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FACULDADE INTEGRADA DA GRANDE FORTALEZA CURSO DE DIREITO JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL NA VISÃO DE WEBER E DURKHEIM MAÉRLIO MACHADO DE OLIVEIRA

JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM ----- (Maérlio Machado)

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FACULDADE INTEGRADA DA GRANDE FORTALEZA CURSO DE DIREITO

JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL NA VISÃODE

WEBER E DURKHEIM

MAÉRLIO MACHADO DE OLIVEIRA

FORTALEZA, 2004

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JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL NA VISÃODE

WEBER E DURKHEIM

MAÉRLIO MACHADO DE OLIVEIRA

Professor: Alexandre Carneiro

Trabalho apresentado à disciplina Sociologia Jurídica, do Curso de Direito, para obtenção de nota.

FORTALEZA – CE

2004

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

REFERENCIAL TEÓRICO

1 O conceito de ‘justiça social’

1.1 Conceito de cidadania

1.2 Da cidadania helênica à cidadania liberal

1.3 As transformações da cidadania liberal

1.4 A cidadania do estado democrático de direito

1.5 Cidadania: paradigma de análise da Política Social

1.6 Cidadania e justiça social

1.7 O acesso à justiça e a cidadania moderna

2 Dimensão econômica de justiça social

2.1 ‘Justiça social’ sob a égide do direito

3 A sociologia do direito segundo Durkheim

4 A ordem jurídica e econômica de Weber

5 A relação entre Durkheim e Weber

6 A contribuição da economia para a justiça social no Brasil

7 Aspectos sobre direito e economia

7.1 O Judiciário como Instituição Econômica

7.2 Como avaliar a qualidade do judiciário enquanto instituição

econômica

CONCLUSÃO

BIBLIOGRAFIA

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INTRODUÇÃO

A estratégia de subordinação ao neoliberalismo além de não permitir o

resgate da imensa dívida social, que esse modelo nos causou até agora,

também coloca para o futuro do Brasil o aumento da exclusão social, tanto

pelo aumento do desemprego como pela precarização nas relações de

trabalho.

Justiça social, maior equilíbrio regional e emprego são os grandes

desafios que todos teremos que enfrentar. Dessa forma, caberá a todo o

campo democrático popular construir, a partir das diversas iniciativas

nesses três campos, uma alternativa concreta de desenvolvimento para o

país. Esse esforço prático e teórico pode desarmar a armadilha política que

estamos vivendo há quase três anos. Onde os conservadores foram

vitoriosos em criar, no imaginário popular, a ilusão de que são a garantia da

estabilidade e do caminho para um belo futuro; e aqueles que se lhes

opõem são os dinossauros.

É tarefa crucial debater com a opinião pública. Mostrar que o ajuste

neoliberal é incapaz de conciliar a estabilização com crescimento

econômico, justiça social, distribuição de renda e desenvolvimento regional.

Além disso, é preciso mostrar que as oposições são portadoras de

propostas concretas, capazes de conciliar estabilidade com

desenvolvimento econômico e social.

A democracia não é apenas um regime político com partidos e

eleições livres. É, sobretudo uma forma de existência social. Democrática é

uma sociedade aberta, que permite sempre a criação de novos direitos. Os

movimentos sociais, nas suas lutas, transformaram os direitos declarados

formalmente em direitos reais. As lutas pela liberdade e igualdade

ampliaram os direitos civis e políticos da cidadania, criaram os direitos

sociais, os direitos das chamadas minorias - mulheres, crianças, idosos,

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minorias étnicas e sexuais - e, pelas lutas ecológicas, o direito ao meio

ambiente sadio.

Um Estado democrático é aquele que considera o conflito legítimo.

Não só trabalha politicamente os diversos interesses e necessidades

particulares existentes na sociedade, como procura instituí-los em direitos

universais reconhecidos formalmente. Os indivíduos e grupos organizam-se

em associações, movimentos sociais, sindicatos e partidos constituindo um

contra-poder social que limita o poder do Estado. Uma sociedade

democrática não cessa de trabalhar suas divisões e diferenças internas, e

está sempre aberta à ampliação dos direitos existentes e à criação de novos

direitos.

A cidadania, definida pelos princípios da democracia, se constitui na

criação de espaços sociais de luta (movimentos sociais) e na definição de

instituições permanentes para a expressão política (partidos, órgãos

públicos), significando necessariamente conquista e consolidação social e

política. A cidadania passiva, outorgada pelo Estado, se diferencia da

cidadania ativa em que o cidadão, portador de direitos e deveres, é

essencialmente criador de direitos para abrir novos espaços de participação

política.

A democracia, entendida como uma forma de existência social, não

subsiste sem o respeito aos compromissos e obrigações assumidos entre os

seus integrantes. O desrespeito às soluções negociadas e acordadas

exacerba as divisões e diferenças internas da estrutura social, fazendo

tábua rasa da cidadania, dos espaços sociais de luta e das instituições

permanentes responsáveis pela expressão política.

Este trabalho discute as conseqüências da qualidade das instituições

jurídicas para o crescimento econômico de um país, objetivando o alcance

da justiça social. Também discute as relações de cooperação e confronto

entre direito, economia, e em particular o desempenho da justiça social e o

funcionamento da economia.

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Nesse sentido essas relações de cooperação e confronto entre direito

e economia, e em particular a relação entre o desempenho do judiciário e o

funcionamento da economia, são o objeto deste trabalho. Nesse sentido, ele

tem como objetivo principal analisar os diferentes canais através dos quais

o desempenho da justiça social afeta o comportamento dos agentes

econômicos e, indiretamente, o desenvolvimento econômico e social.

O interesse pelo tema surgiu a partir da necessidade de entender

melhor esse contexto, de responder a questionamentos quanto à justiça

social, cidadania e aspectos sobre economia e direito, suas implicações

sociais, e tantas interrogações que perpassam o cotidiano na aplicação da

medida sobre a contribuição da economia para a justiça social. A pesquisa

mostra-se, então, como melhor instrumento para dar respostas a tais

perguntas e inquietações.

Este trabalho foi elaborado numa abordagem qualitativa, seguindo as

diretrizes de uma pesquisa bibliográfica, baseada em publicações e na

Internet, sendo empregado um referencial teórico capaz de oportunizar o

conhecimento sobre justiça social, cidadania e aspectos relevantes sobre

economia e direito. O estudo tem caráter descritivo. Apesar da vasta

literatura referente ao tema, observa-se que a conceituação dos termos tem

sido apresentada de forma confusa e algumas vezes até contraditória. A

partir da pesquisa bibliográfica sobre o conceito de justiça social no Brasil,

esta pesquisa busca identificar semelhanças e divergências nas diferentes

abordagens do tema, de forma a contribuir para o seu tratamento teórico e

aplicação prática.

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REFERENCAL TEÓRICO

1. O conceito de ‘justiça social’

Descobrir o significado do que se costuma chamar de 'justiça social' tem sido, há mais de dez anos, uma das minhas maiores preocupações. Não consegui esse intento - ou melhor, cheguei à conclusão de que, com referência a uma sociedade de homens livres, a expressão 'justiça social' não tem o menor significado. (HAYEK, 1984, p. 72). 

Continuando, referido autor esclarece que a justiça ‘social’ (ou

econômica), expressão com não mais de cem anos, é fruto da interpretação

dos resultados do ordenamento espontâneo do mercado como se algum ser

pensante os dirigisse deliberadamente, ou como se os benefícios ou o

prejuízo específicos que diferentes pessoas deles derivavam fossem

determinados por atos deliberados de vontade, podendo, assim, ser regidos

por normas morais.

Hayek cita que John Stuart Mill aproximou os dois termos, com duas

proposições:

A sociedade deveria tratar igualmente bem os que dela igualmente o mereceram, isto é, que mereceram de modo absolutamente igual. Este é o mais elevado padrão abstrato de justiça social e distributiva, para o qual todas as instituições e os esforços de todos os cidadãos virtuosos deveriam ser levados a convergir o máximo possível. (HAYEK, 1984, p. 81)

Ou esta:

É universalmente considerado justo que cada pessoa obtenha o que merece (seja bom ou mau), e injusto que obtenha um bem, ou seja, submetida a um mal que não merece. Esta é talvez a mais clara e mais enfática forma em que a idéia de justiça é concebida pelo senso comum. Como envolve a idéia do merecimento, surge a questão do que constitui o merecimento. (HAYEK, 1984, p. 81)

Mill (1991), parece, não se apercebeu de que, nesta acepção, o termo

justiça se refere a situações inteiramente diversas daquelas a que se

aplicam as outras quatro, ou de que esta concepção de ‘justiça social’

conduz diretamente ao pleno socialismo.

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As proposições vinculam explicitamente a ‘justiça social e distributiva’

ao ‘tratamento’ dado pela sociedade aos indivíduos segundo seu

‘merecimento’, revelam com a máxima clareza o quanto ela difere da pura e

simples justiça, evidenciando ao mesmo tempo, a causa da vacuidade do

conceito: a reivindicação de ‘justiça social’ é dirigida não ao indivíduo, mas à

sociedade. Mas, esta não age em direção a um propósito específico o que

significa exigir que os membros da sociedade se organizem e distribuam o

produto da sociedade aos indivíduos ou grupos. A questão passa a ser então

qual o padrão de distribuição considerado justo. Indaga Hayek se é moral que

os homens sejam submetidos aos poderes de direção que teriam de ser

exercidos para que os benefícios obtidos pelos indivíduos pudessem ser

significativamente qualificados de justos ou injustos. (HAYEK, 1984, p. 82)

A reivindicação de ‘justiça social’ transformou consideravelmente a

ordem social e continua a transformá-la numa direção jamais prevista por

seus pioneiros. A expressão ‘justiça social’ traduziu desde o início as

aspirações que constituíam a essência do socialismo. A dedicação à causa

da ‘justiça social’ tornou-se, com efeito, o principal meio de expressão da

emoção moral, o atributo distintivo do homem bom, e o sinal reconhecido da

posse de uma consciência moral.

A aceitação quase universal de uma crença não prova que seja válida,

ou mesmo significativa, assim com a crença generalizada em bruxas ou

fantasmas tampouco provava a validade desses conceitos. Aquilo com que

nos defrontamos no caso da ‘justiça social’ é um tolo encantamento,

“simplesmente uma superstição quase religiosa”. Nos dias atuais é a mais

grave ameaça à maioria dos valores de uma civilização livre.

Por acreditarem que algo como a ‘justiça social’ poderia ser alcançado que as pessoas confiaram ao governo poderes que este não pode agora se recusar a empregar para atender às reivindicações do número sempre crescente de grupos de pressão que aprenderam a se valer do ‘abre-te sézamo’ da ‘justiça social’. (HAYEK, 1984, p. 86)

Identifica a ‘justiça social’ como uma miragem que induziu os homens

a abandonarem muitos dos valores que inspiraram, no passado, o

desenvolvimento da civilização. Mas, impelir pessoas de boa vontade à

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ação, além de estar fadado ao malogro, é lamentável, pois destruirá o único

clima em que os valores morais tradicionais podem florescer: a liberdade

individual.

1.1 Conceito de cidadania

A política social, como uma política estatal, vem ganhando relevância

nas formações econômico-sociais capitalistas. Esta relevância, que se

mostra no amplo debate que envolve os mais diferentes segmentos –

sindicatos, movimentos sociais, partidos políticos, organizações não-

governamentais, pesquisadores, tecnocratas, empresários, governo, etc. –,

tem sua justificativa em dois conjuntos de questões: a) econômicas: a crise

fiscal-financeira que tem exigido a reforma do Estado e levado a uma

reavaliação de todas as suas políticas. Do lado da estrutura organizativa

estatal, a política social tem sofrido significativos cortes orçamentários e

programáticos; b) políticas: a tensão existente entre as necessidades

econômicas do capital e as necessidades sociais da população, colocando

em discussão a função do Estado no atendimento à questão social:

Para colocar nos termos de Castel (1995), a questão social é a aporia das sociedades modernas que põe em foco a disjunção, sempre renovada, entre a lógica do mercado e a dinâmica societária, entre a exigência ética dos direitos e os imperativos de eficácia da economia, entre a ordem legal que promete igualdade e a realidade das desigualdades e exclusões tramada na dinâmica das relações de poder e dominação (TELES, 1996, p. 85).

O que se busca, em última análise, é compatibilizar as necessidades

do capital – de valorização, acumulação e concentração – e as

necessidades da população – de atendimento às suas necessidades

básicas, sociais e pessoais.

A questão de fundo é se a ordem capitalista consegue realizar esta

compatibilização. E, aí, encontramos duas respostas polares: sim e não.

Mas encontramos, também, no âmbito destas duas respostas, diferentes

análises e alternativas. O que está se construindo são paradigmas de

análise da política social que possibilitem dar sustentação teórico-

metodológica à sua existência, avaliar suas possibilidades e limites, criar e

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vem ganhando significativo espaço o paradigma da cidadania. O que

significa ser cidadão?

1.2 Da cidadania helênica à cidadania liberal

A temática do Estado na teoria do estado liberal restringia-se a alguns

aspectos considerados relevantes: a forma do estado, os regimes de

governo, os sistemas de governo, a nacionalidade e as relações entre os

diferentes Estados. A própria teoria da representação política foi

desenvolvida, principalmente pelos teóricos políticos, e não pelos juristas,

do século XIX. Explica-se, assim, a reduzida atenção dada ao tema da

cidadania na doutrina liberal do Estado. No entanto, o tema do cidadão,

agente político da sociedade, sempre esteve presente no discurso político.

O sentido que foi dado ao termo entre os pensadores liberais tornou-o

restrito a um grupo social, que se definia em função da propriedade

(MACPHERSON, 1978).

Referido autor esclarece que a primeira formulação do que se entende

por cidadania na cultura cívica do Ocidente ocorreu na Grécia Antiga.

Quando o governo e o povo de Atenas, em 431 a.C., homenagearam os

primeiros mortos atenienses na Guerra do Peloponeso, Péricles, o grande

estadista grego, em nome de seus concidadãos, definiu o que se entendia

por cidadania. Ao dizer que os mortos tinham morrido por uma causa nobre,

a causa de Atenas, o estadista ateniense justificava a sua afirmação

sustentando que Atenas destaca-se, entre as demais cidades gregas, em

virtude de três qualidades: a primeira residia no fato de que o regime

político ateniense atendia aos interesses da maioria dos cidadãos e não os

de uma minoria, e, por essa razão, Atenas era uma democracia; a segunda

qualidade encontrava-se na igualdade de todos perante a lei e na adoção do

critério do mérito para a escolha dos governantes; e, finalmente, Atenas

destacava-se porque a origem social humilde não era obstáculo para a

ascensão social de qualquer cidadão. Esse célebre discurso de Péricles

enunciou um conjunto de direitos, que iriam, séculos mais tarde, constituir a

própria substância da cidadania moderna: a igualdade de todos perante a

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lei, a inexistência de desigualdades sociais impeditivas do acesso social e

no emprego do mérito como critério de escolha dos governantes.

Péricles, entretanto, entendia que esses ideais de civilidade somente

poderiam ser realizados através da participação política dos cidadãos no

governo da comunidade. Entre as cidades gregas, dizia Péricles, os

atenisenses são os únicos a acreditar que "um homem que não se interessa

pela política deve ser considerado não um cidadão pacato, mas um cidadão

inútil" (CHAUÍ, 1985).

A realidade social e política de Atenas não correspondia,

evidentemente, aos ideais proclamados por Péricles. O chamado "século de

ouro"ou o "século de Péricles", foi uma época de alto nível de vida para os

atenienses e de grande brilho para as artes e a literatura. Mas, como explica

Chauí (1985), Tucídides escreveu, posteriormente, que o regime político da

época de Péricles era somente no nome uma democracia, mas, na

realidade, era o governo de um homem só.

Os ideais proclamados na célebre oração fúnebre de Péricles

acabaram, entretanto, incorporados à cultura cívica do Ocidente, sendo,

durante séculos, a principal fonte inspiradora da maioria dos movimentos

contra as tiranias. Representaram, assim, ideais em função dos quais

procurou-se em diferentes momentos da história apresentar-se uma

alternativa diante do status quo. Como quaisquer ideais políticos foram

interpretados de forma diferente, mas mesmo as interpretações divergentes

convergiam no sentido de se definir a cidadania como uma qualidade da

vida política e comunitária.

Na própria Grécia Antiga, esses ideais foram interpretados de forma

diferente pelos seus dois maiores filósofos, Platão e Aristóteles. Platão

sustentava que a massa da população deveria ficar afastada da participação

política, sendo que os governantes deveriam dedicar-se exclusivamente ao

serviço do Estado, sacrificando, assim, qualquer tipo de vida familiar ou

pessoal. O cidadão pleno era, portanto, para Platão, aquele que se dedicava

de forma integral ao governo (CHAUÍ, 1985).

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Essa concepção de cidadãos dedicados, exclusivamente, ao serviço

público de um lado, e de cidadãos excluídos das decisões governamentais,

de outro, reduzidos, portanto, à vida privada, foi contestada por Aristóteles.

O filósofo estagirita ao definir o cidadão recuperou o sentido que lhe fora

atribuído por Péricles: cidadão era aquele que participava nas decisões e

nas funções governamentais. No mesmo livro Aristóteles enfatiza as

virtudes da cidadania clássica, insistindo na necessidade de práticas

comuns religiosas e uma regulamentação bastante ampla da vida privada e

da moral pessoal. Isto porque, para Aristóteles não se deve mesmo

considerar que um cidadão se pertence a si próprio, mas que tudo pertence

à cidade (CHAUÍ, 1985).

A concepção platônica de cidadania, austera e obrigando o cidadão ao

serviço público, transmitiu-se para o pensamento moderno através da obra

de Jean-Jacques Rousseau. Depois de referir-se às leis da liberdade como

sendo tão severas como o "julgo do tirano", o filósofo sublinhava a

necessidade de obrigar-se o homem a ser livre ( Rousseau, Contrato Social,

livro I, cap. VII). Essa concepção da cidadania teve um influência importante

em diferentes movimentos políticos e sociais nos dois últimos séculos.

Ficou, entretanto, restrita a concepção rousseauniana aos regimes políticos

fechados, onde a fidelidade ao Estado constitui o primeiro e mais

abrangente dos deveres cívicos. Pode-se, nesse sentido, falar-se em

cidadania como a obediência aos ditames estatais, sendo as raízes desse

tipo de cidadania claramente distantes da concepção ateniense clássica,

onde a participação do indivíduo era essencial para a caracterização do

estatuto da cidadania. (CHAUÍ, 1985)

As relações da cidadania com os negócios governamentais recuperou

o seu sentido originário, depois da Revolução Francesa de 1789. Entendia-

se, então, a cidadania como sendo a expressão do laço jurídico

estabelecido entre o indivíduo e a sociedade política, que lhe permitia a

participação como sujeito de direitos no governo, além de lhe assegurar

direitos e liberdades. A cidadania revolucionária de 1789, entretanto,

baseava-se na distinção entre o cidadão ativo e o cidadão passivo, sendo

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que o primeiro viria a ser a roupagem política do burguês; o cidadão ativo

deitava suas raízes no "status do homem privado, ao mesmo tempo educado

e proprietário" (id., p. 106).

O instrumento político-institucional que formalizava essa divisão entre

duas categorias de cidadãos era o voto censitário, consagrado na

Constituição brasileira de 1824 (art.90 e segs.). A nossa primeira lei magna

faz, inclusive, referência expressa aos "cidadãos ativos", no art.90. O voto

censitário expressava a preocupação básica do legislador liberal com a

participação democrática na elaboração das leis, que aparecia como uma

ameaça às liberdades individuais; mas o voto censitário acabava refletindo,

também, uma estrutura social, que tinha na propriedade a sua pedra angular

e que em função dela deveria organizar politicamente a sociedade. Pode-se

dizer que a cidadania liberal deitava suas raízes no status econômico e, por

essa razão, não incluía a maioria da população como participantes do

processo político.

1.3 As transformações da cidadania liberal

O processo de democratização do estado liberal durante o século XIX

provocou o alargamento de suas bases sociais, que deixaram de ser,

exclusivamente, de proprietários, dela participando também não

proprietários. Os mecanismos do estado liberal, ainda que consagrando na

prática política e no estatuto legal as desigualdades sociais e econômicas,

possibilitaram a incorporação de novos cidadãos ao espaço público;

precisamente por constituir-se em um estado de direito e aberto, o estado

liberal pressupunha a intervenção do cidadão em diferentes níveis de

participação; o próprio funcionamento da justiça baseava-se na participação

dos cidadãos, como condição de sua eficácia. A participação, ainda que

restrita a alguns grupos sociais encontra-se nas origens do estado liberal,

sendo que para alguns analistas do liberalismo clássico, como Tocqueville,

citado por Castro (1998), a apatia política constituía a maior ameaça à

liberdade.

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A passagem da cidadania liberal para a cidadania do estado

democrático de direito ocorreu no bojo da sociedade liberal, sendo que esse

processo alterou as relações de poder, sendo que se expressou na

concepção de cidadania mais ampla e abrangente do estado democrático de

direito. A incorporação de novos atores políticos no processo legislativo fez

com que as prioridades da ordem jurídico-constitucional fossem alteradas,

estabelecendo-se, então agendas políticas que refletissem os interesses e

os projetos desses grupos emergentes. Para que se possa analisar essas

transformações da cidadania liberal, que desaguaram na concepção de

cidadania encontrada nas constituições democráticas da

contemporaneidade, o modelo proposto por Marshall (1967) pode, mesmo

com suas limitações, servir de guia.

Marshall argumenta que a cidadania moderna é um conjunto de

direitos e obrigações, que compreendem, atualmente, três grupos de

direitos. Os direitos civis que se riam característicos do século XVIII; os

direitos políticos, consagrados nas constituições liberais do século XIX e,

finalmente, os direitos sociais do século XX. O esquema de Marshall, como

todo esquema interpretativo, simplifica o processo histórico, mas apresenta

uma vantagem analítica que contribui para uma compreensão crítica do

processo de formação da cidadania do estado democrático de direito. Isto

porque, Marshall privilegia no processo de democratização do estado liberal

momentos em que um desses grupos de direitos tiveram a sua

predominância.

Uma análise cuidadosa da evolução do estado de direito mostra como

a afirmação inicial dos direitos civis e, posteriormente, dos direitos políticos

não ocorreu de forma semelhante em todos os países. O caso tomado como

paradigmático, por Marshall, o do Grã-Bretanha, não foi o mesmo

encontrado na França ou no Brasil. Os direitos políticos na França foram

antecedidos pelos direitos civis, mas não de forma tão diferenciada como foi

o caso da Grã-Bretanha; no Brasil, os direitos políticos antecederam os

direitos civis, o que pode, talvez, contribuir para explicar a ausência de

elaboração doutrinária sobre esse grupo de direitos na cultura jurídica

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brasileira. Em virtude dessa evolução no tempo é que Bobbio (2002) sugere

que se denomine de direitos de primeira geração, os direitos civis e

políticos, classificando-se os direitos sociais, resultantes do processo de

democratização da cidadania liberal, como sendo direitos de segunda

geração. Vemos, portanto, que a classificação de Bobbio divide os

momentos de formação do direito em função das liberdades e direitos que

estão sendo afirmados no processo político.

Encontramos, então, no estado democrático de direito três grupos de

direitos: os direitos contra o Estado e que servem como salvaguarda do

indivíduo, constituindo o grupo de direitos civis (igualdade no acesso à

justiça, liberdade de culto, liberdade de expressão, liberdade de ir e vir,

direito à propriedade); os direitos políticos (direito de votar e ser votado,

direito de participação nas funções governamentais) e os direitos sociais,

resultantes da legislação que refletia a demanda de grupos sociais até então

excluídos dos benefícios da sociedade e que tiveram no Estado o parceiro

necessário na luta pela diminuição das desigualdades econômicas e sociais,

provocadas pela economia livre de mercado. A chave para determinar a

natureza específica da cidadania moderna encontra-se na análise do

processo de democratização do estado liberal. Os três grupos de direito,

acima referidos, não se diferenciavam entre si, enquanto que o nascimento

da sociedade moderna ocorreu em função de um processo de diferenciação

crescente de direitos, e dos poderes do Estado.

O grande historiador da constituição F. Maitland (1963) escreveu, a

propósito:

Quando mais revemos a nossa história, mais impossível se torna traçar uma linha de demarcação rigorosa entre as várias funções do Estado: a mesma instituição é uma assembléia legislativa, um conselho governamental, um tribunal de justiça...Em toda a parte, à medida que passamos do antigo para o moderno, vemos o que a filosofia da moda chama de diferenciação. (apud BOBBIO, 2002, p. 65)

Enquanto os direitos civis, políticos e aqueles que seriam chamados

na atualidade de direitos sociais eram locais na Idade Média, a cidadania

moderna nasceu de um processo de fusão territorial e separação funcional.

Esse processo coincide com o surgimento dos estados nacionais, no

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primeiro momento, sob a forma das monarquias absolutas do século XVI e

XVII; esses estados nacionais, resultantes da fusão de reinos, feudos e

cidades, organizaram-se em torno de uma ordem jurídica nacional, vale

dizer normas impostas em todo o território nacional, deixando, assim, a

cidadania de ser local, passando a ser nacional; o estado nacional em

virtude da extensão territorial e de complexidade crescente de suas funções

diferenciou progressivamente os seus poderes - em legislativo, executivo e

judiciário -, sendo que de forma concomitante cada um dos grupos de

direitos constitutivos da cidadania também foram sofrendo um processo de

diferenciação ao lado da sua nacionalização. No século XX, esses grupos

de direitos, em virtude da maior democratização do poder público, acabaram

sofrendo um processo de convergência vindo a constituir o núcleo da

cidadania do estado democrático de direito.

1.4 A cidadania do estado democrático de direito

O entendimento da natureza da cidadania do estado democrático de

direito implica na analise da teoria e da legislação constitucional tendo em

vista os seus aspectos político-institucionais, buscando-se, assim,

compreender os mecanismos políticos e legais, expressão de novas

realidades econômicas e sociais, que moldaram a estrutura do estado

contemporâneo. A cidadania contemporânea, portanto, deverá ser estudada

levando-se em conta suas raízes histórico-constitucionais e, também, o

contexto em que atualmente insere-se o seu exercício. Trata-se, portanto,

de analisar a realidade político-institucional, mas não se perdendo de vista o

processo que permitiu elevar ao status constitucional os direitos que

constituem a cidadania contemporânea.

A sedimentação dos direitos civis caracterizou-se por ser a afirmação

da sociedade diante do poder da monarquia absoluta. Foi um longo

processo histórico, que deita suas raízes muito antes do século XVIII, mas

que encontrou no "século das luzes" a sua consagração final. A questão

consistia em definir-se uma cidadania, que viabilizasse a nascente

economia de mercado. Os direitos civis tiveram nesse contexto uma função

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primordial, pois foram eles que, ao proclamarem a igualdade de todos

perante a lei, assegurou essa igualdade de direitos e obrigações nas

atividades comerciais e econômicas. Vemos, então, como a condição

necessária para o funcionamento da economia de mercado residia numa

ordem jurídica que não privilegiasse indivíduos e grupos detentores dos

meios de produção. Algumas liberdades, como a liberdade de manifestação

de pensamento, aparentemente distantes dos problemas relativos ao

funcionamento de uma economia de mercado, serviram, perfeitamente, para

a crítica da qualidade de produtos e de serviços entre concorrentes

comerciais ou industriais.

Os direitos políticos, por sua vez, tiveram o século XIX como marco

histórico referencial, porque foi o momento do surgimento do estado de

direito, que substituiu a ordem política e jurídica do "Ancien Règime", do

absolutismo monárquico. A primeira forma do estado de direito revestiu-se

do modelo liberal, baseado na representação política e na lei e que se

constituiu na ordem político-institucional da sociedade de mercado. O

estado liberal-constitucional representou o papel histórico, na primeira

metade do século XIX, de viabilizar política e juridicamente a economia de

mercado que ainda engatinhava, baseada majoritariamente na agricultura e

exploração das riquezas do Novo Mundo. Com a Revolução Industrial o

sistema produtivo sofreu uma profunda alteração, que se caracterizou pelo

aumento da produção, exigindo o conseqüente aumento do número de

consumidores; para que isso pudesse ocorrer tornou-se necessário a

incorporação ao conjunto de cidadãos plenos aqueles que em virtude das

modificações na economia passaram a participar como produtores e

consumidores dos produtos industriais. Os movimentos operários e as

reivindicações dos diversos partidos socialistas procuraram expressar, em

termos políticos, essa nova realidade social e econômica.

Esse processo de incorporação à cidadania plena realizou-se através

da extensão do direito de votar, fazendo com que um número crescente de

indivíduos atingisse a maioridade política. O adensamento do colégio

eleitoral provocou uma mudança qualitativa na ordem jurídica. As leis

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Page 18: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

deixaram de na sua maioria - e este fenômeno ocorreu em épocas

diferentes, em países diferentes - privilegiar os interesses da burguesia,

sendo que na agenda do poder legislativo passou-se a contemplar, também,

temas e interesses dos não-proprietários. Nesse contexto é que começam a

serem promulgadas as primeiras leis referentes aos problemas sociais,

sendo que essa legislação social fará com que o estado, até então ausente

das relações econômicas, intervenha nascendo o "estado social de direito"

(ARRUDA, 1997).

A marca diferenciadora do conceito moderno de cidadania encontra-se

patente nos três momentos de afirmação dos conjuntos de direitos a que

fizemos referência; todos esses direitos foram reconhecidos em

conseqüência da participação de diferentes grupos sociais face ao status

quo. Afirmaram-se quando os integrantes de segmentos sociais diversos

sentiram-se bastante fortes para reivindicarem novos direitos e liberdades.

Nasceram esses direitos, portanto, não em virtude de benesses das elites

dirigentes, mas em virtude reivindicações claramente definidas e duramente

conquistadas. O estado liberal de direito no processo de democratização

consagrou esses direitos na medida em que representantes de um número

crescente de não-proprietários, inclusive de operários, começaram a

participar no processo legislativo, transformando em leis, vinculando

portanto o poder público na sua observância, as bandeiras até então nas

mãos dos sindicatos e dos partidos políticos de esquerda.

As reivindicações sociais ganharam, assim, o status de direitos,

perdendo o caráter de benevolência pública ou privada, que tinham desde

as Poor Laws promulgadas pela rainha Elizabeth I da Inglaterra, no século

XVI. Essas considerações nos remetem às origens helênicas da democracia

e principalmente ao ideal da participação política. A cidadania moderna é

um conjunto de direitos que foram construídos em conseqüência de

diferentes tipos de participação: participação da nobreza frente ao monarca

e ao clero; participação da burguesia diante do monarca, do clero e da

nobreza; e, finalmente, participação do operariado.

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Page 19: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

Os mecanismos constitucionais, que definem a cidadania no estado

democrático de direito tem, portanto, como fundamento a participação sem o

que não se explica as características que a determinam na atualidade. "A

democracia exige participação real das massas", escreve Arruda (1997, p.

14), e "pode nesta perspectiva definir-se a sociedade democrática como

aquela capaz de instaurar um processo de efetiva incorporação dos homens

nos mecanismos de controle das decisões, e de real participação dos

mesmos nos lucros da produção" (id. p. 16).

A cidadania do estado democrático de direito tem uma dupla face: ela,

de um lado, realiza-se através da participação no poder político, e, de outro,

garantindo direitos econômicos e sociais, expressão da participação do

eleitorado através de seus representantes.

1.5 Cidadania: paradigma de análise da Política Social

A questão da cidadania põe, em destaque, a discussão fundamental

da relação dos indivíduos com a sociedade, do Estado com a sociedade.

Essa relação se circunscreve no âmbito da sociedade burguesa, que coloca

em marcha processos de transformações econômicas, políticas, sociais,

culturais, cria uma nova sociabilidade, pautada no modo de produção

capitalista, cujo fundamento é a propriedade privada. A burguesia, alçada à

condição de classe dominante, estabelece regras que delimitam e

circunscrevem as relações Estado-Sociedade, de tal forma a manter o seu

poder de classe. Poder, esse, que é exercido sobre as demais classes

sociais que compõem o Estado Nacional, através da manutenção das

desigualdades sociais, políticas, econômicas, culturais.

Para se consolidar, se manter e se legitimar enquanto classe

dominante, a burguesia faz uso de diversos mecanismos, o Estado assume

diversas características, mas, nesse processo, integra algumas

reivindicações das classes subalternas, negocia, estabelece pactos, desde

que não se coloque em questão a ordem burguesa estabelecida. Se, por um

lado, o Estado burguês homogeneíza os indivíduos numa cultura geral, que

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Page 20: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

se traduz na língua nacional, nas relações de parentesco, nos símbolos

nacionais, nos costumes, nos limites territoriais, etc; por outro, ele se funda

na desigualdade.

A desigualdade é contextualizada pela propriedade privada dos meios

de produção, pela apropriação desigual do produto nacional. A revolução

burguesa cria a sua própria dominação e o seu antagonismo, representado

pelos dominados. Essa característica contraditória da sociedade burguesa é

que faz com que convivam, num mesmo espaço e ao mesmo tempo, os

instrumentos de dominação e os instrumentos de superação da dominação.

Portanto, as relações estabelecidas entre Estado e Sociedade são

contraditórias, ambíguas, tornando o espaço nacional um espaço de lutas

entre classes sociais antagônicas.

À desigualdade corresponde o seu oposto – a igualdade, o que coloca

o estatuto da cidadania como a igualdade possível. A transformação do

indivíduo em cidadão, ainda que represente uma conquista fundamental da

Revolução Burguesa, busca transcender a desigualdade de classe social

pela igualdade da cidadania. Isso significa que, para se entender a

concepção de cidadania, não se pode desvinculá-la da ordem burguesa

estabelecida, e nem dos fundamentos da teoria liberal, onde o pressuposto

da cidadania é a propriedade privada. E nem se pode supor que a cidadania

preconizada pela teoria liberal tenha, no limite, o objetivo de acabar com as

desigualdades. Macpherson, (1978, p. 112), analisando a ampliação da

cidadania no Estado de Bem-Estar Social, afirma: “mais redistribuição do

estado de bem-estar da renda nacional não é bastante: seja quanto for que

ele diminua as desigualdades de classes quanto à renda, não atingirá as

desigualdades do poder de classes”.

Portanto, ainda que os direitos de cidadania se desenvolvam na

sociedade burguesa, eles têm seus limites estabelecidos pela manutenção

do poder nas mãos da burguesia. E, para acompanhar o desenvolvimento

dos direitos de cidadania na sociedade burguesa, é importante recorrer a

Marshall, que representa o fundamento teórico-metodológico da cidadania

como paradigma de análise da política social.

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Page 21: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

Marshall divide a cidadania em três elementos:

Elemento civil: composto dos direitos necessários à liberdade individual – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, direito à propriedade, e de concluir contratos válidos e o direito à justiça: é o direito de defender e afirmar todos os direitos em termos de igualdade com os outros e pelo devido encaminhamento processual. Elemento político: o direito de participar no exercício do poder político, como um membro de um organismo investido da autoridade política ou como um eleitor dos membros de tal organismo. Elemento social: se refere a tudo que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade (1967, p. 63-64).

Calcado numa análise histórica, Marshall vai demonstrando o

desenvolvimento desses direitos, e como a cidadania se configura enquanto

um processo cumulativo de conquistas de direitos, em dois sentidos:

primeiro, enquanto aquisição de novos direitos; e, segundo, enquanto

ampliação dos direitos para camadas da população que se encontravam

excluídas desses direitos. Assim é que é a sociedade burguesa que, no seu

processo histórico, desenvolve e efetiva os direitos de cidadania, e, essa

perspectiva evolutiva fica clara no quadro traçado por Marshall:

os direitos civis surgiram em primeiro lugar e se estabeleceram de modo um tanto semelhante à forma moderna que assumiram antes da entrada em vigor da primeira Lei de Reforma, em 1832. Os direitos políticos se seguiram aos civis, e a ampliação deles foi uma das principais características do século XIX, embora o princípio da cidadania política universal não tenha sido reconhecido senão em 1918. Os direitos sociais, por outro lado, quase que desapareceram no século XVIII e princípio do XIX. O ressurgimento destes começou com o desenvolvimento da educação primária pública, mas não foi senão no século XX que eles atingiram um plano de igualdade com os dois outros elementos da cidadania. (1967, p. 75). E é aí que ele entende que a sociedade burguesa é o palco, por excelência, dos direitos de cidadania, que supera a desigualdade total inerente ao sistema de classe social: ... a igualdade implícita no conceito de cidadania, embora limitada em conteúdo, minou a desigualdade do sistema de classe que era, em princípio, uma desigualdade total. Uma justiça nacional e uma lei igual para todos devem inevitavelmente enfraquecer e, eventualmente, destruir a justiça de classe, e a liberdade pessoal como um direito universal deve eliminar a servidão (1967, p. 77).

Subjacente a esse raciocínio está a idéia de que é possível reduzir as

injustiças sociais pela redistribuição, ainda que parcial, do produto social.

Fica claro, também, que ele não se propõe a ilusão de que a cidadania vá

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Page 22: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

acabar com a desigualdade, mas que ela coloca a possibilidade, que é

concreta, de atenuar a desigualdade. A crítica que ele faz ao sistema de

classe, é que ele propõe uma desigualdade total e insuperável na sociedade

burguesa, enquanto que, para Marshall, a cidadania representa a

possibilidade de uma superação dessa desigualdade. Outro pensamento

significativo em Marshall, é o que se refere à cidadania social. É à cidadania

social que ele credita a possibilidade de uma ordem social mais justa, e não

à cidadania política. Entra em questão, então, o Estado de Bem-Estar

Social, onde as conquistas sociais tendem a obscurecer a cidadania política,

o que Marshall não questiona.

E é a questão da cidadania política, que é, no limite, a cidadania

propriamente dita, na medida em que os cidadãos têm poder de interferir

decisivamente nas questões nacionais, que Marshall não coloca. Mesmo

porque ele entende que a desigualdade tem alguns aspectos que são

legítimos e, por isso, ele afirma:

Nosso objetivo não é uma igualdade absoluta. Há limitações inerentes ao movimento em favor da igualdade, que opera em parte através da cidadania e, em parte, através do sistema econômico. Em ambos os casos, o objetivo consiste em remover desigualdade que não podem ser consideradas como legítimas, mas o padrão de legitimidade é diferente. No primeiro, é o padrão da justiça social; no último, é a justiça social combinada com a necessidade econômica (1967, p. 109).

Com fundamento nestas idéias, é que se propõe que, no âmbito das

políticas sociais, deve-se incorporar a cidadania, entendendo o processo de

desenvolvimento das políticas sociais numa perspectiva que as conceba

como processo de evolução da cidadania.

Dado o reconhecimento, pelos seus próprios teóricos, de que a

cidadania apresenta problemas teóricos e conceituais na sua definição, a

proposta fundamental é de que a cidadania se constitua em um princípio

universalizante de implementação, execução e avaliação das políticas sociais.

Nas palavras de Parker, (1979, p. 145 apud COIMBRA, 1987, p. 85):

Defender uma distribuição de serviços e recursos baseada nos princípios da cidadania é afirmar que as condições individuais de vida devem ser protegida por decisões políticas que garantam níveis aceitáveis de cuidados médicos e sociais, de educação, de

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Page 23: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

renda e assim por diante, independentemente do poder de barganha de cada indivíduo. Todos teriam de ter os mesmos direitos de compartilhar de tudo aquilo que fosse fornecido, nos mesmos termos que qualquer outra pessoa. Necessidades iguais teriam de receber tratamento igual, sem nenhuma discriminação a favor ou contra quaisquer grupos sociais, econômicos, políticos e raciais. A idéia de cidadania implica que nenhum estigma seja associado ao uso dos serviços sociais, quer seja por atitudes populares de condenação da dependência, quer originados de práticas administrativas ou padrões inferiores de previsão de serviços. A qualidade dos serviços públicos teria de ser a melhor possível, levando-se em conta a escassez dos recursos públicos.

Portanto, o princípio organizador da política social deve ser a

cidadania. A avaliação da eficiência e eficácia da política social deve passar

pelo confronto com o princípio da cidadania, assim como a implementação

de novas políticas. Para Vasconcelos, (1989, p. 89),

..a luta pelos recursos oriundos do denominado salário social passa exatamente pela forma de estruturação da cidadania. [...] Isso significa que a luta própria a este campo não se restringe apenas à esfera da luta política e ideológica, de forma direta, mas também à esfera econômica, na medida em que se refere ao nível de distribuição da sociedade.

O estudo, análise e definição da política social a partir do paradigma

da cidadania implica em vincular a cidadania aos direitos sociais. E implica,

também, em vincular a cidadania à democracia. A importância do paradigma

da cidadania reside no fato de, ao não privilegiar o conflito capital-trabalho,

numa sociedade onde grandes contingentes de indivíduos encontram-se

fora do mercado formal de trabalho, afirmar-se que os direitos sociais que,

historicamente, foram construídos para proteção ao trabalho, sejam

reconhecidos como direitos de toda a população. As categorias

fundamentais para tal paradigma são: igualdade, democracia, direitos

sociais, necessidades sociais. A partir destas categorias pode-se delimitar a

cidadania e as possibilidades e limites de acesso a ela. E, a partir daí,

estabelecer as possibilidades e limites da política social, e das políticas

sociais específicas. O que se tem a nosso ver, é um descolamento das

necessidades sociais das demais necessidades – civis e políticas;

estabelecendo-se uma relativa autonomia do social sobre as demais esferas

da vida social -– o que implica em tornar a cidadania um valor ético-moral

superior. Essa relativa autonomia é dada pela possibilidade de se atender

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Page 24: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

as necessidades sociais – ou de cidadania - sem romper com a estrutura

econômico – social.

Como já mostramos, a desigualdade é o fundamento das sociedades

burguesas capitalistas contemporâneas. A raiz da desigualdade funda-se na

propriedade privada, e a propriedade privada é o que define e circunscreve

a política social. Portanto, para estabelecer como paradigma da política

social a cidadania, seria necessário, em primeiro lugar, um conceito de

cidadania que transcendesse os limites burgueses a ela colocados – uma

concepção de cidadania que não tivesse por fundamento a propriedade

privada. Mas isto, por si só, já significaria uma ruptura com o próprio

conceito de cidadania. Significaria, também, conceitualizar uma cidadania

abrangente, onde direitos civis e políticos estabelecessem um movimento

dialético com os direitos sociais. Entendemos que a segmentação entre

direitos civis, sociais e políticos, é uma segmentação que responde, de

imediato, às necessidades do capitalismo. Abre possibilidades para debates

e campanhas que chamem a atenção para a solidariedade e para valores

subjetivos calcados numa natureza humana independente da forma como os

homens produzem a sua vida material. Abre possibilidades para que o

debate sobre a política social permaneça no âmbito das necessidades

individuais e coletivas, e não no âmbito da construção da sociedade. Na

verdade, esta é uma característica fundamental da política social na

perspectiva capitalista: ela responde a situações individuais, pessoais, de

grupos e segmentos específicos, e não a necessidades nacionais ou de

classes sociais.

O paradigma da cidadania só reforça a perspectiva da classe

burguesa: a abertura de oportunidades aos desiguais, via política social,

não significa outra coisa senão a institucionalização da desigualdade ao

invés de sua extinção.

1.6 Cidadania e justiça social

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Page 25: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

A transformação do estado liberal democrático em estado democrático

de direito tem recebido da literatura jurídica brasileira análises

caracterizadas por um alto grau de reducionismo jurisdicista, responsável na

aplicação do texto constitucional por distorções na própria natureza dessa

forma de organização político-institucional.

A ordem constitucional, estabelecida na Constituição de 1988, não

provocou novas formas de entendimento do sistema político-constitucional,

deixando-se ficar a maioria dos autores prisioneira de uma visão jurisdicista

do problema institucional, qual seja, a de interpretar a lei magna dentro de

sua própria estrutura jurídica, como se fosse um sistema fechado, infenso à

influencia das forças externas ao universo especificamente jurídico.

O estado democrático de direito, como pretendemos demonstrar a

seguir, pressupõe para o seu funcionamento o arejamento da norma

constitucional a fim de que não ocorram, na sua aplicação, disfunções na

regulação a que se pretende a ordem jurídica. Trata-se de examinar,

portanto, como a dimensão política do estado democrático de direito pode

ser incorporada ao sistema jurídico, partindo-se do pressuposto

metodológico de que ignorar aquela dimensão significará, certamente, a

inviabilização no futuro próximo do estado democrático de direito.

A concepção de cidadania pode servir de patamar inicial para que

possam ser avaliadas as perspectivas do estado democrático de direito no

limiar do novo milênio. A primeira constatação, a que nos leva a simples

leitura da Constituição de 1988, é a de que a cidadania definida no texto

constitucional difere significativamente, tanto do ponto de vista político,

como do ponto de vista jurídico, da cidadania liberal estabelecida nas

constituições brasileiras desde o Império. Isto porque o texto constitucional

vigente refletiu o projeto de forças políticas, de variada gama ideológica,

que superaram a experiência autoritária do período militar e expressaram a

vontade de mudanças político-institucionais nascidas na sociedade civil.

Essas mudanças, entretanto, não representaram uma volta ao

passado, ao modelo liberal clássico, mas sim expressaram diferentes

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Page 26: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

propostas sociais e econômicas, surgidas no seio de uma sociedade

democratizada e pluralista.

Os novos tipos de relações sociais e econômicas, sedimentadas na

sociedade brasileira da década dos oitenta, fizeram com que a ordem

jurídico-constitucional incorporasse a tendência determinante deste final de

século no sentido da democratização do estado liberal; o estado

democrático de direito expressa essa evolução na organização estatal,

integrando aos direitos assegurados pelas declarações das constituições

liberais a dimensão democrática. Cria-se, assim, nesse processo

democratizador uma nova espécie de cidadania, que será responsável por

um novo tipo de organização estatal.

O surgimento dessa nova espécie de cidadania no seio do estado

contemporâneo, cujas características político-institucionais iremos, a seguir,

analisar, deveu-se a diferentes fatores. Permaneceu, entretanto, a idéia de

que as formas d exercício da cidadania é que iriam qualificar o estado

contemporâneo. Nesse sentido, as concepções peculiares de cidadania de

diferentes organizações estatais contemporâneas, podem servir como

parâmetro de avaliação do grau de liberdade e participação política dos

grupos sociais.

A cidadania representa, assim, mais do que um simples vínculo

jurídico unindo cidadão e Estado em torno de um mesmo ordenamento

constitucional, o próprio termômetro através do qual pode-se avaliar o

estado das liberdades públicas. Conhecer em que consiste a cidadania e o

seu exercício, representa conhecer os níveis de organização e controle do

poder público por uma determinada sociedade.

A questão da cidadania, portanto, não se reduz, somente e

principalmente, ao exame de sistemas jurídicos, mais ou menos liberais, ela

reside no critério mais imediato de aferição do exercício do poder do

cidadão comum sobre o funcionamento e a organização estatal. Quando se

fala em controle deve-se entender que o exercício da cidadania será

materializado através de leis que expressem, também, a vontade política da

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Page 27: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

nação. Neste contexto é que se situa o problema das relações do social com

o político, quando a cidadania vai além da cidadania liberal, restrita à

garantia dos direitos e liberdades individuais, e constitui-se em instrumento

de reordenamento da sociedade tendo em vista os desafios colocados pelos

problemas sociais e econômicos.

O complexo desafio diante do qual se encontra a sociedade

democrática, e particularmente o estado democrático de direito, no limiar do

século XXI, reside na persistência do que podemos chamar de fraturas

sociais. Independente do grau de desenvolvimento econômico e social, as

nações democráticas da atualidade defrontam-se, em maior ou menor grau,

com clivagens sociais, que resistem às políticas públicas destinadas a

superá-las. O fantástico desenvolvimento econômico dos últimos cinqüenta

anos, que trouxe para a sociedade de consumo um número crescente de

indivíduos, não foi acompanhado, no entanto, por uma distribuição

eqüitativa de bens e, principalmente, não garantiu o acesso aos benefícios

da sociedade moderna de um significativo contingente populacional.

A questão do exercício da cidadania no estado democrático de direito

diferencia-se da cidadania do estado liberal clássico, precisamente porque

incorpora na definição legal e na sua prática novas dimensões que não se

achavam contempladas anteriormente. Isto porque a cidadania do estado

democrático de direito pressupõe para o seu exercício na atuação dos

cidadãos no exercício e no controle dos poderes públicos. Essa premissa do

controle do poder público, base do estado liberal, onde a organização

política estava referida à definição dos espaços de poder do indivíduo e do

Estado, recebeu no quadro do estado democrático de direito a dimensão

social, vale dizer, o compromisso do poder público com a realização de uma

forma específica de organização social.

Direitos constitucionais que originariamente restringiam-se aos

direitos e liberdades da pessoa humana, como o direito da propriedade, a

liberdade de expressão, o direito de ir e vir e todas as demais garantias

estabelecidas nas constituições depois da Revolução Francesa de 1789,

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Page 28: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

foram acrescidos de outros tipos de direitos, que incorporaram no texto

constitucional os chamados direitos sociais e econômicos (Bobbio, 2002).

1.7 O acesso à justiça e a cidadania moderna

A Constituição de 1988 consagra os direitos civis e sociais a serem

implementados pelo exercício dos direitos políticos. O princípio da

participação política divide-se em face da carta magna brasileira em dois

tipos: a participação através da representação política e a participação

direta. O atual texto constitucional consagra ambos ao declarar no seu

art.1º, parágrafo único, que "todo o poder emana do povo, que o exerce por

meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta

constituição". O art.14º estabelece, por sua vez, os três institutos através

dos quais ocorrerá a participação popular direta: o referendo, o plebiscito e

a iniciativa popular legislativa. A iniciativa popular legislativa prevista para

os três níveis de poder admitida pela Constituição brasileira de 1988

( art.61,# 2º, art.27º, # 4º e art.29º, IX ) juntamente com a participação

política através do sistema partidário ( art.17º) pretende que o mecanismo

legislativo possa refletir com razoável precisão a vontade popular.

O texto constitucional, entretanto, não é suficiente para moldar uma

realidade social obediente à norma. A tradição brasileira da lei, mesmo a

constitucional, aponta para dificuldades intrínsecas à própria organização

social, que inviáveis a concretização de direitos proclamados no texto

constitucional. Explica-se, em virtude dessas dificuldades, o alto nível de

diferentes formas de desobediência civil na sociedade brasileira, ao lado do

grande número de diplomas legais. Torna-se, assim, um exercício de análise

político-constitucional procurar estabelecer a distância entre o que

estabelece a Constituição, visando o funcionamento do estado democrático

de direito, e a realidade social objetiva. Nesse contexto é que, talvez, possa

ser encontrada a explicação para os obstáculos à materialização do estado

democrático de direito na realidade nacional. O exame do acesso à justiça,

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Page 29: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

vale dizer, a concretização de direitos e liberdades, consagradas no texto

constitucional, pode contribuir para que se estabeleçam mecanismos

institucionais, que integrem efetivamente no exercício da cidadania

segmentos significativos da população brasileira.

2. Dimensão econômica de ‘justiça social’

Hayeck (1991) ressalta a distinção entre dois problemas: apurar se,

numa ordem econômica baseada no mercado, o conceito de ‘justiça social’

tem qualquer significado ou conteúdo; definir se é possível preservar uma

ordem de mercado impondo-lhe ao mesmo tempo algum padrão de

remuneração baseado na avaliação do desempenho ou das necessidades

de diferentes indivíduos ou grupos por uma autoridade dotada do poder de

aplicá-lo.

Afirma referido autor que a resposta para as questões é não.

Concentra-se, em primeiro lugar, no problema da ausência de significado da

expressão ‘justiça social’. Em seguida, no exame dos efeitos que terão os

esforços destinados a impor qualquer padrão preconcebido de distribuição

na estrutura da sociedade a eles submetida. Salientando que as queixas de

que o resultado do mercado é injusto não implicam realmente que alguém

tenha sido injusto; e não há resposta para a questão de saber quem foi

injusto.

Tolera-se um sistema em que todos são livres na escolha de sua

ocupação e, por isso, ninguém pode ter o poder e a obrigação de fazer com

que os resultados correspondam aos nossos desejos. Conseqüentemente

neste sistema o conceito de ‘justiça social’ é inócuo porque nele nenhuma

vontade é capaz de determinar as rendas relativas das diferentes pessoas

ou impedir que elas dependam, em parte, do acaso. Só é possível dar um

sentido à expressão ‘justiça social’ numa economia dirigida ou

‘comandada’(como um exército), que os indivíduos recebem ordens quanto

ao que fazer: e qualquer concepção específica de ‘justiça social’ só poderia

ser realizada num sistema centralmente dirigido. A ‘justiça social’ pressupõe

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Page 30: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

que as pessoas sejam orientadas por determinações específicas, e não por

normas de condutas individuais justa.

Numa sociedade livre, em que a posição dos diferentes indivíduos e

grupos não resulta do desígnio de quem quer que seja – nem poderia ser

alterada de acordo com um princípio de aplicação geral -, as diferenças de

recompensa simplesmente não podem, sem sentido algum, ser qualificadas

de justas ou injustas.

Hayeck (1991) reafirma a declaração de que seja a justiça um atributo

da conduta humana. A justiça pode, portanto, ser um atributo dos

resultados pretendidos da ação humana, mas não de circunstâncias

ocasionadas pelos homens de maneira não intencional. A conduta dos

indivíduos, nesse processo, pode perfeitamente ser justa ou injusta; mas,

como suas ações inteiramente justas terão para outros, conseqüência que

não foram nem pretendidas nem previstas, esses efeitos não se tornam,

dessa forma, justos ou injustos.

Referido autor salienta, ainda, que as pessoas tolerarão as grandes

desigualdades nas posições materiais se estiverem certas de que as

diferenças estabelecidas pelo sistema de mercado decorre das diferenças

de mérito entre os indivíduos. Daí surge a concepção liberal clássica de

justiça, de John Locke e seus contemporâneos, segundo os quais apenas “o

modo como a concorrência era realizada, não seus resultados”, é que podia

ser justo ou injusto. Na ordem de mercado (sociedade fundada na livre

iniciativa) é importante que os indivíduos acreditem que seu bem-estar

depende, em essência, de seus próprios esforços e decisões. Essa crença

gera uma confiança exagerada na verdade dessa generalização e ocorrerá

um desconforto quando entre indivíduos igualmente hábeis, uns vencerem e

outros fracassarem. (HAYECK, 1991, p. 94)

Hayek (1991) ainda esclarece que uma fonte de concepção do que

seja justo ou injusto no que diz respeito às remunerações determinadas pelo

mercado é a idéia de que os diferentes serviços têm um ‘valor social’,

através do qual se diferenciam. Mostra o engano e o pouco sentido que

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existe em afirmar que um lutador de boxe ou um canto de música popular

têm maior valor social que um violinista talentoso ou bailarino se os

primeiros prestam serviço a milhões e os últimos a uma minoria.

As remunerações que os indivíduos ou grupos recebem no mercado

são, pois, determinadas pelo valor que têm esses serviços para quem os

recebe e não por um fictício ‘valor social’. A questão principal não é que o

povo não tenha, na maioria dos casos, qualquer idéia dos valores que têm

as atividades de um homem para seus semelhantes, e que, portanto, o uso

do poder governamental seria determinado por seus preconceitos. É, antes,

que ninguém conhece esses valores, exceto na medida em que o mercado

lhe informa. É verdade que nossa avaliação das atividades específicas

difere, muitas vezes, do valor a elas conferido no mercado; e expressamos

esse sentimento dizendo que isso é injusto.

Não há prova que nos permita descobrir o que é ‘socialmente injusto’

porque não há um sujeito pelo qual essa injustiça possa ser cometida, nem

normas de conduta individual cuja observância na ordem de mercado

pudesse assegurar aos indivíduos e grupos uma posição que como tal nos

parecesse justa. A expressão ‘justiça social’ não pertence à categoria do

erro, mas à do absurdo, como a expressão ‘uma pedra moral’.

2.1 ‘Justiça social’ sob a égide do direito

Neste ponto indica Hayek (1991) que, para que se produza ‘justiça

social’, deve-se exigir dos indivíduos que obedeçam não apenas a normas

gerais, mas a exigências específicas dirigidas unicamente a eles.

Nenhum padrão específico de distribuição pode ser alcançado

fazendo-se com que os indivíduos obedeçam a normas de conduta. Tal

consecução impede, que os vários indivíduos ajam com base em seu próprio

conhecimento e a serviço de seus próprios fins, o que é a essência da

liberdade, exigindo, ao contrário, que eles sejam compelidos a agir da

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Page 32: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

maneira que, segundo o conhecimento da autoridade dirigente, é necessária

à realização dos fins por ela escolhidos.

A justiça distributiva pretendida pelo socialismo é, pois, incompatível

com o estado de direito e com a liberdade individual, a que este se destina a

garantir. As normas da justiça distributiva não podem ser normas para a

conduta com relação a iguais, devendo ser necessariamente normas para a

conduta de superiores com relação a seus subordinados.

Não há razão para que, numa sociedade livre, o governo não garanta

a todos proteção contra sérias privações sob a forma de uma renda mínima

garantida, ou um nível abaixo do qual ninguém precise descer.

3 A sociologia do direito segundo Durkheim

Segundo Castro (1998), a sociologia jurídica surgiu na metade do

século XIX, quando do advento da própria sociologia. Embora pareça tão

evidente, não o é. A sociologia dá uma marca diferente ao interesse

científico no direito, bem diferente daquilo que a anterior tradição européia

havia pensado acerca da relação entre sociedade e direito.Na transição do

Século XVIII ao XIX, a tradição doutrinária européia desmorona, surgindo

daí a sociologia. Para aquela, a relação entre direito e sociedade era mais

concreta. Assim o direito sempre era tido como um dado, na base das

associações humanas. Ele é intrínseco à natureza dessas associações,

intimamente ligado a outros caracteres da sociedade, à amizade e à

dominação.

O direito natural preparara a interpretação sociológica do direito, em

sua última etapa, como direito racional, valendo-se para isso do contrato. O

homem é tido como o sujeito e o contrato como categoria mediante a qual o

conjunto social da vida humana pode ser analisado como disponível e como

contingente, qualquer que seja o seu aspecto.

A sociologia, se cotejada ao direito natural, enxerga a relação entre

sociedade e direito como indissociável, mas de maneira abstrata. Pode até

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Page 33: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

admitir a tese de que toda sociedade deve possuir um ordenamento jurídico,

porém a tese de que, em função disso, algumas normas seriam igualmente

válidas para todas as sociedade é inadmissível.

Para auferir uma noção dos pressupostos do raciocínio, das limitações

da sociologia clássica do direito e do seu estilo, interessante é análise

sintética da sociologia jurídica sob a ótica de Durkheim (1983) que indica,

de modo polêmico, as bases não contratuais do contrato. A difusão de

ordenamentos contratuais em sociedades diversificadas através da divisão

do trabalho não modifica o fato de que o direito , como regra moral, é

expressão da solidariedade de uma sociedade. A solidariedade seria

condicionada pela diferenciação social e se transformaria paralelamente ao

desenvolvimento da sociedade.

Durkheim (1983) diz que o social é coercitivo, o direito é símbolo da

solidariedade social. A distinção entre direito público e direito privado

apresenta somente uma finalidade prática, distinguindo apenas o direito não

privilegiado do direito privilegiado do Estado.

Durkheim (1983) distingue dois tipos de solidariedade: a solidariedade

mecânica e a solidariedade orgânica. Aquela caracteriza a sociedade

segmentária, na qual o direito se faz acompanhar de sanções repressivas

(direito penal). A segunda caracteriza a sociedade diferenciada, em que

junto ao direito vêm as sanções restitutivas, corrigindo o ato desviado ou

anulando seus efeitos.

4 A ordem jurídica e econômica de Weber

Weber (1991) identifica três bases do Direito: costumes, carisma e lei.

Dentro da regularidade da conduta social podemos descobrir usos e

costumes. Os usos quando gozam de muita eficácia tornam-se costumes. A

dedicação ao líder e a confiança nele, pelas suas qualidades, garantiram e

solidificaram-lhe a autoridade. A crença na autoridade de normas

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Page 34: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

estabelecidas de modo racional criou condições para a cristalização do

poder e a garantia de obediência.

O direito não é espontâneo, mas construído pelos juristas. A

fundamentação e a sistematização do direito, para Weber (1991), está na

formação do jurista e na orientação do pensamento jurídico.

No decorrer do desenvolvimento social seria possível uma

socialização da propriedade, a qual afastaria a satisfação das necessidades

(distribuição) das decisões na produção (planejamento), trocando o direito

objetivado, ligado a interesses (classistas), pela racionalidade.

Weber (1991) visa um desenvolvimento progressivamente

diferenciador e automatizador do complexo de normas jurídicas, isto é,

liberta do entrosamento com outras estruturas sociais, marcando-as com

precisão no interesse de funções específicas. Assim, são ultrapassados

elementos do arbítrio pessoal na aplicação do direito e liames a costumes e

concepções de moral inerentes a pequenos grupos, tradicionalmente

transmitidos, ininteligíveis a estranhos.

5 Relação entre Durkheim e Weber

Ao analisarmos a relação entre economia e justiça social é impossível

abstrair do contexto sócio-político e cultural, do ambiente em que vivemos,

trabalhamos e construímos os nossos sonhos, crenças e, por que não,

nossos preconceitos que acabam impactando em nosso comportamento

individual e coletivo. Essa visão da economia como fator estruturador das

relações sociais, presente nas análises sociológicas de Durkheim e Weber,

passou a ser crescentemente questionada a partir de posturas críticas,

sobretudo na segunda metade do século passado. Autores como Friedmann,

Naville e Touraíne, críticos do modelo clássico do operário industrial,

alienado e desqualificado, apontaram para as contradições e conflitos

profundos decorrentes da condição existencial de ser trabalhador em um

mundo dominado pelo capital.

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Page 35: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

Segundo Pinheiro (2000), as posições teóricas de Weber e Durkheim

não podiam fazer justiça ao direito, pois o alicerce para uma teoria

sociológica autônoma consolidar-se-ia precisamente em torno desse

problema. O utilitarismo, em virtude de sua posição de interesse naturalista-

individualista, não teria capacidade para resolver o problema de

"agregação" de valores sociais. Durkheim contrapôs a isso a tese da

realidade objetiva das normas sociais. A compreensão da relação geral

entre normas e interesses, provavelmente possibilitadas pela visão

materialista da sociedade e pela interpretação gestáltico-ideográfica da

história foi contraposta por Weber por uma análise da ação social e tipos

ideais formados com base nessa análise.

Uma fonte das regularidades sociais reside para Weber no respeito às

convenções sociais, definidas como um “ ‘costume’ que, no interior de

determinado círculo de pessoas, é tido como ‘vigente’ e está garantido pela

reprovação de um comportamento discordante”, a noção importante aqui, e

que distingue a convenção da tradição, sendo a reprovação social. O ator

social é obrigado a se conformar a determinada convenção social se ele não

quer sofrer as conseqüências do “boicote social ”. Esta influência da

convenção social não é sentida somente nas classes altas da sociedade,

mas também na esfera econômica. Em particular, no mercado, existe uma

“desaprovação social da mercabilidade de determinadas utilidades ou da

livre luta de preços e de concorrência para determinados objetos de troca ou

para determinados círculos de pessoas” (WEBER, 1991, p. 21 e 50).

Por um lado, Weber não parece ter desenvolvido uma análise

sistemática do papel das normas sociais, ou convenções, na economia

moderna, em particular na regulação do mercado. Ele se limitou, em

diversas partes de Economia e Sociedade, a abordar rapidamente e

indiretamente este tema. Veremos assim, quando abordaremos a relação

entre mercado e direito, que este ultimo tem um papel regulador menos

importante do que as convenções ou que ele só é respeitado em função de

uma convenção social que reprova a desobediência civil. Em outros

momentos, ele parece negar a influência das normas sociais. Assim, ele

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Page 36: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

define o mercado “ livre ” como sendo um mercado “não comprometido por

normas éticas” (1991, p. 420). Segundo ele, a única ética existente no

mercado é o respeito da palavra dada, sem o qual as transações financeiras

na bolsa, por exemplo, seriam impossíveis. É esta dificuldade de toda

regulamentação ética do mercado que explicaria a antipatia profunda tanto

da religião católica quanto do protestantismo luterano com relação ao

capitalismo.

Para Trigilia (2002), Weber faz referência ao principio do “ preço justo

”, mas para mostrar que ele faz parte do passado, na medida em que ele

caracteriza a ética econômica medieval. De maneira geral, Weber opõe o

espírito do capitalismo moderno e o espírito do tradicionalismo econômico,

este ultimo sendo caracterizado por um forte componente ético. Nele, os

diversos aspectos da produção, da distribuição e do consumo são definidos

por convenções sociais, geralmente legitimadas pela religião.

Referido autor comenta que, de fato, Weber considera que o mercado

moderno representa “relações impessoais” entre os seres humanos. Como

ele é dominado por interesses materiais individuais, ele é contrario a toda

“confraternização” , à “piedade”, à “comunidade”. Pelo contrário, as relações

comunitárias representam “obstáculos” para o desenvolvimento do mercado.

É justamente quando sumiu o dualismo ético, ou seja, quando foi superada

a oposição entre ética interna baseada na reciprocidade e ética externa

aberta ao lucro, que o mercado pôde se desenvolver.

Esta ameaça pode ter um impacto econômico sério: Weber, em sua

analise das seitas protestantes na sociedade americana, mostra até que

ponto a exclusão de uma seita é economicamente penalizadora para o

indivíduo, na medida em que a falta de confiança que ele inspira nos outros

dificulta sua obtenção de créditos.

Por outro lado, apesar de reconhecer a importância da busca do

interesse para explicar o comportamento do ator econômico, Weber não cai

na armadilha do pensamento liberal, pois ele não deixa de apontar para o

papel norteador das idéias: “ são interesses (materiais e morais) e não

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Page 37: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

idéias que comandam imediatamente o agir dos homens. No entanto, as

visões do mundo criadas por ‘idéias’ freqüentemente orientaram as ações

humanas sobre as vias determinadas pelo dinamismo dos interesses ”, ou

seja nossa ‘visão do mundo’ acaba condicionando nossos interesses

(WEBER, 1920, pp.18-19). De fato, toda sua obra empenha-se em mostrar

que os interesses, e os meios adequados para satisfazê-los, são situados

socialmente e historicamente, na medida em que eles devem ser legitimados

pelos valores existentes na sociedade. Assim, hoje, a economia de mercado

só existe e se mantém no quadro de uma sociedade que incentiva a busca

racional do lucro e onde reina uma certa ética do trabalho. Neste sentido,

não se pode pensar que os interesses sejam os únicos elementos

explicativos do comportamento do ator econômico e do funcionamento do

mercado, pois os interesses precisam dos valores para a formulação de

seus objetivos e para a legitimação dos meios empregados para persegui-

los.

Considerações éticas entram na sociologia econômica de Weber

também quando ele distingue entre racionalidade formal da economia e

racionalidade material. A “ racionalidade formal ” de uma atividade

econômica tem a ver com “o grau de cálculo tecnicamente possível e que

ela realmente aplica”, ou seja, uma atividade econômica será considerada

como ‘formalmente racional’, na medida em que suas ‘previdências’ podem

ser quantificadas. Neste sentido, o calculo monetário representa “ o meio

formalmente mais racional de orientação da ação econômica”. A economia

moderna é o arquétipo da atividade econômica formalmente racional, na

medida em que ela é orientada para o lucro, que supõe “uma forma peculiar

de cálculo em dinheiro: o cálculo de capital”. O segundo tipo de

racionalidade significa que é possível avaliar a atividade econômica sob

outros pontos de vista. Exigências éticas, políticas, de classe, igualitárias,

etc., podem ser mobilizadas para apreciar a atividade econômica no quadro

de uma racionalidade em valor ou de uma racionalidade material em

finalidade. Neste sentido, a racionalidade material avalia os resultados da

atividade econômica, em termos de repartição dos bens entre os diversos

grupos sociais, ou de hierarquia social, ou de outros critérios de valor.

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Page 38: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

Weber precisa que estas duas formas de racionalidade “discrepam, em

principio, em todas as circunstâncias”, mesmo se a coincidência pode

ocorrer ocasionalmente (WEBER, 1991, p. 52, 53 e 68).

Ainda de acordo com Trigilia (2002, p. 191),

a distinção entre estas duas formas de apreciação é delicada e pouco explicita em Weber; ela corresponde a duas maneiras segundo quais os valores podem intervir. No caso de uma apreciação materialmente racional em finalidade, trata-se de uma ação (intelectual) racional em finalidade, mas baseada num critério axiológico (exigência política, ética, etc.), enquanto no outro caso não se leva em conta as conseqüências da ação, como em qualquer ação racional em valor.

Durkheim insiste no estado de anarquia de uma sociedade cuja esfera

econômica não está regulada moralmente (1995 e 1983). De maneira mais

ampla, a sociologia durkheimiana aborda o tema das regras morais na vida

econômica graças à noção de anomia, isto é, ausência de regras morais.

Uma parte da análise de Durkheim com relação à importância das regras

morais na economia é excessivamente normativa, como quando ele lamenta

as conseqüências mórbidas de sua ausência, no caso da divisão do

trabalho, por exemplo, e afirma: “não é possível (que) exista função social

sem disciplina moral” (1983, p. 10). Este aspecto da teoria durkheimiana é

bem conhecido, e não vamos poder desenvolvê-lo aqui. No entanto, ele faz

algumas observações empíricas interessantes que mostram que a moral não

é tão ausente assim da vida econômica, mesmo na sociedade moderna. Ele

analisa particularmente a “ moral profissional ” (ver as primeiras Lições de

Sociologia), mas aborda também o tema do mercado. Neste sentido, não se

pode opor a sociedade tradicional, caracterizada por uma forte consciência

coletiva, e a sociedade moderna, cuja solidariedade derivaria somente das

interdependências nascidas da divisão do trabalho. Com efeito, a

especialização profissional e os contratos têm uma “moralidade intrínseca”,

na medida em que “somos pegos numa rede de obrigações de que não

temos o direito de nos emancipar” (1995, pp. 218 e 219).

Em primeiro lugar, o papel das regras morais é de permitir a

passagem do nível micro ao nível macro, ou seja, de realizar a adequação

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Page 39: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

entre os interesses individuais e os interesses coletivos, como vimos

anteriormente.

Em segundo lugar, as regras morais são fundamentais para a

estabilidade da sociedade contratual. Durkheim mostra a origem religiosa do

respeito dos contratos e da propriedade privada, através as palavras e os

ritos religiosos. Mas hoje, no quadro de uma diminuição da fé, o que

assegura o respeito do contrato, instituição básica do mercado?

Obviamente, o direito obriga as partes interessadas, mas

fundamentalmente, o contrato é sagrado porque o indivíduo é sagrado.

Igualmente, é a emergência do individualismo que explica o caráter sagrado

da propriedade individual, outra instituição fundamental da sociedade

mercantil. Originalmente, havia uma “religiosidade difusa nas coisas”.

Progressivamente, essa religiosidade passou a caracterizar as pessoas: “as

coisas deixaram de ser sagradas por si mesmas, já não tiveram esse caráter

senão indiretamente, pois dependiam das pessoas, estas sim, sagradas”

(1983, p. 156). A referência a uma esfera transcendente, sagrada, se

corporifica nos ritos, não somente verbais, como vimos no caso do

formalismo religioso, mas também manuais: ainda hoje, o aperto de mão ou

uma refeição/bebida compartilhada costumam selar os contratos. Talvez a

significação primitiva destes ritos se perdeu, mas a tradição se mantém

(1983). Assim, as regras morais permitem assegurar a confiança no

mercado, mesmo entre pessoas que não se conhecem diretamente, pelo

respeito aos mesmos valores fundamentais da sociedade moderna, ou seja,

os direitos do indivíduo.

Weber acrescenta que, “ independentemente desta crítica material do

resultado da gestão econômica, é também possível uma crítica ética,

ascética e estética tanto da atitude econômica quanto dos meios

econômicos” (1991, pp. 52-53; grifo do autor).

Finalmente, retomando a questão da legitimidade/princípio de justiça

no quadro do processo de regulação social, percebemos que as regras

morais difundem também um principio de justiça, que orienta a vida

econômica de maneira geral, em particular que influencia o estabelecimento

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Page 40: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

dos contratos e dos preços. De fato, juntamente com o respeito do contrato,

o individualismo traz princípios novos, ou seja, as noções de livre

consentimento e, sobretudo, de contrato justo. “ Negligenciadas pelos

economistas, as ‘condições morais da troca’ requerem uma regulação do

mercado que não se limite a perseguir as fraudes e a fazer respeitar os

contratos, mas que aja eficazmente contra os desequilíbrios que acarretam

numa troca injusta e geram conflitos colocando em perigo as próprias

atividades econômicas ” (TRIGILIA, 2002, p. 79). Por um lado, ninguém

pode ser obrigado a assinar um contrato, por outro lado, o contrato não

deve prejudicar nenhuma parte.

Aqui Durkheim refere-se a um aspecto psicológico, os sentimentos de

simpatia que os seres humanos sentem com relação ao outro, mas que

expressa uma norma social, ou seja, o respeito do indivíduo, típica da

sociedade moderna. “Há, nessa exploração do homem pelo homem (...),

algo que nos ofende e nos indigna” (1983, p. 192). No quadro deste respeito

para os direitos individuais, a consciência social se rebela contra os

contratos injustos, o que pode diminuir a pressão para que ele seja

respeitado. “Reprovamos todo contrato leonino, isto é, todo contrato que

favoreça indevidamente uma parte em detrimento da outra; por conseguinte,

julgamos que a sociedade não está obrigada a fazê-lo respeitar” (id, p. 192-

193). Durkheim reconhece que estes julgamentos morais ainda não

influenciaram devidamente o direito, mas mostra que um progresso nítido

pode ser sentido no caso do mercado do trabalho, onde uma série de

medidas, efetivas ou propostas, como o salário mínimo, o seguro doença, a

aposentadoria, etc, estão começando a “ tornar menos injusto o contrato de

trabalho ” (id, p. 193).

Weber não concordaria com Durkheim, na medida em que, como

vimos, ele considera o mercado como uma esfera onde reina interesses

impessoais e contrários a toda ética fraterna.

Esta noção de contrato justo, ou eqüitativo, faz intervir uma noção

extremamente interessante em sociologia econômica, a noção de preço

justo. “É sabido, com efeito, a existência em cada sociedade, e em cada

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momento da historia, de um sentimento obscuro, mas vivo, do valor dos

vários serviços sociais, e das coisas envolvidas nas trocas” (DURKHEIM ,

1983, p. 191).

Por um lado, Durkheim faz referência ao mecanismo de formação dos

preços, mecanismo essencialmente social e não mercantil: “os preços

verdadeiros das coisas trocadas são fixadas anteriormente aos contratos,

bem longe de resultar deles” (id, p. 192).

Durkheim continua sua reflexão explicitando sua noção do valor dos

bens, que afasta-se da teoria do valor-trabalho da economia clássica e

marxista, e aproxima-se da noção de utilidade da economia neo-clássica:

não é a quantidade de trabalho posto numa coisa que lhe faz o valor a essa coisa, é a maneira pela qual essa coisa é estimada pela sociedade; e essa estimativa depende não tanto da quantidade de energia despendida quanto de seus efeitos úteis, tais, ao menos, como são sentidos pela coletividade. (id., p. 197).

Infelizmente, Durkheim não aprofunda este tema da ‘construção social

do preço’, escapando da dificuldade ao remeter a reflexão a um momento

mais oportuno. Por outro lado, ele mostra como as normas sociais, morais,

orientam o mercado, na medida em que a sociedade reprova o contrato

injusto, como acabamos de ver, ou seja, um contrato que prevê a

remuneração de bens ou serviços a um preço inferior ao seu valor, definido

socialmente, e que acaba, portanto prejudicando uma das partes. Neste

sentido, Durkheim teve o mérito de chamar a atenção para a influência da

ética no mercado, que pode em certos casos revelar-se mais forte do que a

pura lógica econômica. No entanto, podemos lamentar que ele não tenha

aprofundado sua análise, deixando uma teoria da avaliação social pouco

consistente.

6 A contribuição da economia para a justiça social no Brasil

Canuto (2001) ensina que num passado recente, a pobreza e a

desigualdade extremadas que marcam a sociedade brasileira podiam ser

encaradas como uma conseqüência triste, mas inevitável, do atraso

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Page 42: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

econômico. O desenvolvimento com foco na industrialização, mais do que a

questão social empolgou o pensamento e a ação política progressistas no

Brasil desde a década de 1940. Na década de 1970, quando o "milagre

econômico" brasileiro combinou altas taxas de expansão industrial e

concentração de renda, o discurso oficial dizia que era preciso deixar

crescer, primeiro, para só depois repartir o bolo da riqueza nacional.

Referido autor adverte que esse tipo de racionalização, se algum dia

teve cabimento, perdeu legitimidade a partir da volta do Brasil à democracia,

no fim da década de 1980. Não apenas as demandas sociais passaram a se

expressar livremente. Além disso, o país começou a se dar conta de que

atingira um nível de desenvolvimento no qual já é possível fazer frente às

carências fundamentais da população, sem "nivelamento por baixo" nem

grandes traumas políticos. O que é chocante para os brasileiros hoje não é

apenas a pobreza, mas, sobretudo a exclusão: o contraste entre a relativa

prosperidade de quem consegue se inserir na que é hoje uma das dez

maiores economias industriais do mundo, e o desamparo dos que não se

encaixam ou só se encaixam precariamente nessa economia, como

produtores e consumidores.

O hiato econômico-tecnológico com os países desenvolvidos persiste,

é verdade. Mas não parece tão intransponível quanto há cinqüenta anos.

Nem tão grande que sirva de desculpa para a persistência de um nível de

pobreza que já foi maior, mas ainda é imenso. Isto coloca a inclusão social,

tanto quanto o desenvolvimento econômico, no centro da agenda política

brasileira na virada do milênio.

Singer e Souza (2000) descrevem que a atual situação econômica e

social do país desafia duplamente o Estado no que diz respeito às políticas

sociais: se, até o momento, há um divórcio entre as políticas econômicas e

sociais, a ponto de serem antagônicas, de outro lado as modificações da

realidade social demandam do Estado a reformatação das tradicionais

políticas sociais e a formulação de novas políticas setoriais, que enfrentem

a fragmentação e pulverização social provocadas e/ou aprofundadas pelas

próprias políticas econômicas que vêm sendo implementadas.

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Page 43: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

Referidos autores acrescentam que, neste cenário, sob diversos

títulos -- economia solidária, economia social, socioeconomia solidária,

humanoeconomia, economia popular, economia de proximidade etc --, têm

emergido, no Brasil, práticas de relações econômicas e sociais que, de

imediato, propiciam a sobrevivência e a melhora da qualidade de vida de

milhões de pessoas em diferentes partes do mundo. Mas seu horizonte vai

mais além. São práticas fundadas em relações de colaboração solidária,

inspiradas por valores culturais que colocam o ser humano como sujeito e

finalidade da atividade econômica, em vez da acumulação privada de

riqueza em geral e de capital em particular. As experiências, que se

alimentam de fontes tão diversas como as práticas de reciprocidade dos

povos indígenas de diversos continentes e os princípios do cooperativismo

gerado em Rochdale, Inglaterra, em meados do século XIX, aperfeiçoados e

recriados nos diferentes contextos socioculturais, ganharam múltiplas

formas e maneiras de expressar-se. Apesar dessa diversidade de origem e

de dinâmica cultural, a valorização social do trabalho humano, a satisfação

plena das necessidades de todos como eixo da criatividade tecnológica e da

atividade econômica, o reconhecimento do lugar fundamental da mulher e

do feminino numa economia fundada na solidariedade, a busca de uma

relação de intercâmbio respeitoso com a natureza e os valores da

cooperação e da solidariedade parecem ser pontos de convergência.

A economia solidária, nas suas diversas formas, é um projeto de

desenvolvimento destinado a promover as pessoas e coletividades sociais a

sujeito dos meios, recursos e ferramentas de produzir e distribuir as

riquezas, visando a suficiência em resposta às necessidades de todos e o

desenvolvimento genuinamente sustentável. O valor central da economia

solidária é o trabalho, o saber e a criatividade humanos e não o capital-

dinheiro e sua propriedade sob quaisquer de suas formas. Ao acolher e

integrar de uma só vez cada pessoa e toda a coletividade, a economia

solidária resgata a dimensão feminina que está ausente da economia

centrada no capital e no Estado. Sendo a referência da economia solidária

cada sujeito e, ao mesmo tempo, toda a sociedade, concebida também

como sujeito, a eficiência não pode limitar-se aos benefícios materiais de

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um empreendimento, mas se define também como eficiência social, em

função da qualidade de vida e da felicidade de seus membros e, ao mesmo

tempo, de todo o ecossistema. (FÓRUM SOCIAL MUNDIAL, 2002)

A economia solidária é um poderoso instrumento de combate à

exclusão social, pois apresenta alternativa viável para a geração de trabalho

e renda e para a satisfação direta das necessidades de todos, provando que

é possível organizar a produção e a reprodução da sociedade de modo a

eliminar as desigualdades materiais e difundir os valores da solidariedade

humana. A economia solidária é também um projeto de desenvolvimento

integral que visa a sustentabilidade, a justiça econômica e social e a

democracia participativa. Assentada em redes de colaboração solidária

entre os diferentes setores da sociedade organizada, ela exige o

compromisso dos poderes públicos com a democratização do poder, da

riqueza e do saber, e estimula a formação de alianças estratégicas entre

organizações populares para o exercício pleno e ativo dos direitos e

responsabilidades da cidadania, exercendo sua soberania por meio da

democracia e da gestão participativa.

Para Arruda (1997), a organização socioeconômica da economia

solidária exige o respeito à autonomia dos empreendimentos e organizações

dos trabalhadores, sem a tutela de Estados centralizadores e longe das

práticas cooperativas burocratizadas, que suprimem a participação direta

dos cidadãos trabalhadores. A economia solidária, em primeiro lugar, exige

a responsabilidade dos Estados nacionais pela defesa dos direitos

universais dos trabalhadores, que as políticas neoliberais pretendem

eliminar. Ademais, preconiza um Estado democraticamente forte,

empoderado a partir da própria sociedade e colocado ao serviço dela,

transparente e fidedigno, capaz de orquestrar a diversidade que a constitui

e de zelar pela justiça social e pela realização dos direitos e das

responsabilidades cidadãs de cada um e de todos. Um tal Estado precisa

atuar em dois níveis. Por um lado, garante, protege e promove um projeto

próprio e democrático de desenvolvimento socioeconômico e humano,

construído a partir e com a participação da sociedade civil do nível local e

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Page 45: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

até o nacional; e, por outro, se relaciona de forma cooperativa e solidária

com outras nações, promovendo a complementaridade de recursos e

interesses, e buscando instituir uma comunidade internacional centrada nos

valores da cooperação, da complementaridade, da reciprocidade e da

solidariedade. O valor central aqui é a soberania nacional num contexto de

interação respeitosa com a soberania de outras nações. O Estado

democraticamente forte é capaz de promover, mediante do diálogo com a

Sociedade, políticas públicas que fortalecem a democracia participativa, a

democratização dos fundos públicos e dos benefícios do desenvolvimento.

Enfim, nascida, sobretudo entre os excluídos dos Estados de bem

estar material, sem acesso aos bens produtivos, aos mercados, à tecnologia

e ao crédito, a economia solidária revela o potencial de ser um paradigma

de outra globalização, que demonstra que outro mundo é possível. Ao

mesmo tempo que reconhecemos todas estas capacidades propositivas da

economia solidária, entendemos que é necessário unificar esforços e

articular ações conjuntas para fazer avançar este projeto.

7 Aspectos sobre direito e economia

Arruda (1997) antecipa que a globalização é um fenômeno que tem

economistas e profissionais do direito como alguns dos seus principais

atores, na medida em que é um processo caracterizado pela integração

econômica internacional e que, diferentemente do processo de integração

do século XIX, é cada vez mais regulamentado e dependente de contratos.

Contratos e regulamentações que envolvem essencialmente economistas e

profissionais do direito. Dentro de cada país, também, a busca de um

modelo econômico capaz de produzir uma integração competitiva na

economia mundial tem levado à crescente interação entre o direito e a

economia, como refletido no aumento da regulação e no uso mais intenso

dos contratos como forma de organizar a produção, viabilizar o

financiamento e distribuir os riscos. Em particular, as reformas dos anos 90

-- privatização, abertura comercial, desregulamentação e reforma

regulatória, na infra-estrutura e no sistema financeiro – deram grande

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Page 46: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

impulso tanto à integração do Brasil na economia mundial como ao volume

de regulação e à utilização de contratos.

Há várias formas de pensar a relação entre o direito e a economia no

contexto da globalização. Usualmente, e o Brasil não é exceção, economia e

direito interagem em torno de temas relativos ao que se convencionou

chamar de direito econômico, envolvendo questões de antidumping, antitrust

e comércio internacional. Ainda que calcada em conceitos e evidências

microeconômicas, a abordagem utilizada neste capítulo tem uma

preocupação mais macroeconômica. Em particular, o que se faz aqui é

discutir as conseqüências da qualidade das instituições jurídicas para o

crescimento econômico de um país.

Instituições estas que variam muito de um país para o outro, na sua

forma e na sua qualidade, o que, em um mundo globalizado, tem

conseqüências relevantes para o desempenho das economias nacionais.

Essas diferenças ficam evidentes, por exemplo, em estudo patrocinado pelo

Banco Mundial, e que contou com a participação das associações de

escritórios de advocacia Lex Mundi e Lex Africa, que compara a qualidade

dos sistemas legais e judiciais de 109 países, através da análise comparada

de dois casos relativamente homogêneos: o despejo de um inquilino e a

cobrança de um cheque. Esse estudo mostra, com uma profusão de

indicadores, que mesmo causas tão homogêneas como essas podem ter

tratamentos muito diferentes nos vários países, seja em termos da sua

regulamentação, seja na prática do judiciário, vale dizer, no seu curso pela

justiça. Em particular, o tempo requerido em média para uma definição

desses casos e as formas em que esses processos correm na justiça,

notadamente em termos processuais, podem variar significativamente de um

país para outro. (ARRUDA, 1997)

Referido autor acrescenta que existem também estudos que analisam

empírica e conceitualmente como direito e economia interagem

diferentemente nos sistemas de civil e common law, não apenas indicando

que o primeiro protege mais fracamente os direitos de propriedade privados,

mas também avaliando as implicações práticas dessas diferenças para o

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Page 47: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

crescimento e o desenvolvimento econômico dos países. Pode-se citar

ainda como evidência da influência dos sistemas legal e judicial sobre o

desempenho de uma economia as várias medidas de risco país produzidas

pelas agências de rating, que incluem uma avaliação das instituições

jurídicas do país, e da garantia que estas provêem aos direitos de

propriedade. O rating de risco soberano, por sua vez, influi no custo de

captação externa e nas taxas de juros domésticas, e através destas no

volume de crédito, no investimento, no crescimento e assim por diante.

É partindo dessa percepção que organizações como o Banco Mundial

e o BID preconizam que a reforma do judiciário deve ocupar um papel de

destaque na nova rodada de reformas que se faz necessária para dotar as

economias em desenvolvimento e em transição de instituições que

sustentem o bom funcionamento do mercado. De fato, se um bom judiciário

é importante para o adequado funcionamento de qualquer economia, mais

ainda o é para uma que acaba de passar pelas reformas que foram

adotadas no Brasil e na maior parte do mundo não desenvolvido na última

década. Isto porque, com a privatização, o fim de monopólios e controles de

preços e a abertura comercial muitas transações antes realizadas dentro do

aparelho de Estado, ou coordenadas por ele, passaram a ser feitas no

mercado. Sem o apoio de um bom judiciário, essas transações podem

simplesmente não ocorrer, ou se dar de forma ineficiente, exigindo que as

reformas sejam revertidas.

Assim, o judiciário é uma das instituições mais fundamentais para o

sucesso do novo modelo de desenvolvimento que vem sendo adotado no

Brasil e na maior parte da América Latina, pelo seu papel em garantir

direitos de propriedade e fazer cumprir contratos. Não é de surpreender,

portanto, que há vários anos o Congresso Nacional venha discutindo

reformas que possam tornar o judiciário brasileiro mais ágil e eficiente. O

que se verifica, não obstante, é que apenas recentemente se começou a

analisar e compreender as relações entre o funcionamento da justiça e o

desempenho da economia, seja em termos dos canais através dos quais

essa influi no crescimento, seja em relação às magnitudes envolvidas. Nota-

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Page 48: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

se, assim, que até aqui o debate sobre a reforma do judiciário ficou restrito,

essencialmente, aos operadores do direito – magistrados, advogados,

promotores e procuradores – a despeito da importância que essa terá para a

economia.

Mas será que, no mundo globalizado do século XXI, a relação entre

direito e economia é sempre de colaboração, de unidade de objetivos e

percepções, de forma que a tarefa de melhorar o funcionamento do

judiciário requer apenas esforço e dedicação? Ou há também um campo

importante de conflito entre os economistas e os profissionais do direito,

conflito que também contribui para comprometer o desempenho da justiça e

é, portanto, contrário aos melhores interesses do país e da sociedade?

Segundo Pinheiro (2002), na palestra de abertura do Congresso

promovido pela Academia Internacional de Direito e Economia, em junho de

2002, seu eminente presidente, o Dr. Arnoldo Wald, mencionava, por

exemplo, que o tempo da economia não é o tempo do direito.

Para Pinheiro (2002), a diferença entre a economia e o direito, e o

sistema de justiça em particular, vai além da questão do tempo ou da

questão que às vezes se menciona, de que a justiça olha mais para trás na

tentativa de reconstituir um estado anterior das artes, enquanto a economia

olha essencialmente para frente, tentando prever e “precificar”, para usar

um anglicismo hoje parte do economês nacional, o futuro. Neste sentido, é

útil refletir sobre uma perspicaz observação do professor George Stigler, da

Universidade de Chicago, que nota que:

Enquanto a eficiência constitui-se no problema fundamental dos economistas, a justiça é a preocupação que norteia os homens do direito (...) é profunda a diferença entre uma disciplina que procura explicar a vida econômica (e, de fato, todo o comportamento racional) e outra que pretende alcançar a justiça como elemento regulador de todos os aspectos da conduta humana. Esta diferença significa, basicamente, que o economista e o jurista vivem em mundos diferentes e falam diferentes línguas. (STIGLER, apud PINHEIRO, 2002, p. 22)

7.1 O Judiciário como Instituição Econômica

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Page 49: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

O ponto de partida conceitual para se entender a influência das leis e

do judiciário sobre o desempenho econômico pode ser encontrado na

economia neo-institucionalista, principalmente nos trabalhos de Ronald

Coase, Douglas North e Oliver Williamson, para ficar apenas nos autores

mais conhecidos. Vale a pena citar que há também um amplo conjunto de

trabalhos que mostram empiricamente a importância dos sistemas legais e

jurídicos na determinação da taxa de crescimento econômico. Ou seja, que

variações na qualidade dos sistemas legais e judiciais são importantes

determinantes do ritmo de crescimento e do desenvolvimento econômico

dos países. Esta seção discute essa literatura, analisando o judiciário

enquanto instituição econômica.

7.2 Como avaliar a qualidade do judiciário enquanto instituição econômica

A percepção de que o mau funcionamento do judiciário tem impacto

significativo sobre o desempenho da economia é relativamente recente, e

reflete o crescente interesse no papel das instituições enquanto

determinantes do desenvolvimento econômico (PINHEIRO e CABRAL,

1998). Este reconhecimento tardio, mas que ganha crescente atenção, não

é um mero acidente histórico. Pelo contrário, ele reflete o fato de que em

economias de mercado, como são cada vez mais as existentes em países

em desenvolvimento e em transição, as instituições econômicas são mais

importantes do que quando é o Estado que executa ou coordena a atividade

econômica, particularmente em setores em que contratos intertemporais são

a regra, como é o caso da infra-estrutura e do mercado de crédito. De fato,

é crescente o reconhecimento de que a qualidade das instituições explica

uma parcela importante das elevadas diferenças de renda entre países.

Como desenvolvido com mais detalhe na próxima seção, os problemas

com que se defronta o judiciário na maior parte dos países em

desenvolvimento e em transição prejudica o seu desempenho econômico de

várias maneiras: estreita a abrangência da atividade econômica,

desestimulando a especialização e dificultando a exploração de economias

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Page 50: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

de escala; desencoraja investimentos e a utilização do capital disponível,

distorce o sistema de preços, ao introduzir fontes de risco adicionais nos

negócios, e diminui a qualidade da política econômica.

Para se compreender essa influência, e para se avaliar a sua

importância quantitativa, é preciso antes definir indicadores que permitam

aferir a qualidade do desempenho do judiciário no que este se reflete sobre

o funcionamento da economia. Ou seja, necessita-se de um critério para

avaliar o que é um bom judiciário. Definições genéricas, como a que

estabelece que “um bom judiciário é aquele que assegura que a justiça seja

acessível e aplicada a todos, que direitos e deveres sejam respeitados,

além de aplicados com um baixo custo para a sociedade” (PINHEIRO e

CABRAL, 1998, p. 14), embora capturem a essência do problema, são de

difícil utilização.

Neste sentido, três alternativas são propostas na literatura. Pinheiro e

Cabral (1998, p.7) sugerem que o desempenho do judiciário seja avaliado

considerando-se os serviços que ele produz em termos de “garantia de

acesso, previsibilidade e presteza dos resultados, além de remédios

adequados”. Ou seja, focar a justiça enquanto uma entidade que presta

serviços para a sociedade, e considerar a qualidade dos serviços ofertados.

Isto permitiria não apenas estabelecer comparações entre diferentes

jurisdições, como também avaliar o desempenho de um determinado

judiciário, ou uma parte dele, ao longo do tempo. Além disso, associando-se

indicadores de “produção” aos custos incorridos pela justiça poderia se

derivar indicadores de eficiência, que também podem ser comparados com

benchmarks ou acompanhados no tempo.

Ainda que misturando insumos e produtos, em certo sentido é essa a

visão adotada pelo Banco Mundial em seu Relatório sobre o

Desenvolvimento Mundial de 1997, em que o Banco lista as três

características que a seu ver caracterizariam um bom judiciário:

independência; força, isto é, instrumentos para implementar suas decisões;

e eficiência gerencial. (PINHEIRO, 2000)

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Page 51: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

Referido autor acrescenta que o Banco defende a independência do

resto do governo como a mais importante das três, por ser essa essencial

para garantir que o executivo respeite a lei e responda por seus atos. A

efetividade do judiciário também depende, porém, da capacidade de

implementar suas decisões. Na prática isso significa dispor de suficiente

poder de coerção, não apenas em termos legais, mas também em termos de

recursos humanos e financeiros. Vale dizer, dispor de um número suficiente

de oficiais de justiça para apresentar decisões e documentos judiciais, para

confiscar e dispor de propriedade, etc. Obviamente, também um poder

policial eficiente é um elemento essencial para o bom funcionamento do

judiciário. A terceira condição necessária para que o judiciário seja eficaz é

que ele seja organizacionalmente eficiente, sem o que se dá uma grande

demora na solução de processos.

Em seu relatório o Banco nota que um processo leva em média 1500

dias para ser concluído em países como o Brasil e o Equador, contra

apenas 100 dias na França. Longas demoras aumentam os custos de

transação na resolução de disputas e podem bloquear o acesso ao judiciário

de potenciais usuários.

A dificuldade com essa metodologia é que a produção do judiciário

depende tanto da quantidade de serviços como de sua qualidade, sendo a

importância desta última maior do que em outros setores, e, além disso,

sujeita a grande subjetividade. É isto que torna atraente a sugestão de

Pinheiro (2000, p. 56), de que a qualidade do sistema judicial seja medida

pela freqüência com que os indivíduos recorrem ao sistema e não a

mecanismos concorrentes de resolução de conflitos e de aplicação da lei:

“Para ser competitivo, o sistema legal deve, sobretudo, se mostrar mais

atraente do que outros mecanismos, tipicamente privados de resolução de

conflitos e de imposição do estabelecido nos acordos”. Ou seja, pode-se

medir o desempenho do judiciário não pela sua produção, mas pela

demanda que se observa pelos seus serviços.

Essa forma de abordar a questão tem a vantagem de mostrar que o

impacto do mau funcionamento da justiça sobre a economia depende da

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Page 52: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

existência e da eficiência de outras instituições que competem com o

judiciário ou que tentam compensar as suas falhas. No primeiro grupo tem-

se formas alternativas de organizar a produção, através da verticalização,

de participações acionárias cruzadas, ou outras formas privadas de

ordenamento de contratos.

No segundo temos desde mecanismos formais como as câmaras de

arbitragem até sistemas de informação, como listas negras de

inadimplentes, que aumentam o custo de não cumprir um contrato. Mesmo

em economias com bons sistemas judiciais, muitas companhias se

especializam em coletar e vender informações referentes à capacidade de

crédito de pessoas e firmas. À medida que cai o custo de processamento de

tais informações, diminui o preço cobrado por serviços dessa natureza,

mesmo em países menos desenvolvidos. Tais serviços permitem às

empresas “proteger-se” dos impactos negativos do mau funcionamento da

justiça, negociando e firmando contratos de forma ampla e em termos

bastante impessoais.

No Brasil, dois mecanismos freqüentemente utilizados pelas firmas

para se protegerem do mau funcionamento da justiça são a resolução de

disputas por negociação direta e a cuidadosa seleção de parceiros de

negócios. Assim, 88% dos empresários entrevistados em pesquisa do Idesp

concordaram que “é sempre melhor fazer um mau acordo do que recorrer à

Justiça” (Pinheiro, 2000, p. 14). Além disso, nove em cada dez empresas

responderam que checar a reputação da outra parte no mercado e seu

comportamento pretérito como pagador, e favorecer clientes e fornecedores

conhecidos nas transações comerciais são procedimentos indispensáveis ou

pelo menos importantes em qualquer negócio.

Também com essa medida há, porém, um problema: o pouco uso do

judiciário pode refletir não o seu mau desempenho, mas a qualidade

superior de outros mecanismos de resolver conflitos e fazer com que os

contratos sejam respeitados. Uma maneira de corrigir para esse efeito é

utilizar um meio ainda mais indireto de avaliar o desempenho da justiça,

como o proposto por Williamson (apud PINHEIRO 2000, p. 181-2):

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O resultado é que se pode inferir a qualidade do judiciário de forma indireta: uma economia com alto desempenho (expresso em termos de governança) irá permitir mais transações em uma faixa intermediária [i.e. contratos de longo prazo estabelecidos fora de organizações hierarquizadas] do que uma economia com um judiciário problemático. Em outros termos, numa economia com baixo desempenho a distribuição das transações tende se mostrar mais bi-modal – com transações em mercados a vista ou dentro de hierarquias e menos transações na faixa intermediária.

Pinheiro (2000) desenvolve um modelo que permite avaliar o impacto

da qualidade dos serviços fornecidos pelo judiciário (ou outro mecanismo de

solução de disputas) sobre a utilidade das partes e, portanto, sobre a sua

propensão a litigar. A utilidade esperada de recorrer à justiça depende,

positivamente, do valor líquido que se espera receber e, negativamente, da

variância desse ganho, que reflete a incerteza quanto a ganhar ou perder a

disputa e ao tempo até que uma decisão seja tomada. Assim, a utilidade

advinda da utilização de um mecanismo específico de resolução de

conflitos, como o judiciário, é uma função do valor do direito em causa, dos

custos envolvidos, da rapidez com que uma decisão é alcançada, da

imparcialidade do árbitro, da taxa de juros (ou, mais precisamente, da taxa

de desconto intertemporal), e da previsibilidade das decisões e do tempo

até que estas sejam alcançadas.

Neste sentido, um sistema que funciona bem deve ostentar quatro

propriedades: baixo custo e decisões justas, rápidas e previsíveis, em

termos de conteúdo e de prazo.

O custo esperado de recorrer ao judiciário (ou a outras formas de

resolução de disputas) não depende apenas das taxas pagas à justiça, ms

também das despesas incorridas durante o processo de litígio, da

probabilidade de se vencer (probabilidade que pode ela própria depender do

quanto é gasto) e de como os custos do litígio são distribuídos entre quem

ganha e quem perde a causa. Custas judiciais elevadas, advogados caros e

um sistema judicial com problemas de corrupção tendem a encorajar as

partes a usarem mecanismos alternativos de resolução de disputas ou

simplesmente a não iniciarem um litígio.

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Page 54: JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL EM WEBER E DURKHEIM  -----  (Maérlio Machado)

As decisões são previsíveis quando a variância ex-ante do ganho

líquido de custos é pequena. Note-se que essa variância é formada tanto

pela variância do resultado em si (isto é, perde ou ganha), como do tempo

necessário para se alcançar uma decisão. Ambas representam fatores

indesejáveis e atuam para desencorajar o recurso ao judiciário. A

previsibilidade é alta quando a capacidade de se vencer se aproxima de

zero ou um e a variância do tempo gasto para se tomar a decisão é

pequena. Os tribunais podem ser imprevisíveis porque as leis e/ou contratos

são escritos precariamente, porque os juizes são incompetentes ou mal

informados, ou porque as partes se mostram inseguras em relação ao tempo

que será necessário aguardar até que uma decisão seja tomada. Métodos

alternativos de resolução de conflitos podem ser preferidos,

conseqüentemente, não só porque são mais rápidos, mas também porque

os árbitros podem estar mais bem preparados para interpretar a questão em

disputa. (PINHEIRO e CABRAL, 1998)

Um sistema de resolução de conflitos caracteriza-se como justo

quando a probabilidade de vitória é próxima a um para o lado certo e a zero

para o lado errado. A parcialidade é claramente ruim, e difere da

imprevisibilidade porque distorce o sentido da justiça de uma forma

intencional e determinista. Os tribunais podem ser tendenciosos devido à

corrupção, por serem politizados (favorecendo a certas classes de litigantes,

como membros da elite, trabalhadores, devedores, residentes, etc.), ou por

não gozarem de independência frente ao Estado, curvando-se à sua

vontade quando o governo é parte na disputa. A importância da

imparcialidade de um sistema judicial que funcione adequadamente é assim

assinalada por North (citado por PINHEIRO, 2000, p.8):

De fato, a dificuldade em se criar um sistema judicial dotado de relativa imparcialidade, que garanta o cumprimento dos acordos, tem-se mostrado um impedimento crítico no caminho do desenvolvimento econômico. No mundo ocidental, a evolução dos tribunais, dos sistemas legais e de um sistema judicial relativamente imparcial tem desempenhado um papel preponderante no desenvolvimento de um complexo sistema de contratos capaz de se estender no tempo e no espaço, um requisito essencial para a especialização econômica.

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Quando a justiça é lenta, o valor esperado do ganho ou da perda das

partes será tão mais baixo quanto maior for a taxa de juros. O insucesso em

se produzir decisões com presteza é freqüentemente citado como um

importante problema dos sistemas judiciais em todo o mundo. Isto, por sua

vez, causa dois tipos de problemas inter-relacionados. Por um lado, a

morosidade reduz o valor presente do ganho líquido (recebimento esperado

menos os custos), significando que o sistema judicial só em parte protege

os direitos de propriedade. Em economias com inflação alta, se os tribunais

não adotarem mecanismos de indexação adequados, o valor do direito em

disputa pode despencar para zero com bastante rapidez.

Pode haver, assim, uma tensão entre conciliar justiça e eficiência,

quando se procura ao mesmo tempo alcançar decisões rápidas, bem

informadas, que permitam amplo direito de defesa e que ao mesmo tempo

incorram em custos baixos.

Pesquisa nacional junto a médios e grandes empresários realizada

pelo IDESP (Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São

Paulo, citado por PINHEIRO, 2000) mostra que no Brasil a morosidade é o

principal problema do judiciário: 9 em cada 10 entrevistados consideraram a

justiça ruim ou péssima nesse quesito. A avaliação é negativa também em

relação aos custos de acesso, ainda que menos do que a respeito da

agilidade, e levemente positiva em relação à imparcialidade das decisões

judiciais. A duração média até uma decisão judicial dos litígios em que as

empresas se viram envolvidas ilustra o problema da morosidade: 31 meses

na Justiça do Trabalho, 38 meses na Justiça Estadual e 46 meses na

Justiça Federal.

Referido autor acrescenta que as empresas têm, porém, um

relacionamento ambíguo com a lentidão da justiça. Assim, nem sempre a

demora em obter uma decisão é prejudicial às empresas: nas causas

trabalhistas, um quarto delas apontaram que, pelo contrário, ela é benéfica,

sendo que somente 44,2% dos entrevistados indicaram que a lentidão da

Justiça do Trabalho é algo prejudicial.

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Isso decorre de muitas firmas se valerem da morosidade dos tribunais

do trabalho para pressionarem os trabalhadores a aceitarem um arranjo

negociado em disputas financeiras, o que ajuda a entender porque quase

metade dos litígios na área trabalhista, de longe os mais freqüentes na vida

das empresas, é concluída por acordo entre as partes, o que também não é

incomum em causas comerciais (24% dos casos). Embora menos

pronunciado, um resultado similar foi observado nas questões relacionadas

a tributos, direitos do consumidor e meio-ambiente. (PINHEIRO, 2002)

No Brasil, não é incomum as empresas recorrerem aos tribunais

questionando a legalidade de impostos com o objetivo de adiar o seu

pagamento. Somente no caso dos contratos (direito comercial), a

morosidade judiciária não é percebida como benéfica por uma proporção

significativa dos entrevistados. Isso ilustra um efeito secundário, mas

importante, da lentidão da justiça: ela encoraja o recurso ao judiciário não

para buscar um direito ou impor o respeito a um contrato, mas para impedir

que isso aconteça ou pelo menos protelar o cumprimento de uma obrigação.

Isso significa que há um círculo vicioso na morosidade, com um número

grande das ações que enchem o judiciário, contribuindo para a sua lentidão,

estando lá apenas porque ele é lento.

Pinheiro (2002, p. 45) esclarece que essa visão foi ratificada em

pesquisa do Idesp com uma amostra nacional de magistrados, a quem foi

colocada a seguinte questão: “Afirma-se que muitas pessoas, empresas e

grupos de interesse recorrem à justiça não para reclamar os seus direitos,

mas para explorar a morosidade do Judiciário. Na sua opinião, em que tipos

de causas essa prática é mais freqüente?”.

Esse tipo de comportamento também é muito freqüente de parte do

setor público, particularmente quando a União é uma das partes envolvidas.

Também neste caso, deveria se procurar implantar medidas que

desencorajassem este tipo de comportamento, possivelmente através da

mudança de normas seguidas pelos advogados do setor público.

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Além disso, Pinheiro (2002) adianta que considerando que na maior

parte dos casos em que o setor público é uma parte envolve um número

limitado de disputas – os 86.000 casos julgados pelo STF em 2000 diziam

respeito a pouco mais de 100 temas diferentes – medidas que vinculem as

decisões de tribunais inferiores às decisões, por exemplo, do STF, em casos

anteriormente julgados, deveriam acelerar o trâmite de processos e reduzir

o ganho daqueles que usam o sistema judiciário de má fé. A adoção de um

instrumento como a súmula vinculante também tem a vantagem de dar igual

tratamento ao contribuinte e ao fisco (aqui representando os demais

contribuintes), ao contrário de remédios que limitam unilateralmente o mau

uso do judiciário por parte do executivo.

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CONCLUSÃO

Numa sociedade de homens livres, cujos membros podem usar seu

próprio conhecimento com vistas a seus próprios fins, a expressão ‘justiça

social’ é desprovida de significado ou conteúdo, não podendo, por sua

própria natureza, ser provada. Asserção negativa nunca o pode. O apelo à

‘justiça social’ não ajuda nas escolhas a fazer.

Esforçar-se para aplicar a expressão ‘justiça social’ a uma sociedade

de indivíduos livres, é redundante, pois tal sociedade carece de precondição

fundamental para a aplicação do conceito de justiça à maneira como se

efetua a distribuição dos benefícios materiais entre seus membros, a saber,

que esta seja determinada por uma vontade humana.

A expressão ‘justiça social’ não é ingênua de boa vontade para com

os menos afortunados, mas uma insinuação desonesta, desonrosa, do ponto

de vista intelectual, símbolo da demagogia ou do jornalismo barato.

O apelo à ‘justiça social’ é, na verdade, um simples convite para

darmos aprovação moral a reivindicações que não se justificam moralmente

e conflitam com a norma básica de uma sociedade livre, segundo a qual só

se devem impor normas que possam ser aplicadas igualmente a todos, a

justiça, no sentido de normas de conduta justa, é indispensável à interação

de homens livres.

Não pode haver reivindicação moral de algo que não existiria senão

pela decisão de outros de arriscar seus recursos em sua criação. O que não

compreendem os que atacam a grande riqueza privada é que não é nem por

esforço físico, nem pelo mero ato de economizar e investir, mas, sobretudo

pela orientação de seus recursos para usos mais produtivos que a riqueza é

criada. Além disso, aqueles que criaram riquezas criam oportunidades de

empregos mais compensatórios, maior número de pessoas do que se

tivesse dados seu excesso aos pobres.

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Mas não é só pelo encorajamento de preconceitos malévolos e

prejudiciais que o culto da ‘justiça social’ tende a destruir sentimentos

morais genuínos. A ubíqua dependência do poder de outrem, criada pela

imposição de qualquer imagem de ‘justiça social’ destrói a liberdade de

decisões pessoais em que toda moral deve fundar-se. De fato, a busca

sistemática do ignis fatuus da ‘justiça social’, a que chamamos socialismo, é

inteiramente baseada na idéia atroz de que cabe ao poder político

determinar a posição material dos diferentes indivíduos e grupos – idéia

defendida sob a falsa alegação de que isso necessariamente sempre ocorre,

desejando o socialismo apenas transferir esse poder das classes

privilegiadas para as mais numerosas. O grande mérito do sistema de

mercado foi reduzir de maneira extraordinária o poder arbitrário. A sedução

da ‘justiça social’ mais uma vez ameaça arrebatar-nos esse trunfo maior da

liberdade pessoal. Desprezar o termo ‘justiça social’ não implica em

desprezar a concepção de justiça. Não tem desavença básica com o autor

quando reconhece este que a tarefa de definir como justos sistemas

específicos ou formas de distribuição de coisas desejadas deve ser

‘relegada como errônea em princípio, não sendo, de qualquer maneira,

suscetível de uma resposta definida. Ao contrário, os princípios de justiça

definem as limitações cruciais a que as instituições e atividades conjuntas

devem atender para que as pessoas que delas participam não tenham

queixas contra elas. Se essas limitações são observadas, a distribuição

resultante, seja qual for, pode ser considerada justa ou, pelo menos, não

injusta.

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