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IX ENCONTRO DA ABCP
Teoria Política
JUSTIÇA DISTRIBUTIVA E SAÚDE:
UMA ABORDAGEM IGUALITÁRIA
Marcos Paulo de Lucca-Silveira
Universidade de São Paulo
Brasília, DF 04 a 07 de agosto de 2014
1
JUSTIÇA DISTRIBUTIVA E SAÚDE: UMA ABORDAGEM IGUALITÁRIA
Marcos Paulo de Lucca Silveira
Universidade de São Paulo
Resumo do trabalho:
O artigo apresentará considerações teóricas a respeito da distribuição de um ramo
específico de bens e recursos escassos nas sociedades contemporâneas que estão
associados à saúde de uma população. De modo amplo, buscar-se-á esboçar os
fundamentos de uma teoria normativa que vincule a questão da saúde populacional à
questão de justiça, ou seja, esboçaremos uma teoria que propicie uma resposta plausível a
pergunta: quando as desigualdades de saúde são injustas?Partindo de questões motoras –
tais como: o que devemos uns aos outros na promoção e proteção da saúde de uma
população? Temos um dever político-moral de auxílio às pessoas que estão doentes,
incapazes ou possuem deficiências e impedimentos severos? – realizaremos uma particular
leitura e revisão da literatura, buscando (1) compreender os usos conceituais presentes no
debate sobre justiça e saúde, (2) mapear brevemente o debate em torno das posições
igualitárias a respeito de justiça de saúde, com especial ênfase no trabalho de Norman
Daniels, assim como de Dworkin, Roemer, Sen, Nussbaum e Ruger e, por fim, (3) esboçar
uma defesa normativa de uma particular perspectiva igualitária da distribuição de bens e
recursos de saúde.
Palavras-chave:
Saúde; Justiça distributiva; Assistência à saúde; Norman Daniels.
2
Introdução1
Como uma questão de justiça, possuímos o dever de auxiliar as pessoas que estão
doentes, incapazes ou possuem deficiências e impedimentos severos? O que devemos uns
aos outros na promoção e proteção da saúde de nossa população? Quais desigualdades de
saúde são injustas? No presente artigo, esboçarei como essas questões podem ser
respondidas a partir de uma óptica igualitária, associada às concepções de justiça como
equidade e igualdade equitativa de oportunidade formuladas, especialmente, por John
Rawls e Norman Daniels.
A argumentação divide-se em três partes. Inicialmente, buscarei argumentar que, ao
contrário da crítica realizada por Nussbaum (2013 [2006]), a teoria contratualista formulada
por Rawls não negligencia, nem deixa sem solução (ainda que essa solução possa ser
considerada parcial), o problema da justiça para pessoas com deficiências ou graves
impedimentos físicos e mentais. Ou seja, seguindo a argumentação realizada por Freeman
(2006), questionarei o forte ataque realizado à teoria da justiça de Rawls, apresentando uma
particular compreensão dessa teoria e possíveis soluções aos questionamentos
apresentados por Nussbaum. Se, por um lado, é verdadeiro o diagnóstico de Nussbaum de
que “essas pessoas [com impedimentos físicos e mentais] são pessoas, mas não foram até
agora incluídas como cidadãs em uma base de igualdade com relação aos outros cidadãos,
nas sociedades existentes” (Nussbaum, 2013: 2), tentarei argumentar, por outro lado, que a
teoria de Rawls não é completamente inadequada ao tratar do problema da deficiência – tal
como considera Nussbaum –, mesmo que não busque solucionar, de modo proposital, o
problema como uma questão de justiça de fundo.
Posteriormente, apresentarei a extensão da teoria de Rawls realizada por Daniels,
visando incorporar diretamente as questões de saúde populacional aos princípios de uma
teoria da justiça igualitária. Daniels (1985, 2008) propõe que a especial importância moral
que a saúde tende a receber é derivada do seu impacto sobre a gama de oportunidades ao
longo da vida de um indivíduo. Ainda, nessas duas primeiras partes, buscarei indicar como
os bens primários são adequados enquanto métrica de justiça distributiva em saúde,
possuindo algumas semelhanças, mas também algumas vantagens em comparação com o
“enfoque das capacidades”.
Por fim, buscarei responder à questão: quais as desigualdades de saúde são
injustas? Ao respondê-la, associarei diretamente a justiça de saúde às demandas de justiça
social. Afirmarei que as desigualdades de saúde são uma questão de justiça, quando elas
derivam de uma distribuição injusta de fatores socialmente controláveis. Em conclusão,
1 Primeira versão. Em caso de interesse ou citação, entrar em contato com o autor (e-mail: [email protected]).
3
argumentarei brevemente que boa parte das desigualdades de saúde populacional está
diretamente correlacionada com as desigualdades econômico-sociais injustas.
I – Deficiências e impedimentos graves
Martha Nussbaum, em seu livro Fronteiras da Justiça, expõe críticas à abordagem
contratualista apresentada por John Rawls, exibindo problemas de justiça não solucionados
por essa teoria2. Entre os problemas de justiça não resolvidos apresentados por Nussbaum,
a autora elenca a questão dos deveres frente às pessoas com deficiência(s) ou
impedimento(s) severo(s)3.
A seu ver, o enfoque das capacidades forneceria uma perspectiva de métrica
adequada, dotada de maior sintonia, para solucionar o problema de satisfazer as
necessidades das pessoas severamente debilitadas, entre outros piores situados em saúde.
Um ideal amplo de cooperação social, em tal abordagem, asseguraria certo dever de
fornecimento das bases necessárias para uma “boa vida”, derivando, assim, na propiciação
e na manutenção da dignidade e bem-estar de cada um dos cidadãos da sociedade (FJ:
202). Pois, dado que todas as pessoas seriam igualmente intituladas a uma boa vida,
possuiríamos o dever de fornecer, tanto quando possível, a essas pessoas – no caso
específico, às pessoas com deficiência – a base social de todas as capacidades centrais,
propiciando a elas um mesmo limiar de um conjunto de capacidades que os demais
cidadãos, tornando-os, assim, cidadãos plenamente iguais no exercício de suas
capacidades centrais.
2 Segundo Nussbaum, além do (1) problema de justiça das pessoas com deficiência(s) e/ou impedimento(s), outras duas questões não seriam respondidas adequadamente pelas teorias contratualistas, em especial pela de Rawls: (2) o problema do “papel da nacionalidade ou do lugar de nascimento como influentes nas chances de vida básicas das pessoas” (Nussbaum, 2013: 23) que derivaria na questão da justiça entre povos e justiça global, e, por fim, (3) o problema do pertencimento à espécie, ou seja, questões de justiça com outras espécies animais não humanas. De modo particular, a autora defende “a necessidade de estender nossas teorias da justiça para fora do campo do humano, para que as questões de justiça possam também ser endereçadas aos animais não humanos” (Nussbaum, 2013: 27).
Ao longo do artigo, citarei as páginas da primeira edição do livro Frontiersof Justice (2006), a partir da abreviação: (FJ: página). Em casos de citações longas optei por seguir a edição traduzida da obra (2013). 3 A tradução dos termos “disability” e “impairment” encontra alguma inexatidão na língua portuguesa. Optei por realizar uma tradução do primeiro termo por deficiência e do segundo termo por impedimentos. No presente artigo, não necessitarei realizar um aprofundamento na diferenciação dos termos, visto que os usos conceituais aqui são de ordem mais genérica. No mais, ao realizar essa escolha, estou acompanhando a tradução dos conceitos presente na edição brasileira de Fronteiras da Justiça (em caso de interesse, ver a nota da tradutora, presente na p. 18 da edição sobre a questão). Por fim, ainda sobre a questão, sempre que possível opto por utilizar a terminologia “pessoas com deficiência”, acompanhando o uso conceitual utilizado pelos de movimentos sociais e grupos preocupados com a temática.
4
Contudo, se a argumentação aqui apresentada estiver correta, Nussbaum oferece
uma equivocada interpretação da teoria do contrato social de Rawls, que enviesa suas
críticas à teoria do autor. Acompanhando em grande parte a argumentação de Freeman
(2006), indicarei o que considero serem os principais problemas gerais da leitura realizada
pela autora e, posteriormente, esboçarei uma breve e parcial solução à importante questão
das deficiências a partir de uma perspectiva estritamente rawlsiana.
Parte significativa da crítica que Nussbaum dirige à obra de Rawls é derivada de sua
rejeição ao uso de bens sociais primários como adequada métrica para tomada de decisões
sobre a qualidade de vida e em comparações interpessoais de bem-estar (ver, entre outras
passagens, FJ: 113-116).
Para Rawls, a estrutura básica seria o principal objeto da justiça, devendo os
princípios da justiça serem projetados para a justa distribuição de bens primários, sejam
eles: direitos, liberdades e oportunidades, poderes e posições de emprego, renda e riqueza,
e as bases sociais do autorrespeito (Rawls, 2008: 76; Rawls, 2011: 90). Assim como em
Sen (1980), a crítica de Nussbaum está centrada na suposta iniquidade derivada da igual
distribuição de recursos – e, no caso específico de Rawls, de um mesmo índice de bens
sociais primários – para todas as pessoas.
Especificamente no caso das pessoas com deficiências, poder-se-ia afirmar que a
teoria de Rawls não propiciaria uma situação justa, haja vista a iniquidade oriunda do uso de
recursos como adequada métrica de justiça. Dada a mudança de enfoque para a
mensuração de bem-estar ou qualidade de vida individual, diagnosticar-se-ia uma situação
final injusta: uma distribuição igualitária de bens sociais primários ignoraria as diferentes
taxas de conversão de recursos em qualidade de vida dos indivíduos. Pessoas com
deficiência podem requerer elevados níveis de um determinado recurso para atingirem uma
mesma qualidade de vida dos demais cidadãos sem impedimentos (FJ: 164-5) e, portanto, a
distribuição estritamente igual de bens primários resultaria em situações de injustiça. Como
sintetiza Freeman:
“Nussbaum contends this is grossly unfair to the physically disabled, who need
greater resources to achieve a comparable level of functioning with the
nondisabled.” (Freeman, 2006: 412) E, mais do que isso, para Nussbaum, a simplificação adotada por Rawls para
supostamente encontrar as razões objetivas que permitiriam um acordo público razoável
seria inadequada. Segundo a autora, a renda e riqueza não seriam um adequado indicador
ou uma boa medida de quão bem as pessoas estão. Por exemplo, uma pessoa que precisa
de cuidados para si ou para seus dependentes poderia ter mais renda ou riqueza que
trabalhadores não qualificados, mas, ainda assim, estar em uma situação pior que tais
5
trabalhadores, caso esteja em uma situação de ausência de cuidados4 (FJ:114-115;
Freeman, 2006: 411).
Entretanto, a crítica de Nussbaum vai além desse questionamento da métrica –
presente em ampla bibliografia – da teoria formulada por Rawls, em UmaTeoria da Justiça5.
Aos olhos da filósofa americana, a “teoria híbrida” da justiça apresentada por Rawls não
responderia plausivelmente à questão das pessoas com deficiência tanto a partir da
perspectiva contratualista, como também a partir de seu componente kantiano.
Do horizonte contratualista, devido à estreita concepção de cooperação social (e
vantagem mútua), inexistentes seriam os benefícios oriundos de um pacto com pessoas
com deficiências mentais severas, por exemplo. Já da perspectiva kantiana presente na
teoria de Rawls, a própria concepção de pessoa dotada de capacidades e poderes morais
como base para a igualdade e justiça impediria, segundo Nussbaum, um adequado
enfrentamento da questão da deficiência, visto que pessoas com graves restrições
cognitivas estariam externas ao conceito de pessoa moral e não teriam seus direitos e
necessidades adequadamente representados no contrato formulado por Rawls.
Ainda, a teoria rawlsiana possuiria outro componente problemático de “herança
humeniana”. Como afirma novamente Freeman, ao apresentar o diagnóstico realizado por
Nussbaum:
“A more serious problem arises with regard to the needs of the severely mentally
and physically disabled. Here, Nussbaum says, social contract theory “positively
breaks down” because of the Humean rough equality assumption implicit in the
circumstances of justice.” (Freeman, 2006: 412) Em suma, Nussbaum afirma que as necessidades das pessoas com deficiência
severa não seriam questões de justiça na teoria de Rawls, mas, na melhor das hipóteses,
seriam tratadas como deveres de caridade.
Porém, se é verdade que Rawls não discute a questão das pessoas com deficiência
severa6, considero que Freeman (2006: 412) está correto ao afirmar que temos deveres de
4 Sem dúvidas, Nussbaum levanta uma questão importante para as teorias da justiça que se dedicam a questões de saúde ao enfatizar o importante papel do cuidado e dos cuidadores. Grande parte dos cuidadores de pessoas com doenças ou idade avançada é constituída por mulheres, ou com algum vínculo familiar com a pessoa que necessita de cuidado – que alterou por completo as pretensões e objetivos de vida para assumir tal tarefa –, ou profissionais normalmente subvalorizadas no mercado de trabalho. 5 São muitos os trabalhos dedicados à temática da métrica adequada para uma teoria da justiça. Além dos trabalhos clássicos, ressalta-se a coletânea Measuring Justice: PrimaryGoodsandCapabilities(BrighouseandRobeyns (eds.), 2010). No final da parte II do presente artigo retomo pontualmente a essa questão. 6 Na única passagem explícita em Uma Teoria da Justiça sobre a questão da deficiência mental severa – “os mais ou menos permanentemente privados de personalidade moral” –, Rawls afirma que esse tipo de problema especial não pode ser abordado, mas não atingiria fundamentalmente a teoria da igualdade (Rawls, 2008: §77, 629).
6
justiça em relação às pessoas com deficiência na perspectiva teórica da justiça formulada
por Rawls.
A leitura de Nussbaum aproxima – a meu ver, de modo equivocado –a formulação
teórica de Rawls a posições contratualistas contemporâneas de influência hobbesiana,
como a apresentada por Gauthier, e a afasta de outras formulações teóricas igualitárias,
como a de Scanlon. Contudo, é justamente nesse movimento que se evidencia um equívoco
fundamental da leitura da filósofa, pois a seus olhos o contrato rawlsiano visaria unicamente
à vantagem racional das partes.
Na teoria de Rawls, as partes na posição original estariam não só considerando o
que resultaria numa vantagem racional. Mas as partes também consideram que a decisão
oriunda de tal posição deve levar em contaqueos princípios oriundos serão razoáveis
parapessoas livres e iguais,moralmentemotivadas, as quais aceitariam e endossariam tais
princípios (e contrato) uniformemente como membrosrazoáveis deuma sociedade bem-
ordenada (Freeman, 2006:418).
No limite, estou propondo que a extrema redução da teoria de Rawls a uma leitura
mecânica da posição original e dos principios de justiça acordados pelas partes nessa
posição pode ser considerada equivocada. Na leitura de Nussbaum, a posição original
ganha extrema centralidade e adquire uma espécie de função de identidade plena com toda
a teoria de Rawls. Porém, em realidade, a argumentação normativa de Rawls possui uma
independência – salvo, talvez, o maximin – do artifício da posição original, sendo, sim,
depende de argumentos de aceitabilidade razoável por pessoas moralmente motivadas
(Scanlon, 1982).
Contudo, mesmo se aceitarmos certa plausibilidade da leitura de Nussbaum, suas
críticas continuam equivocadas. A autora argumenta que Rawls não atribui, por exemplo,
benevolência (em relação às pessoas com deficiências) às partes na posição original, pois
isso anularia o pressuposto de mútua vantagem. Como esclarece Freeman (2006: 413), a
razão de a benevolência não ser atribuída às partes é de ordem completamente distinta.
Seria muito difícil especificar e definir afeições benevolentes e, mais do que isso, a
benevolência seria uma motivação moral, uma noção de segunda-ordem.7
Por fim, uma importante consideração tem que ser realizada. Centralmente o que
Nussbaum questiona é o não posicionamento de Rawls em relação às pessoas com
deficiência ainda na posição original, nos princípios de justiça em um primeiro estágio.
Como podemos observar na passagem:
7O fato de as partes serem mutuamente desisteressadas também gera críticas, de Nussbaum, das mais variadas ordens.
7
“[M]as o que parece desanimador sobre a sua abordagem da dignidade humana
e inclusão social é que ele [Rawls] recusa a comprometer o Estado em apoiar
plenamente as pessoas com impedimentos físicos e mentais a partir dos
próprios princípios políticos básicos, adiando essa questão até a hora em que os
princípios já tenham sido fixados.” (Nussbaum, 2013: 249)
É essa a objeção mais forte e importante à teoria de Rawls. Porém, ao contrário do
que Nussbaum tende a indicar, Rawls não adia a questão das pessoas com deficiência por
julgá-la menos importante ou porque seria simplesmente uma demanda de caridade. Como
explica Freeman:
“It is rather because of the special rolehe assigns to political principles of justice in
settling structural issues of"background justice". The "primary subject of justice" is
the design of"basic social institutions" (…). These basic social institutions are
necessary for a complex society to function, adapt to changing circumstances,
reproduce itself, and endure from one generation to the next. In this regard,
remedial institutions and agencies for the disabled, like other important social
institutions, such as religion—however profound their influence on people's lives—
are not basic institutions. It is withinthe framework of basic social institutions that
these and other important social institutions pursue their goals and that more
specific problems of justice arise, including justice to the disabled. Claims of the
disabled are important problems of justice. But not all "basic political principles," as
Nussbaum understands them, are basic principles of background justice.
Principles of redress for the disabled may be "basic" in the sense that they are of
great moral importance. But principles of redress are not principles of background
justice for the basic structure of society, and the institutions needed to realize
principles of redress are not basic social institutions in the aforementioned sense.
Nor are they, on Rawls's account, principles of distributive justice.” (Freeman, 2006: 413-414)
A inexistência de um princípio da reparação em relação às pessoas com deficiências,
enquanto justiça de fundo, não significa negar direitos e liberdades fundamentais a essas
pessoais. E, mais do que isso, Rawls considera que as decisões sobre normas de justiça
que visam à reparação de deficiências graves devem ocorrer na fase legislativa de seus
quatro estágios consecutivos de justiça. Pois, nesse estágio, além de as motivações morais
de justiça estarem presentes, o espesso véu da ignorância seria retirado e, portanto, um
maior número de informações relevantes a respeito dos tipos e extensões de deficiências,
assim como das necessidades das pessoas com deficiência, estaria disponível para uma
adequada tomada de decisão.
8
II – Saúde e igualdade equitativa de oportunidade
A teoria mais bem-acabada sobre justiça e saúde populacional é apresentada, a
nosso ver, por Norman Daniels8. Se, por um lado, parte da crítica dirigida por Nussbaum à
teoria da justiça de Rawls, como buscamos indicar, pode ser considerada equivocada, por
outro lado, também seria um erro supor que a teoria da justiça de Rawls, em si, apresenta
soluções absolutas para as questões de justiça de saúde populacional. Como ressalta
Daniels, com clareza exemplar, a teoria de Rawls é idealizada para pessoas ativas e
saudáveis, sendo que, efetivamente, em Uma teoria da justiça, não há preocupações com
uma justiça distributiva de bens de saúde, pois não existe ninguém doente (Daniels, 1985:
43) 9. No entanto, como Arrow (1973) queixou-se, as suposições ideais da teoria de Rawls
poderiam acarretar uma incapacidade em definir quem estaria mais bem situado: uma
pessoa rica e doente ou uma pessoa pobre mas saudável.
Contudo, ao contrário do que em primeiro momento poderia ser pensado, as
questões de saúde e do fornecimento de assistência à saúde não podem ser respondidas
realizando-se um movimento teórico de expansão da lista de bens primários, a partir da
indexação de um novo item: a assistência à saúde. Esse movimento de expansão da
“incompleta” lista de bens primários (proposto por Green (1976)), além do risco de gerar
uma longa lista de bens – cada vez menos consensual e mais distante de uma concepção
política compartilhada de necessidades das pessoas como cidadãos –, também dificultaria
um estabelecimento de um index objetivo. A adição de itens tornaria mais difícil fugir de
complexos problemas de comparação interpessoal que Rawls buscou evitar ao formular sua
teoria, os quais as mensurações mais amplas de satisfação ou bem-estar enfrentam10.
Como afirma Hurley, debatendo sobre a temática a partir da perspectiva de Daniels:
8 Os trabalhos de Daniels sobre justiça e saúde já envolvem mais de 25 anos dedicados à temática. No presente trabalho, enfocarei a análise, sobretudo, na pioneira tese do livro Just Health Care (Daniels, 1985) e em parte da tese defendida em Just Health: Meeting Health NeedsFairly(Daniels, 2008: Cap. 1, 2 e 3). 9 A questão última que pauta boa parte do debate sobre justiça de saúde, como já sugerido, é a de se a justificação de princípios primeiros de justiça deveria levar em conta, desde o princípio, desvios em relação a normal functionings, enfermidades e deficiências. Tal questão é um ponto de divergência entre teorias igualitárias que se debruçam sobre a temática. 10 Como afirma Daniels, aodissertarsobre a questão e aoscomplexosproblemasderivados de umaadição da assistência à saúde à lista de bens primáriosoriginalmentediagnosticadospor Arrow (1973):“Arrow (1973: 254) argued that adding health care to the index, and allowing its trade-off against income and wealth, would force Rawls into comparisons of well-being (or utility) he had hoped his index would avoid. Whether or not Arrow is right in this instance, he points to a more general problem that a more complex index must face.” (Daniels, 2008: 56-57)
Rawls, ao refletir sobre a crítica de Arrow, realiza uma concessão inicial no caso da saúde e necessidades médicas. Como já afirmamos, o filósofo não aborda esse difícil problema diretamente, assumindo que todos os cidadãos tem capacidades físicas e mentais dentro de certa variação normal. Entretanto, Rawls propõe que os recursos sociais associados à saúde normal e às necessidades médicas de tais cidadãos deveriam ser decididos no estágio legislativo “in the light ofexisting social conditionsandreasonableexpectationsofthefrequencyofillnessandaccident.” (Rawls,
9
“There are difficult questions about how to weight specifically health-related primary goods against others, such as income, wealth, and various freedoms and powers. (...) Justice with respect to health and health care cannot be reduced or assimilated to justice with respect to resources in general, because the latter presupposes resources adequate to meet reasonable needs. (...) Health care needs are not just one preference among many, with no special claim on resources. Health and health care may be objectively more important than individual choices reflect.” (Hurley, 2007: 321)
Um modo plausível de enfrentar a questão da saúde a partir da perspectiva teórica
rawlsiana, propõe Daniels, seria ampliar a noção de oportunidade, presente na teoria da
justiça de Rawls, para incluir as instituições de assistência à saúde, entre outras instituições
básicas envolvidas na providência da igualdade equitativa de oportunidade. Se correta a
teoria, o fornecimento amplo de cuidados de saúde possui um importante efeito na
distribuição de oportunidades dos cidadãos.
Dessa forma, as instituições vinculadas à assistência à saúde – e, possivelmente,
instituições associadas ao ensino escolar básico, por exemplo – poderiam ser reguladas a
partir de um princípio de igualdade equitativa de oportunidade. Ou seja, nesta proposta, os
bens primários permaneceriam propriedades gerais e abstratas dos arranjos sociais, tais
como as liberdades básicas, as oportunidades e certos meios universais de troca (all-
purpose, exchangemeans), como a renda e a riqueza, entre outras. Portanto, a
oportunidade, não a saúde, permaneceria como um bem social primário e justificaria o
fornecimento equitativo de bens e recursos de saúde.
Poderíamos sintetizar a argumentação realizada por Daniels, em Just Health
Care(1985), com eventuais perdas de detalhes, em quatro estágios principais:
[1] a assistência à saúde é de importância moral especial visto que a proteção da saúde protege a oportunidade, [2] a assistência à saúde é o principal modo de proteger a saúde, [3] as iniquidades de saúde são injustas quando resultam do acesso desigual à assistência de saúde; [4] o impacto sobre a oportunidade é a mensuração da importância do fornecimento e satisfação das necessidades médicas. E, em decorrência disso, [4.1] as necessidades de saúde deveriam ser atendidas de modo equitativo.11
1999: 368). E, mais do queisso, afirma o autor: “If a solution can be worked out for this case, then it may be possible to extend it to the hard cases. If it cannot be worked out for this case, the idea of primary goods may have to be abandoned” (Rawls, 1999: 368-369). 11 A nossover, outro modo de compreender a tese de Daniels, em Just Health Care, seria a partir das conexões e movimentos teóricos e metateóricos listados abaixo (Daniels, 2008: 29):
(1) Assistência à saúde � promove saúde (entendida como normal functioning) [1.1] Saúde � contribui para proteger Oportunidade [1.2] .: Assistência à saúde � protege Oportunidade.
10
Vinculando, assim, o atendimento de necessidades básicas de saúde de uma
população a outros objetivos da justiça – no caso, a igualdade equitativa de oportunidade –,
Daniels busca tanto explicitar qual é a motivação primária da importância moral especial que
a saúde deve receber, como também explicar porque uma importância especial – de ordem
de justiça – é atribuída ao fornecimento de cuidados de saúde e na satisfação das
necessidades médicas de forma equitativa.
Ao procurar (1) compreender se a assistência à saúde seria um bem social especial
e como ela se relacionaria com os demais bens sociais e (2) formular uma teoria que
providenciasse uma base para distinguir entre os mais e os menos importantes cuidados de
saúde que necessitamos (Daniels, 1996: 179), Daniels defende que os bens que sanam as
necessidades de saúde relacionadas à manutenção do normal funcionamento da espécie
(normal speciesfunctioning) deveriam receber especial atenção e enfoque em uma teoria da
justiça distributiva. Essas necessidades de saúde seriam, segundo a teoria do autor,
determinantes centrais das possíveis restrições injustas da gama de oportunidades que um
indivíduo possuiria ao longo de sua vida. Conectando, de tal modo, a satisfação das
necessidades de saúde a uma concepção de igualdade equitativa de oportunidade, Daniels
– como afirmado acima – justificaria a grande importância político-moral que os bens
associados à saúde humana possuem12.
Assumindo como ponto de partida uma concepção biomédica de saúde – na qual a
saúde é definida como a ausência de doenças, sendo essas doenças (incluindo
deformidades e incapacidades oriundas de traumas) compreendidas como desvios da
organização funcional de um membro típico de uma espécie (Daniels, 1985, p.28) –,
Norman Daniels propõe que, para se propiciar a igualdade equitativa de oportunidade entre
os indivíduos de uma dada sociedade, deve ocorrer o fornecimento equitativo de bens e
recursos necessários a manutenção, restabelecimento ou provisão de equivalentes
funcionais (quando possível) ao normal funcionamento do organismo humano. No mais, o
autor esclarece que os bens de saúde que deveriam receber especial atenção político-moral
(2) Se a justiça requer que a sociedade proteja a(s) oportunidade(s) dos cidadãos, então a justiça concede (ou deve conceder) importância especial ao fornecimento de assistência à saúde. [2.1] Tal proteção da oportunidade encontraria apoio na teoria da justiça como equidade (formulada por Rawls) e em seu robusto princípio que assegura igualdade equitativa de oportunidade. [2.2]
(3) Dado 2.2, ao menos uma teoria da justiça proeminente concederia especial importância à assistência de saúde. [3.1] Dessa forma, Daniels propõe uma particular extensão da teoria de Rawls associando questões de saúde populacional com questões de justiça social. [3.2]
12 Daniels refina sua concepção de justiça ao afirmar que: “I cannowstate a fact central tomy approach: impairmentof normal functioning through disease and disability restricts an individual’s opportunity relative to that portion of the normal range his skills and talents would have made available to him were he healthy. If an individual’s fair share of the normal range is the array of life plan he may reasonably choose, given his talents and skills, then disease and disability shrinks his share from what is fair.” (Daniels, 1985: 34)
11
– além dos bens usualmente agregados na categoria de assistência médica (em sentido
estrito) – são os associados a:
“1. Adequate nutrition, shelter 2. Sanitary, safe, unpolluted living and working conditions 3. Exercise, rest, and some others features of life-style 4. Non-medical personal and social support services.”(Daniels, 1985: 32)
Porém, mesmo esse maior escopo proposto por Daniels será considerado
posteriormente insuficiente pelo autor. Em sua obra Just Health (Daniels, 2008: Cap. 2),
Daniels realiza um duplo movimento de abrangência, generalizando a resposta da
importância moral especial da saúde para as necessidades em saúde (healthneeds) e
buscando propiciar uma possível independência de sua argumentação teórica da tese de
Rawls13.
Desse modo, Daniels busca englobar em sua teoria a importante temática do
gradiente social da saúde14. Isto é, Daniels passará a defender a tese mais abrangente de
que as desigualdades de saúde são injustas quando elas derivam de uma injusta
distribuição de fatores socialmente controláveis que afetam a saúde da população e sua
distribuição (Daniels, 2008: 101). Portanto, os determinantes sociais da saúde deveriam ser
levados em consideração assim como a assistência à saúde em uma teoria da justiça.15
Todavia, antes de avançarmos na temática dos determinantes sociais da saúde,
algumas ressalvas conceituais são indispensáveis. Um detalhamento das definições de
saúde e necessidades de saúde evitam possíveis desentendimentos e críticas às
formulações teóricas de Daniels16. Em primeiro lugar, como já afirmamos anteriormente,
Daniels apresenta uma conceituação de doença (disease) biomédica abrangente – que
inclui tanto as deficiências como também lesões –, acompanhando a argumentação de
Boorse (1997), na qual saúde é definida como a ausência de patologia. Já patologia, para o
mesmo autor, configura-se qualquer desvio da organização funcional natural de um membro
típico da espécie. Assim, podemos definir saúdehumana, sinteticamente, como o normal
13 No presente artigo, não abordaremos essa questão. Basicamente, Daniels propõe demonstrar como outras teorias da justiça contemporâneas também suportariam sua tese, visto que também concedem especial importância à questão das oportunidades equitativas entre os cidadãos de uma sociedade. 14 Ao realizar esse movimento, Daniels amplia o conjunto de bens de saúde anteriormente citado. A listapassa a serconstituídapor “(1) adequate nutrition, (2) sanitary, safe, unpolluted living and working conditions, (3) exercise, rest, and such important lifestyle features as avoiding substance abuse and practicing safe sex, (4) preventive, curative, rehabilitative, and compensatory personal medical services (and devices), (5) Nonmedical personal ad social support services, (6) An appropriate distribution of other social determinants of health (set of socially controllable factors affecting health)” (Daniels, 2008: 42-43) 15 Desenvolverei essa temática no item III do presente artigo. 16 A obra de Daniels recebe fortes críticas contemporaneamente. A meu ver, grande parte dessas críticas é equivocada. Ruger elenca essas principais críticas direcionadas à teoria igualitária formulada por Daniels, dividindo-as em onze questionamentos principais (Ruger, 2010, p.26-29).
12
funcionamento para nossa espécie. E, consequentemente, definimos necessidades de
saúde como os elementos necessários para a manutenção, reestabelecimento, ou
fornecimento de equivalentes funcionais (quando possíveis) do nosso normal funcionamento
ao longo do curso de nossas vidas. Ou seja, Daniels apresenta uma definição conceitual
relativamente restrita se comparada com outras definições de saúde17.
Outro fator conceitual que merece ser destacado é que não há, como já podemos
conceber, uma identidade conceitual entre necessidades e preferências. Aos olhos de
Daniels, as necessidades de saúde podem ser consideradas a partir de critérios objetivos
que propiciariam, por exemplo, estruturas ou escalas para se acessar as relativas
importâncias das reivindicações por assistência médica e de saúde, em geral18.
É importante destacar também que, segundo Daniels (2008), seria equivocada a
opção de se eliminar a questão sobre o adequado fornecimento de assistência à saúde
populacional em favor da questão exclusiva de distribuição de renda, pois, ao formularmos
somente a segunda questão, estaríamos pressupondo a existência de uma renda, a priori,
adequada para o fornecimento de cuidados de saúde e apropriada assistência às
necessidades de saúde. Ou seja, ao enfrentarmos o problema de saúde somente a partir de
uma perspectiva alocativa de renda, estaríamos estabelecendo, de modo unidimensional
equivocado, uma possível identidade entre um determinado platô de renda e o fornecimento
de assistência à saúde.
Contudo, uma proposta distributiva igualitária abrangente tal como a realizada por
Dworkin ([1993] 2000; 2000), poderia, possivelmente, possuir algum grau de adequação19.
Dworkin, ao apresentar uma resposta à questão “quanto uma sociedade decente gastaria
em assistência médica, amplamente descrita?”, busca, em primeiro momento, recusar o
ideal de “isolamento” que a saúde – e a assistência médica e à saúde (de qualidade) –
possuiria frente aos demais bens escassos20. Além de recusar tal princípio, Dworkin
apresenta uma abordagem alternativa que defende justamente o contrário do ideal de
17 A questão da definição e mensuração da saúde é um dos atuais problemas de pesquisa que tenho me dedicado. Para se evidenciar a delimitação conceitual, a meu ver positiva, da definição de Daniels, basta contrastarmos com a definição de saúde apresentada pela Organização Mundial de Saúde: nela, a saúde seria definida como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não meramente a ausência de doenças” (OMS, 1948). 18 Essa questão é central na teoria de Daniels para evitar possíveis problemas metateóricos que derivariam de uma definição subjetivista de necessidades de saúde quando combinadas a teoria de Rawls. 19 Daniels tende a indicar isso (ver Daniels, 2008: 32, nota 5). Já Freeman (2006: 416) propõe brevemente uma combinação do modelo de mercado de seguros de Dworkin com a teoria de Rawls como uma possível solução de possíveis problemas de justiça e pessoas com deficiências severas. 20 Como já podemos deduzir, segundo esse ideal de “isolamento” (1) a saúde (conjuntamente com a vida) seria o principal entre todos os bens existentes (2) devendo os recursos de saúde serem distribuídos de forma igualitária, de modo que ninguém tenha suas necessidades não atendidas devido à impossibilidade de pagar. E, mais do que isso, esse princípio (3) afirma que é intolerável que pessoas morram quando suas vidas poderiam ter sido salvas, se os recursos necessários não fossem retidos por razões de economia (Dworkin [1993] 2000: 205-206).
13
“isolamento”. Segundo o filósofo, uma abordagem teórica de justiça em saúde deve integrar
a assistência médica na competição com os outros bens escassos a serem (re)distribuídos,
ao invés de isolar a saúde e a assistência médica, concedendo-lhes um status moral
especial.
Dessa forma, Dworkin aplica sua teoria da justiça mais ampla para o caso específico
da saúde. A seu ver, a assistência à saúde poderia ser tratada, portanto, como um tipo de
recurso, o qual deveria ser (re)distribuído de modo a compensar a má sorte bruta individual
(mas não as escolhas individuais equivocadas (optionluck))21. Ou seja, na teoria de Dworkin,
a igualdade seria avaliada a partir de uma perspectiva ex ante ao invés de ex post (Hurley,
2007: 317). Mas como a saúde individual é considerada a partir dessa perspectiva?
Grosso modo, Dworkin, ao propor a extensão e a validade de sua teoria da justiça
distributiva (baseada em recursos) para os recursos relacionados com a saúde, defende que
as alocações desses recursos (de saúde) devem estar de acordo com a sua concepção
geral de justiça social, que atribui às pessoas “individual responsibility for
makingethicalchoices for theirownlivesagainst a background ofcompetentinformationand a
fair initialdistributionofresources” (Dworkin, [1993] 2000: 215).
Partindo de uma situação especulativa, em que indivíduos, em uma dada sociedade
– na qual o sistema econômico providenciaria uma igualdade equitativa de recursos (em
uma situação inicial) –, estão plenamente informados sobre o “estado da arte”, dos valores,
dos custos e efeitos colaterais de todos os procedimentos médicos22 e, por outro lado, não
possuem informações sobre a saúde de si mesmos23, realizam escolhas em um livre
mercado individual de seguros (no qual ocorre, sinteticamente, a transformação de
bruteluckem optionluck), Dworkin afirma que nem todos os indivíduos optariam por pagar
elevadas taxas em troca de um seguro de saúde que fornecesse acesso a um equipamento
médico ultra caro de última geração. Muitos, por outro lado, poderiam trocar o custo de
acesso a tal equipamento médico por um maior número de momentos de lazer ou por uma
melhor educação, por exemplo.
Portanto, apresentando essa situação hipotética – uma situação específica do
mercado de seguros formulado em SovereignVirtue (Dworkin 2000, Cap. 2) –, Dworkin
propõe uma solução igualitária para a questão da justiça de saúde, na qual, de modo distinto
21 Como busco indicar, creio que a proposta de Dworkin tenderia a ser rejeitada de uma perspectiva estritamente fiel a teoria de Daniels (e Rawls). Ou seja, tendo a me afastar da leitura de Dworkin realizada pelo próprio Daniels e por Freeman (ver nota 19, acima). 22 Essas condições da situação idealizada por Dworkin (ao todo, são três) podem ser pouco críveis, ou mesmo, modificar a ação racional dos agentes se atingidas. Sobre elas, ver Hurley (2007, pp.320-321). 23 Tanto os indivíduos como as agências e companhias de seguro não possuem informações sobre a saúde individual de todos os agentes.
14
das preocupações centrais de Rawls e Daniels, a questão da responsabilidade individual
assume centralidade.
Entretanto, ao longo da argumentação realizada por Dworkin, a meu ver, existe certa
ambiguidade entre conceitos distintos – são eles: saúde ou necessidades de saúde e
assistência à saúde em sentido abrangente – que dificultaria uma compreensão adequada
do problema de justiça de saúde. E, mais do que isso, a distinção entre recursos internos e
recursos externos proposta pelo autor obscurece importantes questões de justiça de saúde,
sobretudo quando passamos a levar em consideração significativas correlações existentes
entre algumas doenças e deficiências e a situação social dos indivíduos. Ou seja, o que
estou questionando de modo preliminar seria (1) o pré-requisito fundamental da
aleatoriedade de doenças e deficiências do modelo de mercado de seguros de Dworkin e (2)
o possível impacto, mesmo em uma situação de reduzida desigualdade, que escolhas
“resourcistas” realizadas em uma situação temporal inicialocasionariam em um intervalo
temporal posterior.24
Essa centralidade da responsabilidade individual em uma teoria da justiça de saúde
ganha ainda maior evidência no modelo distributivo proposto por John Roemer (Roemer,
2002). Para o teórico político, é necessário se realizar a distinção entre fatores que os
indivíduos são responsáveis e os fatores arbitrários, devendo as políticas de distribuição
resultarem em um “nivelamento do campo” no qual as pessoas estão situadas. Ou seja, em
uma situação justa, ninguém está pior situado em relação aos outros devido a fatores além
de seu controle.
Partindo dessas considerações, Roemer busca construir um algoritmo a partir do
qual uma sociedade, com suas particulares visões a respeito das pessoas e das
circunstâncias, poderia implementar um igualitarismo de oportunidade consoante a essas
visões. Porém, a parte problemática (e, ao mesmo tempo, fundamental da contribuição do
autor) do seu trabalho é realizar a comparação do grau de responsabilidade entre pessoas
em uma dada sociedade real, visto que por virtude de circunstâncias diferentes, os
indivíduos se esforçam distintamente. O problema básico para o mecanismo de alocação é
evidente: como distinguir a escolha autônoma das circunstâncias em certo comportamento
individual? A solução de Roemer (Roemer, 2002: 456) se fundamenta estruturalmente em
um procedimento que se baseia em: (1) as circunstâncias fundamentais da vida de um
indivíduo incluem-no em um dado tipo social relevante, (2) as comparações de indivíduos
situados em tipos distintos devem ser, de algum modo, ajustadas por um fator que leve em
consideração a variação desses esforços extraídos de (e/ou influenciados por) distribuições 24 Pretendo desenvolver mais cuidadosamente essa questão. Contudo, me parece que somente a informação das escolhas realizadas pelos indivíduos no leilão hipotético – proposto por Dworkin – já colocaria em questão a aleatoriedade pressuposta pelo mercado de seguros modelado pelo autor o que ocasionaria variação dos valores das alíquotas individuais do seguro saúde.
15
iniciais distintas (ou seja, das circunstâncias além do controle individual), pelas quais os
indivíduos não podem se responsabilizar.
Desse modo, Roemer propõe que podemos medir o grau de esforço (como uma
medida moralmente relevante) entre os indivíduos que se situam num mesmo tipo25 para
posteriormente distribuirmos os bens de saúde escassos de forma justa. Assim, poderíamos
mensurar o esforço de uma pessoa por sua colocação/posição na distribuição de esforço do
seu tipo, ao invés de realizarmos um ranking absoluto. No mais, tal modelo possibilitaria a
comparação de indivíduos em tipos distintos, a partir do fator intragrupo26.
Contudo, considero que dificilmente a proposta de Roemer poderia ser aceita em
uma instância deliberativa de uma sociedade democrática, visto que, levada ao limite,
violaria qualquer limite razoável de privacidade e não interferência estatal sobre as escolhas
e ações individuais de um cidadão.
Especialmente com a introdução da problemática dos determinantes sociais da
saúde, julgo que a teoria da justiça como equidade, com a extensão realizada por Daniels, é
a mais adequada para a solução das questões de justiça de saúde populacional. Entretanto,
uma crítica de mesma ordem que a realizada a Dworkin também pode ser dirigida à
argumentação que Rawls realiza em Uma teoria da justiça, a qual propõe uma distinção, por
simplificação, entre bens primários “sociais” e bens primários “naturais” (Rawls, 2008: 75-
76)27. Esse contraste, que genericamente consideraria as doenças e as deficiências como
infortúnios naturais, pode ser considerado equivocado e poderia derivar em
desenvolvimentos teóricos ilusórios e errados que dificultam a compreensão dos complexos
problemas de saúde (Daniels, 2008: 14). Nota-se, ainda, que esse contraste é atenuado –
por exemplo, na argumentação presente na Conferência V de O Liberalismo Político (2011)–
em obras posteriormente por Rawls.
No mais, evidencia-se certa proximidade da perspectiva defendida por Daniels com
parte das teses sobre justiça de saúde enfocada nas capacidades. Em certo sentido,
promover ou proteger o normal funcionamento, ou oportunidade equitativa de uma
população, aproxima-se de promover as capacidades dos cidadãos. Como nosafirma
Daniels:
“Failing to promote health in a population, that is, failing to promote normal
functioning in it, fails to protect the opportunity or capability of people to function
25 Lembre-se que, nesse caso, segundo a proposta de Roemer, estaríamos anulando as variações derivadas das circunstâncias, pois essas seriam uma característica do tipo e não de cada indivíduo. 26 Como afirma Roemer: “Suppose the distributions of effort of the advantaged type are uniformly distributed on the interval [1,2], under some policy, while the distributions of effort of the disadvantaged type are uniformly distributed on the interval [0.25,1.25]. It makes sense of say that someone in the later type who exerted effort 1.25 tried very hard, while someone in the former type who exerted that effort did not” (Roemer, 2002: 258). 27 Essa distinção é extremada por Nagel (1997).
16
as free and equal citizens. Failing to protect that opportunity or capability when
we could reasonably do otherwise, I shall argue, is a failure to provide us with we
owe each other. It isunjust.” (Daniels, 2008: 14)
Dessa forma, há mais convergência que diferença entre as perspectivas de justiça e
saúde que estão focadas em oportunidade e as que buscam proteger as capacidades
humanas (Daniels, 2010: 131). Falar que “o leque de oportunidades está reduzido” é
intercambiável, sem perda de sentido significativo, à expressão “ausência de determinada
capacidade”, pois, em última instância, podemos aproximar o conjunto das capacidades do
conjunto das oportunidades exercíveis.
Porém, a meu ver, o enfoque das capacidades enfrenta alguns problemas que não
afetam a perspectiva focalizada nos bens primários e na oportunidade. Certa insistência na
realização da ideia de “capacidades iguais”, em sentido estrito, como objetivo último da
justiça poderia ocasionar tanto problemas de delimitação de prioridades médicas e de saúde
como também possíveis situações de “nivelamento por baixo”.28
Além disso, Sen e Nussbaum tendem a deslocar as questões de justiça de saúde de
um enfoque institucional (tal como presente em Rawls) para questões de distribuição entre
pessoas29. Para esses autores, as variações individuais de realização de funcionamentos e
capacidades entre indivíduos seria uma questão de justiça central. E, mais do que isso, se
considerarmos que a concepção de justiça formulada por tais autores tende a exigir a
realização de capacidades iguais entre todos os cidadãos, um possível problema
informacional, de mensuração e comparação, em grande parte fruto da própria definição
transfactual30 de capacidade,poderia atingir o enfoque das capacidades.
III – Gradientes sociais da saúde de uma população
Como afirma Nagel, a justiça desempenha um papel especial nos argumentos
políticos e morais. Ao apelarmos a ela, reivindicamos prioridade sobre outros valores (Nagel,
1997:303). Injustiça é algo que devemos, primordialmente, evitar. Como ilustra o filósofo:
“If a form of inequity in social arrangement is unjust, it should not be tolerated,
even if that means giving up things that may be very valuable in other
ways.”(Nagel, 1997: 303)
Deriva-se justamente dessa prioridade que as questões de justiça implicam a
importância de delimitarmos o escopo da justiça. Devemos reconhecer que nem todas as 28Crítica a ser desenvolvida posteriormente. 29 Ou, ainda, para questões que dizem respeito àquilo que as pessoas são capazes de fazer ou de alcançar com seu quinhão de recursos sociais escassos. 30 Essa característica particular das capacidades, a qual dificulta a mensuração tanto factual como contrafactual, é apresentada por defensores desse enfoque (ver, por exemplo, Comim, 2008).
17
questões de saúde são questões últimas de justiça. Ou ainda, correndo o risco de repetir
jargões, afirmo que priorizar tudo é o mesmo que não priorizar; estender o escopo da justiça
distributiva às mais variadas questões – muitas das quais de ordem individual –, é o mesmo
que trivializar e reduzir a importância central da justiça social.
Dado isso, mantendo o enfoque em questões de saúde populacional, quais
desigualdades de saúde populacional seriam injustas?
Acredito que de uma perspectiva teórica ideal a concepção de justiça formulada por
Rawls, com a extensão proposta por Daniels, responde plausivelmente à pergunta.
Ao se realizar um leve movimento em direção a uma situação não ideal, é possível
se verificar que essas questões são dotadas de grande complexidade. Essencialmente, a
questão dos determinantes sociais da saúde ganha centralidade. A saúde populacional não
pode ser considerada uma variável estável que não sofre impacto de outras variáveis
políticas, sociais e econômicas. São robustas as correlações estatísticas entre redução da
saúde populacional – usualmente medida por tempo de vida sem graves impedimentos – e a
desigualdade socioeconômica interna à população (Marmot, 1999; entre outros).
Simplificando a questão, posso afirmar que quanto maior a desigualdade socioeconômica
interna a uma população, menor é a expectativa de vida dessa população. Em geral, o
mesmo vale para grupos: a expectativa de vida de um grupo é menor quanto pior situado
socioeconomicamente for esse grupo dentro de uma população.
No mais, estudos demonstram que, infelizmente, o fornecimento e o acesso universal
à assistência de saúde não geram resultados tão elevados e estatisticamente significantes
quanto desejamos. O impacto da assistência à saúde tanto sobre a saúde populacional
como sobre as iniquidades de saúde tende a ser limitado (Segall, 2007). As perspectivas
mais otimistas estipulam, por exemplo, que o impacto da assistência médica é responsável
por só um quinto da expectativa de vida ao longo do século XX (Brock, 2000)31. Diferenças
em saúde populacional são determinadas primariamente por fatores outros que a
assistência à saúde e, mais significativamente, por fatores socioeconômicos (Segall, 2007:
353)32. Grupos econômico-sociais distintos apresentam diferenças significativas de saúde
mesmo em condições de acesso universal à assistência de saúde (ver Daniels, Kennedy e
Kawachi, 1999; Marmot e Wilkinson, 1999). Os serviços de saúde e o atendimento médico
são mais acessíveis aos ricos que aos pobres mesmo em condições de fornecimento 31 A mensuração do real impacto do acesso à assistência à saúde não é tarefa incontroversa ou simples. Perspectivas mais céticas consideram que somente um sexto da expectativa de vida pode ser considerada um resultante direto do (e restrito ao) acesso à assistência médica (ver, por exemplo, Mann, 1997). 32 Assim como por fatores naturais e, principalmente, por composição genética (Segall, 2007: 353-354).Segall, napassagemcitada, restringe a amplitude conceitual de “fatoressocioeconômicos” aoafirmar: “To be clear: by “socio-economic factors” it is meant socio-economic factors that affect health directly, independently and apart from socio-economic factors that affect access to health care.”(Segall, 2007: 354).
18
gratuito e universal de assistência à saúde, por variadas razões: entre outras causas
possíveis, as pessoas mais ricas possuem mais tempo livre devido a rotinas de trabalho
diário mais flexíveis, além de possuírem melhor acesso físico-geográfico a hospitais e
clínicas médicas devido às melhores condições de deslocamento e meios de transporte,
assim como a localização privilegiada em que residem (ver Segall, 2007: 344; Goodin e Le
Grand, 1987).
Ou seja, retomando a questão proposta, quando as diferenças de saúde são
injustas? Creio que uma resposta inicial plausível à questão é apresentada pela
Organização Mundial da Saúde quando afirma que as desigualdades de saúde devem ser
consideradas iniquidades – ou seja, injustas – quando são evitáveis, desnecessárias e
“unfair” (Daniels, Kennedy andKawachi, 1999: 225). Contudo, a demarcação precisa desses
adjetivos usados na definição conceitual – quando estamos olhando os dados empíricos –
não me parece tão clara.
O que julgo necessário frisar é que nós não podemos eliminar as desigualdades de
saúde simplesmente ao eliminarmos a pobreza severa ou mesmo a pobreza em um sentido
mais abrangente. Como afirmam Daniels, Kennedy e Kawachi:
“Health inequalities persist even in societies that provide the poor with access to
all of the determinants of health noted above, and they persist as a gradiente of
health throughout the social hierarchy, not just between the very poorest groups
and those above them.”(Daniels, Kennedy andKawachi, 1999: 226-227)
Ou seja, as questões de justiça de saúde possuem uma complexidade própria e
merecem atenção especial. Os comportamentos das iniquidades em saúde entre países e
no interior dos países são distintos, porém a existência de doenças evitáveis e o
desnecessário sofrimento de pessoas em desvantagem, a meu ver, parece ser uma pauta
prioritária e central da justiça. Essencialmente, a questão das desigualdades
socioeconômicas é, também a partir de um olhar de justiça focalizado em questões de
saúde, a questão central e prioritária.
Como Pogge ressalta, citando dados da Organização Mundial da Saúde, cerca de
um terço de todas as mortes humanas, em torno de 18 milhões todo ano, está relacionada
com causas como diarreia, tuberculose, condições maternais e infecções respiratórias –
todas facilmente preveníveis com o acesso a água limpa e potável, saneamento básico,
adequada nutrição, reidratação, vacinação e outros medicamentos disponíveis (Pogge,
2013: 89). Ou seja, desde o fim da Guerra Fria até os dias atuais mais de 400 milhões de
pessoas morreram por causas relacionadas com a pobreza e com a ausência de condições
mínimas de assistência à saúde.
19
Dessa forma, considero que uma adequada concepção igualitária de justiça de
saúde deva realizar uma articulação direta entre saúde populacional justa e a redução de
desigualdades socioeconômicas.
Finalizo, citando Marmot:
“And if a society is making people sick? We have a duty to do what we can to
improve the public health and to reduce health inequalities in social groups where
these are avoidable and hence inequitable or unfair. This is a moral obligation, a
matter of social justice.” (Marmot, 2006: 2082)
20
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