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Porto Alegre 2010/2011 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS AMERICA LATINA OBSERVATÓRIO DA JUSTIÇA BRASILEIRA CONVOCAÇÃO Nº 001/2010 JUDICIALIZAÇÃO E O EQUILÍBRIO DE PODERES NO BRASIL* Democracia - Separação de Poderes Eficácia e Efetividade do Direito à Saúde no Judiciário brasileiro Observatório do Direito à Saúde Ingo Wolfgang Sarlet e Carlos Alberto Molinaro (coordenadores) Resumo Na perspectiva dos pesquisadores a ideia de judicialização deveria ser substituída pela de diálogo construtivo e colaborativo dos agentes políticos, onde se inclui o julgador, proveniente do dever fundamental de concretizar os direitos e garantias fundamentais na dimensão individual e plural entre todos os poderes da República, nitidamente funções e competências que interagem na construção de políticas públicas e de sua pertinente efetivação em uma legítima “clearing house” cujos títulos são direitos e deveres revelados pela Jurisdição. Neste sentido, a judicialização do direito à saúde não representa uma violação do princípio da separação de poderes, ao contrário, representa sim, a realização plena dos objetivos constitucionais como esculpidos no Artigo 3º da Carta de 1988. Palavras-chave: Direito à saúde. Direis Sociais. Judicialização. Políticas Públicas. Jurisdição. Processo. Sumário I - Considerações Preliminares. 1. Objetivo. 2. O problema. 3. A investigação e a metodologia. 4. Poder Antecedentes e reflexões. II Estado e Separação de Poderes. 1. Introdução. 2. Poder e Estado. 3. Tripartição de Poderes. 4. O fenômeno do alargamento do espaço do jurídico. III Do direito à saúde. Análise das prestações materiais pleiteadas pela via judicial. Incursão na separação vertical de poderes? 1. Direito à Saúde. 2. Direito à saúde e o fornecimento de Medicamentos de Alto Custo e/ou Experimentais O problema do acesso a medicamentos não previstos pelos órgãos estatais. 3. Direito à saúde e as Internações Hospitalares UTI’s/CTI’s. 4. Direito à saúde e o Regime de Saúde Complementar e Ressarcimento ao SUS. 5. Direto à saúde e possibilidade de Tratamentos Excepcionais no Exterior. 6. Direito à saúde e a cláusula da “Reserva do Possível”. 7. Direito à saúde no contexto do Estado Socioambiental de Direito. IV - Onde há solidariedade não há intrusão entre poderes a repartição de competências e a responsabilidade solidária dos entes federados para prestações de saúde. 1. Dever fundamental de prestar saúde solidária entre os entes da federação. 2. Posições pretorianas pró-responsabilidade solidária, pró- repartição de competências e posições intermediárias. 3. Configurações e consequências processuais. 4. Evolução da Jurisprudência. V Juridificação, juridicização, judicialização e outros adjetivos para o alargamento do espaço do jurídico e o protagonismo do Judiciário. 1. Juridificação uma reflexão prévia. 2. O problema de identificar uma autentica juridificação como déficit na separação dos poderes-função do Estado. 3. Ativismo judicial, Juridificação, juridicização, judicialização do direito à saúde ou, simplesmente, atuação positiva do Estado-Juiz na concretização de direitos e garantias constitucionais. VI - Síntese dos resultados alcançados. 1. Tipos de decisões. 2. Exame do mérito e aspectos eminentemente processuais. 3. Objetos, temas das Decisões. 4. Tutela Individual e Coletiva. 5. Decisão do STF foi favorável a quem? 6. Responsabilidade dos Entes Federados. 7. Reconhece Interferência nos demais poderes? 8.técnicas processuais utilizadas para a concretização do direito à saúde. 9. Constatações. VII Considerações finais. Índice. * Pesquisadores: Prof. Dr. Ingo Wolgang Sarlet (coordenador do projeto). Prof. Dr. Carlos Alberto Molinaro (co-coordenador). Prof. Dr. José Maria Rosa Tesheiner. Prof. Dr. Thadeu Weber. Bolsista CAPES do PNPD (Programa Nacional de Pós-Doutorado): Dr. Cristiano Müller. Doutorando: Me. Phillip Gil França. Mestrandos: Caroline Dimuro Bender, Frederico Leonel Nascimento e Silva, Frederico Loureiro de Carvalho Freitas, Helena Raab Fochi, Jeferson Ferreira Barbosa. Graduandos: Joana Cavedon Ripoll, Luisa Niencheski, Renata Guadagnim, Eliane Cristina Huffel Campos

Judicialização e equilíbrio de poderes no Brasil-DESPROTEGIDO

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  • Porto Alegre 2010/2011

    MINISTRIO DA JUSTIA

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

    CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS AMERICA LATINA OBSERVATRIO DA JUSTIA BRASILEIRA

    CONVOCAO N 001/2010

    JUDICIALIZAO E O EQUILBRIO DE PODERES NO BRASIL*

    Democracia - Separao de Poderes

    Eficcia e Efetividade do Direito Sade no Judicirio brasileiro

    Observatrio do Direito Sade

    Ingo Wolfgang Sarlet e Carlos Alberto Molinaro (coordenadores)

    Resumo Na perspectiva dos pesquisadores a ideia de judicializao deveria ser substituda pela de dilogo construtivo e

    colaborativo dos agentes polticos, onde se inclui o julgador, proveniente do dever fundamental de concretizar os

    direitos e garantias fundamentais na dimenso individual e plural entre todos os poderes da Repblica, nitidamente

    funes e competncias que interagem na construo de polticas pblicas e de sua pertinente efetivao em uma

    legtima clearing house cujos ttulos so direitos e deveres revelados pela Jurisdio. Neste sentido, a judicializao do direito sade no representa uma violao do princpio da separao de poderes, ao contrrio, representa sim, a

    realizao plena dos objetivos constitucionais como esculpidos no Artigo 3 da Carta de 1988.

    Palavras-chave: Direito sade. Direis Sociais. Judicializao. Polticas Pblicas. Jurisdio. Processo.

    Sumrio I - Consideraes Preliminares. 1. Objetivo. 2. O problema. 3. A investigao e a metodologia. 4. Poder Antecedentes e reflexes. II Estado e Separao de Poderes. 1. Introduo. 2. Poder e Estado. 3. Tripartio de Poderes. 4. O fenmeno do alargamento do espao do jurdico. III Do direito sade. Anlise das prestaes materiais pleiteadas pela via judicial. Incurso na separao vertical de poderes? 1. Direito Sade. 2. Direito sade

    e o fornecimento de Medicamentos de Alto Custo e/ou Experimentais O problema do acesso a medicamentos no previstos pelos rgos estatais. 3. Direito sade e as Internaes Hospitalares UTIs/CTIs. 4. Direito sade e o Regime de Sade Complementar e Ressarcimento ao SUS. 5. Direto sade e possibilidade de Tratamentos

    Excepcionais no Exterior. 6. Direito sade e a clusula da Reserva do Possvel. 7. Direito sade no contexto do Estado Socioambiental de Direito. IV - Onde h solidariedade no h intruso entre poderes a repartio de competncias e a responsabilidade solidria dos entes federados para prestaes de sade. 1. Dever fundamental de

    prestar sade solidria entre os entes da federao. 2. Posies pretorianas pr-responsabilidade solidria, pr-

    repartio de competncias e posies intermedirias. 3. Configuraes e consequncias processuais. 4. Evoluo da

    Jurisprudncia. V Juridificao, juridicizao, judicializao e outros adjetivos para o alargamento do espao do jurdico e o protagonismo do Judicirio. 1. Juridificao uma reflexo prvia. 2. O problema de identificar uma autentica juridificao como dficit na separao dos poderes-funo do Estado. 3. Ativismo judicial, Juridificao,

    juridicizao, judicializao do direito sade ou, simplesmente, atuao positiva do Estado-Juiz na concretizao de

    direitos e garantias constitucionais. VI - Sntese dos resultados alcanados. 1. Tipos de decises. 2. Exame do mrito

    e aspectos eminentemente processuais. 3. Objetos, temas das Decises. 4. Tutela Individual e Coletiva. 5. Deciso do

    STF foi favorvel a quem? 6. Responsabilidade dos Entes Federados. 7. Reconhece Interferncia nos demais

    poderes? 8.tcnicas processuais utilizadas para a concretizao do direito sade. 9. Constataes. VII Consideraes finais. ndice.

    * Pesquisadores: Prof. Dr. Ingo Wolgang Sarlet (coordenador do projeto). Prof. Dr. Carlos Alberto

    Molinaro (co-coordenador). Prof. Dr. Jos Maria Rosa Tesheiner. Prof. Dr. Thadeu Weber. Bolsista

    CAPES do PNPD (Programa Nacional de Ps-Doutorado): Dr. Cristiano Mller. Doutorando: Me.

    Phillip Gil Frana. Mestrandos: Caroline Dimuro Bender, Frederico Leonel Nascimento e Silva,

    Frederico Loureiro de Carvalho Freitas, Helena Raab Fochi, Jeferson Ferreira Barbosa. Graduandos:

    Joana Cavedon Ripoll, Luisa Niencheski, Renata Guadagnim, Eliane Cristina Huffel Campos

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    Judicializao e equilbrio de poderes no Brasil

    A desigualdade da proteo dos interesses sociais dos diferentes

    grupos sociais est cristalizada no prprio direito substantivo pelo

    que a democratizao da administrao da justia mesmo plenamente

    realizada no conseguir mais do que igualizar os mecanismos de

    reproduo da desigualdade.

    Boaventura de Sousa Santos

    [Por isso mesmo, se afigura],

    [...] necessrio aceitar os riscos de uma magistratura culturalmente

    esclarecida. Por um lado, ela reivindicar o aumento de poderes

    decisrios, mas isso [...] vai ao sentido de muitas propostas e no

    apresenta perigos maiores se houver um adequado sistema de

    recursos. Por outro lado, ela tender a subordinar a coeso

    corporativa lealdade a ideias sociais e polticas disponveis na

    sociedade. Daqui resultar certa fratura ideolgica que pode ter

    repercusses organizativas. Tal no deve ser visto como patolgico,

    mas sim como fisiolgico. Essas fraturas e os conflitos a que elas

    derem lugar sero a verdadeira alavanca do processo de

    democratizao da justia.

    Boaventura de Sousa Santos

    I - Consideraes Preliminares

    Judicializao e equilbrio de poderes, rea temtica que foi atribuda aos

    pesquisadores teve como foco principal a denominada judicializao do direito sade.

    Deste modo, analisou-se a possibilidade de existncia de um hiperativismo judicial na

    abordagem das questes da concretizao do direito sade centrando-se na

    investigao das decises judiciais afetas ao tema, com destaque para a anlise dos

    fundamentos tericos dos respectivos julgados. Na perspectiva dos pesquisadores a

    ideia de judicializao deveria ser substituda pela de dialogo construtivo e

    colaborativo proveniente do dever de concretizar os direitos fundamentais na dimenso

    individual e plural entre todos os poderes, mais precisamente funes e competncias

    Introduo sociologia da administrao da justia. In: Faria, Jos Eduardo (org.), Direito e Justia a funo social do Judicirio. So Paulo: tica, 1989, p. 56. Introduo Sociologia da administrao da Justia. In: SOUSA JNIOR, Jos Geraldo de; AGUIAR,

    A. R. A. (Orgs.). Introduo crtica ao Direito do Trabalho, Srie O Direito Achado na Rua, v. 2. Braslia,

    1993, p. 125. Tambm em, FARIA, Jos Eduardo (Org.). Direito e Justia A funo social do judicirio. So Paulo: tica, 3 Ed., 1997.

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    que interagem na construo de polticas pblicas e de sua pertinente efetivao em uma

    legtima clearing house cujos ttulos so direitos e deveres revelados pela Jurisdio.

    O tema proposto de extraordinria relevncia nos dias atuais, especialmente tendo em

    conta o federalismo cooperativo brasileiro estabelecido pela Carta de 1988 e em muitos

    aspectos ainda longe de sua efetivao. Este texto procede de Relatrios de Pesquisa

    apresentados no curso do ano de 2010, especialmente do relatrio final encaminhado em

    dezembro, e intenta demonstrar um resultado qualitativo de amostras selecionadas e

    relativas tormentosa discusso dos limites de atuao dos Tribunais quando

    aparentemente afrontam os demais poderes da nao.

    1. Objetivo

    O artigo tem por finalidade sintetizar, embora de modo ainda inacabado, pois o

    tema de construo permanente, a ampla investigao realizada no mbito de linha de

    pesquisa desenvolvida no Programa de Ps-Graduao em Direito da Faculdade de

    Direito da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul PUCRS, Ncleo de

    Estudos Avanados em Direitos Fundamentais NEADF e Grupo de Estudos em

    Direitos Fundamentais (CNPq), da mesma Instituio, ambos coordenados pelo Prof.

    Ingo Wolfgang Sarlet e o segundo co-liderado pelo Prof. Carlos Alberto Molinaro, na

    esteira da proposta do Centro de Estudos Sociais Amrica Latina (CES-AL) e pelo

    Observatrio da Justia da Universidade Federal De Minas Gerais UFMG em parceria

    com a Secretaria de Reforma do Judicirio do Ministrio da Justia, consubstanciada na

    Convocao n 001/2010.

    2. O problema

    Na atualidade notria a relevncia que tomou o Poder Judicirio, com a Carta

    Constitucional de 1988, no deslinde das mais variadas questes postas pelo contexto

    sociopoltico e seus atores. Todavia, vale lembrar logo no incio que a Constituio

    a regra fundamental da ordem poltica, e nela vemos assegurado amplo rol de direitos

    que o Estado tem o dever de promover, respeitar e dar efetividade. Portanto, a toda

    evidncia, assegurar os direitos mediante o acesso ao Poder Judicirio (no sentido de

    um direito a ter direitos efetivos), a forma mais eficaz de no compromet-los na

    disputa democrtica, bem como no processo poltico.

    A separao dos poderes na Repblica brasileira tem assento constitucional,

    previsto no artigo 2 da Carta de 1988. Por decorrncia, na ambincia nacional, o juiz

    brasileiro no se encontra vinculado a qualquer ordem ou exigncias superiores capazes

    de determinar-lhe o contedo das decises ou o modo pelo qual conduz os processos

    que lhe esto afeitos, o que se reproduz na mxima que aponta ao juiz sua sujeio

    exclusiva sua conscincia e lei, entendida esta como o conjunto de proposies

    normativas de variada fonte (portanto, no apenas no direito posto, oficial ou oficioso) e

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    que tem por objetivo a equidade e a paz social. Alis, na ambincia internacional a

    concluso resultante da Conferncia de Bangalore de 20021, na verso em inglesa:

    Judicial independence is a pre-requisite to the rule of law and a fundamental

    guarantee of a fair trial. A judge shall therefore uphold and exemplify judicial

    independence in both its individual and institutional aspects.

    O mesmo na recentssima Magna Carta de Juzes2, de 19 de novembro de 2010,

    do Conselho Consultivo de Juzes Europeus, aprovada pelo Comit de Ministros do

    Conselho da Europa, com sede em Strasbourg (Frana)), que no seu artigo 1 afirma:

    The judiciary is one of the three powers of any democratic state. Its mission is

    to guarantee the very existence of the Rule of Law and, thus, to ensure the

    proper application of the law in an impartial, just, fair and efficient manner.

    E, os artigos 2 e 3 dispem:

    Judicial independence and impartiality are essential prerequisites for the

    operation of justice.

    Judicial independence shall be statutory, functional and financial. It shall be

    guaranteed with regard to the other powers of the state, to those seeking justice,

    other judges and society in general, by means of national rules at the highest

    level. The state and each judge are responsible for promoting and protecting

    judicial independence.

    A independncia dos juzes est plasmada em mltiplos contedos significativos, entre

    outros, institucional, pessoal e funcional. O primeiro, como afirmao mesma do Estado

    de Direito, suas estruturas e autonomias atribudas; o segundo, como afirmao da

    agencia pblica do magistrado; e, o terceiro, vinculado com atividades sociojurdicas,

    ademais do compromisso com polticas judicirias, constituinte de direitos e deveres

    decorrentes de sua independncia no exerccio da jurisdio.

    No cenrio contemporneo, de permanente disputa de projetos de poder poltico,

    social, informacional e econmico-financeiro, o juiz (includos os tribunais) encontra-se

    exposto as mais diversas formas de presso, especialmente aquelas geradas pelos meios

    de comunicao, pelas por vezes tendenciosas informaes produzidas no interior

    dos mercados, pela pseudo-opinio pblica mais acostada aos interesses subalternos do

    1 Resultado dos trabalhos do Grupo de Integridade Judicial, institudo ao abrigo das Naes Unidas. Os

    trabalhos iniciaram no ano de 2000, em Viena (ustria), e os princpios foram articulados em 2001, em

    Bangalore (ndia), aprovados em novembro de 2002, em Haia (Holanda). Alis, semelhantes concluses

    j haviam sido objeto de deliberaes e aprovao pela Assembleia Geral das Naes Unidas pelas

    Resolues 40/32 de 29 de Novembro de 1985 e 40/146 de 13 de dezembro de 1985. 2 O texto pode ser consultado na integra no site do Conselho da Europa no endereo:

    Observao: Todos os endereos da WEB como este e os que seguiro foram consultados em diversas

    datas, e em 23 de fevereiro de 2011 foram checados para observar se continuavam as pginas visitadas

    ainda ativas. Como a pesquisa foi positiva, omitimos daqui por diante em referir o indicativo da data de

    acesso, tomando como referencia o dia 23.02.2011.

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    que reflexo crtica, isto , submetida aos preceitos dos mercados, ao invs da

    promoo e concretizao dos princpios bsicos das liberdades pblicas e do fomento

    igualdade, no s formal antes material das pessoas. Portanto, neste contexto, a

    identificao e a anlise da atuao do poder judicirio tendo em conta sua produo

    sociocultural e, at mesmo, contramajoritria implica valiosa exposio pblica de

    suas aes e decises, com a finalidade de promover uma discusso plural, por atores

    competentes e comprometidos com a equidade social, de modo que aquelas (aes e

    decises) no venham a ser percebidas como sinnimas de mero interesse corporativo

    ou lenincia servil aos interesses de qualquer grupo social, o que s serve para insular a

    sociedade da credibilidade que deve ser emprestada s instituies democrticas.

    Nesse sentido na anlise e avaliao permanente da produo judicial a

    investigao emprica se revela de importncia crucial para a formulao de um juzo

    assertrico que possa delinear e delimitar uma resposta a uma pergunta j formulada por

    Boaventura de Sousa Santos: [...] poder o direito ser emancipatrio?3 Uma

    inferncia possvel pode residir na denominada judicializao do direito, perspectivada

    desde dois sentidos: como capacidade dos tribunais para aplicar uma determinada

    soluo a uma dada situao, e como a atribuio para um dado sujeito (de direito)

    solicitar ao tribunal que profira tal deciso. Isso ainda mais relevante nas j

    tradicionais (e exaustivamente tratadas) questes relativas aos assim denominados

    direitos econmicos, sociais, culturais e ambientais, notadamente no que diz com a

    possibilidade de sua justiciabilidade, dado que as decises dos tribunais, por vezes,

    podem conduzi-los praticas de polticas sociais, seara dedicada, mas no

    exclusivamente, ao executivo e aos parlamentos.

    Direitos, deveres, pretenses, obrigaes aes e excees, com fundo na

    socioambientalidade dos direitos, expressam uma tipologia assentada nos indicativos

    sociojurdicos: respeito, proteo e cumprimento pelo Estado das prestaes necessrias

    a uma existncia com dignidade. Portanto, esses deveres e obrigaes, os primeiros

    derivados dos direitos, e as segundas derivadas das pretenses, tm encontrado nos

    tribunais um abrigo hermenutico concretizador que representa com altivez o exerccio

    da jurisdio, isto , a dico do direito, seu desvelamento e concretizao. Nesta tarefa,

    substancialmente vinculada s funes dos tribunais, os magistrados tm avaliado que

    as medidas positivas que so necessrias para concretizar os direitos socioambientais

    (aqui tomados como direitos sociais alargados econmicos e culturais exercidos em

    uma ambincia especialmente protegida) merecem um tratamento especial por parte dos

    governos que devem alocar os recursos necessrios para o cumprimento desses direitos,

    pois tambm os tribunais tm demonstrado a necessidade de distinguir entre a ao do

    Estado e a inao do governo. Por isso mesmo, o direito pretoriano tem deixado claro

    que quando os tribunais recebem a incumbncia de aplicar esses direitos, julgando

    demandas neles fundadas, eles so capazes de cumprir com esse mandato com

    3 Uma cpia pode ser obtida em,

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    competncia, capacidade e autoridade, sem intromisso no domnio do legislativo e da

    administrao, insistindo-se que eles (os Tribunais) so indispensveis e fundamentais

    para a existncia digna de uma cidadania democrtica.

    3. A investigao e a metodologia

    A pesquisa realizada teve como matriz o laboratrio montado pelo

    NEADEF/GEDEF4 na investigao do Direito Sade, conjuntamente com o seu

    Observatrio da Sade, com tradio na pesquisa do tema por fora de projeto em

    andamento com a Global Health Research, Right To Health Litigation, coordenada pelo

    Prof. Dr. Joo Biehl do Department of Anthropology da Woodrow Wilson School of

    Public and International Affairs associada a Princeton University, e, no que diz respeito

    ao projeto envolvendo um observatrio das decises em matria de direitos

    socioambientais, na sua primeira etapa focado na sade, pelo Prof. Dr. Ingo W. Sarlet

    na PUCRS. Contudo, a distino entre os dois projetos, embora ambos digam com o

    tema da judicializao, reside em que no presente, o foco est nos mecanismos de

    intruso em entre os agentes do poder, tomando como base o protagonismo do

    judicirio nas questes que digam com o direito sade, ao passo que a pesquisa

    realizada no outro projeto mais abrangente, envolvendo vrios eixos temticos e sendo

    preparatria de um processo que busca incluir outros direitos sociais. Alis, de referir

    a grande confuso, aqui e alhures, existente entre os termos ativismo judicial,

    judicializao, juridificao e legalizao ou hiperlegalizao na esfera do protagonismo

    judicial ou jurisferante5, para no chegar-se ao radicalismo de uma juriscracia ou de

    uma juristocracia6.

    Para o tema da judicializao do direito sade, com ressonncia no estudo da

    diviso das funes do poder do Estado, a presente abordagem prope o desafio de

    realizar uma cartografia inicial das demandas judiciais relativas ao direito sade com o

    objetivo de conhecer o seu perfil e caractersticas e a forma como vem sendo abordadas

    na esfera judicial. Neste sentido, o modo como o judicirio enfrenta as demandas

    relativas sade pode estar relacionado a questes como a tipologia das decises

    utilizadas, o enfrentamento do mrito ou mesmo o reconhecimento de bices

    4 Ncleo de Estudos Avanados em Direitos Fundamentais, do Programa de Ps-Graduao em Direito,

    Mestrado e Doutorado da PUCRS, e GEDF - Grupo de Estudos e Pesquisa de Direitos Fundamentais

    ambos coordenados pelo Prof. Dr. Ingo Wolfgang Sarlet, sendo o GEDF co-liderado pelo Prof. Dr. Carlos

    Alberto Molinaro. 5 Na Alemanha o debate tambm ampliado nas expresses: Verrechtlichung, Vergesetzlichung,

    Justizialisierung, Legalisierung, berregulierung, que adiante vamos analisar. 6 No sentido que lhe empresta Ran Hirschl em seu Towards Juristocracy: The Origins and Consequences

    of the New Constitutionalism. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2004. Cuide-se de no

    confundir duas acepes possveis: juriscracia como poder do jurdico, numa perspectiva de organizao autocrtica que ir surgir quando a coalizo interna for baseada no controle pessoal de um

    agente de poder (e.g. o Judicirio) e a mesma produz uma coalizo externa passiva, e a juristocracia, fundada na transferncia de poderes decisrios devido a uma construo poltica do Judicirio por

    homogenia dos interesses polticos, econmicos e jurdicos compatveis (Hirschl, op. cit, p. 1 e 49/50).

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    processuais. Tambm pode estar relacionado com as tcnicas processuais que mais

    reconhece, prev ou mantm dada situao ftica. Verificar a variedade e frequncia dos

    temas de fundo das decises, se a tutela individual ou coletiva, verificar a posio do

    judicirio a respeito da repartio de competncias e da pretensa interferncia na esfera

    de outros poderes, investigar h quais atores do processo judiciais as decises tendem a

    favorecer so tambm elementos que ajudam a formar um mapa, ainda que preliminar

    da assim denominada judicializao do direito sade.

    Para a realizao deste texto a metodologia aplicada para a parte terica traduz-

    se na utilizao, mediante sua reviso e anlise critica, da literatura jurdica mais

    corrente e disponvel no direito brasileiro e no direito comparado. Para a pesquisa

    emprica na seleo das decises objeto do estudo adotou-se, primeiramente, como

    critrio, a realizao de levantamento de decises no site do Supremo Tribunal Federal

    (STF)7 abrangendo o ano de 2009 e os oito primeiros meses de 2010. A busca foi

    realizada utilizando-se as palavras-chave direito e sade. Essas palavras foram

    utilizadas de forma simultnea e combinada para consulta ao banco de dados de

    jurisprudncia do tribunal, isso como forma de obter acesso mais amplo possvel s

    decises relativas ao direito sade. Entretanto, em virtude disso tambm foi necessria

    uma triagem das decises, de forma a descartar aquelas que tinham pouca ou nenhuma

    vinculao com o direito sade.

    Acompanhando esta direo, em virtude da amplitude dos argumentos de busca

    utilizados (direito e sade), foram estabelecidos critrios para excluso de algumas

    decises do universo da pesquisa, por no estarem diretamente vinculadas ao tema

    proposto, porque o objeto da ao, o bem que se buscava obter por meio da ao judicial

    no era relativo ao direito sade. Adotando esses parmetros chegou-se a uma amostra

    de 232 decises judiciais que abrangem o ano de 2009 e os oito primeiro meses de

    2010. Os registros foram cadastrados em um banco de dados construdo a partir de uma

    planilha (Microsoft Excel 2007). Os dados foram organizados de modo a permitir o

    uso da tabela dinmica, obtendo-se assim os relatrios quantitativos dos registros8.

    4. Poder Antecedentes e reflexes

    Todos os crculos sociais a sociedade s mais um deles esto sob o

    domnio de um ou de muitos projetos de poder. Do par ao plural de pares, pulsa e dilata-

    se o poder. No interior dos crculos sociais as relaes inter-humanas desenvolvidas

    em um cronotopos sociocultural esto afetadas por emoes, desejos e sentimentos

    que produzem um objetivo comum: a busca dos bens indispensveis para a satisfao

    das necessidades. O percurso a ser trilhado das necessidades aos bens provoca uma

    7 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF)

    . 8 Maiores detalhes no Relatrio de Pesquisa de dezembro de 2010, especialmente o conjunto de planilhas

    em formato Excel inclusas.

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    diviso do trabalho social, bem como o correspondente balano das capacidades e

    habilidades de cada peregrino nesta jornada. Neste cenrio, toda homogenia desaparece

    para dar lugar ao inomogneo, a dissimetria dos interesses, as relaes de poder e

    sujeio, de disciplina e organizao, de individualizao e massificao, de produo e

    consumo. O poder social, gerado pela adeso do individuo ao comunal, que era coletivo

    passa a ser o poder do indivduo que detm a fora e a utiliza em seu prprio benefcio,

    amplia-se o desptico e reduzem-se as escolhas, ou condicionar-se-o quelas

    previamente definidas pelo projeto de poder em curso.

    Alargam-se os crculos sociais, despotismo e estabilidade em tenso permanente

    politizam a astcia a par da expanso da probidade9. Neste cenrio, a cada crculo social

    correspondem certas condies de coexistncia, cuja forma o direito, entre essas

    condies algumas so adaptaes e outras medidas para evitar ou corrigir defeitos de

    adaptaes do indivduo ao crculo ou do crculo ao indivduo10. Pontes de Miranda em

    seu labor sociolgico, manifestava que a cada circulo social corresponde o seu tipo de

    direito, o seu sistema, enfatizando que no se pode reduzir o direito a simples produto

    do Estado11. Direito fato, dizia o jurista, fato social, antecede ao Estado e, portanto,

    no pode ser decorrente do Estado como querem os positivistas, contudo, tampouco

    procede de leis imemoriveis e inalcanveis pela cincia, como pretendiam as escolas

    jusnaturalistas12. Como fato social, o direito e o poder se manifestam no interior dos

    crculos sociais, se expandem ou contraem, evoluem ou regridem s formas mais

    virtuosas ou virulentas da adaptao social. Contudo, atente-se que o poder no se

    encontra to somente em relaes de dominao13, mas tambm em relaes de

    produo, isto , nas relaes que configuram a realidade em todas as dimenses da vida

    social: igreja, famlia, empresa, escola, indstria, hospitais, etc., enfim, em lugares e

    no lugares (este ltimo, na acepo de Marc Aug14) onde as relaes humanas se

    9 Vale lembrar que para Hobbes, a natureza humana incorpora em si o poder, e que o poder do homem

    universalmente considerado consiste nos meios de que presentemente dispe para obter qualquer manifesto bem futuro. Portanto, pode ser original ou instrumental [...] e poder natural a eminncia das faculdades do corpo e do esprito, extraordinria fora, beleza, prudncia, destreza, eloquncia,

    liberalidade ou nobreza. Os poderes instrumentais so os que se adquirem mediante os anteriores ou pelo acaso, e constituem meios e instrumentos para adquirir mais: como a riqueza, a reputao, os amigos e os

    secretos desgnios de Deus a que os homens chamam boa sorte (Hobbes, Thomas. Leviat, ou matria,

    forma e poder de um Estado Eclesistico e Civil (1651), So Paulo, Martins Fontes, 2008, p. 75). 10 Cf. Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Introduo Poltica Cientfica. Rio de Janeiro: Forense,

    1983, p. 53. 11 Idem, Ibidem, p. 52. 12 Cf. Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Comentrios Constituio da Repblica dos Estados

    Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1934, Tomo I, p. 28. 13 Neste sentido, na perspectiva de Foucault o poder no configura um sistema geral de dominao

    exercido por determinado ou determinados grupos ou elementos sobre outros e que por um efeito

    sucessivo atravessa todo o corpo social, pois ele revela-se na multiplicidade de correlaes de fora

    imanentes ao domnio onde se exercem e constitutivas de sua organizao (Foucault, Michel. Histria da

    sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1988, p. 88/89). 14 Um espao intercambivel onde os seres humanos permanecem annimos. Como afirma Aug, a

    percepo de uma rea como no-lugar subjetiva: cada um de ns, sua maneira, pode ver o mesmo

    lugar que o no-lugar, ou como uma encruzilhada de relaes humanas. Este termo um neologismo

  • 9

    do. O poder repita-se, no apenas dominao, mas tambm produo, e a partir

    dessas relaes que a realidade se configura15. Nessa perspectiva, [...] o poder e o saber

    produzidos pelas normas disciplinares so fundamentais para a organizao

    burocrtica. Pois, [...] Em uma sociedade de instituies burocratizadas como a nossa,

    o poder disciplinar se desenvolve em todo tecido social16. Esse mesmo poder

    disciplinar transpassa o cotidiano das relaes sociais para construir o indivduo e impor

    transformaes sociais, momento em que ele est no DNA de um novo fenmeno: o

    biopoder17, que no o substitui, no entanto transforma o uno no mltiplo, em

    dimenso poltica, econmica e sociocultural18. Poder disciplinar, que segundo Foucault

    origina-se na modernidade. Uma fsica ou uma anatomia do poder, uma tecnologia,

    expressava Foucault, advertindo que esta matriz permanecia a cargo de instituies

    especializadas, os crceres do sculo XIX, ou de estabelecimentos que dela se servem

    como organismo efetivo para um fim determinado (as casas de educao, os hospitais,

    os dispensrios...), ou de instncias, isto , autoridades e organismos que tm poder de

    deciso, preexistentes que nela descobrem o modo de robustecer ou de reorganizar seus

    mecanismos internos de poder19. O biopoder modela uma administrao da vida que no

    tem por objeto o adestramento e a disciplina, mas a segurana e a regulao. Portanto,

    se o poder disciplinar supe o encadeamento: corpo/organismo/disciplina/instituies, o

    biopoder supe a conexo: populao/processos tecnobiolgicos/instrumentos

    reguladores/Estado, todavia entre ambas as sries, h comunicao, j que a norma est

    sempre presente.

    Poder, na dimenso disciplinar ou biopoltica definido por habilidades ou

    capacidades de realizar ou atuar de forma eficaz, inclusive na situao em que no atuar

    mais eficaz. Nas democracias, o poder normalmente dividido contra si mesmo, por

    introduzido por Marc Aug, em seu livro Non-Lieux. Introduction une anthropologie de la

    surmodernit. Paris, ditions du Seuil, 1992. 15 Dominao como relao de poder social ao modo weberiano ou, mesmo, nas pegadas de Foucault, isto

    , uma matriz hierrquica entre indivduos em posies de mando e obedincia, e no de valores em

    posio de imprio e indivduos em condio de aderncia a esses valores. 16 Kruppa, Sonia M. Portella. Sociologia da educao. So Paulo: Cortez, 1994, p. 102. 17 Cf., Rabinow, Paul e Rose, Nikolas. Biopower Today, BioSocieties (2006), 1,195217 London School of Economics and PoliticalScience.

    Uma cpia online pode ser obtida em

    18 Motivo porque, Foucault vai afirmar: [...] E, depois, a nova tecnologia que se instala se dirige

    multiplicidade dos homens, no na medida em que eles se resumem em corpos, mas na medida em que

    ela forma, ao contrrio, uma massa global, afetada por processos de conjunto que so prprios da vida,

    que so processos como o nascimento, a morte, a produo, a doena, etc. Logo, depois de uma primeira

    tomada de poder sobre o corpo, que se fez consoante o modo da individualizao, temos uma segunda

    tomada de poder que, por sua vez, no individualizante, mas que massificante, [...], que se faz em

    direo no do homem-corpo, mas do homem-espcie. Depois da antomo-poltica do corpo humano,

    instaurada no decorrer do sculo XVIII, vemos aparecer, no fim do mesmo sculo, algo que j no uma

    antomo-poltica do corpo humano, mas [...] de uma biopoltica da espcie humana (Foucault, Michel. Em defesa da sociedade: Curso no Collge de France (1975-1976). So Paulo: Martins Fontes, 1999, p.

    289. 19 Foucault, Michel. Vigiar e punir: nascimento da priso. Traduo de Raquel Ramalhete. 35 ed. Rio de

    Janeiro: Vozes, 2008, p. 177.

  • 10

    exemplo, a clssica diviso tripartite do poder em poder legislativo, executivo e judicial.

    Mas, na contemporaneidade, nas democracias pluralistas, a diviso de pode ir muito

    alm e o poder no se limita ao campo da poltica formal. Questes de poder se referem

    a mercados, tecnologias, cincia, discursos, projetos, moda, auto-aperfeioamento, etc.

    O resultado que o poder est em toda parte, as relaes de poder so onipresentes,

    mltiplas e dinmicas, no se limitam a centros de poder, como as instituies

    governamentais, os parlamentos, ou partidos polticos, os centros hoje so margens.

    Neste sentido, na sntese de Bent Flyvbjerg encontramos seis nitidas dimenses do

    fenomeno: (1) O poder visto como produtivo e positivo, e no apenas como restritivo

    e negativo; (2) O poder visto como uma densa rede de relaes onipresentes, e no

    apenas como sendo localizado em centros, organizaes e instituies ou como uma

    entidade que se pode possuir; (3) O conceito de de poder considerado como ultra-

    dinmico, o poder no somente algo que se apropria, tambm algo que se reapropria

    e se exerce em um movimento de vai-e-vem constante dentro das relaes de foras,

    tticas e estratgias no interior dos quais um existe; (4) conhecimento e poder, verdade

    e poder, racionalidade e poder so analiticamente inseparveis entre si, poder produz

    racionalidade e a racionalidade produz poder. Realpolitik vem de mos dadas com

    Realrationalitt (Real racionalidade); (5) A questo central como o poder

    exercido, e no simplesmente quem tem o poder e por que o tm, o foco est no

    processo e no na estrutura; (6) O poder estudado com um ponto de partida em

    questes menores, superficiais e empricas, no somente, nem mesmo principalmente,

    com um ponto de partida de grandes questes. Na investigao do poder perguntas

    menores muitas vezes levam a grandes respostas. Uma anlise cuidadosa da dinmica

    do poder de prticas especficas uma preocupao central. Cuide-se que o propsito da

    investigao de poder-racionalidade est a resposta para os casos concretos de

    polticas e planificao de perguntas como: Quem ganha e quem perde?, Por meio

    de que espcies de relaes de poder e racionalidade?, Quais so as possibilidades que

    esto disponveis para mudar as relaes de poder existentes racionalidade?, Ser que

    essa mudana desejvel?, Quais so as as relaes de poder e racionalidade entre

    aqueles que fazem essas perguntas?20.

    O pano de fundo histrico para o desenho conceptual da sociabilidade crescente

    e das relaes de mando e obedincia sob uma tenso entre poder e racionalidade

    resultou na construo da sociedade de indivduos21, o que revela no s a atualidade do

    conceito, e tambm alguns aspectos negligenciados, como o interesse antropolgico

    neste processo. A separao entre o Estado e sociedade de indivduos, a poltica e o

    poder econmico, produzindo mltiplas mediaes, separa os seres humanos a partir de

    uma matriz igualitria, ou seja, para evitar uma interao social com ausncia de par

    20 Confira-se Flyvbjer, Bent. Rationality and Power: Democracy in Practice. Chicago: University of

    Chicago Press 2005, p. 25, 37 e ss., tambm o excerto, in: What is Rationality? What is Power?,

    21 Na acepo de Norbert Elias, em: A sociedade dos indivduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1994, p.

    14, 45.

  • 11

    incluso/excluso. A histria tambm ilumina um aspecto igualmente interessante do

    papel da racionalidade ocidental como um pr-requisito na gnese do capitalismo (onde,

    ao contrrio de planificaes totalizantes, o projeto de poder poltico se aloja com maior

    intensidade). Geralmente, o conceito de sociedade de indivduos pode, na crtica social

    contempornea, ser usado de forma inovadora, uma vez que o foco hoje o complexo

    de relaes sociais e polticas, ademais das implicaes antropolgicas destas relaes e

    a penetrante crtica da racionalidade, porque atualmente o desenvolvimento

    sociopoltico e cultural, bem como o declnio do conflito de classes, o surgimento de

    novas foras sociais, o colapso do socialismo real, a transformao dinmica das foras

    produtivas para desenvolver novas tecnologias, e o efeito lendrio dessas

    transformaes nas relaes produtivas e, ainda os esforos para impor uma nova ordem

    no mundo, uma nova economia fluente da muito discutida globalizao, isto , do

    processo de concentrao financeira e econmica, em tenso permanente com uma

    tambm discutida mundializao, isto , a concentrao do poder poltico global,

    responde por uma crescente instabilidade entre as relaes Sociedade/Estado na

    perspectiva da apropriao e reapropriao do poder poltico. Desta forma, uma

    sociedade de indivduos aproxima-se do dilogo poltico da atualidade como um esforo

    para compreender a evoluo das relaes sociais como vetor de desafios polticos.

    Todavia, tendo presente que os conceitos trabalhados no so novos, mas sim, resultado

    de fatores pretritos, encontrando, mesmo, suas razes no desenvolvimento das relaes

    econmicas e sociais nas cidades do medievo, conscincia de dependncias sociais e de

    lutas polticas que marcaram os Estados-Nao com todas as suas contradies e

    caractersticas comuns.

    II Estado e Separao de Poderes

    A independncia dos poderes deve ser equilibrada e simtrica,

    com pr-requisitos claros, e nitidamente identificadas condies

    para a possibilidade da responsabilizao, incluindo um sistema

    normativo rgido, exatido dos meios processuais, mecanismos de

    informao e consulta pblica ao lado da fiscalizao da

    legalidade material.

    1. Introduo

    A limitao do poder poltico constitui exigncia nuclear do moderno Estado

    Constitucional e integra a gnese do constitucionalismo moderno desde a sua formao

    originria, ao final do Sculo XVIII. O princpio e tcnica da diviso do poder

    poltico (na esfera pblica ou privada, se ainda podemos promover tal separao da ao

    dos diversos agentes e atores sociais) vem sendo estudado j foi afirmado na

    doutrina poltica, sociolgica e jurdica pelo menos nos ltimos dois sculos, ainda que

    existam registros anteriores, como d conta, por exemplo, a doutrina de John Locke,

  • 12

    grande vulto do Sculo XVII. De fato no podemos falar em diviso do poder, isto

    simplesmente o destruiria como unidade de dominao, de vigor e capacidade de agir ou

    de impor obedincia, sim de controle do poder, de organizao do poder, da

    fragmentao prudente das diferentes funes decorrentes do poder. Aqui estamos nos

    referindo ao poder como capacidade ou faculdade de dominar, de agir, fato ocorrente

    nos mais diferentes setores da vida, como exemplo, aquele detido por grandes

    organizaes nacionais ou transnacionais o poder corporativo capaz, por vezes, de

    afrontar o poder dos Estados (biopoder e tecnopoder). Portanto, quando referimos o

    fenmeno da diviso do poder estamos frente diviso dos encargos e das

    responsabilidades daqueles que o exercem, no mbito da arquitetura das funes estatais

    tpicas. De forma mais restrita, quando confrontamos as relaes sociais no mbito das

    sociedades constitudas, a tnica da diviso do poder a primeira condio

    procedimental de seu exerccio, pois o que se busca a sua organizao que passa a ser

    compartilhada entre os diversos atores, bem como a forma e modo como eles se inter-

    relacionam para exerc-lo22.

    O ncleo conceitual da diviso do poder (poderes/funes) reside na prudncia e

    no controle comum, pois a diviso havida no compartilhamento do poder, a diviso de

    suas funes, tem assento e acento (!) na desconfiana pela possibilidade de abuso, logo

    a fragmentao pode servir como remdio para o descomedimento no seu exerccio; de

    outro modo, na atualidade, mais que nunca, a diviso de poderes ou responsabilidades

    opera tambm para aperfeioar a capacidade de rendimento e inovao das

    organizaes, no importa se estatais ou no estatais, pois o que se persegue so os

    instrumentos e mecanismos mais confiveis para o exerccio de funes cada vez mais

    complexas exercida por competncias heterogneas, e segmentadas, da a necessidade

    de encontrarem-se agentes atores qualificados com habilidades muito dedicadas para as

    solues requeridas.

    2. Poder e Estado

    Um Estado, independentemente do seu regime, independentemente da sua

    natureza e forma de governo especfica, deve desempenhar especialssimas funes. Em

    sua existncia o Estado deve se manifestar mediante certas atividades fundamentais das

    22 Sobre o tema, entre outros, consulte-se o trabalho organizado por Alain Pariente, La Separation Des

    Pouvoirs: Theorie Contestee Et Pratique Renouvelee, com os excelentes textos de Pierre Avril, Jean-

    Pierre Camby, Jean-Pierre Duprat, Thodore Georgopoulos, Dmitri Georges Lavroff, Slobodan Milacic,

    Alain Pariente, Carlos-Miguel Pimentel, Franois Saint-Bonnet, Paris: Dalloz, 2006. Di Fabio, Udo.

    Gewaltenteilung, in, Josef Isensee e Paul Kirchhof (organizadores), Handbuch des Staatsrechts der

    Bundesrepublik Deutschland, 3 Ed. Vol. II, Heidelberg: C. F. Mller Verlag, 2004 (pp. 613/658).

    Tambm o livro organizado por by Noam Chomsky, Peter Rounds Mitchell e John Schoeffel,

    Understanding Power The Indispensable Chomsky, New York: The New Press, 2002 (uma cpia pode ser

    obtida no site alternativo PrernaLal ). Ainda, o brilhante ensaio de Peter Gourevitch e James Shinn, Political

    Power and Corporate Control: The New Global Politics of Corporate Governance, Princeton, New Jersey:

    Princeton University Press, 2005.

  • 13

    quais no lhe lcito demitir-se, porque se elas desaparecem, ou resultam inconclusas, o

    corpo poltico no chega a atingir os objetivos que esto na base de sua origem e

    justificao. Para atingir os seus fins, o Estado deve agir, deve desenvolver atividades

    em prol do bem-estar e da satisfao das necessidades socioeconmicas, ademais da

    promoo da socioambientalidade e desenvolvimento cultural, da sua cidadania. Essa

    atividade principalmente acometida a sua estrutura organizacional. Esta atuao

    estatal deve ser aperfeioada de acordo com o contedo peculiar das funes atribudas

    aos seus rgos imediatos, da encontrarmos os seguintes poderes-funes: i)

    legiferante, ii) governativa e iii) jurisferante. Como em qualquer organizao, deve

    haver um esforo do Estado para formular regras gerais que devem reger, em primeiro

    lugar, estrutura do Estado e, por outro, para regular as relaes entre o Estado e os

    cidados e as relaes dos cidados entre si. Da, necessariamente, uma funo

    legislativa, de outro modo, no basta a to s edio do corpo normativo, necessita

    gerir, governar, dirigir os negcios pblicos, desenhar e implantar polticas pblicas que

    atendam os desejos e as necessidades da cidadania. Alm disso, o Estado deve ter uma

    funo no sentido de defender este mesmo corpo normativo, aplic-lo e corrigir o dficit

    de sua concreo. a funo judicial. Estado de Direito, pois, o Estado que respeita os

    direitos humanos e fundamentais, em dimenso individual e social, e promove a

    expanso das liberdades e garantias pblicas em todas as reas, cumprindo com os

    deveres que lhe so atribudos e adotando normas abrigadas pela supremacia

    constitucional, ademais de concretizar e fiscalizar a sua harmoniosa aplicao. Um

    Estado assim fica atribudo da qualidade de Estado de Direito. A expresso Estado de

    Direito, convm registrar, foi pela primeira vez foi utilizada muito embora em

    contexto e com sentido em parte distintos (em maior ou menor medida) dos que

    conformam a noo contempornea de Estado de Direito por Robert von Mohl, em

    seu livro Die Polizei-Wissenschaft nach den Grundstzen des Rechtsstaates, de 1844.

    Para Mohl, o Estado de Direito no poderia ter outra finalidade que a de organizar a

    convivncia do povo de tal maneira que cada membro do mesmo fosse, na medida do

    possvel, promovido e apoiado no livre e completo exerccio e uso de todas suas

    foras23. Vinte anos depois (1864), Otto Bhr publicou um livro precioso, e que

    merece ser lido ainda hoje, sob o ttulo de Rechtsstaat24, onde parte da ideia que o

    23 Von Mohl, Robert. Die Polizei-Wissenschat nach den Grundstzen des Rechtsstaates, 2 ed., Vol. 1,

    Tbigen, 1844, 2, p. 6/9, especialmente p. 8. A primeira edio deste livro de 1831. Eles podem ser

    lidos integralmente no Google Books, acessamos a edio de 1844, em:

    .

    Todavia, como o livro est escrito em alemo na grafia gtica, h o recurso de consult-lo em texto

    simples, pgina por pgina. Observe-se, no entanto que o seu download em PDF est em fac-smile,

    portanto na grafia original, motivo porque mais acessvel a leitura online, onde podemos, inclusive copi-

    lo por pgina. Em:

    < http://books.google.com.br/books?id=MT44AAAAMAAJ&pg=PA7&output=text>. 24 Der Rechtsstaat: eine publicistische Skizze de 1864, p. 1 e 3, que pode e merece ser lido integralmente,

    podemos acess-lo no Google books:

  • 14

    conceito de Estado de Direito no significa que este regule, mediante preceitos, a vida

    que nele se desenvolve, nem limite seus fins realizao do direito, mas sim que tal

    Estado eleva o direito condio fundamental de sua existncia. Nesse diapaso,

    Konrad Hesse, ao analisar o Estado de Direito e sua evoluo, caracteriza o novo

    modelo consagrado na Lei Fundamental da Alemanha, e posteriormente (ainda que com

    importantes variaes) assimilado por expressivo nmero de ordens constitucionais,

    como um Estado Social de Direito, um Estado que planeja, dirige, presta, distribui e

    assim possibilita a realizao da vida individual e social. Assim, ainda de acordo com

    Hesse, como o principio de liberdade inerente tambm ao Estado Social de Direito,

    este pode ser definido como um Estado que melhora ativamente as condies do

    exerccio da liberdade de todos os seus cidados, particularmente atravs da promoo

    da igualdade de oportunidades (incluindo um sistema educativo eficaz e ao alcance de

    todos), a previso existencial, a liberao de situaes econmicas precrias e a luta

    contra o desemprego25. A proteo da dignidade humana, o fomento ativo do

    desenvolvimento individual no contexto social , portanto, central para um Estado

    social de Direito, que assim se aproxima novamente, pelo menos em certa medida, do

    conceito originrio de Mohl e Bhr. Para tornar efetivo o Estado Social de Direito no

    s necessria a criao de um quadro jurdico favorvel ao pleno

    desenvolvimento das foras dos indivduos atomizados e de sua constelao, a

    sociedade como um todo, mas, tambm, a necessidade de ferramentas que permitam a

    plena fruio de seus direitos sociais, econmicos, culturais e ambientais

    atribudos por lei26.

    3. Tripartio de Poderes

    De modo abreviado, a separao de poderes27 (funes, competncias e, mesmo,

    habilidades) no Estado tem endereo certo: a manuteno de alguma simetria estrutural

    .

    Neste livro Bhr j antevia a funo criadora do direito (op. cit., p. 4) e o fenmeno da judicializao do direito quando afirmava: [...] o direito e a lei s adquirem um significado e poder real quando encontram um pronunciamento judicial disposto para a sua realizao (op. cit., p. 12). Todavia, como o livro est escrito em alemo na grafia gtica, h o recurso de consult-lo em texto

    simples, pgina por pgina. Observe-se, no entanto que o seu download em PDF est em fac-smile,

    portanto na grafia original, motivo porque mais acessvel a leitura online, onde podemos, inclusive copi-

    lo por pgina. Em:

    25 Hesse, Konrad. Grundzge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, 18 ed.,

    Heidelberg: C. F. Mller, Juristischer Verlag, 1991, 6, nmero de margem 212, p. 87. 26 Em algumas circunstancias, alguns direitos prestacionais de natureza social, econmica, cultural ou

    ambiental, positivados nas Constituies necessitam da atuao legisferante para tornarem-se efetivos,

    sobre o tema confira-se o trabalho de Karl-Peter Sommermann. Staatsziele und Staatsziel-bestimmungen,

    Tbingen: Mohr Siebeck 1997, p. 371 e s., 415 e ss (ficha de leitura, texto consultado na Staatsbibliothek de Berlim

    nos perodos de julho de 2008).

    27 Separao de poderes, diviso de poderes, diviso do poder, distribuio de poderes so expresses

  • 15

    de controle mtuo entre os processos sociais emancipatrios (o percurso na busca dos

    bens indispensveis para suprir as necessidades) e os processos estatais regulatrios (ou,

    a pavimentao do percurso que possibilite a igualdade de acesso aos bens, assim como

    a perenidade daquelas conquistas emancipatrias)28. Manter alguma simetria torna

    possvel a convivncia social e tambm mais estvel o projeto de poder que sustenta o

    Estado Constitucional e Democrtico de Direito como idealidade, ou instituio, e como

    conformao possvel de objetivos comuns daqueles que compartem aquele projeto29.

    Em pleno sculo XXI no mais so autorizadas as articulaes que promovam uma

    rgida separao de poderes, funes e competncias cometidas ao Estado, aos rgos

    estatais ou seus agentes; vigoram e imperam os princpios da colaborao e da

    subsidiariedade. Ademais, a separao de poderes na atualidade est submetida por

    variantes multidimensionais: contexto global, nacional, regional e local, pois os poderes

    se comunicam e necessitam cada vez mais de interao e velocidade no trfico das

    informaes necessrias para as articulaes polticas nesses diversificados cenrios, o

    que faz atual a clebre afirmao includa no The Federalist n. 51: [...] defense must [] be

    made commensurate to the danger of attack. Ambition must be made to counteract ambition30. Assim,

    as questes que envolvem as diversas esferas de poder exigem procedimentos de

    blindagem de valores de determinados segmentos sociais, notadamente os menos

    favorecidos, bem como alguma ousadia para confrontar pretenses de dominao ou

    imprio sustentadas por outros interesses, especialmente os mais favorecidos. Em

    qualquer caso, observe-se que o objeto imediato da separao de poderes tem como

    ncleo duro a proteo e promoo da liberdade, bem maior da cidadania e condio

    indispensvel para pensar-se uma sociedade democrtica, ordenada por fins que

    promovam a dignidade da vida na sua dimenso individual, social e ecolgica afastada

    desta forma toda pretenso ao absolutismo, opresso e ocultao dos direitos humanos e

    de direitos fundamentais31.

    sempre lembradas pela doutrina e mesmo com sutis diferenas conceptuais. O melhor seria a utilizao da

    proposio contida no artigo 49 da Constituio Mexicana: El Supremo Poder de la Federacin se divide para su ejercicio en Legislativo, Ejecutivo y Judicial (itlico nosso). 28 Emergente dos conflitos da Europa no sculo XVII, a separao de poderes na esteira das revolues

    do final do sculo XVIII, nos Estados Unidos e Frana, vai inspirar o artigo 16 da Declarao dos

    Direitos Humanos e o cidado: Toda sociedade na qual a garantia dos direitos no assegurada, nem a separao dos poderes determinada, no tem constituio. Em outras palavras, para ser vlida, uma constituio deve garantir uma separao de poderes. 29 Andrew Wroe com acuidade observou: A grande premissa da separao dos poderes que os indivduos tm o potencial para prejudicar os outros, e o potencial pode tornar-se realidade quando o

    poder se concentra em uma pessoa, faco, ou instituio. Portanto, na separao de poderes, o principal

    objetivo evitar a tirania e promover a salvaguarda da liberdade atravs de garantia que impea a

    qualquer de acumular poderes despticos. (Wroe, Andrew. Separation of Powers; in, Clarke, Paul Barry. / Foweraker, Joe. (Eds.). Encyclopedia of Democratic Thought. London: Routledge, 2001, p. 34). 30 The Federalist No. 51. The Structure of the Government Must Furnish the Proper Checks and Balances

    Between the Different Departments. Independent Journal. Wednesday, February 6, 1788. [James

    Madison] (a defesa tem de ser... proporcional ao perigo de ataque. A ambio serve para contrabalanar a

    ambio). < www.constitution.org/fed/federa51.htm>. 31 O princpio da separao dos poderes, como outros princpios organizativos do Estado cristalizados na Constituio, no representa um fim em si mesmo, mas destina-se a assegurar que a diviso do poder no

  • 16

    Nada obstante no se poder mais encontrar uma eficaz sustentao poltica na

    concepo clssica da Tripartio dos Poderes do Estado, esta tem larga histria32,

    sendo que nas cincias polticas e no direito constitucional ainda remanescem seus

    traos mais significativos. atravs dela que so identificadas as funes do Estado que

    so exercidas por diferentes organismos e agentes polticos. No constitucionalismo

    contemporneo ela supe uma garantia para o prprio Estado e para a cidadania (que

    fica protegida por um marco legal que impede ou dificulta o abuso de poder e as

    possveis atuaes arbitrrias das instituies pblicas). A ideia que permanece

    fragmenta funcionalmente o Poder do Estado nos poderes legislativo, executivo e

    judicial. O legislativo (exercitado pelos parlamentos) est encarregado de redigir,

    promulgar, reformar e derrogar as leis. O executivo (atribudo ao governo) tem a misso

    de cumpri-las ou vet-las (se os parlamentos no derrubarem o veto). O Judicial

    (atribudo Jurisdio, aos Tribunais), resolve os conflitos e administra a justia.

    Pela Carta de 1988, a Repblica brasileira constitui uma Federao (art. 1,

    cabea; art. 18), alis, Estado federado que surge na Constituio de 1891, est

    composto por quatro espcies de entes federados dotados de autonomia, duas dessas

    espcies so entes tpicos (Unio e Estados-membros) e dois entes atpicos (Distrito

    Federal e Municpios). Como consequncia da autonomia dos entes federados inexiste

    subordinao entre eles, todos retiram sua autonomia do texto da constituio, vale

    dizer, das competncias que so por ela outorgadas, tambm no h precedncia de um

    ente federado sobre o outro, sim distribuio de competncias em carter privativo ou

    concorrente, observe-se especialmente que no exerccio de suas atribuies, fixadas

    constitucionalmente, o municpio to autnomo quanto, e.g., a Unio no exerccio de

    suas competncias. Ademais, o mesmo texto constitucional d perenidade para a

    separao de poderes e para a forma federativa de Estado (III e I, do 4 do Art. 60).

    Por certo, o tema do federalismo (poderes, funes e competncias), est

    intimamente relacionado com a interpretao constitucional, construo jurdica e

    interesse de diferentes pretenses da cidadania. a que reside o sentido permanente, onde o princpio da

    separao de poderes destinado a servir de parmetros na alterao de foras polticas e instituies em

    todo o estado. Para Reinhold Zippelius, a separao dos poderes revela-se como um princpio formal do

    Estado de Direito, de modo que as garantias constitucionais, com destaque para os direitos fundamentais,

    revelavam-se como princpios materiais (Allgemeine Staatslehre, 13 Aufg. Mnchen: CH Beck 1999, p.

    297). 32 A doutrina da separao de poderes foi desenvolvida no decorrer dos sculos. Um dos primeiros

    pensadores que teorizaram sobre ela foi James Harrigton (1661-1677) que descreveu um sistema poltico

    utpico fundado na diviso dos poderes pblicos, como pode ser observado na sua obra The Commonwealth of Oceana (1656) que pode ser lida no formato de e-book (in, ). Mais tarde, John Locke deu um

    tratamento aprofundado sobre o tema, no seu The Second Treatise of Civil Government (1690), onde articulava que os poderes legislativo e executivo so conceitualmente diferentes, ainda que nem sempre

    fosse necessrio separ-los em instituies polticas distintas, de outro modo, no distinguia o poder

    judicial (o trabalho no original pode ser lido em ). O

    conceito atual provm de Montesquieu em uma de suas principais obras, De lesprit des lois (1748) onde fica assentada a trplice diviso (Montesquieu no utiliza do termo separao), que desde ento se

    converteu no eixo fundamental das constituies contemporneas.

  • 17

    separao dos poderes. Da mesma forma, em uma hermenutica constitucional,

    responsvel e comprometida com o social, o desvelamento do direito e a irradiao dos

    princpios democrticos para todos os setores da vida nacional acabaram por produzir

    um fenmeno novo: uma original forma de acesso aos direitos fundamentais com a

    busca de efetivao plena desses via prestao jurisdicional j despregada de um carter

    estritamente legalista, e pontuada por uma atuao que objetiva a reduo das

    desigualdades sociais, econmicas e culturais. Essa nova conformao dada ao Estado,

    na sua vertente de Estado-Juiz, parece que, por vezes, se hipertrofia e invade as

    tradicionais atividades dos demais poderes-funo e ele acometidos. A questo das

    mais complexas e, ao mesmo tempo, das mais fascinantes na Teoria Poltica, na do

    Estado e na do Direito Constitucional, pois pe em risco, e por isso mesmo h

    resistncia por alguns setores, concepes tradicionais que compreendiam o Estado na

    perspectiva de um ontologismo subjetivista e cartesianismo que afirmava o seu supremo

    poder pautado em sua atividade mediante aes imediatamente vinculantes sua esfera

    de atribuio. O discurso era o da independncia e harmonia de poderes (funes), alis,

    como est, ainda, no art. 2 da Carta de 1988, o problema, parece, est na interpretao

    desses dois substantivos (independncia e harmonia); o primeiro diz com absoluta

    ausncia de relao de subordinao; o segundo insinua uma combinao de elementos

    diferentes e individualizados, mas unidos por uma relao de pertinncia33. Nesta

    perspectiva, independncia se refere soberania (aqui a popular, e aquela que atribui ao

    Estado legitimidade para ser sujeito de direito internacional), e harmonia alude a um

    conjunto de regras (escritas ou no) que formata um sistema sociopoltico e cultural. No

    entanto, o poder do Estado uno, independente e afirmado pela sua soberania exercida

    em dois planos distintos, no plano internacional, onde est obrigado a pautar o seu

    comportamento como sujeito de direito, segundo os princpios constitucionais contidos

    no art. 4 da Carta Magna, e no plano territorial, onde se localiza a primazia da vontade

    popular (todo o poder emana do povo... nico do art. 1) que o constitui (poder). Esta

    unidade de poder, reconhecido leva autoridade. Autoridade que se organiza para o

    cumprimento de funes e competncias bem delineadas e sistematizadas no texto

    constitucional. Em qualquer plano, pensando estruturalmente a separao dos poderes

    constata-se a existncia de uma multiplicidade de rgos, setores, instituies e agentes

    33 Cuide-se, no entanto, que ali se inclui, virtualmente, um sistema de checks and balances, que se vai

    projetar no texto da constituio, exempli gratia, a competncia do Executivo para expedir medidas

    provisrias, iniciar o processo legislativo e vetar projetos de lei, como atos de natureza legislativa (art. 84,

    III, IV e V); a competncia do Legislativo para julgar o Presidente da Repblica por crime de

    responsabilidade, bem como os Ministros do Supremo Tribunal Federal (funo jurisdicional) art. 52, I e

    II, aprovar a indicao de determinados titulares de cargos pblicos (funo executiva) art. 52 III; e, a

    competncia do Judicirio para iniciar o processo legislativo referentemente a determinadas matrias

    (funo legislativa), art. 93, e nomear os magistrados de carreira (funo executiva) art. 96, c. Contudo,

    tais funes atpicas tm em conta a noo de freios e contrapesos. Neste sentido, medidas provisrias,

    editadas pelo Presidente da Repblica, necessitam para se converterem em lei aprovao pelo Congresso

    Nacional, que poder rejeitar o veto presidencial a projeto de lei, pelo voto da maioria dos Deputados e

    Senadores, em escrutnio secreto (art. 66 4), se ao Poder Judicirio no cabe elaborar as leis, pode

    declarar a sua inconstitucionalidade, compensando-se, neste caso, a falta dessa prerrogativa.

  • 18

    que esto atribudos de funes estatais bem definidas, o que conduz a uma perspectiva

    de diviso horizontal e vertical do poder. Neste sentido, h separao horizontal na

    ausncia de hierarquia e existncia de igualdade de posies previamente destacadas na

    Constituio (caso do Art. 2 da Carta de 1988) com finalidade de fixar recprocos e

    simtricos condicionamentos da ao de qualquer dos rgos apoderados. De outro

    modo, podemos descobrir uma separao vertical nas relaes que se desenvolvem entre

    o Estado e os indivduos ou grupos deles confrontadas com os sistemas de regulao,

    bem como, o conjunto de relaes havidas pela diviso de competncias que remanesce

    constitucionalmente entre os entes da federao34.

    Na atualidade existe uma aparente, mas to s aparente hipertrofia da funo

    jurisdicional, do protagonismo do Estado-Juiz. Parece que suas decises invadem todos

    os segmentos da vida e da poltica nacional. Contudo, uma observao detida vai

    conduzir o olhar para outra realidade (e realidade aqui o que pode ser percebido), isto

    , para a singeleza da operao do direito. O Estado-Juiz o mesmo Estado-

    Administrador ou Estado-Legislador, tambm ele incorpora o poder na sua unicidade

    do Estado. Todos os agentes polticos atribudos por este Estado, no limite de suas

    funes e competncias, exercem os mesmos papis na produo dos objetivos

    nacionais (art. 3 da Carta de 1988), objetivos que no so s meros programas

    polticos, mas esto simetricamente harmonizados com os fundamentos do Estado

    brasileiro (art. 1 e incisos). Portanto, na busca da plena realizao desses mandamentos

    no pode ser vista nenhuma intruso de uma funo sobre outra, nenhum ampliao de

    poder ou autoridade, sim o cumprimento dos deveres constitucionais cometidos ao

    Estado.

    4. O fenmeno do alargamento do espao do jurdico

    Faz algum tempo, Boaventura de Sousa Santos, Maria Manuel Leito Marques e

    Joo Pedroso, escreveram um texto precioso: Os Tribunais nas Sociedades

    Contemporneas35, ali os autores afirmavam:

    34 Sobre o tema consulte-se, entre outros, na literatura nacional o excelente trabalho de Emerson Garcia,

    Princpio da separao dos poderes: os rgos jurisdicionais e a concreo dos direitos sociais, publicado

    na De Jure - Revista Jurdica do Ministrio Pblico do Estado de Minas Gerais / Ministrio Pblico do

    Estado de Minas Gerais, n. 10, jan./jun. 2008, p. 50/88. Na literatura comparada, entre outros, consulte-se,

    Hanebeck, Alexander: Der demokratische Bundesstaat des Grundgesetzes, Berlin: Duncker & Humblot

    2004, tambm, Currie, David. Separation of Powers in the Federal Republic of Germany. American

    Journal of Comparative Law, Vol. 41, No. 2, 1993, ainda, Steffani, Winfried. Formen, Verfahren und

    Wirkungen parlamentarischer Kontrolle. In, Hans-Peter Schneider y Wolfgang Zeh (eds.),

    Parlamentsrecht und Parlamentspraxis. Berlin/New York: de Gruyter, 1989, 1325-1367 e, especialmente,

    Gewaltenteilung und Parteien im Wandel. Opladen: Westdeutscher Verlag, 1997, p. 17, 20, 23, 38 at 53,

    152 (livro difcil de ser encontrado, o exemplar manuseado pelos pesquisadores e objeto de fichamento

    da Staatsbibliothek zu Berlin - Preuischer Kulturbesitz, Local: Potsdamer Strae 33). 35 Consulte-se em:

  • 19

    A cultura jurdica o conjunto de orientaes a valores e interesses que

    configuram um padro de atitudes diante do direito e dos direitos e diante das

    instituies do Estado que produzem, aplicam, garantem ou violam o direito e

    os direitos. Nas sociedades contemporneas, o Estado um elemento central da

    cultura jurdica e nessa medida a cultura jurdica sempre uma cultura

    jurdico-poltica e no pode ser plenamente compreendida fora do mbito mais

    amplo da cultura poltica. Por outro lado, a cultura jurdica reside nos cidados

    e em suas organizaes e, nesse sentido, tambm parte integrante da cultura

    de cidadania.

    Nada poderia ser mais bem expressado. Vamos lembrar que a cultura histrica,

    estvel e cambiante ao mesmo tempo, e nunca pode ser separada do homem que o seu

    motor de movimento. A cultura se gera e regenera pelos atos humanos, mas uma vez

    produzidos, cristalizam, deixando uma marca, um testemunho objetivo que pode ser

    amado, seguido. Por exemplo, muitos j afirmaram, uma obra de Da Vinci, j no mais

    mais de Da Vince, mas da humanidade, pois vem por adquirir uma espcie de

    consistncia objetiva. E o que caracteriza esse modo de vida objetivado, que

    chamamos de cultura, o seu significado, ou seja, a finalidade para a qual ela est

    inserida. Todavia, no devemos esquecer que estas obras humanas obedecem a

    necessidades ou interesses. Situam-se na histria, mas so obras de homens que, por

    outro lado, atuam como a vida humana cristalizada em conexo com o estresse da vida

    humana em cada momento do agir. Portanto, o sentido da cultura depender do alcance

    ou setor da mesma. No entanto, o direito forma parte do mundo da cultura (um fato da

    cultura, fato da vida), posto que atravs da objetivao pretenda orientar a conduta dos

    homens e a processo cultural (ou conjunto de fatos do mundo ftico). Neste sentido,

    podemos falar mais especificamente, inclusive, de uma cultura jurdica, na esfera dos

    elementos culturais que contribuem para a formao do direito, e que constituem as

    caractersticas essenciais de um sistema jurdico em um contexto social, e na forma

    especfica do poder que fundamente sua validade. De fato, um uso rigoroso do termo

    cultura jurdica, significa a impossibilidade de isolamento e autossuficincia das

    formas do jurdico, que, sem dvida, considera como uma prioridade o carter

    normativo do sistema jurdico. Pode tambm se distinguir, uma cultura jurdica interna,

    ou seja, a prpria da cincia e da filosofia do direito e das profisses jurdicas, contanto

    que produzam os elementos culturais que, por sua vez, tm um impacto significativo na

    cultura direito em geral e, claro, tambm na cultura sem mais. H, portanto, a

    distino entre duas culturas jurdicas. Uma exgena e outra endgena. A cultura

    jurdica que se origina no exterior aquela cultura que est implcita no grupo social,

    j a cultura que se origina dentro do grupo social aquela que parte do grupo, um

    crculo dele, que se reveste de um modo especializado dos operadores do direito. Todos

    os grupos sociais tm uma cultura jurdica, mas apenas em grupos sociais em que

    existem especializaes e profisses jurdicas tm uma cultura jurdica interna. O direito

    cultura e est incorporado em uma forma geral de cultura, prpria de cada perodo

    histrico e, tambm, prpria das linhas de desenvolvimento e de perturbaes

    produzidas na sociedade. Quando tentamos falar sobre a filosofia do direito, tanto da

  • 20

    teoria da cincia como da teoria do direito, como da teoria da justia, vemos a

    importncia dessa abordagem para a compreenso da historicidade do direito e dos

    significados que pretende, dentro do carter mais estvel que supe ter como contedo a

    vida humana (e social).

    A cultura moderna, que comea com a transio da Idade Mdia, ser de uma

    cultura cada vez mais secularizada, tolerante com uma forma de poder, o Estado, que

    propende o monoplio do uso da fora, individualista e pluralista, com uma

    legitimidade racional que objetiva definir regras do jogo para o acesso e o exerccio do

    poder, uma noo de legitimidade com base no acordo ou consenso, que controla e

    limita esse poder. Esta cultura que podemos denominar de democrtica vai gerar a sua

    prpria forma de direito e os seus prprios valores. Naturalmente, esta evoluo no

    linear, no ser a mesma em todos os lugares, e tender, por vezes, regresso. Ela

    mesma no est afeta a todo o mundo, mas sim, de modo especial ao mundo europeu

    e atlntico. Por conseguinte, o conceito de direito que possamos deduzir est, pois,

    relativamente vinculado a esta cultura moderna, democrtica, europeia e atlntica, sem

    que se possa aplicar plenamente a outras situaes socioculturais como o mundo

    islmico, ou a dos pases africanos e asiticos que obedecem a outras pautas culturais.

    Nos anos 1960, Boaventura de Sousa Santos entendia o direito como uma

    ordenao parcial e participante, era a frmula conceitual utilizada pelo socilogo em

    seu estudo de concluso de curso, apresentado para o exame complementar de cincias

    jurdicas na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal) no final de

    1964 e alvorecer de 1965, denominado de Conflitos de deveres em direito criminal36.

    Neste trabalho, o jovem cientista social j dava mostras de seu talento especial para

    investigar e, especialmente, sua capacidade de utilizar as palavras de modo que elas

    plasmassem com fidelidade as situaes contextuais e discursivas onde esto dispostas e

    podem ser interrogadas. A proposio simples, no entanto expressiva: o direito como

    ordenao parcial e participativa, isto , o direito o comprometimento de um e sua

    recproca interao com o outro (isto participao). Uma ordenao deste quilate pode

    ser (efetivamente ser) a base concreta de um projeto emancipatrio daqueles sujeitos

    subordinados a esta ordem. Ressalta Boaventura, a emergncia de uma legalidade

    cosmopolita fundada em um direito derivado de uma ordenao parcial e participante.

    Parcialidade e participao, a esto critrios para a definio do direito como processo

    de emancipao (ou neles includos). Parcialidade , antes de tudo, comprometimento,

    ou seja, uma forma de legalidade cosmopolita implcita mesma na conceituao de

    Boaventura de emancipao fina e espessa, isto , supervivncia e prosperidade.

    Participao mais que comprometimento, criar, formar, inventar, forjar, inovar,

    imaginar, saber, compartir, ter parte em..., participar pelo sentimento, pela emoo

    o pensamento (do gozo, do pranto, do ser, do no ser, do ser...), em combate para um

    projeto comum. Parcialidade e participao formam um hbrido onde a natureza

    36 Santos, Boaventura de Sousa. Conflito de Deveres Criminais. Coimbra, 1964/65, cpia reprogrfica

    gentilmente oferecida pela Biblioteca do CES, no ano de 2003.

  • 21

    emancipatria dos combates sociais residem em todos eles, em seu conjunto e, em

    qualquer um em particular, e o dever que temos a primordialmente recuperar o

    poltico de todo o direito.

    Seguindo o mesmo vis do socilogo portugus, podemos afirmar que um

    direito assim, como ordenao parcial e participante utiliza como instrumento de

    traduo a hermenutica diatpica37. Esse mtodo de revelar o discurso de uma

    interpretao no mais morfolgica ou diacrnica, mas uma interpretao

    transversal/argumentativa, uma verdadeira diatopia38. Sabemos que os fundamentos

    mais slidos para os mal-entendidos havidos entre a cultura ocidental moderna e as

    demais culturas jurdicas, relativas, autctones e, especialmente no modernas, a

    distancia que temos de superar para por em dialogo estas duas realidades (que podem

    ser percebidas), esta distancia no s factual (interpretao morfolgica), ou temporal

    (interpretao diacrnica), ela espacial, ou seja, nos deparamos com diferentes topos,

    no plural, topoi, perspectivas (que so argumentos) cujos postulados mesmos so

    radicalmente diversos, especialmente tendo em vista que eles no se desenvolveram

    desde uma narrativa comum, dispondo de diferentes meios de inteligibilidade. Da que a

    hermenutica diatpica transita por essas distintas culturas (jurdicas) paralelas entre

    si (mas tambm naquelas que esto por cima de outras, ou ao contrrio, com outro grau

    de traduo) permitindo um dilogo para a emergncia de um mythus que seja o elo

    comum de inteligibilidade, na traduo que se vai intentar decifrar a textura do

    contexto e seus espaos intersticiais, superando as distancias, levando em considerao

    nesse percurso: a superao do presente em relao com o passado, ou do passado em

    respeito ao presente, mas sim a do presente com respeito ao presente, refutando toda a

    entronizao do futuro no presente.

    Como Boaventura, a investigao presente conclui que o trabalho de traduo

    (e aqui estamos confrontando o protagonismo judicial) pode ser pensado como a ponte a

    mediar um debate como o de Cron e Antgona. Entre a razo do Estado e o imperativo

    da conscincia do dever. O debate entre Cron e Antgona, entre o valor ordem e o valor

    justia ainda no se encerrou e, provavelmente, nunca se encerrar39. Por isso, no se

    pode esquecer, quanto a manumisso do direito, do velho aforismo latino: Vetustas

    37 No sentido de Boaventura, in, Para uma sociologia das ausncias e das emergncias, que pode ser consultado em: www.ces.uc.pt/bss/documentos/sociologia_das_ausencias.pdf. Tambm, Por uma concepo multicultural de direitos humanos. In: Enciclopdia Digital Direitos Humanos II. Natal: CENARTE/DHnet, 2002.

    Disponvel em: . 38 No sentido que atribuiu R. Pannikar en Cross Cultural Studies: The need for a new science of

    interpretation, Interculture, v, VII, n. 3-5, Cahier 50, 1975; y Myth, Faith and Hermeneutics, Paulist Press,

    N. York, 1979; concepes essas que Boaventura admite. 39 Antgona de Sfocles, no sculo IV a. C., revela uma poderosa e expressiva dialtica no jogo entre a

    moral e o direito, a lei e os costumes, a lei divina e a lei domstica vs. A lei da polys. Antgona um

    drama vivido ainda hoje, quando se est frente a frente com as escolhas que devemos fazer para o nosso existir cotidiano.

  • 22

    vicem legis obtinet40. Em um cenrio assim, o alargamento do espao do jurdico uma

    consequncia.

    O Estado-Juiz, o Poder Judicirio no exerccio de suas funes e competncias

    age por intermdio de seu agente (poltico): o magistrado. Cuida-se, nada mais, nada

    menos, da atuao do prprio Estado (soberano) na plena concretizao dos objetivos

    constitucionais e afirmao dos direitos fundamentais na sua dimenso individual e

    social, esta ltima, expresso mxima dos objetivos constitucionais (a construo de

    uma sociedade livre, justa e solidria). Neste sentido, e somente neste sentido, o

    magistrado (ao expressar e exercer a Jurisdio) confunde-se com o Poder soberano do

    Estado. Tal situao conduziu a uma teorizao, possvel, de um protagonismo do

    magistrado na conduo e concreo dos anseios da cidadania (nica soberana de fato,

    pois dela decorre o poder: todo poder decorre do povo, que o exerce por representantes

    eleitos ou diretamente), que foi denominado, entre outras acepes possveis, de

    ativismo judicial, alis, expresso tomada de emprstimo da filosofia moral: o

    denominado atualismo, isto , aceitar o lugar imediato, observar o passado que opera

    de uma maneira distinta e sucessiva sobre ns, e colocar-se do ponto de vista do

    presente, do atual, para justificar plenamente o mundo percebido. O magistrado afirma a

    autonomia do Estado-Juiz afirmando a sua prpria autonomia e tambm daquela a qual

    est vinculado41. Autodeterminao que colabora para a democracia e para a realizao

    dos fins estatais. Autonomia, ou melhor, ainda, autodeterminao do Estado-Juiz que

    possibilita igualdade sem fronteiras para todos nos Tribunais42. Enveredando para a

    seara do direito sade, notadamente no caso brasileiro, ora analisado, surgem com

    intensidade aes que poderiam ser qualificadas como ativismo judicial. Intenta-se

    argumentar que, em primeiro lugar, o termo ativismo no apropriado e, em segundo

    lugar, a atuao do Estado-Juiz na efetivao dos direitos fundamentais no se confunde

    com as atividades polticas dos demais agentes e instituies do Estado, e tampouco

    ultrapassa os limites constitucionais atribudos s funes e competncias estatais.

    III Do direito sade. Anlise das prestaes materiais pleiteadas pela via judicial. Incurso na separao vertical de poderes?

    1. Direito Sade

    40 A prtica inveterada alcana fora de lei 41 Judicial independence is a pre-requisite to the rule of law and a fundamental guarantee of a fair trial. A

    judge shall therefore uphold and exemplify judicial independence in both its individual and institutional

    aspects. Princpio 1 do Cdigo de Bangalore (A independncia da magistratura um pr-requisito para o

    Estado de Direito e garantia fundamental de um julgamento justo. Um juiz dever, portanto, preservar e

    servir de exemplo da autonomia judiciria tanto em seus aspectos individuais e institucionais), em:

    < www.unodc.org/pdf/corruption/bangalore_e.pdf>. 42 Ensuring equality of treatment to all before the courts is essential to the due performance of the judicial

    office (Garantir a igualdade de tratamento para todos perante os tribunais essencial para o devido

    cumprimento das funes jurisdicionais). Cdigo de Bangalore. Princpio 5. Em:

    < www.unodc.org/pdf/corruption/bangalore_e.pdf>.

  • 23

    O Direito sade evoca conexo com o direito fundamental vida43, e, mais do

    que isso, com a noo de um direito a uma vida com qualidade, tudo como corolrio do

    princpio da dignidade da pessoa humana44, de modo que a determinao de seu

    significado e regime jurdico dialoga com variadas condicionantes jurdico-axiolgicas,

    objeto de reiterada produo jurisprudencial referente ao direito sade45. A noo de

    direito sade deve-se originalmente a dois desenvolvimentos histricos, inicialmente

    com o movimento de sade pblica iniciado no sculo XIX, e posteriormente com o

    reconhecimento, no sculo XX, dos direitos sociais. Atualmente, pela sua positivao

    expressa em mais de sessenta Constituies, alm de inmeros documentos

    internacionais que garantem direitos relacionados sade, verifica-se que o direito

    sade adquiriu status de direito de alcance universal e que j se constitui como um

    elemento costumeiro do direito internacional46. Neste diapaso, o direito sade pode

    ser considerado, pelo seu contedo e relevncia prtica, como um direito primrio por

    excelncia, do qual o prprio gozo e fruio dos demais direitos fundamentais

    remanesce, pelo menos em parte significativa, dependente, inclusive os direitos de

    liberdade47. Trata-se de um direito, que para alm desta caracterstica de condio de

    possibilidade do exerccio pleno dos demais direitos, traz em seu bojo, pela sua

    43 Para Germano Schwartz, desde uma perspectiva sistmica luhmaniana, a sade identificada como um

    sistema dentro de um sistema maior (vida), que com este interage, significando uma meta a ser alcanada

    e que varia de acordo com sua prpria evoluo e com o avano dos demais sistemas com os quais se

    relaciona em espacial o Estado e a prpria sociedade (Direito Sade: efetivao em uma perspectiva

    sistmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 37-9). 44 Em termos de definio jurdica do princpio da dignidade da pessoa humana que dialoga com uma

    noo de vida saudvel, Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. O Princpio da Dignidade da Pessoa Humana e os

    Direitos Fundamentais na Constituio Federal de 1988. 6 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,

    2008. p. 63. 45 No apenas no Brasil, onde a jurisprudncia farta em vincular o Direito sade ao Direito vida,

    como do conta, dentre outras, as decises AgR-RE 271286-8 RS. Min. Rel. Celso de Mello, 12.09.2000,

    RE 195192-3 RS. Min. Rel. Marco Aurlio, 22.02.2000, RE 232335 RS. Min. Rel. Celso de Mello,

    01.08.2000, SS 3741 CE. Min. Rel. Gilmar Mendes, 27.05.2009, todas em sede de Supremo Tribunal

    Federal, mas tambm em termos de Direito estrangeiro, como na Corte Constitucional da Repblica da

    Colmbia, nas aes de tutela T-749/2001, T-1123/2000 e, com especial destaque, a T-760, julgada aos

    31 de julho de 2008, na Corte Suprema de Justia da Nao Argentina, mediante os recursos

    extraordinrios 302:1284, de 06.11.1980, 310:112, de 27.01.1987, e 323:1339, de 01.06.2000, no

    Tribunal Constitucional do Peru, mediante as Aes de Amparo 3330-2004-AA/TC, julgada em

    11.07.2005, e 2016-2004-AA/TC, julgada em 5.10.2004, no Tribunal Constitucional Federal da

    Alemanha, com a deciso proferida pelo primeiro senado BvR 347/98, de dezembro de 2005, na Corte

    Constitucional da frica do Sul, mediante o Landmark case CCT 8/02, decidido em 05.07.2002, dentre

    outros. 46 GROSS, Aeyal M. The Right to Health in an Era of Privatisation and Globalisation National and International Perspectives, in: EREZ, Daphne Barak; GROSS, Aeyal M (Orgs.). Exploring Social Rights.

    Between Theory and Practice. Oregon: HART Publishing, 2007. p. 292-5. 47 Cf. HUSTER, Stefan. Gesundheitsgerechtigkeit: Public Health im Sozialstaat, in: Juristen Zeitung,

    18/2008. p. 859. Neste sentido tambm se posicionou o Ministro Celso de Mello em recente voto

    proferido na ocasio do julgamento de decises selecionadas da Audincia Pblica sobre sade, realizada

    no Supremo Tribunal Federal, em abril de 2009, O direito sade representa um pressuposto de quase todos os demais direitos, e essencial que se preserve esse estado de bem-estar fsico e psquico em favor

    da populao, que titular desse direito pblico subjetivo de estatura constitucional, que o direito

    sade e prestao de servios de sade.

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    estrutura normativa e possibilidade eficacial, a noo de transcendentalidade, no sentido

    de que, a mera proteo nacional, isolada, sem a devida cooperao inter-regional e

    internacional, no se torna suficiente para sua efetiva concretizao48. O direito sade

    assume, pelo menos, trs dimenses quanto s aes e prestaes que compem seu

    contedo, isto , a curativa, preventiva e promocional49. Essas dimenses tem o condo

    de abranger tanto o aspecto negativo do direito sade, consubstanciado na noo de

    respeito e proteo, quanto o lado promocional e positivo relacionado ideia de

    qualidade de vida. Neste sentido que se posicionou a Organizao Mundial da Sade

    OMS ao definir, no prembulo da sua Constituio (16 de julho de 1946) o termo sade

    como estado de completo bem-estar fsico, mental e social, e no apenas ausncia de

    doenas. Ainda que os termos bem-estar e qualidade de vida50, envolvam um

    componente subjetivo dificilmente avalivel, eles indicam, no mnimo, uma abertura

    conceitual do termo sade, ensejando a integrao de outros elementos, ou posies

    jurdicas, que no somente a proteo e promoo da sade fsica do indivduo, mas

    tambm os aspectos relacionados proteo do meio ambiente, o direito educao, o

    direito moradia, o direito ao saneamento bsico, direito ao trabalho e sade no

    trabalho, o direito da seguridade social, direito sade psquica, a garantia de uma

    morte digna, direito informao sobre o estado de sade, direito assistncia social e

    de acesso aos servios mdicos, dentre outros51. O direito sade, evidncia, no se

    limita to somente aos servios de sade, mas a todos os fatores que podem

    eventualmente afetar sade do indivduo, sendo que seu contedo composto por

    duas dimenses distintas: i) as condies contextuais que afetam sade, e ii) os

    cuidados mdicos52.

    Apesar de alta complexidade que envolve a aferio da determinao do

    contedo do direito sade, isto , do plexo de aes e/ou prestaes deduzidas a priori

    desta posio jurdica jusfundamental53, o seu enquadramento como direito autnomo,

    desindexado de outros direitos e garantias fundamentais, perde espao, tanto em termos

    de direito nacional54, quanto em termos do direito internacional dos direito humanos55.

    48 LOUREIRO, Joo Carlos. Direito (Proteo da) Sade, in: Revista da Defensoria Pblica, ano 1, n 1

    jul./dez. 2008. p. 36-7. Neste sentido, o autor afirma a necessria construo de uma rede normativa

    mundial manto normativo do mundo, limitando-se a soberania nacional, sem descurar do princpio da no ingerncia, de modo a combater certas doenas que extrapolam os interesses nacionais, como, por

    exemplo, a sndrome respiratria aguda. 49 FIGUEIREDO, Mariana Fichtiner. Direito Fundamental Sade: parmetros para sua eficcia e

    efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 81. 50 Para Francisco Carlos Duarte, o direito sade integra o conceito de qualidade de vida, na medida em

    que as pessoas em bom estado de sade no so as que recebem bons cuidados mdicos, mas sim aquelas

    que moram em casas salubres, comem uma comida sadia, em um meio que lhes permite dar luz, crescer,

    trabalhar e morrer. (Qualidade de Vida: a funo social do Estado. Revista da Procuradoria-Geral do

    Estado de So Paulo, n. 41, junho/1994, p. 173). 51 Cf. SCHWARTZ, op. cit., p. 41. 52 GROSS, op. cit., p. 295. 53 FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. op. cit., p. 81. 54 Segundo o entendimento de Jos Luiz Bolzan de Morais, a sade relaciona-se com a prpria noo de

    cidadania, que no prescinde, por sua vez, de certa qualidade de vida, que deve objetivar a democracia,

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    Nesse nterim, propugna-se que a sade engloba no s o tratamento de doenas, mas

    sim a busca da qualidade de vida e bem estar, seja atravs do tratamento das

    enfermidades, seja atravs de programas de combate propagao de doenas, seja

    ainda no aspecto atinente proteo e promoo do meio ambiente ecologicamente

    equilibrado e saudvel56.

    Colocando-se o tema como problema hermenutico, cujo trato aponta para a

    anlise de jurisprudncia relacionada questo, teve-se como marco inicial e central o

    exame do conjunto de decises tomadas pelo Supremo Tribunal Federal, em

    17.03.2010, o que corresponde significativamente aos resultados da Audincia Pblica

    sobre Direito Sade, realizada em abril de 2009, naquela Corte. Naquela oportunidade,

    o Supremo Tribunal Federal definiu rumos hermenuticos atuao dos juzes e

    Tribunais Brasileiros, ao indeferir nove recursos interpostos pelo Poder Pblico contra

    decises judiciais que determinaram, ao Sistema nico de Sade (SUS), o fornecimento

    de remdios de alto custo e tratamentos no oferecidos a pacientes com doenas graves,

    ainda que tal concesso estivesse condicionada cautela e a critrios de necessidade, em

    razo do perigo de grave leso ordem administrativa e ao conseqente

    comprometimento do SUS. A Corte compreendeu, ainda, que os medicamentos -

    embora de carter experimental - so sindicveis judicialmente, mesmo que ainda no

    testados pelo Sistema de Sade Brasileiro (SUS). Foi, ademais, identificado o carter

    incompleto e falvel dos protocolos clnicos