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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO PRODIR MARCELO ROCHA MESQUITA JUSTIÇA RESTAURATIVA: UMA OPÇÃO NA SOLUÇÃO DE CONFLITOS ENVOLVENDO VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER SÃO CRISTÓVÃO SE JANEIRO, 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO – PRODIR

MARCELO ROCHA MESQUITA

JUSTIÇA RESTAURATIVA:

UMA OPÇÃO NA SOLUÇÃO DE CONFLITOS

ENVOLVENDO VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR

CONTRA A MULHER

SÃO CRISTÓVÃO – SE

JANEIRO, 2015

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MARCELO ROCHA MESQUITA

JUSTIÇA RESTAURATIVA:

UMA OPÇÃO NA SOLUÇÃO DE CONFLITOS

ENVOLVENDO VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E

FAMILIAR CONTRA A MULHER

Dissertação apresentada como requisito para a

obtenção do título de Mestre, pelo Núcleo de

Mestrado em Direito da Universidade Federal

de Sergipe.

ORIENTADORA: PROF.ª DR.ª DANIELA

DE CARVALHO ALMEIDA DA COSTA

SÃO CRISTÓVÃO – SE

JANEIRO, 2015

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

Mesquita, Marcelo Rocha M582j Justiça restaurativa : uma opção na solução de conflitos envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher / Marcelo Rocha Mesquita ; orientadora Daniela de Carvalho Almeida da Costa. – São Cristóvão, 2015.

167 f. : il. Dissertação (mestrado em Direito) – Universidade Federal

de Sergipe, 2015.

1. Direito de família. 2. Violência contra as mulheres – Justiça restaurativa. 3. Violência familiar. 4. Vítimas de violência familiar - Mulheres. 5. Feminismo. I. Costa, Daniela de Carvalho Almeida da, orient. II. Título.

CDU 347.156

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MARCELO ROCHA MESQUITA

JUSTIÇA RESTAURATIVA: UMA OPÇÃO NA SOLUÇÃO DE CONFLITOS ENVOLVENDO VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

Dissertação apresentada como requisito para a

obtenção do título de mestre em Direito, pelo

Núcleo de Mestrado em Direito da Universidade

Federal de Sergipe.

Aprovada em 25 de fevereiro de 2015.

BANCA EXAMINADORA _________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Daniela de Carvalho Almeida da Costa – UFS

_________________________________________________________________ Prof. Dr. Carlos Alberto Menezes – UFS

_________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Gabriela Maia Rebouças – UNIT

São Cristóvão – SE

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Aos meus filhos Phillipe, Marcelo e Pedro, que ao

longo da minha trajetória servem de inspiração e

motivação na busca pelos ideais em que acredito,

dando a força de que preciso para superar os

obstáculos, seguir em frente sempre e nunca desistir.

Amo muito vocês.

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, a Deus, a quem sou e serei eternamente grato pela sua infinita bondade

para comigo, estando sempre ao meu lado me iluminando e protegendo-me nos momentos

bons e também nos mais difíceis.

À minha mãe, pela vida renunciada em favor dos filhos e ao meu pai, por estar sempre

presente quando mais preciso.

À minha irmã, que me conhece desde sempre e, talvez, mais do que eu a mim mesmo;

e ao meu sobrinho e afilhado, todo meu carinho.

À professora Daniela de Carvalho Almeida da Costa, que sempre esteve presente na

minha vida acadêmica, primeiro como professora, depois como coordenadora do curso de

Direito da Estácio Fase que abriu as portas, para que eu pudesse exercer a docência e, agora,

como orientadora. Exemplo de profissional séria e competente por quem tenho especial

admiração.

Ao Professor Carlos Alberto Menezes, toda a minha reverência pela sua erudição e os

meus sinceros agradecimentos pela grande contribuição na indicação de valiosas leituras

durante as suas aulas do mestrado.

A todos os demais professores do mestrado em Direito da Universidade Federal de

Sergipe, meu agradecimento pelos conhecimentos transmitidos nesses últimos dois anos:

professora Constança Marcondes César, professora Flávia Moreira Pessoa, professora Jussara

Maria Moreno Jacintho, professor Ubirajara Coelho Neto e professor e atual coordenador

Lucas Gonçalves da Silva.

Aos meus colegas do mestrado, que desde o início, mesmo sem saber, incentivaram-

me a superar todas as dificuldades que se colocaram à frente e permitiram que chegasse até o

fim dessa jornada mais preparado, não só intelectualmente, mas também como pessoa. Dentre

esses, dedico uma especial homenagem a minha colega e hoje amiga Samira Daud, por estar

sempre disposta a ouvir e ajudar a todos.

À Catiuscha Pitombo, secretária do mestrado, sempre prestativa.

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Aos alunos do curso de graduação em Direito que integravam o grupo de pesquisa de

“Estudos sobre Violência e Criminalidade na Contemporaneidade” da Universidade Federal

de Sergipe, que tornaram possível a realização da pesquisa de campo, fundamental para esta

dissertação.

A todos os meus alunos e ex-alunos, os quais servem de combustível para que

continue acreditando que, através do ensino, é possível construir um mundo melhor do que o

que temos hoje.

À Sheyla, pelo amor, compreensão e carinho ao longo de todo tempo que estamos

juntos e, mais uma vez, aos meus filhos. Amo todos vocês.

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O crime também representa um relacionamento

dilacerado entre vítima e ofensor. Mesmo se eles não

tinham um relacionamento prévio, o delito cria um

vínculo, que em geral é hostil. Se não resolvido, esse

relacionamento hostil afetará, por sua vez, o bem-estar da

vítima e do ofensor.

(Howard Zehr)

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RESUMO

O presente trabalho tem o objetivo de analisar a insatisfação das mulheres vítimas de

violência doméstica e familiar com a estratégia utilizada por grande parte do movimento

feminista, evidenciada na Lei “Maria da Penha”, de utilização do Direito Penal e seu modelo

retributivo, como instrumento de combate à discriminação e a violência de gênero, bem como

apontar a justiça restaurativa como uma alternativa que atende melhor às expectativas e

necessidades das mulheres. Para tanto, foi realizada uma pesquisa de campo no Juizado de

Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca de Aracaju (SE), onde foram

ouvidas 191 (cento e noventa e uma) vítimas em processo-crime naquele juízo no período de

setembro a novembro de 2013, confirmando a insatisfação das mulheres com a resposta dada

pelo modelo tradicional e o desejo das mesmas de um modelo de justiça criminal discursivo,

característica do modelo restaurativo. Inicialmente, aborda-se a questão da violência de

gênero, tema que vem ganhando maior relevo no Brasil, principalmente a partir da década de

80 com a atuação dos grupos feministas e, mais recentemente, com o advento da lei nº

11.340/2006. Após, demonstra que o referido diploma legal fez uma clara opção pelo modelo

retributivo de justiça criminal, atendendo a uma tendência existente em vários países da

Europa e América Latina, apontando as críticas feitas a este modelo na resolução de conflitos

envolvendo violência de gênero. Na sequência, promove-se a análise e discussão dos dados

colhidos da pesquisa de campo realizada e anteriormente mencionada. Prossegue fazendo uma

análise da justiça restaurativa, como uma nova maneira de enxergar o crime e a justiça,

relacionando tal modelo de justiça criminal com a teoria discursiva desenvolvida pelo filósofo

alemão Jürgen Habermas, além de expor seu conceito, objetivos, princípios e valores,

apontando também as principais diferenças em relação ao modelo tradicional. Segue

apontando as objeções e vantagens da utilização da justiça restaurativa na solução de conflitos

envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher. Por fim, aponta a justiça

restaurativa como uma opção que deve ser colocada à disposição da mulher vítima de

violência doméstica e familiar, por se tratar de um modelo de justiça que atende mais

adequadamente aos anseios da mulher, respeitando a sua autonomia e dignidade, além de abrir

a perspectiva de mudanças reais de comportamento de homens e mulheres nas questões

envolvendo a violência de gênero. PALAVRAS-CHAVE: Violência de Gênero. Feminismo. Justiça Retributiva. Justiça Restaurativa.

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ABSTRACT

This study aims to analyze the dissatisfaction of women victims of domestic and family

violence with the strategy used by most of the feminist movement, evidenced in the Law

"Maria da Penha", to use the criminal law and its retributive model, as a tool anti- discrimination and gender-based violence, and to identify restorative justice as an alternative

to supply better the expectations and needs of women. For this purpose, a field research in the

Domestic and Family Violence against Women Court in Aracaju County (SE), which were heard 191 (one hundred and ninety-one) victims in criminal proceedings in that court from

September to November 2013, confirming the dissatisfaction of women with the answer given by the traditional model and their desire of a discursive criminal justice, characteristic of

restorative model. Initially, the issue of gender violence is approached, an issue that has gained greater importance in Brazil, especially from the 80's with the work of feminist groups

and, more recently, with the advent of Law No. 11.340/2006. After, indicate that the mentioned law made a clear option for retributive model of criminal justice, given an existing

trend in several countries in Europe and Latin America, pointing the criticisms of this model in conflict resolution involving gender violence. Afterwards, foments the analysis and

discussion of the data collected and the field research conducted and previously mentioned.

Further mentioned. Further continues with an analysis of restorative justice as a new way of looking at crime and justice, relating this criminal justice model with the discursive theory

developed by the German philosopher Jürgen Habermas, in addition to exposing the concept, objectives, principles and values, pointing also the main differences between the new and the

traditional model. Follows pointing out objections and advantages of the use of restorative justice in conflict resolution involving domestic violence against women. Finally, points

restorative justice as an option that should be made available to women victims of domestic violence, because It is a model of justice that serves more adequately to women’s concerns,

while respecting their autonomy and dignity, also opening the prospect of real change of men

and women behavior on issues involving gender violence. KEYWORDS: Gender Violence. Feminism. Retributive Justice. Restorative Justice.

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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1- Identificação da zona residencial das respondentes ................................................62 Gráfico 2- Perfil das mulheres pesquisadas quanto à faixa etária ............................................63 Gráfico 3- Perfil das pesquisadas quanto à cor/raça .................................................................64 Gráfico 4- Perfil das pesquisadas quanto ao nível de escolaridade. .........................................65 Gráfico 5- Exercício de atividade remunerada .........................................................................66 Gráfico 6- Informação da faixa salarial das mulheres pesquisadas ..........................................66 Gráfico 7- Existência de dependência econômica ....................................................................67 Gráfico 8- Tipo de moradia ......................................................................................................67 Gráfico 9- Tipo de relação com o agressor ...............................................................................68 Gráfico 10- Tipo de violência sofrida .......................................................................................70 Gráfico 11- Violência doméstica sofrida anteriormente por parte de outro agressor ...............71 Gráfico 12- Violência praticada pela primeira vez pelo agressor contra a mulher pesquisada .................................................................................................................................72 Gráfico 13- Registro da ocorrência de violência doméstica e familiar sofrida pela mulher ....72 Gráfico 14- Autoria da denúncia contra o agressor ..................................................................74 Gráfico 15- Atendimento efetuado por equipe multidisciplinar à mulher vítima de violência doméstica ..................................................................................................................................75 Gráfico 16- Reconciliação da mulher com o agressor após a agressão ....................................76 Gráfico 17- Posição sobre possibilidade de retirar a denúncia contra agressor .......................77 Gráfico 18- Motivos que levaram a mulher a retirar a denúncia/desistir do processo .............79 Gráfico 19- Desejo da vítima pela condenação do agressor .....................................................80 Gráfico 20- Desejo da vítima pela prisão do agressor ..............................................................81 Gráfico 21- Opinião sobre ser consultada pelo juiz antes de proferir a sentença .....................82 Gráfico 22- Posição acerca da participação vítima e agressor na decisão do conflito .............83

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO ......................................................................................................................12

1 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER E O MOVIMENTO FEMINISTA ................................................................................................17 1.1 O Paradigma do Gênero como Forma de Superação do Paradigma Biológico que

Diferencia Homens de Mulheres ..............................................................................................18

1.2 O Movimento Feminista e a Questão da Violência de Gênero ..........................................21

1.3 Compromissos Internacionais em Defesa da Mulher .........................................................25

1.4 Ação Afirmativa: um instrumento na luta contra a discriminação da mulher ....................28

1.5 O Movimento Feminista e a Expansão do Direito Penal: gestores atípicos da moral e função simbólica do direito penal .............................................................................................32

2 REFLEXÕES CRÍTICAS À OPÇÃO RETRIBUTIVA NO COMBATE À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER ...............................37 2.1 A Crise do Modelo Retributivo de Justiça Criminal ..........................................................37

2.2 Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito Penal .......................................43 2.3 A Lei Maria da Penha e sua Clara Opção pelo Modelo Retributivo de Justiça Criminal .. 46 2.4 Crítica ao Modelo Retribucionista-aflitivo Adotado Pela Lei Maria da Penha ..................55

3 PESQUISA DE CAMPO REALIZADA NO JUIZADO DE VIOLÊNCIA

DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER DA COMARCA DE ARACAJU (SE) ...........................................................................................................................................60 3.1 Metodologia ........................................................................................................................60

3.2 Análise E Discussão dos Resultados ..................................................................................62

4 JUSTIÇA RESTAURATIVA: UM NOVO MODELO DE JUSTIÇA CRIMINAL .....85

4.1 A Teoria Discursiva de Habermas e sua Relação com o Modelo Restaurativo de Justiça

Criminal ....................................................................................................................................86

4.2 O Paradigma Restaurativo: conceito e objetivos ................................................................90

4.3 Princípios e Valores que Orientam a Justiça Restaurativa .................................................95

4.4 Diferenças entre o Modelo Restaurativo e o Modelo Retributivo de Justiça Criminal ......98

4.5 Principais Práticas Restaurativas ......................................................................................100

5 A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO UMA OPÇÃO NA SOLUÇÃO DE CONFLITOS ENVOLVENDO VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER ..............................................................................................................................105 5.1 A Vontade da Mulher é Respeitada no Sistema Tradicional de Justiça? .........................106

5.2 Objeções ao Uso da Justiça Restaurativa nos Conflitos Envolvendo Violência de Gênero

109

5.3 Vantagens da Justiça Restaurativa nos Conflitos Envolvendo Violência de Gênero .......114

5.4 Constituição, Justiça Restaurativa E Violência de Gênero...............................................119

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CONSIDERAÇÕES FINAIS ...............................................................................................122

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...............................................................................126

APÊNDICES .........................................................................................................................133

APÊNDICE A- Questionário da Vítima .................................................................................134

APÊNDICE B- Resultado Estatístico Geral ...........................................................................139

ANEXOS................................................................................................................................157

ANEXO 1- Projeto de Lei de 7006/2006 ...............................................................................158 ANEXO 2- Diferenças entre o Modelo Retributivo e o Modelo Restaurativo, segundo Renato Sócrates Gomes Pinto (2005) .................................................................................................164

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12

INTRODUÇÃO

A violência doméstica e familiar contra a mulher é um fenômeno antigo que, nos dias

atuais, vem ganhando ainda mais projeção, em especial pela atuação do movimento feminista

e, também, pelas mudanças ocorridas na sociedade nas últimas décadas, o que levou como

consequência uma ampliação do debate acerca de qual a melhor forma de solucionar tal

problemática ou ao menos minorar os seus efeitos. Tal modalidade de violência é bastante

complexa porque, além de envolver questões de gênero, decorre de conflitos em relações

continuadas, tornando-se imprescindível a observação dos aspectos emocionais e afetivos dali

advindos.

Nesse contexto, o feminismo tem papel de destaque na definição do caminho que vem

sendo tomado para o enfrentamento do problema da violência doméstica e familiar contra a

mulher, não só no Brasil como no resto do mundo. Apesar de mostrar-se como um movimento

heterogêneo, formado por diversas correntes, grande parte do movimento feminista defende a

ideia de que o combate à violência de gênero e a transformação dos papéis sexuais definidos

pela sociedade a homens e mulheres somente vão ser obtidos através do recrudescimento do

tratamento penal dado ao agressor, numa clara opção pelo modelo tradicional de justiça

criminal, baseado na imposição de uma punição. No nosso país, tal estratégia restou mais do

que evidenciada com a edição da Lei nº 11.340/2006, mais conhecida como Lei “Maria da

Penha”, que em seus poucos dispositivos de natureza penal ou processual penal adota

claramente o modelo retributivo.

Entretanto, tal modelo de justiça criminal encontra-se em uma crise de legitimidade

que se estende há décadas, sendo alvo de críticas constantes e da busca de alternativas para a

sua superação. Dentre tais opções, a justiça restaurativa surge como um novo modelo de

justiça criminal mais democrático, pautado na inclusão e no diálogo, além de romper com a

proposta do modelo retributivo, lastreado na ideia de aplicação de uma pena, idealizando um

sistema penal que tem a reparação dos danos e a restauração das relações sociais abaladas

como principais finalidades.

A presente dissertação pretende demonstrar que a perspectiva retribucionista-aflitiva

da Lei “Maria da Penha” não atende aos anseios da maior parte das vítimas de violência

doméstica e familiar, não sendo reconhecida por elas como a melhor resposta a ser dada na

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13 solução do conflito intersubjetivo, bem como que as características do modelo restaurativo

(inclusivo e dialógico) e suas finalidades são mais adequadas ao atendimento das expectativas

e necessidades das mulheres.

Para tanto, dividimos a presente pesquisa em cinco capítulos. O capítulo de abertura

tem início com a introdução pelo movimento feminista do conceito de gênero como forma de

pôr em xeque o sexo como algo inato e, por conseguinte, a visão sexista de mundo,

demonstrando que o processo cultural é fundamental para a dominação masculina. O conceito

de gênero é tido então como uma arma valiosa utilizada pelo feminismo na luta contra o

paradigma biológico, a fim de superar as discriminações sofridas pelas mulheres ao longo dos

anos, que tem como maior e pior exemplo a violência contra a mulher no âmbito doméstico e

familiar. O principal referencial teórico utilizado é a obra de Bourdieu, “A dominação

masculina”.

Ainda, no primeiro capítulo, veremos os compromissos internacionais em defesa da

mulher e a importância destes na luta contra a discriminação e a violência de gênero. Dentre

tais documentos temos a Convenção para Eliminação de todas as formas de Discriminação

sobre a Mulher (CEDAW), que em seu artigo 4º prevê a adoção de ações afirmativas com o

fito de garantir a igualdade material entre homens e mulheres, sendo tal temática também

objeto de abordagem.

O capítulo introdutório se encerra com uma análise crítica da estratégia do movimento

feminista, assim como de outros grupos alvos de discriminação, denominados gestores

atípicos da moral e que ocorreu a partir da década de oitenta do século passado, de utilização

do Direito Penal e sua carga simbólica como forma de combater a discriminação e a violência

de gênero o que levou a uma expansão desse ramo do direito, retratado por Jesus-Sànchez em

seu livro “A expansão do direito penal”. Tal movimento é alvo de críticas, inclusive por parte

de feministas que entendem não ser o tratamento penal instrumento eficaz de pedagogia

político-social.

O segundo capítulo vai tratar sobre a crise de legitimidade do modelo tradicional de

justiça criminal em razão de ser excludente, segregador e estigmatizante, além de não alcançar

as finalidades a que se propôs. Após, fala sobre o neoconstitucionalismo e o fenômeno da

constitucionalização do Direito Penal e sua relação com a questão da violência doméstica e

familiar contra a mulher, que leva à edição da Lei “Maria da Penha”, numa clara opção pelo

modelo retributivo com o enrijecimento do tratamento penal dado ao agressor, como fica

evidente através da análise dos artigos 16, 17 e 41 do citado diploma legal, posicionamento

ratificado pelos tribunais superiores. Como marco teórico do segundo capítulo temos as obras

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14 “A verdade e as formas jurídicas” e “Vigiar e punir”, ambas de Foucault, bem como o modelo

garantista penal desenvolvido por Ferrajoli em “Direito e razão”. O capítulo II termina

expondo as principais críticas à alternativa retribucionista-aflitiva, adotada claramente pela

Lei nº 11.340/2006.

O terceiro capítulo é todo dedicado à pesquisa de campo, realizada no Juizado de

Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca de Aracaju (SE), em que foram

ouvidas, nos meses de setembro, outubro e novembro de 2013, 191 (cento e noventa e uma)

mulheres vítimas de violência doméstica e familiar com processo em trâmite no referido

Juizado. Tal pesquisa foi executada pelos alunos do curso de graduação em Direito que

integravam o grupo de pesquisa de “Estudos sobre Violência e Criminalidade na

Contemporaneidade” da Universidade Federal de Sergipe, sob a coordenação da Professora Doutora Daniela Carvalho Almeida da Costa e, deste pesquisador, como co-coordenador,

tendo como objetivo a comprovação ou não da seguinte hipótese: o modelo retributivo de

justiça criminal, reforçado com a Lei nº 11.340/2006, não atende aos anseios da mulher vítima

de violência doméstica e familiar e que a justiça restaurativa surge como uma opção mais

adequada para atender tais demandas, surgidas dos conflitos envolvendo violência de gênero.

Para alcance dos objetivos traçados, a pesquisa utilizou-se do método indutivo, com o

auxílio da técnica de pesquisa bibliográfica a partir do conhecimento sistematicamente

organizado aplicado ao tema central proposto, fundamentando-se na análise da legislação

pertinente, livros, artigos publicados em periódicos, fontes eletrônicas, entre outros. A

pesquisa realizada foi de natureza quali-quantitativa e semiestruturada, uma vez que se optou

pela elaboração de um questionário que combinou perguntas fechadas, em sua grande maioria,

mas, também, perguntas abertas.

As primeiras questões buscavam traçar o perfil da mulher vítima de violência

doméstica e familiar na cidade de Aracaju com perguntas relacionadas à faixa etária, grau de

escolaridade, raça/cor, capacidade econômica, dentre outras. A segunda parte do questionário

voltou-se para o objeto principal da pesquisa, que é identificar se o modelo de justiça criminal

implementado pela Lei Maria da Penha atende aos interesses das mulheres vítimas de

violência de gênero e quais as suas reais expectativas e necessidades. Os resultados obtidos

foram tabulados e receberam um tratamento estatístico que tornou possível sua análise e

discussão.

Ao final, a pesquisa de campo demonstrou que a Lei nº 11.340/2006, apesar de

apresentar grandes méritos no que se refere às medidas de prevenção e proteção da mulher

vítima de violência, apresenta graves problemas no campo penal, através de uma estratégia

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15 equivocada de grande parte do movimento feminista de recrudescimento do tratamento penal

com o fito de resolver o problema da discriminação e violência contra a mulher. Além disso,

sinalizou o desejo por parte das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar de um

modelo de justiça criminal inclusivo e dialógico, características inerentes ao modelo

restaurativo.

A justiça restaurativa é o tema do capítulo IV da presente dissertação. Inicia-se o

capítulo com uma análise da teoria discursiva desenvolvida pelo filósofo alemão Jürgen

Habermas (1997), em sua obra “Direito e democracia – entre facticidade e validade”. Em sua

teoria do discurso, Habermas (1997) defende a ideia de que o direito somente gozará de

legitimidade se houver a participação dos envolvidos na busca de uma solução adequada ao

conflito, ou seja, ao contrário do modelo tradicional que separa as pessoas em partes,

impedindo assim a possibilidade de comunicação e integração pelo direito, a superação do

conflito deve se dar através do diálogo entre os envolvidos na busca do mínimo de consenso.

A justiça restaurativa, com seu modelo de justiça criminal dialógico, discursivo e

argumentativo, ajusta-se perfeitamente às ideias defendidas por Habermas e, segundo a

pesquisa de campo realizada, atende mais ao desejo da imensa maioria das mulheres vítimas

de violência doméstica e familiar de participar do processo de construção da decisão do

conflito intersubjetivo e que tal solução almejada está muito distante da simples imposição de

uma pena, única resposta possível no modelo retributivo.

Em seguida, o quarto capítulo analisa os conceitos e objetivos delineados pela justiça

restaurativa. Prossegue analisando os princípios e valores que norteiam o modelo restaurativo,

tendo como guia a doutrina de Howard Zehr (2008, 2012), bem como a Resolução 2002/12 do

Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas e a denominada Carta de

Araçatuba, posteriormente, ratificada na Conferência Internacional de Acesso à Justiça por

Meios Alternativos de Resolução de Conflitos, ocorrida em Brasília, datada de 2005. Aponta

ainda as principais diferenças entre o modelo restaurativo e o modelo tradicional ou

retributivo. Encerra-se o capítulo quatro com a análise das principais práticas restaurativas e

suas experiências aqui no Brasil.

Finalmente, o último capítulo tem por escopo apontar o modelo restaurativo de justiça

criminal como uma opção na solução de conflitos envolvendo violência doméstica e familiar

contra a mulher, em razão da complexidade do fenômeno da violência de gênero. Para tanto,

são analisados os argumentos a favor e contra a utilização da justiça restaurativa, apontados

pela doutrina e pelos diversos grupos que compõem o movimento feminista. O referencial

teórico utilizado é a obra “Mujeres y sistema penal” de Elena Larrauri (2008). Além disso, o

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16 último capítulo procura demonstrar a relação entre a nossa Constituição, a justiça restaurativa

e o fenômeno da violência de gênero.

Pretende-se, a partir dessa análise, demonstrar que o modelo retributivo de justiça

criminal não atende às expectativas e necessidades da vítima de violência de gênero, sendo a

justiça restaurativa uma alternativa capaz de atender melhor aos anseios das mulheres.

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17 1 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER E O

MOVIMENTO FEMINISTA

O fenômeno da violência doméstica e familiar contra a mulher é bastante complexo

por estar diretamente relacionado à questão de gênero e ao modelo patriarcal de sociedade que

ainda subsiste e que trazem junto a ideia de inferioridade e submissão da mulher frente ao

homem. As mudanças ocorridas na sociedade nas últimas décadas, como o ingresso da mulher

no ensino médio e superior e, também, no mercado de trabalho, bem como a descoberta de

métodos contraceptivos, alteraram profundamente a condição feminina e, por conseguinte, o

patriarcado passou a ser alvo de questionamentos, levando a um acirramento dos conflitos

geradores da violência doméstica e familiar da qual até então a mulher era uma vítima

silenciosa.

O movimento feminista tem um papel fundamental na luta contra a discriminação da

mulher e, em especial, na questão da violência de gênero, principalmente a partir da década de

oitenta. A introdução da ideia de gênero, pelo movimento feminista, tem a clara intenção de se

contrapor ao determinismo biológico que sustenta uma visão androcêntrica de mundo com

base nas características inerentes a homens e mulheres, demonstrando que é o processo

cultural o grande responsável pela dominação masculina. Sendo assim, o conceito de gênero é

tido então como uma arma valiosa utilizada pelo feminismo na luta contra o paradigma

biológico, a fim de superar as discriminações sofridas pelas mulheres ao longo dos anos, que

têm, como maior e pior exemplo, a violência contra a mulher no âmbito doméstico e familiar.

Deve-se, ainda, à atuação do movimento feminista a elaboração e aprovação de uma

série de compromissos internacionais em defesa da mulher na luta contra a discriminação e a

violência de gênero, que culminaram aqui, no Brasil, com a edição da Lei “Maria da Penha”. Dentre tais instrumentos internacionais, temos a Convenção para Eliminação de todas as

formas de Discriminação sobre a Mulher (CEDAW) que prevê a adoção de ações afirmativas

com o fito de garantir a igualdade material entre homens e mulheres, assim como a

Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica, que trata,

especificamente, da questão da violência de gênero.

Em relação ao fenômeno da violência de gênero, percebe-se que uma estratégia de

grande parte do movimento feminista, assim como de outros grupos alvo de discriminação,

denominados gestores atípicos da moral, é de utilização do Direito Penal e sua carga

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18 simbólica como forma de combater a discriminação e a violência de gênero o que levou a

uma expansão desse ramo do direito, alvo de críticas, inclusive por parte de feministas que

entendem não ser o tratamento penal instrumento eficaz de pedagogia político-social.

1.1 O PARADIGMA DO GÊNERO COMO FORMA DE SUPERAÇÃO DO PARADIGMA BIOLÓGICO QUE DIFERENCIA HOMENS DE MULHERES

As diferenças anátomo-fisiológicas que diferenciam o “macho” da “fêmea”, ou seja, a

divisão biológica existente entre ambos, até hoje é utilizada como argumento científico para

justificar uma suposta superioridade do homem frente à mulher. Esse determinismo biológico

busca em seu discurso afastar os aspectos culturais e fornecer lastro para uma visão

androcêntrica de mundo.

Ao homem são atribuídas qualidades tais como a razão, a virilidade, a agressividade;

enquanto a mulher é vista como um ser dominado pela emoção, frágil e sensível. O sexo

masculino é identificado como forte e superior em relação à mulher, sendo que esta mesma

muitas vezes assim se enxerga. “Os pares de qualidades contrapostas atribuídas aos dois sexos

são instrumentos simbólicos da distribuição de recursos entre homens e mulheres e das

relações de poder existentes entre eles” (BATISTA, 2009, p.12). É uma forma de violência

simbólica invisível e, portanto, naturalizada, sendo aceita indiscriminadamente, onde a visão

de mundo formulada pelo dominador (homem) produz uma mistificação que garante a

complacência do dominado (mulher).

Nesse sentido, Bourdieu (2005, p. 21) afirma que:

A diferença biológica entre os sexos, isto é, entre o corpo masculino e o corpo feminino, e, especificamente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais, pode assim ser vista como justificativa natural da diferença socialmente construída entre os gêneros e, principalmente, da divisão social do trabalho. (O corpo e seus

movimentos, matrizes de universais que estão submetidos a um trabalho de construção social, não são nem completamente determinados em sua significação, sobretudo sexual, nem totalmente indeterminados, de modo que o simbolismo que lhes é atribuído é, ao mesmo tempo, convencional e “motivado”, e assim percebido

como quase natural). Dado o fato de que é o princípio de visão social que constrói a diferença anatômica e que é esta diferença socialmente construída que se torna o fundamento e a caução aparentemente natural da visão social que a alicerça, caímos em uma relação circular que encerra o pensamento na evidência de relações de

dominação inscritas ao mesmo tempo na objetividade, sob forma de divisões objetivas, e na subjetividade, sob forma de esquemas cognitivos que, organizados segundo essas divisões, organizam a percepção das divisões objetivas.

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O sexismo, crença na superioridade masculina em razão de suas características,

manifesta-se não só na divisão social do trabalho, mas, também, em privilégios presentes em

todas as demais esferas: econômica, política, social, cultural. Segundo Mariana Guimarães

Rocha da Cunha Bueno (2011, p. 15), “é, enfim, a visão androcêntrica que faz da

diferenciação morfológica dos corpos o fundamento para a subjugação da mulher ao poder

masculino, fazendo crer que os critérios da biologia são imunes aos processos culturais”.

O conceito de gênero foi introduzido no final do século XX como uma resposta ao

determinismo biológico que até então prevalecia no processo de diferenciação e desigualdade

entre o sexo masculino e feminino. O movimento feminista foi que desenvolveu o conceito de

gênero em oposição à ideia de sexo como algo inato e, por conseguinte, a visão androcêntrica

de mundo, demonstrando que o processo cultural é fundamental para a dominação masculina.

Ao negar o paradigma biológico e dar ênfase ao paradigma do gênero, as feministas tentavam fugir do determinismo que congela o status quo, abrindo caminho às transformações que poderiam subverter a então corrente ordem de construção social da diferença, dominada pelo androcentrismo. (BUENO, 2011, p. 18).

A expressão gênero, para as ciências sociais, refere-se aos caracteres socioculturais

destinados aos homens e mulheres e definidos pelo seu meio social. Portanto, ao contrário do

sexo que é inato, o gênero é resultado de uma construção social. Como coloca Wânia Pasinato

Izumino (2004, p. 84):

A definição primeira dessa categoria para as ciências sociais seria a oposição que se estabelece entre sexo biológico e sexo social, isto é, enquanto sexo refere-se às diferenças biológicas e anatômicas entre homens e mulheres, gênero ocupa-se em designar as diferenças sociais e culturais que definem os papéis sexuais destinados a homens e mulheres em cada sociedade.

Para Saffioti (1992, p. 183), “o conceito de gênero se situa na esfera social, diferente

do conceito de sexo, posicionado no plano biológico”.

Segundo Scott (1989, p. 21), “o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais

baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de

significar as relações de poder”. Enquanto elemento constitutivo, o gênero pressupõe a

construção social dos indivíduos relacionada à ideia de homem e mulher, onde é de vital

importância a difusão de símbolos encontrados nas mais diversas áreas, como a religião, a

educação e o direito.

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Por outro lado, considerando que a ideia de gênero está diretamente relacionada ao

papel definido pela sociedade a ser exercido por cada um dos sexos, as relações entre os

gêneros masculino e feminino envolvem também relações de poder em que há um dominante

e um dominado. Segundo Pierre Bourdieu (2005, p. 20), em sua obra “A Dominação

Masculina”, “a diferença anatômica entre os órgãos sexuais, pode assim ser vista como

justificativa natural da diferença socialmente construída entre os gêneros e, principalmente, da

divisão social do trabalho”. Assim como a definição do papel sexual de cada um dos gêneros

não está relacionada a características anatômicas dos órgãos sexuais, certo é, também, que a

relação de poder encontra-se distribuída de forma desigual, ocupando a mulher uma posição

subalterna em relação ao homem. Com isso:

As regularidades da ordem física e da ordem social impõem e inculcam as medidas que excluem as mulheres das tarefas mais nobres (conduzir a charrua, por exemplo), assinalando-lhes lugares inferiores (a parte baixa da estrada ou do talude), ensinando-lhes a postura correta do corpo (por exemplo, curvadas, com os braços fechados sobre o peito, diante de homens respeitáveis), atribuindo-lhes tarefas penosas, baixas e mesquinhas (são elas que carregam o estrume, e na colheita das azeitonas, são elas que as juntam no chão, com as crianças, enquanto os homens manejam a vara para fazê-las cair das árvores), enfim, em geral tirando partido, no sentido dos pressupostos fundamentais, das diferenças biológicas que parecem assim estar à base das diferenças sociais. (BOURDIEU, 2005, p. 34)

Ao introduzir a ideia de gênero, o movimento feminista abriu a perspectiva de que a

mudança do status quo exista, uma vez que coloca em xeque o determinismo biológico que

enaltece os caracteres masculinos em detrimento dos atributos do sexo feminino.

Se a distinção de gênero resulta de uma construção social, deduzem as feministas que as transformações nesse processo de construção poderiam determinar o equilíbrio entre homens e mulheres, ou mesmo a inversão da hierarquia estabelecida. Dessa forma, a concepção de gênero como categoria passível de transformação – dado seu caráter cultural e não inato – tem se prestado à política feminista como premissa básica. (BUENO, 2011, p. 18)

O conceito de gênero é tido então como uma arma valiosa utilizada pelo feminismo na

luta contra o paradigma biológico, a fim de superar as discriminações sofridas pelas mulheres

ao longo dos anos, que tem como maior e pior exemplo a violência contra a mulher no âmbito

doméstico e familiar.

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1.2 O MOVIMENTO FEMINISTA E A QUESTÃO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO

O movimento feminista, responsável pela introdução do conceito de gênero, pode ser

definido como um movimento social que busca uma melhoria das condições de vida das

mulheres, em razão das desvantagens impostas pela sociedade, em relação aos homens. As

feministas denunciam que ao longo da história o masculino tem sido privilegiado, enquanto o

feminino desvalorizado. Atestam também que o poder foi e continua sendo

predominantemente masculino e seu objetivo primeiro foi a dominação das mulheres,

principalmente de seus corpos (NARVAZ; KOLLER, 2006, p. 648).

O feminismo passou por diversas fases ou gerações, também chamadas ondas do

feminismo, sendo que tais fases se constituíram em épocas distintas em razão do contexto

sociopolítico de cada tempo, não havendo atualmente uma unicidade no movimento feminista,

mas uma pluralidade, coexistindo as diversas gerações por que passou o movimento.

A primeira onda do feminismo, que representa o surgimento do movimento, nasceu

com o movimento liberal de luta das mulheres pela igualdade política e social, daí porque é

denominado estágio da igualdade ou feminismo liberal. O movimento buscava o

reconhecimento de direitos políticos e civis que até então pertenciam unicamente aos homens.

Nesta fase teve bastante relevo o movimento sufragista que buscava garantir o direito ao voto.

Defendia a ideia de não haver diferenças entre homens e mulheres, não se justificando,

portanto, um sistema normativo em que haja distinções de tratamento com o fito de proteger a

mulher, exigindo uma total neutralidade da lei em relação ao gênero. A crítica feita ao

feminismo liberal é que ele somente alcançou a igualdade formal, não sendo capaz de

promover uma efetiva igualdade entre os gêneros.

Em que pese tal crítica, Mariana Guimarães Rocha da Cunha Bueno (2011, p. 39)

assim se manifesta:

Embora o feminismo liberal seja hodierna e frequentemente descrito em termos negativos, dadas as limitações da pretendida igualdade formal, é de se observar que esta corrente ainda representa a maior influência que o feminismo alcança no Direito e que, muitas vezes, a garantia da igualdade entre homens e mulheres já representa um mínimo avanço quantitativo na condição de vida de muitas mulheres.

A segunda geração surge na década de 70, em especial nos Estados Unidos e na

França. Enquanto as feministas americanas denunciavam a opressão masculina e continuavam

defendendo a busca pela igualdade, as francesas postulavam o reconhecimento das diferenças

entre homens e mulheres, a fim de que fosse dada uma maior visibilidade às especificidades

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22 inerentes ao universo feminino. Buscava-se “uma especificidade universal feminina que

unisse todas as mulheres em torno de um ideal comum a ser alcançado por todas elas” (IZUMINO, 2004, p. 82). No Direito, tal fase, denominada estágio da diferença, entende que

se homens e mulheres encontram-se em patamares distintos, a simples igualdade formal não

equaciona a desvantagem do gênero feminino em relação ao masculino, devendo a legislação

conceder tratamento diferenciado à mulher, a fim de se obter uma igualdade material.

A terceira onda ressalta não só as diferenças entre homens e mulheres, mas também a

diversidade entre as próprias mulheres, por isso é chamada estágio da diversidade. As

feministas dessa geração se opõem à ideia defendida pela geração anterior de uma essência

comum unindo todas as mulheres, ao contrário, partem da ideia de que fatores como raça,

cultura, classe social, orientação sexual diferem as experiências entre si. “Dada essa

complexidade, faz sentido repartir a estratégia feminista em múltiplas frentes de ação, de

forma a produzir reformas legais e mobilizar políticas públicas que atendam à multiplicidade

de perspectivas femininas” (BUENO, 2011, p. 44).

Além das ondas por que passou o feminismo, a heterogeneidade do movimento

também é percebida através das diversas correntes teóricas que se desenvolveram dentro do

movimento. É importante que se diga que tanto as fases, quanto os referenciais teóricos do

movimento feminista no Brasil foram importados das discussões travadas pelas feministas

francesas, americanas e inglesas.

Segundo Wânia Pasinato Izumino (2004), as principais correntes teórico-analíticas

surgidas no movimento feminista foram a do patriarcado, a marxista e a psicanalítica. As

feministas do patriarcado defendem a ideia de que a dominação dos homens frente às

mulheres deve-se ao modelo patriarcal ainda vigente na sociedade. Segundo o feminismo

marxista, a esfera de produção (voltada aos homens) e a esfera da reprodução (própria das

mulheres) levaria à divisão sexual do trabalho e consequente subordinação das mulheres

frente aos homens, tal teoria representou um avanço pelo fato de demonstrarem que

capitalismo e patriarcado operam simultaneamente na dominação da mulher pelo homem. A

corrente psicanalítica propõe uma aproximação do feminismo com a psicanálise, enfatizando

a construção do sujeito a partir de suas experiências, da linguagem e da interpretação que

fazem dos gêneros (IZUMINO, 2004, p. 82).

Entretanto, para fins da nossa pesquisa, a principal corrente teórico-analítica é a

voltada para a análise da supremacia masculina a partir do patriarcado, pois a ele foi atribuída

a gênese da opressão de gênero e, por conseguinte, a violência contra a mulher. Entende-se

por patriarcado “a manifestação e institucionalização do domínio masculino sobre as mulheres

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23 e crianças da família, e o domínio que se estende à sociedade em geral” (MENDES, 2014,

p.88). O domínio do homem baseia-se numa suposta inferioridade biológica da mulher e dos

caracteres atribuídos ao sexo masculino, que tornaria o homem mais apto a ocupar o espaço

público, enquanto que às mulheres caberia a esfera privada. Esse sistema de dominação é

mantido e reforçado pelas mais diversas instituições da sociedade política e civil como a

família, a escola e a religião.

Para as teóricas do patriarcado toda a explicação da dominação das mulheres pelos homens reside no modelo do patriarcado que se baseia na separação dicotômica das esferas pública e privada. Dentro dessa perspectiva, a esfera pública é definida por atributos como: espaço de produção, das decisões políticas e de circulação da economia, decisões consideradas racionais, as quais os homens estariam mais aptos a adotar. Por oposição, constitui-se a esfera privada, definida como o mundo feminino da família e da sexualidade; é também a esfera da reprodução – como o cuidado e a educação dos filhos – que resumem a paixão e a emoção na sua execução. A essa esfera estariam confinadas as mulheres. (IZUMINO, 2004, p. 81)

Para o modelo patriarcal, portanto, o espaço público é o lócus masculino por

excelência em razão dos papéis sociais que são atribuídos (trocas comerciais, relações

políticas), enquanto às mulheres foi reservado o ambiente privado também em razão das

funções sociais a elas atribuídas (relações domésticas e familiares). É certo que a sociedade

moderna passou por uma série de transformações, que repercutiram também nas relações,

envolvendo homens e mulheres alterando, igualmente, a configuração do pensamento

patriarcal tradicional, entretanto, ainda persiste, em nossa sociedade, a ideia de submissão da

mulher frente ao homem, falando-se hoje em um patriarcado moderno.

Deve-se ao feminismo, em suas mais diversas vertentes, o combate à violência de

gênero decorrente principalmente da ideologia patriarcal que, apesar de alvo constante de

reflexão, persiste, sendo a superioridade do gênero masculino frente ao feminino estimulada e

a agressividade do homem frente à mulher também. O homem revela essa agressividade,

muitas vezes como forma de afirmação das qualidades impostas pela sociedade para o gênero

masculino, tanto no espaço público quanto privado, contra a mulher, visando à manutenção da

relação de dominação-subordinação.

É nesse contexto que se insere a questão da violência doméstica e familiar contra a

mulher, violência esta que se acirrou ainda mais nas últimas décadas, em razão das profundas

mudanças ocorridas na sociedade:

A maior mudança está, sem dúvida, no fato de que a dominação masculina não se impõe mais com a evidência de algo que é indiscutível. Em razão, sobretudo, do enorme trabalho crítico do movimento feminista que, pelo menos em determinadas áreas do espaço social, conseguiu romper o círculo do reforço generalizado, esta

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evidência passou a ser vista, em muitas ocasiões, como algo que é preciso defender ou justificar, ou algo de que é preciso se defender ou se justificar (BOURDIEU, 2005, p. 106).

Prossegue o antropólogo e sociólogo francês:

O questionamento das evidências caminha pari passu com as profundas transformações por que passou a condição feminina, sobretudo nas categorias sociais mais favorecidas: é o caso, por exemplo, do aumento do acesso ao ensino médio secundário e superior, ao trabalho assalariado e, com isso, à esfera pública; é também o distanciamento em relação às tarefas domésticas e às funções de reprodução (relacionado com o progresso e o uso generalizado de técnicas anticonceptivas e à redução de tamanho das famílias); é, sobretudo, o adiamento da idade do casamento e da procriação, a abreviação da interrupção da atividade profissional por ocasião do nascimento de um filho, e também a elevação dos percentuais de divórcio e queda dos percentuais de casamento. (BOURDIEU, 2005, p. 107)

Tais mudanças colocaram em xeque a dominação masculina e, consequentemente,

levaram a conflitos, principalmente no ambiente doméstico, que ganharam uma notoriedade

pública antes inexistente, como bem coloca Maria Berenice Dias (2007, p. 17):

A evolução da Medicina, com a descoberta de métodos contraceptivos, bem como as lutas emancipatórias promovidas pelo movimento feminista levaram à redefinição do modelo ideal de família. A mulher, ao se integrar no mercado de trabalho, saiu do lar, impondo ao homem a necessidade de assumir responsabilidades dentro de casa. Essa mudança acabou provocando o afastamento do parâmetro preestabelecido, terreno fértil para conflitos.

A introdução do conceito de gênero, pelo movimento feminista, não por acaso

coincidiu com o surgimento, em meados da década de setenta, com um movimento

denominado criminologia crítica em contraposição à criminologia tradicional de caráter

etiológico-determinista que teve como pioneiro Lombroso.

A criminologia crítica passa a investigar, não a figura do delinquente, mas o processo

de criminalização que recai preferencialmente sobre as camadas sociais mais vulneráveis, ou

seja, o processo de criminalização está diretamente relacionado às relações de poder que se

estabelecem na sociedade, determinando de forma desigual os riscos e as imunidades diante

do sistema penal, penalizando os mais pobres e criando mecanismos de imunização aos

pertencentes das elites dominantes. “É neste mesmo contexto das relações de dominação e

exploração, que estabelecem vantagens e desvantagens, na medida da força ou

vulnerabilidade dos sujeitos que se verifica a construção das diferenças de gênero” (BUENO, 2011, p. 28).

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Enquanto o sistema de justiça criminal incide prioritariamente no espaço público,

como forma de controle social, e este espaço ainda é dominado pelos homens, como antes

visto, tem-se por óbvio uma população carcerária predominantemente masculina, em sua

grande maioria pertencente às camadas mais pobres. As mulheres, por sua vez, a quem foi

reservado o ambiente privado, sofrem uma outra forma de controle social, dito informal,

realizado no âmbito doméstico pela família (seja pelos pais, pelo cônjuge ou companheiro), na

escola, na igreja, no trabalho e mesmo no espaço público, a fim de que cumpra com o papel

social a elas atribuído, atuando o sistema de justiça criminal de forma subsidiária.

O Estado, portanto, transfere para o homem, no âmbito doméstico, o poder de manter o

controle social, fortalecendo o modelo patriarcal, ou seja, o sistema penal cria e reforça as

diferenças de gênero, autorizando implicitamente, inclusive, o uso da força por parte do

macho para fazer valer sua autoridade.

A violência conjugal é vista pelo feminismo como expressão radical da relação hierárquica entre os sexos no núcleo familiar. Nessa relação assimétrica, o homem ocupa a posição de mando, podendo fazer valer a sua autoridade para punir exigir e, por vezes agredir os outros componentes da família. A mulher, cujo papel é lidar com as tarefas domésticas e cuidar dos filhos, está subordinada aos desígnios do homem (GREGORI, 1992, p. 123).

Entretanto, a intervenção do Direito Penal e Processual Penal no espaço doméstico,

que até pouco tempo atrás era vedada pela doutrina clássica em respeito à ideia de

preservação da família passa a ser aceita tendo como fundamentos a redefinição e a

especificação dos direitos humanos, amplamente positivados em compromissos internacionais

e no sistema jurídico-constitucional dos Estados. Em relação às mulheres, observa-se que as

modificações ocorridas na sociedade com o ingresso das mesmas no mercado de trabalho e na

política permitiram que “os Estados planificassem uma positivação dos direitos humanos para

elas de combate ao modelo patriarcal existente” (GUIMARÃES; MOREIRA, 2014, p. 72).

1.3 COMPROMISSOS INTERNACIONAIS EM DEFESA DA MULHER

Através da mobilização do movimento feminista em sua luta pela superação das

desigualdades entre homens e mulheres, bem como no combate à violência de gênero, são

editados compromissos internacionais, buscando a eliminação de todas as formas de

discriminação e violência contra a mulher.

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A Primeira Conferência Mundial sobre a Mulher ocorreu no México, em 1975, e teve

como resultado a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra

a Mulher (CEDAW), aprovada pelas Nações Unidas, em 18 de dezembro de 1979, através da

resolução nº 34/180. Tal compromisso internacional representou um marco na luta contra a

discriminação da mulher e combate ao patriarcado.

O artigo 1º1, ao definir discriminação contra a mulher, estabelece um parâmetro legal

que deve ser seguido por todos os países signatários. Ademais, ao definir discriminação como “toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado

prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher em todo e qualquer

campo” inclui também o espaço doméstico e não só a esfera pública, o que representa um

duro golpe no modelo patriarcal de família.

Já o artigo 2° da CEDAW2, deixa claro que o objetivo de se buscar uma igualdade não

meramente formal, mas também material, ao estabelecer que os Estados-partes adotem no

menor prazo possível medidas específicas no sentido de superação das discriminações contra

as mulheres.

O artigo 4º da Convenção, por sua vez, prevê que a “adoção pelos Estados-partes de

medidas especiais de caráter temporário, destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o

homem e a mulher não se considerará discriminação na forma definida nesta Convenção, mas

de nenhuma maneira implicará, como consequência, a manutenção de normas desiguais ou

separadas; essas medidas cessarão quando os objetivos de igualdade, de oportunidade e

1 Art. 1º - Para fins da presente Convenção, a expressão "discriminação contra a mulher" significará toda

distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo. 2 Artigo 2º - Os Estados-partes condenam a discriminação contra a mulher em todas as suas formas, concordam

em seguir, por todos os meios apropriados e sem dilações, uma política destinada a eliminar a discriminação contra a mulher, e com tal objetivo se comprometem a: a) consagrar, se ainda não o tiverem feito, em suas Constituições nacionais ou em outra legislação apropriada, o princípio da igualdade do homem e da mulher e assegurar por lei outros meios apropriados à realização prática desse princípio; b) adotar medidas adequadas, legislativas e de outro caráter, com as sanções cabíveis e que proíbam toda discriminação contra a mulher; c) estabelecer a proteção jurídica dos direitos da mulher em uma base de igualdade com os do homem e garantir, por meio dos tribunais nacionais competentes e de outras instituições públicas, a proteção efetiva da mulher contra todo ato de discriminação; d) abster-se de incorrer em todo ato ou prática de discriminação contra a mulher e zelar para que as autoridades e instituições públicas atuem em conformidade com esta obrigação; e) tomar as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher praticada por qualquer pessoa, organização ou empresa; f) adotar todas as medidas adequadas, inclusive de caráter legislativo, para modificar ou derrogar leis, regulamentos, usos e práticas que constituam discriminação contra a mulher; g) derrogar todas as disposições penais nacionais que constituam discriminação contra a mulher.

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27 tratamento houverem sido alcançados”. Trata-se da possibilidade de utilização da ação

afirmativa ou discriminação positiva que consiste na criação de políticas públicas de caráter

transitório para superação das discriminações sofridas pelo sexo feminino e obtenção da

igualdade entre homens e mulheres. No Brasil, a Lei “Maria da Penha” foi influenciada por

esta tônica, tanto é assim que em seu preâmbulo faz menção expressa a Convenção sobre a

Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher.

O artigo 5º, da CEDAW, obriga os Estados signatários a adotarem medidas políticas

para modificar padrões socioculturais, visando à eliminação de práticas consuetudinárias e de

qualquer índole baseadas na diferença de gênero o que representa também um avanço.

Apesar de representar uma conquista do movimento feminista, a Convenção sobre a

Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) foi o

compromisso internacional de direitos humanos que recebeu o maior número de reservas por

parte dos países signatários, em especial em relação ao artigo 16, que dispõe sobre a igualdade

entre homens e mulheres na parte relativa ao direito de família, fato que somente comprova a

resistência ainda forte do modelo do patriarcado que se baseia na dicotomia das esferas

pública e privada. O Brasil, inclusive, somente aderiu à Convenção em janeiro de 1984 e,

mesmo assim, com reservas quanto à parte relativa ao direito de família, somente ratificando,

plenamente, em 1994.

A Segunda Conferência Mundial da Mulher, ocorrida em Nairóbi no ano de 1985,

proclama estratégias afirmativas para o sexo feminino, para os anos de 1986 a 2000.

Em 1993, na cidade de Viena, aprovou-se a Declaração 48/104, de 20/12/1993, da

Assembleia Geral das Nações Unidas sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher - tema

não abordado expressamente pela Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de

Discriminação contra a Mulher, em cujo artigo 1º3 define-se essa modalidade de violência de

gênero, reconhecendo que ela pode se dar tanto no espaço público, como na esfera privada.

Além disso, pela primeira vez utilizou-se a expressão “os direitos das mulheres são direitos

humanos”.

Segundo Alice Bianchini (2013, p. 118):

Compreender a discriminação de gênero como insulto aos direitos humanos implica a possibilidade de os Estados tornarem-se atores atuantes na contenção desses abusos, bem como de responsabilizá-los, sejam eles perpetrados na esfera pública ou

3 Art. 1º - Para os fins da presente Declaração, a expressão “violência contra as mulheres” significa qualquer ato

de violência baseado no gênero do qual resulte, ou possa resultar, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico para as mulheres, incluindo as ameaças de tais atos, a coação ou a privação arbitrária de liberdade, que ocorra, quer na vida pública, quer na vida privada.

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na esfera privada. Ademais, permite que se tomem as contas dos governos acerca de medidas preventivas para elidir as violações.

Em seu artigo quarto4, a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher

nega aos Estados o direito de evocar qualquer tipo de consideração cultural ou religiosa que

justifique a violência de gênero, impondo aos Estados-partes a estabelecer políticas tendentes

à eliminação dessa modalidade de violência.

No ano seguinte, na cidade de Belém do Pará, realizou-se a Convenção Interamericana

para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica, conhecida como “Convenção de

Belém do Pará”, tendo sido adotada pela Organização das Nações Unidas em 1994. Tal

documento, logo em seu art. 1º, conceitua a violência contra mulher como “qualquer ato ou

conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico

à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”, definição muito próxima da contida

na Declaração 48/104 da ONU. A violência contra a mulher é tratada como grave problema de

saúde pública. A Convenção foi ratificada pelo Brasil em 27/11/1995 (DIAS, 2007, p. 29).

Um ano depois é publicada a Convenção de Beijing, que planifica diversas medidas

relacionadas com o combate à pobreza e aos conflitos armados, ao mesmo tempo em que se

propugnam estratégias de educação, saúde e economia para a promoção das mulheres.

Todos esses compromissos internacionais fazem com que a questão da violência

baseada no gênero ganhe destaque e estimulam a criação por parte dos Estados de um sistema

jurídico-constitucional de proteção aos interesses das mulheres, como ocorreu aqui no Brasil

com a Lei Maria da Penha.

1.4 AÇÃO AFIRMATIVA: UM INSTRUMENTO NA LUTA CONTRA A DISCRIMINAÇÃO DA MULHER

Como visto antes, a Convenção para Eliminação de todas as formas de Discriminação

sobre a Mulher (CEDAW), em seu artigo 4º, prevê a adoção de ações afirmativas com o fito

de eliminar as discriminações que recaem sobre o sexo feminino e garantir a igualdade entre

4 Art. 4º - Os Estados devem condenar a violência contra as mulheres e não devem invocar quaisquer costumes,

tradições ou considerações religiosas para se furtar às suas obrigações quanto à eliminação da mesma. Os Estados devem prosseguir, através de todos os meios adequados e sem demora, uma política tendente à eliminação da violência contra as mulheres e, com este objetivo...

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29 homens e mulheres. Isso porque, ao longo da história, não só a mulher, mas também outros

grupos em razão da raça, classe social, religião foram e ainda são alvos das mais diversas

formas de discriminação.

Segundo Flávia Piovesan (2008, p. 888):

Testemunha a história que as mais graves violações aos direitos humanos tiveram como fundamento a dicotomia do ‘eu versus o outro’, em que a diversidade era captada como elemento para aniquilar direitos. Vale dizer, a diferença era visibilizada para conceber o ‘ outro’ como um ser menor em dignidade e direitos, ou, em situações limites, um ser esvaziado mesmo de qualquer dignidade, um ser descartável, objeto de compra e venda (vide a escravidão) ou de campo de extermínio (vide o nazismo). Nesse sentido, merecem destaque as violações da escravidão, do nazismo, do sexismo, do racismo, da homofobia, da xenofobia e outras práticas de intolerância.

A igualdade formal, por sua vez, não é suficiente para corrigir tais distorções

existentes na sociedade, uma vez que tratam o indivíduo de forma genérica e abstrata,

fazendo-se necessária uma resposta específica e diferenciada em relação a determinados

sujeitos em razão de seu passado histórico, suas peculiaridades e particularidades. “Daí a

necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não

produza, alimente ou reproduza as desigualdades” (SANTOS, 2003, p.56), ou seja, a obtenção

de uma igualdade substantiva ou material.

A expressão affirmative action surgiu nos Estados Unidos na década de 60. Entretanto,

as primeiras ações de discriminação positiva apareceram na Índia ainda na década de

quarenta, intituladas de medidas afirmativas, com o objetivo de colocar no parlamento indiano

representantes das castas inferiores. Nos Estados Unidos, contudo, foi que as ações

afirmativas ganharam repercussão na luta contra o racismo existente no país, em especial

contra os negros.

Segundo Carmem Lúcia Antunes Rocha (1996, p. 286), as ações afirmativas são:

Uma forma para se promover a igualdade daqueles que foram e são marginalizados por preconceitos encravados na cultura dominante na sociedade. Por esta desigualação positiva promove-se a igualação jurídica efetiva; por ela afirma-se uma fórmula jurídica para se provocar uma efetiva igualação social, política, econômica no e segundo o Direito, tal como assegurado formal e materialmente no sistema constitucional democrático. A ação afirmativa é, então, uma forma jurídica para se superar o isolacionismo ou a diminuição social a que se acham sujeitas as minorias.

Podem-se definir, então, as ações afirmativas como um conjunto de políticas públicas

de caráter transitório, fundadas na igualdade material e não meramente formal, adotadas com

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30 a finalidade de combate às discriminações sofridas historicamente pelas minorias (mulheres,

negros, deficientes), corrigindo, assim, as desigualdades sociais existentes. Nesse sentido,

Alice Bianchini (2013, p. 122) explica que:

A máxima tratar os iguais de modo igual e os desiguais de modo desigual representa um reconhecimento de que os indivíduos que se estabelecem no mundo em condições desiguais não podem, por mera declaração de vontade, obter condição de vida equivalente aos que gozam de vantagens, sejam elas quais forem. Daí a necessidade de ações afirmativas, ou discriminações positivas ou ações positivas, consubstanciadas em políticas públicas que objetivem concretizar materialmente o discurso relevante, porém vazio, de igualdade, com o objetivo de mitigar os efeitos das discriminações que heranças de costumes passados insistem em manter no presente, sem nenhum argumento ético que as justifiquem.

Tais ações, além do caráter transitório, devem se estabelecer não só visando aliviar a

carga de um passado de discriminação, mas também buscar promover a transformação social,

ou seja, não deve ter um caráter tão só retrospectivo, como prospectivo. Além disso, tem

natureza excepcional, uma vez que, ao alargar garantias de um determinado grupo, limitam

direitos dos demais.

Além da CEDAW, a Constituição Federal de 1988 e a legislação infraconstitucional

pátria estabelecem importantes dispositivos que traduzem a busca da igualdade material da

mulher frente ao homem, através da utilização das também chamadas discriminações

positivas. A Constituição Federal contém vários dispositivos, visando a efetivar a igualdade

material, já no artigo 3°5, que elenca os objetivos fundamentais da República Federativa do

Brasil estão: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, mediante a redução das

desigualdades sociais e a promoção do bem de todos, sem qualquer forma de discriminação,

inclusive em relação ao sexo. Prevê ainda expressamente a Constituição, em seu artigo 7º6,

em relação às mulheres, a proibição de qualquer forma de discriminação no mercado de

trabalho.

5 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

6 Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

[...]

XXX - proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil;

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Na legislação infraconstitucional, podemos apontar, como primeiro exemplo de ação

afirmativa voltada para as mulheres, a Lei n. 9504/1997, denominada lei de cotas políticas,

que prevê que 30% dos candidatos registrados devem pertencer a um dos sexos, faltando,

muitas vezes, mulheres para se candidatarem. Isso ocorre em razão do modelo patriarcal que

ainda persiste e que reserva o espaço público e, consequentemente, a política, para o homem.

A Lei n° 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, também é um exemplo de

ação afirmativa destinada ao empoderamento das mulheres, circunscrita aos casos de

violência doméstica e familiar. Tal diploma legal traz em seu bojo normas de Direito Penal e

Processual Penal, além de outras normas de natureza diversa que procuram criar uma rede de

apoio à mulher vítima de violência de gênero. Ocorre que, os poucos dispositivos de natureza

repressiva são os que encontram maior destaque e aplicabilidade.

Sobre o tema, discorre Flávia Piovesan (2008, p. 890):

No âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, destacam-se duas

estratégias: a) a estratégia repressiva-punitiva (que tem por objetivo punir, proibir e

eliminar a discriminação); e b) a estratégia promocional (que tem por objetivo promover, fomentar e avançar a igualdade). Na vertente repressiva-punitiva, há a

urgência em se erradicar todas as formas de discriminação. O combate à discriminação é medida fundamental para que se garanta o pleno exercício dos

direitos civis e políticos, como também dos direitos sociais, econômicos e culturais.

Se o combate à discriminação é medida emergencial à implementação do direito à igualdade, todavia, por si só, é medida insuficiente. É fundamental conjugar a

vertente repressiva-punitiva com a vertente promocional. Faz-se necessário

combinar a proibição da discriminação com políticas compensatórias que acelerem a igualdade enquanto processo. Isto é, para assegurar a igualdade não basta apenas

proibir a discriminação, mediante legislação repressiva. São essenciais as estratégias promocionais capazes de estimular a inserção e inclusão de grupos socialmente

vulneráveis nos espaços sociais. Com efeito, a igualdade e a discriminação pairam

sob o binômio inclusão-exclusão. Enquanto a igualdade pressupõe formas de inclusão social, a discriminação implica a violenta exclusão e intolerância à

diferença e à diversidade. O que se percebe é que a proibição da exclusão, em si

mesma, não resulta automaticamente na inclusão. Logo, não é suficiente proibir a exclusão, quando o que se pretende é garantir a igualdade de fato, com a efetiva

inclusão social de grupos que sofreram e sofrem um consistente padrão de violência e discriminação.

Fica claro, portanto, que a estratégia repressivo-punitiva, enfatizada na Lei Maria da

Penha, não é capaz, por si só, de levar a uma diminuição e muito menos a eliminação dos

casos de violência doméstica contra a mulher. É imprescindível a promoção e implementação

de políticas públicas que garantam a inclusão social da mulher, pois só assim elas conseguirão

de fato sair do ciclo de violência a que estão presas em razão principalmente do modelo

patriarcal ainda vigente.

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E, é justamente quando se dá ênfase no Direito Penal e Processual Penal no contexto

de uma política de ação afirmativa, como é o caso da Lei “Maria da Penha”, que se corre o

risco de tal discriminação positiva estar travestida de um expansionismo penal com caráter

meramente simbólico que, certamente, não resolverá o complexo e multifacetado problema da

violência doméstica e familiar contra a mulher.

1.5 O MOVIMENTO FEMINISTA E A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL:

GESTORES ATÍPICOS DA MORAL E FUNÇÃO SIMBÓLICA DO DIREITO

PENAL

Apesar de o movimento feminista e a criminologia crítica terem surgido no mesmo

momento histórico, promovendo um questionamento acerca das relações de dominação e

exploração, seja quanto ao gênero, seja em relação à classe social, o feminismo tomou um

caminho contrário ao da criminologia crítica, que defende um Direito Penal como a ultima

ratio, direito penal mínimo e, até mesmo, o abolicionismo penal, como forma de diminuir a

intervenção penal, pois geradora de uma intensificação das desigualdades sociais.

O feminismo, assim como outros grupos alvo de discriminações (negros,

homossexuais), assumiu uma postura de defesa na utilização do sistema penal como panaceia

para o problema da violência em todas as suas vertentes, inclusive a violência doméstica e

familiar contra a mulher, o que é ao mesmo tempo uma ilusão e uma contradição (BATISTA,

2009, p. 12). Ilusão, porque a violência doméstica, por estar diretamente ligada à questão de

gênero e inserida no contexto familiar, apresenta-se altamente complexa, exigindo soluções

várias, que não só a penal para a resolução do conflito (POZZOBON; LOUZADA).

Contradição, pois, ao mesmo tempo em que as feministas adotam um discurso punitivo em

relação ao homem-agressor com o enrijecimento do sistema penal, aproximando-se do

movimento de “Lei e Ordem”, buscam a descriminalização de várias condutas, tais como o

aborto (MELLO, 2010, p. 937).

Tais setores da sociedade, que defendem a ideia de utilização do Direito Penal como

instrumento de proteção dos seus respectivos interesses, foram denominados atypische

Moralunternehmer ou gestores atípicos da moral.

A partir da década de oitenta do século passado, percebe-se uma mudança de postura

de parte da criminologia de esquerda e até mesmo de setores da criminologia crítica no

sentido de uma expansão do Direito e Processo Penal, com vistas à proteção de interesses

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33 defendidos por associações ambientalistas, feministas, antidiscriminatórias, dentre outras. Tais

grupos são denominados gestores atípicos da moral ou atypische Moralunternehmer porque,

até então, os “gestores” vinham sendo tradicionalmente os burgueses conservadores e passa a

ter relevância a atuação desses outros grupos, considerados, portanto, gestores atípicos da

moral.

Segundo José Luis Díez Ripollés (2005, p. 33):

A atividade desses grupos rege-se pelo desejo de resolver o problema social de

acordo com seus interesses: em primeiro lugar, valem-se de seu prestígio para apropriar-se do problema, o que significa que se admite sua competência para desenvolver um programa de ação. Em seguida costumam desenvolver atividades de provisão de informações, o que eventualmente desencadeia investigações mais detalhadas dos aspectos concretos e, em todo caso, uma organização dos resultados obtidos. A isso se seguem estudos e análises das alternativas disponíveis para a resolução do problema, utilizando especialistas, se preciso. E terminam com propostas factíveis de intervenção ou abstenção legislativa, acompanhadas ou não de medidas de outra natureza, e reforçadas no melhor dos casos com uma análise das consequências derivadas daquelas.

Utiliza-se, portanto, do meio mais contundente, mais propenso à violação de direitos

fundamentais (liberdade, dignidade), que é o Direito Penal para, no fundo, confirmar a

escolha valorativa de um grupo social. Tal ampliação do Direito Penal para proteção dos

interesses desses grupos de pressão vai de encontro ao pensamento primeiro da criminologia

crítica de utilizá-lo como ultima ratio, uma vez gerador de desigualdades no meio social e

também porque muitas vezes viola princípios basilares do Direito Penal como o da

intervenção mínima e da lesividade.

Nesse sentido, Jésus-María Silva Sánchez (2011, p. 82) preleciona:

Aparentemente não vem sendo dada muita atenção ao fato de que tais demandas de criminalização, certamente em boa parte atendidas, se mostrem inadequadas, vulneradoras de princípios gerais do Direito Penal (como as que se referem à criminalização da pura expressão de ideias), ou inclusive contraproducentes..

O movimento feminista passou a defender a utilização do Direito Penal como forma

de combater a violência de gênero, fruto das desigualdades presentes na sociedade entre

homens e mulheres em razão principalmente do modelo patriarcal até hoje existente.

Entretanto, tal defesa da intervenção penal mostra-se paradoxal, pois é sabido que o próprio

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34 sistema penal foi e ainda é utilizado como forma de controle social do papel da mulher na

sociedade7.

Enxergar o Direito Penal como único instrumento eficaz de pedagogia político-social

significa, em primeiro lugar, atestar que os demais meios de controle social, jurídicos ou não

jurídicos, não cumprem o seu papel e, também, transferir para o Direito Penal um fardo que

ele não pode suportar (SÁNCHEZ, 2011, p. 79).

Entre os argumentos favoráveis trazidos pelo feminismo à intervenção estatal do

Direito Penal nos conflitos envolvendo violência de gênero está o seu poder simbólico. “Com efeito, a criminalização de uma conduta acarreta a percepção social da sua gravidade,

alçando esse comportamento à posição superior na hierarquia das condutas cuja

reprovabilidade demanda uma reação mais severa do Estado” (BUENO, 2011, p. 87).

Sobre a função simbólica do Direito, assim se manifesta a professora Marília

Montenegro Pessoa de Mello (2010, p. 940):

Os defensores dessa função do Direito Penal acreditam que o Estado, ao legislar, teria a força de inverter a simbologia, já existente na sociedade, atuando como uma forma de persuasão sobre os indivíduos para que eles obedeçam a uma conduta mínima de comportamento, sob pena de serem tachados de delinquentes. No caso específico da violência doméstica, o Direito Penal poderia inverter o poder onipotente do marido sobre a mulher, trazendo à tona o equilíbrio na relação doméstica.

Criticando tal pensamento, prossegue a autora:

O Direito Penal não constitui meio idôneo para fazer política social, e as mulheres não podem buscar a sua emancipação através do poder punitivo e sua carga simbólica. Punir pessoas determinadas para utilizá-las como efeitos simbólicos para os demais significa a coisificação dos seres humanos. A própria mulher, historicamente, foi vítima dessa carga simbólica do Direito Penal, quando só poderia ser considerada vítima de determinados crimes quando fosse honesta, ou seja, quando se portasse da maneira adequada na visão masculina (MELLO, 2010, p. 941)

Segundo Zaffaroni (2001), em nenhum caso se pode pensar em sancionar leis penais

meramente simbólicas, pois importaria sempre em uma imoralidade: na mediação do ser

humano, sua coisificação, o desconhecimento de sua dignidade de pessoa8. Além do Direito

7 “En el caso del feminismo generalmente esa experiencia no existe, porque el poder punitivo, después de su originaria y brutal intervención directa, hace siglos que delega la subalternización controladora de la mujer en el no tan informal control patriarcal, que es su aliado indispensable: no necesita criminalizar a las mujeres sino servir de puntal a la sociedad jerarquizada para que ella se encargue de esa tarea. Ejerce un control indirecto, lo que le permite mostrarse como totalmente ajeno ala subalternización femenina” (ZAFFARONI, 2001, p. 70)

8 “Pero incluso así, en ningún caso se puede pensar em sancionar leyes penales por el mero efecto simbólico, porque eso importará siempre una inmoralidad: la mediatización de un ser humano, su degradación a luz roja

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35 Penal não ser meio idôneo para fazer política social, dentro do próprio movimento feminista

há opositores a essa utilização da sua função simbólica para fins de superação da

discriminação e violência contra a mulher, entendendo que pode trazer mais malefícios que

benefícios.

Ao utilizar o Direito Penal e sua carga simbólica para superação do problema da

violência de gênero, há uma simplificação de um problema complexo de desigualdade que se

estabelece no âmbito das relações sociais e culturais. Ademais, a intervenção do Estado,

através de um paternalismo penal, somente reforça a ideia de vulnerabilidade da mulher,

imagem que o próprio movimento feminista quer afastar. A revitimização da mulher, que vai

ser submetida a instituições públicas que compõem o sistema penal e que também carregam

preconceitos e estereótipos impregnados na sociedade, é outra crítica à utilização do Direito

Penal.

Outro aspecto negativo apontado é o fato de o Direito Penal limitar-se à imposição de

uma pena ao agressor, o que na maioria das vezes não atende às expectativas da mulher vítima

de violência doméstica e familiar, que passa a desacreditar no próprio sistema penal e na

superação dos seus problemas. Como se não bastasse, a violência doméstica, justamente por

estar diretamente ligada aos conflitos de gênero, os quais envolvem, além de aspectos

socioculturais, também questões psicológicas e afetivas das partes envolvidas, pois ocorrem,

na maior parte das vezes, no âmbito familiar, apresenta uma maior complexidade do que as

outras formas de violência, não podendo limitar-se a uma visão simplista do fenômeno.

Nesse sentido, Maria Filomena Gregori (1993, p. 130) ensina que:

A maior contribuição dessa nova abordagem é, a meu ver, a de tomar esses relacionamentos sem criar um dualidade redutora do tipo algoz e vítima e o que ela

implica: o agressor ativo e o agredido passivo. É uma perspectiva boa para entender a relação entre padrões mais gerais que orientam a conduta e o comportamento propriamente dito como um movimento, como uma passagem que implica combinações, ambiguidades e, portanto, diversidades. Nesse movimento não há

lugar para determinações imediatas e mecânicas do plano dos padrões para o plano das condutas [...] Salientar o vitimismo na abordagem sobre o fenômeno da violência implica em não considerar que nas relações familiares as mulheres, mesmo partilhando uma condição de subalternidade, agem, condenam, exigem e, por vezes, agridem. Qualificar tais gestos como reação ou reprodução pode, mais do que

estimular uma transformação, manter a “estrutura” básica que faz operar a violência.

Ademais, como está em curso uma mudança dos papéis imputados a homens e

mulheres pela sociedade, em razão dos fatores antes esposados, que leva a um declínio do

de semáforo social, su empleo como una cosa, el desconocimiento de su dignidad de persona y, por ende, de fin en sí mismo” (ZAFFARONI, 2001, p. 79)

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36 sistema patriarcal, diminuindo as desigualdades entre homens e mulheres, estas nem sempre

estão na posição de vítima, pois “ há as que provocam o parceiro, a fim de criar uma situação

de violência; outras denigrem o nome de seus companheiros, inventando fatos que eles teriam

cometido, mas não o fizeram” (SAFFIOTI, 2004, p. 64).

Ressalte-se, por fim, que os papéis sexuais próprios do sistema patriarcal, além de se

encontrarem em declínio, não refletem a totalidade das relações entre homens e mulheres,

pois em cada relação no espaço doméstico se estabelecem frações de poder tanto de um lado

quanto do outro. Muitas vezes em uma relação é a mulher e não o homem que se encontra na

posição de dominante (GRANJEIRO, 2012, p. 49). Essa soma de fatores somente vem a

confirmar a complexidade do fenômeno da violência doméstica e familiar contra a mulher,

exigindo, por conseguinte, soluções outras para a resolução dos conflitos de gênero que não

somente a opção retributiva da lei penal.

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37 2 REFLEXÕES CRÍTICAS À OPÇÃO RETRIBUTIVA NO COMBATE À

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

O Estado ao tomar para si o poder-dever de resolução dos conflitos interindividuais,

institui o modelo retributivo de justiça criminal que tem a sanção penal como meio de

controle social. Entretanto, tal modelo, há tempos, vem passando por uma crise de

legitimidade em razão de ser excludente, segregador e estigmatizante, além de não alcançar as

finalidades a que se propôs. O garantismo penal surge como alternativa para superação da

crise do sistema penal, fortalecido com o movimento neoconstitucionalista e o fenômeno da

constitucionalização do Direito Penal, mantendo, porém, a ideia central do paradigma

retributivo de um controle social punitivo institucionalizado.

O movimento feminista, em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, através da Lei

n. 11.340/2006, faz uma clara opção pelo modelo retributivo em crise, com o enrijecimento do

tratamento penal dado ao agressor da mulher vítima de violência de gênero. Tal estratégia é

alvo de críticas dentro do próprio movimento por entender não ser o modelo tradicional de

justiça criminal o meio mais adequado para promover as mudanças almejadas.

2.1 A CRISE DO MODELO RETRIBUTIVO DE JUSTIÇA CRIMINAL

A vítima, durante toda antiguidade e parte da Idade Média, tinha um papel de

protagonismo na solução dos conflitos surgidos no meio social em que vivia. A solução

privada contra as ofensas praticadas dava-se através da vindita da própria vítima ou do grupo

social ao qual pertencia e muitas vezes ultrapassava o limite do razoável, razão pela qual

ocorre uma fragilização desse modo de solução de conflitos, fazendo com que se introduza a

ideia de proporcionalidade na resposta dada, ao mesmo tempo em que oportuniza o

surgimento da composição de caráter compensatório.

Tais considerações permitem que se afirme, sem incorrer em equívoco, que a adoção dos princípios taliônicos e a habitualidade com que a compensação foi sendo exercitada em praticamente todos os sistemas, podem ser apontados como instrumentos de controle e moderação dos ímpetos vingativos e, nas palavras de Herrera Moreno como “uma via ágil de solução pactuada dos conflitos. (SILVA, 2009, p. 28).

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38

Durante o período medieval, no final do século XII e no curso do século XIII, percebe-

se uma mudança de rumo nas práticas utilizadas para a solução de conflitos. A vítima, que até

então detinha exclusividade na solução de conflitos, vai perdendo espaço para o sistema de

justiça pública. Isso porque, na sociedade feudal, como a circulação de bens através do

comércio era incipiente, os senhores feudais mais poderosos, posteriormente os monarcas,

viram no controle dos litígios judiciais uma forma de ampliar o seu poder e, também, se

apropriar de uma parte das indenizações pagas às vítimas a título de reparação do dano

causado.

A partir de então, os indivíduos diretamente envolvidos no conflito, deixam de ter o

direito de resolver o seu litígio, devendo se submeter a um poder externo e superior que a eles

se impõe. Surge a figura do procurador do rei, representante do senhor ou monarca, que

substitui a vítima quando do cometimento de um crime, com plenos poderes para a

persecução criminal através do inquérito. Tal personagem guarda semelhança com o

representante do Ministério Público dos dias atuais e representa o afastamento da vítima do

contexto punitivo e, por sua vez, o apossamento do poder político sobre o procedimento

judiciário. Além disso, cria-se a ideia de infração para deixar claro que o dano causado pelo

delito não era um ataque à vítima, mas à própria lei do Estado.

Não se trata mais de resgatar sua paz, dando satisfação ao seu adversário. Vai-se exigir do culpado não só a reparação do dano feito a outro indivíduo, mas também a reparação da ofensa que cometeu contra o soberano, o Estado, a lei. É assim que aparece, com o mecanismo das multas, o grande mecanismo das confiscações. Confiscações dos bens que são, para as monarquias nascentes, um dos grandes meios de enriquecer e alargar suas propriedades. As monarquias ocidentais foram fundadas sobre a apropriação da justiça, que lhes permitia a aplicação desses mecanismos de confiscação. Eis o pano de fundo político desta transformação (FOUCAULT, 2002, p. 67).

Percebe-se, nesse movimento, como o poder estatal se apropriou de todo mecanismo

de solução dos conflitos interindividuais, instituindo a sanção penal como única resposta pelo

crime. A pena torna-se um dos meios de controle social por sua força coercitiva para

manutenção da ordem social e base do modelo retributivo de justiça criminal. Várias foram as

justificativas para fundamentar e legitimar a utilização da pena como resposta estatal à prática

delitiva. Duas teorias resumem essa tentativa de atribuir uma finalidade à sanção penal: a

teoria absoluta e a teoria relativa.

A teoria absoluta entende a pena como um fim em si mesma, sendo, nas palavras de

Hegel (apud CORRÊA JÚNIOR; SHECAIRA, 1995, p. 100), “a negação da negação do

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39 direito”, ou seja, a retribuição pelo mal praticado, daí porque também é denominada teoria

retributiva. A teoria absoluta não vê uma finalidade para a pena, sendo mais uma teoria

justificadora que tem como mérito trazer a ideia de proporcionalidade na resposta estatal

frente ao delito cometido pelo indivíduo.

A teoria relativa prevê uma verdadeira finalidade para a pena e divide-se em geral e

especial. A teoria relativa geral volta-se para a sociedade, e não para o delinquente, e em seu

aspecto negativo funciona como elemento intimidatório, a fim de que as pessoas, ao ver a

pena prevista, abstratamente sintam-se intimidadas a praticar crimes, bem como intimida o

criminoso ao ser aplicada concretamente. Em seu aspecto positivo, a teoria relativa geral

defende a ideia de que a punição do criminoso levaria a sociedade a acreditar e respeitar o

sistema penal posto.

A teoria relativa especial, por sua vez, centra-se na figura do delinquente e, também, se

subdivide em negativa e positiva. “Tal escopo é perseguido pela intimidação do delinquente

ocasional, reeducação do criminoso habitual corrigível, ou tornando inofensivo aquele que

demonstra ser incorrigível” (CORRÊA JUNIOR; SHECAIRA, 1995, p.39). A ideia central da

negativa baseia-se, portanto, na neutralização, enquanto que na positiva na ressocialização. É

justamente a ideia de ressocialização uma das principais críticas feitas a tal teoria, uma vez

que afronta a dignidade da pessoa humana a imposição por parte do Estado de um padrão

comportamental, razão pela qual muitos autores utilizam a expressão reinserção social ao

invés de ressocialização.

A prisão vai se transformar na principal forma de punição a partir do século XIX e isso

ocorre em razão da “nova distribuição espacial e social da riqueza industrial e agrícola que tornou

necessário novos controles sociais no fim do século XVIII” (FOUCAULT, 2002, p. 102). O nascimento do capitalismo com a crescente transferência da população do campo para

a cidade, aliada à exploração dos trabalhadores da indústria, tornam-se uma ameaça à nova

ordem estabelecida pela burguesia, passando a pena de prisão a ser utilizada pelo Estado

como uma forma de defesa social utilizada para garantir os interesses da classe dominante.

O modelo retributivo, que tem como pena, por excelência, a prisão, encontra-se em

uma crise de legitimidade que se estende há décadas. Tal modelo de justiça criminal, desde o

seu nascedouro, esteve a serviço dos interesses da burguesia capitalista, inserido no que

Foucault (2002) denominou “sociedade disciplinar”, dentre as outras instituições de controle.

O controle dos indivíduos, essa espécie de controle penal punitivo dos indivíduos ao nível de suas virtualidades não pode ser efetuado pela própria justiça, mas por uma série de outros poderes laterais, à margem da justiça, como a polícia e toda uma rede

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de instituições de vigilância e de correção a polícia para a vigilância, as instituições psicológicas, psiquiátricas, criminológicas, médicas, pedagógicas para a correção. É assim que no século XIX, desenvolve-se, em torno da instituição judiciária e para lhe permitir assumir a função de controle dos indivíduos ao nível da sua periculosidade, uma gigantesca série de instituições que vão enquadrar os indivíduos ao longo de sua existência; instituições pedagógicas como a escola, psicológicas ou psiquiátricas como o hospital, o asilo, a polícia, etc. Toda essa rede de um poder que não é judiciário deve desempenhar uma das funções que a justiça se atribui neste momento: função não mais de punir as infrações dos indivíduos, mas de corrigir suas virtualidades (FOUCAULT, 2002, p. 86).

O sistema penal retributivo, que representa o controle social punitivo

institucionalizado, justamente por atender aos interesses da classe dominante, é excludente,

segregador e estigmatizante. É nítido o caráter seletivo do sistema penal, utilizado como

instrumento de contenção e disciplina das camadas mais pobres da sociedade, fonte de

desigualdade social e manutenção do status quo. Tal intento é alcançado através da seleção

das condutas a serem criminalizadas que recaem preferencialmente sobre os grupos sociais

mais vulneráveis, imunizando, ao mesmo tempo, os detentores do poder político ou

econômico. O princípio da legalidade, tido como princípio maior do Direito Penal, serve

como fundamento teórico para esse tipo de seleção que é denominada criminalização

primária.

A legalidade, como um dos grandes pilares do iluminismo e do positivismo, permitiu a separação das condutas criminosas das demais condutas desviantes, reservando-as à seara administrativa, civil ou, unicamente, à social. Por outro lado, individualizou o criminoso e afastou a possibilidade de tipificação da conduta de membros de determinadas classes sociais. Utilidades distintas, ocultas e aparentes, algumas nobres e outras, nem tanto: proteção contra o poder punitivo estatal; proteção dos membros da classe dominante; seleção dos grupos criminalizados (SALIBA, 2009, p. 68).

Além da criminalização primária, através da seleção das condutas a merecerem

tratamento penal, existe, por parte dos mais diversos integrantes do aparelho repressivo estatal

(polícia, Judiciário, Ministério Público, sistema prisional), a seleção dos grupos sociais que

vão ser alvo preferencial da ação dos mesmos e mais uma vez tal escolha recai sobre as

camadas mais pobres. “Essa atribuição seletiva dá vazão a um sistema excludente,

característica da sociedade moderna, pautada pela eliminação do desviante de seu círculo,

encarcerando-o, afastando-o do convívio social” (SALIBA, 2009, p. 68).

O modelo retributivo de justiça criminal também é estigmatizante, pois representa uma

condicionante para o comportamento futuro do condenado e a intervenção do sistema penal.

Há uma rotulação ou etiquetamento (teoria do labeling approach) que marca, de forma

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41 definitiva, o desviante como delinquente e determina o seu papel na sociedade. Zaffaroni

(2001), ao tratar sobre o interacionismo simbólico fala justamente que nós nos tornamos

aquilo que os outros veem em nós, então, a pessoa rotulada como criminosa acaba se

comportando como tal. “Todo aparato do sistema penal está preparado para essa rotulação e

para o reforço desses papéis” (ZAFFARONI, 2001, p.60).

A pena de prisão contribui também para isso, ao fazer com que o condenado passe a

incorporar os padrões sociais do cárcere, definidos pelos agentes prisionais e demais

condenados, provocando um distanciamento com o grupo social do qual era originário e da

sociedade como um todo e ao mesmo tempo inviabilizando qualquer tipo de reinserção social.

As prisões, nas palavras de Foucault (2007), não reduzem as taxas de criminalidades,

mesmo aumentando o número delas, a criminalidade permanece estável ou até aumenta; a

detenção gera reincidência, funcionando como uma fábrica de delinquentes em razão das

condições desumanas a que são submetidos os presos; o cárcere favorece a organização de um

meio de delinquentes solidários entre si e hierarquizados; e, por fim, a prisão, indiretamente,

fabrica delinquência ao levar à miséria a família do preso.

No mesmo sentido, Ferrajoli (2010, p. 379):

A pena privativa de liberdade, que na época moderna tem constituído a alternativa mais importante frente às penas ferozes e o principal veículo do processo de mitigação e de racionalização das penas, já não parece, por sua vez, idônea – enquanto não pertinente ou desnecessária – para satisfazer nenhuma das duas razões que justificam a sanção penal: nem a prevenção dos delitos, dado o caráter

criminógeno das prisões destinadas de fato, como nos dias de hoje é unanimemente reconhecido, a funcionar como escolas de delinquência e de recrutamento da criminalidade organizada; nem a prevenção das vinganças privadas, satisfeita na atual sociedade dos mass media bem mais pela rapidez do processo e pela

publicidade das condenações do que pela expiação da prisão. [...] A prisão é, portanto, uma instituição ao mesmo tempo antiliberal, desigual, atípica, extralegal e extrajudicial, ao menos em parte, lesiva para a dignidade das pessoas, penosa e inutilmente aflitiva.

Evidente é, pois, o fracasso do modelo retributivo de justiça criminal baseado na

imposição de uma sanção penal em consequência da prática de conduta tida como criminosa,

seja por não alcançar as finalidades preconizadas nas diversas teorias justificadoras da pena,

seja porque é um modelo segregador, estigmatizante e gerador de uma violência

institucionalizada. Em razão dessa crise de legitimidade do sistema penal vigente, denunciada

pela criminologia crítica, surge uma discussão acerca das alternativas ao paradigma

retributivo de justiça criminal. Duas correntes de pensamento merecem destaque: os

abolicionistas e os defensores de um minimalismo penal.

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O abolicionismo defende a ideia de substituição do modelo tradicional de justiça

criminal por outras formas de solução dos conflitos. Louk Hulsman, Thomas Mathiesen e Nils

Christie são considerados os principais nomes do movimento abolicionista, merecendo

destaque os argumentos de Hulsman a favor da abolição do sistema penal: “é um sistema que

causa sofrimentos desnecessários que são distribuídos socialmente de modo injusto; não

apresenta efeito positivo sobre as pessoas envolvidas nos conflitos; e é sumamente difícil de

ser mantido sob controle” (ZAFFARONI, 2001, p. 98).

Ferrajoli (2010, p. 234), em oposição ao movimento abolicionista assim dispõe:

Abolicionistas como Louk Hulsman, Henry Bianchi e Nils Christie repropõem as mesmas teses do abolicionismo anárquico do século XIX, oscilando na configuração das alternativas ao direito penal, que, por si só constitui uma técnica de regulamentação e de delimitação da violência punitiva – entre improváveis projetos de microcosmos sociais fundados na solidariedade e na irmandade, vagos objetivos de reapropriação social dos conflitos entre ofensores e vítimas e métodos primitivos de composição patrimonial das ofensas, com a agravante, se comparado ao abolicionismo clássico, de possuir uma maior incoerência entre pars destruens e pars construens do projeto sustentado e de uma maior e imperdoável desatenção às tristes experiências, inclusive contemporâneas, de crise e desatualização do direito penal.

Segundo o doutrinador italiano, portanto, o abolicionismo estaria fundado em uma

visão utópica e regressiva. Utópica, pois impossível, na atualidade, uma sociedade sem

controles ou limites, sociais ou estatais. Regressiva, porque a ausência de normas reguladoras

e punitivas levaria a um retorno da sociedade selvagem, onde prevaleceria a vontade do mais

forte. Ferrajoli (2010) defende, como alternativa à crise de legitimidade do sistema penal, não

a sua abolição que poderia levar a uma anarquia punitiva, mas a adoção de um modelo

direcionado ao controle e minimização do poder punitivo estatal denominado Garantismo

Penal.

Garantismo, com efeito, significa precisamente a tutela daqueles valores ou direitos

fundamentais, cuja satisfação, mesmo contra os interesses da maioria, constitui o objetivo justificante do direito penal, vale dizer, a imunidade dos cidadãos contra a arbitrariedade das proibições e das punições, a defesa dos fracos mediante regras do jogo iguais para todos, a dignidade da pessoa do imputado, e, consequentemente, a garantia da sua liberdade, inclusive por meio do respeito à sua verdade. É precisamente a garantia destes direitos fundamentais que torna aceitável por todos, inclusive pela minoria formada pelos réus e pelos imputados, o direito penal e o próprio princípio majoritário (FERRAJOLI, 2010, p. 312).

O modelo garantista defende a ideia de um direito penal mínimo, cuja intervenção

somente se justifica para a tutela dos bens jurídicos considerados fundamentais para a

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43 sociedade e para impedir o arbítrio estatal no exercício do jus puniendi, garantindo a todos,

inclusive ao acusado, os direitos fundamentais que constituem um núcleo intangível contidos

na Constituição. Em sua obra “Direito e Razão”, Ferrajoli (2010) faz a distinção entre

vigência e validade, limitando-se a primeira a existência formal, enquanto que a validade

significa legitimidade substancial, isto é, compatibilidade com o sistema de normas

(princípios e regras) estabelecido constitucionalmente.

Em um Estado Democrático de Direito, que preza pela tutela dos direitos

fundamentais, o modelo garantista penal se impõe, devendo o Poder Legislativo, como fonte

de produção do Direito Penal, criar normas que observem, não somente, o devido

procedimento legislativo (vigência), mas, e principalmente, as regras e os princípios expressos

e implícitos contidos no texto constitucional (validade). Assim como ao Poder Judiciário cabe

interpretar e aplicar as normas penais em conformidade com a Constituição.

A Constituição, com o neoconstitucionalismo, passa a ocupar o centro do sistema

normativo, impregnando todo ordenamento jurídico com suas normas, princípios e valores,

inclusive o Direito Penal, influenciando também na produção legislativa de combate à

violência doméstica e familiar contra a mulher, como será visto a seguir.

2.2 NEOCONSTITUCIONALISMO E CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PENAL

Após a Segunda Grande Guerra e as atrocidades que dela advieram com os regimes

autoritários nazifascistas, o movimento constitucionalista sofreu uma revolução. A

Constituição, vista até então como uma carta eminentemente política, passa a ser reconhecida

como um documento com força normativa, ou seja, suas disposições passam a ter caráter

obrigatório e vinculativo, ideia que tem como maior expoente Konrad Hesse (1991). A Constituição, de simples “folha de papel”, passa a ter “sua normatividade densificada à base

de princípios e diretrizes substanciais dirigidas a todos os órgãos de Estado, tanto na criação

como na aplicação do Direito” (FELDENS, 2007, p. 833). O parlamento, que até 1945 detinha

uma posição de supremacia, cede espaço para a ideia de supremacia da Constituição que

incorporou uma série de direitos fundamentais, em especial direitos sociais, passando a

representar um espaço inacessível ao legislativo e, por conseguinte, fortalecendo o Poder

Judiciário no papel de instituição incumbida da preservação e efetivação dos direitos

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44 fundamentais através da Justiça Constitucional. Essa nova fase do constitucionalismo é

denominada de neoconstitucionalismo.

Nesse sentido, Barroso (2013, p. 288) assim se manifesta:

O novo direito constitucional, fruto das transformações narradas neste capítulo, tem sido referido, por diversos autores, pela designação de neoconstitucionalismo. O termo identifica, em linhas gerais, o constitucionalismo democrático do pós-guerra, desenvolvido em uma cultura filosófica pós-positivista, marcado pela força normativa da Constituição, pela expansão da jurisdição constitucional e por uma nova hermenêutica.

A supremacia da Constituição e sua força normativa levam a um fenômeno

denominado constitucionalização do Direito, a Constituição irradiando com força normativa

as suas normas, princípios e valores, em especial os relacionados aos direitos fundamentais,

para todo ordenamento jurídico, condicionando, assim, toda a criação, interpretação e

aplicação do direito.

Tal fenômeno tem repercussão em todos os poderes estatais, bem como nas relações

entre os particulares. No poder legislativo, a constitucionalização limita a discricionariedade

do legislador na elaboração das leis, bem como o dever de prestação normativa para

implementação de direitos constitucionais. Com relação ao poder executivo, o processo de

constitucionalização do direito também limita o poder discricionário do Estado e impõe-lhe

deveres de atuação, além de fornecer fundamento de validade para a prática de atos previstos

na Constituição sem a intervenção do legislativo. Quanto ao judiciário, a constitucionalização

estabelece uma nova postura interpretativa deste poder em razão da centralidade e

normatividade do texto constitucional, assim como no controle de constitucionalidade. Nas

relações privadas o processo de constitucionalização também exerce influência com a

autonomia da vontade limitada pelos princípios e valores constitucionais (BARROSO, 2013,

p. 379).

No Brasil, o fenômeno da constitucionalização pode ser percebido nos mais diversos

ramos do direito. O Direito Penal guarda uma íntima relação com a nossa Magna Carta, basta

fazer uma leitura do artigo 5° da Constituição Federal que traz os direitos e garantias

individuais, dentre eles, o princípio da reserva legal e da ofensividade, além de vários

princípios implicitamente contidos em nosso texto constitucional como o da intervenção

mínima e o da proporcionalidade. O modelo de Estado instituído com a Constituição de 1988

- Estado Democrático de Direito - tem como consectário a instituição do modelo garantista

penal criado por Luigi Ferrajoli (2010), em sua obra “Direito e Razão”, em que defende a

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45 ideia de um Direito Penal voltado a limitar e racionalizar o jus puniendi. Não é à toa que a

nossa Constituição traz em seu art. 5° um amplo catálogo de direitos e garantias fundamentais

que visam à contenção do jus puniendi. A ideia do Direito Penal como ultima ratio, baseado

no princípio da intervenção mínima e do caráter fragmentário e subsidiário, já que se trata de

um controle social eminentemente punitivo, leva à conclusão de que este ramo do Direito

somente deve atuar na tutela de bens jurídicos relevantes para a sociedade. Nesse sentido, a

Constituição funciona como duplo limite a atuação do legislador infraconstitucional.

A ideia de um Direito Penal voltado à exclusiva proteção de bens jurídicos limita a

atuação legislativa à criação de tipos penais relacionados a condutas exteriores e ofensivas

(Direito Penal do Fato), não se podendo criminalizar atitudes interiores ou da personalidade

do autor (Direito Penal do Autor). Ocorre que, a nossa história é profícua em apresentar

exemplos, principalmente em regimes totalitários como o fascismo, de que a simples

exigência de exclusiva proteção de bens jurídicos não é suficiente para limitar o poder

punitivo estatal, necessitando também de uma limitação material, ou seja, uma análise acerca

do conteúdo da norma que deve estar de acordo com os valores constitucionais. É a ideia de

vigência e validade trazida por Ferrajoli (2010, p. 330), em que a primeira diz respeito à

simples observância das regras formais na elaboração da norma, enquanto a segunda refere-se

justamente a essa conformidade com os direitos fundamentais contidos na Constituição.

Nesse mesmo sentido, Luciano Feldens (2007, p. 841):

A doutrina (nacional e internacional) parece unânime em afirmar que a recepção do modelo de crime como ofensa a bens jurídicos verifica-se como um fator necessário, mas insuficiente para expressar o conteúdo do ilícito penal. Cuida-se, melhor dito, de um critério de legitimação negativa da intervenção punitiva, demais de um aporte inaugural que por certo haverá de complementar-se por meio da análise do relacionamento material (axiológico-normativo) que compartem, entre si, Constituição e Direito Penal.

É aí que se encontra o segundo limite à atuação do legislador penal. A definição de

quais bens jurídicos tem relevância para merecer a tutela penal, tem como parâmetro a

Constituição, ou seja, somente os bens jurídicos de referência constitucional podem receber

tutela penal. A validade da norma penal incriminadora está, portanto, submetida, a essas duas

premissas: a tutela de bens jurídicos que retratam fatos e não atitudes internas e que tais bens

tenham assento constitucional. Caso o Legislativo não observe tais limites, cabe ao Judiciário,

através do controle de constitucionalidade, declarar inválida a norma penal ou dá a ela uma

interpretação conforme a Constituição.

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A Constituição, além de impedir a criminalização de certas condutas, bem como

sinalizar para a despenalização de outras já existentes, que não mais se coadunam com a

ordem constitucional vigente, também exige uma atuação positiva do legislativo na tutela de

determinados bens jurídicos que o constituinte originário entendeu merecer proteção. Como

exemplo, podemos citar os seguintes dispositivos: artigo 5°, XLII (racismo), artigo 225, §3°

(meio ambiente) e artigo 226, §8° (violência doméstica e familiar). Nesses casos, como em

outros contidos no texto constitucional, não tem o parlamento liberdade para valorar se tal

bem jurídico deve ou não receber tutela penal, pois a Constituição já decidiu que sim, porém o

legislador é livre para definir os termos e limites desta proteção.

Outrossim, tal liberdade do legislador deve ser orientada pelo princípio da

proporcionalidade, proibindo o excesso, bem como uma proteção deficiente, que se não

observado implica na atuação do poder Judiciário. Nesse sentido, mais uma vez trazemos os

ensinamentos de Luciano Feldens (2007, p. 854):

Embora desfrute de uma ampla liberdade de configuração, o legislador penal não se imuniza a um controle de constitucionalidade sobre os atos que produz, seja na penalização, seja na despenalização de determinadas condutas. Sua liberdade de atuação, conquanto regra, é relativa, encontrando-se submetida a pautas que lhe são subministradas pela Constituição, as quais lhe impedem de extravasar os limites superior (proibição de excesso) e inferior (proibição de proteção deficiente) da proporcionalidade.

Percebe-se, portanto, que existe uma verdadeira simbiose entre a Constituição e o

Direito Penal, uma vez que ambos buscam tutelar os direitos fundamentais, dentre eles a

violência contra mulher, alçada à categoria de violação dos direitos humanos e,

consequentemente, violação dos direitos fundamentais, a partir de 1993, pela Conferência das

Nações Unidas sobre Direitos Humanos.

2.3 A LEI MARIA DA PENHA E SUA CLARA OPÇÃO PELO MODELO RETRIBUTIVO DE JUSTIÇA CRIMINAL

Inicialmente, em resposta ao disposto no artigo 226, parágrafo oitavo da Constituição

Federal9, que trata da assistência à família e mais precisamente da proteção contra violência

9 Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do

Estado. [...]

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47 no ambiente familiar e doméstico, o legislativo federal através da Lei n° 10.886/2004, passou

a punir de forma mais gravosa a lesão corporal praticada no ambiente doméstico e familiar

com o acréscimo dos parágrafos nono e dez do artigo 129 do Código Penal10

que dispõe

acerca do crime de lesão corporal. Contudo, tal alteração legislativa, além de se restringir ao

crime de lesão corporal, não fazia qualquer distinção em relação ao gênero da vítima. A lesão

corporal leve no âmbito doméstico e familiar, por sua vez, continuou sendo considerada uma

infração penal de menor potencial ofensivo e, portanto, de competência do Juizado Especial

Criminal, já que a pena máxima prevista em abstrato passou a ser de um ano.

Entretanto, a violência no âmbito doméstico e familiar tem como vítima preferencial a

mulher. A violência de gênero é um fenômeno histórico que perdura há milênios, não só aqui

no Brasil, mas em todas as partes do mundo, inclusive nos países ditos desenvolvidos. A

ideologia patriarcal e machista subsiste até os dias de hoje, à imagem de virilidade e altivez do

homem contrapõe-se a passividade e conformismo da mulher, o “eterno elogio da

sensibilidade feminina que esconde, afinal, uma enorme discriminação e cria o primeiro passo

para a violência” (CHAUÍ, 1985, p. 44).

Grande parte do movimento feminista passa a atuar como grupo de pressão, exigindo o

reforço da tutela penal como forma de emancipação das opressões sofridas pela mulher vítima

de violência doméstica, ou seja, uma postura retribucionista-aflitiva.

A lei n° 9.099/95 que instituiu os Juizados Especiais Criminais, no Brasil, com

competência para processar e julgar as infrações penais de menor potencial ofensivo passou a

abarcar a maioria das infrações, envolvendo violência doméstica, e como tal diploma legal

apresenta um modelo de justiça consensual com uma série de medidas despenalizadoras, a

exemplo da composição civil e da transação penal, foi alvo de severas críticas por parte de

grupos do movimento feminista, que preconizavam justamente o endurecimento do

tratamento penal para com o homem-agressor nas infrações que envolvessem violência

doméstica e familiar.

§ 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. 10

Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Violência Doméstica § 9

o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem

conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano. § 10. Nos casos previstos nos §§ 1

o a 3

o deste artigo, se as circunstâncias são as indicadas no § 9

o deste artigo,

aumenta-se a pena em 1/3 (um terço).

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Para grande parte dos discursos feministas, essa lei teria banalizado a violência doméstica e contribuído para “o arquivamento massivo dos processos, a reprivatização do conflito doméstico e a redistribuição do poder ao homem mantendo-se a hierarquia de gênero. Dessa maneira, a lei dos Juizados pode ser positiva se pensada à luz do autor do delito, mas não seria para a vítima. É bem verdade que os críticos do juizado, por muitas vezes, desconhecem a necessidade das partes envolvidas no conflito e baseiam as suas críticas na famosa ‘pena de cesta básica’ aplicada por vários promotores e juízes que se utilizam da ‘lei do menor esforço’ para afastar a mediação e a utilização das penas alternativas mais adequadas para minoração de cada conflito (MELLO, 2010, p. 938)

Nesse contexto, o movimento feminista no Brasil, seguindo uma tendência do

feminismo na Europa e também na América Latina passa a entender que a utilização do

Direito Penal é o instrumento adequado de superação das desigualdades entre homens e

mulheres, funcionando como um dos gestores atípicos da moral, o que, nas palavras de Maria

Lucia Karam (2006, p. 1), representa um equívoco perigoso.

Mas, certamente, o enfrentamento da violência de gênero, a superação dos resquícios patriarcais, o fim desta ou de qualquer outra forma de discriminação não

se darão através da sempre enganosa, dolorosa e danosa intervenção do sistema penal, como equivocadamente creem mulheres e homens que aplaudem o maior rigor penal introduzido em legislações como a nova Lei brasileira nº 11.340/2006 ou sua inspiradora espanhola Ley Orgánica 1/2004. Esse doloroso e danoso equívoco vem de longe. Já faz tempo que os movimentos feministas, dentre outros

movimentos sociais, fizeram-se corresponsáveis pela hoje desmedida expansão do poder punitivo. Aderindo à intervenção do sistema penal como pretensa solução para todos os problemas, contribuíram decisivamente para a legitimação do maior rigor penal que, marcando legislações por todo o mundo a partir das últimas décadas do

século XX, faz-se acompanhar de uma sistemática violação a princípios e normas assentados nas declarações universais de direitos e nas Constituições democráticas, com a crescente supressão de direitos fundamentais.

As Convenções Internacionais - Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de

Discriminação contra as Mulheres e Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e

Erradicar a Violência Doméstica ou Convenção de Belém do Pará - ambas ratificadas pelo

Brasil e, por se tratarem de convenções sobre direitos humanos, possuem status

constitucional, segundo o disposto no artigo 5°, §§ 2° e 3°11

da Constituição Federal, que

objetivam reprimir qualquer discriminação contra a mulher e qualquer ato de violência

doméstica contra a mesma, criando mecanismos para prevenir, punir e erradicar tal espécie de

violência, bem como o disposto nos arts. 5°, XLI e 226, §8° da Carta Magna que determinam

11

§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais

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49 a criação pelo Estado de mecanismos para coibir a violência no âmbito familiar deram um

claro recado ao legislador ordinário de que o mesmo deveria atuar na criação de uma

legislação que protegesse a mulher vítima de violência doméstica e familiar, uma das

manifestações do processo de constitucionalização do direito em que o legislativo tem o dever

de prestação normativa para implementação de direitos constitucionais.

Entretanto, os imperativos contidos nos documentos internacionais e na própria

Constituição não foram suficientes para que o Poder Legislativo implementasse uma

legislação que atendesse aos anseios do movimento feminista de uma lei voltada para a

proteção da mulher vítima de violência, sendo necessária a história de violência doméstica

vivenciada por uma mulher para pressionar o legislador a, finalmente, editar referida lei.

Maria da Penha, nos idos de 1983, foi vítima por duas vezes de tentativa de homicídio

praticada por seu marido à época. O processo perdurou por longos 19 anos e, ao final, o

acusado foi condenado a uma pena de dez anos e seis meses, ficando preso somente por dois

anos. A repercussão negativa do caso foi tamanha que o Centro pela Justiça e o Direito

Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino-Americano e do Caribe para Defesa dos Direitos da

Mulher (CLADEM) levaram o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA

que, em seu relatório final, condenou o Estado brasileiro a pagar uma indenização à vítima,

bem como responsabilizou o Brasil pela negligência em relação ao tratamento dispensado à

mulher vítima de violência doméstica, recomendando a adoção de medidas para tornar o

sistema processual mais ágil e efetivo.

Em razão dos imperativos constitucionais, bem como das convenções internacionais e

a pressão exercida pelos organismos nacionais e internacionais, em especial a Organização

dos Estados Americanos, teve início em 2002 a elaboração de um projeto de lei criando

mecanismos de proteção à mulher vítima de violência doméstica e familiar, que culminou em

2006 com a Lei n° 11.340.

Tal lei, intitulada “Lei Maria da Penha”, em homenagem à mulher que se tornou

símbolo da violência doméstica no Brasil, reconhecida pelo Fundo de Desenvolvimento das

Nações Unidas como uma das três legislações mais avançadas de proteção à mulher, junto

com a da Espanha e Mongólia, apesar de não apresentar somente dispositivos penais, dá

ênfase a tais normas, fazendo uma clara opção pelo modelo retributivo de justiça criminal,

tendo como característica principal o recrudescimento do tratamento penal dirigido ao autor

de violência doméstica.

A Lei n° 11.340/2006 foi considerada como uma ação afirmativa em favor das

mulheres vítimas de violência. Entretanto, o movimento feminista com a Lei Maria da Penha

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50 promove um expansionismo penal através de tal discriminação positiva, buscando através do

poder simbólico do Direito Penal a superação das desigualdades entre homens e mulheres e do

modelo patriarcal até hoje existente em nossa sociedade, causa maior da violência de gênero.

Tal intento fica evidente em alguns dispositivos do citado diploma legal.

O artigo 1612

da Lei nº 11.340/2006 somente permite a retratação por parte da vítima

da representação ofertada nos crimes de ação pública condicionada perante a autoridade

judiciária em audiência exclusiva para tanto e ouvido o representante do Parquet, ou seja, a

mulher vítima de violência doméstica não pode se retratar na esfera policial. Tal exigência se

dá com a clara intenção de o juiz, juntamente com o representante do Ministério Público,

analisar se tal retratação é livre e consciente ou está viciada em razão de alguma pressão

exercida pelo próprio agressor ou pessoas próximas a ele. Por outro lado, com tal exigência, “a mulher passa a ser assim objetivamente inferiorizada, ocupando uma posição passiva e

vitimizadora, tratada como alguém incapaz de tomar decisão por si própria” (KARAM, 2006,

p.01)

O Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento que tal audiência somente deve

ser marcada se a vítima procurar o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a

Mulher demonstrando o desejo de retratar-se.

CRIMINAL. HABEAS CORPUS. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. AÇÃO PÚBLICA CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO DA VÍTIMA. DESIGNAÇÃO DE

AUDIÊNCIA PARA RETRATAÇÃO. NÃO OBRIGATORIEDADE.

NECESSIDADE DE PRÉVIA MANIFESTAÇÃO DA VÍTIMA. I. A audiência do art. 16 da Lei 11.430/2006 deverá ser designada especialmente para fins de

retratação, tão somente após concreta manifestação da vítima nesse sentido, para formalização do ato. II. A designação de ofício da referida audiência, sem qualquer

manifestação anterior da vítima, contraria o texto legal e impõe à vítima a

necessidade de ratificar uma representação já realizada. III. Entender pela obrigatoriedade da realização da audiência sempre antes do recebimento da

denúncia, e sem a manifestação anterior da vítima no sentido vontade de se retratar,

seria o mesmo que criar uma nova condição de procedibilidade para a ação penal pública condicional que a própria provocação do interessado, contrariando as regras

de direito penal e processual penal. IV. Audiência que deve ser entendida como forma de confirmar a retratação e não a representação. V. Ordem denegada, nos

termos do voto do Relator.

(STJ - HC: 179446 PR 2010/0129628-4, Relator: Ministro GILSON DIPP, Data de Julgamento: 03/05/2012, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 10/05/2012).

12

Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será

admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

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Ocorre que, na grande maioria das vezes, a mulher vítima de violência doméstica não

tem conhecimento disso e, mesmo desejando não dar prosseguimento ao procedimento

judicial, acaba não procurando o Judiciário para retratar-se e quando é intimada a comparecer

em audiência de instrução e julgamento não mais pode fazê-la. Um outro dispositivo contido

na Lei “Maria da Penha”, que demonstra a clara intenção de recrudescimento do tratamento

penal dado ao autor de infração penal, envolvendo violência doméstica e familiar contra a

mulher, é o artigo dezessete13

que veda a imposição ao agressor da pena de cesta básica ou

outras de natureza pecuniária, assim como a substituição da pena que leve ao pagamento

isolado da pena de multa.

De início, há uma impropriedade no citado dispositivo, uma vez que nossa legislação

penal não prevê pena de cesta básica, havendo somente a previsão da pena de prestação

pecuniária que pode ser substituída por prestação de outra natureza, bastando, portanto,

constar a vedação à pena de prestação pecuniária. Também não se veda a imposição da pena

de multa, somente que ela não seja a única pena imposta. O objetivo do legislador foi evitar

que o homem-agressor saísse com a sensação de que poderia pagar pelo sofrimento causado à

mulher-vítima e passasse para a sociedade uma imagem de impunidade. Ressalte-se,

entretanto, que a imposição de uma pena, qualquer que seja ela, é fruto de uma condenação

que produz efeitos no âmbito penal, como a perda da primariedade, e no âmbito extrapenal,

tornando certa a obrigação de reparação do dano. Além disso, o não cumprimento de qualquer

pena restritiva de direitos leva a conversão à pena privativa de liberdade, não se podendo falar

em impunidade.

Entretanto, é o artigo 4114

da Lei n° 11.340/2006, que veda a aplicação da lei n°

9.099/1995 aos crimes praticados em situação de violência doméstica e familiar contra a

mulher, que atendeu às expectativas do movimento feminista no sentido de enrijecimento do

sistema penal em relação ao homem-agressor da mulher-vítima de violência doméstica e

familiar. Isto porque, como dito anteriormente, as feministas criticaram severamente a

utilização da Lei nº 9.099/1995 nos conflitos envolvendo violência doméstica e familiar

contra a mulher, pois levaria a uma trivialização da violência de gênero em razão dos seus

institutos despenalizadores e também em razão de a mesma lei definir como sendo de ação

penal pública condicionada à representação o crime de lesão corporal leve.

13 Art. 17. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.

14 Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995.

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Segundo Lenio Luiz Streck (1999, p. 94):

Com o juizado especial criminal, o Estado sai cada vez mais das relações sociais. No fundo, institucionalizou a ‘surra doméstica’ com a transformação do delito de lesões corporais de ação pública incondicionada para ação pública condicionada. [...] O Estado assiste de camarote e diz: batam-se que eu não tenho nada com isto. É o neoliberalismo no Direito, agravando a própria crise da ‘teoria do bem jurídico’, própria do modelo liberal individual de Direito.

A Lei “Maria da Penha” ainda alterou o parágrafo nono do artigo 129 do Código

Penal, passando a prever pena de 3 (três) meses a 3 (três) anos de detenção para o crime de

lesão corporal leve no âmbito doméstico, deixando tal infração de ser classificada como de

menor potencial ofensivo e, por consequência, utilizar-se do procedimento sumaríssimo.

A vedação de utilização da Lei nº 9.099/1995 também afastou a possibilidade de

lavratura do termo circunstanciado de ocorrência, trazendo novamente a possibilidade de

prisão em flagrante para crimes e até mesmo contravenções penais quando envolver violência

doméstica e familiar contra a mulher, prisão que pode ser convertida em preventiva nos

termos do artigo 313, III, do Código de Processo Penal15

, forma de prisão sem condenação

que, em regra, só atinge os grupos sociais mais vulneráveis, dada a seletividade do nosso

sistema penal, podendo levar ao absurdo de um indivíduo responder preso a um processo em

que, na pior das hipóteses, mesmo condenado não será imposta pena de prisão.

Tais dispositivos da Lei nº 11.340/2006, em especial o artigo 41, foram alvo de críticas

por boa parte da doutrina penalista que entendiam violadores de princípios como o da

isonomia. Nesse sentido, Maria Lucia Karam (2006, p. 10) enuncia:

Na Lei nº 11.340/2006 a indevida supressão de direitos fundamentais logo aparece na negação da isonomia, manifestada na exclusão da incidência da Lei nº 9.099/95 em hipóteses de crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher (artigo 41) ou na vedação da aplicação de penas de prestação pecuniária e de substituição da pena privativa de liberdade que implique o pagamento isolado de multa (artigo 17). O princípio da isonomia implica que o mesmo tratamento seja dado e os mesmo direitos sejam reconhecidos a todos que estejam em igualdade de condições e situações. A particularidade de uma determinada infração penal retratar uma violência de gênero não é um diferencial quando se cuida de institutos relacionados à dimensão do potencial ofensivo da infração penal ou quando se cuida

15

Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva: I - nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos; II - se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal; III - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência; Parágrafo único. Também será admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida.

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do modo de execução da pena concretamente imposta, não se autorizando, assim, por essa irrelevante particularidade, a desigualdade de tratamento. A dimensão de uma infração penal que a faz ser identificável como de menor potencial ofensivo ou de médio potencial ofensivo é determinada pela Lei nº 9.099/95 com base tão

somente na medida das penas máxima ou mínima abstratamente cominadas. Trata-se aqui de lei geral imperativamente aplicável a todos que se encontrem na situação por ela definida, não estando autorizada a desigualdade de tratamento entre pessoas a quem seja atribuída prática de infrações penais que, definidas em regras que a elas

cominam penas máximas ou mínimas de igual quantidade, apresentam igual dimensão de ofensividade. No que concerne à dimensão de seu potencial ofensivo, uma infração penal retratando violência de gênero a que cominada pena máxima de dois anos não se distingue de quaisquer outras infrações penais a que cominadas

iguais penas máximas. Todas se identificam, em sua igual natureza de infrações penais de menor potencial ofensivo, pela quantidade das penas que lhes são abstratamente cominadas e todos seus apontados autores igualmente se identificam na igualdade de condições e situações em que se encontram.

O Poder Judiciário, através do Supremo Tribunal Federal, quando acionado em relação à Lei “Maria da Penha”, deu mostras de adesão à estratégia feminista de utilização do Direito

Penal e sua carga simbólica, como forma de superação da discriminação e violência sofrida

pela mulher. Primeiramente, através do julgamento de um habeas corpus de relatoria do

ministro Marco Aurélio Mello, que estendeu a vedação de utilização da Lei nº 9.099/1995

também às contravenções penais, quando o artigo 41 da Lei “Maria da Penha” fala tão

somente em crimes.

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – ARTIGO 41 DA LEI Nº 11.340/06 – ALCANCE. O preceito do artigo 41 da Lei nº 11.340/06 alcança toda e qualquer prática delituosa contra a mulher, até mesmo quando consubstancia contravenção penal, como é a relativa a vias de fato. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – ARTIGO 41 DA LEI Nº 11.340/06 – AFASTAMENTO DA LEI Nº 9.099/95 – CONSTITUCIONALIDADE. Ante a opção político-normativa prevista no artigo 98, inciso I, e a proteção versada no artigo 226, § 8º, ambos da Constituição Federal, surge harmônico com esta última o afastamento peremptório da Lei nº 9.099/95 – mediante o artigo 41 da Lei nº 11.340/06 – no processo-crime a revelar violência contra a mulher.(HC 106212/MS – Relator: Min. Marco Aurélio. Julgamento: 24/03/2011. Tribunal Pleno)

Tal julgamento, à unanimidade pelos ministros da nossa Corte Constitucional,

representa uma afronta ao princípio da reserva legal, um dos pilares do modelo garantista

desenhado por Luigi Ferrajoli para conter e racionalizar o poder punitivo estatal na seara

penal e preservar próprio de um Estado Democrático de Direito como é o nosso. Tal princípio

veda a aplicação da analogia in malam partem e da interpretação extensiva nas normas de

natureza penal.

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Segundo Luigi Ferrajoli (2010, p. 351):

Também em relação à proibição de analogia há que se distinguir dentre as leis penais aquelas que são favoráveis ou desfavoráveis ao réu. A analogia encontra-se excluída se é in malam partem, enquanto é admitido caso seja in bonam partem, ao

estar sua proibição dirigida, conforme o critério geral do favor rei, a impedir não a restrição, mas somente a extensão por obra da discricionariedade judicial do âmbito legal da punibilidade. Disso segue-se em termos mais gerais o dever de interpretação restritiva e a proibição de interpretação extensiva das leis penais.

Diferentemente das normas processuais “que regulamentam aspectos relacionados ao

procedimento ou à forma dos atos processuais [...] as normas materiais são aquelas que

objetivam assegurar direitos ou garantias” (AVENA, 2010, p.64). O artigo 41 da Lei n°

11.340/2006 é de natureza penal ou material, uma vez que envolve direitos e garantias do

acusado com relação à utilização dos institutos despenalizadores da transação penal e da

suspensão condicional do processo, não podendo, porquanto, fazer-se uso da analogia, nem da

interpretação extensiva.

Também o Supremo Tribunal Federal, em razão das dúvidas acerca da

constitucionalidade de alguns dispositivos da Lei n° 11.340/2006, principalmente por violação

ao princípio da isonomia, no julgamento da ADC n° 19 e ADI n° 4424 em fevereiro de 2012,

julgou constitucionais todos os dispositivos dizendo não haver violação ao princípio da

igualdade, justificando os ministros seus votos no fato de que a igualdade almejada não é tão

somente a igualdade formal, mas a igualdade material, e a mulher em razão de seu passado de

discriminação e submissão em relação ao homem em uma sociedade ainda patriarcal e

machista tem que ter um tratamento diferenciado, tornando-se ainda necessária a adoção de

medidas afirmativas em favor da mesma. Além disso, com base no princípio da

proporcionalidade que veda não somente o excesso, mas também a proteção deficiente,

entenderam os ministros do Supremo Tribunal Federal que o crime de lesão corporal leve e

culposa praticado contra a mulher em situação de violência doméstica e familiar seria de ação

pública incondicionada e não mais pública condicionada à representação da vítima como nos

demais casos.

Contudo, deve ser ressaltado o voto vencido do ministro Cezar Peluso, que por muitos

anos foi juiz de uma Vara de Família, no julgamento da ADI nº 4424, em que se mostra

contrário à incondicionalidade da ação penal no crime de lesão de natureza leve por entender

que “muitas mulheres não fazem a delação, não levam a notícia-crime por decisão que

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55 significa exercício do núcleo substancial da dignidade da pessoa humana, que é a

responsabilidade do seu destino. Isso é dimensão que não pode ser descurada”.

Em seu voto, o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal chama a atenção para um

outro fato:

Alega-se que a mulher ignora - vamos dizer - as sutilezas jurídicas de uma ação pública. E, neste caso, para mim, a situação é ainda pior. Por quê? Porque há o risco de ela ser, continuando a conviver com o parceiro que a ofendeu - e pode ter sido ofensa eventual e isolada -, no meio dessa convivência eventualmente já pacificada mediante renovação do pacto familiar, ser surpreendida com uma sentença

condenatória, que terá no seio da família consequências imprevisíveis.16

As ponderações feitas não alteraram o rumo do julgamento, nem seu resultado, tendo o

Supremo Tribunal Federal firmado entendimento de que o crime de lesão leve quando

praticado em situação de violência doméstica contra a mulher é de ação pública

incondicionada.

Percebe-se, portanto, em relação às normas de natureza penal e processual penal

contidas na Lei “Maria da Penha”, uma clara opção tanto por parte do Legislativo como do

Poder Judiciário de adoção de um modelo retributivo de justiça criminal que, como visto

anteriormente, encontra-se em uma profunda crise de legitimidade, principalmente por ser

excludente e estigmatizante, tornando-se incoerente a utilização por parte de grupos

feministas desse mesmo modelo de justiça desigual para superar diferenças e promover

mudanças comportamentais.

2.4 CRÍTICA AO MODELO RETRIBUCIONISTA-AFLITIVO ADOTADO PELA LEI MARIA DA PENHA

Segundo Adriana Ramos de Mello, para alguns, a exemplo de Nilo Batista, a opção

retributivista-aflitiva da Lei Maria da Penha não se mostra como a mais adequada para “o

enfrentamento da violência de gênero, a superação dos resquícios patriarcais, o fim desta ou

de qualquer outra forma de discriminação, não se dará através da sempre enganosa, dolorosa e

danosa intervenção do sistema penal” (MELLO, 2009, p. 03).

As situações de violência doméstica e familiar contra a mulher em sua grande maioria

envolvem os chamados conflitos em relações continuadas, uma vez que as partes tem ou

16

Extraído de: <http://www.compromissoeatitude.org.br/wp-content/uploads/2012/07/ADI4424STF09022012.pdf> Acesso em 04 de dez 2014.

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56 tiveram um vínculo afetivo ou de parentesco que, mesmo quando desfeito, ainda persiste,

muitas vezes em razão de uma prole gerada ou relacionamentos não totalmente desfeitos. A

intervenção penal de maneira pontual com a resolução do processo e aplicação de uma

punição ao homem-agressor sem analisar a fundo o conflito intersubjetivo instaurado em suas

mais diversas vertentes, não tem um efeito transformador na violência simbólica que garante

ainda uma superioridade do homem frente à mulher, não fazendo cessar, por conseguinte, o

ciclo de violência característico da violência de gênero.

Nesse sentido, Zapparolli (2013, p. 183):

Ao não se atingir o cerne do conflito intersubjetivo, mas apenas dirimirem-se pontualmente as disputas ou lides, não haverá modificação na maneira de os envolvidos comunicarem-se e relacionarem-se e, portanto, havendo novas situações conflitivas, sem que haja a possibilidade de um tratamento funcional pelos próprios envolvidos, é quase certo que as respectivas disputas chegarão ao Judiciário de maneira imprevisível e incontrolável, muitas vezes já intensificadas a situações de violências e crimes.

Uma outra crítica que se faz à opção retribucionista-aflitiva, claramente adotada pela

Lei nº 11.340/06, é que o próprio sistema de justiça retributiva tem um olhar conservador de

manutenção do status quo e dos papéis sociais a serem desempenhados por homens e

mulheres, que na maior parte dos casos levados à apreciação influenciam na decisão, ou seja,

de nada adianta uma mudança legislativa se os operadores do direito permanecem com uma

mesma visão de reprodução das diferenças de papéis atribuídos ao gênero masculino e

feminino.

A adequação aos papéis sociais é um argumento presente não apenas nas intervenções dos agentes jurídicos – advogados, promotores, juízes – mas também nos depoimentos de vítimas, acusados e testemunhas. Dentro do padrão do que é considerado “comportamento normal”, o homem é avaliado por seu bom desempenho no mundo do trabalho: ser bom empregado, honesto e dedicado são fatores que pesam na hora da decisão judicial. Se for casado, interessa também saber se ele cumpre seu papel de provedor do lar. A mulher, quando casada, é avaliada segundo suas atribuições de esposa-mãe-dona-de-casa e suas expressões de fidelidade e submissão ou, se for solteira, segundo seu comportamento sexual, como ser virgem e recatada, valores definidos a partir da ordem moral dominante. (IZUMINO, 2004, p. 104).

Outras vezes, o que é levado em conta pelo sistema de justiça retributiva em suas

decisões é a preservação da família e do casamento. Sentenças absolutórias são prolatadas em

razão da reconciliação da vítima e do agressor, sem levarem em conta os motivos do

reatamento, que pode ter se dado, por exemplo, em razão muitas vezes da dependência

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57 econômica da mulher ou até mesmo do homem (IZUMINO, 2004, p. 237). Não há espaço no

processo criminal, movido cada vez mais pela celeridade, para o diálogo franco e aberto entre

as partes, nem mesmo para que as mesmas sejam ouvidas expressando as suas angústias,

medos e os reais problemas que as afligem, nem o que de fato esperam da Justiça que, na

maioria das vezes, não é o que ela proporciona: a aplicação de uma pena no caso de uma

condenação ou uma sentença absolutória em razão da reconciliação das partes envolvidas, que

não põe fim ao ciclo de violência, ao contrário, acaba muitas vezes por alimentá-lo.

Outra crítica que pode ser feita em relação ao modelo retributivo, adotado para

combater a violência de gênero, é que a própria “Lei Maria da Penha”, em seu art. 7º17

,

enumera uma série de formas de violência doméstica e familiar contra a mulher e nem todas

se enquadram em condutas típicas previstas na legislação penal, razão pela qual não podem

ser alvo de um processo criminal. Nesse caso, tais formas de violência ficam desprovidas de

qualquer meio de administração de conflitos, podendo levar a uma intensificação da situação

de violência até que possa se enquadrar em uma infração penal prevista em lei, quando

poderia tal ato de violência ser extirpado em seu nascedouro através de outros mecanismos de

solução de conflitos que não o modelo retributivo acolhido pela legislação pátria.

Certo é que o modelo de justiça retributiva imposto pela Lei Maria da Penha é incapaz

de combater de forma efetiva os conflitos envolvendo violência doméstica contra a mulher e

produzir mudanças reais nas relações de gênero, até porque a conscientização com a mudança

de conceitos nunca se dará através da simples repressão. Também é certo que a Lei nº

11.340/06 não trouxe somente normas de natureza penal, havendo uma série de artigos de

caráter extrapenal, podendo ser citados como exemplo os artigos 8° e 35 do referido diploma

17

Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

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58

legal18

, que trazem em seu bojo políticas públicas não repressivas, mas que dependem para a

sua implementação de uma atuação forte por parte do Estado-Administração, empenho que

não se observa por parte do Executivo. “A falta dessas ações, por parte do Poder Executivo,

faz com que o judiciário somente possa aplicar as medidas repressivas, pois os aparatos

policial e prisional, por mais insuficiente que possam parecer, já estão prontos para agir” (MELLO, 2010, 942).

É justamente por entender que a questão da violência doméstica e familiar contra a

mulher é bastante complexa por envolver uma série de nuances, que o modelo tradicional de

justiça retributiva, que se encontra em uma crise de legitimidade, é incapaz de atender aos

anseios das partes envolvidas, bem como de promover as mudanças almejadas pelo

movimento feminista, que devem se buscar outras formas de soluções de tais conflitos,

18

Art. 8o A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de

um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais, tendo por diretrizes: I - a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação; II - a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes, com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia, concernentes às causas, às conseqüências e à frequência da violência doméstica e familiar contra a mulher, para a sistematização de dados, a serem unificados nacionalmente, e a avaliação periódica dos resultados das medidas adotadas; III - o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar, de acordo com o estabelecido no inciso III do art. 1o, no inciso IV do art. 3o e no inciso IV do art. 221 da Constituição Federal; IV - a implementação de atendimento policial especializado para as mulheres, em particular nas Delegacias de Atendimento à Mulher; V - a promoção e a realização de campanhas educativas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas ao público escolar e à sociedade em geral, e a difusão desta Lei e dos instrumentos de proteção aos direitos humanos das mulheres; VI - a celebração de convênios, protocolos, ajustes, termos ou outros instrumentos de promoção de parceria entre órgãos governamentais ou entre estes e entidades não-governamentais, tendo por objetivo a implementação de programas de erradicação da violência doméstica e familiar contra a mulher; VII - a capacitação permanente das Polícias Civil e Militar, da Guarda Municipal, do Corpo de Bombeiros e dos profissionais pertencentes aos órgãos e às áreas enunciados no inciso I quanto às questões de gênero e de raça ou etnia; VIII - a promoção de programas educacionais que disseminem valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia; IX - o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher. Art. 35. A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios poderão criar e promover, no limite das respectivas competências: I - centros de atendimento integral e multidisciplinar para mulheres e respectivos dependentes em situação de violência doméstica e familiar; II - casas-abrigos para mulheres e respectivos dependentes menores em situação de violência doméstica e familiar; III - delegacias, núcleos de defensoria pública, serviços de saúde e centros de perícia médico-legal especializados no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar; IV - programas e campanhas de enfrentamento da violência doméstica e familiar; V - centros de educação e de reabilitação para os agressores.

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apresentando-se a justiça restaurativa então como uma opção viável e talvez mais eficaz no combate a violência de gênero.

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60 3 PESQUISA DE CAMPO REALIZADA NO JUIZADO DE VIOLÊNCIA

DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER DA COMARCA DE

ARACAJU (SE)

3.1 METODOLOGIA

A hipótese estabelecida para esta pesquisa é que o modelo retributivo de justiça

criminal, reforçado com a Lei nº 11.340/2006, não atende aos anseios da mulher vítima de

violência doméstica e familiar e que a justiça restaurativa surge como uma opção mais

adequada para atender tais demandas surgidas dos conflitos envolvendo violência de gênero.

Para comprovação ou não da hipótese antes levantada, foi realizada uma pesquisa de campo

que, segundo Lakatos e Marconi (1996), consiste na observação e coleta de dados diretamente

no próprio local em que se deu o fato em estudo, caracterizando-se pelo contato direto com o

mesmo, sem interferência do pesquisador, pois os dados são observados e coletados tal como

ocorrem espontaneamente.

Ainda de acordo com as mesmas autoras, tal pesquisa deve ser realizada após estudos

bibliográficos acerca do tema, a fim de que o pesquisador tenha um conhecimento prévio e

sólido sobre o assunto e possa definir os objetivos, meio de coleta de dados e a metodologia a

ser aplicada. Antes da pesquisa de campo, foi realizada uma vasta pesquisa bibliográfica,

envolvendo temas relacionados com o objeto da pesquisa, como a violência de gênero e os

modelos retributivo e restaurativo de justiça criminal. Após, definiram-se os objetivos.

A pesquisa teve como principal objetivo avaliar se o modelo retribucionista-aflitivo

instituído pela Lei “Maria da Penha” atende aos anseios da mulher vítima de violência

doméstica e familiar. Além desse objetivo principal, a presente pesquisa buscou definir o

perfil da mulher vítima de violência de gênero da cidade de Aracaju (SE).

A pesquisa realizada foi de natureza quali-quantitativa e semiestruturada, uma vez que

se optou pela elaboração de um questionário que combinou perguntas fechadas, em sua

grande maioria, mas também perguntas abertas. De acordo com Richardson (1999), as

perguntas em um questionário devem observar uma ordem, iniciando-se com questões

sociodemográficas, em seguida perguntas genéricas referentes à problemática para só então

incluir as questões que constituem o núcleo do questionário. Tal ordem foi observada na

elaboração do questionário (anexo 01), introduzindo-se com perguntas referentes ao perfil da

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61 mulher vítima de violência doméstica e só depois questões envolvendo o objetivo principal da

pesquisa.

Frise-se que, consoante o apregoado pela doutrina consultada sobre metodologia da

pesquisa, foi realizado um pré-teste com a aplicação de questionário a algumas pessoas, a fim

de detectar possíveis falhas na elaboração das questões, bem como na sua aplicação, fazendo-

se as correções necessárias e se chegando a uma versão final do questionário e método de

aplicação. Os resultados da pesquisa do pré-teste foram descartados.

Para aplicação do questionário, foi utilizado o método do contato direto individual por

apresentar vantagens em relação ao método de envio do questionário por correio. Sobre o

método direto de aplicação do questionário e suas vantagens, Richardson (1999, p. 196)

esclarece:

O próprio pesquisador, ou pessoas especialmente treinadas por ele, aplicam o questionário diretamente. Dessa maneira, há menos possibilidades de os entrevistados não responderem ao questionário ou de deixarem algumas perguntas em branco. No contato direto, o pesquisador pode explicar e discutir os objetivos da pesquisa e do questionário, responder dúvidas que os entrevistados tenham em certas perguntas.

Na presente pesquisa, a aplicação do questionário se deu através de alunos do curso de

graduação em Direito que integravam o grupo de pesquisa de “Estudos sobre Violência e Criminalidade na Contemporaneidade” da Universidade Federal de Sergipe, grupo este

coordenado pela Professora Doutora Daniela Carvalho Almeida da Costa e que teve este

pesquisador como co-coordenador. Tais alunos foram orientados de como proceder na

abordagem e aplicação do questionário às entrevistadas, sendo as mesmas alertadas

inicialmente se queriam ou não responder ao questionário e da possibilidade de não responder

a uma ou mais questões.

O universo pesquisado foi de mulheres que figuravam como vítima em processo

judicial em trâmite no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da

Comarca de Aracaju (SE). Tendo sido realizada a aplicação dos questionários nos meses de

setembro, outubro e novembro de 2013, resultando na oitiva de 191 (cento e noventa e uma)

mulheres vítimas de violência de gênero, as quais foram entrevistadas no fórum Gumercindo

Bessa, enquanto aguardavam audiência a ser realizada no Juizado ou procuravam informações

acerca do processo.

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As respostas obtidas com a aplicação dos questionários foram repassadas para um

banco de dados eletrônico (arquivo de computador), realizando-se em seguida uma tabulação

que tornou possível a análise dos resultados por parte do autor desta pesquisa.

3.2 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Este tópico tem como finalidade discutir e apresentar a interpretação dos resultados

obtidos com a aplicação dos questionários às mulheres vítimas de violência doméstica e

familiar ouvidas no período de setembro a novembro de 2013 no Juizado de Violência

Doméstica e Familiar contra a Mulher. Os resultados tabulados, com tratamento estatístico em

relação a todas as questões, encontram-se anexo a esta dissertação.

Uma primeira parte do questionário é dedicada a perguntas sociodemográficas, com o

objetivo de traçar o perfil da mulher vítima de violência doméstica, já a segunda parte é

voltada para o objeto principal da pesquisa, que é identificar se o modelo de justiça criminal

implementado pela Lei Maria da Penha atende aos interesses das mulheres vítimas de

violência de gênero.

A primeira pergunta do questionário refere-se ao domicílio das vítimas, e a análise do

gráfico nos leva a concluir que o fenômeno da violência doméstica e familiar contra a mulher

está espalhado por toda a nossa capital. Entretanto, percebe-se uma nítida concentração nas

zonas sul e norte da capital.

Gráfico 1- Identificação da zona residencial das respondentes Fonte: Pesquisa de campo do autor, 2013.

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A zona sul que ocupa o primeiro lugar, domicílio de 73 (setenta e três) das mulheres

entrevistadas ou 38,2% (trinta e oito por cento) do universo da pesquisa é composta por

bairros como Salgado Filho, Luzia, Jardins, 13 de Julho, Farolândia, Atalaia, dentre outros19

.

Tais bairros são ocupados, em regra, por pessoas que compõem a classe média e alta da

sociedade. Enquanto que a zona norte, que vem em segundo lugar no domicílio das vítimas

com 53 (cinquenta e três) mulheres abrange bairros como Santos Dumont, Bugio, Coqueiral,

Soledade, Japãozinho, que representam a periferia da cidade de Aracaju e, por conseguinte,

grupos sociais que representam as camadas sociais mais pobres.

Isso sinaliza que o fenômeno da violência de gênero atinge mulheres das mais diversas

classes sociais, não se restringindo às classes sociais mais vulneráveis, o que só vem a

reforçar que tal modalidade de violência é mais um problema cultural de uma sociedade que,

apesar das mudanças ocorridas nas últimas décadas, ainda mantém um modelo patriarcal de

família.

As três perguntas seguintes do questionário, dizem respeito à faixa etária, raça e grau

de escolaridade. Vejamos o resultado através dos gráficos:

Gráfico 2- Perfil das mulheres pesquisadas quanto à faixa etária Fonte: Pesquisa de campo do autor, 2013.

Percebe-se, claramente, um predomínio das mulheres-vítimas na faixa etária que se

estende de 20 (vinte) a 39 (trinta e nove) anos, representando 67,5% (sessenta e sete e meio

por cento), ou seja, a imensa maioria das entrevistadas. É justamente nessa faixa etária que se

percebe uma maior concentração de mulheres no mercado de trabalho, segundo dados do

19

Extraído de: <http://www.aracaju.se.gov.br/Mapas_Aracaju.pps>. Acesso em 10 dez 2014.

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último censo do IBGE, realizado em 201020

. Além disso, tal faixa etária concentra ainda a

maior parte dos casamentos e uniões estáveis. Tais fatos (constituição de família e ingresso no

mercado de trabalho) guardam relação com a problemática da violência de gênero, pois

representam mudanças na dinâmica familiar e, por conseguinte, no modelo patriarcal

tradicional, já que a mulher deixa de ocupar somente o ambiente privado e passa junto com o

homem a ocupar o espaço público, causa geradora de conflitos.

Gráfico 3- Perfil das pesquisadas quanto à cor/raça Fonte: Pesquisa de campo do autor, 2013.

O gráfico 3 indica que a maior parte das vítimas é de mulheres de cor parda, seguidas

da raça negra e branca. Já a questão relacionada ao grau de escolaridade demonstra que a

maioria das mulheres vítimas de violência doméstica possuem ensino médio completo, em

segundo lugar vêm aquelas que possuem ensino fundamental incompleto e, em terceiro,

portadoras de diploma de ensino superior, o que somente comprova um aumento do acesso da

mulher ao ensino médio e superior (BOURDIEU, 2005, p. 107).

20

Extraído de: <http://www.ibge.gov.br/apps/snig/v1/?loc=0&cat=128,2,-2,-3,99,100,101,60,8&ind=4728>. Acesso em 10 dez 2014

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Gráfico 4- Perfil das pesquisadas quanto ao nível de escolaridade Fonte: Pesquisa de campo do autor, 2013.

Os gráficos a seguir, representativos das perguntas que se seguem no questionário,

dizem respeito a questões relacionadas à capacidade econômica da mulher vítima de violência

doméstica.

A primeira pergunta foi se a ofendida exercia atividade remunerada e 65% (sessenta e

cinco) por cento das mulheres responderam que sim, ou seja, mais da metade delas trabalha e

possui renda própria, comprovando que cada vez mais mulheres ingressam no mercado de

trabalho. Dados do último censo demográfico do IBGE21

, realizado em 2010, já atestavam

um aumento significativo do número de mulheres na população ocupada, mais de trinta e

cinco milhões contra os 24 (vinte e quatro) milhões do censo de 2000. Isso só comprova que a

mulher, assim como visto acima em relação ao grau de escolaridade, vem cada vez mais

ocupando o espaço público, não se limitando ao ambiente privado e aos afazeres domésticos.

Esse é um outro fator de transformação do modelo tradicional de família.

Segundo Ivone Granjeiro (2012, p. 172):

A saída da mulher de casa para estudar e trabalhar promoveu um grande reajuste familiar em relação aos filhos e, especialmente, ao marido, “que muitas vezes não aceita ou aceita com restrições” (DAY, 2006, p. 402) essa emancipação. Ainda há homens que mantém internalizado o contrato patriarcal, no qual o casamento lhe dá a incumbência de sustentar a família – o homem provedor com autoridade moral perante o grupo familiar -, enquanto a mulher fica responsável pelos afazeres domésticos e pela criação da prole.

21

Extraído de:<http:// www.ibge.gov.br/apps/snig/v1/?loc=0&cat=128,129,2,-2,-3&ind=4728>. Acesso em 10 de dez 2014

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Gráfico 5- Exercício de atividade remunerada Fonte: Pesquisa de campo do autor, 2013.

O gráfico 6 representa a faixa salarial das mulheres que exerciam atividade

remunerada à época da pesquisa, sendo que às que não responderam foram justamente às que

não desempenhavam nenhuma atividade laborativa. Percebe-se que a imensa maioria recebe

uma remuneração de um salário mínimo, podendo chegar até cinco. Os dados extraídos do

último censo realizado pelo IBGE demonstram haver ainda uma disparidade entre a

remuneração paga às mulheres em relação aos homens, sendo que as primeiras percebem em

média 70% (setenta por cento) do que os homens no desempenho das atividades o que

evidencia uma clara discriminação com relação ao sexo feminino. Isso só vem a confirmar

que, apesar do expressivo avanço das mulheres no espaço público, ainda persiste uma

condição de subordinação da maior parte delas no mercado de trabalho e de grandes

diferenças salariais entre homens e mulheres mesmo no desempenho de funções idênticas.

Gráfico 6- Informação da faixa salarial das mulheres pesquisadas Fonte: Pesquisa de campo do autor, 2013.

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Por outro lado, a pesquisa demonstrou que mais da metade das mulheres não dependem

economicamente de alguém e a maior parte delas também mora em imóvel próprio, segundo

se depreendem pela análise e interpretação dos dois gráficos, a seguir.

Gráfico 7- Existência de dependência econômica Fonte: Pesquisa de campo do autor, 2013.

Gráfico 8- Tipo de moradia Fonte: Pesquisa de campo do autor, 2013.

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Tais informações são importantes, pois, além de continuar a demonstrar uma mudança

no modelo tradicional de família, vai de encontro a um dos discursos utilizados pelo

movimento feminista de que a dependência econômica inibiria as denúncias por parte das

mulheres quando vítimas de violência de gênero, pois se sentiriam ameaçadas em perder sua

fonte de sustento ou o local para morar. Tal conclusão é reforçada com a resposta dada pelas

mulheres às questões 13, 14 e 15, consoante se verá mais à frente. Na verdade, os conflitos

que envolvem violência doméstica e familiar entre homens e mulheres são bastante

complexos, englobando uma série de fatores, não se admitindo tais simplificações.

Obedecendo à ordem sugerida por Richardson (1999, p. 201), as questões seguintes

tratam de questões genéricas acerca da problemática, tais como: a relação da ofendida com o

agressor, o tipo ou tipos de violência que sofreu e se já havia sido vítima de violência

anteriormente.

Restou mais do que comprovado que a violência doméstica e familiar contra mulher

tem como principal algoz o seu cônjuge, companheiro, noivo ou namorado, seja o atual ou o

ex. Se somarmos os dois grupos, chegaremos à cifra de 156 (cento e cinquenta e seis) em um

universo pesquisado de 191 (cento e noventa e uma mulheres) pesquisadas, o que corresponde

a 81,7% (oitenta e um vírgula sete por cento). Havendo um pequeno percentual de agressores

que figuram como descendentes, ascendentes, colaterais e outros, conforme gráfico que segue.

Gráfico 9- Tipo de relação com o agressor Fonte: Pesquisa de campo do autor, 2013.

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Enquanto a maioria dos agressores dos homens, em situação de violência, é de

estranhos, a violência contra a mulher tem como agressor preferencial o parceiro que goza da

sua intimidade (cônjuge, companheiro, namorado). Isso pode ser explicado, como visto no

capítulo I, pelo papel definido ao homem pela sociedade em que a masculinidade teria como

atributos a virilidade, agressividade, competitividade, dentre outros e que envolveria relações

de poder entre o macho-dominante e a mulher-dominada, tida como frágil e sensível, segundo

o modelo patriarcal tradicional, gerador de tensões e conflitos.

A construção de um mundo em comum na relação conjugal exige fazer ajustes dos papéis, funções e poder que, no mais das vezes, geram conflitos no futuro. A distribuição das funções, em regra, não é paritária, porque os casais ainda se baseiam em modelos tradicionais. (GRANJEIRO, 2012, p.48).

Tais conflitos se intensificaram nas últimas décadas em virtude das mudanças

ocorridas nas relações homem-mulher no interior da casa-família. Mudanças

socioeconômicas, como o incremento no grau de escolaridade somado à crescente inserção da

mulher no mercado de trabalho (evidenciados nos gráficos acima), assim como fatores de

mudança de valores culturais: o primeiro referente ao processo de individualização e

autonomia da mulher, tornando mais igualitária a autoridade no ambiente doméstico,

deixando de ser exclusiva do marido ou parceiro, além da separação entre sexualidade e

reprodução com a descoberta de métodos contraceptivos (SCHRAIBER, 2005, p. 83). Todos

esses fatores reunidos colocam em xeque o modelo patriarcal tradicional e a autoridade

masculina. “Nesse contexto é que surge a violência, justificada como forma de compensar

possíveis falhas no cumprimento ‘ideal dos papéis de gênero’” (DIAS, 2007, p.17).

A questão 11 (onze) do questionário refere-se ao tipo de violência sofrida. Tais

modalidades foram extraídas do artigo 7° da Lei n° 11.340/200622

e o rol trazido pela lei não é

22

Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

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70 taxativo, uma vez que o dispositivo no caput utiliza a expressão “entre outras”, não se

tratando de numerus clausus.

De tal alargamento, decorre que nem todas as condutas consideradas violentas pela Lei possuem um correspondente penal. É por isso que se deve ter muita atenção com o conceito de violência lá trazido. Enquanto no direito penal a violência pode ser física ou corporal (lesão corporal, p. ex.), moral (configurando grave ameaça) ou imprópria (compreendendo todo meio capaz de anular a capacidade de resistência – uso de estupefacientes, p. ex.). a Lei Maria da Penha se vale do seu sentido sociológico. (BIANCHINI, 2013, p. 42)

Em razão disso, muitas das formas de violência, descritas no artigo sétimo do citado

diploma legal, não geram responsabilidade penal por ausência de tipicidade.

Gráfico 10- Tipo de violência sofrida Fonte: Pesquisa de campo do autor, 2013.

Deve ser ainda ressaltado que, nessa questão, a entrevistada permitiria assinalar mais

de um item, já que poderia ter sido vítima de mais de uma das formas de violência apontadas

na Lei e que apresentam conceitos bastante amplos. A violência psicológica ficou em primeiro

lugar com 35% (trinta e cinco por cento) ou 139 mulheres, seguida de perto pela violência

física com 34,8% (trinta e quatro vírgula oito por cento) ou 138 entrevistadas. O que chama a

atenção é que a maior parte das formas de violência psicológica apontadas pela Lei

IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

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71 não constituem crime por ausência de previsão legal, ficando nesses casos fora do raio de ação

do modelo tradicional de justiça criminal. Segue-se à violência psicológica e física, a

violência moral, patrimonial e outras formas de violência, ocupando a violência sexual a

última posição.

A imensa maioria das mulheres que responderam ao questionário, ou seja, 82%

(oitenta e dois por cento), não forma vítimas de nenhum tipo de violência por parte de outro

agressor:

Gráfico 11- Violência doméstica sofrida anteriormente por parte de outro agressor Fonte: Pesquisa de campo do autor, 2013.

Também, a maioria das entrevistadas disse ter sido a primeira vez que foi agredida

pelo acusado no processo-crime, sendo que, nesse caso, o percentual não é tão expressivo,

havendo um universo significativo de oitenta e nove mulheres ou quarenta e sete por cento, ou

seja, quase a metade das mulheres entrevistadas, que já havia sido vítima de violência

doméstica e familiar, fato que demonstra que ainda muitas mulheres sofrem caladas às

primeiras agressões até resolver denunciar às autoridades competentes, dando ensejo ao que

foi denominado ciclo da violência. “Primeiro vem o silêncio seguido da indiferença. Depois

surgem as reclamações, reprimendas, reprovações e começam os castigos e as punições. Os

gritos transformam-se em empurrões, tapas, socos, pontapés, num crescer sem fim” (DIAS, 2007, p. 18).

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Gráfico 12- Violência praticada pela primeira vez pelo agressor contra a mulher pesquisada Fonte: Pesquisa de campo do autor, 2013.

Por outro lado, o fato de a maioria das mulheres denunciarem aos órgãos competentes

logo quando ocorre a primeira agressão sofrida, evidencia que a Lei Maria da Penha e a sua

divulgação trouxe, para o centro do debate, a questão da violência doméstica e familiar,

estimulando, cada vez mais, as vítimas de violência de gênero a não mais se calar diante das

agressões sofridas, deixando de ser um problema a ser resolvido no âmbito privado e

passando a merecer atenção por parte das autoridades públicas.

A questão seguinte indaga se a mulher vítima de violência doméstica e familiar já

registrou ocorrência contra o agressor outras vezes e o resultado foi o seguinte:

Gráfico 13- Registro da ocorrência de violência doméstica e familiar sofrida pela mulher Fonte: Pesquisa de campo do autor, 2013.

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73

O gráfico 13 atesta que a maioria (57%) das mulheres registrou ocorrência contra o

agressor pela primeira vez, número que se aproxima e muito com o do gráfico 12, no qual

53% (cinquenta e três por cento) das mulheres nunca antes haviam sido vítimas de violência

por parte do agressor, reforçando a ideia de que as mulheres estão se conscientizando de que

devem denunciar quando vítimas de violência doméstica e familiar.

Por outro lado, a análise do gráfico 13 também nos leva a concluir que, se 43%

(quarenta e três por cento) já procuraram a delegacia especializada para registrar ocorrência

contra o agressor em outras oportunidades, é porque o modelo de justiça criminal posto à

disposição pela Lei Maria da Penha não está sendo capaz de por termo ao ciclo de violência,

já que elas (mulheres-vítimas) estão voltando a socorrer-se do sistema penal, demonstrando

que o problema não foi resolvido de forma definitiva, voltando a se repetir. Isso ocorre, em

boa medida, porque “a lei acaba priorizando o aspecto retribucionista do direito penal ao invés

de experimentar mecanismos jurídicos menos conflituosos e, provavelmente, mais eficazes

para o atendimento dos interesses e tutela dos bens jurídicos da mulher” (GUIMARÃES, MOREIRA, 2014, p. 90). A imposição de uma pena ao agressor, no final do processo

criminal, na maioria das vezes não resolve o conflito intersubjetivo gerador da situação de

violência doméstica e familiar contra a mulher.

A mulher, vítima de violência de gênero, é a principal responsável pela denúncia

contra o homem-agressor, representando mais de 90%, seguida, muito de longe, pelos

membros da família e vizinhos. Isso reforça a tese de que a Lei nº 11.340/2006 encorajou as

mulheres a denunciar, quando vítimas dessa forma de violência. A Lei “Maria da Penha”

tornou visível o problema da violência doméstica e familiar contra a mulher, trazendo para o

centro do debate tal questão, permitindo, com isto, que as mulheres tivessem coragem de

apresentar denúncia pela violência sofrida. Entretanto, muitas vezes, a intenção da mulher ao

denunciar, registrando ocorrência na delegacia especializada, é uma forma de buscar ajuda na

resolução de problemas, envolvendo seu relacionamento com o parceiro agressor, solução esta

que está muito distante da simples imposição de uma pena. Isso porque, diversos são os

fatores que contribuem para o fenômeno da violência de gênero, como a personalidade do

agressor, o abuso do álcool e outras drogas, exclusão social, dentre outros.

Em razão disso, muitas vezes, há uma sensação de descrença por parte da ofendida em

relação ao Poder Judiciário quando se apercebe que a punição é a única resposta dada pelo

Estado-juiz. Ivonete Granjeiro, em pesquisa realizada, entrevistando casais envolvidos em

situação de violência de gênero, verificou isso em todos os relatos femininos: “percebe-se um

sentimento de desproteção e descrença na atuação do Poder Judiciário, a despeito de existir

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um tribunal específico para proteger a mulher contra a violência doméstica e familiar” (GRANJEIRO, 2012, p. 208).

Gráfico 14- Autoria da denúncia contra o agressor Fonte: Pesquisa de campo do autor, 2013.

A complexidade do fenômeno da violência doméstica e familiar exige uma resposta

multidisciplinar, envolvendo não só o direito, mas também a psicologia, o serviço social e

outras áreas das ciências sociais, a fim de proporcionar uma solução que atenda

verdadeiramente aos anseios da mulher-vítima. A Lei n° 11.340/2006, na verdade, traz

pouquíssimos dispositivos de natureza penal, não criou novos tipos penais, somente

recrudesceu o tratamento penal dado ao agressor, vedando a aplicação de pena de prestação

pecuniária ou cesta básica, exigindo um maior formalismo no que concerne à retratação da

vítima e impedindo a aplicação do procedimento sumaríssimo previsto na Lei n° 9.099/1995 e

seus institutos despenalizadores. A maioria dos dispositivos contidos na Lei “Maria da Penha”

tem o mérito de prever a criação de uma rede de apoio à mulher vítima de violência doméstica

e familiar dando ênfase, portanto, a esse caráter multidisciplinar que deve nortear a solução do

problema envolvendo a violência de gênero.

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Nesse sentido, Marília Montenegro Pessoa de Mello (2010, p. 492) esclarece que:

Um ponto importante da lei é o das medidas que não apresentam caráter penal, como as previstas nos arts. 8º, 9º, 22 e 23, que objetivam uma proteção à mulher em situação de violência. Algumas dessas medidas para serem efetivadas necessitam de ações positivas do Poder Executivo, como a articulação de ações do sistema único de saúde e do sistema único de segurança pública, para que o juiz possa encaminhar a mulher vítima de violência para programas de proteção. Não há dúvidas de que a melhor forma de combater a violência doméstica é através de políticas públicas não repressivas, conscientizando a população, principalmente pela educação para as novas gerações, como estabelecem os incisos III, V, VII, VIII e IX do art. 8º da lei 11.340/2006.

Entretanto, prossegue a autora:

A falta dessas ações, por parte do Poder Executivo, faz com que o Judiciário somente possa aplicar as medidas repressivas, pois o aparato policial e prisional, por mais insuficiente que possam parecer, já estão prontos para agir. É bem mais fácil para o juiz, por exemplo, encaminhar o agressor para a prisão do que para um tratamento de alcoolismo (MELLO, 2010, p. 942).

Isso restou demonstrado, em nossa pesquisa, quando foi perguntado se a mulher-

vítima foi atendida por alguma equipe multidisciplinar:

Gráfico 15- Atendimento efetuado por equipe multidisciplinar à mulher vítima de violência doméstica Fonte: Pesquisa de campo do autor, 2013.

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Oitenta e três por cento (83%) das mulheres entrevistadas responderam que não, ou

seja, a imensa maioria não recebeu qualquer suporte nas áreas psicossocial, jurídica e de

saúde. Pior, quando foi indagado ao universo de 16% (dezesseis por cento), que disse ter

recebido atendimento por equipe multidisciplinar, somente quatro por cento responderam que

foi no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e as demais em sede

policial, apesar do disposto nos artigos 29 e 30 da Lei nº 11.340/200623

. Talvez daí venha a

insatisfação da vítima em relação ao serviço prestado pelo Poder Judiciário, uma vez que a

imposição de uma pena ao agressor não é a resposta desejada, de regra, por ela, consoante

restará demonstrado mais adiante.

A questão de número 18 (dezoito) pergunta se, após o conflito, houve reconciliação ou

tentativa de reconciliação entre a mulher-vítima e o homem-agressor. O resultado foi o

seguinte:

Gráfico 16- Reconciliação da mulher com o agressor após a agressão Fonte: Pesquisa de campo do autor, 2013.

A maioria das vítimas (61%) respondeu que não houve reconciliação ou tentativa desta

após o conflito gerador do ato violento. Entretanto, 38% (trinta e oito por cento) responderam

sim à questão. Uma primeira constatação que pode ser feita, através da análise do gráfico 16,

23

Art. 29. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher que vierem a ser criados poderão

contar com uma equipe de atendimento multidisciplinar, a ser integrada por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde. Art. 30. Compete à equipe de atendimento multidisciplinar, entre outras atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito ao juiz, ao Ministério Público e à Defensoria Pública, mediante laudos ou verbalmente em audiência, e desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados para a ofendida, o agressor e os familiares, com especial atenção às crianças e aos adolescentes.

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77 é que o número de reconciliações obtidas ou tentadas entre vítima e agressor é expressivo,

representando mais da metade daquelas hipóteses em que não houve a reconciliação ou

tentativa desta. Não se têm claras as razões que levaram a tal atitude por parte da ofendida,

podendo ser explicado, em parte, pelas respostas obtidas na questão seguinte. O certo é que o

modelo tradicional de justiça criminal não está preocupado em ouvir os motivos que levaram

a reconciliação ou tentativa desta, uma vez que tem os olhos voltados para trás, para a

comprovação da culpa e imposição de pena ao agressor. A mulher-vítima tem um papel de

coadjuvante, quando, na verdade, deveria assumir uma posição de protagonista.

A questão, que se segue, evidencia a negligência do Estado em relação à vontade da

vítima, que afronta a sua autonomia e, por conseguinte, sua dignidade. A questão indaga se a

mulher pensou ou tentou retirar a denúncia ou desistir do processo. Antes de apresentarmos o

resultado, é bom frisar que as mulheres foram ouvidas quando já iniciado o processo, ou seja,

após o recebimento da denúncia, momento processual em que não mais se admite a retratação

da representação nos crimes de ação pública condicionada, segundo o disposto no artigo 16 da

Lei nº 11.340/2006. Importante ressaltar ainda que, segundo entendimento firmado pelo

Superior Tribunal de Justiça e exposto no capítulo II, somente é designada audiência de

retratação se a vítima procurar o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher

demonstrando o desejo de retratar-se. O resultado foi o seguinte:

Gráfico 17- Posição sobre possibilidade de retirar a denúncia contra agressor Fonte: Pesquisa de campo do autor, 2013.

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Cinquenta e seis por cento (56%) das mulheres ouvidas responderam que não

pensaram ou tentaram retirar a denúncia, ou desistir do processo, enquanto 44% (quarenta e

quatro por cento) responderam que sim, que pensaram ou tentaram retirar a denúncia ou

desistir do processo. Analisando tais números podemos chegar a algumas conclusões.

Uma primeira conclusão é que, mesmo não tendo se reconciliado com o agressor,

muitas mulheres demonstraram o desejo de retirar a denúncia ou desistir do processo, isto

porque o percentual de 44% supera o de 38% da questão analisada no gráfico 16. Dentro

desse universo de 44% (quarenta e quatro por cento), certamente existe uma parcela de

mulheres que foram vítimas de crime de ação penal pública condicionada à representação,

como é o caso do crime de ameaça, um dos delitos mais comuns quando se trata de violência

de gênero, que deixaram de retratar-se, mesmo desejando não dar prosseguimento ao

procedimento judicial, por desconhecimento da lei e por ignorarem o posicionamento do STJ,

não procurando o Juizado para requererem a designação de audiência específica para tal e

quando foram intimadas a comparecer a audiência de instrução e julgamento não mais podiam

mais fazer a retratação.

Mas, não é só isso que se pode extrair do número expressivo (44%) de mulheres que

tentaram retirar a denúncia ou desistir do processo. Outra conclusão a que podemos chegar é a

insatisfação da mulher vítima de violência doméstica e familiar ao tratamento que é dado,

pelo nosso sistema penal, ao conflito que gerou a situação de violência. Muitas mulheres, por

carecer de informação acerca do funcionamento do sistema penal, acabam por acioná-lo,

registrando uma ocorrência policial, sendo que a resposta dada não atende às suas

expectativas e necessidades. Quando tomam ciência disso, que a única resposta dada pelo

modelo retributivo de justiça criminal na maioria dos casos é tão somente a imposição de uma

pena, tentam retirar a denúncia ou desistir do processo, não podendo mais fazê-lo, ou porque

a infração penal é de ação pública incondicionada, ou, quando condicionada, porque não é

mais possível a retratação.

Não se pode dizer também, como alegam as feministas, que as mulheres tentam retirar

a denúncia ou dar prosseguimento ao processo em razão de pressões exercidas pelo homem-

agressor, porque, segundo a pesquisa, 44 (quarenta e quatro) das 83 (oitenta e três) mulheres

que pensaram ou tentaram retirar a denúncia ou desistir do processo, o que corresponde a um

percentual de 53% (cinquenta e três por cento), responderam que tal intenção se deu por

vontade própria, contra 9% ou 10,8% (dez vírgula oito por cento) que disseram ter sido em

razão de um pedido do agressor. Tais dados somente reforçam a ideia de que há, por parte da

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79 vítima, uma insatisfação em relação ao tratamento dado pelo sistema penal à violência de

gênero sofrida.

Gráfico 18- Motivos que levaram a mulher a retirar a denúncia/desistir do processo Fonte: Pesquisa de campo do autor, 2013.

Esse movimento da vítima de primeiro acionar o sistema penal e depois demonstrar o

desejo de não seguir em frente em razão de o mesmo não atender às suas expectativas, faz

com que, muitas vezes, a mulher seja tachada de irresponsável ou irracional pelos atores que

compõem o sistema penal (delegado, promotor, juiz, defensor), levando a um total descrédito

suas afirmações. Outras vezes, a vítima, não desejando dar prosseguimento ao processo, deixa

de comparecer a audiência de instrução e julgamento, onde deverá ser ouvida ou comparece e “mente” em suas declarações, desdizendo o que disse em sede policial.

Em todas essas hipóteses, na grande maioria dos casos, o acusado é absolvido por

insuficiência de provas, já que, como a violência doméstica e familiar se dá no ambiente

privado, as declarações da ofendida constituem muitas vezes o único meio de prova. O

modelo retributivo, portanto, além de não atender aos anseios de uma significativa parcela de

mulheres vítimas de violência, muitas vezes fica impossibilitado de dar a única resposta

possível, que é a imposição de uma sanção, não resolvendo o conflito intersubjetivo e

correndo o risco de provocar uma recidiva por parte do agressor diante da sensação de

impunidade.

Fica ainda mais evidente que a estratégia de grande parte do movimento feminista de

utilização da carga simbólica do Direito Penal como forma de “inverter o poder onipotente do

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80 marido sobre a mulher, trazendo à tona o equilíbrio na relação doméstica” (MELLO, 2010,

p.940), não atende às expectativas da imensa maioria das mulheres vítimas de violência

doméstica e familiar. Os resultados obtidos nas questões de número 22 (vinte e dois) e 23

(vinte e três) indicam isso.

Gráfico 19- Desejo da vítima pela condenação do agressor Fonte: Pesquisa de campo do autor, 2013.

Sessenta e dois por cento (62%) das mulheres responderam que não desejam uma

condenação, quase o dobro daquelas que a quer. A análise do gráfico 19 deixa claro que o

modelo retribucionista-aflitivo, imposto pela “Lei Maria da Penha”, não atende aos anseios da

imensa maioria das mulheres vítimas de violência doméstica que não querem,

necessariamente, a resposta penal tradicional, com a imposição de uma pena, para a solução

do conflito intersubjetivo, até porque tal modelo tradicional de justiça criminal despreza os

motivos que levaram ao conflito, bem como os reais objetivos da vítima da violência de

gênero.

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Gráfico 20- Desejo da vítima pela prisão do agressor Fonte: Pesquisa de campo do autor, 2013.

A análise do gráfico 20 reforça as conclusões da questão relativa ao gráfico 19,

deixando claro que a mulher-vítima não deseja a imposição da pena de prisão, privação da

liberdade que, muitas vezes, vem sendo aplicada antes mesmo de uma condenação em

infrações de médio e menor potencial ofensivo que, em regra, inadmitem a prisão cautelar e

até mesmo em contravenções penais, o que é inadmissível, pois, além do caráter deletério da

prisão que despersonaliza e não ressocializa, ainda produz a estigmatização do homem-

agressor, não contribuindo em nada para sua mudança de comportamento, ao contrário,

somente reforçando. Diante disso, resta mais do que evidenciado que o modelo retributivo

defendido por parte significativa do movimento feminista e que resultou, aqui no Brasil, na

Lei n° 11.340/2006, não encontra apoio de uma parcela significativa de mulheres que o

movimento feminista entende está por defender.

Segundo Marília Montenegro Pessoa de Mello (2010, p. 936):

O movimento feminista termina falando por mulheres que são vítimas de relações violentas. Essas vozes dificilmente seriam ouvidas se o movimento feminista não falasse por elas, porém isso não significa dizer que aquilo que está falando reflete o desejo de todas as mulheres que são vítimas desse tipo de agressão.

As duas últimas perguntas fechadas do questionário, que serão objeto de análise,

reafirmam a insatisfação com o modelo retributivo de justiça criminal e demonstram o desejo

da mulher vítima de violência de gênero em ter um papel de protagonismo na solução do

conflito, sinalizando para um novo modelo de justiça criminal. A questão 20, pergunta se a

mulher gostaria de ser consultada acerca da decisão a ser tomada pelo juiz, como se pode

constatar no gráfico 21, segundo o qual, 78% (setenta e oito por cento) das entrevistadas

responderam que sim e somente 21% disseram que não.

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Gráfico 21- Opinião sobre ser consultada pelo juiz antes de proferir a sentença Fonte: Pesquisa de campo do autor, 2013.

A análise do gráfico 21 deixa claro que as vítimas, em sua grande maioria (78%),

gostariam de ser consultadas acerca da decisão dada pelo juiz, deixando claro que o modelo

de justiça criminal tradicional, que se caracteriza em um “monólogo”, onde as partes (vítima e

agressor) não têm a oportunidade de efetivamente exporem os seus problemas e aspirações,

não encontra acolhida por parte das vítimas de violência de gênero, demonstrando, mais uma

vez, que a opção retributiva, defendida pela maior parte do movimento feminista, não

encontra respaldo entre as ofendidas. Há um claro recado ao Estado-juiz, com vistas à

superação da postura de expropriador do conflito e assunção de uma posição de escuta

respeitosa para com a vítima.

A última pergunta fechada indaga se a mulher-vítima estaria disposta a se submeter a

algum procedimento em que ela, bem como o agressor, também participasse da decisão a ser

tomada para a solução do conflito, modelo de solução de conflitos que foge, totalmente, ao

tradicional, que afasta, totalmente, as partes na definição da solução a ser dada. O resultado

também foi surpreendente.

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Gráfico 22- Posição acerca da participação vítima e agressor na decisão do conflito Fonte: Pesquisa de campo do autor, 2013.

Quarenta e quatro por cento (44%) das mulheres entrevistadas responderam estar sim,

dispostas a participar de um procedimento que contasse com a participação também do

agressor na busca de uma solução para o conflito. Se considerarmos os números da questão

discutida no gráfico 21, em que 78% (setenta e oito por cento) desejam ser consultadas acerca

da decisão, concluiremos que um número bastante expressivo de mulheres vítimas de

violência doméstica e familiar deseja um modelo de justiça inclusivo e dialógico. Deve ser

ressaltado que a questão se limitou a perguntar se a vítima estaria disposta a se submeter a

algum procedimento, envolvendo também o agressor na construção da solução do conflito,

não fornecendo maiores explicações, tais como a desnecessidade de vítima e agressor ficar

frente a frente.

Mesmo assim, 44% das mulheres demonstraram o desejo de participar de tal

procedimento, o que só reforça o desejo de um modelo de justiça criminal mais aberto, mais

comunicativo, proporcionando-lhes voz e vez, o que não acontece no modelo retributivo de

justiça criminal. A justiça restaurativa é um modelo de justiça criminal que surgiu como uma

resposta à crise de legitimidade do sistema penal vigente. Tal modelo centra-se justamente na

ideia de introduzir uma justiça dialogal em que as partes diretamente envolvidas participem

ativamente na construção de uma solução para o conflito.

Por se tratar, igualmente, de uma pesquisa realizada com a pretensão de estudar a

dimensão subjetiva da realidade e suas significações, as últimas duas perguntas do

questionário aplicado às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar foram abertas. A

primeira delas, pergunta qual o objetivo da mulher ao procurar a Delegacia de Grupos

Vulneráveis (DAGV) quando da agressão e, a outra, indaga qual a solução que espera do

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84 processo. Os conteúdos das respostas a essas questões foram analisados com base na

abordagem interpretativa de Lüdke e André (1986), segundo a qual o pesquisador não pode se

limitar apenas ao que está expresso no material, mas se aprofundar para descobrir as

mensagens que estão subentendidas, bem como as contradições existentes. Assim, os

resultados obtidos também mostram que a condenação do acusado não está entre os principais

objetivos das mulheres quando buscam os órgãos que compõem o sistema penal, mais uma

prova de que o modelo retributivo de justiça criminal não atende às expectativas e

necessidades da mulher vítima de violência de gênero.

Restou demonstrado, ao final da análise da pesquisa de campo realizada, que a Lei nº

11.340/2006, apesar de apresentar grandes méritos no que se refere às medidas de prevenção e

proteção da mulher vítima de violência, apresenta graves problemas no campo penal,

refletindo uma estratégia equivocada, inclusive, de grande parte do movimento feminista, de

recrudescimento do tratamento penal, com o fito de resolver o problema da discriminação e

violência contra a mulher.

O modelo retributivo de justiça criminal enaltecido pela Lei “Maria da Penha” não

atende aos anseios das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, fato mais do que

evidenciado em diversas questões, assim como o desejo de um modelo de justiça criminal

inclusivo e dialógico. A justiça restaurativa mostra-se, então, como uma alternativa mais apta

a atender as expectativas e necessidades das mulheres vítimas de violência de gênero,

conforme veremos no capítulo seguinte.

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4 JUSTIÇA RESTAURATIVA: UM NOVO MODELO DE JUSTIÇA CRIMINAL

Uma análise acurada acerca de tudo que foi abordado nos capítulos anteriores

demonstra que a estratégia de grande parte do movimento feminista, de utilização do Direito

Penal, no combate à violência de gênero e como instrumento de transformação das relações

entre homens e mulheres, não vem atendendo aos anseios destas últimas, na qualidade de

vítimas de violência doméstica e familiar. Isso se explica, em parte, em razão da crise por que

há muito passa o modelo retributivo de justiça criminal, alvo de diversas críticas por ser

altamente seletivo e, por conseguinte, excludente, segregador e estigmatizante.

Além disso, o modelo tradicional de justiça criminal encontra-se em uma crise de

legitimidade, também, porque fecha os olhos e, pior, os ouvidos, para as partes diretamente

envolvidas no conflito, em especial a vítima, não permitindo que tanto ela quanto o ofensor

tenham, de fato, voz e vez no processo decisório. Nos casos envolvendo violência de gênero,

o fracasso do Direito Penal de matiz retributiva torna-se ainda mais evidente, uma vez que na

imensa maioria dos conflitos, conforme restou comprovado na pesquisa realizada, vítima e “algoz” têm ou tiveram uma relação bastante estreita, tornando ainda mais essencial a

participação de ambos no processo decisório, o que não é possível no modelo retributivo.

A pesquisa demonstrou claramente que a mulher vítima de violência doméstica e

familiar ao procurar os órgãos que compõem o sistema penal de regra, não deseja que o

agressor sofra uma condenação, muito menos a imposição de uma pena privativa de liberdade,

contrariando, assim, toda a lógica do paradigma retributivo, que é baseado na aplicação de

uma sanção como única resposta possível para o conflito. Mais de 3/4 das mulheres ouvidas

gostariam de ser consultadas acerca da decisão tomada pelo juiz e um número expressivo de

mulheres (47%) mostrou-se disposta a participar de um procedimento envolvendo, também, o

ofensor na busca da melhor solução para o conflito, número bastante significativo se levarmos

em conta que a ideia de o juiz como detentor único do poder decisório já está mais do que

consolidada na cabeça das pessoas.

Diante da manifesta crise do modelo tradicional de justiça criminal e da constatação de

que tal modelo não atende às expectativas e necessidades da mulher vítima de violência de

gênero, o paradigma restaurativo mostra-se como uma alternativa, por se tratar de um modelo

de justiça criminal inclusivo e dialógico, pois permite a participação dos envolvidos no

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86 conflito na construção da decisão; não centrado na ideia de culpa e consequente imposição de

pena.

O presente capítulo faz uma abordagem da justiça restaurativa em seus aspectos

principais, iniciando com a relação existente entre este modelo de justiça criminal e a teoria

discursiva desenvolvida pelo filósofo alemão Jürgen Habermas, passando pelo seu conceito,

princípios orientadores, diferenças existentes entre os dois modelos de justiça criminal aqui

mencionados (retributivo e restaurativo), encerrando com uma breve análise das principais

práticas restaurativas. É certo que não há dados concretos que indicam ser o paradigma

restaurativo mais adequado do que o modelo retributivo nos crimes envolvendo violência

doméstica e familiar contra a mulher, até porque a Lei “Maria da Penha” fez uma clara opção

pelo modelo retribucionista, como visto nos capítulos anteriores, mas também é evidente, na

pesquisa de campo desenvolvida, o descontentamento da mulher vítima de violência de

gênero com a resposta dada pelo sistema penal ao conflito, sendo esta a principal razão da

análise do modelo restaurativo de justiça criminal.

4.1 A TEORIA DISCURSIVA DE HABERMAS E SUA RELAÇÃO COMO O MODELO RESTAURATIVO DE JUSTIÇA CRIMINAL

A sociedade moderna mostra-se altamente complexa e, em razão disto, geradora de

uma série de tensões e conflitos. Tal complexidade deve-se ao fato de, ao contrário da

sociedade tradicional, existirem diversas eticidades que tornam o cotidiano do mundo

contemporâneo conflituoso. A sociedade tradicional, que antecede à sociedade moderna, é

caracterizada por uma eticidade única e geral, ou seja, todos os membros da comunidade

apresentam um único modo de agir, baseado em uma tradição sagrada e, portanto,

incontestável. Em tal forma social o dissenso e, por conseguinte, o conflito é exceção, já que a

coletividade acredita que a ordem social posta não é a melhor, mas a única.

Nas palavras de Marcos Nobre, essa pluralidade de eticidades, própria da

modernidade, levou também a uma autonomia nos mais diversos domínios da vida em

sociedade:

Se, nas sociedades tradicionais, todos os domínios da vida social estavam referidos a uma interpretação global de mundo e eram firmemente limitados por ela, na passagem para a modernidade, esses diversos domínios ganharam autonomia e passaram a seguir crescentemente uma lógica própria. Isso significa, antes de mais nada, que cada esfera cultural de valor – a ciência, a religião, a moral, a política, o

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direito, a economia, a arte e assim por diante – passou a funcionar segundo uma lógica que não admite interferências por parte de outras (NOBRE, 2008, p.20).

Como forma de estabilização das tensões e conflitos surgidos com a modernidade,

propõe Habermas, com sua teoria do agir comunicativo, uma diferenciação da racionalidade

das ações sociais. O filósofo alemão Jürgen Habermas defende a ideia de que existem duas

ações sociais: a ação instrumental e a ação comunicativa. A primeira busca neutralizar os

conflitos e dissensos, através de uma ação voltada ao êxito na obtenção de fins de reprodução

material presentes na sociedade. Já na ação comunicativa, a lógica para superação do dissenso

ou conflito é o entendimento, através da discussão racional entre os participantes.

Segundo Habermas, a essas duas espécies de ação correspondem também domínios da

vida social denominados sistema, em que prevalece a ação instrumental, e mundo da vida, que

tem a ação comunicativa como prevalente. O Estado e o mercado são as instituições mais

tipicamente sistêmicas, “sendo assim, nas sociedades modernas, o conflito e o dissenso não

ocorrem apenas entre esferas culturais de valor orientadas por lógicas diversas, mas também,

de maneira mais geral, entre a lógica sistêmica e a lógica do mundo da vida, entre a lógica

instrumental e a lógica comunicativa” (NOBRE, 2008, p. 22). Esse embate entre lógicas

diversas leva muitas vezes a uma dominação do mundo da vida pelo sistema.

Todas essas ideias foram expostas por Habermas, em sua obra “Teoria da Ação

Comunicativa”, publicada em 1981, como exposto por Delamar José Volpato Dutra (2009, p.

310):

A mencionada obra trata de três temas que se entrelaçam, quais sejam: a) o conceito de racionalidade comunicativa, com certa dose de ceticismo, mas capaz de fazer frente à redução da razão à racionalidade instrumental; b) um conceito de sociedade que articula sistema e mundo vivido; c) uma teoria da Modernidade que explica as patologias sociais como colonização da ação comunicativa por imperativos sistêmicos, visivelmente presentes nas tendências à juridicização.

É justamente o terceiro tema, apontado pelo autor acima citado, qual seja a

colonização da ação comunicativa pelo sistema que leva o filósofo alemão a desenvolver a sua

teoria discursiva como uma forma de a lógica comunicativa poder influenciar o

funcionamento do sistema. Tal teoria foi desenvolvida, por Habermas (1997), em “Direito e

Democracia”, obra na qual apresenta sua teoria política juntamente com a teoria do direito,

tendo por base o Estado Democrático de Direito, isso porque política e direito guardam uma

íntima relação na teoria discursiva. A política, segundo Habermas (1997), não pode ser

compreendida segundo uma lógica exclusivamente instrumental, mas também comunicativa.

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88 Maior prova disso é a atuação do parlamento, daí porque a política se distingue internamente

em domínios do poder administrativo (Estado), de natureza instrumental, e do poder

comunicativo e o primeiro somente gozará de legitimidade se alimentado por influxos

comunicativos (NOBRE, 2008).

Para Habermas (1997), o direito é uma instância mediadora entre o poder

administrativo (sistema) e o poder comunicativo (mundo da vida), desempenhando o papel

fundamental de transformador do poder comunicativo em poder administrativo e, com isto,

possibilitando que não só o sistema tenha a pretensão de dominar o mundo vivido, mas

também o contrário, ou seja, o mundo da vida direcione o sistema. O direito, portanto, carrega

dentro de si uma tensão estrutural entre duas lógicas antagônicas: a instrumental e a

comunicativa. Tensão esta que complementa o título da obra Direito e democracia, que se

estabelece entre a faticidade (positividade e coerção) e validade (legitimidade). Em um Estado

Democrático de Direito, somente é legítimo o direito que emana da vontade dos membros da

sociedade que, além de destinatários, são coautores.

Onde se fundamenta a legitimidade de regras que podem ser modificadas a qualquer momento pelo legislador político? Esta pergunta torna-se angustiante em sociedades pluralistas, nas quais as próprias éticas coletivamente impositivas e as cosmovisões se desintegram e onde a moral pós-tradicional da consciência, que entrou em seu lugar, não oferece mais uma base capaz de substituir o natural, antes fundado na religião ou na metafísica. Ora, o processo democrático da criação do direito constitui a única fonte pós-metafísica da legitimidade (HABERMAS, 1997, p. 308).

O direito positivo em sua lógica instrumental haure sua legitimidade, portanto, dos

processos comunicativos que se estabelecem quando da criação e aplicação das leis.

Ocorre que esse vínculo entre norma e coerção formulado unicamente em termos instrumentais é parcial. Essa parcialidade se deve a que o direito não pode ser entendido apenas como instrumento de estabilização de expectativas de comportamento, mas tem de ser entendido também como expressão da autocompreensão e da autodeterminação de uma comunidade de pessoas de direito. Nesse sentido, o direito positivo tem de ser também racionalmente aceito em sua criação e aplicação (ou seja, como direito legítimo) e não apenas em nome de sua mera faticidade (NOBRE, 2008, p. 30).

Percebe-se que não somente no momento de criação da lei os influxos comunicativos

devem estar presentes para garantir validade à norma, mas também quando da aplicação do

direito no caso concreto. Habermas (1997) defende a ideia de que o direito somente gozará de

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89 legitimidade se houver a participação dos envolvidos na busca de uma solução adequada ao

conflito.

A comunicação entre os participantes da argumentação que agem em função do entendimento, ao lado de atores que procuram influenciar-se estrategicamente, é um novo modelo de julgamento imparcial de interesses e de conflitos que a ação introduz, no fluxo da argumentação, para uma decisão racional e a pretensão da justiça que permite fundamentar direitos legítimos (HABERMAS, 1997, p. 154).

A teoria habermasiana possibilita a solução do conflito através da comunicação e da

fala entre os contendores, ao contrário do processo judicial tradicional que divide as pessoas

em partes, excluindo a possibilidade de comunicação e integração pelo direito. Esse modelo

de justiça dialógico, que não se preocupa simplesmente na imposição da norma positivada,

mas na superação do conflito, através de um mínimo de aceitação e consenso entre as partes

diretamente envolvidas, é a própria essência da teoria discursiva de Habermas (1997),

desenvolvida em sua obra “Direito e Democracia – entre faticidade e validade”.

O modelo retributivo de justiça criminal há décadas passa por uma crise de

legitimidade, conforme foi visto no capítulo II, em razão do seu caráter excludente,

segregador e estigmatizante. Além disso, o modelo tradicional afasta as partes diretamente

envolvidas no conflito da construção da solução do mesmo, tendo o Estado se apropriado do

conflito, ditando a sua solução, através da simples aplicação das normas e não na

argumentação dos verdadeiros envolvidos, o que vai de encontro à teoria discursiva proposta

por Habermas (1997), de que a legitimidade do direito seja na sua criação quanto na

aplicação, deve se dar através do debate e discussão das partes interessadas.

O Direito não é um sistema fechado narcisisticamente em si mesmo. Uma vez que se alimenta da eticidade democrática dos cidadãos, pode ser um processo democrático onde os cidadãos utilizem seus direitos de comunicação e de participação num sentido orientado também para o bem comum, no qual pode ser proposto politicamente, porém não imposto juridicamente. (HABERMAS, 1997, p. 323).

A justiça restaurativa, com seu modelo de justiça criminal dialógico, discursivo e

argumentativo, ajusta-se às ideias defendidas por Habermas, podendo resgatar a legitimidade

perdida pelo modelo tradicional de justiça criminal.

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Nesse sentido, Silva e Saliba (2008, p. 2886) discorrem:

A reivindicação de um modelo de justiça criminal menos autoritário, mais inclusivo,

mais participativo, menos traumático, mais legítimo e eficaz, que a justiça restaurativa propugna, não pode, portanto, ser considerado como simples modismo ingênuo, romântico ou passageiro. As promessas não cumpridas, os ideais ainda não alcançados do Iluminismo permanecem ainda relevantes e oportunos, como

irrefragável conquista civilizatória. O diferencial é que a complexidade do mundo moderno não mais se permite fundar em razões ‘dogmáticas’, puramente acadêmicas, de ‘cima para baixo’. A ética do discurso (que se apropria de uma reflexão sobre a linguagem, a comunicação, para bem sinalizar a indispensável

exigência de uma mínima aceitação de valores, princípios, como premissa fundamental nas relações sociais e de poder) reivindica uma racionalidade compartilhada, dialogada, participativa, como única forma viável de se promover o primado do bem comum, num mundo de valores em constante mutação. E a ‘justiça restauradora’ resgata, restaura o valioso poder simbólico, comunicacional, em

perspectiva dialógica, das esperadas censuras (e por vezes inevitáveis sanções) aplicadas pelo sistema penal.

O modelo restaurativo também se ajusta melhor às expectativas e necessidades das

mulheres que, vítimas de violência de gênero, como demonstrado na pesquisa de campo

realizada, deixam claro em sua imensa maioria (78% das entrevistadas) o desejo de participar

da solução a ser dada ao conflito intersubjetivo e que tal solução almejada está muito distante

da simples imposição de uma pena, única resposta possível dada pelo paradigma retributivo

de justiça que se encontra em crise.

4.2 O PARADIGMA RESTAURATIVO: CONCEITO E OBJETIVOS

Thomas Kuhn (2012), em “A estrutura das revoluções científicas”, define o

paradigma no qual se desenvolve a ciência normal como um modelo teórico composto por um

conjunto de regras, métodos, valores e técnicas aceito por um número expressivo de cientistas

e dotado de certa flexibilidade para possibilitar, aos cientistas normais, a solução dos quebra-

cabeças advindos. Quando as soluções paradigmáticas propostas pelos cientistas para a

resolução dos quebra-cabeças começam a ser questionadas estamos diante de uma anomalia.

A anomalia caracteriza-se por ser um problema relevante que coloca em cheque o próprio

paradigma que não possibilita ao investigador uma solução satisfatória. A consciência da

anomalia leva à busca de respostas que podem promover uma readaptação do paradigma já

existente ou o surgimento de novo paradigma. “O período pré-paradigmático, em particular, é

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91 regularmente marcado por debates frequentes e profundos a respeito de métodos, problemas e

padrões de solução legítimos” (KUHN, 2012, p. 121) com o objetivo mais de definir novas

teorias do que se chegar a um acordo.

Segundo o físico e filósofo estadunidense, quando uma anomalia questiona as

generalizações e fundamentos de um paradigma, deixando de ser, portanto, um simples

quebra-cabeça, tem início à crise que leva ao “obscurecimento de um paradigma e o

consequente relaxamento das regras que orientam a pesquisa normal” (KUHN, 2012, p. 168).

Tal crise pode levar a três caminhos: a) a ciência normal consegue superar a anomalia; b) não

se encontra uma solução para a anomalia e aguarda-se uma solução futura ou; c) a crise pode

levar ao surgimento de um novo paradigma que substituirá o paradigma anterior.

O paradigma retributivo há muito dá sinais de que está em crise e uma série de

reformas já foi realizada, mas as disfunções cada vez tornam-se maiores e os remendos não

são suficientes para saná-las. Várias foram as alterações buscando corrigir as suas falhas, a

mais recente delas foi a introdução das penas alternativas, as quais, além de não resolver,

acabaram por ampliar a rede de controle social por parte do Direito Penal. Isso porque, não se

devem buscar penas alternativas à prisão, mas alternativas ao modelo retributivo posto

(PALLAMOLLA, 2009, p. 32).

O modelo tradicional (retributivo) de justiça criminal fracassou há muito em sua

promessa de combate à criminalidade, em todas as suas formas. A criminologia crítica,

movimento surgido nos anos sessenta, contestou de forma veemente o caráter seletivo do

sistema penal e as instituições repressivas: as prisões não diminuem as taxas de criminalidade,

ao contrário, em razão das péssimas condições dessas instituições e do contato deletério entre

presos perigosos e outros que praticaram infrações de médio potencial ofensivo, transformam-

se em “fábricas de delinquentes”, e estes, quando soltos, voltam a delinquir, razão pela qual os

índices de reincidência são alarmantes. O sistema penal também é altamente seletivo, tanto

em sua criminalização primária, quanto secundária, incidindo quase que exclusivamente nos

indivíduos que compõem as camadas mais vulneráveis da sociedade, basta analisar qualquer

pesquisa acerca da população carcerária que veremos que a sua maioria é composta por

pobres, negros e analfabetos.

Segundo Maria Coeli Nobre da Silva (2009, p. 164):

Procedentes são as críticas ao sistema penal vigente quanto ao cumprimento de seu papel restaurador do conflito. Ipso facto, direcionam-se essas críticas ao paradigma retributivo, adotado há mais de três séculos, pelo reconhecimento de que o uso e finalidade das sanções em seus pressupostos já não mais respondem aos anseios de segurança pública da sociedade, não reabilitam o infrator, e muito menos

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consideram a vítima, com isso obscurecendo a realidade de que o mal é causado, primeiro e principalmente, às pessoas e às comunidades.

O modelo retributivo, além de não atingir os fins propostos pela pena, em especial a

reinserção social do condenado, também pouco se preocupa com a vítima que no Direito e

Processo Penais é colocada em segundo plano. Os interesses da vítima ao acionar o sistema

penal na maior parte das vezes não é a punição do infrator, mas a resolução do conflito com a

reparação do dano gerado pela prática delitiva. O movimento vitimista vai “sensibilizar

profundamente os críticos teóricos do modelo retributivo para as necessidades, mas,

sobretudo, para a ausência da vítima no processo penal” (JACCOUD, 2005, p. 165).

Nesse sentido, Howard Zehr (2008, p. 168):

Nós vemos o crime através da lente retributiva. O processo penal, valendo-se desta lente, não consegue atender a muitas das necessidades da vítima e do ofensor. O processo negligencia as vítimas enquanto fracassa no intento declarado de responsabilizar os ofensores e coibir o crime.

Diante da evidente crise do modelo retributivo de justiça criminal, torna-se imperiosa

uma mudança paradigmática que venha a corrigir as distorções apontadas. O paradigma

restaurativo surge, então, como uma alternativa ao modelo tradicional, com uma nova forma

de enxergar o crime e a justiça.

Como desenhado, requer o novo paradigma alterações substantivas e adjetivas no sistema penal. E a significativa mudança que se descortina consiste em alterar o modo corrente de interação no sentido de uma maior confiança no consenso e participação, prática que o modelo retributivo do paradigma atual não contempla, mas que é plenamente viabilizável através de uma justiça de proximidade (chamada de restaurativa/reconstrutiva/reparadora em suas expressões sinonímias) como um outro paradigma que traz fundamentais diferenciações em sua base valorativa, seu procedimento e seus resultados (SILVA, 2009, p. 164).

O crime, para a justiça restaurativa, deixa de ser considerado como uma violação

contra o Estado e a sociedade, e representa uma violação dos relacionamentos, centrando o

foco nas pessoas envolvidas, não só a vítima, como o agressor, diferentemente do modelo

retributivo de justiça criminal.

A lente retributiva se concentra basicamente na comunidade, nas dimensões sociais. E o faz tomando a comunidade como algo abstrato e impessoal. A justiça retributiva define o Estado como vítima, define o comportamento danoso como violação de regras e considera irrelevante o relacionamento entre vítima e ofensor. Os crimes,

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portanto, estão em outra categoria, separados dos outros tipos de dano. A lente restaurativa identifica as pessoas como vítimas e reconhece a centralidade das dimensões interpessoais. As ofensas são definidas como danos pessoais e como relacionamentos interpessoais. O crime é uma violação de pessoas e relacionamentos (ZEHR, 2008, p. 174).

Mas, não é só o crime que é enxergado com um novo olhar, a ideia de justiça no

modelo restaurativo também é distinta, deixa de ter como objetivo a retribuição e passa a

centrar foco na reparação e cura para as vítimas pelos danos causados em razão do conflito

gerado pela prática delitiva, ou seja, as vítimas assumem uma posição de protagonistas do

processo, diferentemente do modelo retributivo de justiça criminal. Ademais, importante

ressaltar que “as vítimas muitas vezes são favoráveis a penas reparativas que não envolvem o

encarceramento – na verdade, muito mais vezes do que se faz em público. Além disso, elas

frequentemente listam a reabilitação do ofensor como algo importante” (ZEHR, 2008, p. 182).

A cura, por isso mesmo, também deve se estender ao agressor, devendo ser o mesmo

estimulado a mudar, sem que isso implique deixar de ser responsabilizado pelos seus atos. Por

fim, também a comunidade diretamente envolvida no conflito gerado pelo crime precisa de

cura, pois este também repercute no meio social. A reparação e a resolução do conflito não

são os únicos objetivos que devem ser buscados pela justiça restaurativa, deve-se sanar o

relacionamento entre vítima e ofensor. Para o atingimento de tais objetivos, é de fundamental

importância que o processo decisório deixe de ser um ato exclusivo de uma autoridade e que

seja compartilhado com as pessoas diretamente envolvidas no conflito (vítima, agressor e

comunidade). Tal decisão construída dessa forma, além de ter mais legitimidade, terá mais

força para promover a cura dos danos advindos da infração à vítima e o processo de mudança

do agressor (PINTO, 2005, p.25).

A justiça restaurativa, apesar de ter ganhado força na década de 90 como uma

alternativa à justiça retributiva, alvo de tantas críticas, tem suas origens em um passado

distante, quando era utilizada pelas sociedades comunais ou pré-estatais, onde a própria

comunidade buscava uma solução para os conflitos lá surgidos, que não implicava

necessariamente a aplicação de uma punição, mas, sobretudo, numa solução negociada entre

vítima, agressor e comunidade. Segundo Mylène Jaccoud (2008, p. 164), o ressurgimento do

paradigma restaurativo no final do século passado deveu-se ao movimento de contestação das

instituições repressivas e, por conseguinte, de crítica ao modelo retribucionista; a vitimologia,

que passou a exigir uma maior atenção à vítima do crime; e, por fim, a exaltação da

comunidade como lócus adequado para negociação e solução dos conflitos. Esses três fatores

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94 contribuíram para a construção de um modelo de justiça criminal menos autoritário, inclusivo

e dialógico.

Ainda não há uma uniformidade conceitual em relação à definição de justiça

restaurativa, estando tal conceito num processo de construção, já que se trata de um modelo

eclodido, possuindo, entretanto, pontos em comum (participação das partes envolvidas no

conflito, diálogo, reparação, solidariedade social) que podem ser extraídos das várias práticas

restaurativas que vão se espalhando por todo mundo, inclusive no Brasil. Para Raffaella da

Porciununcula Pallamolla (2009, p.60), apesar de entender que o conceito de justiça

restaurativo ainda está em aberto por ser um modelo eclodido, as suas diferentes definições

giram em torno das concepções do encontro, da reparação e da transformação.

Howard Zehr (2012, p. 49) define justiça restaurativa como sendo:

Um processo para envolver, tanto quanto possível, todos aqueles que têm interesse em determinada ofensa, num processo que coletivamente identifica e trata os danos, necessidades e obrigações decorrentes da ofensa, a fim de promover o restabelecimento das pessoas e endireitar as coisas, na medida do possível.

Mylène Jaccoud (2008, p. 169) diz que “a justiça restaurativa é uma aproximação que

privilegia toda a forma de ação, individual ou coletiva, visando corrigir as consequências

vivenciadas por ocasião de uma infração, a resolução de um conflito ou a reconciliação das

partes ligadas a um conflito”.

Marcelo Gonçalves Saliba (2009, p. 148) assim conceitua justiça restaurativa:

Processo de soberania e democracia participativa numa justiça penal e social inclusiva, perante o diálogo das partes envolvidas no conflito e comunidade, para melhor solução que o caso requer, analisando-o em suas peculiaridades e resolvendo-o em acordo com a vítima, o desviante e a comunidade, numa concepção de direitos humanos extensíveis a todos, em respeito ao multiculturalismo e à autodeterminação.

O que se depreende da análise dos conceitos dados, é que o modelo restaurativo busca

aproximar as partes envolvidas no conflito, a fim de que elas construam a solução que julgar

mais adequada, sem a imposição de uma decisão verticalizada dada pelo Estado que, muitas

vezes, não atende os interesses dos participantes, principalmente da vítima, nem resolve o

conflito em definitivo. As partes, no processo restaurativo, deixam de ser espectadores mudos

do processo, funcionando como simples meios de prova, para assumirem o papel de

protagonistas, apropriando-se do conflito que de fato lhes pertence. A justiça restaurativa tem

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95 como objetivos a reparação dos danos causados, a resolução do conflito e a conciliação entre

as partes. O modelo restaurativo, ao contrário do modelo tradicional de justiça criminal, não

gira em torno da ideia de punição ou castigo, mas tem os olhos voltados para frente e, neste

sentido, busca a reparação, por parte do infrator, dos danos causados à vítima em razão da

prática delitiva.

Entretanto, tal reparação não se limita ao conceito estreito do prejuízo material sofrido

pela vítima, mas também ao dano moral e psicológico, por isto, muitas vezes, um pedido de

desculpas ou uma retratação são suficientes para a vítima ter por reparado o dano

experimentado pela prática delitiva. A resolução do conflito e a conciliação/reconciliação

seriam as outras finalidades. Segundo Zehr (2008, p.176), se o crime é um ato lesivo, o

objetivo primeiro da justiça restaurativa deveria ser a reparação e cura da vítima, e em seguida

sanar o relacionamento entre vítima e ofensor, ou seja, possibilitar que a conciliação aconteça.

4.3 PRINCÍPIOS E VALORES QUE ORIENTAM A JUSTIÇA RESTAURATIVA

O paradigma restaurativo se espalhou pelas mais diversas partes do mundo e em julho

de 2002 a Organização das Nações Unidas, através do Conselho Econômico e Social, aprovou

a Resolução 2002/12, em que enuncia os princípios da justiça restaurativa. No Brasil, os

princípios e valores do modelo restaurativo de justiça criminal foram enunciados em 2005 na

denominada Carta de Araçatuba, posteriormente, ratificada na Conferência Internacional de

Acesso à Justiça por Meios Alternativos de Resolução de Conflitos, ocorrida em Brasília.

Analisando tais documentos – Resolução 2002/12 e a Carta de Araçatuba – é possível extrair

alguns princípios básicos da justiça restaurativa. Antes de adentrarmos na análise de tais

princípios, cumpre salientar, que não há uma uniformidade principiológica, tanto por parte da

doutrina pátria, quanto alienígena, em razão de tratar-se de um modelo de justiça criminal

flexível em sua estrutura.

Um primeiro princípio que deve nortear toda e qualquer prática restaurativa é a

voluntariedade, ou seja, as partes envolvidas no conflito seja vítima, ofensor ou membros da

comunidade, não podem de nenhuma forma ser coagidos ou obrigados a participar. Os

participantes devem ser informados, previamente, como funciona o processo restaurativo,

devendo a explicação também incluir o funcionamento do processo judicial tradicional, a fim

de que possam compreender, comparar e escolher. A Resolução 2002/12, do Conselho

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96 Econômico e Social da ONU, dispõe que “antes de concordarem em participar do processo

restaurativo, as partes deverão ser plenamente informadas sobre seus direitos, a natureza do

processo e as possíveis consequências de sua decisão” e prossegue, “nem a vítima nem o

ofensor deverão ser coagidos ou induzidos por meios ilícitos a participar do processo

restaurativo ou a aceitar os resultados do processo”. A voluntariedade é essencial para o

sucesso de qualquer prática restaurativa, pois, tanto a vítima quanto o ofensor demonstram,

com isto, a disposição de buscar uma solução negociada para o conflito, ao invés de uma

resposta imposta e unilateral para o delito por parte do Estado.

Nesse sentido, Teresa Lancry de Gouveia de Albuquerque Sousa Robalo (2012, p. 50)

esclarece que:

A voluntariedade na participação dos sujeitos é, sem dúvida, um traço fundamental da justiça restaurativa, pois de outra forma as finalidades pretendidas por este modelo de reação ao crime nunca seriam alcançadas – voluntarismo esse que se quer tanto por parte da vítima, como por parte do agente.

Ressalte-se que a justiça restaurativa não exige espontaneidade, mas, simplesmente,

voluntariedade, podendo ter sido sugerida por terceiro. Ademais, a voluntariedade não está

presente somente no momento do ingresso, mas a qualquer tempo durante o processo

restaurativo é dado às partes o direito de não mais participar. O voluntarismo é princípio

fundamental para o sucesso na consecução do acordo firmado pela vítima e ofensor, uma vez

que se de alguma forma fosse imposto os envolvidos poderiam deixá-lo de cumprir.

Um outro princípio que orienta o modelo restaurativo de justiça criminal, é o da

consensualidade, a qual deve está presente em todo procedimento restaurativo, desde as regras

sobre o seu “funcionamento, regramento, andamento e sujeição aos métodos e princípios

empregados. O consenso deve ser objetivo acerca da participação, dos fatos fundamentais e da

responsabilização do infrator” (BIANCHINI, 2012, p.124).

Sobre tal princípio, Marcelo Gonçalves Saliba (2009, p. 154) discorre:

O princípio do consenso exige, primeiro, respeito entre as partes e pelas partes, novamente com observância da ética da solidariedade. O rompimento com o distanciamento social a que parece todos estarem condenados na pós-modernidade só se faz com o diálogo e, dentro da justiça penal, o mesmo é apresentado como valor irrenunciável para a pacificação do conflito social.

Ademais, através do princípio da consensualidade, as decisões alcançadas são mais

aceitas pelas partes, uma vez que elas participaram ativamente da sua construção, e, portanto,

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97 mais efetivas, ao contrário das decisões impostas pelo judiciário que não gozam da mesma

legitimidade e, por isto, muitas vezes são descumpridas pelo ofensor e/ou não atendem aos

anseios da vítima. Outro aspecto que deve ser realçado acerca desse princípio é que muitos

dos crimes são cometidos entre pessoas que convivem habitualmente, por apresentarem

relações de parentesco ou vizinhança e uma eventual recomposição das relações abaladas pelo

crime, torna-se mais fácil através do consenso obtido no modelo restaurativo e muito mais

difícil no modelo tradicional de justiça criminal. O princípio da consensualidade, por fim, está

diretamente relacionado à teoria discursiva desenvolvida por Habermas (1997), que defende a

ideia de que a legitimidade de qualquer intervenção jurídica pressupõe um elemento dialogal

comum com um mínimo de aceitação e consenso.

A confidencialidade é um outro princípio contido na Resolução 2002/12, do Conselho

Econômico e Social da ONU24

e, também, da Carta de Araçatuba25

. A confidencialidade

justifica-se, pois as partes terão maior liberdade para expor questões de foro íntimo, inclusive

o ofensor confessar a sua culpa, sabendo que tais declarações não poderão ser utilizadas em

seu desfavor no processo penal, caso não logre êxito um acordo restaurativo. “É importante

que se valorize a confiança e a fé negocial entre as partes, tranquilizando-se quanto à

possibilidade de uma eventual utilização das suas declarações em outras sedes” (FERREIRA, 2006, p.37).

Outro princípio que deve orientar as práticas restaurativas é o da urbanidade, ou seja,

as partes envolvidas estão sujeitas a determinadas regras para um bom relacionamento e

equilíbrio das relações. O respeito mútuo, a garantia da dignidade, o relacionamento equânime

e não hierárquico contidos na Carta de Araçatuba26

são imprescindíveis para o bom

andamento da prática restaurativa. “O elemento da civilidade é essencial e abrange o respeito

pelas diferenças de classe, cor, religião e linguagem. Tais qualidades são inerentes ao ser

humano e não se afastam no momento do procedimento restaurativo” (BIANCHINI, 2012, p. 131).

Adaptabilidade é, também, um princípio da justiça restaurativa, apontado por

Bianchini (2012), e pode ser compreendido em dois sentidos: primeiro na escolha da prática

restaurativa mais adequada ao caso concreto, já que existem várias, como veremos mais à

24 14. As discussões no procedimento restaurativo não conduzidas publicamente devem ser confidenciais, e não devem ser divulgadas, exceto se consentirem as partes ou se determinado pela legislação nacional.

25 14. Direito ao sigilo e confidencialidade de todas as informações referentes ao processo restaurativo.

26 03. respeito mútuo entre os participantes do encontro;

9. garantia do direito à dignidade dos participantes; 10. promoção de relações equânimes e não hierárquica.

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98 frente (mediação, círculo de sentença, conferência de família, dentre outras); o segundo

sentido que pode ser dado ao princípio é a possibilidade de flexibilização da própria prática,

não estando presa a uma forma única como no modelo tradicional de justiça criminal,

podendo ser flexibilizado o procedimento restaurativo, a fim de conciliar as necessidades dos

participantes de maneira harmoniosa e equilibrada.

Segundo a Resolução 2002/12, do Conselho Econômico e Social da ONU, os

facilitadores devem atuar de forma imparcial. A imparcialidade é, portanto, um princípio

voltado ao intermediário que atua na prática restaurativa, não podendo este favorecer nenhum

dos envolvidos, nem permitir que qualquer deles tenha um papel dominante sobre o outro.

Percebe-se o papel fundamental do facilitador na condução da prática restaurativa, devendo,

por isto, ser bastante qualificado, a fim de que o processo seja exitoso e o acordo obtido não

seja viciado.

Seja qual for a prática restaurativa utilizada, deve-se observar, além dos princípios

antes mencionados, valores considerados obrigatórios por Braithwaite (apud Pallamolla,

2009), um dos maiores estudiosos acerca do tema justiça restaurativa: a não-dominação,

devendo o mediador atuar no sentido de impedir que uma parte se sobreponha a outra; o

empoderamento, que é fazer com que as partes, em especial a vítima, tenham consciência de

que são a peça-chave no processo decisório; obediência aos limites das sanções acaso

impostas para que não se tornem aviltantes ou degradantes; a escuta respeitosa de cada uma

das partes envolvidas no conflito; tratamento isonômico; a possibilidade que deve ser dada a

qualquer das partes de optar ou não por um processo restaurativo, devendo a opção contrária

também dever ser aceita; e, por fim, o respeito aos direito humanos constantes nos mais

diversos compromissos internacionais, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos

Humanos.

4.4 DIFERENÇAS ENTRE O MODELO RESTAURATIVO E O MODELO RETRIBUTIVO DE JUSTIÇA CRIMINAL

Após trazer o conceito e os princípios que orientam a justiça restaurativa, já é possível

ter uma noção do paradigma restaurativo e apontar as principais diferenças com o modelo

paradigmático tradicional. A principal característica da justiça restaurativa e também a

principal diferença do modelo retributivo reside em sua estrutura. O modelo restaurativo tem

uma estrutura marcada pela horizontalidade, onde as partes diretamente envolvidas no

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99 conflito (vítima, ofensor e muitas vezes a comunidade), através de um procedimento

dialogado, buscam construir uma decisão consensual. A justiça retributiva, por sua vez, é

verticalizada, onde o Estado-juiz detém o monopólio do jus puniendi e decide, não de acordo

com a vontade das partes, mas em conformidade com as sanções previstas em lei. O Estado

define o culpado e inflige “a dor mesmo que ela possa ter pouca relevância para as

necessidades da vítima ou para a solução dos problemas criados pela ofensa” (ZEHR, 2008,

p.73). Isso porque o crime, segundo o paradigma retributivo, é considerado primeiramente

uma violação ao Estado e às suas leis, não uma ofensa à vítima e à comunidade que sofrem os

efeitos imediatos da prática delitiva e que devem ter restaurados os danos sofridos, como

defende o modelo restaurativo.

Comportando a Justiça Restaurativa uma maneira diferente de refletir o delito e as consequências deste, pode ser identificada como um de seus traços distintivos o fato de a resposta à transgressão não vir do repertório de medidas punitivas que estão codificadas. Levando em conta que o ato delituoso ofende a vítima e a comunidade, que acarreta rompimento nas dimensões vítima/delinquente/comunidade, a resposta deve embasar-se nas necessidades da vítima e da comunidade e não na necessidade de destacar a culpa do ofensor, sua periculosidade, seus antecedentes. A ênfase é dada à situação fática: o dano causado, o trauma sofrido, o drama experimentado, assim, os esforços devem ser empreendidos no sentido desse prejuízo, reduzindo-o ao mínimo, restaurando-o ao máximo (SILVA, 2009, p. 148).

Uma outra diferença marcante entre o modelo retributivo e o restaurativo é que, o

primeiro, tem os olhos voltados para o passado e a ideia de ajustamento de contas, enquanto

que o segundo, onde a construção da decisão se dá pelas partes, deixa para trás o legado do

ódio que carrega a justiça retributiva e volta os olhos para a frente, com a reparação dos danos

causados à vítima e a tomada de consciência por parte do agressor que, por ter participado do

processo decisório, assumirá um compromisso maior com a mudança e assim as chances de

voltar a delinquir certamente diminuirão. Justamente por ter os olhos voltados para o passado,

a ideia de verdade no modelo tradicional de justiça criminal está intrinsecamente associada à

prova, já que a verdade tem que ser comprovada, sendo que, muitas vezes, esta verdade

buscada não é alcançada em razão do acervo probatório carreado aos autos do processo,

tornando-se uma verdade parcial, muito distante da verdade real preconizada pela dogmática

processualista. Já na justiça restaurativa, caracterizada pelo diálogo e consenso, a verdade é

construída pelas partes, é uma verdade consensual.

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Nesse sentido, Paz e Paz (2005, p. 134) preleciona:

Esta verdade consensual vai ter total aceitação e desenvolvimento dentro do processo de mediação penal que, como processo comunicativo, vai nos levar até a verdade do acontecido, com seus sentimentos as consequências que afetam as partes e toda a comunidade.

Uma outra diferença que pode ser apontada é em relação ao princípio da igualdade,

pois, enquanto o modelo retributivo apresenta as sanções definidas em lei, o modelo

restaurativo por apresentar como um de seus traços a flexibilidade da resposta dada, já que a

mesma é construída pelas partes, tende a violar a isonomia. Ocorre que, a igualdade propalada

pelo modelo tradicional é uma falácia, por ser o sistema penal altamente seletivo, já a justiça

restaurativa “credencia-se como bem mais propício à efetivação dessa igualdade, posto que

atuando com uma prática que valoriza o consenso, a concordância, a participação voluntária

das partes envolvidas” (SILVA, 2009, p.149).

Renato Sócrates Gomes Pinto (2005) aponta outras diferenças entre o modelo

retributivo e o modelo restaurativo, tomando como parâmetros distintivos os valores,

procedimentos, resultados e efeitos para a vítima e agressor que fornecem elementos mais do

que suficientes para estabelecer a distinção entre a justiça retributiva e o modelo restaurativo

de justiça criminal27

. Todas as diferenças anteriormente apontadas, somente reforçam a ideia,

primeiramente lançada, de que o modelo restaurativo busca aproximar as partes diretamente

envolvidas no conflito que gerou o crime, a fim de que, juntas, busquem a melhor solução

para superação do trauma e restauração da paz social.

4.5 PRINCIPAIS PRÁTICAS RESTAURATIVAS

Como antes visto, a justiça restaurativa é regida pelo princípio da adaptabilidade, ou

seja, ao contrário do sistema monolítico do modelo tradicional de justiça criminal, o modelo

restaurativo é flexível em relação aos mecanismos de solução de conflitos, denominado Multidoor Courthouse ou sistema multiportas, pois oferece respostas diferentes e mais

27

O citado autor utilizou-se de quadros comparativos para facilitar a análise, baseando-se nas exposições e no

material gentilmente cedido pelas Dras. Gabrielle Maxwell e Allison Morris, da Universidade Victoria de Wellington, Nova Zelândia, por ocasião do Seminário sobre o Modelo Neozelandês de Justiça Restaurativa, promovido pelo Instituto de Direito Comparado e Internacional de Brasília, em parceria com a Escola do Ministério Público da União e Associação dos Magistrados do DF, em março de 2004. Tais quadros são reproduzidos em um dos anexos que acompanham essa dissertação.

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101 adequadas de acordo com o caso concreto. Tal flexibilização, entretanto, não pode colocar em

xeque os princípios e valores que orientam a justiça restaurativa, sob pena do seu

desvirtuamento.

Nesse sentido, Maria Coeli Nobre da Silva (2009, p. 138) menciona que:

A flexibilizada estrutura da justiça restaurativa permite que seu modus operandi possa variar de um país para o outro e que possam ser adotadas diferentes práticas

dentro do mesmo país. Dessa forma, as especificidades de cada procedimento vão depender da singularidade das condições próprias do contexto em que se acha inserido. Contudo, seja qual for a tendência, há questões básicas a serem seguidas: a) o delito é mais que uma violação à lei; b) o acometimento de uma transgressão

significa rompimento em uma tríplice dimensão – vítima/infrator/comunidade; c) a infração causa ferimento na vítima e na comunidade; d) todos – vítima, comunidade e infrator – devem participar do processo para conhecer o que está ocorrendo e encontrar o meio mais eficiente para restaurar o dano; e) a resposta à infração deve ser alicerçada nas necessidades da vítima e da comunidade, não na necessidade de

evidenciar-se a culpa do ofensor, os perigos que ele possa representar e seu histórico criminal.

Diversas são as práticas restaurativas desenvolvidas ao redor do mundo, inclusive no

Brasil, que respeitam os princípios e valores restaurativos, sendo a mediação entre vítima e

ofensor, os círculos de sentença e as conferências de família, as mais utilizadas e, por isto,

objeto de análise. A mediação vítima-ofensor é, sem dúvida, a prática restaurativa mais

utilizada em todo o mundo e também a mais antiga. A mediação, como a própria

denominação indica, possibilita que a vítima se reúna com o seu agressor em ambiente seguro

e estruturado, fazendo-se acompanhar por um mediador (profissional habilitado), com o fito

de se chegar a um acordo para a solução do conflito. Antes do encontro entre vítima e ofensor

é aconselhável que o mediador faça uma pré-mediação que consiste em uma entrevista em

separado com as partes envolvidas, a fim de verificar se o caso comporta mediação, em caso

positivo e havendo a concordância é esclarecido como o processo se desenvolve.

O roteiro básico a ser seguido, na mediação, é o mesmo de qualquer prática

restaurativa consistente na discussão dos fatos, expressão dos sentimentos, reparação

negociada e comportamento futuro alterado, tendo como objetivo principal o restabelecimento

do diálogo. Apesar de a mediação caracterizar-se pelo encontro entre vítima e ofensor, há uma

modalidade indireta, denominada shuttle diplomacy, em que o mediador encontra-se

separadamente com a vítima e o ofensor, não havendo um contato direto entre ambos para se

chegar ao acordo (PALLAMOLLA, 2009, p.108). Tal espécie de mediação é mais adequada

quando a vítima ainda se encontra traumatizada e não deseja um contato direto com o

agressor. Como aspectos positivos dessa prática restaurativa podem ser apontados: a redução

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102 do medo na vítima e uma maior probabilidade de o ofensor cumprir as metas acordadas, já

que faz parte da construção do acordo, além de uma diminuição dos índices de reincidência

por parte dos agressores.

As conferências de família ou reunião de família também se caracterizam pelo

encontro da vítima com seu ofensor, mas acompanhados por familiares e amigos. Essas

pessoas, em conjunto, vão decidir como administrar o conflito e os meios para superar o

mesmo (SILVA, 2009, p.141). As conferências de família foram utilizadas, inicialmente, na

Nova Zelândia, para a solução de infrações praticadas por jovens infratores e, depois,

passaram a ser utilizadas também na Austrália e nos Estados Unidos, tanto envolvendo delitos

praticados por jovens, quanto por adultos.

O procedimento é similar ao da mediação vítima-ofensor. Há encontros separados entre o facilitador e cada uma das partes (que podem ser acompanhadas por suas famílias), antes do encontro direto entre vítima e ofensor. Nas conferências as partes mostram seus pontos de vista, tratam sobre os impactos do crime e deliberam o que deve ser feito. O objetivo é fazer com que o infrator reconheça o dano causado à vitima e aos demais e assuma a responsabilidade por seu comportamento. A vítima terá a oportunidade de falar sobre o fato, fazer perguntas e dizer como se sente. Após as discussões, a vítima é perguntada sobre o que gostaria que fosse feito e, então, passa-se a delinear um acordo reparador, para o qual todos os participantes podem contribuir. Nesse procedimento, a discussão sobre o que fazer tende a exceder os limites do delito, dando-se atenção às necessidades e a questões relativas tanto à vítima quanto ao ofensor (PALLAMOLLA, 2009, p. 118).

Os acordos alcançados podem ir de um pedido de desculpas até trabalhos

comunitários, passando pela reparação do dano. Os resultados obtidos, com tal prática

restaurativa, têm agradado mais os participantes do que os obtidos pelo modelo tradicional de

justiça criminal.

Os círculos de sentença, também chamados círculos de paz ou de cura, têm suas raízes

nas tribos aborígenes do Canadá, razão pela qual é uma prática restaurativa mais comum

naquele país e no norte dos Estados Unidos, apesar de presente em outros países do mundo,

inclusive no Brasil. A denominação “círculos de cura” está diretamente relacionada à

finalidade buscada por tal prática restaurativa de curar as feridas provocadas pelo crime.

Do círculo participam as partes diretamente envolvidas no conflito, seus familiares,

pessoas ligadas à vitima ou ao ofensor, qualquer pessoa pertencente à comunidade e que dele

queira participar, além do facilitador. A prática restaurativa tem início com todos os

participantes sentados em círculo, após é realizada uma cerimônia de abertura que pode

consistir em uma oração. Em seguida, o facilitador explica aos participantes que somente

quem tiver em suas mãos um determinado objeto, denominado objeto da palavra, poderá falar,

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103 seja esta pessoa a vítima, o agressor ou qualquer outro participante. Cada um deles poderá

falar o que lhe aprouver a propósito da conduta praticada pelo ofensor e o mal causado, bem

como dar a sua opinião sobre a sanção a ser aplicada, ou seja, todos os participantes devem

ser empoderados. Ao término, quando chegarem a um consenso, também haverá uma

cerimônia de encerramento.

Os círculos de sentença pretendem criar, no infrator, a vergonha reintegrativa, a fim de

que o mesmo se arrependa da sua conduta e não volte mais a delinquir, como também pode

levar a que todos os demais membros que participaram do círculo sejam dissuadidos de

praticar conduta semelhante (ROBALO, 2012, p.70). A inclusão e o diálogo são os elementos

comuns a todas as práticas restaurativas analisadas, em todas elas os participantes se reúnem

para falar e ouvir sobre o que sofreram e o que pretendem através de um diálogo respeitoso.

No Brasil, apesar dos entraves legais para implementação do paradigma restaurativo,

vários estados da federação vêm desenvolvendo, de forma exitosa, programas de justiça

restaurativa, podendo ser citados os estados do Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas Gerais,

Maranhão e o Distrito Federal, sendo que prática restaurativa mais utilizada, pela maioria

deles, é a dos círculos de sentença.

Com a Resolução nº 125 do Conselho Nacional de Justiça28

, que incentiva a criação de

mecanismos consensuais de solução de conflitos, assim como o projeto de lei nº 7006/200629

, que

propõe alterações no Código Penal para facultar o uso de procedimentos de Justiça Restaurativa

no sistema de justiça criminal, que se encontra na comissão de Constituição e Justiça da Câmara

dos Deputados, com parecer favorável do seu relator, o surgimento de novas práticas restaurativas

será uma realidade cada vez mais presente em nosso país e o paradigma restaurativo de justiça

criminal se consolidará, inclusive nos crimes envolvendo violência de gênero, já que, como visto

na análise dos dados da pesquisa de campo apresentados no capítulo anterior, o modelo tradicional

de justiça criminal não vem atendendo de forma satisfatória aos anseios das mulheres vítima de

violência doméstica e familiar.

O modelo restaurativo empodera a mulher vítima de violência, dando-lhe voz e vez,

permitindo que possa participar ativamente da construção da decisão a ser tomada no caso

concreto, atendendo, assim, às suas expectativas e necessidades que estão longe da simples

imposição de uma pena. Ademais, nos conflitos envolvendo relações continuadas, como os

28

Extraído de: <http://www.cnj.jus.br/images/stories/docs_cnj/resolucao/arquivo_integral_republicacao_resolucao_n_125.pdf>. Acesso em: 20 de dez 2014 29

Extraído de: < http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=323785> Acesso em: 20 de dez 2014

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104 que envolvem violência doméstica e familiar contra a mulher, as práticas restaurativas são

mais adequadas para o atingimento das denominadas mudanças de segunda ordem.

Segundo Célia Regina Zapparolli (2013, p. 183):

[...] a respeito das denominadas mudanças de primeira e de segunda ordem, trago: (1) as mudanças de primeira ordem, de acomodação, associadas na situação das políticas públicas judiciárias à produtividade, celeridade e escoamento da demanda, dos processos já presentes no Judiciário, independentemente da quantidade que a ele chegue e; (2) as mudanças de segunda ordem, transformativas, atinentes às modificações fundamentais que gerem a redução efetiva da reincidência, da demanda e que, por consequência, diminuirão a quantidade dos processos que chegam ao Judiciário.

Entretanto, ainda há muita polêmica na utilização da justiça restaurativa nos conflitos

envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, principalmente por envolver

questões de gênero e muitos grupos do movimento feminista entender que somente o modelo

retributivo seja capaz de promover as mudanças comportamentais em relação aos papéis

definidos pela sociedade a homens e mulheres.

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105 5 A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO UMA OPÇÃO NA SOLUÇÃO DE

CONFLITOS ENVOLVENDO VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR

CONTRA A MULHER

A justiça restaurativa, como visto no capítulo anterior, caracteriza-se por ser um

modelo de justiça criminal inclusivo e dialógico, em que as partes diretamente envolvidas no

conflito (vítima, ofensor e comunidade) participam ativamente do processo de construção da

decisão que põe termo à contenda, ao contrário do modelo tradicional, excludente e

autoritário, que baseia sua decisão na ideia simplista de definição da culpa e consequente

imposição de pena sem se preocupar se aquela solução imposta atende aos interesses dos

envolvidos, em especial da vítima, e se coloca de fato fim ao conflito ou somente ao processo

criminal. O fenômeno da violência doméstica e familiar contra a mulher, por sua vez, tem por

característica ser altamente complexo, porque decorre de conflitos em relações continuadas,

envolvendo essencialmente aspectos psicológicos e relacionais.

Logo, para uma solução eficaz, é imprescindível a observação dos aspectos emocionais e afetivos dali advindos. Também é importante a manutenção de uma relação harmoniosa, do diálogo e da escuta, ou seja, da análise da possibilidade de reconciliação e da restauração entre as partes (GIONGO, 2011, p. 180).

Diante de tal complexidade, apresenta-se o modelo restaurativo como uma alternativa

na solução de conflitos envolvendo violência de gênero, por ser um modelo de pensamento

sistêmico que foca as relações e fenômenos para além do antagonismo e da exclusão,

analisando o conflito em sua integralidade, aprofundando-se nas suas causas e consequências,

através da escuta respeitosa da vítima e do ofensor. Também essa complexidade, inerente ao

fenômeno da violência de gênero, exige um tratamento multidisciplinar e não apenas jurídico

razão pela qual o atendimento, tanto da vítima quanto do agressor por uma equipe

multidisciplinar formada por psicólogo, assistente social, dentre outros profissionais, é

imprescindível. Infelizmente, a pesquisa de campo realizada demonstrou que a imensa

maioria das mulheres ouvidas (83%) não teve tal atendimento, tendo apenas a resposta penal

do modelo tradicional, que consiste na aplicação de uma pena, a qual, muitas vezes, não

atende às expectativas da ofendida.

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Neste capítulo, analisa-se se o modelo retributivo respeita a vontade da mulher vítima

de violência doméstica e familiar, bem como as principais objeções e vantagens da utilização

da justiça restaurativa na solução de conflitos envolvendo esta espécie de violência.

5.1 A VONTADE DA MULHER É RESPEITADA NO SISTEMA TRADICIONAL DE JUSTIÇA?

Deve-se à atuação do movimento feminista nas últimas décadas o sucesso em

publicizar o problema da violência doméstica e familiar contra a mulher, que antes se

desenvolvia no âmbito privado, trazendo-o para o espaço público e o centro do debate político

com a finalidade de buscar a sua erradicação ou ao menos diminuição. Nesse sentido, Vera

Regina Pereira de Andrade (2003, p. 112) ensina que:

[...] foi o feminismo que desvelou múltiplas formas de violência contra a mulher, captando-a em toda sua extensão (sentido amplo): desde a violência simbólica cotidiana, das microdiscriminações até a macroviolência física, mutiladora, monumental. Denunciando, trazendo a público e, portanto, publicizando e politizando lágrimas e sangue que rolavam silenciosos no vasto espaço privado da dor feminina, mulheres de todas as idades, etnias e status social deflagraram um processo que está em curso, com consequências ainda inimagináveis.

Para isso, o feminismo utilizou-se como uma das estratégias para dar maior relevância

e visibilidade a tal forma de violência, o uso do Direito Penal, forma de controle social

institucionalizado de caráter eminentemente punitivo. O Brasil é exemplo disso através da

edição da Lei “Maria da Penha” em 2006, quando o fenômeno da violência de gênero passou

a merecer atenção e intervenção do Estado e da sociedade, tornando-se, assim, um problema

público e não mais particular, deixando de ser considerado normal e natural pela sociedade.

Ocorre que, a opção pelo Direito Penal e seu paradigma retributivo afasta a vítima, principal

interessada na solução do conflito, do centro da decisão, não lhe dando voz e vez, já que no

modelo tradicional de justiça criminal o Estado se apropria do conflito, não tendo a ofendida

qualquer autonomia, sofrendo ela uma dupla violência: do agressor, no momento da prática

criminosa, e do Estado, durante a persecução criminal, que não respeita, muitas vezes, a sua

vontade. Não é porque o problema da violência de gênero tenha passado a merecer atenção do

Poder Público e da sociedade, deixando de ser um problema privado que a vítima não possa

ser ouvida e ter respeitada a sua opinião.

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O fenômeno da violência doméstica e familiar contra a mulher apresenta

peculiaridades que o distingue dos demais conflitos geradores de crimes. Na maioria dos

casos, o ofensor é pessoa bem próxima da vítima, com quem esta possui relação continuada e

muitas vezes de afeto. Como visto na pesquisa de campo realizada, na quase totalidade dos

casos, o acusado pela prática do crime é ou foi cônjuge, companheiro ou namorado da

ofendida e esse fator torna a solução simplista, dada ao conflito pelo modelo retributivo,

inadequada e insuficiente; visto que a imposição de uma pena em caso de condenação não é a

resposta esperada pela mulher vítima de violência que muitas vezes continua a conviver com

o parceiro agressor ou, mesmo que não mais conviva, não deseja uma condenação, não

resolvendo o conflito relacional, mas simplesmente pondo fim ao processo.

A mulher vítima de violência de gênero busca o sistema penal sem saber que a lógica

que o orienta é única e exclusivamente à de impor uma punição ao ofensor, quando, na

verdade, a última coisa que está procurando é a condenação do seu “algoz”, muito menos a

imposição de uma pena privativa de liberdade, como restou demonstrado na pesquisa de

campo, e sim o acesso a programas de proteção e assistência, sendo conduzidas forçosamente

ao sistema penal para ter acesso a esses serviços que, quando existem, funcionam de forma

precária. Talvez isso explique o percentual de quarenta e quatro por cento de mulheres que, na

pesquisa de campo, disseram ter pensado ou tentado retirar a denúncia, ou desistir do

processo. Uma outra explicação que pode ser dada para esse elevado percentual (quase

metade) seja a reconciliação da vítima com o agressor, o que torna o processo-crime um

elemento desagregador e não pacificador.

Há uma tendência legislativa, não só aqui, mas em outros países, a exemplo da

Espanha (LAURRARI, 2008, p. 176), de transformar os delitos que afetam principalmente as

mulheres em crimes de ação penal pública, eliminando ou limitando, assim, a possibilidade de

a mulher dispor da ação penal. No caso do Brasil, temos o crime de estupro, que passou a ser

de ação penal pública condicionada à representação, quando antes era de ação penal privada.

O crime de lesão corporal leve, quando praticado em situação de violência doméstica e

familiar contra a mulher que, segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal, passou a

ser de ação pública incondicionada, não tendo a mulher-vítima nenhuma disponibilidade sobre

ele, sendo que tal tipo penal é um dos mais comuns nos conflitos envolvendo violência de

gênero.

Ademais, a retratação nos crimes de ação penal pública condicionada à representação,

segundo a Lei nº 11.340/2006, exige uma audiência específica, tornando mais difícil para a

vítima voltar atrás em sua decisão de ver o agressor processado. Tudo isso deixa claro o

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108 objetivo de limitar a autonomia da vontade da vítima de violência de gênero, ao mesmo tempo

em que evidencia o desejo único de punir o infrator, mesmo que esta não seja a vontade da

vítima. A justificativa dada para tal orientação legislativa é de que a mulher somente expressa

o desejo de retirar a denúncia ou desistir do processo por estar sendo pressionada pelo próprio

agressor ou pelos familiares, quando, na verdade, o que restou demonstrado na pesquisa de

campo foi que mais da metade das mulheres entrevistadas, ou seja, 53% pensaram ou

tentaram retirar a denúncia ou desistir do processo por vontade própria e não atendendo aos

pedidos do agressor ou dos familiares que, juntos, representaram menos de 18%. Tais dados

somente confirmam que o desejo da mulher de não mais prosseguir deve-se muito mais à

insatisfação com tratamento dado pelo sistema penal tradicional ao conflito do que as supostas

pressões sofridas por quem quer que seja.

Ressalte-se, ainda, que o fato de tornar a ação pública incondicionada ou dificultar a

retratação nos casos em que é permitida, não impede que a ofendida “desista” do processo não

comparecendo quando regularmente intimada ou, se conduzida coercitivamente, mentindo em

juízo, já que não presta o compromisso de dizer a verdade, levando muitas vezes a uma

sentença absolutória que encerra o processo, mas não ao conflito intersubjetivo que ela

pretendia ver resolvido. Não permitir que a mulher possa retirar a denúncia ou desistir do

processo, a qualquer tempo, não deixa de ser uma violência institucionalizada e um atestado

de que ela, vítima, é incapaz de definir o caminho que deseja seguir para a sua vida,

reforçando ainda mais o estereótipo de mulher frágil e sensível, não contribuindo em nada

para a mudança dos papéis sociais definidos para homens e mulheres, um dos objetivos do

movimento feminista.

É certo que tal desejo, de retirar a denúncia ou desistir do processo, deve se dar de

forma livre, sem coação ou qualquer vício de vontade e, para isto, seria imprescindível o

apoio de uma equipe multidisciplinar, pois, muitas vezes, a mulher está fragilizada em razão

do passado de submissão frente ao homem. A mulher vítima de violência doméstica e familiar

deve ser empoderada e uma das formas de fazê-lo é justamente respeitando a sua vontade em

continuar ou não com o processo contra seu agressor. O modelo restaurativo de justiça

criminal respeita a vontade da mulher vítima de violência de gênero, uma vez que tem como

um dos princípios basilares a voluntariedade, ou seja, a participação se dá livremente, sem

imposição. A mulher-vítima decide se deseja participar de uma prática restaurativa ou que seu

conflito seja resolvido de acordo com o modelo tradicional, concedendo-lhe maior autonomia

para decidir qual modelo atenderá às suas expectativas e necessidades.

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Além disso, a justiça restaurativa garante à ofendida o direito de expor as suas

angústias, medos e desejos, participando ativamente do processo de construção da decisão a

ser dada para solucionar o conflito, solução esta que certamente expressará mais a sua vontade

do que no modelo tradicional em que não é sequer consultada, gozando, assim, de uma maior

legitimidade.

5.2 OBJEÇÕES AO USO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA NOS CONFLITOS ENVOLVENDO VIOLÊNCIA DE GÊNERO

O movimento feminista não é homogêneo em seu pensamento, havendo diversas

tendências, como visto no primeiro capítulo. Numerosos grupos feministas se opõem à justiça

restaurativa na solução de conflitos envolvendo violência doméstica contra a mulher,

justamente porque entende ser o modelo tradicional retribucionista-aflitivo a forma mais

adequada para combater este tipo de violência e promover as mudanças necessárias nas

relações de gênero, mas também há feministas destacadas, a exemplo de Kathleen Daly e

Allison Morris que defendem o uso de práticas restaurativas nestes tipos de conflitos

(LARRAURI, 2008, p. 224).

A Lei Maria da Penha, que teve forte inspiração na Lei Orgânica 1/2004 da Espanha

(LOVG – Lei Orgânica de Proteção Integral contra a Violência de Gênero), fez uma clara

opção pelo modelo de justiça retributivo no trato da violência doméstica e familiar contra

mulher, exemplo claro disso é o disposto no art. 41 da Lei nº 11.340/06 que diz: “aos crimes

praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena

prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995”, lei que traz em seu bojo

uma série de medidas despenalizadoras, tais como a composição civil, a transação penal e o

sursis processual.

Vários são os argumentos utilizados pelos grupos feministas contrários à utilização de

práticas restaurativas na solução de conflitos envolvendo violência de gênero. Antes de

adentrarmos na análise dos principais argumentos contrários, é importante ressaltar que muito

da aversão que carregam tais grupos feministas deve-se ao fato de, por apresentar uma nova

forma de enxergar o crime e a justiça, o modelo restaurativo ainda é pouco compreendido, ou

pior, compreendido de forma equivocada como um modelo de justiça mais ameno. Também

muitas das comparações feitas entre os dois modelos de justiça criminal, descrevem o pior

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110 cenário possível para o modelo restaurativo e o melhor para o modelo retributivo, ignorando

que ambos têm suas qualidades e falhas.

Também, há um equívoco por parte de grupos feministas contrários a utilização da

justiça restaurativa, em especial da mediação, nos casos envolvendo violência doméstica e

familiar, por acreditarem que o objetivo principal de tal prática é salvar a instituição familiar

com a reconciliação do casal, quando na verdade o que se busca com o modelo restaurativo é

permitir um convívio positivo e respeitoso entre as partes durante e após o procedimento.

Como explica Quelen Brondani de Aquino (2013, p. 14), referindo-se às relações conjugais:

Não se quer dizer que elas devam ser restabelecidas e que o vínculo conjugal não seja rompido. Pretende-se sim, que a relação entre vítima e agressor seja restaurada, permitindo-se que aflore em seus agentes um arrependimento e um perdão, estabelecendo um relacionamento positivo entre vítima e agressor.

Outro ponto que deve ser abordado, antes das objeções feitas à justiça restaurativa, é

que nada impede que a mesma caminhe junto com a justiça retributiva, complementando-a,

não sendo um modelo de justiça excludente. A tendência maximalista da justiça restaurativa

defende justamente isso, considerando que a justiça restaurativa deve se integrar ao sistema de

justiça estatal, a fim de promover a transformação do modelo retributivo (JACCOUD, 2005).

Feitas essas ressalvas, vamos às principais objeções à sua utilização nos conflitos

envolvendo violência de gênero. Uma primeira crítica à utilização da justiça restaurativa, nos

crimes envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, é que tal modelo de justiça

reduz a gravidade do fato, minimizando seu caráter delitivo.

De acordo com Bárbara Musamici Soares (apud Giongo, 2011, p. 187):

Reconhecer a legitimidade da mediação, nesses casos, significa veicular a mensagem de que a violência é negociável, quando se procura mostrar exatamente o contrário: bater em uma mulher constitui um ato criminoso que não pode ser tolerado pela vítima e tampouco pela sociedade.

A utilização do modelo restaurativo de justiça criminal trivializaria tais crimes, pois a

utilização das práticas restaurativas, a exemplo da mediação, levaria a “uma

descriminalização da violência doméstica masculina e como consequência um retorno ao

estado de problema ‘privado’ ou particular” (MORRIS, 2005, p. 447). Para os críticos que

defendem tal argumentação, a única resposta válida à violência doméstica é a pena de prisão.

O modelo retributivo, entretanto, na grande maioria das vezes, converte a pena de prisão em

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111 pena restritiva de direitos. Ademais, a justiça restaurativa não afasta a responsabilização do

homem-agressor, buscando a reparação dos danos, a resolução do conflito e, quando possível,

a conciliação, não estando, inclusive, afastada, na decisão construída pelas partes, a aplicação

de uma punição. O que muda é, como dito antes, a forma de enxergar o crime e a justiça, que

é diferente do modelo tradicional.

Mais genericamente, é possível dizer que a justiça restaurativa lida com o crime de maneira mais séria que os sistemas criminais convencionais, na medida em que tem como foco as consequências do crime para a vítima e tenta, além disso, encontrar caminhos significativos para a responsabilização dos infratores. Ao contrário, o crime é efetivamente trivializado nos processos em que as vítimas não tem papel algum (além de, algumas vezes, como testemunha) e nos quais os infratores não são mais do que meros observadores passivos (MORRIS, 2005, p. 447).

A participação também de familiares e amigos na prática restaurativa, além da vítima e

ofensor, como nas conferências de família ou círculos de sentença ou de paz, permitirá que o

agressor alcance o que Braithwaite denominou vergonha reintegrativa, fazendo com que

repense e modifique o seu agir. A justiça restaurativa, para as feministas que defendem a sua

utilização nos conflitos envolvendo violência de gênero, é uma forma mais efetiva de proteger

a vítima, censurar o comportamento do homem-agressor, diminuindo a reincidência e

reintegrando o infrator (HUDSON apud LARRAURI, 2008, p. 228), isto porque a vítima é

empoderada e, ao participar do processo decisório, há uma possibilidade maior de

conscientização e real transformação do agressor.

Ademais, a introdução de práticas restaurativas nos conflitos de gênero aumentam as

chances de as mulheres vítimas de violência doméstica buscar ajuda, pois, muitas vezes, por

descrença no sistema penal ou por não atender ele aos seus anseios, deixam de denunciar os

atos de violência e com a adoção da justiça restaurativa, onde a ofendida tem a possibilidade

de manifestar o que realmente deseja, participando ativamente da solução do conflito

instaurado, é possível que cada vez mais mulheres busquem soluções para situações de

violência doméstica vivenciadas, fenômeno contrário à denominada trivialização da violência

masculina contra a mulher.

Uma segunda objeção apontada é em relação especificamente a mediação, uma das

principais práticas restaurativas. A preocupação dos críticos é com a integridade física da

vítima, em razão “desta técnica não ser suficientemente intimidatória ou corretiva, bem como

possibilitar a aproximação das partes” (GIONGO, 2011, p. 183), o que pode levar a um

aumento do nível de agressividade do ofensor e, por conseguinte, a um maior risco para a

vítima. Em relação a essa desvantagem apontada, deve-se ressaltar que a vítima no processo

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112 de mediação em nenhum momento fica sozinha com o agressor, mas sempre acompanhada de

pelo menos um mediador, podendo ainda estar presentes outras pessoas, como familiares e

amigos da mesma, se assim desejar. Ademais, antes do encontro vis a vis, é aconselhável que

o mediador faça entrevistas isoladas com cada uma das partes, a fim de avaliar se deve ou não

promover a mediação, a qual pode ou não se dar com o encontro frente a frente entre vítima e

ofensor. Por tudo isso, fica claro que a integridade física da vítima não é colocada em risco no

processo de mediação.

Uma outra crítica à utilização da justiça restaurativa, nos crimes envolvendo violência

doméstica e familiar, é que a mulher, devido às suas peculiaridades, encontra-se em uma

situação de maior vulnerabilidade em relação ao homem e, portanto, em desvantagem no

momento da construção da decisão (POZZOBON; LOUZADA, 2013). Em resposta a tal

crítica, Morris (2009, p. 453) argumenta:

No quadro da justiça restaurativa, o desequilíbrio de poder pode ser corrigido por meio de processos justos, suportando a parte em desvantagem e desafiando os mais poderosos. Assim, os processos restaurativos podem fornecer um foro no qual as vítimas têm a oportunidade de deixar claro aos infratores e, mais importante, a sua família e amigos, os efeitos que o crime teve sobre elas, fornecendo também, além de tudo, um foro no qual os infratores podem expor os motivos que os levaram ao crime. Os facilitadores que atuam em processos restaurativos têm a responsabilidade de criar um ambiente no qual, vítimas e infratores possam participar livremente, por qualquer meio que seja necessário. Ao contrário, é quase impossível separar os desequilíbrios de poder entre réus e profissionais dos sistemas convencionais de justiça criminal, sendo que a imagem de uma disputa igualitária entre dois advogados com forças semelhantes é uma ficção.

Um dos valores que norteiam a justiça restaurativa é a não dominação, tendo o

facilitador papel fundamental na manutenção do equilíbrio de forças que deve existir em

qualquer prática restaurativa, não permitindo que a vítima fique em uma posição de

desvantagem, devendo ser empoderada, garantindo, assim, um papel de protagonista no

processo decisório.

Outra objeção ao modelo restaurativo é a revitimização ou vitimização secundária, em

razão de reunir novamente a vítima e o agressor, que ela muitas vezes ainda teme. Em

primeiro lugar, deve ser ressaltado que um dos valores que orientam a justiça restaurativa é a

voluntariedade, ou seja, a vítima é consultada previamente se quer ou não participar de uma

prática restaurativa, podendo optar pelo modelo retributivo de justiça criminal e mesmo

escolhendo o modelo restaurativo pode dele se retirar a qualquer momento. Ademais, optando

por uma das diversas práticas restaurativas, a ofendida não está obrigada a ficar frente a frente

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113 com o agressor, podendo a sua participação ser substituída por parentes ou amigos próximos

indicados por ela. A mediação indireta é uma dessas práticas em que a vítima não mantém um

contato direto com o ofensor, mas somente com o mediador. Também há mediação em que se

encontram um grupo de vítimas com um grupo de ofensores (distintos daqueles que

cometeram o crime) para falar sobre as causas e consequências do delito (PALLAMOLLA,

2009).

Em segundo lugar, a vítima também deve se beneficiar de serviços de apoio

psicossocial, antes, durante e depois do processo, o que hoje quase que inexiste no nosso

sistema de justiça que tem como única preocupação a imposição de uma sanção e não a

solução definitiva do conflito intersubjetivo. Deve-se frisar, ainda, em relação à questão da

revitimização, que o modelo tradicional de justiça criminal também não garante total proteção

à vítima, pois esta corre o risco de ao buscar o sistema penal tradicional ter também contato

com o agressor, tanto durante o processo, quanto após o seu encerramento, quando a pena de

prisão for convertida em restritiva de direitos ou suspensa. Além disso, como na maioria das

vezes os casos de violência doméstica envolvem relações continuadas, pois mesmo que haja a

ruptura do relacionamento entre a mulher-vítima e o homem-agressor tal relação persiste em

razão, por exemplo, da existência de filhos em comum, o contato entre as partes muitas vezes

é inevitável. Afora isso, o modelo retributivo de justiça criminal também promove uma

revitimização praticada pelo próprio Estado-juiz ao não atender às expectativas e necessidades

da mulher vítima de violência doméstica e familiar, como restou comprovado na pesquisa de

campo realizada.

Outro argumento contrário é de que um único encontro restaurativo não é suficiente

para modificar o comportamento violento do agressor e pôr fim ao ciclo de violência

doméstica. Na verdade, não é esta a pretensão da justiça restaurativa, mas sim restabelecer o

diálogo respeitoso entre as partes, fazendo com que o ofensor tome consciência do mal

causado à vítima e busque a sua transformação. É, pois, o marco inicial de um processo de

mudança que deverá ter continuidade com a participação em programas de reabilitação para

agressores. Ademais, também pode haver mais de um encontro, se necessário. Segundo

Giongo (2009, p. 100), o objetivo indispensável desse encontro consiste:

Em introduzir o processo de mudança, ao longo do tempo, no lugar de impor mudanças automáticas ao comportamento do agressor, a fim de impedi-lo em dar continuidade às agressões, propósito excessivamente ambicioso e claramente ilusório para um modo de intervenção pontual como o tradicional.

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114

Uma última crítica apontada pela doutrina, contrária à justiça restaurativa, refere-se à

indisponibilidade da pena, uma vez que a vítima no modelo restaurativo tem voz para indicar

qual a resposta que considera adequada para a infração praticada pelo ofensor. Inicialmente,

frise-se, que tal objeção não se restringe aos crimes envolvendo violência doméstica e

familiar, mas é inerente ao próprio modelo que se baseia no diálogo entre as partes para a

construção da decisão, e aí não só participa a vítima, mas também o ofensor. Um outro ponto

que deve ser ressaltado, é que dentre os valores apontados, por Braithwaite e citados por

Pallomolla (2009, p. 62), como obrigatórios do processo restaurativo está a observância aos

limites máximos estabelecidos legalmente como sanções, não sendo admitida nenhuma

sanção desproporcional ou que afronte a dignidade humana. Sendo assim, vedada está

qualquer decisão degradante ou humilhante.

5.3 VANTAGENS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA NOS CONFLITOS ENVOLVENDO VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Inicialmente, deve-se apontar a insatisfação e desconfiança do movimento feminista

com relação ao funcionamento do sistema penal que adota o modelo retributivo de justiça

criminal. Larrauri (2008, p. 232) aponta quais as principais críticas das feministas ao modelo

tradicional:

Talvez deva se recordar quais as críticas mais repetidas a partir de uma perspectiva feminista para o sistema de justiça criminal tradicional: pouca capacidade de descobrir os casos graves e raras reclamações sobre eles; sentenças relativamente benevolentes; revitimização das mulheres que vem para o sistema penal, e a falta de

eficácia na erradicação da violência (tradução nossa).30

.

Prossegue a professora Elena Larrauri (2008, p. 232):

Em geral, a falta de condenação produz um efeito simbólico de desatenção às mulheres; por outro lado, quando ocorre, levam frequentemente como consequência a ruptura da família e efeitos devastadores nas crianças, pelo que se conclui que o

30

Quizás deba recordarse cuáles son las críticas más repetidas desde una perspectiva feminista al sistema penal tradicional: poca capacidad de descubrir los casos graves y escasas denuncias sobre ellos; condenas relativamente benevolentes; revictimización de la mujer que acude al sistema penal, y falta de efectividad en la erradicación de la violencia

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115

sistema penal não é o instrumento adequado para lidar com casos de violência

doméstica (tradução nossa) 31

.

O sistema penal tradicional mostra-se impróprio em atender as expectativas da mulher

vítima de violência doméstica e familiar, que na grande maioria das vezes não está

preocupada com a punição do agressor, conforme restou demonstrado através da pesquisa de

campo realizada. Por outro lado, o modelo restaurativo ao invés de se preocupar em definir

culpa e infligir dor, visa curar vítima e ofensor. Fortalecendo a primeira, dando-lhe voz, e

incentivando uma mudança de comportamento do segundo, sem deixar de responsabilizá-lo

pelo mal cometido.

Neste momento, é imprescindível explicar também as diferenças entre o sistema restaurativo e o processo judicial. Este seria pautado e decidido pelo juiz, podendo haver ganhadores e perdedores; enquanto aquele teria o objetivo do reconhecimento da injustiça cometida, o compartilhamento e a compreensão/reflexão dos efeitos prejudiciais do conflito, a retomada da comunicação perdida, a instauração de um procedimento de cura – por meio de um processo de reparação concordada – e, por último, o compromisso de assumir um novo comportamento no futuro (GRANJEIRO, 2012, p. 216).

A introdução do paradigma restaurativo permitirá que muitas mulheres vítimas de

violência de gênero, descrentes com o modelo tradicional, sintam-se motivadas a procurar o

sistema penal e expor as situações de violência de que são vítimas no ambiente privado, mas

que não denunciam porque a única resposta possível dada pelo modelo retributivo é a

aplicação de uma pena.

Uma primeira vantagem do modelo restaurativo, talvez a principal delas no trato de

crimes envolvendo violência doméstica e familiar, é o seu caráter discursivo que permite

estabelecer a comunicação entre as partes envolvidas. Como visto, o fenômeno da violência

de gênero apresenta uma complexidade característica, envolvendo aspectos emocionais e

afetivos, já que vítima e ofensor se conhecem e têm ou tiveram algum tipo de relação, daí a

importância de restabelecimento de um diálogo que permita ao menos um convívio

respeitoso. Observou-se, na pesquisa de campo realizada, que na maioria dos casos, o agressor

é ou foi o cônjuge ou companheiro da vítima e o casal somente quer compreender e superar o

conflito conjugal, sendo que o modelo retributivo não oferece essa condição, uma vez que não

31

En general, la falta de condena produce un efecto simbólico de desatención a las mujeres; por otro lado,

cuando éstas se producen conllevan frecuentemente como consecuencia la ruptura de la familia y efectos devastadores sobre los niños, por lo que se concluye que el sistema penal no es el instrumento adecuado para abordar los casos de violencia doméstica.

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116 abre espaço para diálogo entre as partes, acirrando ainda mais o conflito, ao invés de pacificá-

lo.

A justiça restaurativa, ao estabelecer o diálogo, confere aos protagonistas do conflito

estabelecer as regras que passarão a reger suas relações cotidianas, não sendo necessariamente

a continuidade do vínculo conjugal. O simples restabelecimento de um convívio respeitoso

também trará benefícios para os filhos comuns, acaso existentes da vítima e ofensor, tornando

menos traumática a ruptura do vínculo conjugal, se houver. Ao contrário, uma condenação,

qualquer que seja a pena, terá efeitos devastadores nas crianças, como bem assinalado por

Larrauri (2008) anteriormente.

Uma outra vantagem que decorre da primeira, antes apontada, é que a justiça

restaurativa permite que a mulher seja realmente escutada, não somente sobre o fato

criminoso em si, mas sobre sua história e suas expectativas, contribuindo, assim, para que a

mesma se reafirme em razão de sua história ao vê-la confirmada pelos outros (LARRAURI,

2008). A escuta respeitosa, enquanto um dos valores que orientam a justiça restaurativa

permite uma análise e reflexão mais profunda do conflito que levou à prática do delito. Muitas

vezes, é somente isso que a mulher deseja: expor seus medos, angústias e desejos, o que o

modelo retributivo não proporciona, uma vez que é encarada como um simples meio de prova,

devendo em suas declarações se ater aos fatos que guardam relação com o crime.

Sua opinião quanto ao desfecho do processo no sistema penal tradicional não tem

qualquer valor, apesar de ser a principal interessada, já que a decisão dada pelo juiz se atém

aos ditames legais numa lógica positivista que desconsidera todo o entorno, que muitas vezes

é mais importante do que o fato criminoso em si. No modelo restaurativo, tanto a mulher-

vítima quanto o homem-agressor, além de ter voz, devendo ser garantido a cada um a mesma

quantidade de tempo para expor a sua versão acerca do conflito gerador da violência, também

assumem a posição de sujeitos-protagonistas do processo de construção da decisão.

O diálogo, entre as partes interessadas no processo decisório, fortalece o senso de

responsabilidade e dá maior legitimidade à decisão, já que, ao invés de a decisão ter sido

imposta por um terceiro alheio ao conflito, é construída pelas partes diretamente envolvidas

nele, fortalecendo o senso de responsabilidade e fazendo com que, de fato, vítima e ofensor

revejam os papéis sociais estabelecidos e promovam mudanças comportamentais reais. A

participação de familiares e amigos, na prática restaurativa, qualquer que seja ela, também é

aconselhável, pois contribui para lembrar e dar sustentação ao acordo firmado, estimulando,

ainda mais, essa mudança comportamental, tanto da mulher, quanto do homem.

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Outro ponto positivo e que merece ser destacado, é que este modelo de justiça garante

uma maior participação da vítima em todo o processo, deixando a mesma o papel de

coadjuvante do modelo retributivo para o de protagonista. Primeiro é concedida voz à vítima

para que esta possa contar a sua história, depois à mesma é garantido o direito de participar

ativamente do processo de construção da decisão que deve levar necessariamente em conta

suas expectativas e necessidades. Há, portanto, um maior respeito à autonomia da mulher, que

leva ao seu empoderamento, proporcionando, em consequência, um aumento da sua

autoestima. Tudo isso também contribui para desconstruir uma imagem do ser frágil, sensível

e submissa ao homem, que ela própria carrega. Em relação ao homem-agressor, a justiça

restaurativa igualmente funciona como elemento propulsor para mudanças reais em seu

comportamento, principalmente, a fim de que ele não mais volte a fazer uso da violência

contra sua companheira, seja outra ou a mesma.

Nesse sentido, Larrauri (2008, p. 235) destaca que:

Em relação ao agressor, a justiça restaurativa apresenta como méritos essencialmente os seguintes (Larrauri, 2004): pode contribuir para o reconhecimento do dano, o surgimento de um sentimento de culpa ou vergonha produto de sua participação no encontro. Este sentimento, por sua vez, é relevante para efeitos de redução da reincidência. Também acrescenta que o processo também é visto pelo autor como mais justo, o que também é importante para obter o seu vínculo (ligação)

com a ordem normativa (tradução nossa) 32

.

A dinâmica das práticas restaurativas, colocando frente a frente vítima e agressor e

estimulando o diálogo franco e aberto, ajuda o ofensor a perceber o sofrimento causado à

vítima e a reconhecer a sua responsabilidade, estimulando-o a uma mudança de

comportamento. A participação de familiares e pessoas próximas, reprovando a conduta

violenta, ajuda ainda mais essa tomada de consciência por parte do ofensor, além de funcionar

também como elementos de vigilância e controle. Ademais, há um empenho maior por parte

do ofensor no cumprimento da decisão, já que participou do processo de construção, razão

pela qual entende ser mais justa do que a decisão imposta pelo modelo retributivo. Tudo isso

contribui para uma mudança de postura por parte do agressor, que pode levar a uma

diminuição da reincidência.

32

Respecto del agresor, La justicia restauradora presenta como méritos esencialmente los siguientes (Larrauri,

2004): puede contribuir al reconocimiento del daño, al surgimiento de un sentimiento de culpa o vergüenza producto de su participación en el encuentro. Este sentimiento, a su vez, es relevante a efectos de disminuir la reincidencia. Además se añade que el proceso es visto también por el agresor como más justo, lo cual también es relevante para conseguir su vínculo (attachment) con el orden normativo.

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O modelo de justiça restaurativo tem como um dos princípios norteadores a

adaptabilidade, ou seja, existem diversas práticas restaurativas e cada uma delas está aberta a

alterações, permitindo, assim, uma maior flexibilidade nas respostas a serem dadas, levando-

se em conta o caso concreto e os interesses das partes envolvidas, ao contrário do sistema

monolítico tradicional, que se baseia única e exclusivamente na aplicação de uma punição ao

homem-agressor. Isso garante uma maior autonomia às partes, principalmente à vítima, que

na imensa maioria dos casos não deseja a condenação do agressor, como visto na pesquisa, e

com a justiça restaurativa poderá construir uma decisão que se aproxime mais das suas

expectativas. Além disso, muitas das vezes, os atos de violência, principalmente psicológica,

não se enquadram em tipos penais previstos em lei, não podendo ser objeto de processo

criminal no modelo retributivo, podendo ser, através da justiça restaurativa, alvo de discussão

e fazer parte da decisão construída pelas partes.

Outra vantagem da justiça restaurativa refere-se ao custo econômico que certamente é

bem menor do que os gastos de um processo tradicional que movimenta toda máquina

judiciária, enquanto as práticas restaurativas são simples e bastante flexíveis. Como explica

Teresa Lancry de Gouveia de Albuquerque e Sousa Robalo (2012, p. 83):

[...] mesmo que o Estado tenha de despender o necessário para o eficaz funcionamento do processo da justiça restaurativa que venha a ser regulado, essa despesa prender-se-á principalmente com a logística e a remuneração ao mediador (ou moderador, consoante o modelo) que em concreto lidará com o caso, bem como, sendo caso disso, ao pessoal administrativo que possa trabalhar no centro de mediação. Estas despesas serão sem dúvida inferiores às que se prendem com o pagamento dos salários a todos os agentes policiais, magistrados, secretários judiciais e toda a logística por detrás do funcionamento da máquina judiciária.

Um último argumento favorável à utilização da justiça restaurativa está no grau de

satisfação das vítimas, que é muito maior do que no sistema penal tradicional. Segundo

Larrauri (2008, p. 236), pesquisas feitas na Nova Zelândia e em outros países demonstraram

que as práticas restaurativas levam a acordos mais úteis aos ofensores e mais benéficos às

vítimas, além de levar a uma redução do nível de reincidência. Ressalte-se, porém, que tais

pesquisas deram-se no âmbito geral e não especificamente em relação aos crimes envolvendo

violência de gênero.

Analisando-se as objeções e vantagens do modelo restaurativo, percebe-se que ele é

um modelo de justiça criminal mais efetivo que o retributivo, pois está mais apto a cumprir os

objetivos geralmente atribuídos ao sistema penal - comunicar censura, proteger a vítima,

reduzir a reincidência e reintegrar o infrator (GIONGO, 2011) - e a sua utilização pode ser

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119 uma opção viável na solução de conflitos que envolvem violência doméstica e familiar contra

a mulher, podendo ser utilizada em conjunto com o modelo retributivo, capaz de atender

também as finalidades buscadas pelo movimento feminista de emancipação da mulher e

igualdade de tratamento frente aos homens.

5.4 CONSTITUIÇÃO, JUSTIÇA RESTAURATIVA E VIOLÊNCIA DE GÊNERO

A Constituição de 1988 introduziu no Brasil um novo modelo de Estado, já presente

na Europa continental desde o pós-guerra, denominado Estado Democrático de Direito que

tem como principal característica a subordinação das leis aos valores, regras e princípios

constitucionais, ou seja, a validade das normas está condicionada a sua compatibilidade com o

texto constitucional, daí porque também é chamado Estado Constitucional de Direito. Essa

mesma Constituição definiu, em seu artigo 1°33

, a dignidade da pessoa humana como

princípio fundamental desse Estado Democrático de Direto, ou seja, todo arcabouço político e

jurídico do Estado deve observar as necessidades essenciais da pessoa humana para uma vida

digna, somente assim gozará de legitimidade.

O princípio da dignidade da pessoa humana deve, portanto, ter papel fundamental

como orientador de um Direito Penal Democrático. Infelizmente, não é o que se vê na

realidade, diante da crise de legitimidade pela qual passa o modelo retributivo de justiça

criminal, crise esta que se deve, em grande parte, à existência de um sistema penal excludente

e segregador, em que os presídios são considerados verdadeiras fábricas de delinquentes,

devido, principalmente, às condições desumanas a que são submetidos os condenados.

Outrossim, a vítima também tem desrespeitada a sua dignidade ao ser excluída do processo,

funcionando como simples meio de prova.

33

1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

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A justiça restaurativa se ajusta melhor a esse novo modelo de Estado, respeitando a

dignidade das partes envolvidas no conflito que levou à prática delitiva. Como explica Saliba

e Silva (2008, p. 2885):

[...] a inserção da justiça restaurativa nos postulados contemporâneos do Estado Democrático de Direito. É que embora os esquemas de mediação e conciliação e a

maior atenção às necessidades da vítima sejam elementos sempre mencionados quando se trata da justiça restaurativa, não se tem dado a devida atenção, muitas vezes a uma importante questão: o fato de que a maior abertura e flexibilidade do sistema de justiça aos inputs da comunidade e dos próprios envolvidos, bem como a

preocupação não apenas com o aspecto punitivo, mas com a superação de uma situação conflituosa (em sentido amplo), representam o que há de mais arrojado em termos de uma concepção de direito e democracia compatível com as exigências e complexidades do mundo contemporâneo. Um mundo em sua essência antidogmático, em que a legitimidade das intervenções jurídico-políticas há de

necessariamente pressupor um elemento dialogal comum, que tenha um núcleo mínimo de aceitação e consenso.

No modelo restaurativo, ao contrário de o Estado se apropriar do conflito e impor a sua

decisão, vítima, infrator e comunidade, voluntariamente, através do diálogo respeitoso

chegam a uma decisão com o mínimo de consenso, sendo esta a própria essência da teoria

discursiva de Habermas (1997).

O movimento feminista brasileiro, seguindo uma tendência de outros países da

Europa, a exemplo da Espanha, com a Lei nº 11.340/2006 apostou no modelo retributivo de

justiça criminal como estratégia de combate à violência de gênero, através do recrudescimento

do tratamento penal dado ao agressor, subtraindo da mulher vítima de violência doméstica e

familiar, principal interessada, o direito de escolher qual o melhor caminho a ser tomado na

solução do conflito em que se vê envolvida e, por conseguinte, suprimindo sua autonomia

inerente à dignidade da pessoa humana. Ressalte-se que a Constituição Federal, em seu artigo

226, parágrafo oitavo34

·, faz menção à criação de mecanismos para coibir a violência no

âmbito familiar e doméstico, não fazendo, porém, indicação expressa à utilização do modelo

retributivo de justiça criminal, nem vedando a utilização de práticas restaurativas na solução

de conflitos envolvendo violência de gênero.

A pesquisa de campo, aqui realizada, deixou evidente que a estratégia retribucionista-

aflitiva do movimento feminista não reflete os anseios da imensa maioria das mulheres

vítimas de violência doméstica e familiar, sinalizando ainda que a utilização da justiça

34

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...] § 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

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121 restaurativa seria bem aceita por uma boa parte das entrevistadas na solução de conflitos

envolvendo violência de gênero. A Lei “Maria da Penha” fechou os olhos para o preconizado

na Constituição Federal, na medida em que sequestrou da vítima se assim desejasse, o direito

de participar mais ativamente do processo de solução do conflito levado ao sistema penal,

reforçando ainda mais a percepção da mulher como ser vulnerável, incapaz de ditar as suas

próprias escolhas, além de não modificar o agir masculino, visto que a repressão, própria do

modelo retributivo, não contribui em nada com uma mudança de comportamento, ao

contrário, somente reforça o estigma de homem-agressor.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O modelo retributivo de justiça criminal há tempos vem passando por uma crise de

legitimidade em razão do fracasso no atingimento das finalidades a que se propôs, isto porque

a criminalidade é um fenômeno complexo e o paradigma tradicional, baseado unicamente na

imposição de pena, mostra-se incapaz de atender aos anseios da vítima e de promover a

reinserção social do condenado por ser o sistema penal segregador, excludente e

estigmatizante. A violência doméstica e familiar contra a mulher é um fenômeno ainda mais

complexo por envolver, além da questão de gênero e a visão androcêntrica de mundo, em sua

grande maioria, conflitos em relações continuadas entre vítima e ofensor, sendo

imprescindível a observação dos aspectos emocionais e afetivos dali advindos.

Entretanto, foi este modelo superado de justiça criminal que grande parte do

movimento feminista entendeu e, ainda entende como mais adequado para a solução dos

conflitos envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, o que não deixa de ser

um paradoxo porque o sistema penal foi e ainda é usado como instrumento de controle do

papel de submissão da mulher na sociedade. Tal estratégia, utilizada não só pelo feminismo,

mas, também, por outros grupos, alvo de discriminações, denominados gestores atípicos da

moral, busca através do Direito Penal e sua carga simbólica, com o enrijecimento do

tratamento penal dado ao agressor, promover a emancipação da mulher para fins de superação

da discriminação e violência de gênero.

Todavia, tal movimento leva a uma expansão do Direito Penal que vai de encontro ao

modelo garantista penal o qual defende o controle e minimização do poder punitivo estatal, ou

seja, o minimalismo penal, próprio de um Estado Democrático de Direito como o nosso.

Outrossim, cumpre ressaltar que a intervenção penal, de maneira pontual, com a

resolução do processo e aplicação de uma pena ao ofensor sem analisar a fundo o conflito

intersubjetivo instaurado em suas mais diferentes vertentes, além de não ter o efeito

transformador na violência simbólica que garante a superioridade masculina, não atende às

expectativas e necessidades da mulher vítima de violência.

A vítima de violência doméstica e familiar, em sua grande maioria, não procura o

sistema penal em busca de uma condenação, muito menos de uma pena privativa de liberdade

para o seu ofensor, mas sim uma solução definitiva para um conflito em que se encontra

envolvida, devendo ser garantido às partes, em especial a mulher, uma maior participação no

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123 processo decisório, como restou evidenciado na pesquisa de campo realizada, o que não

ocorre no modelo retributivo.

O paradigma restaurativo, com seu modelo de justiça criminal inclusivo e dialógico,

que se aproxima da teoria discursiva habermasiana, possibilita a solução do conflito através da

comunicação e da fala entre os contendores, ao contrário do processo judicial tradicional, que

divide as pessoas em partes, excluindo a possibilidade de comunicação e integração pelo

direito. O modelo restaurativo não se preocupa simplesmente na imposição da norma

positivada, mas na superação do conflito através de um mínimo de aceitação e consenso entre

as partes diretamente envolvidas.

A utilização da justiça restaurativa na solução de conflitos envolvendo violência

doméstica e familiar contra a mulher deve funcionar como uma alternativa colocada à

disposição da vítima de violência de gênero, se assim desejar, já que nem a ela, nem ao

agressor, pode ser imposto tal modelo de justiça criminal, abrindo-se mais uma porta,

convertendo o sistema monolítico tradicional de uma única solução com a simples imposição

de pena, para soluções diversas construídas com a participação dos verdadeiros interessados

no conflito, levando-se em conta a situação concreta e os anseios das partes envolvidas.

Em um Estado Democrático de Direito, que tem como um dos seus fundamentos a

dignidade da pessoa humana, o paradigma restaurativo tem plena acolhida em nossa

Constituição por ser um modelo de justiça criminal que respeita a vontade das partes, dando-

lhes autonomia para participarem, se assim desejarem, do processo de construção da decisão,

constituindo-se em um verdadeiro Direito Penal democrático.

No nosso ordenamento jurídico, já temos a Lei n° 12.594/2012 que, em seu artigo

3535

, inciso III, prevê expressamente a possibilidade de utilização de práticas restaurativas na

execução de medidas socioeducativas a adolescentes que praticaram atos infracionais. Além

35

Art. 35. A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes princípios: I - legalidade, não podendo o adolescente receber tratamento mais gravoso do que o conferido ao adulto; II - excepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas, favorecendo-se meios de autocomposição de conflitos; III - prioridade a práticas ou medidas que sejam restaurativas e, sempre que possível, atendam às necessidades das vítimas; IV - proporcionalidade em relação à ofensa cometida; V - brevidade da medida em resposta ao ato cometido, em especial o respeito ao que dispõe o art. 122 da Lei n

o

8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente); VI - individualização, considerando-se a idade, capacidades e circunstâncias pessoais do adolescente; VII - mínima intervenção, restrita ao necessário para a realização dos objetivos da medida; VIII - não discriminação do adolescente, notadamente em razão de etnia, gênero, nacionalidade, classe social, orientação religiosa, política ou sexual, ou associação ou pertencimento a qualquer minoria ou status; e IX - fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários no processo socioeducativo.

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disso, está em trâmite, no Congresso Nacional, o projeto de lei n° 7006/200636

, que faculta o

uso de procedimentos de justiça restaurativa no sistema de justiça criminal pátrio para crimes

e contravenções, encontrando-se na comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos

Deputados com parecer favorável do seu relator, deputado Lincoln Portela, que declara não

haver razão alguma para limitar o uso da justiça restaurativa para atos infracionais, devendo

também se estender para os crimes e contravenções. Ressalte-se, ainda, que tal projeto de lei

não traz qualquer restrição à utilização do modelo restaurativo de justiça criminal nos crimes

envolvendo violência doméstica e familiar. Antes mesmo da aprovação de qualquer lei que

regulamente a utilização da justiça restaurativa para crimes e contravenções, já existem em

várias unidades da federação, a exemplo do Rio Grande do Sul, São Paulo e Distrito Federal,

conforme mencionado no capítulo IV, programas de justiça restaurativa, que vêm

apresentando resultados auspiciosos.

Em relação, especificamente, à violência de gênero, o próprio artigo 226 da Carta

Magna, em seu parágrafo oitavo, abre a possibilidade de adoção de práticas restaurativas,

quando, ao tratar de violência doméstica e familiar, faz menção à criação de mecanismos para

coibir tal espécie de violência, não havendo, pois, qualquer vedação à utilização da justiça

restaurativa, que, por ser um modelo inclusivo e dialógico, atende mais às expectativas de

grande parte das vitimas de violência de gênero, segundo a pesquisa realizada.

A Lei “Maria da Penha”, apesar de ter claramente optado pelo modelo tradicional de

justiça criminal, apresenta dispositivos de natureza penal e extrapenal, que permitem a

implementação de práticas restaurativas. O artigo oitavo do citado diploma legal, em seu

inciso VI autoriza “a celebração de convênios, protocolos, ajustes, termos ou outros

instrumentos de promoção de parceria entre órgãos governamentais ou entre estes e entidades

não governamentais, tendo por objetivo a implementação de programas de erradicação da

violência doméstica e familiar contra a mulher”.

Um outro exemplo, é o artigo 35 da Lei n° 11.340/2006, quando em seu inciso quarto

faz menção à criação de “programas e campanhas de enfrentamento da violência doméstica e

familiar” e no inciso seguinte fala em “centros de educação e de reabilitação para os

agressores”. Tais dispositivos legais abrem a possibilidade para a implementação imediata de

programas de justiça restaurativa na solução de conflitos envolvendo violência de gênero.

É bom que se frise que não se está a defender a simples substituição do modelo

retributivo pela justiça restaurativa, até porque tal modelo de justiça criminal é regido pelo

36 Disponível em: < http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=323785>

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125 princípio da voluntariedade e, para ser voluntário, é imprescindível a possibilidade de escolha,

tanto por parte da vítima, quanto do ofensor, mas a incorporação de práticas restaurativas ao

sistema penal e sua colocação à disposição da vítima, se assim desejar fazê-lo, em situações

de violência doméstica que sequer configuram tipos penais ou em infrações de ação penal

privada ou pública condicionada à representação num primeiro momento.

A utilização da justiça restaurativa nos conflitos envolvendo violência doméstica e

familiar contra a mulher poderá romper, de uma vez, com o ciclo de violência, resgatará a

dignidade da mulher, empoderando-lhe e dando-lhe maior autonomia, ao mesmo tempo em

que responsabilizará o homem-agressor, bem como promoverá a sua conscientização,

fomentando, assim, mudanças comportamentais reais, tão desejadas pelo movimento

feminista, nas relações de gênero.

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APÊNDICES

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APÊNDICE A- Questionário da Vítima

Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca de Aracaju SE – 2013 Data de aplicação deste Formulário:

DADOS CADASTRADOS NO JUIZADO Nº DO PROCESSO:________________________________________________ CLASSIFICAÇÃO DO CRIME:______________________________________ NOME DA ENTREVISTADA:_______________________________________ 1. Qual o bairro onde reside? ___________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ 2. Qual a sua faixa etária? ( ) Menor de 20 anos ( ) De 20 a 39 anos ( ) De 40 a 59 anos ( ) Maior de 60 anos 3. Qual a raça/cor? ( ) branca ( ) preta ( ) amarela ( ) parda ( ) indígena

4. Qual o seu grau de escolaridade? ( ) Analfabeta ( ) Ensino fundamental incompleto ( ) Ensino fundamental completo ( ) Ensino médio incompleto ( ) Ensino médio completo ( ) Ensino superior incompleto ( ) Ensino Superior completo ( ) Pós graduação (especialização, mestrado ou doutorado)

5. Você exerce atividade remunerada? ( ) Sim ( ) Não

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5.1. Caso a resposta seja afirmativa, qual sua faixa salarial? ( ) menos de 1 salário mínimo ( ) 1 salário mínimo ( ) entre 1 a 5 salários mínimos ( ) entre 5 e 10 salários mínimos ( ) mais de 10 salários mínimos

6. Depende economicamente de alguém? ( ) Sim ( ) Não 6.1. Caso a resposta seja afirmativa, quem? ( ) Cônjuge ou companheiro ( ) Ex-cônjuge ou companheiro ( ) Ascendentes ( ) Descendentes ( ) Outros

7. Mora em imóvel? ( ) próprio ( ) alugado ( ) do cônjuge ou companheiro ( ) de parentes ( ) de amigos ( ) outros

8. Qual a sua composição familiar, ou seja, mora com quem? 9. Qual a sua relação com o agressor? ( ) cônjuge/companheira/noiva/namorada ( ) ex-cônjuge/companheira/noiva/namorada ( ) ascendente(Ex: mãe, avó) ( ) descendente(Ex: filha, neta) ( ) colateral(Ex: irmã, prima) ( ) outras

10. Possui filhos? ( ) Sim ( ) Não 10.1 Quantos? ________________________________________________________________

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136 10.2 Desses filhos, quantos são com o agressor? ________________________________________________________________

11. Qual o tipo de violência sofrida? (Obs.: é possível assinalar mais de um item) ( ) física (Ex: lesão corporal, vias de fato) ( ) psicológica (Ex: ameaça, perturbação da tranquilidade) ( ) sexual (Ex: estupro) ( ) patrimonial (Ex: furto, dano)

( ) moral (Ex: calúnia, difamação, injúria) ( ) outros ________________________________________________________

12. O que acredita ter sido o elemento motivador para a prática do ato de violência

doméstica e familiar? ( ) Ciúme ( ) Alcoolismo ( ) Drogas ( ) Questões patrimoniais ou financeiras ( ) Outros ________________________________________________________

13. Já foi vítima de violência doméstica anteriormente por parte de outro agressor? ( ) Sim ( ) Não

14. Foi a primeira vez que foi vítima de violência por parte do agressor? ( ) Sim ( ) Não

15. Já registrou ocorrência contra o agressor outras vezes? ( ) Sim ( ) Não

16. Quem fez a denúncia? ( ) Você mesma ( ) Membros da família ( ) Vizinhos ( ) Outras pessoas do âmbito privado ( ) Rede de proteção ( ) Anônima

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137

( ) Outros

17. Você foi atendida por alguma equipe multidisciplinar (psicóloga, assistente social)? ( ) Sim ( ) Não 17.1. Se sim, em que fase? ( ) Policial ( ) Judicial

18. Após o conflito, houve reconciliação ou tentativa de reconciliação entre você e o

agressor? ( ) Sim ( ) Não 18.1 Caso a resposta seja afirmativa, em que momento ocorreu tal reconciliação ou tentativa? ___________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________

19. Pensou ou tentou retirar a denúncia, ou desistir do processo? ( ) Sim ( ) Não 19.1 Caso a resposta seja afirmativa, o que a levou a isso? (Obs.: é possível assinalar mais de uma opção) ( ) vontade própria

( ) pedido do agressor ( ) pedido dos filhos acaso havidos com o agressor ( ) pedido dos familiares do agressor ( ) pedido dos seus familiares ( ) pedido de algum religioso ( ) outros ________________________________________________________

20. Você gostaria de ser consultada acerca da decisão a ser tomada pelo juiz? ( ) Sim ( ) Não

21. Você estaria disposta a se submeter a algum procedimento em que você, bem como o

agressor, também participasse da decisão a ser tomada para a solução do conflito?

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( ) Sim ( ) Não

OBS.: Caso a resposta seja AFIRMATIVA, colher, no verso, endereço e telefone da entrevistada, a fim de que a mesma venha a participar dos grupos focais.

22. Você Deseja que o agressor sofra uma condenação? ( ) Sim ( ) Não

23. Você deseja que o agressor seja preso? ( ) Sim ( ) Não

24. Qual o seu objetivo ao procurar a Delegacia de Grupos Vulneráveis (DAGV) quando

da agressão? ___________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________

25. Qual a solução que você espera do processo? ___________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________

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139

APÊNDICE B- Resultado Estatístico Geral

1. Qual a Zona onde mora?

Conceitos

Frequência

% % Válida % Acumulada

NR

1,6 1,6

4 1,6

Zona Oeste 35 18,3 18,4 20,0

Zona Sul 73 38,2 38,4 58,4

Zona Norte 53 27,7 27,9 86,3

Zona Centro 21 11,0 11,1 97,4

Zona Expansão 5 2,6 2,6 100,0

Total

100,0

191 99,5

Média 2,36

Mediana 2,00

Moda 2,00

Desvio Padrão 1,04

2. Qual a sua faixa etária?

Conceitos

Frequência

% % Válida % Acumulada

Menor de 20 anos 6 3,1 3,1 3,1

de 20 a 39 anos 129 67,5 67,5 70,7

de 40 a 59 anos 52 27,2 27,2 97,9

Maior de 60 anos 4 2,1 2,1 100,0

Total 191 100,

0 100,0

Média 2,28

Mediana 2,00

Moda 2,00

Desvio Padrão 0,56

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140

3. Qual a raça/cor?

Conceitos

Frequencia

%

% Válida

% Acumulada

NR 2 1,0 1,0 1,0

Branca 40 20,9 20,9 22,0

Negra 43 22,5 22,5 44,5

Amarela 9 4,7 4,7 49,2

Parda 94 49,2 49,2 98,4

Indígena

1,6

3 1,6 100,0

Total 191 100,0 100,0

Média 2,84

Mediana 4,00

Moda 4,00

Desvio Padrão 1,30

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141

4. Qual o seu grau de escolaridade?

Conceitos Frequência %

% Válida

% Acumulada

Analfabeta 5 2,6 2,6 2,6

Ens. fund. Incompleto 40 20,9 20,9 23,6

Ens. fund. Completo 13 6,8 6,8 30,4

Ens. medio incompleto 32 16,8 16,8 47,1

Ens. medio completo 63 33,0 33,0 80,1

Ens. superior incompleto 20 10,5 10,5 90,6

Ens.superior completo 13 6,8 6,8 97,4

Pós graduação 5 2,6 2,6 100,0

Total 191 100,0 100,0

Média 4,28

Mediana 5,00

Moda 5,00

Desvio Padrão 1,69

5. Você exerce atividade remunerada?

Conceitos

Frequência

%

% Válida

% Acumulada

Sim 124 64,9 64,9 64,9

Não

100,0

67 35,1 35,1

Total

100,0

191 100,0

Média 1,35

Mediana 1,00

Moda 1,00

Desvio Padrão 0,48

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142 5.1 Caso a resposta seja afirmativa. Qual sua faixa salarial?

Conceitos

Frequência %

% Válida

% Acumulada

NR 65 34,0 34,0 34,0

Menos de 1 salário mínimo 15 7,9 7,9 41,9

1 salário mínimo 63 33,0 33,0 74,9

entre 1 a 5 salários mínimos 43 22,5 22,5 97,4

entre 5 a 10 salários mínimos 3 1,6 1,6 99,0

mais de 10 salários mínimos 2 1,0 1,0 100,0

Total 191 100,0 100,0

Média 1,53

Mediana 2,00

Moda 0,00

Desvio Padrão 1,27

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143 6. Depende economicamente de alguém?

Conceitos

Frequência

%

% Válida

% Acumulada

NR 20 18,3 18,3 18,3

Sim

34

31,2

31,2 49,5

Não 55 50,5 50,5 100,0

Total 109 100,0 100,0

Média 1,32

Mediana 2,00

Moda 2,00

Desvio Padrão 0,77

6.1 Caso a resposta seja afirmativa. Quem? Conceitos

Frequência % % Válida

% Acumulada

NR 75 67,9 67,9 67,9

Cônjuge ou companheiro 13 12,8 12,8 80,7

Ex-cônjuge ou companheiro 4 3,7 3,7 84,4

Ascendentes 11 10,1 10,1 94,5

Descendentes 5 4,6 4,6 99,1

Outros 1 ,9 ,9 100,0

Total 109 100,0 100,0

Média 0,73

Mediana 0,00

Moda 0,00

Desvio Padrão 1,27

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7. Mora em imóvel? Conceitos

Frequência %

% Válida % Acumulada

Próprio 106 55,5 55,5 55,5

Alugado 51 26,7 26,7 82,2

Do cônjuge ou companheiro 4 2,1 2,1 84,3

De parentes 28 14,7 14,7 99,0

De amigos 1 ,5 ,5 99,5

Outros 1 ,5 ,5 100,0

Total 191 100,0 100,0

144

Média 1,78

Mediana 1,00

Moda 1,00

Desvio Padrão 1,11

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145 8. Qual a sua composição familiar, ou seja, mora com quem?

Conceitos Frequência % % Válida % Acumulada

NR 1 ,5 ,5 ,5

Sozinha 21 10,8 10,8 11,3

Filhos 70 35,9 35,9 47,2

Cônjuge/Companheiro 11 5,6 5,6 52,8

Cônjuge e Filhos 37 19,0 19,0 71,8

Parentes 53 27,2 27,2 99,0

Outros 2 1,0 1,0 100,0

Total 195 100,0 100,0

Média 3,17

Mediana 3,00

Moda 2,00

Desvio Padrão 1,48

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146

9. Qual a sua relação com o agressor?

Conceitos Frequência % % Válida % Acumulada

Cônjuge/companheira/noiva/namorada 50 26,2 26,2 26,2

Ex-cônjuge/companheira/noiva/namorada 106 55,5

81,7

55,5

Ascendente 3 1,6 1,6 83,2

Descendente

3,1

6 3,1 86,4

Colateral 14 7,3

93,7

7,3

Outras 12 6,3 6,3 100,0

Total 191 100,0 100,0

Média 2,29

Mediana 2,00

Moda 2,00

Desvio Padrão 1,42

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147

10. Possui filhos?

Conceitos

Frequência %

% Válida

% Acumulada

Sim 152 79,6 79,6 79,6

Não 39 20,4 20,4 100,0

Total 191 100,0 100,0

Média 1,21

Mediana 1,00

Moda 1,00

Desvio Padrão 0,40

11. Qual o tipo de violência sofrida?

Conceitos Frequência % % Válida % Acumulada

Física 138 34,8 34,8 34,8

Psicológica 139 35,0 35,0 69,8

Sexual 6 1,5 1,5 71,3

Patrimonial 23 5,8 5,8 77,1

Moral 81 20,4 20,4 97,5

Outros 10 2,5 2,5 100,0

Total 397 100,0 100,0

Média 2,50

Mediana 2,00

Moda 2,00

Desvio Padrão 1,61

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148 12. O que acredita ter sido o elemento motivador para a prática do ato de violência domestica e familiar?

Conceitos

Frequência % % Válida % Acumulada

NR 17 11,0 11,0 11,0

Ciúme 39 25,2 25,2 36,1

alcoolismo 43 27,7 27,7 63,9

drogas 23 14,8 14,8 78,7

Questões patrimoniais ou financeiras 10 6,5 6,5 85,2

outros 23 14,8 14,8 100,0

Total 155 100,0 100,0

Média 2,25

Mediana 2,00

Moda 2,00

Desvio Padrão 1,54

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149

13. Já foi vitima de violência doméstica anteriormente por parte de outro agressor?

Conceitos

Frequência

%

% Válida

% Acumulada

NR 2 1,0 1,0 1,0

Sim 32 16,8 16,8 17,8

Não

82,2

157 82,2 100,0

Total 191 100,0 100,0

Média 1,82

Mediana 2,00

Moda 2,00

Desvio Padrão 0,42

14. Foi a primeira vez que foi vitima de violência por parte do agressor?

Conceitos Frequência % % Válida % Acumulada

NR 1 ,5 ,5 ,5

Sim 101 52,9 52,9 53,4

Não 89 46,6 46,6 100,0

Total 191 100,0 100,0

Média 1,46

Mediana 1,00

Moda 1,00

Desvio Padrão 0,51

15. Já registrou ocorrência contra o agressor outras vezes?

Conceitos

Frequência

%

% Válida

% Acumulada

NR 1 ,5 ,5 ,5

Sim 82 42,9 42,9 43,5

Não 108 56,5 56,5 100,0

Total 191 100,0 100,0

Média 1,56

Mediana 2,00

Moda 2,00

Desvio Padrão 0,51

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150

16. Quem fez a denúncia?

Conceitos

Frequência % % Válida

% Acumulada

NR 1 ,5 ,5 ,5

Você mesma 174 91,1 91,1 91,6

Membros da família 9 4,7 4,7 96,3

Vizinhos 3 1,6 1,6 97,9

Outras pessoas de âmbito privado 1 ,5 ,5 98,4

Rede de proteção 1 ,5 ,5 99,0

Anônima 1 ,5 ,5 99,5

Outros 1 ,5 ,5 100,0

Total 191 100,0 100,0

Média 1,16

Mediana 1,00

Moda 1,00

Desvio Padrão 0,73

17. Você foi atendida por alguma equipe multidisciplinar?

Conceitos

Frequência

%

% Válida % Acumulada

NR 1 ,5 ,5 ,5

Sim 31 16,2 16,2 16,8

Não 159 83,2 83,2 100,0

Total

191 100,0 100,0

Média 1,83

Mediana 2,00

Moda 2,00

Desvio Padrão 0,39

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151

17.1 Se sim, em que fase?

Conceitos

Frequência

%

% Válida

% Acumulada

NR

82,7

82,7

158 82,7

Policial 25 13,1 13,1 95,8

Judicial 8 4,2 4,2 100,0

Total

100,0

191 100,0

Média 0,21

Mediana 0,00

Moda 0,00

Desvio Padrão 0,50

18. Após o conflito, houve reconciliação ou tentativa de reconciliação entre você e o agressor?

Conceitos

Frequência

%

% Válida

% Acumulada

NR 1 ,5 ,5 ,5

Sim 73 38,2 38,2 38,7

Não 117 61,3 61,3 100,0

Total 191 100,0 100,0

Média 1,61

Mediana 2,00

Moda 2,00

Desvio Padrão 0,50

19. Pensou ou tentou retirar a denuncia, ou desistir do processo?

Conceitos

Frequência

% % Válida

% Acumulada

NR 1 ,5 ,5 ,5

Sim 83 43,5 43,5 44,0

Não 107 55,5 55,5 99,5

Total 191 100,0 100,0

Média 1,57

Mediana 2,00

Moda 2,00

Desvio Padrão 0,54

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152

19.1 Caso a resposta seja afirmativa, o que levou a isso? Conceitos Frequência % % Válida % Acumulada

NR 1 1,2 1,2 1,2

Vontade própria 44 53 53 54,2

Pedido do agressor 9 10,8 10,8 65

Pedido dos filhos 7 8,4 8,4 73,4

Pedido dos familiares do agressor 3 3,6 3,6 77

Pedido dos seus familiares 3 3,6 3,6 80,6

Outros 16 19,4 19,4 100,0

Total 83 100,0 100,0

Média 1,15

Mediana 0,00

Moda 0,00

Desvio Padrão 1,94

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153 20. Você gostaria de ser consultada acerca da decisão a ser tomada pelo juiz?

Conceitos Frequência %

% Válida % Acumulada

NR 2 1,0 1,0 1,0

Sim 149 78,0 78,0 79,1

Não 40 20,9 20,9 100,0

Total 191 100,0 100,0

Média 1,19

Mediana 1,00

Moda 1,00

Desvio Padrão 0,42

21. Você estaria disposta a se submeter a algum procedimento em que você, bem como o agressor, também participasse da decisão a ser tomada para a solução do conflito?

Conceitos Frequência %

% Válida % Acumulada

NR 3 1,6 1,6 1,6

Sim 84 44,0 44,0 45,5

Não 104 54,5 54,5 100,0

Total 191 100,0 100,0

Média 1,53

Mediana 2,00

Moda 2,00

Desvio Padrão 0,53

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154

22. Você deseja que o agressor sofra uma condenação?

Conceitos Frequência % % Válida % Acumulada

NR 5 2,6 2,6 2,6

Sim 67 35,1 35,1 37,7

Não 119 62,3 62,3 100,0

Total 191 100,0 100,0

Média 1,61

Mediana 2,00

Moda 2,00

Desvio Padrão 0,53

23. Você deseja que o agressor seja preso?

Conceitos

Frequência

%

% Válida

% Acumulada

NR 5 2,6 2,6 2,6

Sim 22 11,5 11,5 14,1

Não

85,9

164 85,9 100,0

Total 191 100,0 100,0

Média 1,84

Mediana 2,00

Moda 2,00

Desvio Padrão 0,44

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155 24. Qual o seu Objetivo ao procurar a Delegacia de Grupos Vulneráveis quando da agressão?

Conceitos

Frequência % % Válida % Acumulada

NR 1 ,5 ,5 ,5

Cessação da situação de 49 24,5 24,5 25,0

violência

Proteção 46 23,0 23,0 48,0

Resolução da questão 8 4,0 4,0 52,0

Ajuda ao agressor 5 2,5 2,5 54,5

Afastamento do agressor 21 10,5 10,5 65,0

Condenação do agressor 19 9,5 9,5 74,5

Conscientização do agressor 16 8,0 8,0 82,5

Outros 35 17,5 17,5 100,0

Total 200 100,0 100,0

Média 3,98

Mediana 3,00

Moda 1,00

Desvio Padrão 2,70

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25. Qual a solução que você espera do processo?

Conceitos Frequência % % Válida % Acumulada

NR 3 1,5 1,5 1,5

Extinção do processo 45 23,2 23,2 24,7

Conscientização do agressor 17 8,8 8,8 33,5

Distância do agressor 41 21,1 21,1 54,6

Condenação do agressor 34 17,5 17,5 72,2

Cessação da situação de violência 12 6,2 6,2 78,4

Solução Amigável 14 7,2 7,2 85,6

Outros 28 14,4 14,4 100,0

Total 194 100,0 100,0

Média 3,49

Mediana 3,00

Moda 1,00

Desvio Padrão 2,08

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ANEXOS

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ANEXO 1- Projeto de Lei 7006/2006

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164 Anexo 2- Diferenças entre o Modelo Retributivo e o Modelo Restaurativo, segundo Renato

Sócrates Gomes Pinto (2005).

Valores

JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA

Conceito jurídico-normativo de Crime – ato Conceito realístico de Crime – Ato que contra a sociedade representada traumatiza a vítima, causando-lhe

pelo Estado – danos. - Multidisciplinariedade

Unidisciplinariedade

Primado do Interesse Público (Sociedade, Primado do Interesse das Pessoas representada pelo Estado, o Envolvidas e Comunidade –

Centro) – Monopólio estatal da Justiça Criminal participativa

Justiça Criminal

Culpabilidade Individual voltada para o Responsabilidade, pela restauração, numa passado – Estigmatização dimensão social, compartilhada

coletivamente e voltada para o

futuro.

Uso Dogmático do Direito Penal Positivo Uso Crítico e Alternativo do Direito

IndiferençadoEstadoquantoàs Comprometimento com a inclusão e Justiça necessidades do infrator, vítima e Social gerando conexões

comunidade afetados -

desconexão

Monocultural e excludente Culturalmente flexível (respeito à diferença, tolerância)

Dissuasão Persuasão

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PROCEDIMENTOS

JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA

Ritual Solene e Público Comunitário, com as pessoas envolvidas

Indisponibilidade da Ação Penal Princípio da Oportunidade

Contencioso e contraditório Voluntário e colaborativo

Linguagem, normas e procedimentos Procedimento informal com formais e complexos – garantias. confidencialidade

Atores principais - autoridades Atores principais – vítimas, infratores, (representando o Estado) e pessoas da Comunidade, ONGs.

profissionais do Direito

Processo Decisório a cargo de autoridades Processo Decisório compartilhado com as (Policial, Delegado, Promotor, pessoas envolvidas (vítima,

Juiz e profissionais do Direito – infrator ecomunidade)–

Unidimensionalidade Multidimensionalidade

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RESULTADOS

JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA

Prevenção Geral e Especial Abordagem do Crime e suas Conseqüências

-Foco no infrator para intimidar e punir - Foco nas relações entre as partes, para

restaurar

Penalização Pedido de Desculpas, Reparação,

Penas privativas de liberdade, restritivas de restituição, prestação de serviços

comunitários

direitos, multa

Estigmatização e Discriminação Reparação do trauma moral e dos Prejuízos

emocionais – Restauração e

Inclusão

Tutela Penal de Bens e Interesses, com a Resulta responsabilização espontânea por

Punição do Infrator e Proteção da parte do infrator

Sociedade

Penas desarrazoadas e desproporcionais em Proporcionalidade e Razoabilidade das

regime carcerário desumano, Obrigações Assumidas no

cruel, degradante e criminógeno Acordo Restaurativo

– ou – penas alternativas

ineficazes (cestas básicas)

Vítima e Infrator isolados, desamparados e Reintegração do Infrator e da Vítima

desintegrados. Ressocialização Prioritárias

Secundária

Paz Social com Tensão Paz Social com Dignidade

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EFEITOS PARA A VÍTIMA

JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA

Pouquíssima ou nenhuma consideração, Ocupa o centro do processo, com um papel ocupando lugar periférico e e com voz ativa. Participa e tem

alienado no processo. Não tem controle sobre o que se passa.

participação, nem proteção, mal

sabe o que se passa.

Praticamente nenhuma assistência Recebe assistência, afeto, restituição de

psicológica, social, econômica ou perdas materiais e reparação

jurídica do Estado

Frustração e Ressentimento com o sistema Têm ganhos positivos. Suprem-se as necessidades individuais e

coletivas da vítima e comunidade

EFEITOS PARA O INFRATOR

JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA

Infrator considerado em suas faltas e sua Infrator visto no seu potencial de má-formação responsabilizar-se pelos danos e

conseqüências do delito

Raramente tem participação Participa ativa e diretamente

Comunica-se com o sistema por Advogado Interage com a vítima e com a comunidade

É desestimulado e mesmo inibido a dialogar Tem oportunidade de desculpar-se ao com a vítima sensibilizar-se com o trauma da

vítima

É desinformado e alienado sobre os fatos É informado sobre os fatos do processo processuais restaurativo e contribui para a

decisão

Não é efetivamente responsabilizado, mas É inteirado das conseqüências do fato para punido pelo fato a vítima e comunidade

Fica intocável Fica acessível e se vê envolvido no processo

Não tem suas necessidades consideradas Suprem-se suas necessidades

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