenas o voto

obrigatório, sem se motivar para a inserção em partidos políticos, associações,

sindicatos, conselhos ou outras formas de debate coletivo de ideias

fundamentais para a sociedade.

Os debates políticos travados por grupos plurais em jornais ou em programas

de rádio, próprios da primeira metade do século XX, foram substituídos pela

notícia pasteurizada dos noticiários, das revistas semanais e dos jornais, quase

sempre sem a profundidade de análise necessária para permitir reflexões mais

alargadas.

A dimensão social da prática política perdeu espaço no Brasil após a ditadura

militar iniciada em 64; mas, se o contexto histórico pudesse ser analisado com

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maior largueza neste trabalho (o que não será viável por não ser este o objetivo

da pesquisa), seria possível constatar que a participação política do cidadão

brasileiro quase sempre foi tímida e exclusivamente pontual, como nos

momentos da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, das Diretas Já ou,

ainda, do Movimento Sindical de São Bernardo do Campo, mas descontinuada

e difusa.

O Estado autoritário (acostumado a recorrer a militares para garantir a ordem),

as elites conservadoras na manutenção de seus interesses tanto políticos

como econômicos e a baixa qualidade e quantidade de acesso à educação são

fatores, dentre outros, que podem ser apontados como determinantes na

fragilidade da participação política brasileira.

No momento contemporâneo existem indícios de um novo modo de pensar a

participação política com o uso das redes sociais, o que sinaliza a possibilidade

de crescimento da participação dos cidadãos no debate político, em especial

na compreensão do papel a ser exercido coletivamente pelo povo no processo

democrático.

Associar a ideia de cidadania ativa ao ato de um cidadão ir ao Poder Judiciário,

sozinho, requerer concessão de medicamentos gratuitos, fornecimento de

órteses, próteses ou medicamentos excepcionais de alto custo ou tratamentos

experimentais em outros países (entre outros pedidos formulados diariamente

nos vários fóruns do País), limita em muito o conceito de cidadania, e ainda

restringe por demasia a atividade política.

Quem pretende obter, por meio de uma decisão judicial, um direito para seu

caso concreto age com uma dimensão de cidadania, mas não incorpora a

prática política coletiva a essa cidadania; ao contrário, mantém a cidadania nos

estreitos limites do conceito liberal do século XVIII.

Por outro lado, o magistrado que decide o caso concreto individual

determinando a efetividade da aplicação de direitos sociais constitucionalmente

a todas as pessoas sinaliza para a coletividade que casos semelhantes

poderão ter o mesmo desfecho, mas não consolida o acesso aos direitos nem

à democracia.

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EVALDO VIEIRA80 afirma:

O mais perfeito e seguro sustentáculo do Estado de direito é a sociedade

democrática. Só ela possui vitalidade capaz de mantê-lo e protegê-lo contra as

paixões antropofágicas de seus defensores e de seus opositores. Falar da

sociedade democrática é de novo aludir a palavras de gasto diário na atualidade.

De tão mencionadas podem significar tudo ou podem significar nada, quando

precisam ter um sentido determinado.

Para alguns, a sociedade industrial de massas ou sociedade de consumo de

massas é a sociedade democrática. Pensam eles que a integração da população

ao mercado da produção industrial, inclusive da população ainda à margem do

grande consumo, é o ato final da edificação da sociedade democrática. Mas aqui

se fala da sociedade democrática, fundamental para a estabilidade do Estado de

Direito.

As sociedades de nossos dias são sociedades de massa, mesmo quando algumas

ainda caminham para o consumo amplo. Porém, nem toda sociedade é sociedade

democrática. Sociedade democrática é aquela na qual corre real participação de

todos os indivíduos nos mecanismos de controle das decisões, havendo portanto

real participação deles nos rendimentos da produção. Participar dos rendimentos

da produção envolve não só mecanismos de distribuição da renda, mas sobretudo

níveis crescentes de coletivização das decisões principalmente nas diversas

formas de produção.

Sem o debate político prévio e o esgotamento das vias institucionais

democráticas, a utilização do Poder Judiciário para obtenção de direitos

individuais na área de direitos sociais é próxima da obtenção de um “serviço”

disponível para poucos, até porque não são todos que necessitam de direitos

sociais que dispõem de condições de acessar o Judiciário, ainda que por meio

da advocacia pública.

Existe o risco do papel ativo do Poder Judiciário se converter em “prestação de

serviços” para os que dispõem de acesso à Justiça, o que contribuirá para

maior fragilidade dos poderes Legislativo e Executivo que serão instigados

apenas no caso individual e não para o planejamento e execução de medidas

coletivas de efetividade dos direitos sociais.

80 VIEIRA, Evaldo. Direitos e Política Social. 3ª edição, S.Paulo: Cortez, 2009, p. 134.

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Ao contrário de “capitanear” uma transformação diante do vácuo de poder,

como afirma ROMAGNOLI TAVARES, o Poder Judiciário poderá se converter em

mecanismo de maior esvaziamento do Estado Democrático de Direito, seja em

relação à fragilidade dos demais poderes, seja para a construção de um

cidadão ainda mais isolado, que só entende de direitos por uma dimensão

individualizada e pragmática de obtenção de resultados por sentença proferida

em juízo.

A fragilidade do Executivo e do Legislativo se caracterizará, então, pela

ausência de participação do cidadão na fiscalização de suas atuações e,

consequentemente, pelo maior distanciamento entre as decisões e a vontade

popular. Enfraquecidos pela falta de credibilidade, e isolados pelo não uso dos

mecanismos constitucionais de fiscalização, os poderes Executivo e Legislativo

poderão atuar de forma ainda mais inconsistente do que já atuam na atualidade

no Brasil.

Pondera SARLET81:

[...] assume caráter emergencial uma crescente conscientização por parte dos

órgãos do Poder Judiciário, de que não apenas podem como devem zelar pela

efetivação dos direitos fundamentais, mas que, ao fazê-lo, haverão de obrar com

máxima cautela e responsabilidade, seja ao concederem (seja quando negarem)

um direito subjetivo a determinada prestação social, ou mesmo quando

declararem a inconstitucionalidade de alguma medida estatal com base na

alegação de uma violação de direitos sociais, sem que tal postura, como já

esperamos ter logrado fundamentar, venha a implicar necessariamente uma

violação do princípio democrático e do princípio da separação de Poderes. Neste

sentido (e desde que assegurada a atuação dos órgãos jurisdicionais, quando e

na medida do necessário) efetivamente há que se dar razão a Holmes e a

Sunstein quando afirmam que levar direitos a sério (especialmente pelo prisma da

eficácia e da efetividade) é sempre também levar a sério o problema da escassez.

[...]

No que diz com a atuação do Poder Judiciário, não há como desconsiderar o

problema de sua prudente e responsável autolimitação funcional (do assim

designado judicial self restraint), que evidentemente deve estar sempre em

sintonia com a sua necessária e já afirmada legitimação para atuar, de modo

81 SARLET, Ingo Wolfgang. “Os Direitos Fundamentais Sociais: Algumas Notas sobre seu Conteúdo, Eficácia e Efetividade nos Vinte Anos da Constituição Federal de 1988”. In: AGRA, Walber de Moura (coordenador), Retrospectiva dos Vinte Anos da Constituição Federal. S.Paulo: Saraiva, 2009.

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proativo, no controle dos atos do poder público em prol da efetivação ótima dos

direitos (de todos os direitos fundamentais). Que a atuação jurisdicional – sempre

provocada – não apenas não dispensa, como inclusive exige uma contribuição

efetiva dos demais atores políticos e sociais, como é o caso do Ministério Público,

das agências reguladoras, dos Tribunais de Contas, das organizações sociais de

um modo geral, bem como dos cidadãos individualmente considerados, resulta

evidente, mas nem sempre corresponde a uma prática institucional efetiva nesta

seara.

Também pondera SILVIA BADIM MARQUES82:

Revela-se, portanto, fundamental que os juízes, promotores de justiça, gestores

públicos, sociedade civil, operadores do direito, sanitaristas, membros de

academia, entre outros envolvidos na temática, discutam de forma ampla o tema

em debate e proponham soluções conjuntas para minimizar o conflito social-

político evidenciado. Porém, é dentro de cada instrução processual que devem ser

traçados os rumos da atuação judicial, por parte dos atores que o compõem. É

dentro de cada processo que devem ser postos os meios à disposição dos juízes,

capazes de balizar a sua decisão. E, também é dentro de cada processo que o

direito individual à saúde deve ser confrontado com o direito coletivo e com a

política pública estabelecida em matéria de saúde, por meio de provas e saberes

técnicos necessários para discutir o caso concreto.

E, se é preciso que o Poder Judiciário avance em relação à incorporação da

dimensão política que compõe o direito à saúde, é preciso também que os

gestores públicos avancem em relação à elaboração e implementação das

políticas de saúde no Brasil, bem como em relação à organização administrativa

da prestação dos serviços de saúde, que, muitas vezes, deixam os cidadãos sem

a correta assistência médica e farmacêutica e também sem espaço adequado e

direto para participação popular, sem um canal administrativo capaz de ouvir e

processar as diferentes demandas da sociedade nesta seara, sem informações

disponíveis de forma clara a todos que necessitam de um medicamento ou

tratamento de saúde. Este é um quadro que, frequentemente, não confere ao

cidadão outra alternativa senão buscar a tutela jurisdicional para ver garantido o

direito.

Faz-se, necessário, ainda, o avanço da própria ciência, no sentido de analisar as

diferentes variáveis do problema exposto e de harmonizar o entendimento sobre o

82 MARQUES, Silvia Badim. Judicialização do Direito à Saúde. S.Paulo: Revista de Direito Sanitário, v.9, n.2, p.65-72, julho/outubro 2008.

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que se convencionou chamar, hoje, de “judicialização” das políticas de saúde ou

apenas “judicialização” da saúde.

As posições de SARLET e MARQUES refletem, em boa medida, o pensamento de

parte do Poder Judiciário, que já se deu conta de que as decisões

individualizadas não solucionam o problema da efetividade do acesso à saúde

no Brasil, porque a cada caso solucionado outros milhares surgem e quase

sempre com pedidos muito semelhantes.

O que antes poderia ser tratado como o papel central do Judiciário na função

de guardião da Constituição Federal, hoje, com o acúmulo de processos

judiciais requerendo sempre os mesmos instrumentos para a efetividade dos

direitos sociais, é preocupante, e levou o Conselho Nacional de Justiça a

incentivar um debate nacional sobre a questão, inclusive para a construção de

soluções de ordem prática para permitir aos magistrados brasileiros que

conheçam melhor os temas sobre os quais estão julgando.

Em 03 de agosto de 2010, o Conselho Nacional de Justiça criou o Fórum

Nacional do Judiciário para Monitoramento e Resolução das Demandas de

Assistência à Saúde, que tem como objetivo83:

[...] a elaboração de estudos e a proposição de medidas e normas para o

aperfeiçoamento de procedimentos e a prevenção de novos conflitos judiciais na

área da saúde. O fórum busca criar ainda medidas concretas voltadas à

otimização de rotinas processuais bem como à estruturação e organização de

unidades judiciárias especializadas.

O Fórum foi criado após a realização da Audiência Pública n. 04 pelo Supremo

Tribunal Federal, e aprovou a Resolução n. 107, de 201084 e a Resolução 31,

de 30 de março de 2010.85

83 Disponível em http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/saude-e-meio-ambiente. Acesso em 15.10.2011. 84 RESOLUÇÃO Nº 107, DE 6 ABRIL DE 2010 Institui o Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento e resolução das demandas de assistência à saúde O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, no uso de suas atribuições constitucionais e regimentais, e, CONSIDERANDO o elevado número e a ampla diversidade dos litígios referentes ao direito à saúde, bem como o forte impacto dos dispêndios decorrentes sobre os orçamentos públicos;

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CONSIDERANDO os resultados coletados na audiência pública nº 04, realizada pelo Supremo Tribunal Federal para debater as questões relativas às demandas judiciais que objetivam prestações de saúde; CONSIDERANDO o que dispõe a Recomendação nº 31 do Conselho Nacional de Justiça, de 30 de março de 2010; CONSIDERANDO o deliberado pelo Plenário do Conselho Nacional de Justiça na 102ª Sessão Ordinária, realizada em 6 de abril de 2010, nos autos do ATO 0002243-92.2010.2.00.0000; R E S O L V E : Art. 1º Fica instituído, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, o Fórum Nacional para o monitoramento e resolução das demandas de assistência à saúde, com a atribuição de elaborar estudos e propor medidas concretas e normativas para o aperfeiçoamento de procedimentos, o reforço à efetividade dos processos judiciais e à prevenção de novos conflitos. Art. 2º Caberá ao Fórum Nacional: I - o monitoramento das ações judiciais que envolvam prestações de assistência à saúde, como o fornecimento de medicamentos, produtos ou insumos em geral, tratamentos e disponibilização de leitos hospitalares; II - o monitoramento das ações judiciais relativas ao Sistema Único de Saúde; III - a proposição de medidas concretas e normativas voltadas à otimização de rotinas processuais, à organização e estruturação de unidades judiciárias especializadas; IV - a proposição de medidas concretas e normativas voltadas à prevenção de conflitos judiciais e à definição de estratégias nas questões de direito sanitário; V - o estudo e a proposição de outras medidas consideradas pertinentes ao cumprimento do objetivo do Fórum Nacional. Art. 3º No âmbito do Fórum Nacional serão instituídos comitês executivos, sob a coordenação de magistrados indicados pela Presidência e/ou pela Corregedoria Nacional de Justiça, para coordenar e executar as ações de natureza específica, que forem consideradas relevantes, a partir dos objetivos do artigo anterior. Parágrafo único. Os relatórios de atividades do Fórum deverão ser apresentados ao Plenário do CNJ semestralmente. Art. 4º O Fórum Nacional será integrado por magistrados atuantes em unidades jurisdicionais, especializadas ou não, que tratem de temas relacionados ao objeto de sua atuação, podendo contar com o auxílio de autoridades e especialistas com atuação nas áreas correlatas, especialmente do Conselho Nacional do Ministério Público, do Ministério Público Federal, dos Estados e do Distrito Federal, das Defensorias Públicas, da Ordem dos Advogados do Brasil, de universidades e outras instituições de pesquisa. Art. 5º Para dotar o Fórum Nacional dos meios necessários ao fiel desempenho de suas atribuições, o Conselho Nacional de Justiça poderá firmar termos de acordo de cooperação técnica ou convênios com órgãos e entidades públicas e privadas, cuja atuação institucional esteja voltada à busca de solução dos conflitos já mencionados precedentemente. Art. 6º O Fórum Nacional será coordenado pelos Conselheiros integrantes da Comissão de Relacionamento Institucional e Comunicação. Art. 7º Caberá ao Fórum Nacional, em sua primeira reunião, a elaboração de seu programa de trabalho e cronograma de atividades. Art. 8º As reuniões periódicas dos integrantes do Fórum Nacional poderão adotar o sistema de videoconferência, prioritariamente. Art. 9º Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação. Ministro GILMAR MENDES 85 Resolução n. 31 de 2010 CONSIDERANDO, finalmente, indicação formulada pelo grupo de trabalho designado, através da Portaria nº 650, de 20 de novembro de 2009, do Ministro Presidente do Conselho Nacional de Justiça, para proceder a estudos e propor medidas que visem a aperfeiçoar a prestação jurisdicional em matéria de assistência à saúde; CONSIDERANDO a decisão plenária da 101ª Sessão Ordinária do dia 23 de março de 2010 deste E. Conselho Nacional de Justiça, exarada nos autos do Ato nº 0001954-62.2010.2.00.0000; RESOLVE: I. Recomendar aos Tribunais de Justiça dos Estados e aos Tribunais Regionais Federais que: a) até dezembro de 2010 celebrem convênios que objetivem disponibilizar apoio técnico composto por médicos e farmacêuticos para auxiliar os magistrados na formação de um juízo

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A Resolução 31 de 2010 fornece diretrizes para o trabalho dos magistrados,

principalmente em relação à necessidade de informações médicas para

respaldar as decisões que serão tomadas. Também recomenda que os

gestores da área de saúde sejam ouvidos para que possam esclarecer as

razões de suas decisões, em especial quanto a negativas de atendimento, de

internação, de fornecimento de medicamentos ou outras.

Especialmente importante é a recomendação no sentido de que os magistrados

determinem, no momento da concessão de medida abrangida por política

pública existente, a inscrição do beneficiário nos respectivos programas. Esse

enfoque fortalece o âmbito político do debate e das práticas de saúde pública,

em contraposição às sentenças judiciais individualizadas que afastam essa

dimensão.

de valor quanto à apreciação das questões clínicas apresentadas pelas partes das ações relativas à saúde, observadas as peculiaridades regionais; b) orientem, através das suas corregedorias, aos magistrados vinculados, que: b.1) procurem instruir as ações, tanto quanto possível, com relatórios médicos, com descrição da doença, inclusive CID, contendo prescrição de medicamentos, com denominação genérica ou princípio ativo, produtos, órteses, próteses e insumos em geral, com posologia exata; b.2) evitem autorizar o fornecimento de medicamentos ainda não registrados pela ANVISA, ou em fase experimental, ressalvadas as exceções expressamente previstas em lei; b.3) ouçam, quando possível, preferencialmente por meio eletrônico, os gestores, antes da apreciação de medidas de urgência; b.4) verifiquem, junto à Comissão Nacional de Ética em Pesquisas (CONEP), se os requerentes fazem parte de programas de pesquisa experimental dos laboratórios, caso em que estes devem assumir a continuidade do tratamento; b.5) determinem, no momento da concessão de medida abrangida por política pública existente, a inscrição do beneficiário nos respectivos programas; c) incluam a legislação relativa ao direito sanitário como matéria individualizada no programa de direito administrativo dos respectivos concursos para ingresso na carreira da magistratura, de acordo com a relação mínima de disciplinas estabelecida pela Resolução 75/2009 do Conselho Nacional de Justiça; d) promovam, para fins de conhecimento prático de funcionamento, visitas dos magistrados aos Conselhos Municipais e Estaduais de Saúde, bem como às unidades de saúde pública ou conveniadas ao SUS, dispensários de medicamentos e a hospitais habilitados em Oncologia como Unidade de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia - UNACON ou Centro de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia - CACON; II. Recomendar à Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM, à Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho - ENAMAT e às Escolas de Magistratura Federais e Estaduais que: a) incorporem o direito sanitário nos programas dos cursos de formação, vitaliciamento e aperfeiçoamento de magistrados; b) promovam a realização de seminários para estudo e mobilização na área da saúde, congregando magistrados, membros do ministério público e gestores, no sentido de propiciar maior entrosamento sobre a matéria; Publique-se e encaminhe-se cópia desta Recomendação a todos os Tribunais. Ministro GILMAR MENDES

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Não menos importante é a recomendação para que os magistrados evitem

conceder medicamentos experimentais ou ainda não registrados pela Agência

Nacional de Vigilância Sanitária. Em princípio, essa recomendação soa quase

como desnecessária porque não é crível que seja preciso dizer ao Poder

Judiciário para acatar as decisões do Poder Executivo em sua área técnica de

atuação. Porém, em tempos marcados por casos de difícil solução e, tendo-se

em vista que o modelo gerencial de Estado vê no trabalho das agências uma

importante forma de atuação técnica que ainda não se consolidou inteiramente

na cultura jurídica nacional, a recomendação do Conselho Nacional de Justiça

é compreensível e enfatiza a importância de reconhecer na Agência Nacional

de Vigilância Sanitária o órgão técnico especializado para definir que

medicamentos são passíveis de serem adotados no Brasil e quais não são.

Novamente aqui a decisão individualizada perde importância em relação à

decisão coletiva adotada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que

leva em conta aspectos técnicos objetivos, e que visualiza a dimensão pública,

em especial para o fornecimento de medicamentos como políticas públicas de

saúde.

Por fim, a Resolução 31 de 2010 do Conselho Nacional de Justiça quer que os

magistrados sejam mais bem informados sobre os aspectos específicos da

saúde, e que interajam com organismos como os Conselhos Municipais e

Estaduais de Saúde e também com as unidades de saúde pública ou

conveniadas ao SUS, dispensários de medicamentos e a hospitais habilitados

em Oncologia como a Unidade de Assistência de Alta Complexidade em

Oncologia (UNACON) ou o Centro de Assistência de Alta Complexidade em

Oncologia (CACON), entre outros existentes e atuantes nas políticas públicas

de saúde.

Essa recomendação situa o debate na esfera pública e minimiza os ganhos

obtidos no âmbito individualizado, reconduzindo a questão da saúde pública

para o seu locus próprio em um Estado Democrático de Direito.

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Nesse sentido, afirma CASS R. SUNSTEIN86

Depender das cortes poderá prejudicar os canais democráticos utilizados para a

busca de mudanças, e de duas maneiras. Poderia distrair as energias e os

recursos da política, e a eventual decisão judicial poderia barrar um desfecho

político.

Em ambas as acusações, o prejuízo para a democracia poderá ser muito sério. O

recurso à política tende a mobilizar os cidadãos sobre as questões públicas, e a

mobilização é boa para os indivíduos e para a sociedade como um todo. Pode

inculcar compromissos políticos, entendimentos mais amplos, sentimentos de

cidadania e dedicação à comunidade. A ênfase no judiciário frequentemente

compromete esses valores. A invalidação judicial de desfechos políticos poderia

muito bem ter efeitos corrosivos sobre os processos democráticos. Dentro dessa

conexão é importante que se lembre que muito possivelmente Martin Luther King

foi uma fonte muito mais importante de mudanças constitucionais do que qualquer

uma ou até mesmo do que todas as decisões sobre questões raciais da Suprema

Corte do Justice Warren.

E FABIANA MARION SPLENGER87 problematiza:

[...] em torno do Judiciário vem se criando uma inovadora arena pública, externa

ao circuito clássico “sociedade civil – partidos – representação – formação da

vontade majoritária”, consistindo em ângulo perturbador para a teoria clássica da

soberania popular. Nessa nova arena, os procedimentos políticos de mediação

cedem espaço aos judiciais, expondo o Poder Judiciário a uma interpelação direta

do indivíduo, de grupos sociais e até de partidos a um tipo de comunicação em

que prevalece a lógica dos princípios, do Direito material, deixando-se para trás as

antigas fronteiras que separavam o tempo passado , no qual a lei geral e abstrata

embasa seu fundamento, no tempo futuro, aberto à infiltração do imaginário, do

ético e do justo. [...]

Nesses termos, a dúvida se instala: “não será a justiça em sua atual conformação,

além de substituta do imperador, o próprio monarca substituído?”. De fato, cria-se

a expectativa de que o Judiciário funcione como uma instância moral, atuando

como um terceiro neutro e imparcial, auxiliando as partes na solução dos conflitos

86 Obra citada, p. 186. 87 SPLENGER, Fabiana Marion. “A Crise da Jurisdição e os Novos Contornos da Função Jurisdicional: (IN)Eficiência Face à Conflituosidade Social”. In: REIS, Jorge Rento. LEAL, Rogério Gesta (organizadores) Direitos Sociais & Políticas Públicas – Desafios Contemporâneos – volume 8. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2008, p. 2271

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por meio de uma decisão imparcial e objetiva. Então, o Magistrado passa a ter um

papel central, como um ser excepcional.

A Recomendação 31, de 2010, do Conselho Nacional de Justiça, estimula os

magistrados a abdicarem do papel central a que se refere SPLENGER, ou a

agirem de forma a não barrar o desfecho político, como sugere SUNSTEIN.

A proximidade com os Conselhos Municipais e Estaduais de Saúde, com os

dispensários de medicamentos e com outros órgãos que efetivem as políticas

públicas de saúde poderá permitir ao Poder Judiciário que indique, em suas

decisões, caminhos públicos mais eficientes para a solução de casos concretos

do que aqueles que seriam obtidos por meio de uma sentença judicial

individualizada.

O diálogo democrático plural construído com o auxílio de diferenciados atores

sociais se torna mais eficaz se contar com a colaboração do Poder Judiciário

que, conhecendo os mecanismos já implantados pela Administração Pública

para a efetividade do acesso à saúde, poderá compreender melhor os pleitos

individuais e, principalmente, decidir por soluções que não estabeleçam

privilégios e respeitem os esforços que estão sendo realizados para contemplar

os direitos de todos.

1. Análise por amostragem de argumentos que fundam entam algumas

decisões judiciais sobre saúde no Brasil

A análise de algumas decisões judiciais proferidas por Tribunais de Justiça e

pelo Supremo Tribunal Federal contribuirá neste trabalho para a compreensão

dos principais argumentos utilizados pelos magistrados para fundamentar as

decisões.

De forma intencional, foram analisadas poucas decisões judiciais para que

houvesse maior espaço para a reflexão sobre os argumentos utilizados, e o

diálogo dessas decisões com a produção acadêmica sobre o tema.

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Existem estudos sistemáticos sobre as decisões judiciais na área de saúde

tanto pública como privada88 que foram consultados para este trabalho. Mas

aqui o objetivo não é a comparação das decisões, mas a pesquisa de alguns

argumentos utilizados pelos magistrados de forma reiterada para fornecer

substrato jurídico aos julgados. Tais argumentos têm especial importância

porque constituem as mensagens que a sociedade civil e a Administração

Pública recebem e, nessa medida, sinalizam os procedimentos a serem

adotados em casos semelhantes.

Para os cidadãos brasileiros cada decisão judicial representa a extensão do

que é possível conseguir em juízo em relação à efetividade do direito social à

saúde. Por isso, não raro, decisões judiciais são divulgadas pela mídia

nacionalmente, têm grande repercussão e incentivam novos processos judiciais

para obtenção de medicamentos, tratamentos, órteses, próteses e outras

formas corriqueiras ou excepcionais de tratamento de saúde.

A análise que este trabalho pretendeu realizar se cinge aos fundamentos, sem

derivar para análise do discurso ou para a análise da teoria da argumentação,

embora reconheçamos a grande importância de tais estudos contemporâneos

para a compreensão das decisões judiciais.

Aqui a análise está restrita aos dispositivos legais utilizados nos acórdãos e a

compreensão dos magistrados sobre a aplicação dos direitos sociais

constitucionais. Foram analisados detalhadamente cinco acórdãos estaduais e

dois do Supremo Tribunal Federal, embora tenham sido pesquisados e

estudados cinquenta julgados.

A leitura dos cinquenta julgados permitiu detectar que os argumentos utilizados

são, quase sempre, a conjugação do artigo 6º com o artigo 196 da Constituição

Federal, para concluir que o cidadão tem direito de ter acesso integral à saúde.

88 TRETTEL, Daniela Batalha. Planos de Saúde: O Direito à Saúde está sendo Efetivado? Estudo do Posicionamento dos Tribunais Superiores na Análise dos Conflitos entre Usuários e Operadoras de Planos de Saúde. S.Paulo: Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2009, 154 páginas. Dissertação, Programa de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. WANG, Daniel Wei Liang. Escassez de Recursos, Custos dos Direitos e Reserva do Possível na Jurisprudência do STF. S.Paulo: Revista Direito GV São Paulo, n.04 (2), p. 539-568, julho-dezembro de 2008.

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Também é recorrente o fato de que os argumentos apresentados pelo médico

assistente do requerente são considerados verdadeiros, substrato de fato

suficiente para a decisão judicial, em especial quando há alegação de urgência

ou de emergência.

Os cinco casos selecionados foram os que mais claramente ignoraram os

argumentos utilizados pelo Estado em sua defesa.

O primeiro acórdão, do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, trata de

pedido de fornecimento de angioplastia com stent.89

1.1. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS

5ª Câmara Cível

Relator – Desembargador NEPOMUCENO SILVA

Processo n.º 1.015309.090175-9/0001 (1)

Julgado em 01/07/2010

Publicado em 21/07/2010

EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA - DIREITO A SAÚDE - OB RIGAÇÃO

SOLIDÁRIA DO MUNICÍPIO - SEGURANÇA QUE SE MANTÉM. A ÇÃO

ORDINÁRIA. TUTELA ANTECIPADA. DIREITO À SAÚDE. OBRI GAÇÃO DO

ESTADO. A efetivação do direito à saúde é dever ina fastável do Estado,

devendo ele empreender todos os esforços para a sua concretização, sob

pena de violação ao direito fundamental maior que é a vida.

[...]

VOTO

Trata-se de mandado de segurança, impetrado por JANDIRA CHATHOUD DE

BARROS, contra ato do SECRETÁRIO MUNICIPAL DE SAÚDE DA CIDADE DE

CATAGUASES, alegando, em síntese, necessitar, em razão do seu estado de

saúde, inclusive, com risco de vida, por ser portadora de síndrome coronariana

grave, realizar uma angioplastia com stent, não tendo condições financeiras para

custear tal exame. Inconformado com a r. sentença, de fls. 85/88, que concedeu a

89 STENT - pequena mola de aço inoxidável entrelaçado. Disponível em http://www.hc.unicamp.br/laboratorios/lab-cateterismo.shtml. Acesso em 15 de outubro de 2010.

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segurança, o MUNICÍPIO DE CATAGUASES interpôs o presente recurso, pelas

razões expostas nas fls. 98/122.

Contrarrazões (fls. 128/135), em infirmação óbvia.

Parecer ministerial (fl. 143/146) pela confirmação da sentença, prejudicado o

apelo.

É o relato, no breve.

Recurso próprio e tempestivo, dele conheço.

Trata-se de tema corriqueiro neste Sodalício. Por sua exauriência, basta ao

desate, transcrever o parecer do Dr. Oliveira Salgado de Paiva, ilustre Procurador

de Justiça.

Com efeito, a Constituição Federal, em seu art. 196, estabelece ser de

responsabilidade do Estado a manutenção de Sistema Único que garanta ao

Cidadão o acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção de

sua saúde, proteção e recuperação.

Por outro lado, o art. 198, da Lei Maior, estabelece que o sistema único de saúde

visa o atendimento integral, o qual, além das medidas preventivas, engloba

também os serviços assistenciais.

Ao contrário do entendimento do apelante, o Estado, assim como os demais entes

da federação, é detentor de competência para cuidar da saúde e da assistência

pública, uma vez que o Sistema Único de Saúde está fundado no princípio da

cogestão, fazendo com que haja participação simultânea de cada ente estatal em

sua administração.

Finalmente, cabe ressaltar que o direito à saúde e, via de consequência, o direito

à própria vida, consagrados na Constituição Federal, mostram-se auto-executável,

merecendo, portanto, ser sempre resguardados, mormente quando confrontados

com normas de caráter meramente administrativo.

Destarte, considerando ser direito do cidadão o acesso ao sistema único de saúde

e dever do Poder Público o atendimento a esse direito, não resta dúvida alguma

de que a impetrante deve ser atendida pelo Estado no que concerne ao

fornecimento dos medicamentos necessários para sua saúde.

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Os documentos juntados à inicial, por sua vez, demonstram a necessidade e

urgência da providência requerida.

Logo, qualquer decisão administrativa em sentido contrário, por parte das

autoridades responsáveis pelo SUS, choca-se frontalmente com a Constituição

Federal.

Ora, no caso dos autos a impetrante, para ver assegurada sua saúde, necessita

ser internado com urgência, em razão do seu quadro de saúde.

Não se pode, pois, o Estado, através de seus administradores, se furtar ao dever,

constitucionalmente previsto, de manter o sistema de saúde pública, transferindo o

ônus financeiro do tratamento médico recomendado para o particular.

Com tais expendimentos, rogando vênia, em reexame, confirmo a sentença,

ressaindo prejudicado.

O primeiro fundamento é o artigo 196 da Constituição Federal, destacado o

aspecto da responsabilidade do Estado na manutenção do Sistema Único de

Saúde de forma a garantir ao cidadão o acesso universal e igualitário às ações

e serviços para a promoção de sua saúde, proteção e recuperação.

Em seguida, o acórdão fundamenta a decisão no artigo 198 do texto

constitucional, que estabelece que o Sistema Único de Saúde tem por objetivo

o atendimento integral que, além das medidas preventivas, engloba os serviços

assistenciais.

Também foi utilizado como fundamento o direito à própria vida que, consagrado

na Constituição Federal como refere o acórdão, é auto executável e merece ser

resguardado, em especial quando confrontado com normas de caráter

administrativo.

O segundo acórdão, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, trata

da concessão de cirurgia bariátrica de emergência.

1.2. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIR O

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SEGUNDA CÂMARA CÍVEL

Relator – Desembargador JESSÉ TORRES

AGRAVO DE INSTRUMENTO

JULGAMENTO: 23/02/2011

0003886-22.2011.8.19.0000 -

DE C I S Ã O

Agravo de Instrumento. Ação de obrigação de fazer.

Decisão que impôs ao ente público o dever de proceder a intervenção cirúrgica.

Paciente hipossuficiente patrocinado pela Defensoria Pública. Responsabilidade

solidária da União, dos Estados e Municípios na operação do Sistema Único de

Saúde.

Recurso a que se nega seguimento.

Trata-se de agravo de instrumento interposto pelo MUNICÍPIO DE MAGÉ contra

decisão proferida pelo MM. Juízo de Direito da 1ª Vara Cível da Comarca de

Magé, que deferiu pleito de tutela antecipada para “compelir os réus a fornecer à

autora o procedimento cirúrgico e a sua internação pelo prazo necessário à

realização da cirurgia bariátrica, no prazo de 48 horas, sob pena de sequestro dos

ativos necessários à sua realização na rede hospitalar privada junto aos cofres do

Município ...”, no entendimento de que a doença da autora é grave e o

procedimento cirúrgico é indispensável à manutenção da saúde da autora (fls. 17).

Sustenta o Município agravante que não há prova de fundado receio de dano

irreparável ou de difícil reparação. Destarte, não estão presentes os requisitos

legais para a concessão da medida, pois a autora não comprovou que sua doença

lhe traz risco de vida, além do que sua moléstia não evolui de forma rápida,

indispensável à antecipação de provimento do mérito.

Pretende o agravante que o recurso seja recebido com eficácia suspensiva, para

que seja desobrigado de realizar a cirurgia.

O instrumento, ao abrigo da gratuidade (fls. 17), veio instruído com as peças

obrigatórias e outras que o recorrente reputou importantes (fls. 07-26).

A autora, ora agravada, dirigiu ação de obrigação de fazer ao Município de Magé e

ao Estado do Rio de Janeiro, em busca da realização de cirurgia bariátrica. Na

inicial, narra ser portadora de obesidade mórbida, com quadro clínico grave,

correndo risco de morte, daí os pareceres médicos que indicam a urgência da

cirurgia (fls. 07-14). Trouxe declaração da Secretaria Municipal de Magé no

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sentido de que, em consequência da obesidade mórbida, a paciente encontra-se

hipertensa e com quadro de depressão (fls. 16).

É o relatório.

A questão em lide não oferece maior indagação, tanto que já foi esquadrinhada e

decidida pelos Tribunais, de modo a compor firme e convincente orientação em

face da Constituição da República e da legislação específica, que determinam ser

dever do Estado fornecer medicamentos e tratamento de saúde àqueles que não

têm condições financeiras de suportar os gastos deles decorrentes, ao menos em

situação emergencial, tendo a autora comprovado sua necessidade

documentalmente, compondo o quadro de verossimilhança indispensável.

Trata-se de compelir a Administração Pública, através do Sistema Unificado de

Saúde-SUS de intervenção cirúrgica indispensável ao tratamento imediato, nos

termos de prescrição médica, de patologia de que é portadora paciente

hipossuficiente (cirurgia bariátrica).

A Súmula nº 65, do Tribunal de Justiça deste Estado, firmou o entendimento de

que “deriva-se dos mandamentos dos artigos 6º e 196 da Constituição Federal de

1988 e da Lei nº 6.080/90, a responsabilidade solidária da União, Estados e

Municípios, garantindo o fundamental direito à saúde e consequente antecipação

da respectiva tutela”.

A questão chegou às Cortes Superiores e lá a solução não discrepa da adotada

nos Pretórios Estaduais, dando-lhe sustentação. Basta rever a síntese lançada em

decisão do Supremo Tribunal Federal, que afirma ser dever do Estado promover a

saúde, ou na alegada afronta ao princípio da separação dos Poderes, a par de

mostrar o fundamento meritório da pretensão, verbis:“O preceito do artigo 196 da

Carta da República, de eficácia imediata, revela que ‘a saúde é direito de todos e

dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à

redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário

às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação’. A referência,

contida no preceito, a ‘Estado’ mostra-se abrangente, a alcançar a União Federal,

os Estados propriamente ditos, o Distrito Federal e os Municípios. Tanto é assim

que, relativamente ao Sistema Único de Saúde, diz-se do financiamento, nos

termos do artigo 195, com recursos do orçamento, da seguridade social, da União,

dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. Já o

caput do artigo informa, como diretriz, a descentralização das ações e serviços

públicos de saúde que devem integrar rede regionalizada e hierarquizada, com

direção única em cada esfera de governo. Não bastasse o parâmetro

constitucional de eficácia imediata, considerada a natureza, em si, da atividade,

afigura-se como fato incontroverso, porquanto registrada, no acórdão recorrido, a

existência de lei no sentido da obrigatoriedade de fornecerem-se os

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medicamentos ... às pessoas carentes... Reclamam-se do Estado (gênero) as

atividades que lhe são precípuas, nos campos da educação, da saúde e da

segurança pública, cobertos, em si, em termos de receita, pelos próprios impostos

pagos pelos cidadãos. É hora de atentar-se para o objetivo maior do próprio

Estado, ou seja, proporcionar vida gregária segura e com o mínimo de conforto

suficiente a atender ao valor maior atinente à preservação da dignidade do

homem. Pelas razões supra, ressaltando, mais uma vez, que, ao invés de conflitar

com os artigos 196, 197 e 198 da Constituição Federal, o acórdão atacado com

eles guarda perfeita afinidade, conheço do pedido formulado neste agravo, mas a

ele nego acolhida” (Ag. Inst. nº 238.328-0/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU, de

11.05.99, págs. 30-31).

Adite-se, no que respeita às repercussões orçamentárias, que sequer as normas

de contenção da despesa pública, consolidadas na Lei de Responsabilidade Fiscal

(Lei Complementar nº 101/00), são impeditivas do atendimento às necessidades

da população hipossuficiente pelos órgãos do SUS, sua clientela natural. Não o

são. Para esses órgãos, cuja finalidade institucional é aquele atendimento (no

desempenho da ação governamental a que se refere o art. 16 da LRF), o

fornecimento gratuito de assistência médica corresponde à despesa corrente

obrigatória de caráter continuado, cujo manejo decorra de lei, medida provisória ou

ato administrativo normativo (art. 17). Basta aplicá-lo. E ainda considerar,

analogicamente, que despesa decorrente de ordem judicial estará excluída das

despesas proibidas pela LRF, como o seu art. 19, § 1º, IV, proclama em relação

aos limites de despesas com pessoal.

A inicial trouxe prova da hipossuficiência da autora, assistida pela Defensoria

Pública; da gravidade da patologia de que é portadora; do tratamento que lhe foi

prescrito por serviço médico do próprio Município, tratamento ao qual é

indispensável a imediata cirurgia, com cujos custos a autora não tem condições de

arcar em rede particular. O suporte factual do pleito é, destarte, inequívoco.

O acórdão faz referência a Súmula nº 65, do próprio Tribunal de Justiça deste

Estado, que firmou o entendimento de que “deriva-se dos mandamentos dos

artigos 6º e 196 da Constituição Federal de 1988 e da Lei nº 6.080/90, a

responsabilidade solidária da União, Estados e Municípios, garantindo o

fundamental direito à saúde e consequente antecipação da respectiva tutela”.

Nesse caso, ainda, a argumentação da decisão está fundamentada no disposto

na Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei Complementar nº 101/00 –, cujas

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122

normas de contenção da despesa pública não são impeditivas ao atendimento

das necessidades da população hipossuficiente pelos órgãos do SUS, sua

clientela natural, conforme entendimento do Tribunal de Justiça do Rio de

Janeiro.

Afirma ainda o acórdão que, para esses órgãos cuja finalidade institucional é o

atendimento da população hipossuficiente, o fornecimento gratuito de

assistência médica corresponde à despesa corrente obrigatória de caráter

continuado. Além disso, destaca o acórdão que a despesa decorrente de

ordem judicial está excluída das despesas proibidas pela LRF, como consta do

art. 19, § 1º, IV.90

Esse argumento é importante porque interpreta o artigo 24 da Lei

Complementar 101, de 2000, de forma mais abrangente do que aquela que

aparentemente pretendeu o legislador.

Está consignado no artigo 24 da mencionada lei que:

Art. 24. Nenhum benefício ou serviço relativo à seguridade social poderá ser

criado, majorado ou estendido sem a indicação da fonte de custeio total, nos

termos do § 5o do art. 195 da Constituição, atendidas ainda as exigências do art.

17.

§ 1o É dispensada da compensação referida no art. 17 o aumento de despesa decorrente de: I - concessão de benefício a quem satisfaça as condições de habilitação prevista na legislação pertinente; II - expansão quantitativa do atendimento e dos serviços prestados; III - reajustamento de valor do benefício ou serviço, a fim de preservar o seu valor real. § 2o O disposto neste artigo aplica-se a benefício ou serviço de saúde, previdência e assistência social, inclusive os destinados aos servidores públicos e militares, ativos e inativos, e aos pensionistas.

90 Art. 19. Para os fins do disposto no caput do art. 169 da Constituição, a despesa total com pessoal, em cada período de apuração e em cada ente da Federação, não poderá exceder os percentuais da receita corrente líquida, a seguir discriminados: I - União: 50% (cinquenta por cento); II - Estados: 60% (sessenta por cento); III - Municípios: 60% (sessenta por cento). § 1o Na verificação do atendimento dos limites definidos neste artigo, não serão computadas as despesas: [...] IV - decorrentes de decisão judicial e da competência de período anterior ao da apuração a que se refere o § 2o do art. 18;

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123

A interpretação literal conduz à conclusão de que não há tanta margem de

autonomia por parte do Executivo que, no atendimento às necessidades de

saúde, terá que se ater à indicação da fonte de custeio. No entanto, o acórdão

do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro permite

compreender que, como não se trata de majoração, criação ou extensão de

benefício , mas tão somente de efetividade de benefício já previsto no texto da

Constituição Federal (acesso integral à saúde), a aplicação da Lei

Complementar 101 de 2000 não pode ser impeditiva.

Além disso, ao destacar no texto do acórdão que as decisões judiciais não

serão computadas como despesas, a decisão do Estado do Rio de Janeiro

pode ser recepcionada como um incentivo ao Poder Executivo para que não

atenda às demandas de acesso à saúde mais dispendiosas e que aguarde a

decisão judicial que, no âmbito da lei de responsabilidade fiscal, será mais

conveniente para o poder público.

Isso, de alguma forma, pode ser considerado um incentivo para que não haja

alternativa administrativa de solução de casos mais complexos ou

dispendiosos, ou em outras palavras, um incentivo à judicialização do acesso à

saúde.

As sucessivas decisões judiciais determinando a efetividade do direito à saúde

podem não atuar no sentido de motivar o Poder Público a um planejamento

ampliado, que garanta eficiência e gerenciamento na atenção à saúde. As

decisões judiciais podem não cumprir seu papel de indicativo para o Executivo

de que o Judiciário está atento à forma como o cidadão é tratado. Ao contrário,

as decisões judiciais poderão se converter em incentivo à falta de planejamento

com o custeio público da saúde, ancorados no argumento de que decisões

judiciais não impactam a responsabilidade fiscal.

O terceiro acórdão, do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, trata da

obrigação do município de fornecer fórmula alimentar para criança com

necessidade alimentar especial.

1.3. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DA BAHIA

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124

MANDADO DE SEGURANÇA: 52397-0/2008

Julgamento em 05/03/2009

Relatora Daysi Lago Ribeiro Coelho

CAMARAS CÍVEIS REUNIDAS

MANDADO DE SEGURANCA N.° 52397-0/2008

ORIGEM: SALVADOR

IMPETRANTE: SILVIA VIEIRA PASSOS, REP. POR SILVANA DE OLIVEIRA

VIEIRA

ADVOGADA: TATIANA PINHEIRO COUTINHO - OAB/BA 25.231

IMPETRADOS: SECRETÁRIO DE SAÚDE DO ESTADO DA BAHIA e

SECRETÁRIO DE SAÚDE DO MUNICÍPIO DO SALVADOR

RELATORA: DESA. DAISY LAGO RIBEIRO COELHO

EMENTA: MANDADO DE SEGURANCA.

FORNECIMENTO DE FÓRMULA ALIMENTAR NEOCATE A PESSOA DE

RECURSOS INSUFICIENTES. OBRIGAÇÃO DO PODER PÚBLICO.

PRELIMINARES REJEITADAS. LEGITIMIDADE PASSIVA DO SECRETÁRIO

MUNICIPAL DE SAÚDE. VIA MANDAMENTAL ADEQUADA. LAUDO MÉDICO

QUE DISPENSA DILAÇÃO PROBATÓRIA. CONCRETIZAÇÃO DA NORMA

CONSTITUCIONAL INSCRITA NO ART. 196. INCABÍVEL ARGUMENTAÇÃO

QUE OPONHA POLÍTICA PÚBLICA COMO ÓBICE DE ACESSO AO SISTEMA

PÚBLICO DE SAÚDE. OBRIGATORIEDADE DO MUNICÍPIO DE PRESTAR

ATENDIMENTO ÀQUELES QUE O PROCUREM EM SUAS UNIDADES DE

SAÚDE. PROGRAMA PÚBLICO ESPECÍFICO QUE COMPROVA A EXISTÊNCIA

DE PREVISÃO ORCAMENTÁRIA E RECURSOS FINANCEIROS. NÃO

INCIDÊNCIA DA RESERVA DO IMPOSSÍVEL. INAFASTABILIDADE DA TUTELA

JURISDICIONAL. NÃO VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS

PODERES. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA ENTRE O ESTADO DA BAHIA E

O MUNICÍPIO DO SALVADOR. PROVIMENTO TOTAL DA SEGURANCA.

1. O município não está obrigado a prestar atendimento a saúde apenas daqueles

que possuam comprovada residência em seus limites territoriais, mas daqueles

que busquem atendimento nas unidades por ele administradas. Interpretação que

restringe o acesso dos cidadãos nacionais ao sistema publico de saúde não se

compatibiliza com a forma federativa de organização do Estado brasileiro nem

respeita a Universalidade de acesso e a Descentralização, princípios norteadores

do SUS. Tendo havido omissão de unidade de saúde municipal na prestação do

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125

alimento Neocate, e parte legitima o Secretario de Saúde do Município para figurar

como autoridade coatora do mandado de segurança;

2. O laudo médico de conteúdo claro e conclusivo acerca da situação patológica e

das medidas terapêuticas necessárias ao restabelecimento da saúde da

impetrante e prova documental suficiente. Não havendo nos autos quaisquer

razões para duvida acerca da idoneidade e isenção da profissional que o firmou,

dispensa-se dilação probat6ria. A via mandamental e adequada ao reclamo do

direito;

3. O direito da impetrante ao atendimento publico de saúde, sendo esta uma

pessoa cujos recursos financeiros não lhe possibilitem arcar com o tratamento,

surge no momento em que se lhe apresenta a enfermidade, e não após submeter-

se a procedimentos administrativos. Os argumentos da política pública e da

necessária submissão a complexos procedimentos administrativos, colocados

como obstáculo de acesso do cidadão a saúde, retiram da norma inserta na

segunda parte do art. 196 a característica garantidora, o que não se mostra

compatível com a sistemática constitucional;

4. A existência do "Programa para Crianças com Necessidades Alimentares

Especiais", já implementado e vigente, demonstra que o Município do Salvador

possui não apenas recursos financeiros como previsão orçamentária especifica

para o fim buscado na ação. O reconhecimento pelo poder Judiciário do direito ao

recebimento da fórmula Neocate por pessoa carente e necessitada não viola a

separação dos poderes. Também não socorre a autoridade municipal o Principio

da Reserva do Possível;

5. Os Entes Federativos são solidariamente responsáveis pelo fornecimento

gratuito de medicamentos e congêneres, além de outras medidas terapêuticas,

necessários ao tratamento adequado de pessoa enferma que não possua

condições financeiras de custeá-lo.

PROVIMENTO TOTAL.

O acórdão tem na Ementa o argumento da aplicação do artigo 196 da

Constituição Federal e, nesse sentido, é bastante semelhante a todos que

tratam do mesmo tema. Inova, porém, em dois aspectos: ao decidir que não se

pode opor restrição de verbas de política pública já implementada pelo

Executivo (neste caso municipal); e que o município é responsável por prestar

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126

atendimento àqueles que procurem suas unidades, independentemente de

serem ou não moradores do mesmo.

Também destaca que o laudo médico é suficiente para provar a necessidade

pleiteada sem cogitar que outra avaliação pudesse ser produzida por outro

médico da rede pública e afeto à política pública implantada pelo município

para atender casos semelhantes.

No caso concreto de que trata o acórdão, o município de Salvador alegou que

possui um Programa para Crianças com Necessidades Alimentares Especiais e

que esse programa sequer foi procurado pelos genitores da criança que

necessita do alimento especial. Afirmou o município, ainda, que não pode o

cidadão pretender obter perante o Judiciário aquilo que o Executivo fornece,

mas sim que compete ao cidadão procurar os mecanismos existentes, atender

às solicitações de ordem administrativa e, dessa forma, se inserir no

atendimento.

Os argumentos foram afastados pelo Judiciário, que concedeu segurança para

garantir à criança, representada por seus pais, o acesso ao suplemento

alimentar necessário.

É importante destacar, também, que a criança e seus genitores não eram

moradores da capital do Estado, e sim de outro município, mas que buscaram

o serviço público de saúde em Salvador e ingressaram com o mandado de

segurança para conseguir que aquele município – e não o município de seu

domicílio – garantisse o fornecimento do suplemento alimentar.

Como um município poderá planejar políticas públicas de atendimento à saúde

de seus cidadãos se, de vez em quando, uma decisão judicial o obriga a inserir

mais um beneficiado, residente em outro município, mas que procurou seu

serviço de atendimento em saúde porque ele é mais eficiente?

Por que razão o Judiciário não determinou ao município de residência da

criança e de seus genitores que ressarcisse o município de Salvador das

despesas que ele terá que fazer para atender a um caso que não estava

orçado, não estava planejado e que se refere a morador de outra área?

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Como garantir equilíbrio e harmonia entre os poderes da República se o

argumento da existência da política pública destinada especificamente a esse

caso não é válido?

Como estimar custos para implantar políticas públicas em um cenário sujeito a

contingenciamento de verbas para pessoas não residentes e que, igualmente,

não são contribuintes?

Essas questões que, a princípio, podem soar apenas como parte de um

raciocínio esquemático, administrativo, que prioriza os meios em detrimento da

finalidade a ser alcançada (que, neste caso, é um direito fundamental) ganham

relevância à luz do artigo 37 da Constituição Federal, que associa o princípio

da legalidade ao da eficiência.

Se o município, por meio do Legislativo, cria políticas públicas devidamente

alocadas no orçamento e previamente planejadas para serem custeadas com

recursos obtidos pelo recolhimento de tributos e é surpreendido com

sucessivas decisões judiciais que ultrapassam esse orçamento e a destinação

porque inserem entre os beneficiários aqueles que não são munícipes, como

gerir com eficiência a Administração Pública?

Outro aspecto que merece reflexão é o posicionamento dos municípios que

não implantam políticas públicas de efetividade da saúde e que, em razão de

decisões judiciais dessa natureza, se sentirão mais confortáveis em promover o

transporte para municípios vizinhos que tenham um sistema público de saúde

melhor. Isso acontece comumente nos hospitais públicos das cidades com

maiores recursos médicos e financeiros.

A maior complexidade, no entanto, reside no fato de o Judiciário ter que aplicar

todos esses princípios administrativos e de organização pública a um caso

concreto e, com isso, negar o acesso à saúde para uma criança. Se proceder

dessa forma, o Judiciário cumprirá a lei e não fará justiça.

Existem, portanto, evidências suficientes para se afirmar que esses casos não

devam ser solucionados no âmbito do Poder Judiciário, mas sim na esfera

pública dos órgãos administrativos municipais, estaduais e federais com

fiscalização do Ministério Público e dos Defensores Públicos, como se tratará

no capítulo IV deste trabalho.

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128

O quarto acórdão, do Tribunal de Justiça do Estado do Pernambuco, trata do

fornecimento de medicamento de alto custo para paciente portador de

patologia grave.

1.4. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PERNAMBUCO

Segundo Grupo de Câmaras Cíveis

Julgamento – 22/09/2010

Processo nº 0015536-91.2009.8.17.0000 (200828-2)

Relator - Antônio Fernando de Araújo Martins

MANDADO DE SEGURANÇA. FORNECIMENTO DE MEDICAÇÃO DE ALTO

CUSTO. PATOLOGIA GRAVE. PRELIMINAR DE AUSÊNCIA DE PROVA PRÉ-

CONSTITUÍDA - REJEITADA. PRELIMINAR DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA

DO PEDIDO - NÃO CONHECIDA. MÉRITO: EXISTÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO

E CERTO. APLICAÇÃO DA SÚMULA 18 DO TJPE. Preliminar de ausência de

prova pré-constituída - rejeitada. É inquestionável que a saúde pública no nosso

país está longe de ser considerada eficiente, quão mais de garantir acesso amplo

e irrestrito aos cidadãos que dela necessitam. Assim sendo, não há como se

pretender que apenas os pacientes do quadro de médicos vinculados ao Sistema

Público de Saúde possam usufruir dos direitos consagrados na Constituição

Federal, Constituição do Estado de Pernambuco, bem como na Lei 8.080/90.

Preliminar de impossibilidade Jurídica do Pedido - não conhecida por se confundir

com a questão meritória. É cediço caber ao poder público velar pela preservação

da saúde e vida humanas, conforme consagra o caput do art. 5° da nossa Carta

Maior, o art. 159 da Constituição do Estado de Pernambuco, bem como a Lei

8.080/90.

À UNANIMIDADE DE VOTOS, FORAM REJEITADAS AS PRELIMINARES DE

AUSÊNCIA DE PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA E DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA

DO PEDIDO. NO MÉRITO, AINDA À UNANIMIDADE, CONCEDEU-SE A

SEGURANÇA, NOS TERMOS DO VOTO DO EMINENTE DESEMBARGADOR

RELATOR.

Nos argumentos utilizados está a Súmula 18 do Tribunal de Justiça do Estado

do Pernambuco que tem a seguinte redação:

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129

Súmula 18 – É dever do Estado-membro fornecer ao cidadão, sem ônus para

este, medicamento essencial ao tratamento de moléstia grave, ainda que não

previsto em lista oficial.

Neste caso concreto, o argumento do Poder Executivo é o de que não pode

aceitar a indicação exclusiva do medicamento por receituário de médico que

não pertença à rede pública, ou seja, de médico particular. Também alega que

os medicamentos devam ser adquiridos por meio de licitação prévia, em vista

do alto custo do produto.

Entendeu o Tribunal que o fato de o receituário ter sido prescrito por médico

não integrante do sistema público de saúde não é um problema. E, ainda, que

o risco a que está submetido o paciente – o de que poderá morrer se não

ingerir o medicamento, justifica a desnecessidade de licitação prévia.

No corpo do acórdão, o argumento utilizado é a aplicação do artigo 196 da

Constituição Federal e do 159 da Constituição do Estado do Pernambuco, que

assim determina:

Artigo 159 – A saúde é direito de todos e dever do Estado, assegurada mediante

políticas sociais, econômicas e ambientais, que visem a eliminação de riscos de

doenças e outros agravos e ao acesso universal e igualitário a ações e serviços

para sua promoção, proteção e recuperação.

Além disso, o Egrégio Tribunal do Estado do Pernambuco entendeu que:

[...] em casos como o desta espécie, deve-se atender ao critério do

balanceamento dos interesses em jogo (princípios da proporcionalidade e

razoabilidade), uma vez que, não sendo a patologia em questão devidamente

tratada, poderá ocasionar risco de óbito ao impetrante.

Registre-se, ainda, que não se pode aceitar qualquer argumentação no sentido de

restrição orçamentária para justificar o não deferimento do medicamento de que

necessita o impetrante. Nesse sentido, esta Egrégia Corte já firmou entendimento:

A comprovada necessidade do medicamento e a falta de condições de adquiri-lo,

legitima o direito do autor em buscar a tutela jurisdicional, amparada pela norma

constitucional (arts. 6º e 196), ante a omissão do Estado. Assim, não pode o Poder

Público furtar-se de cumprir com sua obrigação constitucional e garantir a saúde

de todos, sobre o manto da legalidade e suscitar questões administrativas e

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orçamentárias para se escusar de cumprir sua obrigação constitucional de garantir

a saúde de todos. (Mandado de Segurança 91094-3, Relator: Eduardo Augusto

Paura Peres, 1º Grupo de Câmaras Cíveis, julgamento 22/10/2003, Publicação: nº

DJ 109, 15/06/2004).

Algumas ponderações também podem ser construídas neste caso concreto.

A primeira delas é debater qual teria sido o prejuízo se um médico do sistema

público de saúde tivesse analisado o receituário prescrito e, por hipótese,

tivesse sugerido outro medicamento, com o mesmo potencial do indicado pelo

médico privado, porém já existente no dispensário público do Estado.

Não é raro que se encontre na vida prática medicamentos que custam muito

mais do que outros, e cujos laboratórios incentivam os médicos a receitá-los,

seja custeando pesquisas e participações em congressos, seja custeando

viagens de lazer ou aquisição de equipamentos para uso profissional ou,

simplesmente, remunerando em dinheiro as receitas firmadas pelo médico.

Causou forte impacto na análise crítica da indústria de medicamentos a

publicação do livro A Verdade sobre Os Laboratórios Farmacêuticos – como

somos enganados e o que podemos fazer a respeito, publicado por MARCIA

ANGELL, ex- editora do New England Journal of Medicine e atualmente

integrante do Departamento de Medicina Social da Harvard Medical School,

publicado em 2007, no Brasil91.

Especial destaque na obra é o tratamento dado aos chamados novos

medicamentos que, no entender da autora, muitas vezes são apenas imitações

de produtos já existentes no mercado, com pouquíssimas modificações e que

visam exclusivamente à renovação da patente e ao direito de exclusividade na

comercialização por mais 20 anos (prazo de validade das patentes nos Estados

Unidos).92

A mídia brasileira tem publicado com regularidade situações controvertidas de

médicos que são surpreendidos por receitar medicamentos mais caros ou

incompatíveis para determinadas patologias apenas porque recebem

91 ANGELL, Marcia. A Verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos. S.Paulo: Record, 2007, traduzido por Waldéa Barcellos. 92 Obra citada, p. 14, 69, 91.

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remuneração dos laboratórios farmacêuticos para estimularem a venda de

determinados produtos, normalmente, de custo mais caro.

Nessa realidade já bastante conhecida no Brasil, e sem comprometer o

tratamento do paciente que requereu o medicamento em juízo, indagamos: não

teria sido razoável propor que o Poder Executivo fizesse por meio de seu corpo

médico a análise do medicamento recomendado, e emitisse um laudo para

corroborar a recomendação do médico privado ou sugerir que outro

medicamento fosse utilizado?

Também parece razoável argumentar que teria sido recomendável, desde que

não houvesse prejuízo para o paciente, ou seja, em curtíssimo espaço de

tempo, que fosse feita a verificação sobre o medicamento existir no dispensário

da rede pública ou outro similar que pudesse ser utilizado sem prejuízo até que

a licitação fosse realizada.

É difícil sugerir essa forma de proceder ao magistrado quando ele está diante

do cidadão cuja vida está em perigo pelo não fornecimento do medicamento.

Mas como regra, não é impossível propor que os pacientes, antes de se

dirigirem ao Poder Judiciário comprovem que buscaram o fornecimento do

medicamento junto ao Poder Executivo, ainda que para isso tenham que ser

submetidos à nova avaliação médica.

Salvo os casos em que esse procedimento administrativo possa fazer a

diferença entre a vida e morte do paciente, nos demais é possível pensar que

dessa maneira os poderes republicanos atuariam de forma mais compatível

com os ditames fundamentais do Estado Democrático de Direito.

A esse respeito, afirma MOTA93:

[...] em um conceito de Estado Democrático de Direito que tenha efetividade e não

seja uma quimera simplesmente programática, a materialidade dos direitos

prestacionais deve ser aquela necessária para a segurança dos desfrutes

privados, alcançáveis pelos indivíduos de maneira autônoma.

Portanto, o Estado de Direito não pode ser delimitado somente como aquele que

garante a liberdade de um ponto de vista formal, o império da lei, nem por outro

93 MOTA, Maurício. “Paradigma Contemporâneo do Estado Democrático de Direito: Pós-Positivismo e Judicialização da Política”. In MOTA, Luis Eduardo. MOTA, Maurício (organizadores). O Estado Democrático de Direito em Questão. S.Paulo: Campus Jurídico, 2011, p. 15-16.

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lado como um Estado igualitário, onde a liberdade de escolha de cada cidadão

acerca do seu próprio projeto de vida não esteja assegurado.

Há que se fazer assim uma delimitação conceitual. Para que exista um Estado

Democrático de Direito é necessário que existam as condições políticas para que

todos, inclusive o Estado, estejam efetivamente submetidos ao direito, e o controle

do poder político deste esteja assegurado. Isso envolve direitos políticos e

liberdades e as condições materiais assecuratórias para o exercício de tais

liberdades.

Esse Estado de Direito não se confunde, entretanto, com um Estado prestacional.

A excessiva intervenção estatal, com fins igualitários, pode, em determinadas

circunstâncias, pôr em perigo a liberdade. Do mesmo modo, as liberdades, sem

um marco de igualdade de oportunidades sociais e econômicas, se convertem em

fórmulas vazias. O Estado Democrático de Direito deve ser, primordialmente, uma

forma de organizar o Estado onde todos tenham a potencialidade de se expressar

e influir na formação da vontade política desse Estado.

O desenvolvimento de potencialidades individuais dos cidadãos brasileiros em

relação ao acesso à saúde integral não será construído apenas por decisões

judiciais. A ampliação do diálogo entre os Poderes da República se coloca

como uma das formas que permitirá aos cidadãos o acesso a tudo o quanto

seja essencial para seu bem-estar.

O quinto acórdão analisado neste trabalho é do Tribunal de Justiça do Estado

do Rio Grande do Sul, e trata do fornecimento de medicamentos de alta

especialidade e alto custo, necessários para a realização de tratamento de

reprodução assistida.

1.5.TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL

APELAÇÃO CIVIL

VIGÉSIMA PRIMEIRA CÂMARA CÍVIL

PROCESSO N.º 70039644265

APELANTE – ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL e MUNCÍPIO DE BOM JESUS

APELADA – CENILDA PEDROSO DOS SANTOS

RELATOR – ARMÍNIO JOSE LIMA DE ABREU DA ROSA

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Data do julgamento – 26/01/2011

Publicado em 11/02/2011

CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. DIREITO À SAÚDE. INTERESSE DE

AGIR. PEDIDO ADMINISTRATIVO. DESNECESSIDADE.

Não se deve cogitar de falta de interesse de agir por não ter a autora efetuado

pedido na esfera administrativa, pois não está o cidadão atrelado à referida via

para ingresso em juízo, tendo em vista a existência de norma constitucional que

prevê o livre acesso ao Poder Judiciário.

FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. ILEGITIMIDADE PASSIVA DOS ENTES

PÚBLICOS. INOCORRÊNCIA. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DE TODOS

OS ENTES DA FEDERAÇÃO. ARTIGOS 6º, 23, II E 196, CONSTITUIÇÃO

FEDERAL. PRECEDENTES. IRRELEVÂNCIA DE OS MEDICAMENTOS NÃO

ESTAREM PREVISTOS EM LISTA. PRECEDENTES.

De acordo com firme orientação do Supremo Tribunal Federal e do Superior

Tribunal de Justiça, o direito à saúde é dever do Estado, lato sensu considerado, a

ser garantido modo indistinto por todos os entes da federação – União, Estados,

Distrito Federal e Municípios –, forte nos artigos 6º, 23, II e 196 da Constituição

Federal, sendo irrelevante, no mais, a circunstância de os fármacos não

integrarem a lista dos medicamentos básicos, excepcionais ou especiais.

REPRODUÇÃO ASSISTIDA. INFERTILIDADE HUMANA E SAÚDE. DIREITO DO

CIDADÃO. ART. 226, § 7º, CF/88. INFERTILIDADE E SAÚDE. ARTIGOS 6º, 23,

II, E 196, CF/88.

A infertilidade humana corresponde a problema de saúde, como reconhecido pelo

Conselho Federal de Medicina, não deixando a reprodução assistida, consistente

no procedimento médico de assegurar a gravidez, de atender dever do Estado

vinculado ao planejamento familiar, cujo regramento constitucional está no art.

226, § 7º, CF/88.

Reconhece o Estado brasileiro, regulamentando pauta constitucional, ser direito

de todo cidadão o planejamento familiar (art. 1º, Lei nº 9.263/96), com o que

assumiu prestações de ordem variadas para permitir sua efetivação, inclusive no

campo da saúde, atraindo toda a jurisprudência formada em torno dos arts. 6º, 23,

II e 196, CF/88.

Se é certo, quanto aqueles que não disponham de condições financeiras, estar

prevista cobertura pelo SUS (art. 3º, parágrafo único, Lei nº 9.263/96), em cujo

âmbito instituída a Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana

Assistida (Portaria nº 426/GM, de 22.03.05; Portaria nº 388, do Secretário de

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Atenção à Saúde, de 06.07.05), no entanto não se pode deixar ao relento casos

em que tal atendimento resta impossibilitado ou extremamente difícil.

SERVENTIA ESTATIZADA E CUSTAS PROCESSUAIS. ARTIGO 11,

REGIMENTO DE CUSTAS (LEI ESTADUAL Nº 8.121/85). DIFERENÇA ENTRE

ESTADO E MUNICÍPIO.

Não cabe imposição de o Estado pagar as custas processuais, quanto a serventia

estatizada, tal qual dispõe, expressamente, o artigo 11, Regimento de Custas.

Já quanto ao Município, mostra-se cabível a condenação ao pagamento de custas

pela metade, na forma do artigo 11, caput, da Lei Estadual nº 8.121/85, em sua

redação original.

Cumpre ressalvar, todavia, a isenção total, após a vigência da Lei Estadual nº

13.471/10.

HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. CONDENAÇÃO DO ESTADO EM CAUSA

PATROCINADA PELA DEFENSORIA PÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA

421 DO STJ.

Consoante entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça (Súmula

421), sendo a Defensoria Pública órgão do Estado, não se pode recolher

honorários sucumbenciais decorrentes de condenação contra a Fazenda Pública

Estadual, em causa patrocinada por Defensor Público.

HONORÁRIOS PARA A DEFENSORIA PÚBLICA. MUNICÍPIO. CABIMENTO.

É devida pelo Município verba honorária em causas patrocinadas pela Defensoria

Pública, porquanto, ainda que esta seja órgão integrante do Estado do Rio Grande

do Sul, não se confunde com a pessoa jurídica do Município.

É importante destacar que o Estado do Rio Grande do Sul, em sede de recurso

de apelação, sustentou que:

Nas suas razões recursais, sustenta o primeiro Apelante que os medicamentos (1)

menotropina altamente purificada (hmg) 75 ui; (2) estradiol 2mg; (3) folitropina

recombinante 900ui; (4) antagonista do gnrh; e (5) hcg 5000ui, não constam das

listas de medicamentos excepcionais/especiais disponibilizados pelo estado, não

podendo ser responsabilizado pelo seu fornecimento, razão pela qual, deve ser

extinto o feito com base no art. 267, VI, CPC. Aduz que o dever de prestar

assistência à saúde, na forma dos arts. 23, II, e 198, da CF/88, é compartilhado

entre os municípios, os estados e a união. Argumenta que o tratamento de

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reprodução assistida é fornecido pelo sistema público de saúde, desde que os

interessados se inscrevam no programa e aguardem a chamada, contudo, tal

procedimento não pode ser considerado essencial e muito menos urgente, afinal,

o não atendimento imediato do pleito não acarreta grave prejuízo à parte.

No corpo do acórdão muitos argumentos são colocados de forma jurídica

irrepreensível, em especial o de que não é obrigatório ao cidadão tentar

primeiramente a via administrativa antes de pleitear em juízo o direito que

pretende ver efetivado. Argumentam os magistrados que os diversos entes

políticos, Estado, Município e Federação devem se articular e organizar no

sentido de buscar os recursos necessários para o tratamento requerido, não

sendo lícito exigir que o cidadão se dirija primeiramente a um desses entes

antes de requerer em juízo. Também é utilizado o argumento da integralidade

da saúde garantido no artigo 196 da Constituição Federal e, nesse sentido da

integralidade, a pretensão de ser mãe é legítima, legal e deve merecer guarida

do Estado.

O artigo 23, inciso II, da Constituição Federal é utilizado neste caso. O referido

artigo determina no caput que é comum a competência da União, dos Estados,

do Distrito Federal e dos Municípios para II - cuidar da saúde e assistência

pública, da proteção e garantia das pessoas portado ras de deficiência.

Afirma o texto do acórdão que: “A reprodução assistida está compreendida

no planejamento familiar (art. 226, § 7º, CF/88; Le i nº 9.263/96). No entanto,

em se tratando de infertilidade humana, não se está apenas diante de

nítido tema de saúde, afeito aos arts. 6º, 23, II, e 196, CF/88.” 94

Em conformidade com a proposta de análise crítica deste trabalho, é o

momento de questionar se os valores a serem gastos com o tratamento de

reprodução assistida da requerente não seria um dispêndio excessivo em face

das necessidades mais urgentes de parte expressiva da população daquele

Estado-membro.

94 Disponível em http://www1.tjrs.jus.br/busca/?q=70039644265&tb=jurisnova&pesq=ementario&partialfields=%28TipoDecisao%3Aac%25C3%25B3rd%25C3%25A3o%7CTipoDecisao%3Amonocr%25C3%25A1tica%29&requiredfields=&as_q=. Acesso em 18 de outubro de 2011.

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O pressuposto é que ser mãe seja um direito colocado em condições de

igualdade com outros direitos fundamentais, como o direito à vida, por

exemplo. Mas de maneira crítica pode-se argumentar que o direito de ser mãe

está limitado a uma condição física que algumas mulheres possuem e outras

não. Não ser mãe não coloca as pessoas necessariamente em condições de

deficiência, mas de ausência de condições físicas para realizar determinadas

atividades, assim como, mal comparando, aquele que não possui uma estatura

avantajada não poderá ser atleta de algumas modalidades esportivas, como o

basquete, por exemplo.

Ainda em consonância com um pensamento crítico sobre os argumentos

utilizados no acórdão, é o caso de se perguntar: se o sentimento de

maternidade é tão relevante para uma mulher a ponto de a impossibilidade de

gerar ser equiparada a deficiência, por que não se pode recomendar a ela a

adoção de uma criança?

Nessa mesma linha de raciocínio, é de se supor que, se ao final o tratamento

custeado pelo Estado não se mostrar eficiente para que a mulher tenha um

filho, ela poderá requerer indenização ao Estado por não ter realizado o direito

de ser mãe? Ou ainda: poderá requerer indenização pelo fato de o Estado não

ter sido eficiente para garantir o direito básico à saúde de ser mãe de filhos

biológicos?

Vale registrar aqui a reflexão de ANA PAULA DE BARCELLOS95:

[...] A prestação de saúde concedida por um magistrado a determinado

indivíduo deveria poder ser concedida também a todas as demais pessoas na

mesma situação, pois o conteúdo do mínimo existencial é dado por prestações

em relação às quais seja factível afirmar que todos os indivíduos têm direito, e

não apenas aqueles que vão ao Judiciário.

Se a decisão judicial que concede determinado bem ou serviço não pode ser

razoavelmente universalizada, acaba-se por consagrar uma distribuição no

mínimo pouco democrática dos bens públicos: todos custeiam – sem que

tenham decidido fazê-lo – determinadas necessidades de alguns, que tiveram

condições de ir ao Judiciário e obtiveram uma decisão favorável. Repita-se que

95 BARCELLOS, Ana Paula de. “O Direito a Prestações de Saúde: Complexidade, Mínimo Existencial e o Valor das Abordagens Coletivas e Abstratas”. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira. SARMENTO, Daniel (coordenadores) Direitos Sociais – Fundamentos, Judicialização e Direitos Sociais em Espécie. R.de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 820.

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no caso do mínimo existencial, diferentemente, há sim uma posição política

fundamental – constitucional –, pela qual toda a sociedade comprometeu-se a

custeá-lo para assegurar a dignidade de todos os homens, ao menos em

patamares mínimos. [...]

Ao mesmo tempo em que tais prestações são concedidas a autores isolados

de ações judiciais, centenas de pessoas morrem sem atendimento adequado

na rede pública por falta de prestações que, por certo, estariam compreendidas

no conceito de mínimo existencial.

Em semelhante posição de questionamento sobre os parâmetros a serem

utilizados pelo julgador em casos semelhantes àquele que ora está sendo

analisado, ROGÉRIO JOSÉ BENTO SOARES DO NASCIMENTO96 afirma:

A maior complexidade do conceito de saúde, aliada a ampliação da escala de sua

efetivação, que como visto, ultrapassa as fronteiras do Estado nacional, dificulta

sua concretização equitativa. O risco da doença é geral, o tipo de agravo pode

variar conforme a posição social e econômica de cada um e até em razão da

origem ou de condições geográficas, mas estar sujeito ao risco de adoecer é algo

inerente à condição humana. Que tipo de igualdade deve presidir a provisão de

meios para uma vida saudável? [...]

Já seguindo o princípio da diferença de Rawls: as desigualdades econômicas e

sociais devem ser ordenadas no benefício dos mais desfavorecidos, maximizando

o bem-estar da pessoa que possa ser tomada como representativa da pior

condição em sociedade. Nesta ótica, há espaço para discriminação positiva ou

negativa de acordo com a pior ou melhor situação relativa do estado de saúde e

de cobertura por serviços de saúde.

A decisão do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul está

ancorada na Constituição Federal de 1988, não há dúvida, bem como na

legislação correlata, conforme bem demonstrado na ementa do acórdão. No

entanto, não está por completo amparada no sentido de justiça se se levar em

conta os direitos de outros tantos cidadãos brasileiros, residentes no mesmo 96 NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. “Concretizando a Utopia: Problemas na Efetivação do Direito a uma Vida Saudável”. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira. SARMENTO, Daniel (coordenadores) Direitos Sociais – Fundamentos, Judicialização e Direitos Sociais em Espécie. R.de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 916.

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Estado Federativo, necessitando da dispensação de medicamentos não

fornecidos pelo poder público e que, por razões diversas, principalmente por

não disporem de conhecimento sobre a possibilidade de utilização da

advocacia pública para pleito judicial, não levaram seus casos individuais ao

conhecimento do Poder Judiciário. Ou, ainda, se a análise da distribuição da

justiça ao caso concreto for realizada sob a óptica daqueles que eventualmente

poderão sofrer atraso ou suspensão no fornecimento de medicamentos

essenciais para sua saúde, por ausência de recursos financeiros do Estado

que está compelido a atender sentença judicial em tempo por ela determinado

e sem margem para realizar a aquisição pelo melhor preço em razão da

necessidade de imediato cumprimento da ordem expedida pelo Poder

Judiciário.

Os dois últimos exemplos judiciais a serem analisados neste capítulo são do

Supremo Tribunal Federal.

1.6. DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

O primeiro é o Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 393.175 – Rio

Grande do Sul, julgado em 12 de dezembro de 2006, pela Segunda Turma –

tendo como Relator o Ministro CELSO DE MELLO e com a seguinte ementa:

Ementa – Pacientes com Esquizofrenia paranoide e doença maníaco-depressiva

crônica, com episódios de tentativa de suicídio – Pessoas destituídas de recursos

financeiros – Direito à vida e à saúde – Necessidade imperiosa de se preservar,

por razões de caráter ético-jurídico, a integridade desse direito essencial –

Fornecimento gratuito de medicamentos indispensáveis em favor de pessoas

carentes – Dever constitucional do Estado (CF, arts. 5º, “caput”, e 196) –

Precedentes (STF) – Abuso do direito de recorrer – Imposição de multa – Recurso

de Agravo improvido.

Os principais argumentos utilizados no acórdão estão assim colocados:

O direito à saúde representa consequência constituc ional indissociável

do direito à vida.

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- O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica

indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria

Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico

constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de

maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e

implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a

garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência

farmacêutica e médico-hospitalar.

- O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental

que assiste a todas as pessoas – representa consequência

constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público,

qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da

organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao

problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por

censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional.

A interpretação da norma programática não pode tran sformá-la em

promessa constitucional inconsequente.

- O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta

Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que

compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado

brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional

inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas

expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de

maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por

um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que

determina a própria Lei Fundamental do Estado.

Distribuição gratuita, a pessoas carentes, de medic amentos essenciais à

preservação de sua vida e/ou de sua saúde: um dever constitucional que

o Estado não pode deixar de cumprir.

- O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de

distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes dá

efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República

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(arts. 5º, “caput”, e 196) e representa, na concreção do seu alcance,

um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das

pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a

não ser a consciência de sua humanidade e de sua essencial

dignidade. Precedentes do STF.

O acórdão se fundamenta de maneira clara nos artigos 5º e 196 da

Constituição Federal brasileira e interpreta os artigos na linha proposta pelo

neoconstitucionalismo, conforme tratado no capítulo II desta pesquisa, ou seja,

para obter a máxima efetividade do texto constitucional.

É possível reconhecer na argumentação do acórdão aspectos do protagonismo

judicial já referido neste trabalho, na medida em que “a interpretação da

norma programática não pode transformá-la em promes sa constitucional

inconsequente.”

De fato, não é possível tratar a norma programática como no passado anterior

à Constituição Federal de 1988; mas afirmar que todas as normas

programáticas deverão ser interpretadas de maneira a cumprir as promessas

de direitos sociais é minimizar a importância dos custos dos direitos. Ou, na

mesma dimensão, é tratar os direitos fundamentais sociais como absolutos

quando, em verdade, o debate se dá em torno da distribuição dos recursos dos

mais necessitados para os menos.

Na mesma medida se coloca o dever do Estado de fornecer medicamentos

para as pessoas carentes. O acórdão determina que isso é um dever que o

Estado não pode deixar de cumprir, sem relativizar que, em alguns momentos,

os estados-membros da federação poderão ter que deixar de cumprir o dever

de fornecimento de medicamentos para determinadas doenças e combater

epidemias que possam significar a morte de milhares de crianças, por exemplo.

Colocados da forma como se encontram nesse acórdão, os argumentos do

Supremo Tribunal Federal podem ser utilizados em muitos e diversificados

casos de pleito de acesso à saúde, alguns dos quais não terão a mesma

relevância ou não estarão necessariamente inseridos nas mesmas condições

contextuais que este.

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O outro acórdão do STF escolhido para análise é de 17 de março de 2010, e

tem a seguinte ementa:

DJE n.º 76 – Divulgação 29/04/2010

Ementário n.º 2399-1

Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada 278 Alagoas

Relator Ministro Presidente GILMAR MENDES

Agravante – Estado de Alagoas

Agravado – Maria de Lourdes da Silva

Ementa – Suspensão de Tutela Antecipada. Agravo Regimental. Saúde

Pública. Direitos Fundamentais sociais. Artigo 196 da Constituição.

Audiência Pública. Sistema Único de Saúde – SUS. Políticas Públicas.

Judicialização do direito à saúde. Separação de Poderes. Parâmetros

para a solução judicial dos casos concretos que envolvem direito à saúde.

Responsabilidade solidária dos entes da Federação em matéria de saúde.

Fornecimento de medicamento: Rituximabe (Mabthera). Fármaco

registrado na ANVISA. Não comprovação de grave lesão à ordem, à

economia, à saúde e à segurança pública. Possibilidade de ocorrência de

dano inverso. Agravo regimental a que se nega provimento.

Trata-se de ação cominatória ajuizada contra o Estado de Alagoas com pedido

de tutela antecipada, com a finalidade de obter da Secretaria Estadual de

Saúde o fornecimento gratuito do medicamento Mabthera (Rituximabe), nas

dosagens 500 mg e 100 mg, por ser portadora de Leucemia Linfocítica Crônica

(CID C 91.1) e não dispor de condições financeiras para arcar com os custos

do tratamento, orçado em R$ 162.707,16 (12 frascos de Mabthera 500 mg e 24

frascos de Mabthera 100 mg).

O Estado de Alagoas requereu a suspensão dos efeitos da antecipação de

tutela sob o argumento de que o medicamento não consta da Portaria 2.577 do

Ministério da Saúde97, e que seu fornecimento seria de responsabilidade do

município de Maceió.

97 PORTARIA Nº 2.577/GM 27 DE OUTUBRO DE 2006. Aprova o Componente de Medicamentos de Dispensação Excepcional.

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O MINISTRO DE ESTADO DA SAÚDE, no uso de suas atribuições, e Considerando as diretrizes estabelecidas pela Política Nacional de Medicamentos, constante da Portaria nº 3.916/GM de 30 de novembro de 1998; Considerando os princípios e eixos estratégicos definidos pela Política Nacional de Assistência Farmacêutica aprovada pela Resolução nº 338, de 2004, do Conselho Nacional de Saúde; Considerando a necessidade de aprimorar os instrumentos e estratégias que asseguram e ampliam o acesso da população aos serviços de saúde, incluído o acesso aos medicamentos em estreita relação com os princípios da Constituição e da organização do Sistema Único de Saúde;

Considerando as Portarias nº 399/GM, de 22 de fevereiro de 2006, que Divulga o Pacto pela Saúde e nº 698/GM, de 30 de março de 2006, - Organização dos recursos federais de custeio em Blocos de Financiamento; e

Considerando a pactuação na reunião da Comissão Intergestores Tripartite do dia 5 de outubro de 2006,

R E S O L V E: Art. 1º Aprovar o Componente de Medicamentos de Dispensação Excepcional, como parte da Política Nacional de Assistência Farmacêutica do Sistema Único de Saúde, conforme termos constantes do Anexo I a esta Portaria. Art. 2º Redefinir os procedimentos e valores do Grupo 36 - Medicamentos da Tabela Descritiva do Sistema de Informações Ambulatoriais do Sistema Único de Saúde (SIA/SUS), na forma e redação estabelecidas no Anexo II a esta Portaria. § 1º Os procedimentos e novos valores estabelecidos no caput terão vigência a partir da competência novembro de 2006. § 2º O Departamento de Regulação, Avaliação e Controle de Sistemas, da Secretaria de Atenção à Saúde (DRAC/SAS) e o Departamento de Informática do SUS (DATASUS), deverão proceder às adequações nos sistemas operacionais e de informações sob sua responsabilidade, a fim de garantir o estabelecido no parágrafo anterior. § 3º No prazo de 180 (cento e oitenta) dias, a partir da competência, componente de Medicamentos e Dispensação Excepcional, serão analisados os impactos decorrentes das medidas implementadas no âmbito do Componente de Medicamentos de Dispensação Excepcional (CMDE), com vistas a possíveis ajustes. Art. 3º Estabelecer o prazo de junho de 2007 para implantação de sistema informatizado para o gerenciamento técnico e operacional do CMDE. Art. 4º Caberá à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, editar normas complementares referentes à operacionalização do Componente de Medicamentos de Dispensação Excepcional. Art. 5º Caberá à Secretaria de Atenção à Saúde, por intermédio do Departamento de Regulação, Avaliação e Controle de Sistemas (DRAC/SAS), editar normas complementares relacionadas à operacionalização do Sistema de Informações, relativos à tabela de procedimentos. Art. 6º Definir que os recursos orçamentários de que trata esta Portaria corram por conta da funcional programática 10303.1293.4705.0001 assistência financeira para aquisição e distribuição de medicamentos excepcionais, do orçamento do Ministério da Saúde. Art. 7º Esta Portaria regulamenta o Componente de Medicamentos de Dispensação Excepcional do Bloco de Financiamento da Assistência Farmacêutica. Art. 8º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação. Art. 9º Ficam revogadas as Portarias nº 1.481/GM, de 28 de dezembro de 1999, publicada no Diário Oficial nº 249-E, de 24 de dezembro de 1999, Seção 1, página 24, nº 1.318/GM, de 23 de julho de 2002, publicada no Diário Oficial da União nº 141, de 21 de julho de 2002, Seção 1, página 68, nº 445/GM, de 6 de março de 2006, publicada no Diário Oficial da União nº 45, de 7 de março de 2006, Seção 1, página 27, nº 562/GM, de 16 de março de 2006, nº 203/SAS, de 19 de abril de 2005, publicada no Diário Oficial da União nº 112, de 14 de junho de 2005, Seção 1, página 38, nº 409/SAS, de 5 de agosto de 1999, publicada no Diário Oficial nº 150, de 6 de agosto de 1999, Seção 1, página 52, e nº 921/SAS, de 25 de novembro de 2002, publicada no Diário Oficial da União nº 227, de 25 de novembro de 2002, Seção 1, página 64. JOSÉ AGENOR ÁLVARES DA SILVA

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143

Alegou que, diante da necessidade de prover o medicamento, haveria lesão à

ordem, à economia e à saúde públicas.

O medicamento requerido é de alto custo, sendo admissível que um município

capital de um estado federativo, conhecido por seus altos índices de pobreza,

tenha dificuldades no fornecimento do medicamento. Como este não consta da

portaria do Ministério da Fazenda, a responsabilidade é integralmente do

município e, nesse sentido, é certo que causará um impacto no orçamento.

Ainda que não existam dados na decisão que permitam avaliar qual a extensão

do impacto orçamentário, é possível inferir que ele existirá porque a compra de

um medicamento dessa natureza e preço não é comumente previsto no

orçamento do município, ou mesmo do estado da federação. Portanto, o

argumento utilizado pelo estado federativo em sua defesa não é aleatório ou

desprovido de fundamento.

Além disso, um caso concreto decidido de forma favorável pelo STF consolida

uma prática a ser utilizada em muitos outros casos semelhantes, com

repercussão para o planejamento e o orçamento públicos que, minimamente,

deverão começar a contingenciar verbas para exercícios futuros, porque

certamente novos casos semelhantes serão julgados da mesma maneira.

É possível afirmar que os argumentos utilizados nas decisões judiciais

analisadas neste trabalho têm um traço marcante em comum: são fundados na

Constituição Federal brasileira e inteiramente aplicáveis aos casos concretos

tratados.

Os artigos 1°, 5° e 196 da Constituição Federal são imprescindíveis em todos

os casos, porque tratam da supremacia da dignidade da pessoa humana como

princípio fundamental das relações sociais do País e da integralidade da

assistência à saúde.

Os demais argumentos fincados na legislação ordinária ou mesmo na

legislação administrativa do Ministério da Saúde se ancoram na determinação

constitucional e com ela estão consonantes.

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Milhares de outros casos concretos nos quais os requerentes pleiteiem

internação em hospital privado (por falta de leitos de unidade de terapia

intensiva em hospitais públicos), fornecimento de leites especiais para

portadores de intolerância a lactose, fornecimento de próteses ou órteses,

cirurgias corretivas, medicamentos excepcionais ou qualquer outra

necessidade da área de saúde, cujos pedidos estejam corroborados por um

laudo ou receita médica, estarão suficientemente providos para acionar o

dispositivo constitucional que protege o direito à dignidade da pessoa humana

e a integralidade do acesso à saúde. O contrário disso seria negar a primazia

constitucional e, na mesma esteira, negar o Estado Democrático de Direito.

Por outro lado, as ponderações sobre custos, sobre a concretização de direitos

individuais e o impacto nos direitos coletivos também são válidas e aplicáveis

aos casos concretos.

Para os executivos municipal, estadual e federal, a garantia da efetividade do

direito à saúde não ocorre a partir da intenção ou da necessidade de cumprir

sentença judicial ou tutela antecipada. Faz-se concretamente com recursos

financeiros que devem ser retirados dos cofres públicos para atender aquela

necessidade imediata, sem que haja tempo sequer para comprar pelo melhor

preço numa licitação. Provém daí a indagação: por essa razão, deveria o Poder

Judiciário julgar de forma diferente e deixar de concretizar o direito da parte se

ele não estiver previsto no orçamento?

ANA PAULA DE BARCELLOS98 pondera:

É certamente penoso para um magistrado negar, e.g., o transplante ou o

medicamento importado que poderá salvar a vida do autor da demanda, pelo fato

de tais prestações não estarem compreendidas no mínimo existencial que decorre

da Constituição e nem constarem de qualquer outra norma jurídica ou de uma

opção política adicional veiculada pelo Legislativo ou pelo Executivo. Nesse

contexto, as impressões psicológicas e sociais do magistrado, a quem cabe afinal

aplicar a Constituição, não podem ser desconsideradas. Um doente com rosto,

identidade, presença física e história pessoal, solicitando ao Juízo uma prestação

de saúde é percebido de forma inteiramente diversa da abstração etérea do

orçamento e das necessidades do restante da população, que não são visíveis

naquele momento e têm sua percepção distorcida pela incredulidade do

98 Obra citada, p. 819.

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magistrado, ou ao menos pela fundada dúvida de que os recursos públicos estejam

sendo efetivamente utilizados para promoção da saúde básica.

O pedido individual de acesso à saúde, quando chega ao Poder Judiciário, é

para ser decidido. Não cabe mais o debate em torno da pertinência ou da

possibilidade orçamentária, porque, salvo quando se tratar de comprovada

fraude no pedido, o requerente está lá amparado por um documento médico

que prova sua necessidade e (não raro) a urgência na concretização do

pedido. Nessa situação, o Poder Judiciário é um locus limitado porque a ele

não compete o debate, mas a avaliação das provas apresentadas pelas partes

e a decisão.

Aspectos como mínimo existencial, reserva do possível, maior valor do

saneamento básico ou da cirurgia bariátrica que poderá dar qualidade e

perspectiva de vida para uma jovem com obesidade mórbida e com moléstias

correlatas (como hipertensão arterial e diabetes), medicamentos de alto custo

para pessoas portadoras de câncer em grau elevado de disseminação, entre

outras inúmeras situações, não deveriam chegar necessariamente ao Poder

Judiciário. Instâncias políticas anteriores precisam ser pensadas para evitar

que o acesso à saúde no Brasil seja decidido prioritariamente em tal âmbito. É

no espaço administrativo, prioritariamente, que o debate poderá ser feito de

forma mais ampla, inclusive para avaliar se o pedido formulado pelo sujeito já

não se encontra disponibilizado por meio de políticas públicas implementadas

pelo município ou pelo estado federativo e para as quais seja necessária a

comprovação da necessidade, a inscrição e, não raro, a espera para ser

chamado e usufruir de uma oportunidade que não pode ser concedida a todos

ao mesmo tempo em vista da necessidade de adequação dos recursos

públicos disponíveis.

O Poder Judiciário não tem acesso a todas as informações sobre políticas

públicas do município e do estado federativo, e nem tem como tê-las, porque,

se tivessem, o tempo dos magistrados seria dedicado à leitura de orçamentos

e de relatórios que noticiam o cumprimento das rubricas orçamentárias.

Também não se pode exigir do magistrado que tenha conhecimento técnico em

área médica para avaliar se a recomendação do médico é ou não adequada

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para o caso concreto, ou se existem outras maneiras menos custosas de

resolver o problema. Se houver tempo para a realização de prova pericial

médica e existirem recursos públicos para realizá-las, o magistrado poderá

determinar que seja esse o caminho; mas, se não houver tempo, nada poderá

ser feito a não ser a decisão com base no parecer médico trazido pela parte

que invoca o direito.

Todos esses fatores conduzem à conclusão de que a melhor decisão para a

utilização dos recursos públicos para a área da saúde não é aquela adotada

pelo Judiciário. Quando o caso concreto chega a esse âmbito, já não há mais

espaço ou tempo para o debate, para os estudos de viabilidade, para a

discussão em torno da pertinência ou impertinência da medida médica

apresentada: só cabe a seus agentes avaliar a prova produzida e decidir.

Assim, não se trata simplesmente de ativismo ou protagonismo judicial. Nos

casos concretos que decidem o acesso à saúde pública é preciso resgatar o

debate político sobre o uso de recursos públicos, e esse debate precisa ser

efetivado fora da dimensão judicial até para que a efetividade da cidadania no

Brasil não se restrinja a uma decisão judicial procedente.

As possibilidades do debate político que antecedem a dimensão do Poder

Judiciário serão analisadas no Capítulo IV desta pesquisa.

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CAPÍTULO IV

SOLUÇÕES POSSÍVEIS PARA DIMINUIR A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

Este capítulo tem por objetivo analisar alternativas que possam mitigar a

judicialização da saúde, entendido que a busca pela solução judicial não

deixará de ser praticada no Brasil em curto espaço de tempo porque as

deficiências da saúde pública são muitas e tampouco deixarão de existir tão

cedo.

Segundo declarações do atual Ministro da Saúde ALEXANDRE PADILHA99, o

Brasil investe em saúde cerca de 3,4 a 3,6% do Produto Interno Bruto do País,

o que significa menos que a metade do que investe a Argentina e abaixo de

outros países da América Latina.

Mesmo que se possa argumentar que o valor dos investimentos em saúde não

é o único problema do Sistema Único de Saúde porque também é preciso

avaliar de que forma esses recursos são investidos, ainda assim é forçoso

reconhecer que o investimento é pequeno se levarmos em conta a quantidade

de usuários do sistema público, a diversidade das necessidades de um país

com dimensões continentais como o Brasil e, as peculiaridades deste momento

histórico da saúde em que coexistem exigências por cuidados básicos em

saúde e por incorporação de novas tecnologias quase sempre de alto custo.

A Medicina contemporânea, em termos de tecnologia, tem essa característica

peculiar: a de que a inserção de uma nova tecnologia nem sempre substitui

uma anterior e nem sempre significa menor custo. Um médico ortopedista, para

avaliar corretamente uma lesão, poderá solicitar que o paciente realize um

99 Disponível em http://www.redebrasilatual.com.br/temas/saude/2011/04/para-padilha-saude-precisa-mostrar-boa-gestao-para-conquistar-mais-recursos. Acesso em 02 de novembro de 2011.

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exame de raio X e uma ressonância magnética e justificará, cientificamente,

que necessita da tecnologia antiga (raio X) e da nova (ressonância magnética)

para aferir corretamente a extensão do problema que o paciente apresenta.

Se considerarmos que dados econômicos recentes dão conta de que, entre

1995 e 2008, 12,8 milhões de brasileiros saíram da condição de pobreza

absoluta (renda per capita de até meio salário mínimo) e 12,1 milhões saíram

da pobreza extrema (renda per capita de até um quarto do salário mínimo)100

segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) a partir da

Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE), é possível prever que muito em breve um novo

contingente de brasileiros atentará para a possibilidade de exigir pela via

judicial acesso a procedimentos de saúde que não estejam facilmente

disponibilizados na rede pública, como medicamentos excepcionais,

fornecimento de próteses, órteses, exames de imagem e outros.

Inseridos em um novo patamar de consumo e de absorção de informações por

novos mecanismos, como o acesso a rede mundial de computadores, por

exemplo, essa parcela da sociedade brasileira estará mais preparada para

exigir direitos e utilizar os mecanismos colocados à disposição para essa

finalidade, como as defensorias públicas e outras instituições pertinentes.

A perspectiva de aumento da judicialização como forma de acesso à saúde

pública no Brasil também está vinculada à formação dos profissionais de

Direito, como já afirmado neste trabalho, que continua a ter marcada tendência

para a prática judicial, e que ainda estuda e pesquisa pouco os mecanismos de

solução de conflitos que não sejam judiciais.

Se o aumento da judicialização é uma perspectiva concreta, é necessário

refletir sobre alternativas que possam diminuir a incidência do fenômeno e, ao

mesmo tempo, despertar a sociedade brasileira contemporânea para a busca

de soluções mais rápidas que as decisões judiciais, levando em consideração

a dimensão política do problema da saúde, que exige, na maioria das vezes,

soluções coletivas.

100 Disponível em http://economia.estadao.com.br/noticias/economia,brasil-deve-eliminar-miseria-ate-2016-diz-ipea,27206,0.htm. Acesso em 02 de novembro de 2011.

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Solução de conflitos por mecanismos não judiciais pode ser interpretada como

sinal de maturidade política de uma sociedade organizada, porque atribui

importância ao diálogo e ao sopesamento de argumentos em lugar da busca

por uma solução ditada por um magistrado que, nem sempre, terá condições

objetivas de levar em conta o impacto de sua decisão para o conjunto da

sociedade.

O diálogo e o debate das questões públicas ainda são precários no Brasil, até

porque a estrutura da organização política oferece poucos espaços para a

manifestação da cidadania ativa. Apesar das inúmeras previsões existentes na

Constituição Federal brasileira para a participação direta da população (como

nos Conselhos Municipais de Saúde, de Educação e Tutelar, entre outros), a

realidade é que a herança do modelo de Estado autoritário ainda é muito

presente e, quase sempre, o cidadão se sente mais motivado a procurar a

tutela jurisdicional do Estado do que motivado a tentar obter a efetividade de

seus direitos por mecanismos coletivos de participação social.

Além disso, a sociedade brasileira contemporânea tem como traço marcante

um acentuado individualismo, resultante tanto da centralidade do consumo

(considerado elemento distintivo, inclusive na construção da identidade social)

como da nova concepção da estrutura familiar (hoje mais focada na dimensão

pais/filhos do que no passado recente, quando era comum a convivência diária

com avós, primos e tios), e, ainda, como consequência do modo de vida típico

dos grandes centros urbanos, que fragilizou os laços de comunitários, na

mesma medida em que subtraiu o tempo livre da agenda diária dos indivíduos.

Nesse contexto social fortemente marcado pelo individualismo, a busca de

soluções políticas que sejam resultado do diálogo, do debate, da troca de

ideias diferentes para encontrar um resultado que satisfaça a todos é avaliada

como ineficiente, até porque são raros os espaços públicos nos quais as

pessoas possam exercitar o diálogo. Além disso, diálogo só pode ser praticado

com tempo e envolvimento pessoal, com capacidade de ouvir e pesar os

argumentos contrários, o que quase sempre é incompatível com o modo de

vida da população dos grandes centros urbanos, que sequer dispõe de tempo

para atender suas necessidades particulares.

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Além desses fatores, é preciso considerar que, no imaginário da população, a

solução dos problemas públicos é função exclusiva dos governos, porque os

cidadãos pagam os tributos para isso.

É preciso, no entanto, que a barreira do individualismo seja rompida

paulatinamente uma vez que, numa sociedade complexa, com múltiplos

problemas em áreas fundamentais para a dignidade humana, como educação,

saúde e assistência social, as soluções individualizadas serão sempre mais

dispendiosas e pouco eficientes para a construção da cidadania ativa.

No caso da saúde pública, a primeira alternativa que este trabalho estuda para

minimizar a judicialização é a criação das Câmaras Técnicas , mecanismo de

auxílio aos magistrados para fornecimento de argumentação técnica a ser

adotada na solução dos casos concretos.

As Câmaras Técnicas ou Núcleos de Assessoria Técnica são grupos

multiprofissionais que analisam os casos judiciais e fornecem laudos técnicos

para os magistrados alicerçarem suas decisões em processos que pleiteiam

medicamentos, tratamentos, internações em hospitais, órteses, próteses e

outros.

No Brasil o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro tem um Núcleo de

Assessoria Técnica implantado experimentalmente desde fevereiro de 2009 e

que já conta com a experiência de elaboração de mais de dois mil pareceres

técnicos na área de dispensação de medicamentos no setor público.101 Esse

Núcleo atende todas as Varas da Fazenda Pública da Capital e as 20 Câmaras

Cíveis do Tribunal de Justiça. Seu trabalho é feito em parceria com a

Secretaria de Saúde do Estado, por meio de assinatura de convênio e

interligado em tempo real com a Secretaria.

O prazo para emissão do parecer técnico é de 48 horas, porque é ele que vai

fundamentar, no âmbito técnico-médico, a decisão do magistrado no pedido de

liminar.

101Disponível em http://www.legisus.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=360:nucleo-do-tjrj-completa-um-ano-com-dois-mil-laudos-sobre-medicamentos-mas-pouca-e-a-articulacao-do-tj-com-os-municipios&catid=61:fevereiro&Itemid=37. Acesso em 02 de novembro de 2011.

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A equipe tem na atualidade 26 profissionais, entre farmacêuticos, enfermeiros,

nutricionistas, médicos e servidores de área administrativa do Tribunal de

Justiça do Rio de Janeiro. O núcleo atua na verificação da listagem de

medicamentos disponíveis nos estoques do estado, adequação do

medicamento solicitado à patologia indicada pelo médico assistente, e acesso

a vagas em hospitais públicos.102

A equipe técnica do Núcleo de Assessoria Técnica do Tribunal de Justiça do

Estado do Rio de Janeiro é formada por profissionais cedidos pelo governo do

Estado e que tem por objetivo, principalmente, “assessorar os juízes em suas

decisões, fornecer apoio técnico aos magistrados para inviabilizar fraudes além

de indicar ao juiz, por exemplo, se determinado remédio pode ser substituído

por outro com o mesmo princípio.”103

Em matéria publicada na rede mundial de computadores em 27 de novembro

de 2009 relatando a participação do Secretário Estadual de Saúde do Rio de

Janeiro, SÉRGIO CÔRTES, no VIII Seminário de Ética nos Relacionamentos do

Setor de Saúde, evento promovido pela Mútua dos Magistrados do Estado do

Rio de Janeiro, afirma que104:

[...] foi constatado que em 84% dos casos os tratamentos estavam disponíveis em

estoque na secretaria ou poderiam ser substituídos por outro indicado para o

mesmo tipo de patologia. [...]

Mesmo com o direito ao recebimento desses medicamentos assegurado pelo

SUS, muitos ainda optam por procurar na Justiça o caminho para pleitear a

dispensação dos tratamentos. [...]

Além das ações desnecessárias, outro problema foi constatado pelo projeto piloto

do NAT: o de medicamentos da chamada "zona cinzenta". São solicitações para

remédios que não fazem parte de nenhuma lista pública. Das ações deste grupo,

102

Disponível em http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&view=article&id=14208:nucleo-de-assistencia-as-demandas-judiciais-de-saude-do-rj-ja-emitiu-2800-pareceres&catid=223:cnj&Itemid=583. Acesso em 02 DE NOVEMBRO DE 2011. 103 Disponível em http://www.saude.rj.gov.br/imprensa-noticias/620-secretario-sergio-cortes-participa-do-viii-seminario-etica-nos-relacionamentos-do-setor-saude-. Acesso em 02 de novembro de 2011. 104 Disponível em http://www.saude.rj.gov.br/imprensa-noticias/620-secretario-sergio-cortes-participa-do-viii-seminario-etica-nos-relacionamentos-do-setor-saude-. Acesso em 02 de novembro de 2011.

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74% dos casos, todos ou metade dos medicamentos pedidos, em tese, poderiam

ser substituídos por remédios fornecidos regularmente pelos programas estaduais

ou municipais. Em somente 26% das ações analisadas os pedidos eram

referentes a medicamentos em que não existia a possibilidade de substituição por

outro fornecido regularmente. Isso significa que 75% desse tipo de ação poderia

ser evitada.

É relevante destacar que parte expressiva dos pedidos judiciais de

fornecimento se referia a medicamentos que poderiam ser encontrados na rede

pública estadual mediante a simples inserção do cidadão no programa de

dispensação. A falta de conhecimento do cidadão e de seu advogado e, mais

grave, a ausência de interesse em consultar a rede pública para saber se o

medicamento estaria disponível por meio de políticas públicas de dispensação,

propicia o ingresso em juízo com uma demanda desnecessária, que acaba

sendo solucionada por meio de uma informação do Núcleo de Assessoria

Técnica muito mais do que por uma decisão com fundamentação jurídica.

Mais complexa é a situação dos medicamentos da chamada “zona cinzenta”

definidos como aqueles que não aparecem em nenhuma lista pública. Parte

desses medicamentos poderia ser substituída por outros regularmente

fornecidos nos programas de dispensação estadual ou municipal, mas o pedido

judicial é sempre na exata descrição dada pelo médico que assiste o paciente,

ou seja, se ele prescreve um medicamento específico, o paciente e seu

advogado tenderão a acreditar que aquele é o único que efetivamente pode

trazer melhoras para o estado de saúde do paciente.

Ainda falta aos médicos brasileiros a iniciativa de prescrever o princípio ativo e

enfatizar que todos os medicamentos contendo aquele princípio, de marca ou

genéricos, poderão ser utilizados pelo paciente sem problemas. É evidente que

isso só pode ser feito realmente nos casos em que a marca ou o genérico

produzam o mesmo resultado, e não nos casos em que o médico tenha dados

científicos que comprovem que somente um medicamento de marca específica

poderá conduzir aos resultados esperados.

O tema da prescrição de medicamentos é bastante polêmico. Existem

indicativos concretos de que muitos laboratórios farmacêuticos tenham práticas

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pouco éticas em relação aos médicos, incentivando-os inclusive

financeiramente para que prescrevam medicamentos de um determinado

laboratório.

Não fosse esse tema muito sério e recorrente, a Resolução n.º 1.931, de 2009,

do Conselho Federal de Medicina não teria determinado no princípio X – “O

trabalho do médico não pode ser explorado por terce iros com objetivo de

lucro, finalidade política ou religiosa.”

A respeito desse princípio, escreve EDMILSON DE ALMEIDA BARROS JÚNIOR105:

Outra situação não menos comum da exploração do trabalho médico, por

terceiros, com finalidade de lucro é o caso dos laboratórios (fabricantes de

medicamentos, próteses e órteses) que “oferecem” percentuais ou mimos, como

viagens e passagens aéreas aos médicos que direcionarem suas prescrições para

esta ou aquela empresa. O médico que assim se pautar também infringe o

diploma ético.

O relacionamento da classe médica com os laboratórios de medicamentos não

é um tema atual nem restrito ao Brasil. Em muitas outras partes do mundo – e

já há muito tempo – se discute o viés ético de uma relação que pode se tornar

exclusivamente comercial, com incentivo material e financeiro para que os

médicos prescrevam medicamentos de apenas um fabricante,

independentemente de existirem similares mais baratos.

O mesmo Estatuto de Ética Médica prevê no princípio XXII que:

Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de

procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos

pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados.

Comentando esse princípio, BARROS JÚNIOR106 pondera:

Nos casos irreversíveis e terminais, a morte virá mais cedo ou mais tarde. É bem

verdade que a ciência e a tecnologia médica de hoje permitem que se mantenha

um paciente vivo por bastante tempo, apesar da gravidade do caso.

Contudo, não se pode olvidar que esse “esticamento” da vida em nada acrescenta

de qualidade e muito menos de dignidade. Na verdade, insistir no inevitável é

105 BARROS Jr. Edmilson de Almeida. Código de Ética Médica 2010. Comentado e Interpretado. Resolução CFM 1.931/2009. S.Paulo: Atlas, 2011, p. 65. 106 Obra citada, p. 99.

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prolongar um sofrimento, não uma vida. Não existe dignidade sem vida digna. Não

existe vida digna de quem, sem perspectiva de melhoria, repousa sem

consciência, rodeado de agulhas e tubos, longe de seus entes queridos,

esperando apenas a doença dar seu “cheque-mate” na Medicina e, assim,

finalmente obter o merecido descanso.

O inciso se refere ao dever ético do médico em evitar a realização de qualquer

procedimento desnecessário, seja diagnóstico ou terapêutico, em pacientes

enquadrados em situações clínicas irreversíveis e terminais.

Na atualidade esses casos são bastante discutidos no âmbito da ética médica

e da conduta dos parentes da pessoa doente. A prescrição de uma nova

aplicação de quimioterapia em pacientes cujo estado de saúde já não permite

mais considerar a possibilidade de cura, ou a prescrição de drogas

experimentais em pacientes cujo estágio da doença já está muito avançado

são situações que envolvem alto custo e demonstram a incapacidade de

aceitar que a vida se finda, como certamente ocorrerá com cada uma das

pessoas do planeta Terra.

As novas tecnologias da área de saúde e a intensa produção de medicamentos

nos últimos anos, aliadas ao fato de que as novidades da área da saúde são

fartamente exploradas pela mídia, ocupando as primeiras páginas das revistas

semanais ou dos cadernos especializados dos jornais diários, e, ainda, o

aumento da expectativa de vida de boa parte da população do planeta

potencializou a sensação de que a vida pode ser eterna, ou pelo menos, que o

fim inexorável possa ser adiado em muitos anos.

Evidentemente, salvo os raros casos de suicídio, as pessoas em geral não

querem morrer, por piores que sejam os problemas e circunstâncias que

estejam enfrentando. No entanto, na atualidade, há um sentimento bastante

explorado pela indústria de alimentos funcionais, de medicamentos e de

tecnologia médica no sentido de que a vida pode ser prorrogada de forma

indefinida, bastando ao sujeito adotar condutas saudáveis e, principalmente, ter

acesso às novidades fármaco-tecnológicas que a ciência médica

contemporânea oferece.

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As sociedades do culto ao corpo, do culto ao estético, da tecnologia, do

espetáculo e da prosperidade não suportam pensar que as pessoas deixarão

de existir e, como reação, utilizam toda a tecnologia e todos os medicamentos

que estiverem acessíveis para tentar prolongar, ao máximo, o tempo da

existência humana.

A classe médica, de maneira geral, não passa incólume pela pressão dos

pacientes, dos familiares, dos laboratórios farmacêuticos, da mídia, da indústria

de novas tecnologias e da pressão social pelo prolongamento da vida. Em

algum momento essa pressão pode determinar que o médico recomende um

medicamento ou um tratamento ainda não satisfatoriamente comprovado,

porém que agrade à expectativa do paciente e de seus familiares por aquilo

que se costuma denominar “luta pela vida”.

Se, por um lado, conforme já mencionado, grande parte dos médicos sofre

essa pressão e cede a ela indicando aos pacientes órteses e próteses ou

novos exames de imagem, e adotando prescrições e tratamentos apenas no

intuito de lucrar com as benesses das indústrias farmacêuticas, por outro lado,

existem aqueles que acreditam que o novo medicamento, a nova técnica

cirúrgica ou o novo exame de imagem possa, realmente, contribuir para a

melhora do estado de saúde do doente, ou mesmo para sua cura.

Existem profissionais médicos que não pesquisam de forma continuada ou não

têm acesso a resultados de pesquisa de boa qualidade, não raro porque não

dominam a língua inglesa, que é prioritariamente utilizada nos estudos

científicos produzidos em todo o mundo. Dessa forma eles se tornam mais

suscetíveis para acreditar nas notícias trazidas por congressos e feiras

patrocinados pela indústria de medicamentos ou pela indústria de

equipamentos, até porque não comparam tais informações com resultados de

pesquisas produzidas nos grandes centros científicos existentes no mundo.

Por todos esses fatores é que se percebe que as Câmaras Técnicas ou os

Núcleos de Assessoria Técnica para os tribunais e magistrados são

importantes e podem contribuir muito para a solução das demandas judiciais da

área de saúde, mas é preciso discutir que método de análise técnica será

utilizado.

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Não basta que a Câmara ou Núcleo Técnico de Assessoria disponha de

médicos de várias especialidades clínicas diferentes: é preciso questionar que

metodologia de análise eles utilizarão, porque, do contrário, haverá o risco de

que o médico da Câmara ou do Núcleo simplesmente concorde com o colega

que está prescrevendo o tratamento ou o medicamento, sem questionar mais

profundamente os argumentos utilizados, seja por um traço de corporativismo

ainda bastante perceptível na classe médica, seja por não dispor de mais

elementos técnicos para contrariar a prescrição original.

Ilustramos com um exemplo: o médico assistente prescreve uma sessão de

quimioterapia para um paciente em estágio avançado de câncer no fígado,

altamente letal como demonstra a experiência. O hospital público não dispõe

do medicamento porque ele é experimental e de alto custo; tampouco se

encontra o mesmo disponível na relação de medicamentos da Agência

Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Portanto, só poderá ser comprado

em outro país. Porém, realizar a importação de medicamentos não

relacionados pela agência é um enorme problema de ordem burocrática uma

vez que, em tese, se trata de substância que não pode entrar no Brasil.

Diante disso, indagamos: que método a Câmara ou Núcleo de Assessoria

Técnica do Tribunal de Justiça utilizará para aferir a pertinência do pedido?

Dependendo da opção estará decretado o fim do tratamento e o uso de

paliativos até que ocorra a morte do doente. Como decretar o final do

tratamento com suporte científico capaz de minimizar o impacto emocional do

paciente e de seus familiares, além da contrariedade do médico que fez a

prescrição?

Nesse sentido é que os estudos de Medicina Baseada em Evidências (MBE) e

as diretrizes clínicas devem ser avaliados como metodologia a ser utilizada

pelas Câmaras e Núcleos de Assessoria Técnica dos magistrados e dos

tribunais. Sem um método científico e claramente colocado, tais Câmaras e

Núcleos poderão não ser a solução almejada por toda a sociedade brasileira na

busca de alternativas para a judicialização da saúde.

A Medicina baseada em evidências, assim como a construção de diretrizes

clínicas e de mecanismos de avaliação de incorporação de novas tecnologias

já são práticas adotadas no Brasil pelo Ministério da Saúde, conforme tratado

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neste trabalho no capítulo I, quando abordamos aspectos fundamentais de

economia e saúde.

Nossa proposta é que essas práticas sejam incorporadas como métodos de

trabalho para as Câmaras ou Núcleos de Assessoria Técnica dos Tribunais de

Justiça brasileiros não apenas com vistas a uma uniformidade de

procedimento, mas principalmente em razão da racionalidade e equidade que

esses instrumentos propiciam para as decisões de utilização de recursos

públicos em saúde.

OTÁVIO AUGUSTO CÂMARA CLARK107, oncologista e estudioso de Medicina

baseada em evidência, afirma:

Várias questões devem ser examinadas para se determinar se um novo

procedimento vai aumentar ou diminuir gastos:

- Qual o custo da sua aplicação para um indivíduo?

- Esse procedimento complementa outro ou o substitui?

- Quantas vezes o indivíduo fará uso dessa tecnologia?

- Sua aplicação pode se estender à população em geral?

Apenas a experiência pessoal do médico, ou mesmo estudos isolados não podem

por vezes determinar o grau de benefício conferido por uma nova tecnologia.

Muitas vezes é preciso uma visão mais global e somente revisões sistemáticas

podem trazer estas respostas, mas é imprescindível separar os tratamentos que

realmente trazem benefícios adequados daqueles que apenas aumentam os

custos. [...]

Para resolver essa difícil equação, a aplicação das técnicas de Medicina Baseada

em Evidências (MBE) torna-se indispensável para um melhor gerenciamento dos

programas de assistência à saúde. [...]

Por definição, Medicina Baseada em Evidências (MBE) é a integração da melhor

evidência científica com a experiência clínica e os desejos individuais do paciente.

Vamos dissecar cada parte da tríade:

- Evidência é a pesquisa clinicamente relevante, especialmente aquelas centradas

em pacientes e que prezam pela acurácia e precisão de testes diagnósticos, o

107 CLARK, Otávio Augusto Câmara. “Medicina Baseada em Evidências para Auditores”. In: GONÇALVES, Viviane Fialho (organizadora) Fronteiras da Auditoria em Saúde. S.Paulo: Farol do Forte, 2009, p. 28.

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poder de marcadores prognósticos e a eficácia e segurança de procedimentos

terapêuticos e preventivos.

- Experiência clínica é a capacidade de colocar em prática habilidades clínicas e

experiências anteriores para identificar rapidamente o estado de saúde de cada

paciente, seu diagnóstico, seus riscos individuais e os benefícios potenciais.

- Desejos do paciente incluem o nosso entendimento e reconhecimento da

individualidade de cada ser humano, com as preferências, expectativas únicas que

ele traz para a consulta médica e que devem ser integradas e respeitadas numa

decisão clínica.

A MBE possui ferramentas especializadas que aliadas aos sistemas de informação

permitem aos médicos e operadores de saúde:

- Realizar um diagnóstico preciso da realidade do setor

- Determinar as prioridades de ação

- Incorporar racionalmente as novas tecnologias

- Aprimorar a relação custo-benefício

O autor também esclarece como é o método utilizado em uma análise a partir

de Medicina baseada em evidência:108

A MBE constrói suas conclusões através de um processo de múltiplos passos.

Primeiro selecionamos a tecnologia a ser avaliada (pode ser um medicamento de

alto custo, material cirúrgico, procedimento diagnóstico, exames, órteses, próteses,

etc.).

Em seguida é realizada uma pesquisa sistemática em bancos de dados nacionais

e internacionais, na qual recuperamos estudos científicos da melhor qualidade

sobre o tema.

Os dados são então analisados, tabelados, complicados e comparados com

políticas de saúde de vários órgãos mundialmente.

A partir desse trabalho é escrito um parecer que relata se existem ou não bases

científicas para o uso daquela nova tecnologia e, se factível, se ela é superior a

outras ações já disponíveis no mercado.

Sempre que possível avaliamos também aspectos de custo-efetividade. Todas as

recomendações feitas ao final da pesquisa são claras e precisas, para facilitar o

trabalho da equipe de auditoria do cliente.

108 Obra citada p. 30.

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A pesquisa pode também resultar na criação de um filtro inteligente, isto é, um

algoritmo que permite a incorporação destas informações no sistema de

gerenciamento de guias do cliente, permitindo assim a liberação da negativa do

pedido de forma automática.

A metodologia da Medicina baseada em evidências vai além da simples

experiência médica que, muitas vezes, pode ser insuficiente para determinar

com eficiência o melhor tratamento a ser dado ao caso. Também vai além da

sugestão de que o novo é sempre melhor, porque, antes de ser introduzido

como tratamento, o novo recurso será checado a partir de estudos científicos

que poderão corroborar a eficiência ou demonstrar que, apesar de ser uma

hipótese, ainda não é uma recomendação a ser praticada em determinados

casos concretos.

CLARK E VIANNA109 esclarecem ainda que:

Existem tratamentos ou exames diagnósticos adequados para uma doença num

estágio mais avançado, mas totalmente inadequados para um estágio mais

precoce. Não é incomum que médicos tentem se adiantar e extrapolem

tratamentos que foram testados para uma condição clínica para outra, semelhante

apenas na aparência. Os resultados de tais extrapolações frequentemente são

prejudiciais para os pacientes. Por exemplo: há alguns anos, um novo tratamento

para o câncer de intestino em estágios avançados surgiu, com um medicamento

chamado Irinotecam. Os estudos mostravam claramente que os pacientes que

tinham esse tipo de câncer com metástases se beneficiavam dele. Uma parte dos

oncologistas, porém, extrapolou a condição clínica e passou a prescrever o

Irinotecan para pacientes com doença não metástica, apesar da falta de evidências

de efetividade do medicamento nessa condição. Alguns anos depois, um estudo

clínico mostrou que na realidade esse tratamento aumentava a mortalidade desses

pacientes com doença menos grave.

A conduta proposta para um caso deve ter evidências que demonstrem que essa é

melhor que as outras alternativas existentes através de um estudo comparativo.

Esses estudos são chamados de estudos randomizados – são aqueles em que os

pacientes são “sorteados” para receber um de dois (ou mais) tratamentos

diferentes. Os pacientes são seguidos e no final uma avaliação estatística

determina se os resultados foram melhores para um deles. Costuma-se dizer que

109 CLARK, Otávio Augusto Câmara; VIANNA, Denizar. “Medicina Baseada em Evidências como Ferramenta para Decisões Judiciais”. In: BLIACHERIENE. Ana Carla. SANTOS, José Sebastião dos. Direito à Vida e à Saúde. São Paulo: Atlas, 2010, p. 123.

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Medicina é um exercício de comparação, e apenas comparando um tratamento

com outro pode-se realmente afirmar que um deles é melhor. É inadequado se

tomarem decisões com base apenas na experiência pessoal ou em uma série de

casos que não teve comparador.

O que se pode constatar é que a Medicina baseada em evidência tem um

método objetivo, claro, transparente, que pode ser testado, checado, debatido

de forma científica e que não comporta subjetividade.

As conclusões obtidas a partir do uso da Medicina baseada em evidências

poderão ser até ruins para as intenções de um médico ou de um paciente e

seus familiares, mas são objetivas e permitem que a decisão a ser tomada seja

ancorada em dados técnicos confiáveis.

Ao defender que a utilização da Medicina baseada em evidências pode ser útil

para aumentar a convicção dos magistrados no julgamento do caso concreto,

CLARK e VIANNA110 reconhecem que nem sempre é fácil encontrar profissionais

de área médica que tenham formação para isso, e sugerem algumas perguntas

que os magistrados deveriam formular para os peritos de modo a contribuir

para uma análise técnica mais objetiva e fundamentada. Assim, propõem que,

durante o procedimento pericial, seja indagado:

1. Qual a melhor evidência (prova) que essa conduta vai beneficiar o paciente.

Existe algum estudo randomizado ou revisão sistemática que recomende a

conduta em questão?

[...]

2. Qual o benefício clínico que o paciente vai obter, de acordo com os estudos?

Qual o tamanho médio desse benefício, mostrado nos estudos, comparado

com outras alternativas de tratamento?

[...]

3. Qual o custo da conduta solicitada e qual das alternativas existem hoje?

[...]

4. O médico prescritor terá algum ganho pecuniário com a conduta? Já recebeu

alguma comissão ou vantagem do fabricante, como pessoa física ou jurídica?

110 Obra citada, p. 125.

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Haverá algum lucro na comercialização do produto prescrito? A quem esse

lucro será destinado?

Os dois estudiosos também sugerem que os magistrados observem aspectos

específicos dos estudos apresentados pelos médicos peritos assistentes111.

Em relação à questão 1, acima sugerida:

a) Observe se uma revisão sistemática da literatura (às vezes chamada de meta-

análise) ou um estudo randomizado é citado ou se são estudos de baixa qualidade

ou opiniões de especialista.

b) Veja se os resultados e a conclusão do estudo citado são condizentes com a

conduta proposta (não é incomum que o médico cite um estudo sobre o assunto,

com conclusões diferentes da que ele alega).

Em relação à questão 2:

a) Observe se o benefício é estabelecido em termos de ganho de sobrevida, cura

ou qualidade de vida ou se é de resultados intermediários, como controle de

exames, redução de tumores, etc.

b) Peça informações sobre quanto o ganho será, em comparação com as

alternativas existentes (algumas vezes o ganho é muito pequeno em relação

ao risco).

Em relação à questão 3:

a) É importante considerar a questão de custo, pois a sustentabilidade do

sistema pode ser colocada em risco.

b) Procure pesar o custo com o benefício alegado e lembre-se que novo não

significa melhor.

E, por fim, em relação à questão 4:

111 Obra citada, p. 125.

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a) Atente para os conflitos de interesse que possam aparecer, caso eles existam,

considere fortemente ouvir outra opinião e um parecer do Conselho Regional de

Medicina.

Aliada à Medicina baseada em evidências, as diretrizes clínicas são outro

instrumento técnico fundamental para a tomada de decisões na área de saúde,

e para a utilização de um método objetivo que permita a racionalização do uso

dos recursos financeiros.

Diretrizes clínicas são posicionamentos ou recomendações sistematicamente

desenvolvidos por cientistas ou entidades médicas e de pesquisa para orientar

médicos e pacientes sobre cuidados apropriados, em circunstâncias clínicas

específicas. Sugerem indicações, contraindicações, benefícios esperados,

riscos, terapias e resultados para casos específicos.

A Agência Nacional de Saúde Suplementar explica112 o surgimento das

diretrizes clínicas:

As diretrizes de utilização - definidas a partir das melhores evidencias cientificas

disponíveis, acerca da eficácia e efetividade de intervenções – contribuem para a

melhoria da qualidade da assistência e são um poderoso instrumento para a

gestão e a regulação dos sistemas de saúde, visto que possuem grande potencial

de uniformização das praticas em saúde; simplificação dos procedimentos de

auditoria medica; fornecimento de parâmetros clínicos para o tratamento,

reabilitação e diagnostico das principais patologias que acometem os beneficiários

e redução da ocorrência de eventos adversos, garantindo, assim, a segurança do

paciente.

Apesar disso, as Diretrizes de utilização se constituem em um simples recorte de

obrigatoriedade de cobertura de um determinado procedimento, não tendo como

finalidade a impressão de uma boa pratica medica ou a rediscussão de um modelo

assistencial, centrado em procedimentos.

Para tanto, seria necessário mais do que Diretrizes de Utilização. Seria necessária

a produção de Diretrizes Clinicas, pautadas em evidencias cientificas, mas

112 O processo de elaboração, validação e implementação das diretrizes clínicas na Saúde Suplementar no Brasil / organização Agencia Nacional de Saúde Suplementar, Associação Medica Brasileira, Conselho Federal de Medicina. – Rio de Janeiro: ANS, 2009. 78 p. Disponível em http://www.ans.gov.br/portal/upload/biblioteca/Primeiras_Diretrizes_Clinicas.pdf. Acesso em 08 de novembro de 2011.

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legitimas perante todos os usuários do setor e que inserissem a utilização dos

procedimentos dentro de um contexto de gerenciamento do cuidado.

Assim, em 12 de fevereiro de 2009, foi firmado o convenio entre a ANS e a AMB,

para a elaboração de diretrizes clinicas voltadas para o sistema de saúde

suplementar, baseadas em evidencias cientificas e alinhadas a pratica clinica, com

parâmetros da boa pratica em saúde, consolidando assim a parceria da regulação

com a qualificação da assistência prestada.

Diretrizes clínicas podem ser definidas como113:

As diretrizes clínicas, por sua vez, constituem-se em posicionamentos ou

recomendações (statements) sistematicamente desenvolvidos para orientar médicos

e pacientes acerca dos cuidados de saúde apropriados, em circunstâncias clínicas

específicas2. Contemplam indicações e contra-indicações, bem como benefícios

esperados e riscos do uso de tecnologias em saúde (procedimentos, testes

diagnósticos, medicamentos, etc.) para grupos de pacientes definidos.

A discussão em torno de diretrizes clínicas origina-se da constatação de variações

dos padrões de prática e de utilização de serviços de saúde, de uso inapropriado de

serviços e da incerteza acerca dos resultados obtidos pelo uso ou não uso de

serviços ou procedimentos. Na medida em que as diretrizes baseiam-se no

conhecimento científico, estimativas dos resultados esperados e julgamento

profissional corrente, elas claramente têm um papel na garantia e avaliação de

qualidade dos cuidados de saúde.

Hoje, é internacionalmente aceita a pressuposição de que a implementação de

diretrizes para a prevenção, diagnóstico, tratamento e reabilitação de doenças,

definidas a partir da evidência científica disponível acerca da eficácia e efetividade

de intervenções, produz melhores resultados na população assistida3,4. Além disso,

o desenvolvimento de diretrizes para a assistência à saúde propicia uma utilização

mais racional dos recursos disponíveis, o que é fundamental para diversos sistemas

de saúde, mais ou menos dependentes de recursos públicos, em contextos de

maior ou menor restrição de recursos.

Apesar do reconhecimento de que a utilização de diretrizes clínicas contribui para a

melhoria da atenção prestada, sua efetiva aplicação ainda é insatisfatória, havendo

resistência por parte dos profissionais de saúde, especialmente médicos, e

113 PORTELA, Margareth Crisóstomo et al . Fatores associados ao uso de diretrizes clínicas em operadoras de planos de saúde e prestadores de serviços hospitalares no campo da Saúde Suplementar no Brasil. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 5, out. 2008 . Disponível em <http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232008000500020&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 08 nov. 2011. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232008000500020

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pacientes. Tem sido uma preocupação presente na literatura internacional a

identificação de características facilitadoras do seu uso e estratégias efetivas para a

sua disseminação.

Também integra o conjunto de conhecimentos em torno da Medicina baseada

em evidências e das diretrizes clínicas o conceito de avaliação tecnológica em

saúde.114

A Avaliação Tecnológica em Saúde (ATS) é a síntese do conhecimento produzido

sobre as implicações da utilização das tecnologias médicas e constitui subsídio

técnico importante para a tomada de decisão sobre difusão e incorporação de

tecnologias em saúde (Banta e Luce, 1993). Em outras palavras, a ATS é um

subsídio técnico para mecanismos de regulação do ciclo de vida das tecnologias,

em suas diferentes fases, através de atividades como as de registro e as

associadas ao financiamento de sua utilização (Figura 1). O ciclo de vida das

tecnologias tem sido cada vez mais regulado/influenciado pelos governos e planos

de saúde, cerceando um espaço outrora quase que reservado ao encontro do

médico, influenciado pela indústria produtora desses insumos, e paciente (O'Brien

et al., 2000; Chaix-Couturier et al., 2000; US Congress/OTA, 1994).

No Brasil, o governo hoje regula o ciclo de vida das tecnologias médicas através

da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), da Secretaria de Assistência

à Saúde do Ministério da Saúde (SAS/MS) e da Agência Nacional de Saúde

Suplementar (ANS), embora decisões do Judiciário venham também influenciando

a utilização de tecnologias de alto custo. Assim, por exemplo, a tabela de

procedimentos financiados pelo SUS, de responsabilidade da SAS/MS (e o rol de

procedimentos da ANS), pode ou não incluir certas tecnologias (e o plano/seguro-

saúde pode financiar as tecnologias do rol total ou parcialmente [co-participação]).

A ATS compreende muitas dimensões, principalmente as de acurácia (de

tecnologias diagnósticas), eficácia (probabilidade de benefício de uma tecnologia

em condições ideais), segurança (probabilidade de efeitos colaterais e adversos),

efetividade (probabilidade de benefício em condições ordinárias, locais), custo-

114 SILVA, Letícia Krauss. Avaliação tecnológica e análise custo-efetividade em saúde: a incorporação de tecnologias e a produção de diretrizes clínicas para o SUS. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, 2003 . Disponível em <http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232003000200014&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 08 nov. 2011. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232003000200014.

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efetividade, custo-utilidade, impacto, eqüidade e ética. Todavia, as ATSs são, via

de regra, parciais, cobrindo algumas das dimensões, geralmente aquelas

relevantes: para o estágio do ciclo de vida em que se encontra a tecnologia, para

um determinado sistema de saúde e para o patrocinador da ATS.

As dimensões analisadas pelas ATSs se inter-relacionam e os resultados

observados podem variar para diferentes sistemas de saúde e populações. Por

exemplo, o potencial de eqüidade de uma tecnologia depende da sua relação de

custo-eficácia, ou melhor, de custo-efetividade (e custo-utilidade) frente a de

outras alternativas para lidar com um mesmo (ou diversos) problema(s) de saúde.

Entretanto, essas relações, especialmente o componente de efetividade (e de

utilidade) mas também o de custo, precisam ser uma estimativa local, que pode

ser bastante diferente daquela observada em países desenvolvidos (Panerai e

Mohr, 1989; Krauss Silva, 1992; Drummond et al., 1997).

Além de poder contribuir para a efetividade e eficiência de serviços de saúde

como subsídio de mecanismos de regulação do uso de tecnologias médicas, a

exemplo do registro e do financiamento, a ATS pode também subsidiar atividades

conexas, como a elaboração de instrumentos de avaliação e de melhoria da

qualidade dos serviços de saúde (Krauss Silva, 1996, 1999), incluindo a

elaboração de guias ou diretrizes de conduta clínica (clinical practice guidelines),

que vem sendo patrocinada por governos e associações médicas, mas também

por planos de saúde, entre outros (Goodman, 1992; US Congress/OTA, 1994;

Ryan et al., 1996; The Tobacco Use and Dependence Clinical Practice Guidelines

Panel, Staff and Consortium Representatives, 2000; Eddy et al., 1998; Chaix-

Couturier et al., 2000) (Figura 2). A partir de meados da década de 1980, nos

países desenvolvidos, houve uma ligação mais efetiva das atividades de ATS com

as de elaboração de políticas de saúde e, mais tarde, uma disseminação mais

efetiva (e implementação) do conhecimento produzido para planejadores/gerentes

e clínicos (Banta, 2003).

Os três conceitos atuam de forma integrada.

A Medicina baseada em evidências, assim como as diretrizes clínicas

elaboradas para serem adotadas de maneira uniforme em casos semelhantes,

e a avaliação de tecnológica em saúde são ferramentas por meio das quais os

sistemas de atendimento à saúde, públicos ou privados, poderão uniformizar

procedimentos, racionalizar custos e atingir os melhores resultados possíveis

em face dos conhecimentos já construídos e das terapias já testadas.

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Em 28 de abril de 2011, foi aprovada a Lei 12.401, que altera a Lei 8.080, de

1990, para dispor sobre a assistência terapêutica e a incorporação de novas

tecnologias no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).

Nessa lei é adotada a definição de protocolo clínico e diretriz terapêutica.115 Ela

também determina a necessidade de evidências científicas sobre a eficácia,

acurácia, efetividade e segurança dos medicamentos, produtos ou

procedimentos que serão analisados pelo relatório da Comissão Nacional de

115 Lei n.º 12.401, de 28 de abril de 2011. Artigo 19-N – Para os efeitos do disposto no artigo 19-M, são adotadas as seguintes definições: (...) II – protocolo clínico e diretriz terapêutica: documento que estabelece os critérios para o diagnóstico da doença ou do agravo à saúde; o tratamento preconizado, com os medicamentos e demais produtos apropriados, quando couber; as posologias recomendadas; os mecanismos de controle clínico; e o acompanhamento e a verificação dos resultados terapêuticos, a serem seguidos pelos gestores do SUS. Artigo 19- O – Os protocolos clínicos e as diretrizes terapêuticas deverão estabelecer os medicamentos ou produtos necessários nas diferentes fases evolutivas da doença ou do agravo à saúde de que tratam, bem como aqueles indicados em casos de perda de eficácia e de surgimento de intolerância ou reação adversa relevante, provocadas por medicamento, produto ou procedimento de primeira escolha. Parágrafo único – Em qualquer caso, os medicamentos ou produtos de que trata o caput deste artigo serão aqueles avaliados quanto à sua eficácia, segurança, efetividade e custo-efetividade para as diferentes fases evolutivas da doença ou do agravo à saúde de que trata o protocolo. (...) 19-Q – A incorporação, a exclusão ou alteração pelo SUS de novos medicamentos, produtos e procedimentos, bem como a constituição ou a alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica, são atribuições do Ministério da Saúde, assessorado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. (...) Parágrafo 2º - O relatório da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS levará em consideração, necessariamente: I – as evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança do medicamento, produto ou procedimento objeto do processo, acatadas pelo órgão competente para o registro ou a autorização de uso. II – a avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecnologias já incorporadas, inclusive no que se refere aos atendimentos domiciliar, ambulatorial ou hospitalar, quando cabível. 19 – R – A incorporação, a exclusão e a alteração a que se refere o artigo 19-Q serão efetuadas mediante a instauração de processo administrativo, a ser concluído em prazo não superior a 180 (cento e oitenta) dias, contado da data em que foi protocolado o pedido, admitida a sua prorrogação por 90 (noventa) dias corridos, quando as circunstâncias exigirem. Parágrafo 1º - O processo de que trata o caput deste artigo observará, no que couber, o disposto na Lei 9.784, de 29 de janeiro de 1999, e as seguintes determinações especiais: (...) III – Realização de consulta pública que inclua a divulgação do parecer emitido pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. IV – realização de audiência púbica, antes da tomada de decisão, se a relevância da matéria justificar o evento. Artigo 19 – T – São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS: I – o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento, produto e procedimento clínico ou cirúrgico experimental, ou de uso não autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA. II – a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na ANVISA.

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Incorporação de Tecnologias do SUS. Em outras palavras, a incorporação de

novas tecnologias e medicamentos fica na dependência da existência de

evidências, ou seja, de pesquisas científicas que comprovem que haverá

eficiência e segurança para os pacientes.

As críticas contra a Medicina baseada em evidências, as diretrizes clínicas e a

avaliação de novas tecnologias são, quase sempre, no sentido de que sistemas

uniformizados de atendimento poderão ignorar peculiaridades específicas de

cada caso concreto e, principalmente, subtrair do médico a autonomia para

decidir o que é melhor para o seu paciente. Esse aspecto provavelmente seja o

principal fator de resistência à adoção integral dessas ferramentas, porque,

conforme analisado no Capítulo I deste trabalho, a Medicina contemporânea

praticada em quase todo o mundo ainda se alicerça, fundamentalmente, nas

impressões e experiências do médico que assiste o paciente. Ele acredita

dispor de absoluta autonomia para prescrever tratamentos, exames e

medicamentos, lastreado apenas e tão somente no seu juízo sobre o caso

analisado.

Em grande medida essa afirmação de que o médico é o único que pode decidir

o que é bom para o seu paciente é corroborada pela sociedade brasileira

contemporânea. Opiniões de outros médicos que não tenham sido

expressamente solicitadas pelo paciente ou por seu médico assistente não são

consideradas como auxílio, mas como intromissão, e quase sempre recebidas

como uma agressão à autonomia médica.

Em recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, a Ministra FÁTIMA NANCY

ANDRIGHI afirmou:

Somente ao médico que acompanha o caso é dado estab elecer qual o

tratamento adequado para alcançar a cura ou ameniza r os efeitos da

enfermidade que acometeu o paciente ; a seguradora não está habilitada,

tampouco autorizada a limitar as alternativas possíveis para o restabelecimento da

saúde do segurado, sob pena de colocar em risco a vida do consumidor. (REsp

1053810 / SP, Relator(a) Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA,

julgado em 17/12/2009) (grifo nosso)

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A decisão da Ministra NANCY ANDRIGHI não é isolada; ao contrário, representa a

convicção de muitos magistrados em todo o País e a da própria população, os

quais acreditam que o médico consultado é o único em condições de definir a

doença e o tratamento a ser utilizado. No capítulo I deste trabalho as razões

históricas e sociais da prevalência da opinião médica foram tratadas com maior

detalhamento.

Com esse imaginário da prevalência do saber do médico assistente ainda

fortemente em vigor na sociedade brasileira, adotar a metodologia de obtenção

de dados a partir de estudos de Medicina baseada em evidências, de diretrizes

clínicas e de avaliação tecnológica em saúde é romper com paradigmas

fortemente alicerçados e ousar criar novos parâmetros muito mais focados em

resultado de experiências comprovadas do que na vivência de cada

profissional de área médica.

Há um temor dos médicos no sentido de que a adoção dessas ferramentas

possa levar a Medicina a ser tratada mais como técnica do que como arte da

cura, e que acabe resultando em “mecanização” dos tratamentos médicos em

contraposição à sensibilidade para avaliar cada caso concreto com suas

peculiaridades.

Opondo-se a essa crítica estão, no entanto, os princípios VII e VIII da

Resolução n.º 1.931 do Conselho Federal de Medicina, de 2009, que

determinam respectivamente:

VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a

prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não

deseja, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de

urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do

paciente.

VIII – O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto,

renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou

imposições que possam prejudicar a eficiência e correção de seu trabalho.

Assim, na hipótese de uma diretriz clínica ou um estudo obtido por meio de

Medicina baseada em evidência se mostrar desvantajoso para o paciente, o

médico poderá argumentar com sua autonomia e exigir que seus argumentos

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sejam levados em conta, inclusive em juízo. Mas isso não o exime de

apresentar indicações técnicas que comprovem que o tratamento que pretende

utilizar seja, efetivamente, mais eficaz para o paciente.

A utilização de dados científicos obtidos por meio de Medicina baseada em

evidências ou a utilização de diretrizes clínicas e de avaliação tecnológica de

saúde poderá, em alguns casos, apontar para o fato inexorável de que não há

mais possibilidades médicas científicas e eficazes para um determinado caso

concreto e, que, então, a única alternativa será o tratamento paliativo que

preserve qualidade na fase final da vida.

Sem pretender entrar na avaliação dos aspectos psicológicos dessa questão,

(mesmo porque fugiríamos do objetivo de nosso trabalho) é possível avaliar

com dados de observação da sociedade brasileira contemporânea que a ideia

da morte é ainda um tabu de difícil aceitação para expressiva parcela da

população, em que pese ao fato de o Brasil ser um país com fortes vínculos de

religiosidade.

O fim do ciclo biológico, o fim da vida, ainda é tratado com uma enorme carga

emocional que, por vezes, dificulta uma avaliação racional, lógica, que permita

concluir o que é um tratamento eficiente e o que é apenas uma tentativa

cientificamente inútil de prolongar a vida. E, embora seja inútil, tal tratamento,

pode ser extremamente caro e causador de forte impacto nas contas públicas.

Se as Câmaras ou Núcleos de Assessoria Técnica não utilizarem como

parâmetros dados obtidos de forma objetiva e científica, o trabalho delas estará

comprometido porque ficará restrito ao parecer de outro médico, emitido por

vezes sem um maior conhecimento do caso especifico focalizado ou do

tratamento recomendado pelo médico assistente, especialmente quando se

tratar de uma nova tecnologia ou de um novo medicamento.

Os dados obtidos por meio de estudos de Medicina baseada em evidência, de

adoção de diretrizes clínicas para a saúde pública e com avaliação de

tecnológica em saúde permitirão a objetividade necessária para que o

magistrado possa sopesar de maneira mais ampla os elementos que envolvem

o caso concreto e decidir com segurança técnica e jurídica.

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É preciso considerar, no entanto, que mesmo os dados concretos e objetivos

obtidos por meio da MBE, com diretrizes clínicas e com avaliação tecnológica

em saúde, por vezes, poderão ser inconsistentes para que o magistrado avalie

com convicção a conveniência de adoção de um determinado tratamento ou

fornecimento público de um medicamento de alto custo.

Existirão situações em que os estudos serão insuficientes para permitir ao

magistrado decidir com certeza e, nesse caso, o caminho indicado será deferir

o pedido formulado pela parte, de forma a atender a prescrição indicada por

seu médico assistente.

Também é relevante ponderar que, em alguns casos concretos, a indicação

negativa para a adoção do tratamento prescrito pelo médico assistente diante

da realidade do paciente (uma criança de pouca idade, por exemplo), poderá

levar o magistrado a ignorar os dados obtidos pela técnica e deferir o

tratamento ou medicamento de alto custo apoiado tão somente na esperança

de que o médico assistente esteja certo e que os dados científicos coletados

possam estar equivocados.

Ninguém poderá obrigar o magistrado a aderir a dados científicos se eles não

tiverem contribuído para formar sua convicção. Nenhuma sociedade pode

pretender ser democrática se acorrentar seus magistrados a decidir somente

em conformidade com dados técnicos e científicos, porque esse caminho

tecnicista nem sempre se coaduna com a efetividade da Justiça.

Em estudo realizado sobre o juiz e a emoção, LÍDIA REIS DE ALMEIDA PRADO116

afirma, a partir da consulta à obra de JEROME FRANK, que os juízes decidem

116 PRADO, Lídia Reis de Almeida. O Juiz e a Emoção. Campinas: Millenium, 2003, p. 17-18. Nos parâmetros da corrente jusfilosófica de que é adepto, Frank (Jerome Frank) elucida que não existe certeza, segurança ou uniformidade do Direito, no momento de sua aplicação. Segundo ele, nas sociedades complexas, as decisões jurídicas teriam um caráter plástico e mutável, com o objetivo de adaptarem-se às novas situações da vida social. Assim, entende ser essa dimensão de incerteza a responsável pelo progresso do Direito. Cita muitos exemplos em que a variação da composição pessoal de uma Corte, em razão de falecimento ou nomeação de algum de seus membros, provoca uma mudança de decisão. De acordo com o autor, o desejo de uma excessiva estabilidade jurídica não surge de necessidades práticas, mas de um anseio algo mítico. É interessante – prossegue – que as pessoas não se espantem com as mudanças jurídicas por via legislativa, mas se assustem com a falta de previsibilidade dos juízes. Afinal, busca-se a segurança no substituto do pai, no Juiz Infalível, o qual vai determinar, de modo seguro, o que é justo e o que é injusto. Para essa falácia da plena segurança e certeza jurídicas colaboraria também a tendência do homem a fugir das realidades inquietantes ou desagradáveis e refugiar-se na ilusão de um mundo perfeito.

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sob a influência de sua personalidade, e que é irrefutável o traço marcante da

personalidade de todos aqueles que decidem exercer a magistratura: o apreço

pela vida, pela preservação desse bem superior que merece todo o empenho

da sociedade e, consequentemente, da magistratura, para ser corretamente

preservado.

Na atualidade já se sabe que a preservação da vida tem que estar atrelada à

sua qualidade, ou seja, ao bem-estar que todo ser humano tem direito de

atingir e que é garantido pelo acesso à saúde, à alimentação, à moradia e à

segurança, entre outros componentes do mínimo exigível, já tratado neste

trabalho.

É preciso ressaltar, no entanto, que a garantia do mínimo exigível não é um

direito individual, mas coletivo, o que significa que o magistrado, na formação

de sua convicção e decisão, deve levar em conta que os direitos não são

absolutos de cada cidadão mas relativos, porque pertencem legitimamente a

toda a coletividade.

Não se pode esperar do magistrado, portanto, que decida sem elementos

concretos que possam orientar a convicção e a fundamentação; e, no caso do

acesso a medicamentos e procedimentos de alto custo, os dados científicos

poderão cumprir um ótimo papel no fornecimento de subsídios para formar

essa convicção e fundamentação.

Porém, os problemas de acesso à saúde pública são tão complexos no Brasil

que os dados técnico-científicos obtidos a partir da Medicina baseada em

evidências, diretrizes técnicas e avaliação tecnológica de saúde poderão não

ser satisfatórios se não for oportunizada a participação, nas Câmaras Técnicas

ou nos Núcleos de Assistência, de auditores de saúde – profissionais de saúde

Segundo Frank, as normas gerais seriam apenas um dos ingredientes presentes na sentença. É que, enquanto o juiz não se pronunciar sobre um processo, não se pode dizer que se tenha ou não direito sobre o objeto da ação. Portanto, o Direito aperfeiçoa-se, adquire realidade, não devido à exclusiva interpretação das velhas regras abstratas, mas também pela ação de seres humanos concretos, cuja mente funciona como a dos demais seres humanos. (...) É necessário observar uma vez mais que Jerome Frank reconhece o valor das normas jurídicas gerais, que cumprem uma função relevante. Nega, porém, que o direito efetivo produzido pelos tribunais consista exclusivamente em conclusões tiradas das leis, devendo ser também considerada a influência da personalidade do juiz na produção da sentença. (grifos do texto original)

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especialmente preparados e capacitados para orientar sobre o dilema “custo e

resultado” (essencial quando se trata do uso do dinheiro público) –em cada

caso concreto e para fornecer subsídios para a decisão do magistrado.

O Brasil dispõe de um Sistema Nacional de Auditoria (SNA), do Ministério da

Saúde, vinculado ao Departamento Nacional de Auditoria do Sistema Único de

Saúde (SUS), criado pela Lei 8.689, de 27 de julho de 1993 e regulamentado

pelo Decreto n.1651, de 28 de setembro de 1995.

O médico ROBERTO ISSAMU YOSIDA117 define auditoria médica como:

[...] um instrumento de cidadania que viabiliza a assistência médica de qualidade, a

um valor justo, baseado na melhor evidência científica disponível na Medicina. Esta

é uma definição que permite vislumbrar a vasta gama de ações do médico auditor.

Permite que a população tenha segurança de que há uma chancela ao

atendimento em saúde, por parte de médicos gabaritados e especialistas. Também

assegura que todos recebam o mesmo tipo de referendo, desta forma permite o

equilíbrio. Menciona qualidade estruturada em ciência. O valor justo e benefícios

agregados ao caráter curativo. Engloba todas as ações de promoção e prevenção.

Refere atualização e conhecimento integrado.

Os pilares de nossa atividade são: moral, ética, legislação, regulamentação,

ciência e bom senso.

A médica GOLDETE PRISZKULNIK118 explica:

Quando pensamos em auditoria no setor público de saúde, a primeira visão que

temos é de um setor mal gerido, mal organizado e sem diretrizes. Vã ilusão. Os

princípios de auditoria, avaliação e regulação da assistência estão mais bem

estruturados no nível público do que no setor supletivo de saúde. [...]

A visão da auditoria no Sistema Público de Saúde difere substancialmente da visão

ainda hoje observada no sistema supletivo de saúde. Enquanto no nível público há

a preocupação na validação dos processos envolvidos no ame da assistência, sua

eficiência, eficácia e efetividade, a auditoria na saúde supletiva está focada no

117 YOSIDA, Roberto Issamu. “A Auditoria Médica como Instrumento de Responsabilidade Social”. In GONÇALVES, Viviane Fialho. Fronteiras da Auditoria em Saúde. Volume I. S.Paulo: Farol do Forte, 2009, p.13. 118 PRISZKULNIK. Goldete. “Auditoria no Sistema Público de Saúde no Brasil”. In: GONÇALVES, Viviane Fialho. Obra citada, p. 129.

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caso a caso, necessitando de autorizações para permanência hospitalar, exames

subsidiários e utilização de materiais e medicamentos especiais.

O desconhecimento das ações em auditoria na saúde pública é notório. A

população em geral e, principalmente, a população dos profissionais de saúde

desconhece as principais ferramentas de controle do SUS e seus mecanismos de

auditoria.

A médica ressalta que uma auditoria de qualidade depende de conhecimentos

específicos, experiência comprovada do profissional auditor, imparcialidade e

postura ética – elementos sem os quais a auditoria não cumprirá seu objetivo

fundamental de indicar qualidade, eficiência, eficácia e efetividade para as

práticas em saúde.

O médico JOSÉ ROBERTO TEBET119 ensina:

A Medicina Baseada em Evidências, a medicina preventiva, o gerenciamento de

casos e de doenças, a negociação com prestadores de serviços e fornecedores de

materiais e medicamentos, a análise da incorporação de novas tecnologias, a

avaliação de indicadores e da qualidade da atenção, a consultoria especializada

são as áreas mais recentes em que a atuação do médico auditor se faz presente.

Ao médico auditor não cabe mais tão-somente a análise e liberação de

procedimentos, a revisão de contas e menos ainda a sua glosa. Dele, exige-se

hoje atuar como auxiliar da gestão médica, fornecendo subsídios para a tomada de

decisão gerencial, zelar pelo bom uso dos recursos financeiros independente se a

instituição é pública ou privada, atuar junto ao médico assistente, sem no entanto

interferir em sua conduta, buscando como resultado de todas essas ações uma

medicina de mais qualidade e mais efetiva, focada no paciente.

Avaliar a qualidade da atenção médica é hoje, além de uma exigência legal, uma

obrigação para qualquer instituição de saúde. Neste contexto, o médico auditor

exerce papel fundamental.

Se, por um lado, é possível afirmar que a auditoria médica é um mecanismo do

qual as Câmaras Técnicas ou Núcleos de Assessoria não poderão prescindir,

por outro lado é preciso levar em consideração as restrições legais instituídas

para a prática dessa atividade.

119 TEBET, José Roberto. “Evolução da Auditoria Médica”. In: GONÇALVES, Viviane Fialho. Obra citada, p. 134.

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EDMILSON DE ALMEIDA BARROS JÚNIOR120 afirma que:

[...] a Auditoria Médica, caracterizada como ato privativo de médico, exatamente

por exigir conhecimento técnico especializado, pleno e integrado da profissão, visa

alcançar um modelo de assistência racional e eficiente, capaz de estabelecer um

juízo crítico sobre os atos auditados, afastados ao máximo da pura concepção

empresarial de incremento de lucros.

Ao contrário do que se possa superficialmente pensar, a auditoria possui como

objetivo maior garantir a qualidade da assistência médica prestada e o respeito às

normas técnicas, éticas e administrativas pó previamente estabelecidas, incluindo

aspectos de avaliação técnica de apuração de resultados.

No entanto, o artigo 94 do Código de Ética Médica determina que é vedado ao

profissional médico intervir, quando em função de auditor, assistente técnico ou

perito, nos atos profissionais de outro médico ou fazer qualquer apreciação em

presença do examinado, reservando suas observações para o Relatório.

Em outras palavras, o médico auditor não pode ameaçar a autonomia

profissional do médico assistente, o que, segundo os Conselhos de Medicina

em reiteradas decisões, se traduz por autorizar, vetar ou modificar

procedimentos propedêuticos ou terapêuticos determinados por um médico,

salvo em situações de total conveniência para o paciente, quando então deverá

justificar, fundamentar e comunicar por escrito suas recomendações.

BARROS JÚNIOR121 afirma que “[...] existe vedação absoluta de o auditor, o perito

ou assistente técnico interferir nas condutas do médico responsável pela

assistência, inclusive no que diz respeito à modificação de procedimentos.”

Assim, se, por um lado, a auditoria técnica é um instrumento essencial para

garantir objetividade da avaliação em saúde, por outro, é passível de restrições

emanadas do Código de Ética Médica, as quais poderão levar o médico auditor

a proceder de forma mais contida do que aquela que seria necessária para

impedir, por exemplo, um procedimento temerário de um colega relativo à

qualidade técnica ou à inadequação de custos do procedimento recomendado

pelo médico assistente.

120 Obra citada, p. 335. 121 Obra citada, p. 342.

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Isso não significa que as Câmaras Técnicas ou Núcleos de Assessoria Técnica

não devam contar com auditores de saúde. Ao contrário, afirma-se que é

essencial que eles atuem nessas Câmaras ou Núcleos porque poderão

fornecer subsídios técnicos objetivos e fundamentados para que o magistrado

possa formar sua convicção e decidir. Porém, não se pode esperar que a

recomendação do auditor de saúde possa modificar procedimentos médicos

sem a decisão judicial, porque como já afirmado, o médico auditor não pode

modificar, mas tão somente sugerir ou indicar, sendo impedido de determinar

que seja feito o tratamento de maneira diversa daquela escolhida pelo médico

assistente.

No entanto, a existência de Câmaras ou Núcleos de Assistência Técnica, já

operante em alguns estados brasileiros (em especial no Rio de Janeiro, que foi

o objeto de pesquisa deste trabalho), não contribui para diminuir o número de

ações judiciais. Necessariamente deverá existir uma demanda judicial para que

o assunto seja encaminhado para a Câmara Técnica ou Núcleo de Assessoria

Técnica, analisado por médicos especializados ou médicos auditores que

encaminharão um relatório ao magistrado que, por sua vez, decidirá a partir da

análise de todos os dados existentes no processo e à luz da legislação em

vigor.

É evidente que a existência de Câmaras ou Núcleos de Assessoria Técnica

que contem com profissionais especializados em Medicina baseada em

evidências, com auditores de saúde capacitados para a avaliação de novas

tecnologias e novos medicamentos, sempre com fundamento em diretrizes

clínicas e avaliação de tecnologias, contribuirá de maneira expressiva para que

as demandas judiciais na área da saúde pública não constituam apenas uma

corrida por recursos, mas uma busca por tratamentos e medicamentos cuja

eficácia (para aquele determinado caso concreto) seja cientificamente

comprovada ou com índice de comprovação científica suficiente para conseguir

o deferimento requerido.

Nos casos de improcedência do pedido judicial, os magistrados estarão

ancorados em argumentos técnicos que poderão demonstrar que o

procedimento ou medicamento sugerido contraria as experiências realizadas

nos melhores centros de pesquisa, que contraria as diretrizes clínicas ou a

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avaliação de tecnologias realizada pelo Ministério da Saúde. Ou ainda, poderão

demonstrar que se mostra inadequado porque atende mais às pretensões dos

laboratórios ou dos fornecedores de órteses e próteses do que às reais

necessidades do paciente.

Todavia, conforme mencionado, o atendimento proporcionado pelas Câmaras

ou Núcleos de Assessoria Técnica não consegue evitar as demandas judiciais,

embora ao longo do tempo, em razão da racionalidade da construção dos

argumentos médicos, possa desestimular a busca por tratamentos ou

medicamentos ainda não comprovados cientificamente de forma satisfatória.

Para mitigar o acesso ao Judiciário, o caminho mais eficaz poderá ser a

mediação pré-judicial.

O Conselho Nacional de Justiça, em 29 de novembro de 2010, adotou a

Resolução n.º 125, que dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de

tratamento adequado dos conflitos de interesse no âmbito do Poder Judiciário e

dá outras providências. (Íntegra no Anexo I)

A Resolução n.º 125, de 2010, instituiu a Política Pública de Tratamento

Adequado dos Conflitos de Interesse, que tem como objetivo assegurar a todos

o direito à solução dos conflitos por meios adequados à sua natureza e

peculiaridade, conforme expresso no artigo 1º. Também determinou no

parágrafo único do mesmo artigo que aos órgãos judiciários incumbe, além da

solução adjudicada mediante sentença, oferecer outros mecanismos de

soluções de controvérsias, em especial os chamados meios consensuais,

como a mediação e a conciliação, assim como prestarem atendimento e

orientação aos cidadãos.

Cumpre destacar a grande ênfase que a Resolução 125, de 2010, do Conselho

Nacional de Justiça (CNJ) dá à capacitação de servidores, conciliadores e

mediadores, com Anexo contendo os módulos de capacitação com as horas-

aula e conteúdo programático detalhado, o que contribui para facilitar a

implantação da capacitação e uniformizá-la em todo o território nacional.

O Conselho Nacional de Justiça determinou, ainda, que a implementação da

Política Pública de Tratamento Adequado de Conflitos de Interesse seja

realizada com o objetivo de promover ações à autocomposição de litígios e à

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pacificação social por meio da conciliação e da mediação. Para isso o

programa será efetivado por todos os órgãos do Poder Judiciário e por

entidades públicas e privadas parceiras, inclusive universidade e instituições de

ensino.

Embora a Resolução 125 de 2010 não mencione expressamente a

possibilidade de contar com a colaboração de institutos de pesquisa e de

entidades de Medicina especializada, como o Colégio Brasileiro de Cirurgiões,

Sociedade Brasileira de Cardiologia, Sociedade Brasileira de Pediatria, de

Diabetes, entre outras associações especializadas na área da Medicina, é

possível admitir que essas entidades participem e contribuam com seu

conhecimento para a realização de mediações e conciliações.

A Resolução prevê, ainda, a interlocução com a Ordem dos Advogados do

Brasil, Defensorias Públicas, Procuradorias e Ministério Público, de modo a

estimular a participação nos Centros Judiciários de Conflitos e Cidadania e a

valorizar a atuação na prevenção de litígios.

Também está prevista na Resolução 125 de 2010 a atuação do Conselho

Nacional de Justiça junto às empresas e agências reguladoras de serviços

públicos, com a finalidade de implementar práticas de autocomposição e

desenvolver acompanhamento estatístico com a instituição de bancos de

dados para visualização de resultados e outorga de selo de qualidade.

Para a concretização da Política Pública de Tratamento Adequado de Conflitos

de Interesses, serão criados os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e

Cidadania, que serão chamados apenas de “Centros”. Serão unidades do

Poder Judiciário preferencialmente responsáveis pela realização das sessões e

audiências de conciliação e mediação, que estejam a cargo de conciliadores e

mediadores, bem como o atendimento e orientação ao cidadão.

Previamente aos Centros, serão criados os Núcleos Permanentes de Métodos

Consensuais de Solução de Conflitos, compostos por magistrados da ativa ou

aposentados e servidores, preferencialmente atuantes na área e que terão

atribuições diversas, entre elas a de instalar os Centros Judiciários de Solução

de Conflitos e Cidadania.

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Determina o artigo 8º, parágrafo único, que todas as sessões de conciliação e

mediação pré-processuais deverão ser realizadas nos Centros que serão

instalados nos locais onde existam mais de um Juízo, Juizado ou Vara, com

pelo menos uma das competências determinadas no caput do artigo, ou seja,

áreas cível, fazendária, previdenciária, de família ou dos Juizados Especiais

Cíveis e Fazendários.

Obrigatoriamente, à luz do que determina o artigo 10 da Resolução 125, de

2010, os Centros deverão abranger o setor de solução de conflitos pré-

judiciais, setor de solução de conflitos processual e setor de cidadania.

Duas questões se destacam na implantação dos Centros Judiciários de

Solução de Conflitos e Cidadania, sendo ambas relevantes para as reflexões

deste trabalho: poderão eles ser utilizados na área da saúde pública? E como

tratar os críticos que afirmarão que os Centros contrariam os artigos 5º, XXXV

e 133 da Constituição Federal?

Considerando-se que a Resolução 125 de 2010 foi criada em razão da

necessidade de consolidar uma política pública permanente de incentivo e

aperfeiçoamento dos mecanismos consensuais de solução de conflitos, é

possível afirmar que os conflitos da área de saúde pública poderão ser tratados

pelos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania, tanto na esfera

da mediação como na da conciliação.

Mas é importante destacar que os conceitos são diferentes e ainda pouco

estudados no Brasil. A mediação tem por objetivo a desconstrução do conflito e

a construção de uma solução pelas partes conflitantes, de modo que, ao adotar

essa solução, elas se sintam contempladas integralmente e não apenas em

parte. A mediação propõe uma nova forma de solução de conflitos em uma

dimensão “ganha-ganha”, ou seja, sem a forma binária comumente praticada

(perdedor-ganhador, justo-injusto, bom-ruim). Na mediação as partes são

vencedoras no conflito porque ele deixa de existir. Ela restaura a relação social

que existia entre as partes antes da instalação da situação conflitante. Trata-se

de um mecanismo de difícil compreensão para as gerações que foram criadas

na bipolaridade da Guerra Fria (comunismo ou capitalismo; a favor ou contra) e

que migraram paulatinamente para um momento de extrema competitividade

econômica e de supremacia do consumo, que se tornou uma das formas de

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construção de identidade social. Além disso, na mediação importa

necessariamente pensar a diversidade, não se espantar com a diferença,

afastar a perplexidade diante do novo, e agir para tentar compreender o ponto

de vista do outro, que também é parte do conflito.

TANIA ALMEIDA122 ensina:

A mediação privilegia a desconstrução do conflito e a consequente restauração da

convivência pacífica entre as pessoas.

Sabemos que a construção de acordos não garante que seja efetivamente

dirimido o conflito entre as partes e, por vezes, chega a acirrá-lo. Todavia, a base

da pacificação social reside no restauro da relação social e na desconstrução do

conflito entre litigantes. A permanência do conflito possibilita a construção de

novos desentendimentos ou de novos litígios: esgarça o tecido social entre as

pessoas envolvidas em uma discordância e entre as redes sociais que a apoiam e

das quais fazem parte. A permanência do conflito e, portanto, terreno fértil para

manter latente a possibilidade de novas discórdias e o ânimo de desavença entre

os grupos sociais de pertinência dos litigantes.

Por dedicar-se ao restauro da relação social e à desconstrução do conflito – o que

lhe confere caráter preventivo de amplo alcance social -, a mediação vem sendo

considerada o método de eleição ideal ou mais apropriado para desacordos entre

pessoas cuja relação vai perdurar no tempo – seja por vínculos de parentesco,

vizinhança ou parceria.

Esse aspecto de pensar as razões e argumentos do outro para, articulados

com as próprias razões, desconstruir o conflito e construir soluções, restaura a

importância da política na vida social e minimiza a judicialização dos conflitos

como caminho mais democrático para o acesso à Justiça.

Mediação implica substituir a postura adversarial pela colaborativa, e isso só

pode ser feito com eficiência se as razões colocadas como sustentação do

conflito puderem ser analisadas como caminho da compreensão, ou seja, se se

compreender o outro, porque só essa forma é melhor para todos. A mediação,

122 ALMEIDA, Tania. Mediação e Conciliação: Dois Paradigmas Distintos, Duas Práticas Diversas. Disponível em http://www.mediare.com.br/08artigos_13mediacaodeconflitos.html. Acesso em 15 de novembro de 2011. Acesso em 15 de novembro de 2011.

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nessa dimensão, é a busca de um acordo que permita às partes em conflito

lançar para o problema outro olhar, de maior amplitude porque diferente

daquele que cada uma delas contemplava sozinha.

O acordo tem como resultado o empoderamento de cada parte em conflito,

porque ela pode colocar suas razões e argumentos, e, ao mesmo tempo,

perceber que a outra parte também tinha argumentos e razões úteis. Com isso

amplia-se a percepção das razões do conflito e aumenta a possibilidade de

encontrar uma solução em coautoria.

Para agir com alteridade, as partes deverão ser estimuladas pelo mediador a

adotarem um posicionamento ético, compreendida a dimensão ética aqui com

um sentido mais alargado que aquele que normalmente utilizamos no cotidiano.

JOSÉ RICARDO CUNHA123 explica:

A ética nos situa no centro do campo do cuidado. O outro é aquele a quem

dirigimos nosso cuidado, nosso zelo, nossa atenção; ele nos interpela em nossa

capacidade mais profunda de produzir humanidade, de perceber e fazer brotar a

existência humana para que ela cresça e perdure na sua própria vida.

Nessa perspectiva é possível, sim, dizer que a ética produz um ganho subjetivo,

pois a humanidade produzida inevitavelmente transcende o outro para também

crescer no eu que a pratica. É como se a conduta ética gerasse em quem a

pratica um sentimento ao mesmo tempo ligeiro e profundo de realização humana.

Esse é o máximo de satisfação que a ética pode proporcionar ao sujeito, ao eu,

uma vez que ela não se destina à autorrealização, mas à garantia da convivência

humana. Além disso, como ente não-manipulável, não se pode esperar que o

outro aja conforme as minhas expectativas, nem mesmo em relação à sua

conduta ética.

Em outras palavras, não devemos agir eticamente para que o outro também o

faça, até porque seria impossível ter garantias nesse sentido, mas porque

humanamente devemos fazê-lo.

Estamos, portanto, diante de um paradigma ético que demanda de todos senso de

responsabilidade e tolerância. A responsabilidade decorre, acima de tudo, da

consciência de nossa finitude material.

123 CUNHA, José Ricardo. “Estado Social e Estado Policial: da desigualdade radical”. In: CUNHA, José Ricardo. NORONHA, Rodolfo. Mediação de Conflitos Comunitários e Facilitação de Diálogos: relato de uma experiência na maré. Rio de Janeiro: FGV, 2010, p. 30.

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Como seres finitos, não temos razão nenhuma para acreditar que a vida humana

se perpetuará ad infinito no planeta Terra. Por isso, devemos agir para com os

outros e para com o planeta de forma a renovar constantemente as possibilidades

de uma existência digna para todos. Já a tolerância decorre, acima de tudo, da

consciência da inevitável coexistência.

Se a vida humana é um empreendimento coletivo, é imperioso que sejam

respeitadas todas as manifestações pessoais e sociais decorrentes do livre arbítrio

que caracteriza a condição humana.

A dimensão ética apontada por CUNHA é a que melhor se coaduna com a

proposta de mediação. É a visão da ética como o comportamento que respeita

porque acredita que o outro também tem o direito de se expressar e de efetivar

direitos tanto quanto nós próprios temos, e no sentido coletivo de preservação

dos interesses de todos, de compreensão de que nossa vivência em sociedade

é e deve ser sempre ancorada no respeito aos interesses coletivos.

Essa ética, se vigorar entre as partes conflitantes, que a isso poderão ser

levadas pela postura proativa do mediador, poderá modificar a ideia de conflito

para que ele possa ser visto como uma oportunidade de mudança, com uma

carga menos negativa do que aquela com a qual ele é tratado no âmbito da

Justiça em que o conflito sempre gera um vencedor e um derrotado. Nessa

perspectiva, a mediação pode ser a restauração da prática política do diálogo,

do debate de ideias, sempre em benefício do coletivo.

No âmbito da saúde pública, a mediação poderá ser um espaço para o

exercício de um novo papel dos Conselhos Municipais de Saúde, que poderão

atuar como representantes dos cidadãos junto ao poder público municipal,

estadual ou federal, a fim de que as soluções em coautoria sejam políticas

públicas para serem implantadas, fiscalizadas e avaliadas conjuntamente pela

comunidade e pelo governo. Tais políticas públicas de saúde devem ter por

escopo contemplar aspectos reiteradamente conflituosos, como dispensação

de medicamentos, oferta de leitos em unidades especiais, tratamentos

complexos, fornecimento de órteses ou próteses e exames tecnicamente mais

sofisticados (sobretudo os que utilizam imagem), entre outros que muitas vezes

são negados ou procrastinados para o cidadão que depende do sistema

público de saúde.

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Se a judicialização da saúde tem sido um meio individual para obter acesso ao

serviço público de saúde, a mediação poderá ser, na perspectiva proposta pelo

Conselho Nacional de Justiça, uma dimensão política, ética e, principalmente,

coletiva de definir e implantar políticas públicas tornando a população parte da

solução e não apenas do problema, e dando efetivo poder a essa mesma

população para que fiscalize a execução e os resultados das políticas públicas

definidas como prioritárias.

Nesse ponto, é possível indagar: poderia a mediação ser questionada como

medida contrária ao disposto nos artigos 5º, XXXV e 133 da Constituição

Federal?

Determina o artigo 5º, no inciso XXXV, que a lei não excluirá da apreciação do

Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. O texto da Resolução 125, de

2010, expressamente menciona que: “[..] considerando que o direito de

acesso à Justiça, previsto no artigo 5º, XXXV, da C onstituição Federal

além da vertente formal perante os órgãos judiciári os, implica acesso à

ordem jurídica justa.” (grifo nosso)

Participar por livre escolha de mediação ou de conciliação após uma fase

prévia em que o cidadão recebe explicações detalhadas e claras sobre cada

uma das possibilidades não se constitui em contraposição ao dispositivo

constitucional. Ao contrário, amplia as possibilidades de acesso à Justiça ao

permitir mecanismos ágeis e, ao mesmo tempo, plenamente acompanhados e

fiscalizados pelo Poder Judiciário.

O artigo 133 da Constituição Federal prevê que o advogado é indispensável à

administração da Justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no

exercício da profissão, nos limites da lei.

As práticas de mediação ou de conciliação não excluem e não vedam a

presença dos advogados; ao contrário, eles podem e devem participar desde a

fase prévia de esclarecimento das partes e atuar de forma a orientá-las para a

obtenção de resultados efetivos que serão a solução em coautoria na

mediação e o acordo na conciliação. Mas teriam os advogados brasileiros

formação para participar da mediação compreendida como desconstrução do

conflito e construção de solução em coautoria pelas partes? Não. A formação

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dos advogados brasileiros, em sua expressiva maioria, ainda é voltada para a

solução judicial dos conflitos, com grande carga de estudo de processo civil e

quase nenhum preparo para os mecanismos de solução não judicial.

TANIA ALMEIDA124 afirma:

A capacitação teórico-prática específica é praxe, em todo o mundo, devido ao

caráter transdisciplinar da Mediação. Aportes de diferentes áreas do saber

precisam ser articulados e apreendidos de maneira a sustentarem a atuação do

mediador e o emprego de um sem-número de intervenções que visam à

desconstrução de impasses e à fluidez do diálogo. [...}

Ensinar Mediação transcende reunir seus aportes teóricos e técnicos em um

programa docente. A Mediação é muito mais do que um método de resolução de

conflitos. Seu aprendizado implica mudanças paradigmáticas que dizem respeito à

convivência pautada na empatia como princípio ético fundamental. É um

aprendizado para a vida, par ao estar no mundo, não exclusivamente para

desempenhar uma função. Constata-se que os programas de capacitação

existentes possuem vertentes mais objetivas ou mais subjetivas e constroem

praticantes habilitados a estimular maiores ou menores mudanças sociais.

Os meios não processuais de solução de conflitos ainda não são tratados em

grande parte dos cursos de Direito no Brasil como prioridade ou como

mecanismos relevantes. São vistos como “alternativos”, o que pode significar

que não representam a solução mais confiável, mas uma maneira secundária

de obter um resultado para um conflito. Têm a seu favor a celeridade em uma

sociedade na qual o Poder Judiciário reconhecidamente não consegue ser ágil

nas soluções.

A adoção da conciliação foi estimulada com os Juizados Especiais,

anteriormente denominados Juizados de Pequenas Causas. Tem sido

largamente utilizada e com resultados positivos. É uma oportunidade para que

as partes coloquem suas razões e pactuem um acordo para pôr fim ao conflito.

A conciliação tem sido amplamente utilizada em casos de acidentes de trânsito,

vícios ou defeitos de consumo, relações com bancos e financeiras, prestadores

124 ALMEIDA, Tania. Mediação de Conflitos: Um Meio de Prevenção e Resolução de Controvérsias em Sintonia com a Atualidade. Disponível em http://www.mediare.com.br/08artigos.htm. Acesso em 15 de novembro de 2011.

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de serviços de telefonia celular móvel ou televisão a cabo, entre outros de igual

natureza.

A mediação, ao contrário da conciliação, se destina a conflitos nos quais as

partes tenham uma relação mais duradoura, como ocorre nos casos de família,

de relacionamento do cidadão com o poder público e nos problemas

corporativos mais complexos, entre outros assemelhados. Por isso ela contém

etapas em que os advogados serão fundamentais, e outras em que as partes

deverão atuar de maneira mais autônoma, porque, se cada uma das partes não

contribuir por si mesma para a desconstrução do conflito, não poderá contribuir

para a construção da solução.

Como afirma ADOLFO BRAGA NETO125 a respeito da mediação,

“[...] ela não visa pura e simplesmente ao acordo, visa sim atingir a satisfação das

motivações das pessoas. Seu objetivo, entre outros, é estimular o diálogo

cooperativo entre elas para que alcancem a solução das controvérsias em que

estão envolvidas. Neste método pacífico se busca propiciar momentos de

criatividade para que as partes possam analisar qual seria a melhor opção face à

relação existente, geradora da controvérsia.

Para atender a essa perspectiva, a mediação exigirá que o cidadão tome a

frente do debate, coloque suas ideias e propostas, devendo o advogado

exercer a tarefa de orientador e não de protagonista, como acontece nos

processos judiciais.

Para que os advogados brasileiros possam exercer esse papel, em especial

em casos envolvendo acesso à saúde pública, terão que ser capacitados e

esclarecidos, porque se trata de uma proposta de atuação profissional

inovadora e diferente daquela que se estabelece normalmente nos processos

judiciais, nos quais, mesmo na fase de tentativa de conciliação, o advogado é

protagonista do debate e não raro, da solução.

A Ordem dos Advogados do Brasil terá que ser inserida como parceira na

formação dos advogados para atuarem em procedimentos de mediação.

125 BRAGA NETO. Adolfo. A Mediação de Conflitos e suas Diferenças com a Conciliação. Disponível em http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/sistemas/436-rodape/acoes-e-programas/programas-de-a-a-z/movimento-pela-conciliacao/justica-estadual. Acesso em 15 de novembro de 2011.

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Caberá à Ordem dos Advogados do Brasil, ainda, incentivar as escolas de

Direito em todo o País para que incluam o estudo da mediação e da conciliação

em seus currículos e conteúdos programáticos, não como uma forma

alternativa, mas como uma das formas viáveis para a concretização da justiça.

As práticas jurídicas exercidas nas escolas de Direito também deverão

contemplar mediação, com alunos trabalhando em conjunto com os

mediadores, em especial nas etapas iniciais da mediação, quando todo o

procedimento é explicado detalhadamente para as partes.

Para BRAGA NETO126 a mediação possui oito fases: pré-mediação, abertura,

investigação, agenda, criação de opções, avaliação das opções, escolha das

opções e solução.

De especial atenção para este trabalho são as fases de pré-mediação e

abertura, momentos em que, segundo o autor, o mediador informa de que

maneira ocorrerá o procedimento de mediação, quais seus objetivos, o papel

que se espera que as partes cumpram, a atenção que elas devem dar aos

argumentos da outra, e, ainda, indaga a cada parte as razões que as trouxeram

para a mediação, sobre o efetivo interesse delas em se submeter a essa

modalidade de acesso à Justiça, e esclarece de que maneira ele agirá em

relação às partes e ao conflito.

Somente depois da fase de pré-mediação e de abertura é que as partes

poderão assinar o Termo de Compromisso de Mediação ou Contrato de

Mediação, como sugere o autor citado e, então, serão iniciados os trabalhos e

cumpridas as demais fases.

O esclarecimento e a compreensão sobre os objetivos da mediação e sobre a

forma como ela ocorrerá e, em especial, sobre o papel das partes e do

mediador, é fundamental para que as partes avaliem se aquele conflito poderá

ser solucionado por mediação pré-judicial.

Nos casos de saúde pública, especificamente, é fundamental que a mediação

pré-judicial seja adotada em Centros que possam se utilizar de Câmaras ou

Núcleos de Assistência Técnica, composto por profissionais da área de saúde,

conforme já tratado neste trabalho.

126 Obra citada, pág. 4.

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186

Sem o apoio técnico de médicos, psicólogos, farmacêuticos, fisioterapeutas,

enfermeiras, nutricionistas, entre outros profissionais da área de saúde, o

mediador e as partes não disporão de elementos técnicos e objetivos

suficientes para formar uma visão ampliada do conflito.

É possível afirmar que para conflitos em saúde (pública ou privada) seja mais

adequado utilizar um mediador preparado especialmente para aquela função,

capacitado com conhecimentos sobre o funcionamento do Sistema Único de

Saúde, o Ministério da Saúde e suas funções, as funções da Agência Nacional

de Vigilância Sanitária, as políticas públicas de dispensação de medicamentos

no âmbito do município e do estado federativo em que atua, bem como da

União Federal.

Além dos conhecimentos próprios de mediação já inseridos na Recomendação

125, de 2010, o mediador da área de saúde deverá conhecer aspectos

específicos que comumente motivam os conflitos nesse setor e, dessa

maneira, se preparar adequadamente para atuar em situações delicadas que,

não raro, envolvem a fragilidade física, psíquica e social de uma das partes.

O mediador pré-judicial em atuação conjunta com as Câmaras ou Núcleos de

Assistência Técnica que assessoram os Tribunais de Justiça estará mais

preparado para ajudar as partes no diálogo e na busca de uma solução em

coautoria a partir de dados reais que ele trará para fomentar o diálogo.

É preciso considerar que, quando se trata de solução de conflitos de saúde

pública ou privada, o fator tempo é quase sempre um inimigo do diálogo e da

busca por soluções de consenso. Mesmo nos casos em que não haja urgência

ou emergência, as partes que necessitam de medicamentos ou tratamentos

médicos estarão vivenciando algum tipo de desconforto ou preocupação e,

nessa medida, nem sempre estarão dispostas a vivenciar um procedimento

pré-judicial que poderá se prolongar por semanas.

Há no Brasil, por outro lado, uma “cultura de tutelas antecipadas” já instalada,

que, no imaginário dos cidadãos e de muitos advogados, é sinônima de

concessão de tutela pelo magistrado sempre que o tema da saúde for central

ao problema.

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Para modificar essa cultura, os magistrados poderão, nos casos em que não

haja urgência ou emergência, aferida a ausência pela Câmara ou Núcleo de

Assessoria Técnica, determinar que seja realizada a primeira fase da mediação

pré-judicial, ou seja, a fase de esclarecimentos das partes antes que o

processo judicial tenha prosseguimento. É uma proposta que provocará críticas

dos que acreditam se tratar de um cerceamento de acesso à Justiça. Mas, em

contrapartida, como o próprio Conselho Nacional de Justiça reconhece que a

mediação e conciliação fazem parte integrante do direito fundamental de

acesso à Justiça, é defensável que a obrigação de se submeter primeiramente

à primeira fase da mediação pré-judicial não seja inconstitucional e, portanto,

possa ser uma proposta capaz de reduzir o número de demandas judiciais na

área de saúde.

Existem casos concretos de pedidos de realização de cirurgia no exterior, ou

de realização de cirurgias que não são aconselhadas para o paciente naquele

momento de sua vida, ou ainda, de requerimento de medicamentos que estão

em fases iniciais de estudo. Os tribunais brasileiros recebem ainda pedidos de

tratamento em clínicas de emagrecimento (spas), de cirurgia para correção de

miopia em situações em que a idade e o grau de comprometimento não

recomendam sua realização, entre outros pedidos que não possuem amparo

técnico ou que apontam para a necessidade de um debate político sobre a

utilização de verbas públicas para que possam ser efetivados.

Casos dessa natureza podem ser solucionados pela via da mediação pré-

judicial, pois existe tempo para que ela aconteça e, no mais das vezes, o

conflito nasce da falta de conhecimento da parte sobre as razões de ordem

técnica e científica que levaram o órgão público a negar o tratamento ou o

medicamento. É nesse locus que também se poderá construir o debate sobre a

utilização de verbas públicas, sobre o comprometimento do orçamento público

municipal e sobre a necessidade de formulação de políticas públicas para

contemplar não apenas o caso individual, mas outros tantos semelhantes

àquele.

A Resolução 125, de 2010, do Conselho Nacional de Justiça, determina que os

conflitos de interesse sejam tratados como política pública, exatamente por

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reconhecer que eles ocorrem em larga escala na sociedade contemporânea e

que os cidadãos têm direito constitucional fundamental de acesso à Justiça.

Isso tem um significado muito especial, porque o Conselho Nacional de Justiça

aponta a solução de conflitos por meios pré-judiciais como uma prática a ser

adotada de forma contínua e não circunstancial, objetivando, por meio dos

centros de Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania, previstos

na seção II, encontrar soluções rápidas e eficientes para o acesso à Justiça. É,

portanto, um programa de Estado e não de governo, o que significa que o

aprimoramento do acesso à Justiça deverá ser sempre perseguido por tantos

quantos sejam os presidentes do Conselho Nacional de Justiça ou dos

Tribunais de Justiça de cada Estado da Federação que ocupem o cargo.

Como política pública, os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e

Cidadania poderão, no entender deste trabalho de pesquisa, motivar a

participação de outros órgãos que tenham por objetivo a garantia de direitos

fundamentais, como os Conselhos Municipais de Saúde.

A contribuição dos Conselhos Municipais de Saúde poderá ser fundamental

para qualificar o debate e a construção de argumentos que poderão levar à

construção de soluções para o conflito. Caberá aos Conselhos trazer para a

discussão individual as perspectivas da repercussão no âmbito público, nos

programas de saúde já custeados e administrados pelo município, o impacto

nas contas públicas e na implantação de futuras políticas públicas necessárias

para a população.

A mediação pré-judicial poderá ser o espaço do debate ampliado, político e

social da saúde pública (que terá início a partir dos casos individualizados), e

contribuir para desconstruir o conflito a partir da compreensão da

impossibilidade ou da desnecessidade de acesso a alguns tipos de

medicamento ou de tratamento de saúde.

Em outras situações, o debate ampliado a partir do caso individualizado levado

à medição pré-judicial sinalizará a necessidade de estudo, de previsão

orçamentária e de implementação de novas políticas públicas de saúde,

construindo uma solução que em longo prazo beneficiará a todos os cidadãos

com problemas semelhantes àquele analisado em concreto.

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A população brasileira de todos os níveis econômicos de renda se sente

credora do Estado, por arcar com altas taxas de impostos e receber em troca,

historicamente, muito pouco em áreas fundamentais, como educação, saúde,

moradia, assistência social e segurança social, entre outras. Quando o cidadão

supera obstáculos para ir ao Judiciário requerer algum direito em matéria de

saúde pública, ele está convencido de que tem direito pelo simples fato de ser

brasileiro e pagar impostos.

É preciso ampliar essa percepção dos cidadãos brasileiros para que possam

entender, de forma lenta, gradual e efetiva, que todos os direitos sociais têm

custos de implementação e que esses custos precisam ser lançados de forma

progressiva para que toda a sociedade conquiste direitos, e não apenas

aqueles que obtiveram uma sentença judicial favorável.

CONCLUSÃO

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Este trabalho foi elaborado para tentar pesquisar respostas para algumas

perguntas relevantes para compreensão do fenômeno da judicialização da

saúde pública no Brasil.

A primeira delas consiste em saber se a busca do Poder Judiciário para a

solução das questões de saúde pública é sinal de fortalecimento das

instituições democráticas ou, ao contrário, é sintoma de imaturidade das

instituições políticas que deveriam promover o debate coletivo da efetividade

da saúde pública. Ou em outras palavras, se esse fenômeno pode ser

considerado um elemento para a despolitização da sociedade civil brasileira

contemporânea.

A outra pergunta formulada de início foi: de que forma será possível superar o

fenômeno da judicialização da saúde e recuperar o espaço de discussão

política da saúde pública como um direito de todos, conforme previsto na

Constituição Federal?

Dois foram, portanto, os objetivos traçados: compreender o fenômeno da

judicialização do acesso à saúde pública no Brasil, e pesquisar alternativas de

âmbito político-jurídico que permitam mitigar o protagonismo do Poder

Judiciário para garantir efetividade do direito fundamental à saúde.

Ao analisar o papel do médico na construção histórica e social do conceito de

saúde, foi possível detectar que a luta para obter a autonomia de dizer o que é

saúde e o que não é não foi travada apenas por esses profissionais. Eles

contaram com o apoio do aparato de Estado que, em muitos lugares, desde a

Idade Média e até hoje, ainda pauta a organização das cidades e o destino a

ser dado a doentes e cadáveres a partir dos saberes provindos da Medicina.

A arquitetura das cidades se organizou a partir desses saberes, tendo sido os

hospitais e todos os locais de depósito de doentes incuráveis (portadores de

hanseníase, por exemplo) pensados a partir de tais conhecimentos, ancorados

na autoridade do Estado.

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Assim, os médicos construíram o poder de serem os únicos a determinar o que

é doença e como tratá-la. A ciência os auxiliou e auxilia muito, mas é

fundamentalmente o Estado, com seu poder de coerção, que lhes dá

fundamentos para determinar como deverão ser tratadas as doenças e os

doentes. Assim, esses profissionais possuem mais do que a exclusividade de

detectar a doença e tratar dela: possuem o apoio do Estado para agir.

Na atualidade, esse apoio do Estado se traduz de forma clara na atuação do

Poder Judiciário que, quando instado a decidir sobre uma questão de saúde,

quase sempre o faz no mesmo sentido daquilo que tiver sido determinado pelo

médico que assiste ao paciente.

Fundamentado no parecer do médico que assiste o cidadão é que o Poder

Judiciário toma suas decisões, e sem peso na consciência, independentemente

de valores que serão consumidos ou da repercussão que essa decisão possa

provocar no orçamento público e no atendimento de outras necessidades da

sociedade, como a saúde primária, por exemplo, compreendida aqui como

campanhas de vacinação e práticas de Medicina preventiva.

Contrariar o parecer técnico do médico é inviável para os magistrados, quer

pela complexidade do conhecimento, quer pela exclusividade que se atribui a

esse profissional para tratar dos assuntos referentes à saúde e sua

manutenção. A rigor, até mesmo a opinião de outro médico sobre o mesmo

caso é questionada, principalmente se ele não possuir os mesmos predicados

daquele que formalizou o diagnóstico e prescreveu o tratamento.

Ao mesmo tempo em que auxilia o avanço da Medicina, a ciência também é

utilizada para introduzir inovações que no campo da saúde não se sobrepõem:

ao contrário, se somam e tornam ainda mais caro o tratamento de cura.

Enquanto em outras áreas técnicas uma inovação surge para substituir uma

prática que é imediatamente considerada obsoleta e afastada, no campo das

ciências médicas a ultrassonografia e a ressonância magnética não decretaram

o fim da utilização do raio X. Tudo dependerá do caso concreto que estiver

sendo analisado. Não raro, conforme mencionado no capitulo IV deste trabalho,

o médico utiliza vários exames para obter um diagnóstico que o satisfaça

plenamente.

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No campo da Farmacologia, o fenômeno também ocorre, e acrescido de um

outro agravante: cada novo produto lançado no mercado de consumo de

medicamentos deve custar o preço necessário para custear todas as

experiências anteriores que não foram bem sucedidas, que não se

transformaram em produtos vendáveis.

Por essas razões, surgem a cada dia novas tecnologias e novos medicamentos

na área de saúde, permitindo aos médicos que tenham cada vez mais

possibilidades de prescrever tentativas de curar seu paciente. Infelizmente, no

mundo capitalista hegemônico, todos os tratamentos e medicamentos têm

custos e, quase sempre, vultosos quando se trata de inovações.

Mas como questionar o médico e dizer que o tratamento não pode ser

realizado? Como dizer ao paciente que seu tratamento é vultoso, poderá

repercutir negativamente no orçamento público do município ou do estado

federativo? Como provar efetivamente essa repercussão negativa se sempre

se poderá alegar que basta retirar os recursos de outras obras não tão

relevantes como a vida humana?

O processo de constitucionalização do Direito vivido no Brasil a partir da

promulgação da Constituição Federal de 1988 foi e ainda é um movimento de

grande importância para a solução de demandas judiciais. A Constituição

Federal de 1988 criou o processo de filtragem constitucional, que permitiu que

todos os casos concretos, de qualquer assunto, pudessem ser tratados na

óptica constitucional, independentemente do assunto sobre o qual

concretamente versem.

Debatida e construída após mais de vinte anos de ditadura militar, a

Constituição Federal brasileira de 1988 trata de maneira muito especial os

direitos fundamentais, individuais e sociais, e tem como fundamentos a

cidadania e a dignidade da pessoa humana.

Princípio multifacetado e de ampla aplicação na atualidade em razão da

complexidade da organização social e do modo de vida dos seres humanos, a

dignidade da pessoa humana se tornou no Brasil um princípio de uso múltiplo,

sempre a exigir uma hermenêutica adequada às peculiaridades de cada caso

concreto.

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Invoca a dignidade da pessoa humana a entidade de assistência social que

deseja que o Estado lhe subvencione, como invoca o mesmo princípio o

cidadão que efetua a compra de um bem ou serviço que não lhe é entregue no

prazo correto, ou na forma correta. Nesse contexto, portanto, quase todos os

pedidos formulados no âmbito da efetividade do direito social à saúde pública

se ancoram no respeito à dignidade da pessoa humana, e estão certos, porque

quando se trata da preservação da boa saúde e, consequentemente da vida

humana, é a dignidade que está sendo preservada para toda a sociedade.

A saúde está contemplada no artigo 6º da Constituição Federal, que define os

direitos sociais.

No artigo 196 a Constituição Federal de 1988 define a saúde como um direito

de todos e um dever do Estado, que deverá ser garantido por meio de políticas

sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros

agravos, e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua

promoção, proteção e recuperação.

A Constituição Federal de 1988, no âmbito dos direitos fundamentais, é o

projeto político emancipatório da nação e deve ser efetivado pelo Estado

brasileiro. Mas como efetivar direitos sem conceder privilégios?

O debate em torno de normas programáticas e reserva do possível quando se

trata de acesso à saúde está quase superado. Hoje o debate está focalizado

em efetivar todos os direitos fundamentais para todos, com captação e

administração de recursos marcados pela legalidade, impessoalidade,

moralidade, publicidade e eficiência.

Efetivar todos os direitos fundamentais para todos os cidadãos é utópico, mas

é preciso que os poderes republicanos sinalizem que se movimentam no

sentido de chegar o mais perto possível da concretude.

O Judiciário se tornou, nas últimas décadas, no Brasil, o ente federativo em

melhores condições de acolher as pretensões de exercício da cidadania, ao

mesmo tempo em que o Executivo e o Legislativo se enredaram em denúncias

de corrupção, descrédito, má utilização das verbas públicas, lentidão e falta de

eficiência. Em especial o Legislativo, acossado por infindáveis denúncias de

corrupção de seus membros, tanto na Câmara como no Senado, perdeu a

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credibilidade junto à população e tornou-se um ente distante, relembrado

apenas em períodos eleitorais.

O chamado protagonismo ou ativismo do Judiciário se deve muito menos à sua

vontade do que a uma condição fática à qual foi guindado mesmo sem tanta

vontade. Uma vez conquistada a condição de poder mais associado à

credibilidade e à honestidade, com espaço garantido na mídia impressa e

televisiva, em especial nas decisões de maior gosto popular, não tardou para

que aquele que não queria o protagonismo a ele se adaptasse “docemente

constrangido”.

A transmissão de decisões judiciais de grande impacto com a organização da

TV Justiça, a repercussão das decisões judiciais nos noticiários mais assistidos

no País e também nos jornais impressos e na mídia eletrônica, contribuíram

(de forma ainda pouco pesquisada mas possível de ser constatada) para que

os magistrados se tornassem no imaginário popular seres que tudo podem

decidir e que têm o poder de determinar que direitos poderão ser usufruídos

por quais pessoas.

De outro lado, analisando-se decisões judiciais em diferentes estados da

federação alicerçadas em diferentes necessidades, é possível constatar que

pouco ou nada podem fazer os magistrados quando recebem casos concretos

com pedidos de dispensação médica ou de tratamento especializado, por

vezes com custos vultuosos, porém ancorados em relatórios médicos que

atestam firmemente a necessidade, por vezes a urgência ou a emergência, da

realização daquele tratamento ou medicamento específico, sem margem de

tempo para que esse debate seja ampliado.

De posse de um relatório médico dessa natureza e diante de um rosto com

nome e expectativas, o magistrado de Primeiro Grau não tem outro caminho a

adotar senão proferir a concessão de tutela, ou a sentença favorável que

permita a ele próprio, ao paciente e por consequência, ao círculo social

envolvido, sentir-se amparado constitucionalmente para usufruir concretamente

do direito à saúde.

Protagonismo ou ativismo judicial? Pouco importa, o que se conclui é que os

casos de acesso à saúde pública não deveriam chegar ao Poder Judiciário, ou

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chegar apenas em situações extremamente específicas para as quais o

mecanismo de Estado se mostrasse impotente. No entanto, não é o que ocorre

no Brasil neste momento histórico, em que chegam ao Poder Judiciário

milhares de casos que poderiam ser solucionados por políticas públicas

municipais, as quais às vezes são até existentes mas desconhecidas da

população, ou trabalhadas de forma tão precária que resultam ineficientes.

A população vai ao Poder Judiciário para reivindicar acesso a medicamentos, a

tratamentos, internações, órteses e próteses – pedidos esses perfeitamente

passíveis de serem deferidos com a utilização conjugada de alguns poucos

artigos constitucionais, mormente o artigo 6º e o artigo 196. Quase não importa

o que se vai pedir ao Poder Judiciário. Em se tratando de saúde pública, a

conjugação desses dois artigos é mais do que suficiente para determinar ao

Estado que efetive o direito que a parte constitucionalmente detém.

Mas a conjugação desses dois artigos não é suficiente para conseguir que o

Estado no âmbito federal, estadual e municipal se organize adequadamente

para atender ao pleito do cidadão sem que ele precise ir ao Judiciário para

conseguir o que já lhe é devido.

De outro lado, existem elementos concretos para fazer crer que as sucessivas

sentenças judiciais determinando a concessão de medicamentos e custeio de

tratamentos (às vezes em clínicas particulares porque o Estado não tem leitos

em quantidade suficiente), possa contribuir para tornar ainda mais frágeis os

orçamentos públicos dos entes governamentais, impedindo ou ao menos

dificultando que outras políticas públicas, mormente relacionadas à prevenção

de doenças, possam ser implementadas.

Retirar o debate do acesso da saúde pública da área do Judiciário é o grande

desafio. Fazer com que esse debate retorne para a sociedade civil e se faça

em diálogo com o Executivo e com o Legislativo, esse é o caminho a ser

traçado e trilhado. Mas isso ainda não basta: é preciso que o diálogo seja

qualificado, de alto nível, com boa quantidade de informações técnicas e

científicas.

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Essas informações, por sua vez, ainda que de caráter técnico e científico,

precisarão ser submetidas à comprovação idônea, em centros de pesquisa

referenciados, em estudos randomizados que ofereçam segurança e qualidade.

Portanto, não é suficiente realocar o debate em um espaço público e político: é

preciso que ele se faça de maneira segura, qualificada, com a garantia de que

o cidadão brasileiro terá a proteção constitucional efetivada.

Este trabalho identificou nos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e

Cidadania previstos na Resolução 125 do Conselho Nacional de Saúde uma

possibilidade de realocar o debate em torno do direito de acesso à saúde

pública, não da forma como está posto na Resolução mas de maneira que

possa ser implementada sem maiores dificuldades e custos.

Os Centros poderiam ser implantados em parceria com as Centrais ou Núcleos

de Assessoria Técnica dos Tribunais de Justiça, compostos por equipe

multidisciplinar da área de saúde e com atuação fundamentada em Medicina

baseada em evidência, diretrizes clínicas e avaliação de incorporação de novas

tecnologias. As Centrais ou Núcleos de Assessoria Técnica dos Tribunais de

Justiça poderiam contar com a assessoria de um auditor em saúde pública,

com formação em economia da saúde, área que não tem por objetivo glosar

pedidos, mas avaliar aquilo que se pretende com os resultados já

comprovados na utilização ou na pesquisa.

Os Centros Judiciários, conforme determina a Resolução 125, de 2010,

deverão atuar por meio de mediação pré-judicial e conciliação, podendo

requerer relatórios técnicos sempre que necessário. Esses relatórios poderiam

ser solicitados às Centrais ou Núcleos de Assessoria Técnica dos Tribunais de

Justiça. Ambos trabalhariam em regime de mútua colaboração.

Mas isso não basta para alocar o debate da saúde pública em um espaço que

ele seja também político. Para isso é preciso incorporar aos Centros Judiciários

a possibilidade de, quando necessário e a critério das partes e do mediador

responsável pelo conflito, envolver os Conselhos Municipais de Saúde e as

Secretarias Municipais, cujos representantes compareceriam à reunião ou

reuniões da mediação pré-judicial para tentar compreender o conflito e atuar de

forma a contribuir para uma solução construída em coautoria. Assim, por

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exemplo, o pedido de um medicamento de alto custo para um tratamento

experimental, que oneraria o erário público municipal com valores capazes de

comprometer o orçamento municipal e a efetividade de políticas públicas de

prevenção de epidemia de dengue, seria debatido entre a parte solicitante e os

representantes da sociedade civil e do Poder Executivo.

É possível acreditar que, num debate dessa natureza, o Direito constitucional

estaria cumprindo seu papel fundamental de garantir o Estado Democrático,

porém de maneira a permitir aos cidadãos que compreendam que a vida em

sociedade não se constrói apenas com o exercício de direitos mas,

principalmente, com o cumprimento de deveres.

Também é possível acreditar que a esse debate iniciado na mediação pré-

judicial pudessem comparecer outros agentes sociopolíticos de importância,

como organizações não governamentais independentes que acompanhassem

os indicadores de transparência dos governos municipais, e que com estudos e

dados coligidos pudessem demonstrar, por exemplo, que as alegações de

inviabilidade econômica do pedido são inverossímeis porque o Estado tem

recursos. Ou, ainda, demonstrar que a impossibilidade é até concreta, mas

decorre de má utilização de verba pública em outras áreas, ensejando de

imediato a denúncia ao Ministério Público.

Como determina a própria Resolução 125, do Conselho Nacional de Justiça, o

Centro não é apenas um lugar para solucionar conflitos, mas também para

exercer a cidadania. E cidadania é uma dimensão coletiva, política, própria da

participação direta da sociedade civil no arranjo organizacional de suas

instâncias de decisão, execução e fiscalização.

Os casos concretos de maior repercussão social poderão ser encaminhados

para audiências ou consultas públicas, de modo a sugerir ao Executivo

municipal ou estadual políticas públicas que possam solucionar problemas que

tenham sido levados aos Centros Judiciários de forma individualizada; mas, a

partir daí, passarão a receber tratamento coletivo para uma solução que efetive

as normas constitucionais não para alguns, mas para todos aqueles que

tenham necessidade dessa eficácia. Cumpre efetivar direitos sociais para o

coletivo e não privilegiar alguns poucos que conseguiram chegar ao Poder

Judiciário para requerê-los.

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A ampliação dos objetivos dos Centros Judiciários para receber a sociedade

civil, os poderes Executivo e Legislativo, o Ministério Público e as organizações

não governamentais independentes e sérias podem ser uma forma concreta de

fazer da mediação pré-judicial, em alguns casos de saúde pública, a

construção de uma solução não apenas em coautoria, mas amplificada para

garantir a um dado grupamento social a efetividade constitucional que todos

almejamos.

O Direito não pode pretender dar conta de todos os conflitos sociais por meio

de sentenças judiciais. O Direito é um instrumento que pode ser transformador

se pensado na dimensão coletiva para além da proteção da propriedade

privada e como meio de ação disponibilizado para todos os grupos sociais e

não apenas para aqueles que sabem que têm direito a defender.

O debate em torno da efetividade da saúde pública no Brasil não pode

continuar mudo, assim como as políticas públicas não podem ser definidas por

sentença judicial. As escassas experiências de democracia participativa

realizadas no Brasil foram suficientes para alertar sobre as dificuldades que o

processo proporciona, mas também para esclarecer que seus resultados são

muito mais eficazes do que o cumprimento de uma sentença judicial individual,

embora esta possa de imediato, contabilizar uma vida salva. O que não tem

sido contabilizado são as vidas precarizadas em razão da decisão judicial.

Para que essa conta não seja mais um problema da magistratura e do

Judiciário brasileiro, é preciso acreditar em possibilidades (como a que aqui se

discute) que ampliam o debate em torno da saúde púbica e o reconduzem para

a sociedade civil – a quem compete liderá-lo – como exercício efetivo da

cidadania que pode e deve modelar o Estado.

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ANEXO I

Resolução nº 125, de 29 de novembro de 2010

Dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de

interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências.

(Publicada no DJ-e n° 219/2010, em 01/12/2010, pág. 2-14 e republicada no DJ-e nº

39/2011, em 01/03/2011, páginas 2-15)

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RESOLUÇÃO Nº 125, DE 29 DE NOVEMBRO DE 2010

O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, no uso de suas

atribuições constitucionais e regimentais,CONSIDERANDO que compete ao Conselho

Nacional de Justiça o controle da atuação administrativa e financeira do Poder

Judiciário, bem como zelar pela observância do art. 37 da Constituição da República;

CONSIDERANDO que a eficiência operacional, o acesso ao sistema de Justiça e a

responsabilidade social são objetivos estratégicos do Poder Judiciário, nos termos da

Resolução/CNJ nº 70, de 18 de março de 2009;

CONSIDERANDO que o direito de acesso à Justiça, previsto no art. 5º, XXXV, da

Constituição Federal além da vertente formal perante os órgãos judiciários, implica

acesso à ordem jurídica justa;

CONSIDERANDO que, por isso, cabe ao Judiciário estabelecer política pública de

tratamento adequado dos problemas jurídicos e dos conflitos de interesses, que

ocorrem em larga e crescente escala na sociedade, de forma a organizar, em âmbito

nacional, não somente os serviços prestados nos processos judiciais, como também

os que possam sê-lo mediante outros mecanismos de solução de conflitos, em

especial dos consensuais, como a mediação e a conciliação;CONSIDERANDO a

necessidade de se consolidar uma política pública permanente de incentivo e

aperfeiçoamento dos mecanismos consensuais de solução de litígios;

CONSIDERANDO que a conciliação e a mediação são instrumentos efetivos de

pacificação social, solução e prevenção de litígios, e que a sua apropriada disciplina

em programas já implementados nos país tem reduzido a excessiva judicialização dos

conflitos de interesses, a quantidade de recursos e de execução de sentenças;

CONSIDERANDO ser imprescindível estimular, apoiar e difundir a sistematização e o

aprimoramento das práticas já adotadas pelos tribunais;

CONSIDERANDO a relevância e a necessidade de organizar e uniformizar os serviços

de conciliação, mediação e outros métodos consensuais de solução de conflitos, para

lhes evitar disparidades de orientação e práticas, bem como para assegurar a boa

execução da política pública, respeitadas as especificidades de cada segmento da

Justiça;

CONSIDERANDO que a organização dos serviços de conciliação, mediação e outros

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métodos consensuais de solução de conflitos deve servir de princípio e base para a

criação de Juízos de resolução alternativa de conflitos, verdadeiros órgãos judiciais

especializados na matéria;

CONSIDERANDO o deliberado pelo Plenário do Conselho Nacional de Justiça na sua

117ª Sessão Ordinária, realizada em de 23 de 2010, nos autos do procedimento do

Ato 0006059-82.2010.2.00.0000;

RESOLVE:

Capítulo I

DA POLÍTICA PÚBLICA DE TRATAMENTO ADEQUADO DOS CONFLITOS DE INTERESSES

Art. 1º Fica instituída a Política Judiciária Nacional de tratamento dos conflitos de

interesses, tendente a assegurar a todos o direito à solução dos conflitos por meios

adequados à sua natureza e peculiaridade.

Parágrafo único . Aos órgãos judiciários incumbe, além da solução adjudicada

mediante sentença, oferecer outros mecanismos de soluções de controvérsias, em

especial os chamados meios consensuais, como a mediação e a conciliação, bem

assim prestar atendimento e orientação ao cidadão.

Art. 2º Na implementação da Política Judiciária Nacional, com vista à boa qualidade

dos serviços e à disseminação da cultura de pacificação social, serão observados:

centralização das estruturas judiciárias, adequada formação e treinamento de

servidores, conciliadores e mediadores, bem como acompanhamento estatístico

específico.

Art. 3º O CNJ auxiliará os tribunais na organização dos serviços mencionados no art.

1º, podendo ser firmadas parcerias com entidades públicas e privadas.

Capítulo II

DAS ATRIBUIÇÕES DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA

Art. 4º Compete ao Conselho Nacional de Justiça organizar programa com o objetivo

de promover ações de incentivo à autocomposição de litígios e à pacificação social por

meio da conciliação e da mediação.

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Art. 5º O programa será implementado com a participação de rede constituída por

todos os órgãos do Poder Judiciário e por entidades públicas e privadas parceiras,

inclusive universidades e instituições de ensino.

Art. 6º Para desenvolvimento dessa rede, caberá ao CNJ:

I – estabelecer diretrizes para implementação da política pública de tratamento

adequado de conflitos a serem observadas pelos Tribunais;

II – desenvolver conteúdo programático mínimo e ações voltadas à capacitação em

métodos consensuais de solução de conflitos, para servidores, mediadores,

conciliadores e demais facilitadores da solução consensual de controvérsias;

III – providenciar que as atividades relacionadas à conciliação, mediação e outros

métodos consensuais de solução de conflitos sejam consideradas nas promoções e

remoções de magistrados pelo critério do merecimento;

IV – regulamentar, em código de ética, a atuação dos conciliadores, mediadores e

demais facilitadores da solução consensual de controvérsias;

V – buscar a cooperação dos órgãos públicos competentes e das instituições públicas

e privadas da área de ensino, para a criação de disciplinas que propiciem o

surgimento da cultura da solução pacífica dos conflitos, de modo a assegurar que, nas

Escolas da Magistratura, haja módulo voltado aos métodos consensuais de solução de

conflitos, no curso de iniciação funcional e no curso de aperfeiçoamento;

VI – estabelecer interlocução com a Ordem dos Advogados do Brasil, Defensorias

Públicas, Procuradorias e Ministério Público, estimulando sua participação nos

Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania e valorizando a atuação na

prevenção dos litígios;

VII – realizar gestão junto às empresas e às agências reguladoras de serviços

públicos, a fim de implementar práticas autocompositivas e desenvolver

acompanhamento estatístico, com a instituição de banco de dados para visualização

de resultados, conferindo selo de qualidade;

VIII – atuar junto aos entes públicos de modo a estimular a conciliação nas demandas

que envolvam matérias sedimentadas pela jurisprudência.

Capítulo III

DAS ATRIBUIÇÕES DOS TRIBUNAIS

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Seção I

Dos Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos

Art. 7º Os Tribunais deverão criar, no prazo de 30 dias, Núcleos Permanentes de

Métodos Consensuais de Solução de Conflitos, compostos por magistrados da ativa

ou aposentados e servidores, preferencialmente atuantes na área, com as seguintes

atribuições, entre outras:

I – desenvolver a Política Judiciária de tratamento adequado dos conflitos de

interesses, estabelecida nesta Resolução;

II – planejar, implementar, manter e aperfeiçoar as ações voltadas ao cumprimento da

política e suas metas;

III – atuar na interlocução com outros Tribunais e com os órgãos integrantes da rede

mencionada nos arts. 5º e 6º;

IV – instalar Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania que concentrarão

a realização das sessões de conciliação e mediação que estejam a cargo de

conciliadores e mediadores, dos órgãos por eles abrangidos;

V – promover capacitação, treinamento e atualização permanente de magistrados,

servidores, conciliadores e mediadores nos métodos consensuais de solução de

conflitos;

VI – na hipótese de conciliadores e mediadores que atuem em seus serviços, criar e

manter cadastro, de forma a regulamentar o processo de inscrição e de desligamento;

VII – regulamentar, se for o caso, a remuneração de conciliadores e mediadores, nos

termos da legislação específica;

VIII – incentivar a realização de cursos e seminários sobre mediação e conciliação e

outros métodos consensuais de solução de conflitos;

IX – firmar, quando necessário, convênios e parcerias com entes públicos e privados

para atender aos fins desta Resolução.

Parágrafo único. A criação dos Núcleos e sua composição deverão ser informadas ao

Conselho Nacional de Justiça.

Seção II

Dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania

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Art. 8º Para atender aos Juízos, Juizados ou Varas com competência nas áreas cível,

fazendária, previdenciária, de família ou dos Juizados Especiais Cíveis e Fazendários,

os Tribunais deverão criar os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania

(“Centros”), unidades do Poder Judiciário, preferencialmente, responsáveis pela

realização das sessões e audiências de conciliação e mediação que estejam a cargo

de conciliadores e mediadores, bem como pelo atendimento e orientação ao cidadão.

§ 1º Todas as sessões de conciliação e mediação pré- processuais deverão ser

realizadas nos Centros, podendo, excepcionalmente, as sessões de conciliação e

mediação processuais ser realizadas nos próprios Juízos, Juizados ou Varas

designadas, desde que o sejam por conciliadores e mediadores cadastrados junto ao

Tribunal (inciso VI do art. 7º) e supervisionados pelo Juiz Coordenador do Centro (art.

9º).

§ 2º Os Centros deverão ser instalados nos locais onde exista mais de um Juízo,

Juizado ou Vara com pelo menos uma das competências referidas no caput.

§ 3º Nas Comarcas das Capitais dos Estados e nas sedes das Seções e Regiões

Judiciárias, bem como nas Comarcas do interior, Subseções e Regiões Judiciárias de

maior movimento forense, o prazo para a instalação dos Centros será de 4 (quatro)

meses a contar do início de vigência desta Resolução.

§ 4º Nas demais Comarcas, Subseções e Regiões Judiciárias, o prazo para a

instalação dos Centros será de 12 (doze) meses a contar do início de vigência deste

ato.

§ 5º Os Tribunais poderão, excepcionalmente, estender os serviços do Centro a

unidades ou órgãos situados em outros prédios, desde que próximos daqueles

referidos no § 2º, podendo, ainda, instalar Centros nos chamados Foros Regionais,

nos quais funcionem dois ou mais Juízos, Juizados ou Varas, observada a

organização judiciária local.

Art. 9º Os Centros contarão com um juiz coordenador e, se necessário, com um

adjunto, aos quais caberá a sua administração, bem como a supervisão do serviço de

conciliadores e mediadores. Os magistrados serão designados pelo Presidente de

cada Tribunal dentre aqueles que realizaram treinamento segundo o modelo

estabelecido pelo CNJ, conforme Anexo I desta Resolução.

§ 1º Caso o Centro atenda a grande número de Juízos, Juizados ou Varas, o

respectivo juiz coordenador poderá ficar designado exclusivamente para sua

administração.

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§ 2º Os Tribunais deverão assegurar que nos Centros atuem servidores com

dedicação exclusiva, todos capacitados em métodos consensuais de solução de

conflitos e, pelo menos, um deles capacitado também para a triagem e

encaminhamento adequado de casos.

§ 3º O treinamento dos servidores referidos no parágrafo anterior deverá observar as

diretrizes estabelecidas pelo CNJ conforme Anexo I desta Resolução.

Art. 10 Cada unidade dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania

deverá obrigatoriamente abranger setor de solução de conflitos pré-processual, setor

de solução de conflitos processual e setor de cidadania, facultativa a adoção pelos

Tribunais do procedimento sugerido no Anexo II desta Resolução.

Art. 11 Nos Centros poderão atuar membros do Ministério Público, defensores

públicos, procuradores e/ou advogados.

Seção III

Dos Conciliadores e Mediadores

Art. 12 Nos Centros, bem como em todos os demais órgãos judiciários nos quais se

realizem sessões de conciliação e mediação, somente serão admitidos mediadores e

conciliadores capacitados na forma deste ato (Anexo I), cabendo aos Tribunais, antes

de sua instalação, realizar o curso de capacitação, podendo fazê-lo por meio de

parcerias.

§ 1º Os Tribunais que já realizaram a capacitação referida no caput poderão dispensar

os atuais mediadores e conciliadores da exigência do certificado de conclusão do

curso de capacitação, mas deverão disponibilizar cursos de treinamento e

aperfeiçoamento, na forma do Anexo I, como condição prévia de atuação nos Centros.

§ 2º Todos os conciliadores, mediadores e outros especialistas em métodos

consensuais de solução de conflitos deverão submeter-se a reciclagem permanente e

à avaliação do usuário.

§ 3º Os cursos de capacitação, treinamento e aperfeiçoamento de mediadores e

conciliadores deverão observar o conteúdo programático e carga horária mínimos

estabelecidos pelo CNJ (Anexo 1) e deverão ser seguidos necessariamente de estágio

supervisionado.

§ 4º Os mediadores, conciliadores e demais facilitadores do entendimento entre as

partes ficarão sujeitos ao código de ética estabelecido pelo Conselho (Anexo III).

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Seção IV

Dos Dados Estatísticos

Art. 13 Os Tribunais deverão criar e manter banco de dados sobre as atividades de

cada Centro, com as informações constantes do Anexo IV.

Art. 14 Caberá ao CNJ compilar informações sobre os serviços públicos de solução

consensual das controvérsias existentes no país e sobre o desempenho de cada um

deles, por meio do DPJ, mantendo permanentemente atualizado o banco de dados.

Capítulo IV

DO PORTAL DA CONCILIAÇÃO

Art. 15 Fica criado o Portal da Conciliação, a ser disponibilizado no sítio do CNJ na

rede mundial de computadores, com as seguintes funcionalidades, entre outras:

I – publicação das diretrizes da capacitação de conciliadores e mediadores e de seu

código de ética;

II – relatório gerencial do programa, por Tribunal, detalhado por unidade judicial e por

Centro, com base nas informações referidas no Anexo IV;

III – compartilhamento de boas práticas, projetos, ações, artigos, pesquisas e outros

estudos;

IV – fórum permanente de discussão, facultada a participação da sociedade civil;

V – divulgação de notícias relacionadas ao tema;

VI – relatórios de atividades da “Semana da Conciliação”.

Parágrafo único . A implementação do Portal será gradativa, observadas as

possibilidades técnicas, sob a responsabilidade do CNJ.

Disposições Finais

Art. 16 O disposto na presente Resolução não prejudica a continuidade de programas

similares já em funcionamento, cabendo aos Tribunais, se necessário, adaptá-los aos

termos deste ato.

Art. 17 Compete à Presidência do Conselho Nacional de Justiça, com o apoio da

Comissão de Acesso ao Sistema de Justiça e Responsabilidade Social, coordenar as

atividades da Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de

interesses, cabendo-lhe instituir, regulamentar e presidir o Comitê Gestor da

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Conciliação, que será responsável pela implementação e acompanhamento das

medidas previstas neste ato.

Art. 18 Os Anexos integram esta Resolução e possuem caráter vinculante, à exceção

do Anexo II, que contém mera recomendação.

Art. 19 Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.

Ministro Cezar Peluso

Presidente