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© Copyright by Evan do Carmo 2017
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Programação Visual o Autor
Arte da capa o Autor
Revisão Iranete do Carmo
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C287l Carmo, Evan do
Labirinto Emocional / Evan do Carmo. – Brasília:
Editora do Carmo, 2017.
2010 p. 14x21 cm. ISBN- 978-85-922871-1-5
1. Literatura brasileira - romance. 2. Romance brasileiro. I. Título.
CDU: 821.134.3 (81) -31
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Todos os direitos em língua portuguesa, no Brasil, reservados de acordo com
a lei. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida de
qualquer forma ou por qualquer meio, incluindo fotocópia, gravação ou
informação computadorizada, sem permissão por escrito do Autor.
Composto e impresso no Brasil-
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Labirinto Emocional
Romance
Evan do Carmo
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À IRANETE, POR QUEM VIVO DE VERDADE.
Certo dia, quando eu já não acreditava em felicidade nesta terra,
quando eu andava em profundo desalento, andando como que sem
rumo ou norte, não sei se foi por obra do acaso ou por obra da sorte
predestinada, do quinhão que Deus me dera nesta vida, mas que
ainda não achara, que encontrei a mulher que logo se tornou o
melhor pedaço de mim, de minha essência e a força que me faltava.
Eu não a reconheci à primeira vista, mas ela, ao contrário, sem bem
me conhecer logo percebeu que eu era o amor da vida dela. Ela foi
me conquistando aos poucos…. Quando dei por mim ela já estava
dentro do meu coração. Foi graças a ela que alcancei o estado de
consciência e a plenitude de existência. Graças a ela hoje sou forte,
sou capaz de grandes realizações como este livro.
À Iranete, minha esposa, minha querida companheira. Refiro-me
sempre à sua pessoa quando quero expor de modo certo, até que
ponto pode o amor chegar, quantas barreiras uma pessoa pode
vencer ou ultrapassar para chegar a um objetivo com relação a
agradar o ser amado.
Para mim, a maior virtude do amor reside na capacidade de
suportar as diferenças de opiniões. Quem ama, a meu ver, não
insiste em mudar o ser amado, aceita suas virtudes e defeitos,
quando se ama verdadeiramente, embora não saiba até que
ponto esta expressão seja adequada, pois para o amor só existe
um nível, uma noção de juízo.
Quem vive um amor é porque avançou para um estado sublime
de tolerância, não se pode dar nome ao que se apresenta nos
nossos dias, sobretudo nas relações maritais, de amor, pelo
simples fato: vemos muitos casais que se suportam pelas
convenções sociais, basta que surjam dificuldades, seja de
origem prática ou sentimental para que venha à tona uma
verdadeira aversão à pessoa que se dizia amar, por quem até se
morreria. Discuto este assunto, para que possa causar alguma
reflexão nas pessoas que vivem juntas por comodismo ou
conformismo.
Acredito no amor, na cumplicidade marital, quando ambos
olham para o mesmo horizonte. É preciso que o tempo mostre o
que muitos fingem não ver, muito menos admitir: conviver com
alguém por vinte anos ou mais e não se tornarem inimigos literais,
isso pode ser um bom indício de que essas duas pessoas
no mínimo se respeitam.
Poderíamos trocar o sentido da palavra amor, talvez por
tolerância? Não é este o caso, a semântica talvez, o sentido não.
Sobre aquela pessoa que me é cara, minha afortunada metade,
devo dizer, o que me tem feito crer no amor, isso já por vinte
e sete anos: é o fato de apesar dos meus incontáveis defeitos, ela tem
me aguentado e sido sujeita a esse amor por quem ela vive.
Minha querida esposa, devo a ti a minha crença no amor, na
vida e até em Deus. Te amo, acredito que seja isso o que quer
dizer amar alguém, querer sempre o melhor para a pessoa
amada. Devo confessar que não sou o melhor, mas sou o que
sou para te agradar, para te fazer feliz, e para que nunca percas
a fé que tens no amor e na vida.
Evan do Carmo.
Labirinto Emocioanal
7
REPRESENTAÇÃO SACRIFICIAL DE UMA EXPERIÊNCIA
LABIRINTICA
O importante não é aquilo
que fazem de nós, mas o que
nós mesmos fazemos do que
os outros fizeram de nós.
Jean-Paul Sartre
Quando Evan do Carmo me enviou o seu livro, nada disse de seu teor.
Tampouco de seu gênero. De imediato surgiram alguns enigmas: Que
labirinto é esse? Do que trata estas emoções? Ao abri-lo percebi que
se tratava de um romance e logo veio a vontade de folheá-lo. Afinal,
se não grande conhecedor de sua obra, mas insuspeito admirador de
sua escrita não titubeei, alvorocei-me a devorar o livro, ou melhor,
estrangulá-lo o mais depressa possível, com a sanha de uma esfinge
diante do peregrino sem a devida resposta.
De pronto percebi que a estrutura labiríntica criada por Evan do
Carmo não teria por cenário o Palácio de Cnossos, mas a cidade do
Rio de Janeiro, em um período de pós-guerra bastante significativo. E
não traria como personagens principais Perseu e Ariadne, mas homens
e mulheres de carne e osso, de memórias e esquecimentos, cujas
histórias são construídas em um longo fio de existência, constituídas
em lastros de afetos familiares em que a cada descoberta há uma
representação sacrificial, não ao monstro minotauro, mas ao próprio
existir humano.
A narrativa construída por Evan do Carmo adquire aspecto dramático,
embora guarde uma tonalidade sensível de colo maternal. É esta a
característica primordial (e principal) exaltada (ou seria pincelada?)
neste Labirinto Emocional. As personagens evanianas dão-se-conta de
suas próprias existências em uma expericiação diária com suas
8
emoções mais internas e intrínsecas, com suas faltas e carências, com
seus sonhos e anseios, em uma transmutação experiencial de-ser-no-
mundo vinculados entre si em um indissociável existir de-ser-em-si e
de ser-para-si, em uma relação dialógica de Eu-Isso e Eu-Tu, tendo o
amor por essência e a angústia por contingência.
Os meandros vivenciados por cada personagem, seja em grandes
feitos ou em gestos simples e contenciosos, possuem motivações a
mais para ler o livro. Pois ler o Labirinto Emocional, de Evan do
Carmo, é um reviver constante. Uma experiência afetiva ininterrupta.
Como se estivéssemos percorrendo os labirintos de Creta, e, diante do
grande monstro de Minos/Vida nos sentíssemos como se fossemos
Teseu/Walter sem o fio condutor de sua amada Ariadne/Beatriz. Cada
passo dado é um salto ao inesperado. Um se lançar ao vazio do existir
tão bem conhecido e não menos desesperadamente negado.
Já no primeiro capítulo fui apresentado a um eu-lírico que me dizia a
que veio. Com extremo cuidado ele tece o seu longo fio de Ariadne e
aponta a saída, quando diz: “Não sou literato, na verdade nem gosto
dos literatos, eles têm maldades disfarçadas, são cruéis ao extremo e
são manipulados por um espírito egoísta e arrogante, acham que
sempre têm a razão, ou que sempre têm a melhor opção ou saída para
qualquer eventualidade, que sabem explicar tudo e dominar qualquer
assunto −, sobretudo quando se trata de sentimentos envolvendo as
relações humanas.”
Os temas fundamentais (e recorrentes) tratados por Evan do Carmo,
em seu Labirinto Emocional, é o amor e a solidão. O vazio e a
loucura. Dor e a saudade. Resiliência e obstinação. Empatia e
alteridade. Melancolia e esperança. A cada entrelaçar de vida (e de
emoções) se percebe uma ‘silenciosa abertura’ ao que Frayze-Pereira
entende como ‘ao que não é nós e que em nós se faz dizer.’
Embora não apresente um olhar mais aprofundado das coisas, dos
lugares e das pessoas, Evan do Carmo indica/sugere os conteúdos
mais implícito de suas personagens, o que nos garante um aprofundar
9
de nossas próprias percepções emocionais ante os atos
comportamentais das personagens. Permitindo-nos uma construção
pessoal a partir de nossa singular experiência em interação com o
mundo. Estabelecendo assim uma analogia com nosso próprio existir,
em um fio condutor que nos leva além-labirinto, nos impulsionando a
prosseguir a vida apesar das circunstâncias traumáticas e de nossas
lutas internas, compreendendo que “sempre depois de uma
tempestade, depois de uma noite escura de trevas profundas é
inevitável que nasça o sol da esperança, e este quando vem pinta no
horizonte o quadro mais belo, seus raios multicores são pincéis a
colorir nosso amanhã e, neste estado de regozijo celeste não só
enxergamos o arco-íris, mas também misturamos as suas cores e as
transformamos em uma aquarela de luz...”
Portanto, é inequívoco o nosso encontro (entranhamento) e
desencontro (estranhamento) com o eu-lírico/Evan. Sua percepção e
sensibilidade não cabem ao texto “Já por algum tempo eu convivo
com uma vontade imensa de homenagear um amigo muito querido,
mas era só vontade, então aos poucos as coisas foram se
encaminhando para este meu livro”. Sua narrativa transborda ao
nosso raso olhar. “A vida dele pode ser considerada um drama triste
para alguns, uma história comum e corriqueira para outros, mas para
mim, humilde e necessária”. Isto nos encanta, pois enriquece nossa
leitura e nos dá argumentos para lê-lo mais e mais. Prova-nos que a
entrega do autor ao texto foi verdadeira.
O Labirinto Emocional de Evan do Carmo nos faz perceber (por
instinto ou por vivência) que, em alguns momentos de nossa vida
devemos nos guiar, de imediato, para o lado de fora dos nossos
intransponíveis labirintos (dores, angústias, solidão ou vazio), mas, tal
qual Walter, não sabemos como fazê-lo. O novelo de Ariadne nos foge
às mãos. É curto demais, como curta foi a vida de Walter Junior
diante do grande monstro devorador (guerra) e longo o desespero de
seu pai por encontra-lo, levando-o ao desespero, ao desejo de não-
existir, a se tornar “um vulto (...) um homem sem cor, sem carne, só
osso e desespero, que causava medo e compaixão.”
10
Adentrar na alma de cada personagem (Walter, Beatriz, Walter Junior,
Armando, Paulo, Rose, Felipe, Isabel, Ruth, Ricardo, Seu Antônio,
Dona Francisca, Jorge Figueira e Cícero, passando por Oliveira
Gomes) nos traz a nítida sensação de um querer a mais, de uma
angústia tão familiar que nos impulsiona ao segundo passo, ainda que
este nos leve a lugar algum, ou, por circunstância de vida e escolha
pessoal, nos leve a um vazio que nos abocanha intensa, intrínseca e
visceral. Fazendo-nos a andar “dias e noites buscando abrigo e
consolo no coração dos amigos, afogando” as nossas “mágoas em
copos de desilusão”, tornando-nos “um ébrio, um louco sem norte e
sem direção”. Ainda que saibamos que viver é preencher o vazio que
só o existir contém.
Compreender os meandros (com suas sombras e arquétipos) deste
Labirinto Emocional descrito por Evan, é tarefa para poucos “Não
consigo a liberdade do espírito, quisera eu voar livre dos
pensamentos que me cercam por todos os lados da consciência, quem
me dera poder fugir deste mar de sombras, que me assombra” nos
leva, sintomática e imperdoavelmente, a adentrar a alma de Walter,
não tentando desvelar os seus labirintos/segredos mais profusos (e
confusos), mas a vivê-los em toda a sua intensidade.
É esta a sensação descrita em todo o livro. Como se sentíssemos parte
desse labirinto, mas que isso, como se adentrássemos nele e víssemos
o grande Minos a construir os entraves (e enrosco) que todo labirinto
tem. Como se quiséssemos estar no labirinto, enfrentar o monstro de
Minos (solidão voraz) com a intrepidez de Teseu, embora nos
soubéssemos Walter, a caminho de um bar qualquer, em busca de
nossas sete garrafas e sete copos de um bálsamo Rio/Cretano.
Percorrer este Labirinto Emocional nos leva a oferecer, como
Ariadne/Beatriz, nosso fio de existir-existindo em um pensar
constante, pois “pensamento é um dom divino e o nosso bem maior, só
nosso. Não há tesouro que se compare ao exercício mental e não há
11
lei e nem território que o proíba. Ele é livre e habita em um universo
sem fronteiras. Embora tenha dono, quando ele nos deixa, quando sai
da esfera sensível, quando o lançamos no espaço, este filho pródigo
rebelde não volta mais para a casa do pai”.
Assim, entranhar o intricado percurso deste Labirinto Emocional nos
humaniza, voluntaria e corajosamente, nos fortalece a enfrentar nossos
obstáculos (ainda que pareçam intransponíveis e nos queria devorar a
todo o momento). Nisto reside a criatividade de Evan do Carmo. O
que torna a sua narrativa singular e bela. Oferece-nos o fio para
sairmos dos internos corredores, mesmo sabendo que, “Quando
pensamos que pegamos a estrada certa que nos leva ao sonho, ao
ideal, ao objetivo, à felicidade prevista, sentamos e até tiramos um
cochilo, então vem alguém e nos acorda para o desembarque, para
descermos na próxima parada”.
Portanto, assim como o oráculo em Atenas predisse à Teseu sua
vitória contra o monstro do labirinto, pelo amor de Ariadne, Evan do
Carmo nos mostra o quão forte é o amor de Beatriz por Walter. O fio
dourado que o conduz para fora de sua Creta/Angústia/Dor. Para as
paredes de tijolos sempre a mostras de Walter, Beatriz se faz fio,
prumo e reboco. E com o tempo, que “é mestre em assuntos do
coração, em sentimento mal-entendido”, entendemos que “os
sentimentos não envelhecem, amadurecem”, pois “tem a dieta certa
para engordar ou emagrecer estes vermes que nos alimentam e que
nos devoram”.
Com isso, percebemos que Ariadne/Beatriz tudo faz por seu amado
Teseu/Walter, contudo, o grande rei Minos/Vida o conduz, de igual
modo, ao inevitável confronto com o seu monstro voraz (vício,
insegurança, medo, tristeza, solidão) que a todo instante tenta devorá-
lo, o levando a crer que “é assim com os loucos da noite, não dormem
nem mesmo quando estão com sono”.
12
Como se fosse tarefa fácil o viver. Já que “No coração de um
apaixonado não há lugar para consciência ou razão, tudo é sangue,
instinto, força e domínio brutal”. Tampouco o morrer o é. Morre-se a
cada fôlego. Não por menos enlouquece o homem em seu existir de
vida sem ao menos ter visto sua tarefa de ser exitosa. Só o Minotauro
tem fome insaciável. E nem sempre temos Ariadne (Ruth, Beatriz,
Lurdinha) a nos oferecer o seu fio de amor. Sua valiosa presença. Sua
força para enfrentarmos as traiçoeiras armadilhas de nosso labirinto
emocional.
Só há uma forma para conhecer o labirinto construído por Evan.
Adentrando-o sem medo ou reservas. Eu o fiz. Aceitei o desafio e
naveguei os mistérios do Egeu e aportei em Creta/Rio, em um período
de pós-guerra muito significativo. O Minotauro/guerra exigiu seu
sacrifício e inúmeros Walter Junior sucumbiram diante do grande e
tenebroso monstro metálico. É assim que Evan do Carmo nos convida
a adentrar em seu Labirinto Emocional, ou melhor, nos intenciona a
uma descoberta a cada passo dado, ainda que haja monstros
assustadores prontos a nos devorar.
Uma vez dentro do labirinto Evaniano, o leitor é conduzido, imediata
e ininterruptamente à auto/reflexão. Já não é o mesmo que entrou.
Poucos passos/capítulos e já é sondado (implicitamente) a descobrir
saídas, a inventar enfrentamentos, a construir soluções, a se preparar
(olhos e coração) para o que vem a seguir. A assumir uma postura de
acolhimento existencial que envolve múltiplas possibilidades. A nos
colocarmos diante dos nossos monstros particulares em posição de
flutuante atenção e aguardo.
Evan do Carmo dá a devida importância à temporalidade do existir-
existindo. Sua relação com as personagens é muito significativa. É
explicito esta carnalidade do autor com sua obra. Neste contexto,
logicidade e cronologia se confluem interpretativamente em uma
construção narrativa analítica bastante singular, cabendo-nos, seus
leitores, uma consubstanciação de existir entre fatos, pessoas e
13
cenários descritos. Possibilitando-nos uma experiência reflexiva e
compartilhada com os próprios atores da trama.
Desta forma, como bem enumera o autor: “quanto a mim respiro e
compartilho com os meus queridos, minha função na existência e
divido-a em partes distintas: como homem, como pai e, sobretudo
como irmão.” Assim, concluindo esta obra evaniana, confesso que o
livro trouxe a mim uma experiência labiríntica única, da qual sei (por
recorrente experiência) o enredo e o destino em cujo espaço teço (em
obediência ou teimosia) o fio do novelo de minha própria existência.
Com isso, resta-me então, recomendar o livro e instar a quem quer que
seja, a entrar em seus labirintos e, feito Teseu/Walter enfrentar os mais
ferozes minotauros tendo ao coração tão e somente o amor e a
esperança e às mãos, o tênue e frágil fio de Ariadne/Beatriz.
Boa leitura!
Alufa-Licuta Oxoronga
(Psicólogo e poeta)
14
Comentário sobre o livro
Ao ler e vivenciar o episódio deste livro do escritor Evan do Carmo,
seu tão bem elaborado Labirinto... confesso que me fugiram as
palavras, apesar de tanto precisá-las neste exato momento, para fazer
um comentário de clareza e lucidez.
O autor nos faz um irrecusável convite a embarcar com
passagem só de ida numa viagem rumo ao desconhecido que habita
dentro de nós mesmo, e que nem sempre nos preocupamos em visitar.
O personagem Paulo, boêmio cantor da noite, é agraciado com a
grandeza e a compaixão de um dos seus expectadores que conhecera
na noite carioca: o Walter, que vem a ser o personagem principal da
trama. Este transfere para seu amigo Paulo, o seu lugar na vida e nos
negócios; lhe autorizando a condução dos seus bens e até mesmo da
sua própria família. Por sua vez, Paulo se sai tão bem no papel de
titular, que acaba casando-se com sua filha Rute, moça muito linda e
meiga, tanto quanto a generosidade do seu pai, jornalista intelectual.
Confesso ter ido às lágrimas ao viver a saga do personagem
Walter, homem que se fizera lunático por carregar uma grande culpa,
que acha que tem, por não ter conseguido evitar a morte de seu filho
15
mais velho e consequentemente de mais um outro filho seu e, também
de sua maravilhosa esposa Beatriz.
Acabando finalmente, confinado por vontade própria em uma
casa de repouso e recuperação para idosos, sem o prévio
conhecimento do que ainda restara da sua família.
Volto-me ao autor Evan do Carmo, para parabenizar-lhe por
seu tão intrigante LABIRINTO EMOCIONAL, e para dizer-lhe que
como passageiro dessa tão contagiante obra, não sinto deveras a
vontade de desembarcar, já que a mesma fora construída com todo o
seu amor, dedicação e esmero, dispensados pelo crivo da sua enorme
experiência. Portanto, me convenço de que este grande autor, é sem
dúvidas, uma mistura de sábio e de mestre... e ao mesmo tempo, sinto-
me lisonjeado por fazer parte, ainda que de longe, do seu ciclo de
convivência.
Poeta, Chico Mulungu 31/12/2016
16
Prefácio
Este prefácio é importante, sobretudo para os leitores
iniciantes, já que nele eu preparo o leitor à descoberta de
“Labirinto Emocional”, indicando-lhe os seus traços gerais
(porém sem divulgar as guinadas inesperadas da obra), e
suscitar-lhe o desejo de irem em frente com a leitura.
Pode parecer estranho, mas é verdade. O Brasil, país
com mais de duzentos milhões de habitantes, tem apenas duas
mil livrarias e a maioria dos seus cidadãos não ganha o
suficiente para comprar uma cesta básica digna, que dirá livros,
por isso mesmo não podem absorver uma mínima porção
literária. Disso surge a miséria de quem escreve, dos homens
que vivem à margem da luxúria para produzir algo substancial.
Literalmente falando, são poucos os alienados que
vendem sua ideologia e sua crença no tesouro poético-filosófico
para viverem embriagados com o vinho da vaidade. Eles
escrevem um vasto lixo visando alimentar, como também saciar
o apetite das mentes deformadas pelo aleijo social e cultural.
17
Há os que escrevem para milhões de rudes que fingem
entender o que leem, enquanto outros se satisfazem em escrever
para três ou quatro leitores conscientes que não só
compreendem como também partilham os pensamentos que
absorvem. O que estes colhem na seara infrutífera? Respondo:
morte prematura, cegueira e suicídio da incompreensão.
Vale lembrar ao leitor algo muito importante sobre o
assunto acima: o autor de “Dom Quixote, Miguel de Cervantes
morreu na miséria depois de ser enganado pelo editor da
primeira parte de sua obra singular”.
Eu não tenho nenhum amigo ilustre, não conheço
nenhum “imortal” da Academia Brasileira de Letras, por isso,
para que meu livro não saísse incompleto, eu mesmo escrevi
este mini argumento prefacial. Para tal, tive como referência o
prólogo de Machado de Assis em “Memórias Póstumas de Brás
Cubas”. Mas mui consciente do objetivo desta minha obra,
amarrarei com as correntes da indignação o meu espírito
crítico para não cansar leitor algum.
Não tenho a pretensão de convencer o leitor de que
“Labirinto Emocional” se trata de um novo fenômeno literário,
e até aconselho aos senhores que fujam dos ditos fenômenos, de
qualquer área de atividade profissional. “Labirinto Emocional”
18
é uma obra de rascunho e inacabada, talvez o meu ponto mais
alto que eu poderia atingir.
Não quero falar muito do psicológico das personagens,
nem tampouco entregar em bandeja de prata suas cabeças, seus
defeitos e seus desvios de conduta. Eu espero astuto leitor, que
você se identifique com alguma personagem, pois “Labirinto
Emocional” traz personagens e situações comuns do cotidiano,
com defeitos e virtudes nossos. Mas vale assinalar que minha
intenção é revelar mais defeitos que virtudes.
Os romances, não raro, apresentam uma riqueza de
detalhes descritíveis. No entanto, em “Labirinto Emocional”, eu
não usei deste expediente psicológico material, porque cansaria
o leitor. Em Kafka e em Camus podemos verificar que a beleza
das suas obras não reside no lugar ou em uma cronologia
temporal. O mundo de Proust, ao contrário, talvez por ser mais
glorioso, agrega duas condutas, uma riqueza imensurável
psicológica, sobretudo na dissecação do espírito do ciúme, e
uma contextualização histórica com suas nuances materiais. Em
“Labirinto Emocional” além de agregar tais condutas, não há
espaços confortáveis nem passagens paradisíacas, contudo, as
alegrias, assim como na vida real são passageiras e a morte é
um tema constante.
19
Walter
Já por algum tempo eu convivo com uma vontade
imensa de homenagear um amigo muito querido, mas era só
vontade, então aos poucos as coisas foram se encaminhando
para este meu livro. A vida dele pode ser considerada um drama
triste para alguns, uma história comum e corriqueira para outros,
mas para mim, humilde e necessária.
Walter não é nem muito latino e nem tanto americano, é
descendente de família judia, que chegou ao Brasil durante o
êxodo moderno, êxodo que espalhou o povo santo para as
20
nações pagãs. De estatura mediana, moreno claro e semblante
sereno, Walter se dispôs a ir longe para alcançar seu sonho. Aos
18 anos largou a casa dos pais, no sul do Brasil, para ir atrás do
que sempre quis ser, jornalista. Com muita dedicação chegou ao
topo da fama e do prestígio, porém fama e prestígio nunca lhe
subiram à cabeça, mantendo sempre uma postura firme para com
a vida, mas com muita humildade.
Não me importo com as críticas, porque sei que vou
agradar a uns e desagradar a outros. Não me considero
romancista, sou músico e não escritor, até porque tenho
consciência hoje da existência do mestre Machado de Assis e de
outros. Quero apenas apresentar ao leitor a vida de um grande
homem, vida que muito me serve de referência. Por outro lado,
não nego, homenagear o Walter é uma desculpa, porque no
fundo tenho ambições literárias de fato. Já li – não lembro em
qual jornal – que um prêmio Nobel de Literatura, entre os
poucos que conheço, atingiu tal sucesso por um empenho muito
mais fútil do que o meu. Não sou literato, na verdade nem gosto
dos literatos, eles têm maldades disfarçadas, são cruéis ao
extremo e são manipulados por um espírito egoísta e arrogante,
acham que sempre têm a razão, ou que sempre têm a melhor
opção ou saída para qualquer eventualidade, que sabem explicar
21
tudo e dominar qualquer assunto −, sobretudo quando se trata de
sentimentos envolvendo as relações humanas.
Sou amigo íntimo do Walter, por isso não cometo
exagero algum sobre suas virtudes. Walter é leal com seus entes
queridos, companheiro fiel, sempre disposto a ajudar a quem
quer que seja. Ele não espera que lhe implore de joelhos (como
fazem alguns filantrópicos oficiais), age e se preciso, dá a
própria vida. Certa vez, fui testemunha de uma grande ação de
Walter. Com uma simples carta de recomendação, ajudou um
senhor nordestino a arrumar um bom emprego. O Senhor João
era casado, tinha seis filhos, padecia de carência extrema,
morava debaixo de um viaduto no centro da cidade, lugar dos
desvalidos da sorte. O que este homem queria era apenas um
emprego: “porque tenho que sustentar minha família”,
justificou-se para o Walter.
No início dos anos cinquenta, o mundo viveu um clima
de esperança, uma nova aurora fora desvendada, o sol da
felicidade parecia bem claro, esperavam-se dias de paz, talvez
um entendimento melhor dos conflitos mundiais, enfim,
acreditava-se na paz – digo “paz global” como nunca alcançada
e agora tão sonhada, desejada – e tudo isso por causa da
Segunda Guerra Mundial. Passada a guerra, Walter, jornalista
22
investigativo, procurou encontrar razões que levou o mundo a
entrar nesta guerra tão cruel e com resultado tão avassalador, e,
segundo ele, chegou à conclusão de que tudo era loucura,
loucura por um poder supremo, era o que almejava Hitler,
dominar o mundo e toda a humanidade.
Eu tive o prazer e o privilégio de viver um tempo de
ouro da música brasileira, a era da Bossa Nova. Cantava todo o
repertório da Bossa Nova em um bar de Copacabana, onde
conheci o Walter. Nos fins-de-semana ele assistia ao futebol por
ali com geladíssima cerveja e à noite me ouvia cantar. Após os
shows sempre conversávamos, mas Walter não era bom ouvinte,
só ele queria falar. O que me irrita é que alguns jornalistas
acham que são os donos da verdade e desqualificam qualquer
ideia diferente das suas. Walter não era diferente disso, gostava
de expor seu ponto de vista e exigia, por meio de uma força
moral descomunal que fosse aceito como final e absoluto.
Considero-me, até certo ponto, um bom observador, a tal
ponto de perceber que Walter, apesar de todo o sucesso como
jornalista, tinha um olhar triste e distante, um ar débil como que
se furtando de viver dentro da sua realidade. Como ele falava
muito pouco de sua vida pessoal, demorou alguns dias para se
abrir comigo. Até que um dia resolveu falar. E foi assim:
23
“Meu filho – o que eu mais amava, o meu preferido,
aquele em quem eu reconhecia minha própria alma, aquele da
minha esperança e razão da minha existência, – por uma
desgraça do destino foi para a guerra, foi muito valente pelo que
soube, mas morreu em batalha, quando resgatava outro soldado.
Com a morte do meu filho eu perdi a razão de viver. Atravesso
um mar de desilusão sem fim e creio que nunca mais terei forças
para alcançar a outra margem, porque fui tragado pelo monstro
feroz da depressão. Nem sei mais como é sorrir com a alma,
viver, ser feliz por inteiro! Esta tragédia atingiu-me como um
furacão, não deixando pedra sobre pedra, nem meios necessários
para a sobrevivência. Ando dias e noites buscando abrigo e
consolo no coração dos amigos, afogando as minhas mágoas em
copos de desilusão. Tornei-me um ébrio, um louco sem norte e
sem direção. Não vivo, e se ainda respiro é pela ilusão que me
ronda dizendo que eu ainda terei meu filho nos braços – um
sonho que acalento como única razão para minha existência.
Meu filho tinha muitos sonhos, e a guerra não era um deles. O
sonho dele era ser engenheiro. Ele era um rapaz muito bonito e
alto, tão meigo quanto à outra filha, Rute, a caçula. Mas ela não
tem a mesma inteligência que ele tinha. Walter Júnior era muito
inteligente, eu não gostava de dizer isso diretamente pra ele, mas
24
Beatriz e eu sempre achamos que ele fosse um gênio, alguém
muito especial. Puxou a mim em algumas coisas, enquanto vivia
conosco sempre foi independente e capaz, meigo, carinhoso,
sensível e responsável – eis o meu orgulho. Eu investi tudo nele:
meus sentimentos, minha esperança. Ele era a minha própria
vida, a continuação do meu ser nesta jornada difícil que
conhecemos como vida humana. ”
Ele enxugou as lágrimas, virou um copo de cerveja na
boca e continuou.
Não há dor maior do que a de perder um filho. É
indescritível. Indescritível! Transmiti a ele tudo de mim, menos
meus defeitos e minhas fraquezas. Acresci as minhas virtudes
para lhe imprimir fundo na alma. E observei que ele assimilou
tudo, mais do que eu esperava. Nos desafios da curta vida que
viveu, sua força moral e firmeza de caráter eram inabaláveis – o
que me surpreendia. Lembro-me dele do tempo do colégio:
venceu barreiras e obstáculos intransponíveis para qualquer
menino do seu peso, de sua estatura culto-social. Ele não se
corrompia e defendia com paixão seus ideais e convicções, foi
graças a estes predicados que ele alcançou respeito e prestígio
perante os colegas e professores.
Eu entristeci como se acabasse de ver o fundo da alma de
25
Walter. Não disse nada: apenas estendi-lhe a mão. Ele
continuou.
Hitler era o seu próprio Deus e queria se tornar o Deus
de todos: decidia quem merecia viver e quem deveria morrer.
Meu filho não teve escolha: foi obrigado a entrar nesta cruel
brincadeira, nesta roleta russa. Não consigo entender e nem
perdoar um homem assim, e creio que Deus não seja tão
clemente para com ele, que de ser humano não tinha nada!
Eu tinha a impressão que, se Walter não desabafasse com
alguém, iria enlouquecer. “Cerveja”. Pediu ele ao garçom para
disfarçar a dor. “Paulo: estou mais morto que vivo! ”, disse entre
um gole e outro de cerveja. “Ah, deixe disso! ”, falei, “Você vai
superar esta tragédia. ” O garçom trouxe a cerveja, e eu disse a
Walter para que não bebesse mais, mas surtiu pouco efeito, além
daquela ele bebeu mais duas garrafas. Possivelmente, eu fui a
única pessoa em que Walter confiou para chorar pelo filho
morto. E eu não o desapontava, ao contrário, ouvi-lo passou a
ser a minha missão.
Do lado de fora, uma montanha do calor de dezembro
entrava, toda vez que Walter chorava. A lua e as estrelas
brilhavam prateadas no céu azul daquela noite de verão e
descreviam um arco de luz, mas ele nada disso viu de tão imerso
26
que estava em sua tristeza. Walter suspirou e abanou a cabeça,
continuou:
A insânia de doutrinas e ideologias desenvolvidas nas
mentes alucinadas, embriagadas dos intelectuais rebeldes, vazios
de conduta moral, alheios à vontade da maioria dos homens
comuns e de bem, é que atrasa toda a evolução cultural e
espiritual de uma geração, e é neste estágio mental que se
desenvolvem os preconceitos raciais, culturais e religiosos – e
que, não raro, são originários de filosofias de espíritos
desocupados e desprovidos de valores morais. Foi neste ano
crucial para a História e para mim, que meu filho foi estudar na
Europa – sonho não realizado, por conta de um decreto que o
convocou para a guerra. Somos cidadãos do mundo e é
inadmissível que ainda possam existir tantos patriotas fanáticos.
O mundo é agora um só, não se pode mais agir isoladamente
como nos tempos antigos, quando tribos faziam guerras entre si
e sem afetar o resto do mundo. No entanto, o que temos nós a
ver com o ariano de sangue azul? O que temos? A Segunda
Guerra não era minha, nem do meu filho e nem de ninguém!
Pouco antes de ele ir para a guerra, ele me escreveu uma carta –
esta aqui veja!
Abri o envelope, as palavras estavam quase
27
indecifráveis, já que o papel estava amarelado pelo tempo. E o
que ficou da carta no fundo do meu coração foi:
A Meu pai.
Pai, não sei se terei o prazer de revê-lo um dia. Não
sei! A guerra é insana! Acabei de chegar, mas posso lhe
assegurar que não há razão para esta maldita guerra, como
nenhuma outra tem. Está claro: é um ato covarde, de limpeza
étnica! Que direito tem este tirano de obrigar-me a lutar?
Não diga nada para a mãe: não é justo que ela sofra, diga-lhe
apenas que estou bem.
Pai, guarde as lembranças da minha infância, pois foi
a melhor parte da minha existência, um alvorecer de
esperança e que muito aprendi com você e com meu avô. Eu
sempre me espelhei em vocês, na conduta, no caráter, no
amor. Meu abrigo contra os temporais, sem dúvida alguma,
foi meu avô e você. Talvez eu não realize meus sonhos, porém
tenho o consolo de que você e meu avô realizaram os seus.
Não se sinta culpado, porque o sonho de estudar na
Europa foi meu. Nunca devemos desistir dos sonhos e a vida
primeiro deve ser sonhada e depois realizada. Eu não sou
covarde a tal ponto de lamentar decisões que tomei para
realizar os meus. O senhor foi meu amigo, companheiro de
28
todos os momentos. Pai, eu te amo e te respeito. Você sempre
me apoiou em tudo e nunca exigiu acima do que eu poderia
realizar. Pai, tenho orgulho de ser seu filho, espero que eu
tenha atingido o ponto que você esperava que eu alcançasse e
obrigado por tudo, principalmente por ter cuidado de mim tão
bem.
Um beijo e um abraço forte, do filho que jamais te
esquecerá,
Walter Junior. ”
Desculpe-me, leitor, se você é como acredito que seja −
de alma sensível, sentiu o mesmo que eu, muita comoção.
Mas enxuguemos as lágrimas e sigamos em frente com a
narrativa…
Eu me coloquei no lugar dele, graças a isso pude
compreender o porquê de seu olhar distante e das rugas
precoces. O que faz um homem tão novo parecer tão idoso, tão
acabado? O sofrimento? As rugas do tempo são inevitáveis,
porém as marcas do sofrer são irreparáveis.
Walter estava tão bêbado que não conseguia nem falar
mais direito…. Eu tive de levá-lo até sua casa. Amigo serve é
29
para estas horas de insegurança e de melancolia, de
reminiscências que maltratam e machucam, quando
atravessamos sombras do passado que não passam e que
persistem em nos assombrar. É aí que precisamos do ombro, da
palavra e da cumplicidade de um amigo.
Esta era a situação do Walter, vivia encarcerado em
grades inflexíveis do passado, preso ao tempo que marcou
indelével seu coração.
Minha intenção era apenas deixá-lo na porta de casa, mas
ele insistiu tanto que eu entrasse que aceitei, e tomei até um
café. Olhei de relance a casa: era grande, confortável, chique e
aconchegante. Revelava acima de tudo a personalidade da
esposa de Walter, bem cuidada com verdadeiro esmero. Notei a
maneira positiva como Beatriz recebeu Walter, apesar dele estar
alcoolizado. Tratou-o de meu amor e quis saber como foi a
diversão no bar. Quanto a mim, recebeu-me muito bem,
agradeceu-me por ser amigo do Walter e por ajudá-lo a chegar
em casa são e salvo. Então, como retribuição, serviu-me um
delicioso café.
O café chegou na hora certa porque curou minha
embriaguez, embriaguez motivada pela solidariedade ao Walter.
Não se pode negar que uma associação exerce grande influência
30
na vida de uma pessoa. Somos seres influenciáveis e
influenciados, muitas vezes fazemos algo apenas para agradar
aos amigos, sobretudo aos amigos que conhecemos
recentemente. Na verdade, eu estava encantado com a erudição
de Walter, como jornalista, que me superava na inteligência,
então fui me aproximando, aproximando, até que conheci toda a
vida pessoal dele. Resultado: durante este período passei a beber
tanto quanto ele.
Ainda sobre a esposa de Walter. Beatriz é uma mulher
austera, porém encantadora, de olhos altaneiros e orgulho de
raça. É do tipo daquelas almas que não deixam transparecer os
encantos, desencantos e segredos da personalidade no primeiro
encontro. É uma mulher forte e especial – isso me fez
compreender porque a morte do filho não desestruturou a toda
família. Sem dúvida, pude perceber facilmente, que Beatriz era
um porto seguro para todos da família.
Ela estava com sono – isso me trouxe à minha realidade.
Era hora de eu ir embora. Walter insistiu que eu ficasse mais um
pouquinho, “Não vai agora, não; amanhã você não trabalha!...”
Quem te disse que não? Retruquei. “E músico trabalha? ”,
ironizou ele. “Claro! No meu caso, ainda dou aula em um
conservatório. ” - Vida de artista não é fácil no Brasil, amigo. -
31
Concluiu Walter.
Saí dali com a alma leve. Havia tempos que eu não tinha
um momento tão acolhedor, como aquele na casa de Walter. Eu
levava uma vida sem muitos atrativos e sem razões para
acreditar em felicidade, mas isso me cansava. Também o
ambiente de bares não é lá grandes coisas! As pessoas que
frequentam os bares, geralmente vão ou para afogar as mágoas,
ou para esquecer amores não correspondidos, ou em busca de
uma aventura amorosa, enfim, não é um ambiente para reflexão
e meditação – diferente dos cafés. Os frequentadores de bares
são tolos ébrios de ilusão, fingem felicidade, sonham encontrar
na bebida, em cada copo da saudade, ou da tristeza adquirida, a
bendita e tão desejada felicidade.
32
Nostalgia
A ida à casa de Walter me fez refletir sobre a minha vida
e me fez lembrar a minha família. Sou acometido de uma
tristeza profunda, ao falar deste assunto, mas já tive esposa e
filho, ambos a razão da minha existência. Mas preciso falar!
Caro leitor, peço desculpas, mas vou interromper a sequência
desta narrativa para falar um pouco de mim. Preciso explicar
esta nostalgia, que não é barata!
O que matou meu filho e minha esposa foi a tuberculose.
Essa doença matava sem dó e sem piedade, não havia os
remédios que hoje existem. Minha adorável Rose, companheira
33
de todas as horas, meu filho amado, quantas saudades sinto
deles! Quantas! Eu conheci Rose com vinte anos de idade, ela
tinha apenas dezenove. Eu a amava muito, talvez ela mais a
mim. Vivíamos um sonho sem igual. Com menos de um ano de
casamento ela quis ter um filho, mas não para completar, era
para transbordar a taça cristalina da nossa felicidade. Com a
chegada dele parecia que tudo estava perfeito. Mas quando ele
completou um ano de idade, Rose caiu doente e, logo em
seguida, foi a vez do Felipe – “contaminado com o leite”, disse
minha sogra.
Foi tudo muito rápido… Rose morreu três meses depois
de ser diagnosticada e, duas semanas depois foi a vez de Felipe.
A partir daí, mergulhei num estado de lástima total, achei que
não tinha mais saída, que não seria capaz de viver sem eles,
afinal, eles eram tudo o que eu sonhava ter na vida, que
conseguira e que perdera tão abruptamente.
Anos passaram, mas acho que ainda não superei
totalmente a perda dos dois. A tuberculose era uma doença
cruel, não poupava ninguém, matava pessoas de todas as classes
sociais, mesmo a classe dos boêmios, dos escritores, poetas e
artistas. Reside aí um paradoxo na sabedoria humana: fomos à
lua, mas não conseguimos destruir o bacilo de koch. Esta doença
34
foi sem dúvida um pé nos freios da cultura e da inteligência da
nossa era.
Mas vamos voltar para o objetivo deste singelo
compêndio de cultura inútil, meu livro, que é a vida do Walter e
não a minha história de vida que é tão simples e vulgar.
No dia seguinte, eu estava no bar, cantando para espantar
os males dos outros, pois para os meus não acreditava que
existisse remédio. Um papel importante é o dos cantores da
noite, são como prostitutas de luxo, obrigados a sorrir e a dar
prazer, quando na verdade estão infelizes. Também eles podem
ser de algum alento para a vida dos que vagueiam pelas noites,
sem rumo, sem destino, sem futuro e sem passado.
Ainda assim, acredito que existem amizades eternas que
começaram nos bares. Eu mesmo conheço algumas que deram
muito certo, como também amores eternos que terminaram em
grandes e felizes famílias, ou em amores de uma noite só, mas
inesquecíveis por toda uma vida.
E minha amizade com o Walter, será para toda vida?
35
Lembrança Fugaz
Certa noite, Walter quis saber sobre a minha vida
amorosa.
− Paulo, conte-me uma coisa: durante estes dez anos em
que canta nas noites cariocas nunca se envolveu amorosamente
com alguém?
− Não, ou melhor, sim!
− Como assim, já ou não?
− Sim. Mas não passou de uma paquera.
− Acho até que sei quem é!
− Será?
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− Deixe de mistério, homem, conte-me logo quem é!
− Não! E por favor, não me ligue ao passado, pois não
vale a pena lembrar-me dela.
− Ah, mas eu sei que há muito mais a se ver! Vai, conte-
me tudo porque eu quero saber!
− Está bem, eu conto. Está vendo aquela mulher linda ali,
bem em frente ao palco?
− A Isabel, aquela nossa amiga, ou melhor, mais tua
amiga do que minha? Sim, estou. Espere aí! Então é com ela?
Grande Paulo, você tinha mesmo que ser mineiro! Conheço um
ditado que diz que mineiro é um perigo porque age às
escondidas, é verdade? ((Há! Há! Há!)
− Deixe disso, Walter! Mas vou matar sua curiosidade de
uma vez. Pois bem, ela ficou também viúva em nove anos, mas
logo se casou novamente.
− Ah, chega de detalhes! Mas escute aqui, eu não me
lembro de ter visto vocês juntos, e olhe que já nos conhecemos
há anos e há anos que venho aqui!
− Mas você vinha aqui sempre correndo, tomava um ou
dois drinques e ia embora!
− Não está querendo me dizer que agora sou alcoólatra,
está? Que bom amigo é você, Paulo!
37
− Não quis dizer isso. Sabe do teu limite, eu sei do meu.
Para mim, basta um drinque para me deixar alegre, já outras
pessoas tomam uma garrafa e não acontece nada (Há! Há! Ha!).
− Ai, ai, ai, você está me enrolando! Vai ou não vai me
contar?
− Vou, mas não agora; tenho que voltar para o trabalho.
Eu pensei que agindo assim, o Walter esqueceria, mas
não.
É evidente que eu não lhe contaria algo que maculasse
minha conduta, mesmo se tratando do meu passado. Poderia
sim, ele fazer mau juízo de mim, da minha índole, que
imaginava ser de casta pura...
Este modo de agir é comum entre os homens, não
importam como moralmente vivam, esperam sempre que os
outros lhes revelem algo do seu modo de viver, – sobretudo, dos
erros − para assim, fazer comparações entre as suas ações e as
ações dos outros, e no fim da adição, eles possam sempre achar
que ainda estão em vantagem, em melhor posição que os
demais.
No fim da noite, Walter me esperou, queria saber
daquela história.
38
− Então, seu enrolado, vai ou não vai me contar? Agora
temos todo o tempo do mundo...
O que despertou esta curiosidade no Walter foi o fato
dele ver o quanto eu era assediado pelas mulheres. Sempre e ao
fim da noite, vinham elas, mulheres solteiras, mulheres
separadas, mulheres sem marido vivo, mulheres sem marido em
casa, enfim, estas criaturas solitárias que vão aos bares para
encontrar alguém, quando não os encontram, cismam com os
cantores e lhes fazem elogios vagos, sem cunho crítico, só para
testar seu talento na arte da conquista.
−Vou lhe contar tudo, seu curioso de uma figa...
Ela me chamava sempre para tomar cerveja depois do
trabalho e eu nunca recusava. As coisas não estavam saudáveis e
tanto ela quanto eu estávamos infelizes e carentes. Nestes dias
de aproximação, nestas noites de colóquio amistoso, ela chorava
muito no meu ombro ao falar do falecido marido. Quanto a mim,
nunca lhe dei detalhes da minha amargura, da minha viuvez, ao
passo que ela sim, sempre me contava tudo, como tinha sido
feliz com o finado.
− E você, claro, consolava a coitadinha!
− Pare de ironia, Walter! Do contrário, eu não te conto.
−Nossa! O que aconteceu a mais?
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− Durante muito tempo eu a levei em casa, mas nunca
entrava sempre a deixava na portaria. Você sabe, aqueles
prédios grã-finos de Copacabana.... Pois bem, ficamos íntimos,
acho que bons amigos. Uma noite, porém, ela não estava muito
bem, tinha bebido um pouco mais da conta − esta foi a
impressão que tive. Quando a deixei em casa ela logo me
convidou para entrar, “Vamos tomar um café! ”, disse ela.
Entrei, era um luxo só aquela sala, meu amigo! Nunca vi
tamanha opulência. Eram dois ambientes, um de som, outro de
leitura, e, em cada ambiente, jogos de sofás de couro, sendo um
branco e outro preto, pratarias, quadros diversos. Não sabia
muito dos quadros, mas posso dizer que custavam uma grana,
pela fineza do local e cultura de sua dona.
Assim que entramos, ela me falou.
− Paulo, fique aí quietinho que vou fazer um cafezinho
pra nós, viu?
− Não se preocupe, porque tenho de ir embora.
− Se você não tomar o café, me fará uma grande desfeita.
− Então, um café eu aceito. Mas, por favor, não muito
forte, porque meu estômago é fraco. É uma bendita gastrite, que
me acompanha desde que me entendo por gente...
40
− Eu entendo, porque esta fraqueza física é bem comum
nos artistas.
− Não só física, mas de caráter também.
− Eu não acho. Eu vejo vocês, artistas, seres
privilegiados por Deus, as almas mais nobres, que aliviam as
dores dos mortais anônimos.
− Obrigado pela parte que me sobra, mesmo não achando
tudo isso!
− Vou buscar o café! Disse, ligou a vitrola e saiu para a
cozinha.
Enquanto eu esperava o café, fiquei observando toda a
sala tinha muitos discos, livros e quadros que ocupavam a
parede inteira, recordes e sucessos do Brasil e do exterior. Na
vitrola, rodava um clássico, Frank Sinatra. Isabel cantava na
cozinha e, pelo visto, ela sabia todas as músicas, na ordem em
que elas vinham no disco. E diante daquele acervo milionário,
um desvario me veio subitamente, imaginei-me dono de tudo,
inclusive de Isabel. Meu pesadelo não demorou muito − dez ou
quinze minutos − digo “pesadelo”, porque não há sonho pior do
que desejar algo que não é teu e nem ter os meios para alcançá-
lo.
41
Talvez o leitor pense que eu seja inconformado com a
minha situação social e econômica, mas não sou!
Eu ri de mim mesmo. Pus as mãos nas cadeiras e
expliquei para mim mesmo que eu ainda não estava velho
demais para trabalhar e ser alguém na vida.
Do lugar em que estava na sala, a última coisa que eu vi
foi o retrato do finado marido de Isabel. Nesse ponto não pude
evitar, cheguei perto, para vê-lo melhor, e, naquele momento,
lembrei-me do que a Isabel havia me contado sobre ele, um
homem de bem e marido exemplar.
No espaço de alguns minutos, Isabel apareceu com uma
bandeja, um bule e duas xícaras. Serviu-me o café sem deixar de
sorrir um minuto sequer.
−Walter, aquela mulher é encantadora, e, naquele dia,
tinha um ar de princesa, um semblante angelical e olhos de
serpente. Não foi fácil resistir ao seu encanto!
− É, então rolou coisa mais séria?
− Rolou. Certa hora, ela foi até ao quarto, quando voltou,
voltou vestida de um lingerie branca e transparente, perfumada.
− E aí?
42
− Aí que ela desligou a vitrola, perguntou: Calma gato -
está correndo da polícia ou coisa parecida? Quero te mostrar
alguns discos e se quiser posso até te emprestar.
Notei que havia um interesse dela além do normal.
Então, ela sentou-se do meu lado no sofá preto, que parecia
conspirar a favor dela e contra mim, tamanha era a maciez e o
aconchego que me oferecia. E ela continuou.
− Não se sente só no mundo, Paulo?
− Sinto. Acho que, como você, tenho sofrido muito; a
solidão é deveras malvada.
− Pois eu, já me cansei dela, você não?
− Como assim Isabel, você já arrumou alguém?
−Ainda não, mas estou resolvida a mudar, a parar de
sofrer pelo meu marido. Ele não voltará! Não vou mais chorar,
chega! Meu luto ficou velho, se eu não me cuidar quem vai ficar
velha sou eu, não achas?
− Que quer dizer com isso? Já tem algum pretendente?
Perguntei, enquanto ela ria de maneira dissimulada.
− Acho que sim – respondeu, e se jogou em cima de mim
e beijou-me – beijo-me à queima-roupa, ou melhor, à queima-
boca.
43
Não tive como cair fora, nem como me equilibrar diante
do abismo daquela paixão, tão superior a mim, que caiu sobre
meu corpo fraco e carente como uma avalanche de carícias.
− O restante da noite, Walter (e leitor), não preciso nem
contar, ou preciso?
Depois daquela noite, não aconteceu mais nada entre
nós, pois a Isabel nem sequer me olhou mais. Eu soube até que
ela se casou com um magnata de São Paulo.
─ Vai entender essas mulheres da noite! Que
experiência, Paulo!
44
Nos Bares
Eu cantava para os que precisavam de alento, para as
desventuras da vida e para as amarguras amorosas, pois para os
meus desalentos, eu acreditava não haver antídoto. De quando
em quando me lembrava da noite passada. Como seria minha
vida se eu não fosse um simples cantor da noite? Quem ou o
que me trouxe até aqui? Sou um homem de cultura abaixo da
média, regionalista, só fui à escola para aprender a ler e a
escrever, só fiz uma viagem da minha terrinha (Minas Gerais)
para cá − isso porque peguei carona com um motorista de
45
caminhão, logo depois da morte do meu tio querido, que o
considerava um pai, por ter cuidado de mim desde a tenra
infância. Vim tentar a sorte no Rio de Janeiro, porque no Vale
do Jequitinhonha não havia a menor chance de progresso para
mim, já que eu sonhava em ser cantor.
O tio que me criou era uma pessoa esforçada, mas sem
jeito para administrar seus poucos bens. Hipotecou a fazenda em
virtude da seca que assolava a região, mas não adiantou, perdeu
tudo. Ele era idoso, e quando se encontrava sem esperança, não
suportava a tristeza assassina que lhe cobrava o tributo maior, a
sua própria vida. Quando ele morreu, achei que estaria tudo
perdido para mim também, mas felizmente não. Conheci a mão
amiga de um músico velho, um amigo que me ensinou a cantar e
a tocar violão. Foi isso que me incentivou a sonhar com dias
melhores no futuro. Ele sempre dizia:
“O Rio de Janeiro te espera”! Serás músico famoso,
cantarás em rádios e televisão, realizarás teus sonhos de artista,
quem sabes vais até para o estrangeiro! Lá (no Rio de Janeiro)
corre muito dinheiro, não é como aqui, onde se alguém olhar
para uma nota de cem reais, morre de susto! Meu filho, se eu
tivesse menos idade eu iria com você hoje mesmo. Coitado do
Seu Antônio, se minha sorte se resumia àquilo, imagine a dele!
46
Imagine! Ele já tinha seus oitenta janeiros e sobrevivia dos
cuidados dos filhos, também miseráveis como ele, nunca
conseguiram nada da vida.
Pensando bem, sou tal qual o senhor Antônio: sem
alegria e frustrado na sua insignificância.
Eu conheci o pai do senhor Antônio, era forte e cheio de
vigor, morreu com 110 anos. Eu o olhava e toda sorte de
pensamento me vinha à mente, nada mudará, se aqui eu estou
só, no Rio de Janeiro também estarei, então é melhor que eu
parta logo, e sem demora.
O pensamento é um dom divino e o nosso bem maior, só
nosso. Não há tesouro que se compare ao exercício mental e não
há lei e nem território que o proíba. Ele é livre e habita em um
universo sem fronteiras. Embora tenha dono, quando ele nos
deixa, quando sai da esfera sensível, quando o lançamos no
espaço, este filho pródigo rebelde não volta mais para a casa do
pai.
A ideia de ir para o Rio de Janeiro ficou remoendo na
minha cabeça. Não decidi na hora, porque nem grana eu tinha
para viajar e nem onde ficar. Como me convencer, no entanto,
de que eu, músico pouco talentoso, que nunca tinha arredado o
pé do Vale do Jequitinhonha precisava ir para o Rio de Janeiro.
47
A resposta estava na própria pergunta, meu pouco talento me
trouxe para cá. Afinal de contas, por que não ir, que tinha eu a
perder?
“Quando morre uma flor, nasce uma semente; quando uma
semente morre, nasce uma planta. E a vida continua o seu
caminho, mais forte do que a morte. ”
― Tagore
48
Mais uma noite
Uma semana depois, lá estava o Walter de volta ao bar e
com uma cara bem melhor do que a da semana passada. Ele
puxou uma cadeira e sentou-se. Depois do “show”, digo no
intervalo, pois nunca considerei show o que fazia... cantar em
um bar... Fui cumprimentá-lo.
− Como vai? Meu amigo.
− Muito bem.... Vou levando. Quero agradecer a você
por tudo, sobretudo pela paciência em me ouvir naquele dia, e
por ter me levado para casa bêbado. Mostrou ser o que é - um
amigo para o que der e vier.
− Sou mesmo assim, acho que devemos ser assim, ter os
49
braços abertos para todos. Saiba que foi um grande prazer ouvi-
lo e ir até a sua casa, conhecer a sua esposa. A Beatriz é muito
simpática e generosa, por sinal uma dama incomparável! Vocês
formam um casal perfeito. Parabéns! Parecem muito felizes!
− Somos relativamente felizes, apesar do sofrimento
incomum. Almoça lá em casa no domingo, que tal? Emendou
com um sorriso cativante, acolhedor.
− Claro que irei, amigo. E com muito prazer!
− Então está combinado?
− Sim. Estarei lá no domingo.
Conversamos, mas nada muito especial aconteceu
naquela noite. Também não cansarei o leitor com miudezas da
minha vida... E como de costume, já era tarde quando voltei para
casa. Eu era um homem muito diferente, não tinha muitos
amigos, nem mesmo da minha profissão. Não sou puritano, mas
isso de não ter amigos faz parte do meu temperamento, do meu
caráter moral. Não sou dado às paixões inferiores, não me
divirto com a miséria alheia.... Eu não acredito nos prazeres
comprados. Nos bares vizinhos, de onde eu trabalhava, não raro,
eu via alguns músicos saírem com amigos e amigas, outros com
amantes. Não compreendia como eles poderiam ter tanto vigor!
Preciso dar vida a “Labirinto Emocional”,
50
homenageando também outro amigo, que é músico e poeta, um
homem talvez mais sofrido do que eu. Ele é canhoto, talvez a
razão de ser tão perito em sua arte. Toca bossa nova como os
grandes precursores. É a ele que recorro quando quero aprender
a cantar e a tocar alguma música nova. Leitor, refiro-me a
Oliveira Gomes, e se você o procurar nas redes sociais,
encontrará pelo menos algumas poucas canções que representam
sua arte musical e poética. Para que o leitor não pense que eu
sou um homem desprovido de gratidão, aqui deixo registrado o
nome dele mais uma vez, Oliveira Gomes. Este poeta e músico
merece ser imortalizado, assim com o Walter da minha ficção,
assim como os outros que chegaram a fazer grande sucesso.
Ele morava sozinho num barraco, pois nunca teve
condições de construir uma moradia melhor. Ele bebia mais do
que eu, mas nunca o vi completamente bêbado. Fui visitá-lo
algumas vezes, e fiquei pasmo em ver como ele gostava de
tomar café – duas garrafas por dia. A cada copo de café, ele me
dizia que não há felicidade sem vício. Eu nunca discordei dele,
pois sabia que ele era um sábio, apesar de anônimo. Todo prazer
gera um vício. Afinal o que é o amor, senão um vício da alma?
Há, portanto, que se admitir que haja almas mais viciadas que
outras.
51
Quem sabe eu volte a falar de Oliveira Gomes! As
agruras da vida do Walter podem tomar toda minha
generosidade e a arte da escrita, que já é deveras acanhada.
Encarei o trabalho como a razão única de viver. É assim
com os loucos da noite, não dormem nem mesmo quando estão
com sono. E eu tirava proveito destas noites mal dormidas para
compor canções como esta.
Leva meu pranto meu dissabor/Por isso eu canto
para espantar a dor/ Meu violão não aguenta mais
sofrer/ quebrou as cordas com saudades de você./. Não
tem papel, nem caneta para escrever/ falta argumento
para que eu possa te dizer/ Leva meu pranto meu
dissabor/ por isso eu canto para espantar a dor./. A dor
que dói deixa marcas sem furar/ e eu não consigo um
minuto me calar. / Leva meu pranto meu dissabor/ por
isso eu canto para espantar a dor... (uma canção
harmônica em mi menor)
As canções que eu componho são tristes, não entendo
esta melancolia que me assalta sempre às noites! Não entendo!
Pode ser a solidão voraz, que sempre me vence, por mais que eu
52
tente sair das suas garras, que me agarram com uma força
descomunal... Não consigo a liberdade do espírito, quisera eu
voar livre dos pensamentos que me cercam por todos os lados da
consciência, quem me dera poder fugir deste mar de sombras,
que me assombra!
O que é a vida? Um piscar de olhos, um instante
singular, uma paisagem na janela da eternidade. Quando
pensamos que pegamos a estrada certa que nos leva ao sonho, ao
ideal, ao objetivo, à felicidade prevista, sentamos e até tiramos
um cochilo, então vem alguém e nos acorda para o
desembarque, para descermos na próxima parada. Ou quando
pensamos que entramos na estrada, chegamos ao final da
viagem.
Outra noite sem novidades. Tudo correu como sempre, o
mesmo tédio diário da vida comum. Eu, um homem vulgar, sem
grandes feitos, sem realizações importantes, sou mais um
personagem fraco de personalidade, que às vezes conquista o
respeito dos seus coparticipantes do drama da existência
humana e, que em outras vezes, na maioria delas, é massacrado
pelo poder consciente do vil metal, do capitalismo burocrata
que dita o valor de cada ser vivo, humano ou não.
53
Aqui confirmo minha teoria, o amor romântico não
passa de uma grande piada de muito mau gosto. O homem é só
mais um verme que inventou e desenvolveu sentimentos para
preservar, para perpetuar a espécie, entre eles, o maior e
senhor de todos é o instinto de sobrevivência. Este atingiu um
estado maior de evolução, por isso não se satisfaz mais com o
pão de cada dia, com o exercício da manutenção diária da vida,
alcançou também o prazer da embriaguez e da luxúria, do
conforto material.
Todos estes pensamentos eu os atribuo ao meu vizinho,
um velho escritor que, vez por outra, me conta histórias dos
romances e dos livros de filosofia que leu. Eu detesto os
pensamentos deles, são depressivos, mas, muitas vezes, sem
querer, me pego repetindo as suas ideias funestas. Estes
filósofos são sempre uns desequilibrados mentais, que pensam
saber tudo da vida, mas as suas próprias vidas não são lá grandes
coisas, não raro são suicidas predestinados. Vivem sempre
isolados do mundo, não têm amigos, muito menos amores. Eu
evito sempre a companhia dele, para não me tornar mais amargo
do que já sou. O nome dele é Cícero. Não sei o que quer dizer
este nome, mas quem sabe se refira a algum autor de livros
inúteis e ultrapassados, ou a algum sábio grego ou romano.
54
Na semana passada, ele me perguntou o que eu esperava
da vida, já que eu, com quarenta anos, era um homem sem fama
e sem dinheiro, viúvo, sem amor, sem companhia? E emendou,
dizendo que a vida não valia a pena, que viver é algo muito
enfadonho. Para fundamentar seu pensamento, citou um tal de
Schopenhauer, que segundo ele morreu tendo como companhia
apenas um cão vira-lata. Eu confesso que fiquei sem resposta. O
que eu poderia lhe responder? Afinal, para mim não havia boas
expectativas futuras. Eu quase lhe disse que concordava com
ele, se não o fiz, foi só para não lhe deixar mais arrogante do que
já é. Este é um dos motivos, pelos quais eu não lhe dou muita
confiança, para que ele não mine mais a minha estrutura
emocional.
“Como libertar o homem comum de sua ignorância espiritual,
sem, contudo, lhe enganar com a promessa de um céu de
ociosidade nem lhe escravizar com um inferno de fogo, criado
por mente maligna com o fim de dominar inocentes? A
inteligência cósmica de Einstein pode ser o primeiro passo para
uma aurora iluminada. ”
― Evan Do Carmo
55
Um dia especial
Eram quase dez horas da manhã quando fui à casa do Walter.
Não sabia o porquê, mas o dia parecia ser diferente, com cara de
ser muito especial. Preferi ir andando pela orla marítima,
respirar ao ar livre e escutar o leve ruído das águas do mar se
batendo na areia. O sol estava brilhante como prata, o mar azul,
caprichosamente azul, não azul com tons de retórica. Apenas
azul, um azul celestial. Não conseguia conter os pensamentos,
pensava em como seria os filhos de Walter, e que idade teria a
filha que ele mencionara por nome de Rute…. Ao mesmo
tempo, questionava a mim mesmo, se eu tinha, por acaso
motivos para tais devaneios, afinal de contas eu estava há tanto
tempo sem pensar em romance, sobretudo em uma mulher,
56
exceto em minha inesquecível e já falecida Rose. Isso
desencadeou uma reação de censura, “Ainda devo ser fiel à
Rose”, disse em voz alta e aprecei os passos.
Ao chegar à casa do Walter, eu hesitei um pouco em
apertar a campainha, mas antes de ter a chance, vi um anjo
borboleteando ao lado, no jardim. A fascinação foi tanta, que fiz
um poema.
Quão formosa é a tua silhueta,
Borboleta que vem ao meu encontro
Tens as asas da cor de violeta
Assemelha-te à luz do pirilampo
Extasio-me com teu perfume santo.
A borboleta tinha cor azul ou lilás? Acho que tinha todas
as cores do arco-íris da esperança. A imagem foi de perfeita
sincronia estética - magnífica e incomparável. Nunca me
encantei tanto assim. Minhas pernas não me conduziram e
minha mente ficou no mesmo ponto, imóvel, não queria nem
podia desviar os olhos daquela flor divinal, que exalava um
cheiro especial, que me dominava, paralisava todos os meus
sentidos. Fiquei − acho que um quarto de hora - ou uma
57
eternidade - sem ação e reação.
A casa do Walter, como a maioria das casas daquele
tempo, conservava na frente um belo jardim. Era comum às
casas de famílias nobres terem uma área de jardins maior do que
a área construída, e em sua casa o jardim era de beleza singular,
e por que não haveria de ser? Quem cultivava as flores era a
mais linda rosa do jardim de Deus, a Rute. E ela estava ali no
jardim, então já não soube distinguir bem se era uma rosa ou um
anjo, a Rute que me encantou à primeira vista.
−Bom dia, senhor Paulo! Disse ela.
− Bom dia, moça! Você é filha do Walter?
−Sou sim.
Incomodou-me muito ela me chamar de senhor, muito
embora me parecesse um gesto educado, mas ignorei, quem sabe
depois ela percebe que não sou tão velho assim!
Houve um Silêncio intrigante. Depois eu quebrei-o com
uma pergunta simples, mas apropriada.
− O Walter se encontra?
− Sim, ele está esperando pelo senhor na sala. Entre!
Eu entrei.
− Olá Paulo, seja bem-vindo, vejo que é mesmo pontual!
– Exclamou, apertando a minha mão. É um prazer recebê-lo em
58
nossa casa.
− O prazer é todo meu, amigo!
Nesse momento, Beatriz entrou na sala com uma garrafa
de cerveja e dois copos. Cumprimentou-me, depois: “O almoço
já estava quase pronto”, disse, e nos deixou a sós.
Walter pediu que eu me acomodasse da melhor maneira
possível, então me sentei num sofá branco, onde podia olhar o
jardim pela janela, mas logo o Walter serviu-me um copo de
cerveja e sentou-se do meu lado.
Deu o primeiro gole de cerveja e disse que sem a cerveja
ninguém aguenta a dureza da vida. Um gole serve para muita
coisa, até para nos acalmar. Também nos faz esquecer as dores
de consciência, não acha?
−Sim. Mas não bebo esporadicamente ou socialmente
como dizem por aí. Você sabe que não tenho muita afinidade
com o álcool, bebo no máximo três copos, acredito até que seja
uma fraqueza minha, ou do meu estômago.
− Não vai me dizer que passa mal com um gole?
− Claro que não!
Houve uma pausa em nossa conversa, em seguida eu lhe
perguntei:
− Então, Walter, seu filho, onde está?
59
− Está na sala de jogos. Mas logo vai conhecer a todos.
Você já conheceu Rute?
− Sim. E com todo respeito, porque não sou um homem
galanteador por natureza, mas ela é um encanto.
Rute tinha vinte e nove anos, mas parecia que tinha vinte
três. Não era velha e nem nova para não se casar, estava na
idade ideal. Naquele dia, por acaso era o meu aniversário. Eu
estava completando quarenta anos, mas não disse nada para o
Walter, também nunca dei muita importância para aniversários,
especialmente nos últimos quinze anos.
Um homem sem família nem tem tempo para estas datas
ditas especiais. Aliás, o que há de especial nesta data é que
ficamos mais velhos. Eu não tenho parente, o trabalho é minha
família. Eu era o último e único da família, último de um ramo
genético de uma árvore maldita... Acho que daquela videira que
o Cristo amaldiçoou por não dar frutos.
Esta cena merece este adendo. O fato de o Cristo ter
amaldiçoado a videira, um erudito comenta. “Se trata de uma
ilustração intrigante, de uma lição com uma conotação
puramente simbólica. O tempo não estava adequado para a
videira ficar carregada de frutos. Com isso o Cristo queria dizer
60
que, aqueles que se tornassem ramos da videira original, que
era ele próprio, não teriam dificuldades para produzir frutos da
sua doutrina mesmo em qualquer estação.”.
Já no ultimo copo de cerveja, Beatriz entrou na sala. “O
almoço está na mesa!”, disse isso com um sorriso amável no
rosto. “Opa!”, exclamou Walter. “Vamos lá!”, emendou.
Nós ainda estávamos na sala quando o filho caçula de
Walter entrou. Armando era cadeirante, sorridente que só! −
Característica destes seres iluminados que veem ao mundo com
as limitações físicas, mas cheios de virtudes e de prazer pela
vida. Ele fitou-me profundamente, como se fôssemos amigos de
longa data. Amei aquele ser, não por ser limitado, mas por sua
sinceridade, segurança e a firmeza de olhar.
Nunca havia passado por esta emoção, a força que ele
possuía no olhar não me era compreensível, seu semblante,
apesar das deformidades da doença, era suave e sereno, seu
olhar passava um ar seguro, satisfeito e resignado e não
demonstrava irritação por ser cadeirante. Mergulhei
profundamente em sua alma para compreender um pouco do seu
modo de vida vegetativo e, quanto mais fixava meu olhar no
seu, mais tranquilo ele ficava, era como se ele entendesse meu
61
especular mental. Dizia-me que era feliz, sorria
incontrolavelmente como resposta para minhas indagações.
Sinceramente não compreendia sua alegria, que era para mim
imprevista e desproporcional para sua história e para o seu viver
emocional e físico.
Vamos almoçar minha gente! Disse Beatriz. E depois de
curta pausa: − A comida vai esfriar!
A mesa era farta. Uma tigela de frutas da época e carnes
diversas, outra de salada, guloseimas variadas, pães do Oriente,
muito azeite, castanhas e queijos suíços. Um banquete! A mesa
farta me lembrava de alguns natais com a minha família, época
em que minha esposa reunia nossa família para uma ceia em
grande estilo, apesar de sermos uma família humilde. O fato de
reunir os parentes era importante, mas isso só acontecia uma vez
por ano. Não raro, porém, eu faltava a estas festas por causa do
meu trabalho noturno e incomum. Mas toda esta fartura era
agora uma novidade para mim, já que eu almoçava sempre na
cantina da Dona Valdelice, uma mineira que mais parecia baiana
por sua intrépida personalidade e alegria contagiante. Ela era
cozinheira de mão cheia, mas não variava o cardápio. A cantina
muito me lembrava das minhas origens, do tempo de agregado
na fazenda do meu tio, onde todos os dias só se comia angu de
62
milho com carne de frango e quiabo.
Era comum na casa do Walter a oração antes do almoço,
apesar de eu suspeitar do seu ateísmo, e naquele dia não foi
diferente. Rute quem fez a oração. Não lembro quais foram as
suas palavras, mas foi tudo muito profundo e verdadeiro, aquele
instante sagrado, aquele colóquio com o Divino, com o Criador.
Eu não acreditava em nada, era ateu também, ou pensava que
era. Aliás, eu não poderia ser ateu, só há duas coisas que podem
tornar um homem ateu, a arrogância do intelecto e o
sofrimento, que o faz desacreditar de Deus ou em qualquer
plano divino. Perto de Rute eu não tinha sofrimento. Aquele
almoço, não só pela companhia, mas especialmente pelo clima
do ambiente familiar foi muito marcante para mim. Algo mais
importante do que um ritual sagrado, foi como se eu estivesse
participando de alguma cerimônia religiosa. Senti que minha
alma se alimentou e se elevou também com aquele banquete de
tantas virtudes morais e espirituais. Contudo, hoje eu tenho
consciência do quanto aprendi com as agruras da vida e acho
que não se crê em Deus por escolha. São as dores que nos
desvirtuam a visão do que é realmente sagrado ou divino. Um
lar, onde mora a harmonia e onde a paz impera entre seus
membros, pode ser uma representação fiel do que é sagrado.
63
Quando uma família se reúne num espírito de solidariedade,
quando vencem as disputas mesquinhas que só rebaixa a alma
humana, isso por si, já é um ato de adoração ao criador, que nos
legou uma inteligência singular.
Terminado o almoço, Walter convidou-me para irmos à
varanda.
− Vamos prosear mais um pouco, não é assim que se diz
em Minas? − Disse o Walter.
Walter gostava de me provocar, ora caçoando de meu
sotaque mineiro, ora das palavras que faziam parte da minha
etnia, do meu vocabulário vulgar.
− Paulo, o que achou da minha família? Que impressão
teve até aqui?
−A melhor possível. Você tem filhos e esposa
maravilhosos
−Sim, amigo. A vida não tem sido fácil para meu garoto
de ouro. Conviver com este destino, com esta doença, significa
um sofrer constante. Ele nasceu assim, não fala, não anda,
precisa de ajuda para tudo, exceto para respirar. Mas Beatriz e
Rute têm sido fortaleza e amparo, fazem tudo por ele. Rute não
tem vivido sua própria vida, ultimamente até parou com os
estudos, na verdade, há dez anos que vive só para ele. De lá para
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cá, ficou mais fácil para Beatriz, mais leve, elas se revezam
nesta pesada luta diária... Rute nem pensa em se casar, diz que já
resolveu isso no coração, com o fim de ajudar mais a Beatriz, ela
ama a mãe e faz tudo para amenizar seu sofrimento. Rute é
mesmo um anjo.
“E que anjo! ” Pensei comigo.
Eu, que era cético, já começava a acreditar em anjos,
faltava pouco para eu acreditar em um milagre – milagre este
que seria ter aquele anjo nos meus braços para a vida toda.
O leitor pode achar estranho, porque ainda há pouco
tempo nem em Deus eu acreditava, agora já acredito em
anjos… Isso é porque você leitor, talvez nunca tenha lido o livro
de Jó! Pois então leia e verá que ele também teve seus
momentos de lamúrias Justas, e se não quiser ler Jó, leia
Hamlet −a essência real do que é humano.
Contei para o Walter um pouco sobre minha desventura
familiar e, após ouvir, Walter disse: “Amigo, lamento
profundamente! ” Só estranhei que Rute e Beatriz não ficaram
na varanda conosco. O Walter, parecendo adivinhar minha
indagação mental me falou.
− Elas estão dando atenção ao Armando, ele sempre tem
convulsão depois do almoço, mas não se preocupe Paulo, pois
65
elas tiram de letra, já são muitos anos de experiência.
−Armando já dormiu, disse Beatriz, entrando na varanda.
Logo atrás veio Rute, dizendo. “Agora podemos dar atenção ao
Paulo! ” Foi então que pude ver a cor dos olhos de Rute: azul.
Também foi naquele instante que aqueles olhos me roubaram os
meus e a minha alma.
Olhos, por que são tão poderosos na força de convencer,
de condenar e de perdoar? Até de dominar sem o uso das mãos,
sem o uso da força física e brutal? Fiquei escravo daqueles olhos
e daquela moça, que passou a ser a dona não só dos meus olhos,
mas também de minha vida, do meu futuro e do meu coração.
Que encantamento desmedido, diria uma pessoa de bom
senso, mas o amor não se explica só se sente, e por ele se é
dominado, sem rejeição consciente.
− Paulo, Walter me disse que você canta muito bem −
disse a Beatriz com seu riso peculiar e emblemático. Que tal
cantar agora? Já podemos ouvir, com a devida atenção que a
música e o cantor merecem.
− Com prazer, dona Beatriz! Se tiver por aqui um violão,
é claro.
− Vá buscar o seu violão, Rute, hoje teremos cantoria
66
com profissional! Gritou Walter entusiasmado, já sob a alegria
incomparável do álcool. Rute pegou o violão que estava em
outra sala, me entregou sem demora, atendendo ao comando do
pai.
O violão estava judiado, sem uma das cordas, e
desafinado. Tão judiado, que tive pena do coitado pelo mau trato
que sofrera. Enquanto o afinava travei uma conversa com o
maltratado violão.
E que sorte esta tua, amigo violão, estar tão perto de um
ser tão sublime e digno da devoção de todos os instrumentos!
Daria tudo para trocar de lugar contigo − mesmo que fosse
apenas por uma hora, e ficar na sua intimidade solitária. Ou
para ter sido a madeira da qual te forjaram, sortudo violão, não
me importaria com os golpes de machado que levaste, com sol e
água que pegaste na preparação para alcançar o estado de
madeira seca, para a fabricação. Daria tudo para ser você, e
ser acariciado por ela no início de sua dedicação à música,
quando aprendera e descobrira o encanto dos primeiros
acordes.
Bossa nova no Brasil era a bola da vez, por isso eu
cantei na casa do Walter. Todos aplaudiram sem nenhuma
67
observação digna de nota ou crítica. Durante a cantoria cruzei
olhares duas ou três vezes com Rute, não percebi nada, nem
recebi nenhuma admiração recíproca, ela não se empolgava
muito fácil com músicas, parecia-me até um pouco triste e
distante.
Mais tarde, Rute nos serviu um café − este não foi tão
amargo como me parecia a sua vida atual. Eu não queria muito
ir embora, queria ficar ali. E até o violão, companheiro dileto,
parecia ter encontrado em mim um irmão na solidão e na dor.
Disse-me ele.
“Não vá amigo! Toque mais uma canção, Rute está
gostando de nos ouvir! Cante aquela canção! Aquela, amigo!
Eu poderia ficar ali por toda a eternidade ou por toda a
vida que ainda me restava. O deus Crono, contudo, foi deveras
ingrato, por acelerar a rotação do relógio do tempo para
alcançar a velocidade do meu coração.
Como já era muito tarde, por volta de nove horas da
noite, e no outro dia eu tinha que acordar cedo. Fui embora:
deixando meu sonho para trás.
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"O amor não se explica só se sente, e por ele se é dominado,
sem rejeição consciente”.
Evan do Carmo
69
De volta à realidade
Sabe quando falamos para nós mesmos: “hoje foi um dia
muito bom para se viver, valeu à pena acordar? ”.
Foi isso que senti. E minha alma pulava de alegria por eu
ter concedido a mim mesmo um dia tão singular, onde pude
distrair meu coração, e sentir que nem tudo estava perdido.
Poderia viver e até sonhar em ser feliz outra vez. Poderia, se eu
quisesse dar uma resposta para meu vizinho filósofo, dizer para
ele que a minha vida valia muito a pena ser vivida. Mas eu
poderia estar enganado em acreditar que, por conta daquele
almoço, tinha eu o direito de sonhar tão alto. Tudo foi real. Mas
tudo foi.... Eu estava feliz, e não precisava mostrar isto para
70
ninguém.
Porém, a minha realidade era bem diferente da de Rute:
Eu Morava num quarto-e-sala em Copacabana, eu mesmo
lavava e passava minha roupa, arrumava a casa… estes afazeres
sem importância, mas que alguém sempre precisa fazer para que
nosso lugar de morada não se torne um habitat de animais. Não
sou organizado, no entanto, aprendi às duras penas que os
afazeres de casa precisam ser feitos, afinal uma casa por mais
simples que seja, se for limpa se torna agradável para se viver.
Eu tinha uma vida corrida: Cantava nos bares e dava aula
num conservatório. A música era uma atividade que me dava
muito prazer. Cantar e ensinar aquilo que aprendi me dava um
senso de utilidade, de quase realização. Ser necessário para
alguém, na altura da minha existência me confortava bastante.
Não estou reclamando da vida, minha carga era um tanto mais
leve do que a do Armando ou mesmo das duas boas almas que
cuidavam dele. Um deficiente na sua condição precisa de
muitos cuidados e reclama doação total do tempo. Imagino
quanto desprendimento deve ter uma pessoa com esta
responsabilidade! Eu não me acho capaz para isso e nem mesmo
para entender esta faceta da vida, ou do destino! Qual a razão de
nascerem pessoas assim como o Armando, no seio de famílias,
71
como a do Walter, onde encontram pessoas abnegadas como
aquelas, especialmente as duas mulheres, Rute e Beatriz? Dizem
os “entendidos”: é por motivos de dívidas de vidas passadas. Eu
não aceito este argumento; quem recebe o pagamento? É Deus?
Outros dizem que Deus é amor. Que me perdoem os que
acreditam em teorias tão vazias como estas, penso que na
verdade, este tipo de crença atrapalha o desenvolvimento do
amor altruísta; quando as pessoas deviam fazer de forma
voluntária e não por achar que devem este amor para os
vitimados por distúrbios da natureza. Só sei que nós, os seres
dito “normais”, aprendemos muito com estes exemplos de vidas,
com suas vidas, que para nós mais se parecem com um vegetar
inútil. Embora não compreendamos bem o porquê dessas vidas,
tiramos muito proveito delas, quando pesamos e comparamos na
balança do existir o nosso sofrer com os deles... Principalmente
quem tem o privilégio de receber no berço familiar uma criatura
como Armando, aprende a ser agradecido a Deus e à vida pelo
que tem. São motivos que desconhecemos totalmente: O porquê
de nascerem aqui, neste mundo tão desumano, exemplares da
fauna de Deus, tão humanos. Mesmo aqueles que não
pronunciam nenhuma palavra têm o dom de nos ensinar a ópera
musical da vida...
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Achei o amor
Achei o amor, o insolúvel enigma
para os deuses, mas real para homens.
Achei o amor, em meio à contradição,
entre o medo e o abismo.
Achei o improvável, o que ninguém presumia
o teorema das águas e do fogo.
Achei o amor, a soma do equilátero
do infinito, sem medida.
Achei a consumação de tudo, do fim e do meio,
achei o etéreo-efêmero.
Achei o amor, o impossível, o imanente,
o átomo divisível, sem cor, nem corpo ou gênero.
Evan do Carmo
73
O encargo
Walter trabalhava no Jornal do Brasil, jornal mais
importante do Rio de Janeiro e do Brasil, onde assinava uma
coluna sobre política, publicada diariamente e uma das mais
lidas e comentadas. Não há como negar, para mim Walter era o
homem mais sábio que já conhecera, pois entendia muito sobre
tudo, era um poliglota, e era dotado de linguagem e estilo
próprios. Com ele aprendi muito, aprendi teorias e leis
científicas, como da evolução, da relatividade e da gravidade. As
viagens de trabalho tiravam Walter do aconchego da família,
mas quando chegava ele era presença viva e intensa entre os
74
seus. Exceto quando ia ao bar me ver tocar e beber sua cerveja.
Eu, contudo, já nesta época, levantei suspeita sobre sua
conduta moral. O que fazia um homem casado, chefe de uma
família tão linda e tão especial, tanto tempo ausente de casa?
Algumas semanas se passaram até que eu o vi outra vez.
Foi quando ele apareceu no bar e me surpreendeu com uma
confiança que eu até então não sabia ter junto a ele e à sua
família. Depois de uma longa conversa, sempre agradável e
descontraída, Walter me disse:
−Paulo, meu grande amigo, eu vou viajar e não sei
quanto tempo ficarei ausente. Preciso que alguém de minha
inteira confiança ajude a minha Beatriz enquanto eu estiver fora.
Sabe muito bem o que é uma casa sem uma figura masculina,
fica vulnerável a perigos de predadores de toda sorte!
−Sinto-me lisonjeado por tamanho apreço e farei o
máximo para corresponder à altura desta digna missão. Será sem
dúvida um prazer ser útil a um amigo querido como você. Mas
me conte: O que realmente preciso fazer?
− Nada muito difícil para um homem de bom caráter e
inteligente como você. Quero apenas que dê suporte à minha
família. Diariamente Armando precisa ir ao hospital, Rute tem
feito isso de maneira muito terna e amorosa, mas quero que ela
75
aproveite mais a vida, que estude, trabalhe e namore... Rute não
reclama da vida que leva, mas sinto que ela anda muito cansada.
−Walter, fique tranquilo, darei o melhor de mim, embora
eu ache que a figura paterna, nestes casos não se pode substituir.
Mas me diga Walter, quando viaja e para onde?
−Viajo na próxima semana para Londres. Na próxima
sexta-feira quero que jante conosco, assim você vai se
familiarizando mais com os assuntos em pauta. E mais uma
coisa, no sábado quero que vá comigo à fazenda, pois tenho uns
assuntos pendentes por lá e quero que você os acompanhe
também. A fazenda não é de muitos alqueires, mas exige
administração, pois tenho alguns funcionários. Você já me falou
que seu tio era fazendeiro e que tem prática nisso, então se sairá
muito bem. Mas que fique claro isto, pagarei a você pelo
serviço. Afinal não devemos confundir nossa amizade, lhe serei
grato eternamente por este feito. Se recorri a você é porque não
tenho ninguém na família para este cargo de tamanha confiança!
Tenho o capataz, Juvenal, só que é muito idoso e ignorante, não
resolve todos os assuntos sozinho. Tenho alguns empregados na
fazenda que cuidam dos assuntos domésticos, e da casa aqui do
Rio quem cuida é a dona Francisca. Não gosto de ostentar
riqueza, a fazenda foi herança da mãe de Beatriz, confesso que
76
não tenho muito jeito para a vida no campo, só que alguém tinha
que tocar pra frente, até que um dia achemos quem compre
aquilo lá. A Beatriz não concorda comigo em vender, tem muito
valor sentimental para ela, coisa de família, você sabe como é.
Na sexta-feira, fui à casa do Walter, como havia
combinado. Fui recebido com cordialidade e carinho, que só é
dispensado a alguém muito querido, a alguém da família. Pude
rever a Rute, que até então não me parecia real aquela imagem
de tamanha beleza e sublime ternura. Na sua segunda aparição,
contudo, o anjo surgiu mais encantador ainda. Disse-me o anjo:
−Paulo, como tem passado? Estamos contentes de saber
que seremos auxiliados por você na ausência do papai. Prometo
não lhe dar trabalho, a não ser exigir que cante para alegrar
nossas noites tristes e solitárias. Não me esqueci daquele dia em
que almoçou conosco, em que cantou tão bem! Achei que você
tem um enorme bom gosto quanto à escolha do repertório, e
gostaria de ouvi-lo outra vez, isso quando puder, quando for
possível. Ela referia-se à canção que falava: “Aqueles olhos
negros... Rute me pareceu bem mais amável e feliz”.
Disse isso com um sorriso inebriante, e com um olhar
matreiro, como se quisesse me dizer algo mais. Será que ela
também estava enfeitiçada pelo anjo mágico do amor à primeira
77
vista? Teria eu, com toda a minha aparência vulgar despertado
nela algum sentimento além de piedade? Ela já se interessava
por mim? Ou era só o orgulho da luxúria, de ter aos seus pés um
escravo cantor?
As palavras de Rute me soaram um pouco intrigantes,
principalmente: “que cante para alegrar nossas noites tristes e
solitárias”. Então, pensei se eu não estava ciente sobre a minha
tarefa de administrador de fazenda e do lar. Mas esqueci por um
tempo este assunto.
Depois do jantar, do usufruto da mesa farta e do vinho
saboroso e raro para mim, fomos à varanda conversar, como
fizemos da vez passada, da primeira vez que os visitei
formalmente, pois na primeira vez que estive em sua casa fora à
noite, no dia em que conduzi o Walter embriagado.
Walter expôs e com detalhes, meu encargo, me confiou
muitas responsabilidades, até sobre dinheiro, aplicações e
pagamentos de funcionários...
Eu estava disposto a organizar minha vida para assumir o
cargo que Walter me ofereceu. Durante a conversa na varanda,
ele me disse que era importante que eu pudesse ficar em sua
casa em tempo integral, pois o Armando estava bem pior na sua
78
luta pela vida, mostrava já sinais de cansaço terminal, e a família
temia que o pior estivesse para acontecer a qualquer momento.
Esperava a qualquer instante o desfecho da sua vida na morte,
que lhe traria o descanso eterno e merecido. (Palavras do
Walter.) Foi, então, que compreendi as palavras de Rute sobre
alegrar as suas “noites trises e solitárias”, para mim, as suas
palavras era como se ela soubesse o que estava para viver.
Ficamos conversando até altas horas. E aquele dia foi
inesquecível para mim, porque conheci melhor o anjo que eu
não sabia que podia existir de verdade. Ouvira falar de anjos,
porém nunca os havia visto assim tão de perto, assim em carne e
osso, tão perto de mim e com aquele sorriso, com aqueles olhos
azuis tão encantadores. Por que aqueles olhos decifravam os
pensamentos mais secretos da minha alma? Só havia visto a
Rute duas vezes e eu tinha consciência de que era muito pouco
tempo para tamanha perdição, embora eu soubesse que os
mortais tenham fascinação por seres celestiais, e que lhes bastam
apenas um contato, um aceno, para que se tornem eternamente
devotados desses seres superiores. Penso que é aí que reside o
ponto fundamental de encontro do ser humano com o ser divino,
o amor, o encantamento, a paixão carnal e avassaladora. E a
mulher sempre será nossa incógnita eterna, para distinguir o que
79
é santo e o que é profano.
Enquanto eu e Walter conversávamos, minha mente não
parou: Será que darei conta do recado, não iria eu decepcionar
meu amigo? Além disso, pensava: E se eu me envolver
emocionalmente com Rute? (O amigo leitor deve dizer que já
me envolvi da sola do pé até o pescoço). Mas o nosso coração é
um poço fundo de engano, e por mais que neguemos um
sentimento, mais óbvio nos revelamos aos olhos dos outros.
“Medes o meu espírito pelos afetos humanos; mas é porque não
sabes como saiu depurado do crisol de um padecer infernal. ”
“Examinas bem a tua consciência e diga-me qual é para os
corações nobres o motivo imenso, irresistível das ambições de
poder, de riqueza e renome”? “É um só, a mulher: É esse termo
final de todos os nossos sonhos, de todas as nossas esperanças,
de todos os nossos desejos”. Humberto de Campos
Outro desafio que enfrentei foi mudar minha rotina.
Nós, seres humanos temos muito medo de mudanças,
especialmente no que se refere ao trabalho. Ficamos
condicionados a um modo de vida, que embora não seja dos
melhores, não queremos arriscar tudo em algo novo. Lembrei
aqui algo muito interessante que apreendi sobre a águia:
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“A águia aos quarenta anos, precisa passar por
um processo de reciclagem física e mental. Ela tem uma
escolha, para continuar vivendo, então sobe numa
montanha, lá fica por seis meses, para ganhar um novo
bico e penas novas, ela começa assim, sua auto
metamorfose, rala o bico nas pedras até cair todo o bico
velho, este processo leva em média dois meses, depois
que o bico novo nasce ela começa agora arrancar suas
unhas e penas velhas, depois que nascem e crescem suas
unhas novas e penas, ela está pronta, agora, para o novo
voo e uma nova vida, que pode chegar aos 70 anos. ”
Muitas vezes tentei mudar de emprego, mesmo
ganhando uma miséria nunca consegui sair do meu modo
simples de ver a vida, nunca faltou o pão, acho que na verdade
sempre fui feliz com o pouco que eu tinha.
Agora minha vida seria outra, passaria a viver em uma
casa com pessoas amáveis, trabalharia numa atividade diferente
do que eu idealizei.
Naquele dia, não consegui dormir. Era tudo demais e
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especial para mim. Falo do meu amor por Rute. E se fosse
engano, uma carência, ilusão da minha parte? Um anjo daqueles
não iria me dar confiança…. Resolvi dar tempo ao tempo, assim
saberia se o que sentia por Rute era verdade e se ela também iria
corresponder ao que eu sentia.
O tempo é mestre em assuntos do coração, em
sentimento mal-entendido. Os sentimentos não envelhecem,
amadurecem, e o tempo tem a dieta certa para engordar ou
emagrecer estes vermes que nos alimentam e que nos devoram.
Walter e eu levantamos cedo, quando o dia ainda
amanhecia. Tomamos café e seguimos logo para a fazenda.
A fazenda não ficava muito longe – a uma hora do Rio
apenas. Fomos de carro – de carro novo, do ano, um Jeep muito
bonito, vermelho, um luxo daqueles dias. Beatriz e Rute não
foram. Logo que chegamos, Walter me apresentou ao senhor
Juvenal, que nos recebeu com muita alegria e hospitalidade –
uma característica de gente simples, que não vê maldade nos
nobres cavalheiros da cidade.
Lá pude perceber o tamanho da minha tarefa, quanto era
grande a minha futura responsabilidade. A fazenda não era de
muitos alqueires, mas tinha muitas atividades, criava-se ali gado
de corte, muito gado por sinal, isso no meu ponto de vista, que
82
por ser carente tudo me parecia grande. Nada ali combinava com
o que eu sabia a respeito do Walter, porém, ele já explicara que
a fazenda era herança da Beatriz. Entretanto, o Walter não era
nada interessado pela fazenda, falava sem muita preocupação,
como se não lhe pertencesse. Acho que tinha um quê de
despeito, por ter herdado aquilo tudo, era como se se sentisse
humilhado por ter que dizer que foi herdada da família de
Beatriz.
Conheci também o filho do senhor Juvenal. Ricardo.
Ricardo era um jovem de vinte e cinco anos e, pelo que percebi
sabia muito mais da fazenda do que o Juvenal e o Walter juntos.
Quando viu o Walter, logo perguntou:
− Seu Walter, a Dona Beatriz não quis vir hoje? E Rute,
como está ela? E o Armando, como vai?
O Ricardo demonstrava certa liberdade para com a
família, falava um tanto agitado e sem olhar para o Walter.
Achei-o fraco de personalidade, mas me enchi de ciúmes dele.
−Não Ricardo, Beatriz não veio. E Rute vai muito bem
obrigado, mas o Armando não está muito bem.
−Sinto muito, senhor Walter! Espero que Armando
melhore!
Depois desta breve conversa, fomos andar pela fazenda.
83
Aquela paisagem era muito familiar. Fez-me lembrar de minha
infância em Minas Gerais, quando cavalgava no campo com
meu tio. Ele tinha uma pequena fazenda, onde eu aprendi muita
coisa, como plantar, cultivar, regar e colher.
Durante este passeio, me mordi todo de ciúmes do
Ricardo, porque ele parecia muito íntimo de Rute. E todos os
pensamentos passaram pela minha cabeça… O que há entre os
dois, por ventura algo tipo de namoro? Por que ele fala muito
nela? Será que ele desconfia do meu amor por Rute? As pessoas
simples, não raro, se apresentam dessa forma, gostam de fingir
intimidade com desconhecidos ou com pessoas importantes, mas
no meu caso não se aplicava nem um nem outro.
Passei o dia na fazenda, me inteirei sobre quase tudo.
Mas uma dúvida me atormentava. Seria o Ricardo capaz de
cuidar de tudo da fazenda? Ele nasceu na fazenda, conhecia cada
canto daquele chão − com suas peculiaridades. Mas bobagem
minha…. Tudo na fazenda estava harmoniosamente colocado
nos seus lugares, funcionavam muito bem as coisas por ali.
Então, não vi necessidade da minha presença naquele lugar. Mas
por que Walter me quer ali?
84
“Como libertar o homem comum de sua ignorância espiritual,
sem, contudo, lhe enganar com a promessa de um céu de
ociosidade nem lhe escravizar com um inferno de fogo, criado
por mente maligna com o fim de dominar inocentes? A
inteligência cósmica de Einstein pode ser o primeiro passo para
uma aurora iluminada. ”
Evan Do Carmo
85
O ciúme
Eu fiquei intrigado com as feições do Ricardo quando ele falava
da minha querida Rute. Acreditei que os dois se amavam. No
coração de um apaixonado não há lugar para consciência ou
razão, tudo é sangue, instinto, força e domínio brutal. Um ser
apaixonado vira louco, perde a condição humana perante a
tragédia, como também perde o dom sublime de refletir sob a
luz da inteligência. Por mais que eu tentasse não demonstrar
minha fraqueza, terminei por revelar a quem não devia, as
minhas intenções futuras. Perguntei ao Walter.
−Walter, o que acha do Ricardo? Ele me parece bem
íntimo, como alguém muito próximo de sua família...
86
−Ele convive muito conosco, é verdade, também é amigo
de infância de Rute, cresceram praticamente juntos. Quando
íamos para a fazenda nos fins de semana, eles brincavam no
campo, tomavam banho de cachoeira, andavam a cavalo….
Estavam sempre juntos. Mas nunca tiveram nada, posso lhe
garantir e depois, Rute é muito madura e responsável, não se
envolve com empregados meus - disso eu tenho certeza.
Respirei bastante aliviado. Mas me arrependi de ter
perguntado ao Walter sobre o Ricardo, porque se Rute não se
envolvia com empregado do pai, quiçá com um músico velho e
pobre. Quiçá!
Todavia, o fato de Walter me garantir que sua filha
nunca tinha tido nada com o Ricardo me deixou deveras
convencido. Teria o Walter percebido o que se passava por
minha cabeça e pelo meu coração? Dizem que os pais querem
sempre o melhor para os seus filhos, e neste caso, poderia sim o
Walter ter vislumbrado esta possibilidade, a de ter um amigo de
confiança como seu genro?
87
Na cidade
Pela tarde do dia seguinte, Walter levou-me ao cartório no
centro do Rio de Janeiro, para assinar a procuração, pela qual ele
me nomeava seu representante legal, para agir em seu nome em
todas as situações em que não poderia estar presente. No ato de
assinar, quase voltei atrás, mas Walter me convenceu com
argumentos tão concisos, que acabei aceitando tudo sem mais
indagações. Walter agiu como alguém que não voltaria nunca mais.
Supondo assim, logo me justifiquei:
−Quero deixar bem claro que eu não tenho intenção alguma
de roubar-lhe o que por direito lhe pertence - seus bens nem a sua
família.
88
− E nem pode, pois esta procuração só tem valor jurídico
por algum tempo, sobretudo enquanto eu viver.
Estar à frente dos negócios do Walter significava mudança
radical de vida, e era isso o que de fato eu queria. Eu estava muito
acomodado e sem perspectivas.
A falta de ambição nos priva de asas para voar para outros
continentes, para respirar outros ares. Somos como animais feridos,
o natural, portanto seria o desejo de novas conquistas, não aceitar
uma situação perene. Por que os pássaros migram? Para doar suas
energias para que outras vidas venham à luz do mundo. O ser
humano em depressão esquece-se do seu papel natural que é
impulsionar a vida para outros destinos. Sentir-se assim, como eu
me sentia, não é algo benéfico, nem para quem sofre o mal e nem
para nossa espécie humana. É como se disséssemos que não somos
criaturas capazes de ir além do instinto, pois, além da verdade, o
instinto não cessa nunca seu trabalho de procriação e de respiração.
Entregar-se ao estado de vida vegetativo é um retrocesso de
inteligência. A natureza nos ensina lições todos os dias, a cada
nascer e a cada pôr - de- sol. À noite, as criaturas noturnas vão à
procura da sua sobrevivência. Há, portanto, um equilíbrio do
planeta que permite a convivência de criaturas muito distintas.
Quanto aos seres humanos, eles são uma espécie incomparável no
que tange a criar novos caminhos. Há uma ilimitada lista de opções
89
para engendrarmos nossa existência de modo nobre e produtivo.
Então, vamos criar novos caminhos para que outros que venham
depois de nós possam ter milhares de oportunidades para
impulsionar o crescimento da nossa espécie tão singular. Para a
inteligência não pode existir barreiras intransponíveis. Aprendamos
com os animais a exercer a força mental que nos legou a natureza
criativa de Deus!
90
A sobrevivência do homem e do planeta depende: se seremos ou
não capazes de desenvolver a tolerância. Este pensamento é
comum entre grandes espíritos humanistas. Cito dois pelo
menos, Russell e Saramago.
Evan do Carmo
91
No Rio de Janeiro
Quando cheguei ao Rio de Janeiro, era jovem – com
apenas 19 anos, − inexperiente e sem muita formação
profissional. Com isso, sofri como um condenado. Eu não tinha
dinheiro para viajar, vim de carona. Eu não conhecia ninguém
na cidade e nem a própria cidade. Foi a época em que eu mais
caminhava pela cidade, batia de porta em porta pedindo
emprego e com essa vontade de mudar de ares, bati na porta do
bar e do conservatório de música, onde estou até hoje.
Cheguei com duas peças de roupas na mochila e com um
violão debaixo do braço, violão que ganhei do meu tio. Quando
92
olho para o violão, lembro-me das palavras do meu tio: “Será
uma lembrança minha para toda sua vida, pois do primeiro
violão e do primeiro amor ninguém jamais esquece ou se
desfaz.”
Passei fome até encontrar um homem bom, daqueles
que Deus faz um e joga fora a receita. Com isso, comecei a
sobreviver, tendo o que comer e um pouco de paz de espírito.
Este homem bom a quem me referi, era um professor do
conservatório, onde dei aulas até me mudar para casa de Walter.
Lógico que eu não entraria pela janela, passei por um
teste simples no conservatório. Aprovado, comecei uma vida
nova. Assim aconteceu no bar. Se tais oportunidades não
aparecessem, eu estaria ainda vagando pelas ruas, dependendo
da bondade de algumas senhoras que me davam sempre algo
para comer e beber.
Comecei como professor auxiliar. Com o tempo, o
professor titular, Jorge Figueira (o mesmo que estendeu as mãos
para mim), viu a minha capacidade, sugeriu para o diretor uma
espécie de cadeira cativa para mim. O diretor concordou.
Jorge Figueira era cantor das noites também, era casado
com uma cantora francesa, mas de sangue latino, pois, o
convívio com os brasileiros fizera com que ela perdesse o
93
sotaque. Às vezes, ela aparecia no conservatório e cantava por
insistência minha a canção “La Boemia”, que muito me
fascinava e fascina até hoje. A língua francesa é sem dúvida a
voz que mais se aproxima da voz de Eva no Paraíso do Éden
perdido, quando ela dizia ao seu Amado Adão, que o amava na
língua mãe.
Embora eu fosse bom estudante e conhecedor de um
pouco de música, eu fiz questão de ser aluno de Jorge Figueira,
aulas inesquecíveis de música e de canto. Com isso, me
atualizava sempre. Morei na casa de Jorge Figueira por oito anos
e posso afirmar que foi ele a minha verdadeira faculdade de
música e de vida. Graças a ele conheci muita gente da música e
da arte. Depois fui morar na Zona Sul, porque ficava mais perto
do bar. Foi lá no bar que conheci o Walter...
No ano em que completei dez anos de bar, Jorge Figueira
ficou viúvo.
94
UMA DICA DO JAZZ
O que há de belo na velhice é a poesia da inutilidade. É claro
que esta ideia ou ponto de vista não é de um velho, mas pode
bem ser de uma jovem que tenta interagir com um velho em
profunda decadência física e mental...
Contudo, o velho tem a seu favor a experiência, conhece os
atalhos por onde teve que passar. Atalhos estes que certamente
um jovem ainda não trilhou e nem conhece...
Sempre há uma justificativa para o absurdo, uma causa, um
efeito e, a despeito do que podem pensar o velho e o jovem,
ambos estão trilhando a mesma estrada, escrita pelo caos.
Todavia, como no Jazz, aproveita melhor a falta de harmonia
aquele que souber improvisar. A propósito, sou velho e toco
jazz.
Evan do Carmo
95
A despedida
Foi muito doloroso me despedir de Walter, pois tive a
impressão de que nós não nos veríamos mais. Abraçamo-nos
demoradamente, foi quando percebi que em seus olhos havia um
quê de mistério e de loucura.
Quando voltei para a casa do Walter, vi Beatriz
preparando meu quarto, com carinho. Isso me deixou muito
feliz, porque sabia que eu era bem-vindo ali. Além disso, sabia
que podia contar com cada um, como se fossem minha própria
família.
A Beatriz me pareceu muito resignada, parecia já estar
96
acostumada com a ausência do esposo. Rute também não se
preocupou nem se queixou com a ausência do pai. Isso foi bom,
assim tirava dos meus ombros a responsabilidade de confortá-
las.
Meu papel não passava disso agora: ficar e estar atento
às necessidades dos membros daquela amável e solidária
família. Rute era pessoa muito reservada e muito ocupada com o
irmão. Com isso, eu mal a via, a não ser quando juntos
levávamos o Armando ao hospital.
Como motorista, eu não forçava a barra, não havia clima
para uma conversa amorosa e nem para expressar-lhe a minha
paixão. Entretanto, acreditava que chegaria uma hora em que eu
pudesse dizer-lhe o quanto a amava.
Uma vez por semana eu ia à fazenda. Como sempre tudo
por lá estava sob controle. Contudo, eu aproveitava para arejar a
cabeça, apreciar a natureza, e para andar a cavalo… E pensar na
minha adorável Rute.
97
A confissão
Numa das minhas idas à fazenda, o Ricardo me chamou
para conversar. E a conversa foi assim…
− Tudo em paz na cidade?
− Sim, Ricardo. E tudo sobre controle.
− Paulo, não sei se já chegou ao seu conhecimento que
eu vou embora para a Bahia…
− Sim, já. Juvenal falou – interrompi.
− Ele falou também que, antes de ir, vou me casar?
− Isso ele não me falou não. E quem é a moça?
− A Lurdinha.
− Lurdinha? Não conheço. De qualquer modo, torço para
98
que sejam felizes. Há quanto tempo vocês se conhecem?
− Ah, rapaz, há muito tempo!
− Amor de infância!
− Não é bem amor de infância. Pausa. Meu amor de
infância deixou de me amar quando virou moça.
− Hum, que chato! E quem é?
− A Rute... Na verdade, Paulo, acho que o verdadeiro
amor é o da infância, porque crescemos e nunca nos esquecemos
dele.
−Concordo!
Embora aliviado, eu senti ciúmes − e dos mais
mortíferos. Que coisa é o coração apaixonado, Rute e Ricardo
não estão juntos, mas, no entanto, estava eu louco de ciúmes!
Que coisa!
Agora meu presente era promissor. Rute era meu futuro,
meu presente e minha verdade.
− Mas não me chamou para falar apenas da Lurdinha,
ou foi?
− Não, Sr. Paulo, quero lhe pedir algo!
− Peça!
−Meu casamento está chegando e vou precisar de
dinheiro. Pretendo comprar um pedaço de terra na Bahia,
99
começar vida nova e segura ao lado da minha Lurdinha.
Gostaria de receber tudo o que é meu por direito, falo de direitos
trabalhistas, Senhor Paulo. Posso contar com o senhor neste
respeito?
−Não se preocupe, vou lhe pagar tudo que tem por
direito e mais alguma coisa por minha conta.
−Obrigado! Eu sabia que podia contar com o senhor.
Houve muito respeito da parte do Ricardo, mas me
impressionei com o olhar dele. Ficou evidente que ele morria de
inveja de mim. Eu também não morria de amores por ele, só que
não deixava transparecer. Hoje penso que neste ponto eu
demonstrei alguma superioridade sobre ele. Entendo que as
pessoas mais fracas, ou mais inocentes, são, não raro, muito
transparentes. Então, eu pensei comigo mesmo. Que Ricardo
suma de vez do meu caminho!
Na fazenda corria tudo muito bem, mas eu não estava
ainda confiante de que seria feliz nos meus empenhos, nos meus
projetos para vida amorosa, de uma vida feliz a dois outra vez.
Até que um dia aconteceu algo não desejado, mas
esperado por todos da casa. A morte de Armando. Coube a mim
resolver tudo na funerária e no cemitério. Nesta ocasião vi
Beatriz e Rute definharem. Pareciam não suportar o fel, aquela
100
segunda desventura da família. Os dois filhos herdeiros já não
existiam, e para Beatriz só lhe restava a filha querida,
companheira e inseparável. As duas passaram a viver
confinadas em casa, como duas prisioneiras das agruras da vida.
Todas as noites eu era um espectador solitário de um
drama incomum e sem fim. Na hora do jantar, durante as
orações de agradecimento pela comida, era Beatriz que sempre
se lembrava do último filho morto, porém tão presente naquela
mesa. À sua direita, estava ele com sorriso largo a responder
com os olhos vivos e sadios, às indagações de sua mãe, quando
esta lhe perguntava se estava tudo bem, se queria mais comida, e
se estava sentindo alguma dor. Ele era o primeiro a ser servido,
não raro com a ajuda de Rute. Agora à mesa, as duas almas se
alimentavam de lembranças, lembranças estas que sempre lhes
serviam como sobremesa um doce amargo e recheado com
desencanto e desilusão. E neste drama eu era apenas um
figurante, alguém anônimo. No entanto, eu não podia ficar como
observador passivo desta peça fúnebre, que possuía um só ato.
Quase sempre que as personagens saiam do palco abraçadas eu
ficava sozinho, como plateia, esperando ser convidado para ser
quem sabe, no outro dia, um ator coadjuvante. Mas, no dia
seguinte, a comédia era a mesma, apenas um breve e frio boa-
101
noite para mim, como plateia assídua e constante de uma
tragédia incomparável.
Muitas vezes eu tive o ímpeto de sair de cena, mudar
meus hábitos e horários de alimentação, mas sabia que se o
fizesse, seria falta de respeito para com as normas da casa. Foi
em meio a este desejo que constatei que a Rute estava muito
longe dos meus sonhos.
Eu fazia de tudo para ver Rute alegre e feliz, quase
sempre em vão. Ela vivia trancafiada no quarto, lendo seus
livros de psicologia e alguns romances clássicos que eu nunca
tive fôlego para ler. Era muito triste, parecia uma flor murcha,
sem perfume, em véspera de fenecer. Eu vivia a lhe falar que a
vida devia continuar e, sobretudo, as nossas vidas... Mas Rute
não tinha ouvidos para músicas novas.
À medida que os dias passavam, minha preocupação
com o Walter também aumentava. Ele não telefonava, e
ninguém sabia do seu paradeiro. Logo ele, um amigo perfeito e
um exemplo de marido e de pai de família. Era assim que o via,
pelo menos até aquele momento! Então resolvi investigar onde
ele estava e o que estava fazendo - logo participei esta minha
decisão à Rute.
− Rute, eu não consigo entender o comportamento do
102
Walter. Por que ele não nos telefona ou nos escreve?
− Eu gostaria de conversar sobre isso com você, mas
não posso sem o consentimento de minha mãe.
− Tudo bem. Mas não pense que sou intrometido nos
assuntos de vocês. É que sofro por vê-las tão sozinhas! Torço
muito para que você e sua mãe reajam a esta dolorosa perda e à
ausência do Walter. Embora entenda o lado de sua mãe, ainda
assim quero conversar com ela sobre o paradeiro do Walter.
− Concordo.
Aquela foi uma noite de inteira solidão. Eu não
descansava um minuto sequer o pensamento, a ansiedade me
devorava progressivamente. E a manhã do dia seguinte foi tão
igual às demais. Logo cedo fui ao banco e fiz as compras da
casa, os deveres de um serviçal. Felizmente, o mesmo não posso
dizer da noite porque tive a alegria de conversar com Rute e
Beatriz.
− Paulo, vamos conversar na varanda?
− Claro!
− Queremos saber um pouco mais sobre você. Com
certeza, você tem muitas histórias para nos contar, sobretudo dos
bares da vida, por onde cantou e viveu, e certamente foi muito
feliz.
103
Rute afundou a cabeça no peito da mãe e caminhou para
a varanda. Lá se sentou no sofá, bem ao meu lado.
− Sobre minha vida? – Falei. Não há muito que falar,
também devo lhe dizer que muito feliz eu não fui, não como a
senhora pode pensar. Na verdade, eu preferiria cantar para
vocês.
− Não, meu caro Paulo, não é hora para cantoria – disse
Beatriz, um pouco incomodada com minha atitude e palavras
inapropriadas.
Sim. Não era ainda hora para cantorias, ela tinha razão, e
muito menos para piadas de mau gosto. Cometi uma grande
tolice ao me oferecer para distrair as enlutadas. A insegurança
nos faz falar o que não devemos. Fui um verdadeiro imbecil,
uma besta insensível! Contudo, as duas estavam bem melhor do
que antes. Faces coradas, um leve sorriso nos lábios e passos
mais leves. Por isso, eu já me sentia mais alegre e percebia que a
noite compartilhava comigo, pelo menos na alegria de viver.
Que cem anos se passassem, ainda assim eu jamais
desistiria de ter aquela mulher em meus braços, pois algo me
dizia que ela já me pertencia! Não era nada de físico, ou de
paixão inferior, era um sentimento além da carne, além dos
desejos lascivos dos amantes do amor romântico vulgar. Era
104
amor sim! Amor de alma e de espírito. Embora
inconscientemente, eu e Rute tínhamos as mesmas aspirações,
caminhávamos na mesma direção, em busca do amor eterno, do
amor perfeito, e caso ele não existisse, nós o inventaríamos.
Como foi marcante e profunda a convicção que tive
naquela noite, uma certeza mais que absoluta de que eu desejava
Rute, com toda intensidade do meu coração, como mulher, a
mulher da minha vida, minha alma gêmea, a outra metade da
minha carne.
Quando o verbo em mim calar
cessará todo o julgamento do mundo
a consciência do medo se dissipará
e hão de se fechar todos os abismos
então reinará o imponderável silêncio
sobre o discurso da dúvida...
Evan do Carmo
105
O sonho
Fui dormir com a alma leve e sonhei a noite inteira com
a Rose, minha esposa morta, tão presente em meus pensamentos
e sonhos. Mas se antes meus sonhos com ela eram de saudade,
sofrimento e dor, agora não mais. Com uma face corada, como
se estivesse muito bem viva e saudável, ela me disse
−Paulo meu amado, fico feliz que tenha encontrado um
novo alento, um novo objetivo, uma alegria nova, um novo e
sincero amor. Saiba que os momentos que vivemos juntos aqui
na terra foram sublimes. Você foi um marido fiel e muito
presente, um verdadeiro pai e amigo. Não pense que eu o
condeno por buscar a felicidade nos braços de outra mulher,
106
pelo contrário, estou torcendo daqui para que dê tudo certo pra
vocês. Você tem o direito de tentar outra vez. Nós, meu Amado
Paulo, enquanto na carne não somos capazes de compreender as
razões da vida atual, dos amores e porque as almas se unem,
nem tampouco sabemos a razão das separações por morte
prematura como fora a minha. Agora entendo que deve tentar
outra vez ser feliz, deve viver e sonhar e até se divertir com os
prazeres temporários da carne decaída. A vida é uma dádiva
preciosa de Deus, um presente incomparável e não devemos
desperdiçar nenhum minuto dela. Devemos viver, tentar ser feliz
e fazer felizes os que vêm em nossa direção.
Aquele sonho foi tão real que eu não consigo descrever
em palavras o quanto fiquei aliviado, era como se ela realmente
aprovasse meu desejo de ser feliz, embora eu soubesse que era
meu inconsciente querendo e recebendo a sua aprovação, talvez
por sentir remorsos, porque eu lhe fiz a promessa absurda de
lealdade eterna. Mas a minha promessa não fora assim tão
estúpida, pois nunca me passou pela cabeça que uma mulher tão
jovem e saudável como ela viesse a falecer tão precocemente.
Contudo, devemos admitir que promessas são promessas
e não compromissos. Promessas são palavras faladas muitas
vezes sem pensar, sem medir o tamanho da distância a ser
107
percorrida, para cumprir, para alcançar o objetivo e o preço da
dívida acordada. E neste contexto eu não tinha o capital moral
para saldar a minha dívida - minha promessa. Também não acho
que quem morre tenha a capacidade e o poder para cobrar
alguma dívida de nós os mortais que ainda persistimos em viver!
As conversas na varanda tornaram-se constantes. No
começo a Beatriz sempre nos acompanhava em palestras
amistosas. Trocávamos ideias sobre a vida, sobre os negócios e
quando surgiam assuntos de família, eu notava que a Beatriz não
se sentia muito bem, era a mágoa do desaparecimento do
marido, era visível a cicatriz ainda em carne viva e profunda.
Não era fácil sorrir sem se lembrar desse episódio triste...
Enquanto isso na fazenda, a vida dos funcionários ia de
vento em poupa. Recebemos o convite do casamento do
Ricardo. Beatriz disse que seria deselegante da nossa parte se
não comparecêssemos ao casamento do Ricardo. De fato, era.
A união de duas almas que acham que se amam de
verdade deve ser comemorada com tudo que se pode e se tenha
direito... E enfim, o casamento do Ricardo chegou! E eu não me
continha de tanta felicidade. Via nesta oportunidade a chance de
declarar meu sentimento, ali já maduro pelo tempo, para a tão
doce Rute... A família em peso esteve presente, inclusive
108
Francisca, que era a mais empolgada, afinal pegou os noivos,
que eram primos, no colo. Naquela época, era comum casar
primo com primo, e segundo a Francisca, eles se amavam já há
muito tempo, cresceram juntos, “E não entendo por que
demoraram tanto para se casarem. ” Disse ela, com lágrimas
nos olhos. Eu fingi não ouvir, afinal eu sabia o porquê da
demora. A moça era paciente, esperou o seu noivo de infância
desiludir-se do seu amor juvenil, para enfim lhe aceitar como
prêmio de consolação.
Lurdinha era uma moça bonita, morena de olhos
castanho-claros e muito simpática. Era mesmo bonita a danada,
especialmente de corpo, a natureza lhe fora generosa em vários
aspectos físicos. Não fez mal escolha o Ricardo, filha única de
pais humildes, como ele. Eram do mesmo nível social, por isso
tinham quase tudo para serem muito felizes.
Eu ganhei quase um amigo. Agora poderia descansar
com relação ao meu ciúme do Ricardo. Tornamo-nos mais
próximos, ele me falou bastante de seus planos para o futuro.
“Quero um pedaço de terra, quatro filhos e ser feliz com minha
esposa. ”
Para alguns pais, os filhos são a recompensa pecuniária,
ou seja, a segurança da velhice, pois eles (os pais) esperam que
109
lhes paguem o salário da compaixão, da dedicação que
dispensaram aos filhos enquanto crianças. Tolice, pensar assim,
porque os filhos crescem e esquecem-se dos pais. Trilham seus
próprios caminhos e arrumam suas próprias dívidas – dívidas
que só serão pagas no futuro, quando receberem da vida seus
próprios filhos “credores”, perdurando assim um saldo devedor
eterno, que passa dos pais para os filhos. Isso dá a entender que
alguém sai perdendo. Verdade? Se for pai, faça suas contas e
verá! Some tudo o que ofereceu, subtraia pelo que recebeu, aí
está o resultado: sua satisfação! Se é pai! Pois para as mães,
tenho outra receita...
Voltemos à festa de casamento: Tomamos muito vinho,
pois não há casamento sem vinho, assim como não há sem
noiva. Acreditam os festeiros de plantão que a bebida é o
melhor da festa do casamento e, que até o Cristo bebeu em um
casamento, dizem que quando acabou o vinho, não foi Ele
embora, mas que teria feito o seu primeiro milagre,
transformado água em vinho, em vinho de melhor qualidade do
que o que acabara. Isto se deu porque o rei Salomão também
gostava do vinho:
“É o vinho que alegra o coração do homem. ”
Diz um dos seus salmos. O vinho alegra também o coração das
110
mulheres? De fato, para ele, as mulheres, embora fossem mais
de mil, o seu quinhão hereditário como rei, não conseguiram lhe
fazer assim tão feliz, dizem até que foram as mulheres que o
levaram à morte e à desaprovação do seu Deus.... Diriam os
mais sensatos que o melhor do casamento é abraçar os noivos e
desejarem-lhes eternas felicidades!
Foi uma noite de encanto e de beleza para os pais e
amigos dos noivos, principalmente para mim, pois arrisquei até
uma dança. Não! Dancei primeiro com a noiva, é costume até
hoje os convidados dançarem com a noiva, para mostrar que
compartilham da alegria do casal.
A música era simples, mas autêntica e as modas eram de
primeiríssima linha. Com a música veio-me a nostalgia, pois
havia muito tempo que eu não ouvia aquelas canções sertanejas,
só mesmo em Minas e no tempo em que conheci a música em
sua real essência, em seu estado bruto. O meu amigo, o senhor
Antônio tocava dias e noites as mais lindas canções do
cancioneiro popular brasileiro.
No casamento, os músicos tocaram uma música muito
especial, a letra falava de dois passarinhos na mesma gaiola, que
se consolam mutuamente nas horas difíceis da vida. Foi nesta
hora que disse para Rute: “Venha comigo! ” – e ela veio
111
dançar…
− Mas só uma! - Ela disse - Não sei dançar direito,
perdoe-me se te pisar os pés.
− Não se preocupe, também nunca fui muito bom nisso.
Rimos juntos pela primeira vez, foi mágico, seu sorriso
largo e condescendente, como na segunda vez que a vi, só que
agora tinha um ar novo de cumplicidade. Não tive assunto para
conversar, mas não me importei, eu queria apenas sentir a
verdade daquele momento singular.
Dançamos agarradinhos, mas com muito respeito é claro,
apesar de Rute me fazer tremer sempre que se aproximava de
mim, mas naquela noite eu não tinha em mente nenhum
pensamento que não fosse puro e quase santo, para com um anjo
que me enfeitiçara. Não sei precisar nem escrever que perfume
era aquele, só que foi marcante e único, não me lembrava mais
como era o cheiro do amor. Porém, aquele era o cheiro que eu
sem dúvida não queria jamais esquecer, nem parar de sentir e de
respirar. Ao aconchegar seu corpo junto ao meu, senti-me como
alguém com a alma roubada; não tinha mais vida própria,
viveria para sempre ali, por aquele abraço, naqueles braços, que
era para mim o paraíso no seio de Deus.
Naquele instante comecei a acreditar verdadeiramente
112
em algo divino, em um Deus muito generoso que criara aquele
anjo e que permitia que eu, um simples mortal sem fé, sem
crença, usufruísse a sua meiguice e a sua ternura. Não seria eu
mais o mesmo homem, depois de ter chegado tão perto do céu.
Um novo pensamento morava e dominava na minha mente. Não
me importo se não concretizar meu sonho de viver ao lado de
Rute para sempre como marido. Até ali, já se passara um ano, e
eu esperaria uma vida inteira ao seu lado como amigo. Eu senti
que era o dono do momento e mais nada me bastava.
Mas vieram os questionamentos: O que será que Rute
sentiu ao dançar comigo? Ela me ama tanto quanto eu a amo?
Como saber se ela me ama? Mais uma vez esperarei por meu
amigo, o velho tempo, aquele mesmo tempo que amadurecera
meus sentimentos? Não! Tenho que agir! Afinal, não tenho a
vida toda para esperar pelo tempo, que não tem pressa e que não
envelhece.
Já no fim da festa, eu olhei para Rute e tive a clara
impressão de que ela me amava, pois ela não tirava os olhos de
mim. Eu ia falar-lhe do meu amor por ela, mas Beatriz chamou-
nos para ir embora, “Está tarde! ”, disse ela. Mesmo assim, eu
não podia reclamar da sorte, eu tive Rute nos braços – o que
significava o início da eternidade, eternidade que juntos
113
viveríamos um grande amor.
Porém, infelizmente, a vida continuou na mesma rotina
nos seis meses seguintes. O trabalho, a recuperação da Beatriz
(que já saia com a filha para um pouco de distração), compras,
passeios.... Minha alma não suportava mais tanto silêncio dos
meus sentimentos e dos de Rute. Que amor era este que
sobrevivia a tanto descaso? Por ventura, Rute e eu estávamos
entregues ao acaso? Eu tinha o direito de ainda sonhar com Rute
ou o que vigorava era verdadeiro e imbecil ditado. “O amor é
cego? ”
Nada disso! Rute me amava e eu a ela. Eu que nunca
tive coragem de lhe dizer o quanto a amo. Tinha eu o receio de
perdê-la com uma declaração intempestiva que poderia ser vista
por ela como amor de adolescente ou paixão irresponsável.
Muitas noites, ouvindo a música do mar e o canto das estrelas,
quis eu lhe contar e cantar meus sentimentos e derramá-los aos
seus pés, mas tinha medo, medo de que depois que derramasse
aos seus pés meus segredos, meu sangue e minha vida, não
pudesse mais apanhá-los, se por acaso ouvisse um não.
Se fosse poeta lhe escreveria um belo poema, contudo, a
vida real é distinta da fantasia que vivem os poetas, sinto que na
verdade, poeta algum teria condições de descrever ou de
114
escrever o que realmente é um grande amor. O que é o amor em
sua condição mais sublime, como era o meu amor por Rute.
Tinha que esperar, era só o que eu poderia fazer, e o
tempo seria o juiz magnânimo dessa minha condição de escravo
do amor.
É certo que é louco aquele que ama, pois quem ama ignora o
perigo de não ser amado. Contudo, é ainda mais louco aquele
que ignora a possibilidade de amar.
Evan do Carmo
115
Hora crucial
Até então, eu não tinha coragem para dizer que a amava.
O destino lançou a sorte, e que sorte de homem eu era, que não
tinha coragem para jogar o jogo do amor? Eu tinha isto a meu
favor, quanto à sorte, para alguns supersticiosos, quem for
miserável e excluído da fortuna pode ser vencedor na loteria dos
sentimentos. Isso me incentivou a arriscar.
Numa tarde encantadora de verão, após deixar Beatriz na
casa de uma amiga. Rute estava comigo, pois também tinha que
fazer alguma coisa no centro da cidade. Prometeu ficar comigo
116
o restante da tarde.
Então a convidei para irmos ao parque da cidade.
Durante a noite passada eu havia planejado um piquenique, era
só mais um plano igual a outros tantos que nunca tinham dado
certo, algo improvisado, mas de muito bom gosto.
Eu sabia que teria uma boa chance de ficar com ela
durante uma tarde inteira. Então comprei uma garrafa de vinho,
vinho fino, à altura do seu refinado bom gosto, afinei meu velho
violão, pois sabia que o dia seria especial. Seguimos para o
parque, Rute me parecia contente com o meu convite
imprevisto. Eu carregava uma toalha no carro, então forramos o
chão à beira de um lago. Eu sempre ia a este mesmo lago para
meditar na minha vida, tempos antes de conhecer o Walter e a
Rute. Na verdade, eu costumava passear com minha falecida
esposa neste mesmo parque, durante o tempo que namorávamos
e algumas vezes depois de casados, juntos admirávamos a beleza
do lago.
Não era um lugar muito original para uma ocasião tão
especial e única, mas eu não tinha outro plano em mente, então
não me sentia constrangido em levar Rute a um lugar onde já
conhecia tão bem, e onde guardava boas lembranças com outra
mulher.
117
Sentamos na grama como um casal normal. Eu abri o
vinho, pus meu violão ao lado, enquanto Rute me olhava com
um olhar inquisidor, admirada.
− Que surpresa agradável. Um piquenique no meio da
tarde de um dia útil? – Disse-me Rute com um sorriso
encantador, sorriso que me deixou muito mais à vontade e
confiante no desfecho do primeiro ato, ato de uma peça que eu
pretendia escrever e encenar.
− Beba o vinho, Rute. Comprei o vinho que você gosta,
para lhe contar um segredo sobre nós.
− Um segredo sobre nós?
− Não é isso, Rute. Estou brincando, apenas pretendo lhe
oferecer um momento de descontração, afinal você merece
relaxar um pouco. Como se sente após a morte do Armando? O
que pretende fazer da vida agora?
− Agora estou mais conformada, penso até em voltar a
estudar. O que acha?
− Isso é bom, Rute, que você volte a viver, digo a viver
para você mesma, sua própria vida. Pois sou conhecedor do seu
drama incomum, sei do fato de que até agora não realizou nada
no campo pessoal, nem profissional.
− Quero terminar o curso de Psicologia, que sempre foi
118
prioridade em minha juventude. O saber é a ponte para
felicidade e realização plena do ser humano, saber o porquê e as
razões de como funcionam os sistemas, sobretudo a mente
humana é algo fascinante. Psicologia foi um dos legados do meu
pai, sabia? Ele era um apaixonado por Psicologia, dominava
muito bem este campo do conhecimento, da personalidade
humana. Não sei por que me refiro a ele no passado, ele não
morreu.
− Sim, eu sei Rute. E é muito bonito ver como você
valoriza o conhecimento, eu também admiro, e se não estudei foi
porque não tive oportunidade. Mas hoje eu tenho algo muito
importante para lhe falar que…. Algo que você talvez não saiba
ainda.
− Sei, o tal segredo sobre nós. Vamos, conte-me logo
Paulo.
− Não posso mais viver com isso só para mim. Eu te
amo, Rute, mais do que a minha própria vida..., mas isso não
deve ser segredo para você. Desde o primeiro dia em que te vi,
mas não me permitia sentir isso verdadeiramente nem confessar.
Eu tinha remorsos, achava que te amar era trair a minha falecida
esposa. Mas o desejo de te ver em meus braços e poder dizer
“Eu te Amo” apagou tudo. E já não vejo a hora de ter você em
119
meus braços para sempre. Case comigo, Rute.
Ao ouvir isso, ela mudou o semblante, de sereno e calmo
para um ar aflito de espanto. Ela deu sinal que me aceitara, eu
então me aproximei. Aconteceu o esperado. Ela tocou-me o
braço, para fazer-me aproximar mais.
− Eu sempre soube dos seus sentimentos, e do seu amor
por mim e, muitas vezes tive vontade de lhe abordar com os
meus também, tive vontade de me atirar aos seus braços e,
definitivamente viver e ou morrer de amor por este amor que
sinto e vivo por você, até agora em profundo silêncio, mas as
circunstâncias não nos eram favoráveis, e a razão sempre vencia,
quando eu tentava agir pela emoção. Aquela noite em que
dançamos agarradinhos no casamento do Ricardo ficou mais
claro para mim o que eu sentia por você. Porém, pela educação
que recebi de minha mãe, não pude avançar o sinal, por isso
esperei que partisse de você a iniciativa, embora este tempo
passado, um ano e meio, me pareceu uma eternidade.
Eu a abracei, nossos lábios se uniram em um beijo de
paixão e, neste beijo, tive a certeza do amor de Rute por mim.
A alma feminina quando ama, ama sem reserva, sem
peso e sem medida, e não há como mensurar o tamanho dos
sentimentos, nem o amor de uma mulher apaixonada, sobretudo
120
quando esta mulher também é amada, como era minha Rute por
mim. E de mim, Rute ouviu esta música:
Alma irmã da minha alma,
ser metade do meu ser,
tu és eu quando te quero,
eu sou tu se quero ser,
tens prazer quando te dou,
sou feliz quando tu és.
Não há tempo nem espaço
que separes tu de mim,
meu sorriso em tua face,
faz sorrir teu rosto em mim.
Alma irmã da minha alma,
ser que habita no meu ser,
és a paz tão desejada,
plenitude do viver,
toda a aventura na terra
se resume em te querer.
Alma irmã da minha alma,
minha essência do saber,
toda a ciência do mundo
121
eu busquei pra te dizer,
nas estrelas, no universo,
nos romances dos poetas,
nem um verso pra você,
tudo falta, não se encaixa,
soa falso este querer,
juntei tudo quanto li,
somei tudo o quanto vi,
pra formar uma palavra
que traduza o meu querer;
que te amo, que te venero
é sabido pelo mundo,
o sentimento mais profundo,
talvez se resuma em ti.
Em querer-me como me queres,
isto é o que eu quero dizer,
que te quero quanto me queres,
isto é o que se revela em seres,
alma irmã da minha alma,
ser que habita no meu ser.
122
Ao terminar de cantar a canção, ela lavou minha alma e
a sua em doce pranto, em lágrimas de felicidade que eu também
vertia com uma alegria até então não conhecida por nenhum de
nós. E eu a abracei mais uma vez, fortemente.
Naquele instante juntamos as nossas almas para sempre
no elo indivisível do amor, da paixão superior, e eu senti voltar a
mim a vida que perdera no nosso último e primeiro abraço, no
dia em que dançamos.
Meu coração batia descompassado, ou em compassos
não registrados pelo metrônomo, pela matemática da música,
acho que alcançou a velocidade das fusas, ou das semifusas,
enquanto o de Rute batia com a calma dos ternários de uma das
valsas vienenses.
Eu não poderia usar outro símile, senão a música para
descrever a reação de Rute ao meu amor declarado. A música
dita e rege nossas emoções, ela faz vibrar dentro do peito e
acelera nosso sangue.
Todo bom romance tem como pano de fundo a música, a
virtuosidade de um gênio da ilusão sonora, seja perceptível ou
não. A paixão torna audível a música celeste da existência. A
vida veio a existir por meio de vibrações de melodias
inimitáveis. Ao passo que o grande maestro, com sua batuta de
123
ouro ordenava que houvesse luz, os anjos músicos executavam a
ópera sublime da criação.
Houve um minuto de silêncio.
−Rute, meu amor, este instante ficará eterno em nossa
existência, e mesmo que não concretizemos nosso sonho de
viver juntos para sempre, em um casamento feliz, mesmo assim
não esquecerei este dia de regozijo eterno, desse gozo celestial,
que foi saber que sou amado no mesmo grau, com a mesma
intensidade que amo!
As mulheres são (e serão) para sempre senhoras, de
quem os homens jamais serão donos absolutos.
Dali em diante, Rute e eu seríamos uma só alma em
essência, virtudes e defeitos, mais virtudes que defeitos, pois
dizem que o amor é cego, logo não enxerga as falhas do ser
amado.
“O amor é longânime e benigno. O amor não é
ciumento, não se gaba, não se enfuna, não se comporta
indecentemente, não procura os seus próprios interesses, não
fica encolerizado, não leva em conta o dano, não se alegra com
a injustiça, mas alegra-se com a verdade, suporta todas as
coisas, acredita todas as coisas, espera todas as coisas e
persevera em todas as coisas” (Paulo).
124
No amor tudo é lindo, perfeito, sem defeito. Eu diria
ainda que, o amor, o verdadeiro amor não se traduz, assim como
não se traduz e não se pode explicar Deus. Em outros tempos,
alguém disse: “Deus é amor” – é por isso que quando se ama,
tudo é possível, ou seja, quem ama pode tudo, tem força e poder
de um deus. Era assim que eu e Rute nos sentíamos para gritar
para o mundo que estávamos juntos para enfrentar qualquer
aversão ao nosso enlace, à nossa união física, esta que estava
consumada por nós e por Deus e que nem deuses nem homens
poderiam separar.
Tão logo chegamos em casa já fomos contando para a
Beatriz a novidade. “Não foi surpresa para mim, pensam que eu
não desconfiava? ”, disse ela.
Alma nobre tinha aquela mulher, que apesar do seu
drama singular, queria que sua única filha fosse feliz, não tinha
preconceito quanto à minha raça, cor e ou situação social.
Beatriz estava feliz com a nossa união, mas digo francamente
que se não ficasse eu não ia me importar. Sabe aquelas mulheres
que têm pose de rainha, ou que acham que tem a alma mais
nobre que os demais, que não se abaixam para cumprimentar os
mortais? Era esta a sensação que eu tinha, antes de conhecer
melhor a Beatriz.
125
Bem perto de Beatriz, Rute virou-se para mim e falou
com calma e segurança:
− Eu aceito me casar com você, Paulo.
Isto soou como música de Wagner aos meus ouvidos,
como uma terna alegria na minha alma. E a partir dali,
começamos os preparativos para o casamento.
À medida que os dias iam passando, eu era tomado por
uma vontade incontrolável de conversar a sós com Beatriz. E
Beatriz percebeu isso, e um dia, sem mais delongas ela me
convidou para a varanda.
−Muito bem, Paulo, vamos conversar.
−Dona Beatriz, sei que a senhora já sabe que vamos nos
casar em breve, porém eu não posso casar-me sem antes ter com
a senhora esta conversa franca, sobre nossa união e, sobretudo,
saber sua opinião verdadeiramente, saber como se sente a
respeito do nosso casamento, pois apesar de sermos maiores de
idade, devemos consideração à senhora como mãe e pai, neste
caso. E para mim, a sua posição é muito importante, até porque
não temos como saber o que o Walter pensaria sobre tudo isso.
− Paulo, não vou dizer que este foi o casamento que eu e
o Walter sonhamos para a Rute. Você sabe muito bem como
está a nossa vida no momento, tristeza e desilusão constantes!
126
Com isso, nada saiu como esperávamos, confiar na felicidade
futura de Rute, não cabe a mim julgar, isso somente vocês dois
poderão. Minha família e minha vida se resumem agora em
vocês dois, meu outro filho não quer saber de nada do que diz
respeito à família, desde que foi embora nunca mais nos deu
notícias.
Beatriz aqui falava do filho morto como se não soubesse
da cruel verdade, fora um lapso de memória ou fuga da
realidade.
Faço tudo, dou tudo de mim para que Rute seja feliz.
Quero e desejo, com todas as forças do meu coração de mãe que
Rute seja feliz, que faça as escolhas certas, embora eu entenda
bem que nada depende apenas de escolha, temos que contar
também com a sorte. Quem pode afirmar que ela será mais feliz
do que eu fui, quem? Ela já é adulta. Sabe o que quer e no que
acreditar. Quanto a mim, vou esperar que o tempo me prove e
traga-me esta mesma confiança que Rute deposita em você.
Não é nada pessoal, nada tenho contra você, que fique
bem claro isso − até porque você nunca nos desapontou com
seus deveres, com as obrigações que lhe confiou o meu marido,
só que agora não se trata de um bem físico, mas do bem mais
precioso que me resta: Rute. Assim, espero que você
127
corresponda de forma positiva a esta responsabilidade que Deus
está lhe confiando: amar a Rute. Que você seja digno de
conviver com uma pessoa de conduta e lealdade tão exemplar,
como é a minha filha. Pense nisso: Rute representa a família e
você é um membro desta família, você tem um nome a zelar,
uma família tradicional que quase se acabou; vocês têm agora o
privilégio e a responsabilidade de continuar esta nossa história.
Já dei meu consentimento e minha benção, desejo para o casal
toda felicidade do mundo, dos céus e da terra.
− Dona Beatriz...
− Por favor, Paulo, daqui em diante chame-me apenas de
Beatriz.
− Obrigado, Beatriz! Não posso garantir que serei o
melhor marido do mundo para sua filha, porém posso e devo lhe
dizer que farei o que for humanamente possível para um homem
amar, proteger e ser leal a uma mulher. Entenda isso, meu amor
será o limite para o respeito e para a devoção que dedicarei à
Rute. Já tive uma experiência no passado. Embora esta união
tenha sido um pouco precoce, eu pude pôr em prática meus
princípios de família, fazendo minha esposa feliz. Portanto, sei
que agora estou preparado para fazer uma mulher tão especial,
como a Rute, muito feliz. Com o passar dos anos vou provar
128
para a senhora o quanto eu amo a Rute.
− Paulo, é claro que é isso que eu quero, que vocês
possam fazer a nossa família crescer, se tornar outra vez forte,
como foi outrora, por isso quero netos. Eu tenho certeza de que
viverei para ver tudo isso acontecer. Acho que Deus sabe o que
faz, não poderia ser outra pessoa senão a Rute para resgatar
nossa dignidade e construir uma linda família para continuar
nossa história... Ela tem as melhores qualidades possíveis para
ser uma excelente esposa e mãe, já provou isso ao cuidar do
Armando.
A conversa encerrou neste ponto porque a Rute chegou.
Marcamos nosso casamento para seis meses depois, tempo este
que demorou um século. Durante estes meses de noivado
aprofundamos nossa amizade e intimidade, mas tudo dentro dos
padrões tradicionais de uma família conservadora. Planejamos a
nossa nova casa, móveis e até uma viagem para a Europa,
viagem que não estava nos meus planos, como não estava
também em minhas posses. Beatriz nos presenteou, é claro, já
que sempre foi o sonho de Rute conhecer a Europa, sobretudo
Paris.
Eu não tinha tempo para me deslumbrar com tudo isso.
Para mim, o presente mais valioso que a vida podia me ofertar já
129
havia ganhado: O amor e a dedicação de uma deusa, de um anjo,
dedicação de corpo e alma. Esta viagem teria o mesmo valor se
fosse para Minas, o lugar que eu mais queria rever,
principalmente agora em condições melhores... Rute e eu
planejamos uma festa sem glamour, discreta, apenas com
familiares, padrinhos e amigos mais íntimos.
130
O casamento
O dia do casamento chegou, e eu estava convicto de que
Rute era a mulher da minha vida. Todos os parentes e os amigos
compartilharam de nossa felicidade. A casa estava cheia, mal se
podia andar, mas estava prazeroso o reboliço. Isso fazia Rute
sorrir mais ainda: “Amo estar entre meus parentes e amigos”,
dizia ela.
Eu passei o dia todo conversando na varanda com a tia
de Rute, irmã de Walter. Eu quis saber do Walter, “Mesmo que
soubesse do paradeiro do meu irmão e quisesse revelá-lo a
você, pouco adiantaria, nem no casamento da filha ele veio. ”
131
Mas ela me contou que Walter era um pai para seus filhos,
“Meu irmão custeou os estudos dos meus dois filhos, e eu devo
isso a ele. ”
Nós nos casamos apenas no civil, num cartório no centro
da cidade e a festa foi no terraço da casa. Talvez eu não fosse o
genro perfeito de Beatriz, mas ela sabia do quanto eu seria capaz
de fazer Rute feliz.
Eu fui corajoso, tive a ousadia e a coragem de cantar
para Rute, ultrapassando as minhas emoções e desafiando a
crítica dos convidados. Eu cantei: “digo que você é um anjo
bom que desceu como um bombom para adoçar a minha vida.
Meu paraíso é você, meu universo e prazer, você é o que eu
preciso para viver”... (trecho de uma canção que o autor fez
para sua esposa).
No mesmo dia viajamos para Paris. No avião, o que mais
ouvi de Rute foi: “Eu te amo. ” E o que ela mais ouviu de mim
foi esta música:
“Olhos negros que me seguem... que me ronda e me
perseguem; olhos negros quem tu és, eu não sei o que fazer,
não consigo me esconder, deste olhar... Que me afronta e me
incomoda, que me prende e não me solta. (Para onde me
levarás, confesso ser prisioneiro, desde o meu olhar primeiro,
132
quando olhei no teu olhar...).
olhos negros minha paz, minha força, meu viver me
roubaste de assalto. Eu do alto do meu ser, não sabia que
podia Nestes olhos me perder!
Olhos negros tenha calma, minha alma vou te dar, Se
você me prometer, nos meus olhos não olhar.
Olhos negros eu me rendo, e me entrego nos seus
braços, tudo faço pra ganhar; sua paz; e seu viver... Eu
prometo vou lhe dar os meus olhos pra você...
Olhos negros tenha calma, minha alma vou te dar, Se
você me prometer, nos meus olhos não olhar”
133
Em Paris
Após tanta emoção, os preparativos, a chegada do dia, e o dia
em si mesmo, mal podíamos esperar pela nossa lua de mel. O
nosso refúgio, longe de tudo e de todos - só nós dois. O destino
escolhido por nós foi Paris, e não poderia ter sido melhor! Após
11 horas de voo, chegamos ao aeroporto Charle de Gaulle, sãos
e salvos. Foram quinze dias fantásticos, tudo incluído, à exceção
das excursões que também não foram tão caras quanto isso!
Visitamos teatros, cinemas, museus…. Enfim, tudo o que o
dinheiro podia pagar.
Embora em lua de mel, nos braços da minha amada, eu
134
não conseguia deixar de pensar em Walter. O que realmente
aconteceu com ele? Lembrei o quanto ele era inconformado com
a doença do Armando e com a morte do filho na guerra. Uma
coisa não saia da minha cabeça: Walter estava vivo. Preocupado,
eu perguntei para Rute, com cuidado e baixinho:
− Por que Walter abandonou vocês e foi embora?
− Preciso mesmo te contar, porque isso está a me sufocar
por dentro… A verdade é que meu pai nunca acreditou que meu
irmão morreu na guerra. Ele achava que o Valtinho estava vivo,
por isso largou tudo e foi atrás dele.
Silêncio.
Depois ela:
−Mas minha mãe não acredita nesta história do meu pai.
Ela acha que ele tem outra mulher.
−Outra mulher? Como assim? Ela viu? Tem certeza?
− Ver ela não viu, mas no coração ela tem certeza. Ela
acredita que meu pai mora aqui em Paris com a amante. Dá
para você entender o motivo que também me trouxe para cá?
Eu a olhei e disse que sim.
A partir dali, saímos à procura de Walter. Cerca de três dias
depois, avistamos um homem numa rua de Paris, que pelas
características físicas nos convencemos se tratar do Walter.
135
Quando o homem nos viu, correu e entrou num carro, sem
deixar pista.
Rute não quis mais saber do paradeiro do pai, tinha
certeza de que seu pai a tinha evitado, por isso ficou muito
chateada com a atitude do pai. “Para quê? Se ele escolheu
isso que fique com isso, - Disse ela. Eu também desisti, eu
tinha receio de Walter achar que eu havia me casado com
Rute simplesmente para usurpar sua herança e seu lugar na
família.
Os dias se passaram com passeios, nós acordando tarde,
amando cada vez mais, pensando já em ter filhos (dois ou
três) e sem tocar no assunto sobre o Walter.
Não abrimos espaço para lembrarmo-nos dos infelizes,
pobres mortais, como o Walter, muito menos dos mortos….
Porém o último dia de nossa lua de mel mudou nosso modo de
pensar. Ao chegarmos ao aeroporto, ouvimos uma voz rouca e
cansada, “Morte para Hitler, morte para Hitler, o maldito
general que, quase dominou o mundo, que lutou com os
demônios para destruir as nações e para instituir um só governo
na terra! Morte para Hitler! ” Era a voz de Walter.
− Não posso acreditar, Paulo! Gritou Rute, meu pai! –
Gritava Rute em desespero, aos prantos. E aos prantos correu ao
136
encontro do homem que ela sabia ser o Walter, seu pai − ao
encontro de um vulto, de um homem sem cor, sem carne, só
osso e desespero, que causava medo e compaixão ao mesmo
tempo, aquela imagem, que não era mais de jeito algum, nem de
perto nem de longe, a imagem do homem digno e capaz que
conhecera.
Rute o abraçou, mas ele não foi recíproco, continuou sua
ladainha... Era como se com aquela lamúria, que parecia
penitência religiosa, uma ladainha católica, ou petições a um
Deus, que pudesse lhe fazer vingança e devolver a vida do seu
amado filho. Foi quando eu percebi isso: Walter havia perdido
toda a lucidez, enlouquecera de fato.
E vieram os problemas: Como convencer Walter doente,
que Rute era sua filha?
Adiamos a viagem até encontrarmos meios para trazer
Walter para casa. Telefonamos para Beatriz, que quase
enlouqueceu com a notícia de que seu amado estava vivo e que
não a deixara por outra mulher, como todos pensavam. Tudo
mudou para aquela alma solitária, que já não via nem sentia
razão para viver, para ser feliz. Beatriz disfarçava muito bem.
Jamais desconfiei que ela houvesse morrido junto com os filhos
e com a ausência do marido. Mas naquela hora ela superou tudo
137
isso. Arrumou as malas e embarcou, viajou imediatamente para
Paris ao nosso encontro. Enquanto isso em Paris, provamos com
documentos e fotos de Rute com o pai, quem era o Walter, e que
ele era de fato pai de Rute, mas as autoridades locais só o
liberaram com a chegada de Beatriz.
Não pude deixar de registrar a aflição de Beatriz, daquela
alma generosa, trazia nos olhos todo seu desejo e esperança de
abraçar e perdoar seu marido. Talvez até pedir desculpas por
fazer mau juízo do seu amor eterno, por não compreender suas
angústias diante a tragédia do filho.
No estado em que Walter se encontrava, achamos melhor
dar-lhe um tratamento médico antes da volta ao Brasil. Beatriz
não saiu do lado dele nenhum dia sequer, “Ele não merece esta
sorte”, dizia a esposa inconformada, diante da demência do
marido. Ao fim de trinta dias de tratamento, ele já podia viajar,
embora ainda sem sinal algum de lucidez − razão que fez Rute e
Beatriz multiplicar os cuidados para com ele.
138
Dentro de um conceito filosófico quântico, devemos inverter a
máxima de Descartes, "existo porque penso."
Evan do Carmo
139
No Brasil
Então eu resolvi morar na casa dos meus sogros para dar
mais atenção ao Walter, o que deixou Rute muito feliz. O
médico que o acompanhava disse que havia cura e só dependia
do Walter. Com isso, nós redobramos o carinho e os cuidados,
nos revezávamos, sobretudo à noite, pois Walter sonhava, falava
muito dormindo, ficava agitado e inquieto; durante o dia, eu
fazia-lhe companhia e deixava Rute e Beatriz descansarem. Eu
contava-lhe histórias das crendices mineiras, cantava as músicas
que mais ele gostava e declamava versos de Camões – ele era
um apaixonado pela loquacidade poética lusitana. Mas apesar
140
de todo nosso esforço, algumas vezes tive de amarrá-lo na cama,
tamanha era a sua inquietação.
A recuperação de Walter era lenta, mas nunca
desistimos. Passados alguns meses, ele já se mostrava mais
calmo, tinha o olhar sereno e alguns momentos de lucidez –
lembrando-se do seu próprio nome. Este lampejo de luz nas
trevas de sua inconsciente existência nos encheu de alegria,
parecia que tudo poderia voltar a ser como era. Enfim, teríamos
paz e um ambiente propício para tocarmos em frente as nossas
próprias vidas.
Leitor, sabe quando passamos por uma tragédia e não
suportamos? Foi exatamente isso que aconteceu com Walter: Ele
não suportou a perda dos dois filhos homens. Seria um homem
amaldiçoado, sem herdeiro macho para continuar a sua dinastia,
sua história na epopeia na evolução da humanidade na Terra,
não viveria eternamente, nem seus genes por meio deles.
Certa noite, eu estava na varanda com Walter,
subitamente ele se lembrou dele mesmo, de todos e de tudo.
Então, ele me contou tudo o que tinha acontecido – até então era
um assunto evitado por todos nós, pois temíamos que fazê-lo
recordar agravaria mais ainda o seu estado.
− Paulo: não me enganei com você. Você cuidou muito
141
bem da minha família enquanto eu estive fora. Você se saiu
muito bem, amigo, diria até bem demais. (Rimos juntos). Até se
casou com Rute! Não me leve a mal, pois estou muito feliz com
a união de vocês. Ela não teria encontrado alguém melhor que
você, assim como eu também não teria. Estou, de fato, muito
contente com tudo isso.
Quero lhe contar as razões que me levaram a cometer
este desatino: Você sabia da minha angústia, eu sempre lhe
contei sobre minha desventura. Você sabe bem como sofrera a
falta do Walter Júnior. Aquela dor foi aumentando tanto que me
deixou quase louco, ou louco de fato. Então comecei a ter visões
do meu filho em Paris. Via ele preso em um campo de
concentração nazista. A visão não me dava sossego nem paz,
não pude compartilhar minha dor com Beatriz, nem com mais
ninguém. Afinal, era loucura da minha mente perturbada de pai
desesperado. Acho que era a minha fuga desesperada de
Nêmesis, o meu teste de realidade, o meu encontro com a morte
ainda em vida. Uma sensação que não pode ser posta em
descrição, nem mesmo em Hamlet se encontraria. O ponto
crucial em que a mente chega ao limiar da razão e não aceita
mais a realidade como verdade. Foi quando eu resolvi partir para
tirar a limpo toda esta história. Por isso, eu lhe procurei para
142
assumir meu lugar, para tomar conta das minhas coisas, das
minhas obrigações e da minha família. Quando cheguei a Paris,
verifiquei que não era ali o cenário das minhas visões, nem
tampouco encontrei ali campos de concentração. Informei-me,
sobretudo da guerra, dos lugares onde havia existido os tais
campos − coisas que não podia conceber. Então fui para a
Alemanha, acreditando que lá eu poderia descobrir o paradeiro
do meu filho, ou o motivo daquela visão que passou a ser o meu
Walter Júnior vivo. Associei-me com grupos de pessoas, que
como eu procuravam por desaparecidos da guerra, vítimas do
nazismo. Foi quando piorei de vez, mas ainda bem que eu tinha
recurso mental e financeiro para retornar a Paris. Lá afundei
mais na bebida, perdi total e definitivamente a razão. Não sei
exatamente quanto tempo fiquei até você aparecer com a minha
adorável Rute − só podia ser ela mesma com sua fé
inquebrantável para resgatar-me para a vida! Deus não escreve
em linhas tortas, do contrário eu não estaria aqui.
− Walter, sinto muito por você ter passado tamanha
desventura, como queria ter ajudado você, sofrer em seu lugar,
dividir com você de alguma forma sua dor! Quisera eu ter
adivinhado tudo e ir te buscar mais cedo. Quisera eu! Muitas
noites não dormi pensando no que lhe realmente havia
143
acontecido, sofria ao ver a Rute e a Beatriz em profundo
desalento, fiz o que pude para lhes ajudar, não tive forças, só o
tempo pôde fazer isso. Sua volta trouxe a luz do sol em nossas
vidas. Tive dó da Beatriz: Você não imagina como foi difícil
para ela. Contempla o que tens em tua casa, esta que é tua
amiga e companheira de cada dia, além de esposa dedicada e
leal, fiel a ti em todas as horas de dificuldade, mãe incomparável
dos teus filhos; essa criatura linda, uma verdadeira heroína
silenciosa. Por acaso você acredita que tua dor seja maior do que
a dela? Teus filhos eram carne da sua carne, sangue do seu
sangue, carregou-os no ventre alimentou-os com seu leite.
Enquanto você dormia teu sono reparador em paz, era ela quem
passava as noites em claro junto ao leito, quando os filhos
sentiam alguma dor. Ela era como uma sentinela. Nas noites
quentes refrigerava suas almas e suas dores e nas noites frias, os
aqueciam e o acalmavam em silêncio, para não te incomodar.
Enquanto Walter Júnior vivia, quanto susto teve no seu coração
de mãe cuidadosa nas suas travessuras perigosas! E isto, amigo,
ela passou por duas vezes. No caso do Armando, ao chegar a
hora crucial da prova final, da provação suprema, que
transformação da sua fraqueza aparente! De quanta coragem e
sofreguidão se revestiu aquela alma doce, frágil e sensível, para
144
receber o golpe fatal, a falta do carinho e do calor do seu último
filho, o Armando, que a morte infâmia levara! Depois do golpe,
do primeiro, que foi sem dúvida o mais doído, quanta força e
energia imprevista ela buscou para não sucumbir nem te dar
exemplo de covardia diante da fatalidade que alcançara. Todos
os dias, você saia para as ruas e teu sofrimento era amenizado,
ela não. Ela ficava em casa junto da sombra ingrata que
encobrira seu lar de tormento e solidão. O gênero feminino
quando sofre e assim afronta a dor, fica acima da humanidade.
Esta é a Beatriz que conheci durante este tempo, que você,
amigo, conhece mais do que eu, seu valor e sua força!
Ao fim deste diálogo, vi nos olhos de Walter muita dor e
remorso. E continuei:
− Walter, estamos pensando em dar uma festa em sua
homenagem, o que acha?
− Concordo. Nesta festa quero brindar o seu casamento
com Rute. Afinal, vocês merecem! Nesta casa não terá mais
lugar para a tristeza, e dependendo de mim a luz do sol, meu
amigo poeta, não se afastará mais da nossa sala, nem das nossas
vidas. Eu via que, apesar de Walter estar sofrendo muito com a
doença, se esforçava bastante para não demonstrar tanta dor.
Não era fácil para ele também, nem para ninguém, conviver com
145
esse remorso, que o acompanhava em todo canto e a cada
momento de solidão, por isso não conseguia se manter sóbrio
por muito tempo!
146
Somos poetas
Estamos destinados à tragédia
a vida simples e comum
dos homens não nos alimenta,
queremos mais que o absurdo
dos amores correspondidos.
Queremos a fatalidade e o imprevisto
a morte no drama do gozo proibido
somos poetas, pintores, artistas
de toda sorte, contamos sempre
com o azar em forma de destino.
Queremos a vida nas cinzas da fênix
queremos o calvário do Cristo
e a cicuta de Sócrates
queremos as asas frágeis de ícaro..
Somos a flor murcha da beira da estrada
que o amante não conseguiu ofertar
à namorada da infância.
somos o medo vestido de Aquiles
somos a fuga e a desesperança
somos o verbo na língua de Deus
e o barro nas mãos do homem.
Evan do Carmo
147
A cura de Walter
Era fim do ano de 1953. Fomos tomados por uma
novidade: a gravidez de Rute, que, segundo meu sogro, mais um
bom motivo para se comemorar. Eu concordei com ele. Afinal,
teríamos um novo membro na família, que Walter chamava de
“Meu herdeiro varão”.
Tudo estava perfeito em nossas vidas: a festa foi um
grande momento de alegria para todos e a gravidez de Rute
corria muito bem. Walter e Beatriz estavam mais felizes do que
nunca, porém, em momentos solitários, eu ainda notava um
148
olhar triste em Walter – talvez ele ainda sentisse por dentro a
falta do filho, mas, esse sentimento era agora reprimido, e
sinceramente, eu não sabia se isso era bom ou ruim, de qualquer
jeito não tirei os olhos dele receando uma recaída – o que veio a
acontecer dias depois, quando eu estava na varanda, numa noite
de insônia, por preocupação com o futuro do meu filho que logo
nasceria. Ouvi sons vindos da sala grande, percebi que Walter
estava inquieto e sussurra no escuro: “Junior, meu filho, me
responda onde você está! ” Eu o acalmei e o levei para seu
quarto. Em seguida, voltei para o meu, mas não disse nada para
Rute e nem para Beatriz.
O tempo se passou. Walter estava na mesma. Meu filho,
Walter, o neto, nasceu, e Rute e eu resolvemos oferecer um
jantar para apresentá-lo à família e aos amigos – naturalmente
uma tradição da família de Rute e não da minha, mas concordei
com ela em me adaptar a estes costumes sociais. E tudo esteve
muito bom, inclusive o discurso de Walter. Este:
“Quero parabenizar a você, meu fiel amigo e genro,
Paulo, homem de bom caráter, e desejar a você e à minha filha
Rute, felicidades! Que vocês saibam cuidar e proteger muito
bem o meu neto para que ele tenha uma vida longa e feliz.
Façam isso com carinho, para não se arrependerem depois,
149
como eu… − interrompeu-se. Depois continuou: “Como me
arrependo de não ter cuidado melhor do Walter Júnior e de
todos os outros meus filhos... Mas vocês farão diferente, tenho
certeza”.
Depois se sentou na varanda, a olhar para o jardim, a
chorar desesperadamente. Eu fui atrás dele. Repreendi-o com
uma interjeição; Ele quis continuar, mas eu interrompi-o.
− Walter, não sou senhor de seus pensamentos, mas é
bom que pare de se culpar, isso não faz bem para você nem para
nós, pense em sua família, agora feliz com sua volta à lucidez e
à vida. Walter Júnior não morreu por sua culpa, você não
poderia fazer nada a respeito para livrá-lo de tal destino, você
cuidou dele o quanto pôde, ajudou para que ele não se
machucasse quando criança. Ajudou para que não se magoasse
quando adolescente, para que não tomasse decisões erradas
quando jovem adulto…, mas isso não quer dizer que ele não se
machucou que não se magoou e nem tomou decisões erradas,
assim também a sua morte. Ninguém pode evitar a morte. “O
tempo e o imprevisto sobrevêm a todos. ” A culpa não foi sua!
Não, amigo, não se culpe por tal tragédia, elas nos pegam
sempre de surpresa, por isso são tragédias, não há como as
evitar.
150
− Paulo, eu não sei o que seria da minha vida sem você,
amigo querido. Muito obrigado por tudo.
Depois disso ele se acalmou. Voltamos para a sala.
Jantamos. Três dias mais Walter passou deprimido, por mais um
motivo: a morte do senhor Juvenal, fatalidade que me obrigou a
mudar para a fazenda.
A casa da fazenda era grande: três salas, cinco quartos e
quatro banheiros. As pessoas conheciam o tamanho, a potência
de uma fazenda, pelo tamanho e luxo da casa grande (ou sede).
Digo que na cidade parecíamos mais humildes que na fazenda. E
para falar a verdade, eu nem lembrava mais da minha vida de
inquilino de quartos apertados, onde morei tanto tempo. Não era
difícil me adaptar ao luxo e poderio de fazendeiro, era seu Paulo
pra lá, patrão pra cá… Seu Paulo, a vaca pintada pariu dois
bezerros lindos esta noite… aquela boiada que vinha de Mato
Grosso chegou… quero saber se mando os vaqueiros para casa,
pois não temos por hora trabalhos para eles…
Sim. Tudo transcorria em plena paz e segurança. Na
família, era tudo perfeito, meu Waltinho crescia com saúde sob
os cuidados maternos e quase divinos de Rute. Ele completaria
dois anos em uma semana. Planejávamos reunir toda a família
151
para festejarmos a felicidade de todos nós: nosso filho.
Eu quase não via mais o Walter, a fazenda, Rute e o
Waltinho tomavam conta do meu tempo.
No dia do aniversário do Waltinho, ainda na festa,
Walter nos deu uma notícia bombástica, em forma de discurso.
“Meus amigos e parentes queridos, sou o mais feliz dos
homens! Sinto-me como Jó que perdera tudo e que lhe fora
restituído em dobro, por um milagre da sua fé e devoção a
Deus. Eu também perdi tudo, ou quase tudo, perdi minha
lucidez, meus filhos e a razão de viver. Vi-me no deserto como
Abraão vagando perdido sem rumo certo, esperando por um
milagre, que uma divindade até então desconhecida me
indicasse o caminho que devia seguir até a terra prometida. Foi
quando me apareceu um anjo e me disse que eu seria outra vez
feliz e que eu teria tudo de volta. Claro que eu não acreditei,
achava que isso era história dos meus antepassados (os judeus)
.... Passou o tempo, e eu fui aos poucos recobrando a lucidez,
ganhei um filho: Paulo, e um neto - voltei a trabalhar…. Foi
como aconteceu com Sara: ela riu do anjo que lhe falara que
teria outro filho, que seria como Isaque; para dele gerar uma
descendência de prosperidade e de paz. Quero anunciar que
serei Pai de um filho varão e lhe darei o nome de Paulo Prado
152
de Mendonça, em homenagem ao meu amigo, filho e genro,
Paulo, que me salvou das trevas e trouxe a felicidade em nossas
vidas. ”
Foi deveras inesquecível aquela noite para todos. Fiquei
lisonjeado com aquele anúncio, com aquela homenagem
imprevista do Walter. Pela primeira vez pude ver que ele tinha
realmente apreço por mim, sobretudo como parente!
Os amigos verdadeiros nos fazem muito bem e nos
fazem sentir e ver que vale a pena viver e dar o nosso melhor
para aqueles que tanto amamos!
Nossas vidas pareciam um conto de fadas. Nesse instante
glorioso, tudo estava em seu devido lugar, momento este que
nos metia medo. Logo eu que não acreditava em final feliz − não
que eu fosse por natureza um pessimista, mas, ultimamente, eu
passei a acreditar, esperava sempre o melhor da vida. E por que
não acreditar se a vida estava generosa demais comigo?
Minha família imediata, minha Rute amada e meu filho,
não podiam ser mais do que eram para mim, estava eu saciado
de prazer pela vida, todos os desejos do meu coração
concretizaram-se, não sofria mais e não lembrava mais de minha
desventura passada, da minha vida miserável dos bares nem da
minha viuvez precoce.
153
Logo depois que eu soube da novidade de Walter,
agradeci a Deus por permitir a mim e aos meus familiares,
tamanha felicidade. Pedi para ele: “Oh Deus grande e poderoso,
Deus de Abraão e de Jó, Deus de Walter e de Rute,
especialmente de Rute, que sempre lhe indaga e lhe agradece
por tudo. Peço-te que protejas minha família e que o meu
amigo, Walter, alcance a glória de ver este novo filho adulto, e
que ele seja sua razão de viver como era o outro Walter Jr”.
Mas o meu coração continuava preocupado: agora com
o desfecho daquele novo episódio: a gravidez da Beatriz, que era
de alto risco. Com isso, toda a família ficou mobilizada:
voltando para ela os melhores cuidados, a maior paciência e o
máximo de carinho e atenção, dignos de uma rainha Mãe.
Walter e Beatriz estavam apaixonados. Estavam se
deleitando naquele sublime momento de casamento, quando a
vida parecia que não podia se tornar maravilhosa. Mal
conseguiam ficar longe um do outro. Mas Walter não iria se
sentir feliz completamente longe do jornal. Seus dias – ou
melhor, suas horas – como jornalista também foram
privilegiadas.
Nem muito depois do prestígio e a fama voltarem a fazer
parte da vida de Walter, Beatriz começou a sentir as primeiras
154
contrações – os sinais de que o bebê estava para nascer. Tivemos
que ir às pressas para o hospital. Walter todo o caminho ligava
hora a para o médico hora para o hospital.
O parto correu bem. Assim que Paulo nasceu, levaram-
no para a UTI para entubá-lo. Para nossa surpresa, mesmo
prematuro, ele nasceu tão forte que foi possível trazerem-no para
vermos. Minha emoção foi enorme quando vi Walter beijá-lo.
Eu sabia, porque Walter botara o nome do filho de
Paulo, foi para não por Walter Jr, para não dá azar, pois se lhe
pusesse o seu nome, voltaria toda má sorte que teve com seu
primeiro filho.
Quando vi Paulo, fiz esta oração:
“Obrigado grande Deus e pai de todos nós, por este instante
feliz, para o meu amigo Walter. Obrigado! ”
Em oração, era como se eu falasse para o divino: até aqui
está tudo bem, espero que cumpras tua promessa até o fim.
Pobre de mim, já me sentia íntimo de Deus para exigir proteção
para toda vida! Pobre de mim, que só pedia ajuda na hora da
dúvida e da insegurança! Quando tudo corria sem problemas, eu
não queria tal liberdade e intimidade com o altíssimo. Quanta
hipocrisia de minha parte!
Nada de especial aconteceu após o nascimento de Paulo.
155
É que, quando passa a tempestade não percebemos a beleza e a
paz que vêm com a calmaria, com a serenidade prevista. Quando
o trem que leva as nossas vidas está firme nos trilhos dos nossos
desejos, não notamos muito bem as suaves paradas e paisagens
paradisíacas pelas quais passamos. É claro que poderia narrar
alguns momentos felizes que vivi, que foram marcantes para
todos nós, no entanto, estas coisas comuns não prendem a
atenção dos leitores ávidos por conflitos e sofrimentos das
personagens de um bom romance.
Muitos anos se passaram. O filho do Walter crescia no
favor de Deus e dos homens. Completara dez anos de vida, vida
cheia de alegrias, amor, harmonia e paz. Walter estava feliz com
sua vida pessoal e profissional – ganhou vários prêmios, entre
eles: o jornalista do ano, por dois anos consecutivos. Minha vida
também ia de vento em popa, como fazendeiro e pai de família.
Tinha três filhos: Valtinho, Lívia e Rose – adoráveis como a
mãe, Rute.
Mas dois meses depois de Paulo completar dez anos,
Beatriz adoeceu e morreu de uma doença neurológica. Este foi o
golpe mais doloroso para Walter, o fel mais difícil de engolir, na
porção da sua existência tumultuada. E tudo que acontecia com
ele nos atingia diretamente. Era como se um punhal estivesse
156
cravado em nosso peito.
A morte de Beatriz foi como um rolo compressor que
esmagou a todos nós. Beatriz, como mulher e esposa, talvez eu
não soubesse precisar seu inteiro valor, isto só o Walter saberia.
Porém como ser humano eu já a conhecia e lhe prestava
homenagem, como a uma rainha. Alma de uma dignidade
incomparável...
Inconformado com a morte de Beatriz, logo voltei a
conversar com o criador: “Por que haveríamos de passar por
tamanha dor”? Não era o bastante? Seria um tipo de
brincadeira? Ou era um jogo para testar a nossa capacidade de
suportar sofrimento?... Logo a Beatriz tão cheia de fé e
coragem!
Eu não compreendia isso: Que cumplicidade eu poderia
ter com um Deus tão cruel? Não compreendia!
Walter abraçou seus afazeres, sempre movido pelo seu
temperamento dinâmico e amor ao jornalismo. Mas no meio da
dor, a ausência de Beatriz cresceu, tomou conta de Walter e fez
morada.
Um dia, em um café perto do seu trabalho, tivemos esta
conversa:
− Oh Paulo, não é justo! Não é justo esse meu sofrer!
157
Que mal eu fiz para ser punido tão cruelmente assim? Primeiro
foi meu primogênito, agora Beatriz! Será porque não fui tão
presente na vida do Armando, meu filho especial? Só pode ser
isso! Não amei Armando na medida em que ele merecia, eu o
tratei com desprezo; muitas noites eu sequer voltava para casa,
ou quando voltava não era eu quem chegava, porque era o álcool
que me trazia para casa, mas minha mente não tinha
conhecimento do que se passava em minha casa, em minha vida.
Durante muitos anos eu não existi como marido e como amigo,
o suficiente para apoiar Beatriz. Assim penso que o Armando foi
um estágio, um treinamento para sofrimentos maiores, e eu não
fiz minha lição de casa, no livro da vida. Então como um
monstro cruel e covarde, fugi achando que assim escaparia do
meu infeliz destino, toda alegria que usufruí na vida não foi por
mérito ou competência própria, foi a recompensa de Deus para a
minha fiel e obediente Beatriz, que ao contrário de mim soube
aceitar resignadamente seu calvário, sua estaca de tortura, um
tanto mais pesada que a minha, pois não me acho em igual nível
de evolução, ou de desprendimento e de amor altruísta, como o
que ela sempre demonstrou para com todos os seus queridos,
para mim em especial. Agora purgarei todo o meu pecado: não
sou digno nem sequer de continuar vivendo; no entanto, acho
158
que viver agora será deveras muito difícil para mim, embora seja
um castigo necessário para me educar e encarar meu dilema.
Preciso muito de você e de Rute, amigo, não me deixe sucumbir
neste mar de desilusão sozinho! Será menos doído se eu puder
contar sempre com um amigo como você, sempre presente nas
minhas desventuras e nas poucas alegrias.
− Se acalme companheiro! Nunca te deixei, não vai ser
agora que vou me acovardar. Juntos enfrentaremos toda esta
tormenta. Fique certo de que sua dor também será sempre minha
dor, assim como as suas alegrias sempre foram minhas....
Também sabes que tens deveras minha afeição, meu profundo
respeito. O que fizeste por mim, amigo, nunca pagarei nem que
eu vivesse outras vidas retribuiria o bem que me causaste.
Walter ficou assim, em crise de depressão profunda e
constante, voltou a beber aos poucos na tentativa de aliviar a dor
que a falta do seu amor lhe causara. Como antídoto para
amargura e a solidão, sempre ia buscar nos braços do vinho, no
poder indolor do álcool a ilusão anestésica, para suportar a
incisão, cirúrgica do tempo. Tempo, que como um deus, crono,
tem o poder de curar e o dom de fazermos esquecer as piores
experiências do nosso viver... O álcool não funciona, ou talvez
nos engane por algumas horas, é claro. Por isso muitos se
159
tornam alcoólatras inveterados e esquecem para sempre o que
são e como é estar sóbrio. Veja o que um sábio falou sobre o
poder e os riscos do abuso álcool! “Quem tem ais? Quem tem
apreensão? Quem tem contendas? Quem tem preocupação?
Quem tem ferimentos sem razão alguma? Quem tem
embaçamento dos olhos? Os que ficam muito tempo com o
vinho, os que entram para descobrir vinho misturado. Não olhes
para o vinho quando apresenta uma cor vermelha, quando está
cintilando no copo, [quando] escorre suavemente. No seu fim
morde igual a uma serpente e segrega veneno igual a uma
víbora. Teus próprios olhos verão coisas estranhas e teu
próprio coração falará coisas perversas. E hás de tornar-te
como quem se deita no coração do mar, sim, como quem se
deita no topo de um mastro. Golpearam-me, mas não adoeci;
surraram-me, mas eu não o sabia. Quando é que acordarei? Eu
o procurarei ainda mais. ”1 * “provérbios 23:29-35”.
Foi assim com o Walter: suas fugas se tornaram
constantes, não trabalhava mais e não tinha tempo para o filho e
nem para a família.
Rute e eu levamos o Paulinho para nossa casa, para ser
criado como um dos nossos filhos, e era assim que ele se sentia.
Ele amava a Rute como a uma mãe dedicada e muito carinhosa.
160
Já com seus quinze anos era visto por todos como um homem
sério, educado e responsável. Praticamente não notávamos a sua
presença dentro de casa, pois vivia em seu quarto a maior parte
do tempo, lendo e fazendo pesquisas. Ele era muito semelhante a
seu pai neste aspecto cultural, demonstrando com isso que seria,
sem dúvida alguém muito especial, um engenheiro ou um
cientista. Eram estes campos que ele vivia a explorar por conta
própria, se adiantando naquilo que era seu objetivo de vida.
Certo dia, longe dos estudos, ele me perguntou como
estava o pai dele. Depois ele fez uma pausa e sorriu tristemente
antes de continuar:
− Sinto muito a falta dele. Ele mora longe? A última vez
que ele veio-me ver foi há um ano.
− Não filho, o seu pai não mora longe e se ele não vem
aqui, é porque ainda está em depressão.
− Meu pai é fraco de espírito, não acha? Tudo bem que a
vida lhe tenha pregado algumas peças difíceis, porém todos nós
passamos por isso algum dia na vida. Veja: Eu perdi minha mãe
muito cedo, tenho o pai que tenho, um homem fraco moralmente
que se entregou ao vício para fugir de sua verdade, da sua
realidade. Mas nem por isso acho que a vida não valha a pena.
Eu quero viver, ser feliz e queria muito que ele estivesse
161
comigo, do meu lado, presente. Quero dedicar a ele tudo o que
eu alcançar, mas como? Não posso negar as virtudes dele, seu
apreço, seu amor para com a minha mãe durante o tempo em
que ela viveu. Sei que ele tem valor, até porque, se não o tivesse,
não teria a família que tem. Rute me contou sobre meu irmão:
que era inteligente e que meu pai o adorava. Tio: meu pai me
ama mesmo?
− Claro que ama, Paulinho! Eu sei de toda a história do
seu irmão, sei o tamanho do afeto que seu pai tinha por ele.
Posso lhe garantir que ele te ama muito mais, porque você foi o
filho que ele mais desejou nascer. Seu pai vivia fazendo
discursos em sua homenagem: uma vez ele fez um memorável,
no qual se comparou a Abrão e chamou a sua mãe de Sarah.
− Ele vem para a minha formatura?
− Tenho certeza que sim.
− Tio, você me tutelou. Eu sei que o papai lhe designou
como meu padrinho, para cuidar de tudo referente à minha
educação e o senhor e a Rute têm se saído muito bem, às vezes,
nem me lembro que não tenho mãe e nem pai presentes. Quero
aproveitar esta hora para lhe dizer que sou muito agradecido aos
dois. O problema agora é que eu terminando o Ginasial quero
ingressar logo na faculdade ou num curso técnico, o que o
162
senhor acha que devo fazer? Não tenho bem definida a minha
opção, quanto a isso.
− Paulinho: você tem sim! Desde garotinho você tem
optado por ciências. Quantos livros me pediu nessa linha de
estudo? Sem dúvida alguma, sua vocação está aí.
Paulinho sacudiu a cabeça alegremente. Imediatamente
todas as tristezas e todas as incertezas foram esquecidas: ele
pegou a bicicleta e saiu pela fazenda a pedalar. Enquanto eu fui
até à casa de Walter.
− Ele não está – disse Francisca, tossindo muito devido a
uma bronquite crônica provocada pelo cigarro.
“A Companhia de cigarros admite que fumar causa
câncer. ” Após contestar por décadas as descobertas de
diversas autoridades médicas, a Philip Morris, maior
companhia de cigarro nos Estados Unidos, agora admite que
fumar provoca câncer do pulmão e outras doenças mortíferas.
Num comunicado à imprensa, ela declara: “Existe forte
consenso médico e científico de que fumar cigarros causa
câncer do pulmão e doenças cardíacas. ” Segundo o jornal The
New York Times, antes a companhia dizia que fumar era um
‘fator de risco’ ou ‘um fator relacionado com doenças’, como
câncer pulmonar e não que provocasse tais doenças‟. No
163
entanto, apesar dessa admissão, a companhia diz: “Temos
muito orgulho de nossas marcas de cigarro e das campanhas
publicitárias que as têm promovido no decorrer dos anos.”.
Mas não saí imediatamente da casa do Walter. Francisca
não me deixou ir embora sem que antes eu tomasse café.
Enquanto eu tomava café, ela me contou mais uma de suas
histórias. Esta:
“Meu avô foi vendido como escravo para um
fazendeiro”. Mas o fazendeiro não soube de quem se tratava.
Mais de três anos depois, veio a surpresa: o fazendeiro era o
pai de meu avô. Com um plano traiçoeiro, ele mandou matar
meu avô. Desconfiado do risco que corria, meu avô fugiu. Mas
a valentia do fazendeiro foi superior a dele. Ele mesmo foi atrás
do meu avô. E, o fazendeiro não teve piedade: pendurou-o no
tronco, deu-lhe chibatadas – milhares. Assim, durante três dias
meu avô ficou. Mas não aguentou os ferimentos e morreu.
Eu sabia tudo sobre a epopeia dos negros, graças à
cultura e conhecimento de causa de dona Francisca. Toda vez
que eu a encontrava, ela sempre tinha uma história para contar.
Eu não tinha como fugir dela, de suas estórias, estórias de maus
tratos sofridos por seu povo. Os idosos são quase todos assim:
carentes de atenção, por isso falam tanto, quando têm ao seu
164
lado os que os escutam.
Ela levantou-se da cadeira, mas não foi a lugar nenhum.
Havia apenas um pedido que ela precisava fazer, antes que eu
fosse embora.
−Não sei se você sabe, mas fico sozinha aqui. O Walter
trabalha muito, pouco fica aqui. Eu tenho medo de morrer
sozinha! Não medo da morte, mas medo de morrer sozinha.
Eu a escutei silenciosamente. A explicação era a um
tempo sincera e justa, mas de tal modo preocupante.
Eu a abracei com força. – Não se preocupe, eu disse; vou
resolver isso.
−Não vá agora, ela disse. Tenho algo de muito grave
para lhe dizer.
− Diga!
− Walter está cuspindo sangue. Pausa. Leve-o ao
médico, antes que o problema se agrave – se já não está!
Quando saí dali, encontrei com o Zezão, um amigo e
músico das noites cariocas. Às vezes – não era frequente, mas às
vezes – ele tocava lá no bar, e nessas ocasiões conversávamos
com frequência. Ele passou a beber porque achava que isso o
ajudaria a esquecer um amor não correspondido.
O alcoolismo é um caminho sem volta, ainda mais
165
quando se escolhe por conta própria, como se fosse um veneno
mortífero para enterrar uma existência, ou como saída para a dor
e o sofrimento da sobriedade da vida real!
Zezão amou como nunca amou ninguém, sua esposa.
Mas ela não lhe deu valor. Numa noite, ele comentou comigo:
“Ela me traiu. E para piorar: fui despedido do emprego. ” “Sinto
muito, amigo! ”, eu disse. E ele continuou: “Adoraria não saber
da traição. Adoraria que ela tivesse me deixado continuar
vivendo na ignorância. Mas eu a peguei me traindo na minha
própria casa. No entanto, jura de pé firme que está arrependida
e que não fará novamente. Eu a amo muito, mas não confio
mais nela.”.
Encontrei Zezão comprando cigarros na padaria. Não era
mais o mesmo Zezão triste, mas feliz. Disse-me, então, que
decidiu se casar pela segunda vez, e a cerimônia aconteceu no
último sábado, no interior do Rio de Janeiro. “Estou orgulhoso
de você”, eu disse. Em seguida, ele me contou que a ex-esposa
morreu. “Mas como? ”, perguntei. Respondeu: “Assassinada
pelo amante. ” Zezão tinha os seus motivos para não aceitar
mais a esposa. A esposa tinha os seus. Mas ele não desejava mal
algum para ela. “Nem de longe! ”, confessou. Ele abriu a boca e
quase me contou como a esposa tinha morrido. Mas não disse
166
nada. Comecei a achar que, em muitos aspectos, Zezão era uma
pessoa melhor que eu. Bondade era apenas um deles.
Eu saí dali e fui para casa. Quando estava fechando a
porta da sala, Rute perguntou:
−E aí: encontrou meu pai em casa?
−Não. Mas Francisca deu-me notícias dele. Disse que ele
não está bem de saúde. Segundo ela, ele cospe sangue.
−Mas também ele vira a noite na rua bebendo! Pausa.
Isso ele não larga, mas com a gente nem se importa! Só isso
que ele sabe fazer: dá-nos mau exemplo. Só isso!
−Rute, não condene seu pai antes de ouvi-lo!
−Mas Francisca não mente!
−Mas ela é como um papagaio: fala demais e tudo o que
fala é o que lhe contam na rua.
E Rute desabafou: − Meu pai padece. A saudade é tanta
em seu peito, que ele não aguenta. Assim vive, assim se
encontra tantas vezes: pitando o bico do narguilé e bebendo.
Mas ele não escuta meus conselhos; escuta sua própria voz
chamar para a orgia.
−Orgia?
Eis a fórmula da orgia organizada por Walter: prostitutas e
álcool. Porém eu não tinha o direito de desnudar em público a
167
sua conduta e destruir a imagem construída na mente de Rute,
que tinha pelo pai um alto grau de apreço moral; e daquele que
era para mim, até então, também exemplo de caráter e conduta.
Rute me mostrou o caminho: Tirar o Walter daquela vida
de orgia. Depois de pensar um pouco sobre o fato, eu não pude
tirar a razão de Rute: Walter precisava de ajuda.
Eu agi. Zanzei pela cidade atrás do Walter: De bar em
bar, de hotel em hotel. Perto do amanhecer, eu o encontrei no
Copacabana Palace. Ele me dizia sem olhar para mim, talvez
sem sentir a minha presença, que não queria voltar para casa. Eu
lhe falei de Rute e de Paulinho:
−Eles sentem a sua falta.
Ele pôs as mãos na cabeça, chorou. Eu disse: − Você vai
ficar aí, com esse olhar de peixe morto? Mas ele ficou calado.
Um perfume desconhecido pairava no ar, eu sabia das
orgias de artistas, músicos, atores e de políticos internacionais
que vinham ao Brasil no carnaval. “Não era um lugar
recomendável. ” Diziam os que não podiam ali habitar, nem que
fosse por uma noite apenas. Mas acho que isso era despeito da
classe pobre, por não poder usufruir daquele pedaço de império
romano, ou de paraíso. E eu? Quantas vezes eu sonhei morar
ali. Quantas! Meu bar ficava muito perto dali e eu nunca tive
168
dinheiro para tal prazer mundano.
Então era ali, no Copacabana Palace, que Walter gastava
o dinheiro da família, pensei. Eu não me preocupava com isso,
só administrava a fortuna da família que havia crescido bastante
em poucos anos; éramos de fato bem abastados. Eu olhei de
relance o quarto, parecia um altar dedicado a um deus do
Olimpo, e a aparência de Walter era horrível, um semimorto que
não notava a presença de vida ali tão perto.
Walter pôs as mãos novamente na cabeça e culpou Deus
por toda a sua desgraça.
− Não digas tolices homem, não deves mexer assim com
Deus, isso é terreno perigoso. Não sabemos como ELE age
nestes casos e creio que nunca saberemos. Além do mais,
falando assim parece-me que não crês mais em Deus. Porque
quando falas de Deus vejo em teus pensamentos uma ironia e
um desdém sem par, até quando falas de virtudes é ao homem
que dás todo o mérito. Acho-te vago e vazio quando afirmas crer
em um ser supremo.
− Por que não és mais claro?
−Não é isso. Porém, eu nunca ouvi da tua boca as
palavras: Se Deus quiser farei isso ou aquilo.
Walter tossia sem parar. Eu tive pena dele.
169
−Paulo: há homens que não professam publicamente
suas crenças nem sua fé em Deus, no entanto as suas atitudes
gritam em praças públicas que são crentes à maneira do filósofo
alemão Kierkegaard, já outros são frequentadores assíduos de
igrejas e nem por isso nos convencem que creem em Deus. São
estes os crentes mais incrédulos. A força da didática repetição
perde o poder sobre eles, então em pouco tempo não acreditam
mais em nada, daí partem para outros credos, para outras
deidades, para estes seus deuses têm prazo de validade. São
como os amores das prostitutas, acaba-se o estímulo perde-se a
paixão. Estes seres confusos e instáveis são criadores de
mitologias irresponsáveis, onde para tudo existe um deus, um
poder sobrenatural para resolver e explicar uma ação ou reação
natural do rolar dos dados, das leis físicas pré-estabelecidas pelo
caos, no desenvolvimento da natureza. Você não sabe mais e é
aí que entra a tese do Eterno Retorno de Nietzsche. Por
exemplo: estes atribuem suas fraquezas e seus desvios de
conduta às forças do mal invisível, responsabilizam terceiros
pelos seus próprios erros. Segundos estes covardes, tudo de ruim
que lhes sobrevém, o mal que praticam advém das trevas do
príncipe do mal, do opositor de um deus bom que os criou
cheios de virtudes e que estas virtudes não seriam corrompidas
170
por seu livre-arbítrio, por suas próprias escolhas. Em outras
ocasiões culpam ao próprio Deus seu criador, quando tentam
justificar sua febre moral adquirida, dizendo: “A carne é fraca”
E esta atitude depõe contra Deus no tribunal da existência
humana. Será que Deus não foi bem-sucedido em seu projeto?
Por isso, sou cauteloso quando tenho que afirmar ou discordar
da maioria dos homens. Acho que nesta vida, para tudo se
precisa de base científica e de um pouco de lógica. Meu
pensamento é o mesmo de Russel: sempre defendo a razão, e
nego a superstição. O inexperiente é como criança nova: dá
crédito a tudo que ouve falar. Analisando todas as crenças,
encontro um grande buraco negro, um abismo de incoerência:
princípio sem fim, ou fim sem começo, e para explicar a falta de
resposta, inventaram deuses, e estes nem sempre são bem-
sucedidos. Vejo aí também a escassez da virtude humana no
tocante à humildade, para admitir que não sabe nada neste
campo do invisível; os homens são arrogantes quando afirmam
algo sem provas, reside aí também uma enorme contradição, um
gigantesco paradoxo, pois ao passo que julgam que a vida no
além-túmulo seja melhor que esta; não abrem mão da vida atual,
dos prazeres da carne decaída, e nem dos desejos da carne
“fraca” como eles mesmo cognominaram, nem mesmo quando
171
esta carne cai doente. É uma insensatez sem fim.... Olhe para
mim e diga se não enxerga um verme que apesar da decadência
físico-moral ainda busca a distração na ilusão de um prazer
momentâneo nos braços de Baco e de ninfas prostitutas. Eu
prefiro as pessoas sinceras: que assumem seu estado animal e
que não tentam desculpar o que fazem nem o que são. E neste
contexto, eu também me perco por labirintos escuros e diversos:
não creio nem nego, às vezes creio, outras descreio. Não tenho
respostas para todas as perguntas. Posso hoje afirmar
categoricamente que tenho a verdade sobre tudo ou para algum
assunto; mas amanhã pode ser que eu procure as provas e elas
não estejam mais lá ou eu mesmo as destruí.
Contudo, penso que a epígrafe de toda sabedoria humana
deve ser: "Conhece a ti mesmo," não dentro de um raciocínio
Pré-socrático ou neoplatônico. Contudo, como criatura pensante,
dentro da vastidão abismal do cosmo. Portanto, procuras saber o
tamanho da tua mediocridade vaidosa, ante o universo
assombroso que ainda se expande para um fim apoteótico, sem
plateia, dentro do caos. A inteligência emocional deve construir
pontes sobre o nada, para se suportar a vida sem causas ou
objetivos, mas a razão e a lógica devem destruir mitos e ilusões,
que não são necessários para uma vida otimista e produtiva. ”
172
− O que quis dizer: Não tem certeza naquilo que crê, se
existe ou não algo além do horizonte?
− Nem sempre vejo o horizonte! A fé é isso: É como um
arco-íris: nós o vemos, porém ele não está lá; não temos o dom
para descobrir ou tocá-lo e se tentarmos, ele desaparece, é pura
ilusão de ótica. Saber que algo existe sem precisar possuí-lo.
− Afinal: o que quer provar? Por ventura apagar com a
borracha da desconfiança a escrita indelével do sacrifício do
carpinteiro nazareno dos anais da história do cristianismo que
ainda vive?
− Não, nada disso! Apenas não tive ainda a honra de ver
a face de Deus. Discordo dos que dizem que não se pode ver a
Deus e continuar vivendo, falo ver no sentido de sentir, de saber
que ele está aqui ou ali, presente, e este ser real para nós. Para
algumas pessoas, talvez isso seja fácil de acontecer. Admiro
pessoas que mudaram de proceder depois de uma constatação da
existência do divino. Eu espero que este dia chegue para mim
também, estou à espera do meu quinhão na distribuição da fé, no
sobrenatural, em Deus, só que quero ver a Deus e viver para
contar minha experiência, e caso isto aconteça espero que seja
proveitosa e única
− Você é louco, Walter! Espero que mude de opinião – e
173
o mais rápido possível!
− Veremos!
− Eu não condeno você por pensar assim, já tive meus
dias de descrença, passei por estado de incredulidade total, não
achava razão para vida que levava, no entanto agora vejo o que
me fez pensar assim. A infelicidade, a carência de amor, de
afeição, pode levar qualquer um bom cristão a desacreditar de
Deus... Porém, o sábio sabe esperar, a natureza é fiel: sempre
depois de uma tempestade, depois de uma noite escura de trevas
profundas é inevitável que nasça o sol da esperança, e este
quando vem pinta no horizonte o quadro mais belo, seus raios
multicores são pincéis a colorir nosso amanhã e, neste estado de
regozijo celeste não só enxergamos o arco-íris, mas também
misturamos as suas cores e as transformamos em uma aquarela
de luz... Walter: Não estou aqui para questionar a sua fé em
Deus, mas para lhe comunicar uma coisa, uma data importante:
seu filho se formará em um mês.
−Sei, sei! Não me esqueci! Não se preocupe: lá estarei
para a festa, quero que providencie o melhor que possa existir
para o deleite e prazer do Paulinho.
Não tínhamos mais como acreditar em Walter. Como ele
chegou a esse ponto? Sempre o tive como um homem de
174
coragem, capaz de reagir. No entanto, já o via diferente, não me
parecia que fosse um dia ser de novo o mesmo Walter que
conhecera austero, homem de convicções firmes e personalidade
imutável. Esta cena fez vibrar as mais finas e profundas cordas
do meu ser, do meu coração de irmão e amigo tão achegado,
sentira que perderia o meu amado amigo, sogro e pai, era assim
que melhor poderia o definir!
Walter não parava, não conseguia parar de pensar na
morte da esposa e dos filhos. No entanto, aceitou ir comigo para
a fazenda.
Com o tempo, passou a perguntar a si mesmo se era um
homem triste ou feliz. E era Paulinho quem o respondia:
− Quanta tolice, pai! Sua pergunta não procede, pois ao
homem não foi dada tal percepção divina. Os homens não
conhecem esses dois extremos, esses dois sentimentos
corretamente, não sabem de fato como é ser completamente feliz
ou triste. Eu digo isso com uma simplicidade audaz: sendo eu
também um ser humano da casta dos inconstantes, que não
encontra em parte alguma razão para usufruir esses dois
sentidos. Uma vez que não fazem parte dos nossos sentidos
comuns.... Não temos capacidade para determinar com exatidão
quando estamos felizes ou tristes.... Enquanto homem, ser
175
atrasado, insuficiente, incapaz de ser completo consigo, viaja em
vias tortas em busca do que não tem.
Estamos sempre querendo algo novo seja em que campo
for... Temos sempre a impressão de que, o que nos pode fazer
feliz está sempre fora de nós, nas coisas concretas, e não no
abstrato da nossa subjetividade “essencial”. Inconscientemente
procuramos este estado de espírito sem saber onde esta busca
nos levará. Mesmo sem nunca encontrar, teremos sempre a
sensação de que estamos muito perto de atingi-lo. E nesta
incansável corrida gastamos todos os nossos bens, para adquirir
aquilo que não conhecemos, nem sabemos o seu valor exato...
E Walter se orgulhava do filho.
− Meu filho já é um homem, fala como um sábio apesar
de tão jovem! E eu quase não o vi crescer! Perdoe-me! Este
meu fracasso não tem desculpas, sou um infeliz! Eu lhe prometo
isso: Vou ficar agora perto de você, não me afastarei mais tanto
tempo, quero que tenhas uma grande festa de formatura, você
merece, todos vocês merecem.
E Paulinho sempre generoso, respondia:
− Pai, não se canse com isso! O que quero é que o senhor
esteja e seja presente não só na minha festa, mas em minha vida,
certo? Quanto ao senhor ficar comigo o tempo todo, isso não
176
será possível, nem necessário, pois vou estudar na Europa!
Isso calou fundo n’alma do Walter que ficou mudo e, no
fundo, provavelmente pensou: outra vez não, não iria aguentar,
meu filho vai embora e eu não o verei mais. Fez forças para
voltar o tempo e acompanhar seu filho em suas horas mais
importantes, como a formatura do primeiro grau, que não
aparecera porque estava embriagado...
O tempo, leitor, o tempo não volta atrás para satisfazer
nossos caprichos, para consertar nossos erros. O tempo, amigo
leitor não é amigo neste sentido.
Walter tentou tirar da cabeça de Paulinho a ideia de ir
estudar na Europa. Mas Paulinho era categórico: O sonho é meu,
não do senhor!
A festa de formatura não foi como as festas anteriores.
Não teve o discurso do Walter. Foi uma festa com cara quase
fúnebre, impessoal para nós, que não esquecera que ali faltava a
rainha do lar, a peça principal do jogo das nossas vidas. Era um
reino sem rainha, sem realeza. Todos bebiam a uma felicidade
fugaz. A festa terminou muito cedo: Os convidados que
compareceram, compareceram mais pela hipocrisia da obrigação
social, do que pela gentileza da amizade e consideração do
momento.
177
No fim da noite, quando eu e Walter estávamos
conversando na varanda, encontramos um homem à nossa
espera. Era o seu João, que só ali teve a oportunidade de
agradecer ao Walter, por este ter lhe arrumado um emprego
(aquele episódio do bar, lembra?). O seu João era agora meu
gerente na fazenda, depois de ter passado por vários setores:
Vaqueiro e chefe dos vaqueiros. Com a morte do Juvenal, ele
assumira agora mais responsabilidades na fazenda.
− Senhor Walter, agora enfim posso lhe dizer o quanto
sou grato por sua generosidade. Trabalho para sua família há
tantos anos e ainda não tive o prazer de revê-lo, para dizer-lhe o
tamanho da minha gratidão, porém tudo na vida tem sua hora. O
senhor foi para mim e para os meus, um verdadeiro anjo da
guarda. Que Deus na sua infinita bondade colocou-o na minha
direção naquela manhã tão inesquecível para mim, possa Ele
retribuir-lhe em dobro o que fez por nós.
− Não precisa agradecer. Isso faz parte da vida, eu estava
lá no momento certo e não fiz nada demais, você é que mereceu,
como você mesmo disse, foi Deus quem planejou tudo, não por
mim é claro, pois não merecia e nem mereço tanta consideração
de sua parte; foi sim por você e seus filhos necessitados.
− Mesmo assim sou escravo do senhor e sempre lhe serei
178
grato, e estarei para o senhor disponível para o que der e vier.
−Obrigado seu João, não se apoquente com isso!
Depois que Walter e João foram dormir, eu ainda fiquei
ali a observar o céu. Ele estava perfeito, todo iluminado de
estrelas e a lua estava lá, quase cheia, magnífica. E à noite ficou
mais bonita com a presença de Rute ao meu lado na varanda.
− Você me ama?
− Claro, seu bobo!
Eu refleti e continuei:
− Quero nosso amor tão perfeito como o céu.
−Nosso amor não precisa ser perfeito, meu marido,
apenas verdadeiro.
Ao lado tinha uma rede armada, lugar onde sempre
namorávamos, nas noites em que as crianças nos davam
sossego, era nosso cantinho secreto. Era nosso esconderijo.
Eu disse:
− Olhe ali o nosso esconderijo, onde fazíamos amor,
lembra?
− Claro meu amor, sussurrou Rute: quero ir para lá
agora... e fomos para a rede, foi magnifico, nosso amor era
sempre como uma primeira vez.
Depois continuamos a conversar sobre a vida do Walter.
179
Rute estava muito preocupada com o comportamento do
pai.
− Rute, não fique tão preocupada, ele está bem! Ele
prometeu que não vai beber mais.
− Paulo, será que ele parou mesmo de beber? A mente
humana é terreno ainda desconhecido pelo homem, os
profissionais desta área não sabem praticamente nada sobre ela
e, como psicóloga, asseguro que o achei muito estranho. Há algo
novo em seu pensamento, em seu semblante. Temos que vigiar
para ajudá-lo. Tenho medo que ele tire a sua própria vida.
− Conheço o Walter mais do que a mim mesmo! Sempre
soube quando ele está prestes a cometer algum desatino.... Vou
cuidar dele para você!
− Outra coisa que me preocupa: Não acho certo que o
Paulinho vá estudar agora na Europa. Ele está muito novo, acho
que deve ficar mais tempo com o papai, talvez ele não o veja
outra vez, se ele for para tão longe...
− Concordo com você, já falei com ele a respeito, ele
está decidido, acha que deve dá orgulho ao seu pai, por ir fazer o
que o Walter Júnior fez, mas não conseguira.
− Por favor, Paulo, fale com ele!
− Claro!
180
O Paulinho considerou o pedido da família e aceitou
ficar até que completasse dezoito anos.
Durante os dois anos seguintes, Walter cumpriu a
promessa: não bebeu. Éramos todos alegria. As crianças
começavam a namorar e a fazer suas escolhas na vida, o meu já
com vinte anos se formara em veterinária, meu braço direito na
fazenda! Cuidava quase de tudo para mim, era nosso arrimo na
velhice, não precisávamos nos preocupar com nada, Rute dizia
que nunca pensara em alcançar tanta alegria, com uma família
que aos trinta ainda não tivera, que agora aos cinquenta, era a
mulher mais feliz do mundo.... Lamentava a falta de sua mãe,
que não vivera o bastante para ver sua família tão feliz e unida!
Ao completar dezoito anos, o nosso jovem em questão,
partiria sem demora para a Europa, não adiantou os pedidos e os
lamentos de todos e do pai, os apelos mais dolorosos de se ver e
ouvir, era agora a hora do maior padecimento para um pai viúvo
e órfão de um filho varão.
Mas veio a recaída. Walter achava que Paulinho teria o
mesmo fim do Walter Júnior. Com isso, ele não aguentou a
pressão: entregou-se ao desatino e ao álcool outra vez. E para
um sofrimento maior ainda para a família, ele passou a morar na
rua. Agia como um adolescente irresponsável, como um tolo. A
181
Rute não tinha paz, “Como posso dormir sem saber por onde
anda meu pai? ”, dizia ela. Eu passei dias e dias à procura de
Walter. Até que um amigo meu me falou que ele estava
morando debaixo de um viaduto na zona norte do Rio − notícia
que Rute não aceitou com facilidade. Ela chorava dia e noite:
“Como meu pai foi fazer isso, descer tão baixo no subterrâneo
humano? ”.
Eu não sabia o que fazer e pensava comigo: “A vida é
uma caixinha de surpresa! E o homem é um viajante solitário
que vaga por campos hostis, que pega o trem da vida com a
passagem só de ida, em busca de descanso e de morada, exausto
da longa caminhada, tropeça em pedras do destino. O homem
dorme em cama de ilusão, sufoca seus desejos, com isso, os
sonhos adormecem. Perdura em seu peito a angústia da razão.
Perdido no deserto vagueia dia e noite, sem luz, sem guia, sem
sombra ou companhia. Mal sabe que está só, andando em sua
volta o peso em suas costas, que lhe arrasta para o chão, o seu
termo é o pó, o gen da criação.
Como um dia podemos acordar e tudo em nossa volta
pode está diferente, mudado, fora de lugar, quem realmente é
sábio para prever e se proteger do amanhã? Quem suporta as
desventuras e as amarguras? A inconstância da vida é algo
182
assustador! Não estamos seguros e nunca temos a certeza de ter
alcançado a felicidade plena. Quando em algum instante da
nossa existência achamos que é agora e a hora em que
atingiremos o alvo por todos almejado, o tiro nos sai pela
culatra, somos pegos de surpresa e de um instante para outro se
invertem os papeis, deixamos de ser caçadores e passamos a ser
caça...”.
Lembrei-me da tolice que Walter falava sobre a vida em
outro planeta: A mente humana não tem limites para desvarios e
alucinações, sobretudo quando se encontra encurralada pela
realidade, muitas vezes cruel. E nesses momentos verificamos
quão fugaz é a vida: “Como um poema escrito na areia que a
onda do mar do tempo apaga tudo com sua voracidade”...
Lembrei-me também da virtuosidade do Walter: podia
ver claramente que ele só podia ser mesmo de outro mundo, um
homem além do seu tempo e exímio conhecedor de todas as
ciências e de todos os cultos. Ele me insinuou como a
virtuosidade do Alemão que tinha admiração pela filosofia
nazista, que fora a paixão intelectual-musical de Nietzsche e
mais tarde de Hitler, transformara para sempre sua noção e
conhecimento das óperas do mundo clássico europeu. Eu nada
compreendia − pelo menos como ele queria que eu
183
compreendesse. Walter não era advogado, mas sabia tudo sobre
Direito Constitucional e Penal. Ele acreditava que o universo ia
se desintegrar. Acreditava na evolução e na criação ao mesmo
tempo e explicava de forma didática como isso podia se dar.
Tinha até um esquema que mostrava o universo em evolução.
Afirmava: visto ser a sua origem de uma explosão, seria
inevitavelmente conduzido à outra explosão ainda maior do que
a que lhe dera origem. Eu o achava inteligente, mas achava estas
ideias dele absurdas.
Walter conhecia todas as teorias sobre o mito da criação.
A este respeito, ele me disse:
“Paulo, meu bom e inocente amigo: Para o homem, toda
esta ideia de deuses e mitos foi simples defesa que o instinto de
sobrevivência criou para se proteger do acaso e do caos. Quer
saber como posso provar o que eu digo? Veja bem, todas as leis
que demos à luz. Ética, Justiça, e esta história de ser honrando
e de ter bom caráter, todos estes símbolos são reflexos da
necessidade que temos de buscar a melhoria da nossa própria
conduta. Ao passo que descobrimos em nossas ações atos de
injustiça, criamos a justiça para nos aprimorar e nos proteger
da violência que podemos causar aos nossos irmãos e também
sermos vítimas. Eu penso que é aí que mora o abismo que
184
separa a lucidez da loucura: o conhecimento. Dizia um sábio,
que melhor seria que o homem continuasse na inocência, talvez
assim fosse feliz ou mais feliz, ou pelo menos não conheceria o
pecado. Falo da inocência total, não da religiosa e do pecado
capital, do que desagrada a Deus. Falo do pecado da vaidade,
que escraviza todos que dominam o conhecimento.
Tenho uma teoria sobre uma metafisica cósmica, que há
muito tempo está em desenvolvimento na minha mente, esta
teoria na verdade não é muito original, pois já aprendi algo
sobre ela nos escritos de Espinoza e com a intuição mística de
Einstein.
Nesta minha ilação ou loucura sobre uma religião
perfeita, capaz de satisfazer o desejo dos intelectos mais
poderosos entre os homens, Deus seria a totalidade de todas as
coisas, a fonte de todas as energias renováveis do universo, o
próprio “universo é alma de Deus. ” Então tudo se torna claro
para mim, quando penso no futuro da humanidade, nos medos e
superstições produzidas pela ignorância tribal do homem em
desenvolvimento espiritual e psicológico. Para onde iremos,
caso a inteligência suportasse a morte física do corpo, do corpo
que até hoje conhecemos como simples matéria orgânica?
185
Com este meu sistema religioso eu resolvo todas estas
questões supra-humanas, que tanto afligem a mente imperfeita
do homem, pois para mim não pode existir céu nem inferno,
tudo que há é um universo em expansão constante, Deus sendo
tudo em todos e para todos, não haverá angústias morais sobre
o que é certo ou errado, pois até o pecado estaria reduzido a pó,
como diz o livro de Gênesis. “Tu és pó e ao pó voltarás”
Se você pensar bem esta minha teoria encontrará
respaldo bíblico para lhe embasar. Lembre-se que em algum
lugar dos evangelhos, Jesus diz para seus apóstolos que, assim
que eles atingissem um estado maior de percepção espiritual,
todos eles seriam um, assim como ele e PAI eram um. Pense em
uma grande usina nuclear, que produz energia para todos os
fins, assim seria Deus. Ah, lembre-se também que quando Deus
enviou Moises ao Egito para libertar seu povo, ele disse para
seu escolhido e líder, Moises, que ele seria o que precisasse se
tornar para libertar os israelitas do julgo egípcio. Gosto de
citar textos sagrados, pois assim não será difícil convencer
cristão e bárbaro sobre minha tese. O livro de Eclesiastes, por
exemplo, diz que o homem tem a mesma sorte do animal, e lá,
para ser meigo com o homem crédulo, ele usou o cão como
modelo, diz ele, “assim como morre o homem morre o cão...”
186
Sou um velho tolo, queria ser um poeta, e não ter consciência de
nada em sentido metafísico e filosófico, contudo, sou movido
por um espírito cientifico, não poderia ser poeta. Tenho um fraco
incontestável por três musas, características humanas: Amor, beleza e
justiça! Contudo, tendo a me perder facilmente pela beleza, mas o
amor sempre me socorre, me conduz à justiça...
É Claro que esta minha TEORIA CÓSMICA-
METAFISICA não vai servir para os homens que estão
confortáveis em seus castelos emocionais, em suas crenças
milenares, ela servirá apenas para aqueles que como eu
habitam em labirintos emocionais, sem a menor chance de
saírem de lá. Esta teoria, como todas as outras do campo da
metafisica, servem para consolar o espírito humano abatido
com sua cruel sina, a ciência irredutível da morte certa. Não é
assim que diz o senso comum? o homem é o único animal que
sabe que vai morrer.
Pois bem, com esta minha teoria provada, caso fosse
possível comprovar minha alucinação teológica, o homem
venceria a morte, pois passaria a ter consciência de que é uma
partícula cósmica divina, portanto não pode ser apagada. Outra
citação bíblica nos ajuda a entender este fato. No início da
187
criação lá no Éden, Deus soprou nas narinas de Adão e ele
passou a ser uma alma vivente. ”
Eu sugeri a ele que escrevesse um livro. Ele respondeu:
− Claro! Um livro de registro das minhas teorias, como
esta: “Veja bem, meu caro Paulo, mitos sobre a criação há
muitos, mas nenhum deles tem a lógica simples do registro da
criação apresentado na Bíblia. (Gênesis, capítulos 1, 2) Por
exemplo, os relatos na mitologia grega têm requintes de
barbarismo. O primeiro grego a assentar mitos por escrito
sistematicamente foi Hesíodo, que escreveu sua Teogonia no
oitavo século AEC. Ele explica como é que os deuses e o mundo
começaram. Ele começa com Géia, ou Gaia (Terra), que dá à luz
Urano (Céu). Hesíodo narra a história, que Homero conhece, da
sucessão de deuses celestes. De início, Urano era supremo, mas
ele suprimia seus filhos e Gaia incentivou seu filho Cronos a
castrá-lo. Cronos, por sua vez, devorou seus próprios filhos, até
que sua esposa Réia deu-lhe de comer uma pedra, em lugar de
Zeus; o filho Zeus foi criado em Creta, obrigou seu pai a vomitar
seus irmãos, e, junto com estes e com ajuda adicional derrotou
Cronos e seus Titãs, lançando-os no Tártaro. ” De que fonte
obtiveram os gregos essa estranha mitologia? O mesmo autor
responde: A sua derradeira origem parece ter sido sumeriana.
188
Nessas histórias orientais encontramos uma sucessão de deuses, e
os temas da castração, da engulição e o de uma pedra se repetem
de tal modo que, embora variem mostram que a semelhança com
Hesíodo não é coincidência. Temos de recorrer às antigas
Mesopotâmia e Babilônia como a origem de muitos mitos que
permeavam outras culturas.
Eu gostava de conversar com Walter, mas confesso que
meu intelecto não suportava tanta informação, e às vezes
informações ou especulações inúteis.
Um ano se passou sem Walter dar notícias. Até que
recebemos uma carta anônima dizendo que ele estava preso em
um país da América do Sul. Esta notícia era algo totalmente
novo para todos nós, apesar de na época estarmos vivendo sob o
regime totalitário (a ditadura) Era só uma carta anônima, era
uma mentira maldosa ou uma brincadeira de mau gosto, não
demos atenção à carta.
“Após a queda de Goulart, sucederam-se governos
militares pelo período de 21 anos: de Marechal Humberto de
Alencar Castelo Branco (1964-1967), de Marechal Arthur da
Costa e Silva (1967-1969), do general Emílio Garrastazu
189
Médici (1969-1974), do general Ernesto Geisel (1974-1979) e
do general João Batista Figueiredo (1979-1985) ”.
Era o ano de 1972. O Walter era jornalista de direita,
embora os de esquerda não se reconhecia publicamente. Aliás,
para eles não havia jornalista, senão de esquerda, contra o
regime. Nessa época, podia se reconhecer as pessoas
importantes mais pela ideologia política do que pela
competência profissional.
Não sabíamos de nenhum episódio que envolvesse o
nome do Walter, ou talvez não o conhecesse como achava que o
conhecia, sabia dos abusos dos militares, não me interessava por
política, vivia uma vida calma e alienada...
Isso me pareceu um tanto misterioso, pois qual era o
intuito daquela carta ou de quem a mandara?... Procurei em
todos os lugares possíveis, hospitais, delegacias e cemitérios
clandestinos, pois sempre apareciam lugares como estes com
corpos não reconhecidos por parentes. Enfim: tudo em vão.
Apesar de tudo, a esperança ainda reinava na família.
“Papai está vivo”, dizia Rute. Mas já tinha para mim que, se não
o encontrasse, eu ia dizer para todos que nós devíamos continuar
a vida.... Acho que eu já estava um pouco cansado destes
190
problemas com o meu sogro, das suas inúmeras recaídas.
Esperaria que o velho tempo trouxesse as novidades do meu
velho e cansado amigo. Era triste o fim do meu amigo sogro!
Mas o que eu podia fazer?
Depois de todo este vagar em vão, voltei para casa, para
o seio dos meus queridos: minha família que só me dava prazer
e alegria. Tirando o Walter, tudo estava muito bem.
Rute não se consolava, nem se alegrara mais com nada, e
isto sim me deixava sem paz, não podia ser feliz, se minha outra
metade não era, enquanto este drama persistisse, drama que era
deveras um fato, uma realidade. Chegamos a cogitar a ideia de
irmos para Paris. Dizem que os loucos e os assassinos sempre
voltam ao lugar do crime, pois não é um crime bárbaro afogar a
mente em um poço tão fundo de agonia, de angústia e
depressão? Existem vários tipos de loucura, eu disse para Rute.
A loucura do Walter era a meu ver, loucura sem razão,
afinal problemas todos os têm, e ele tinha muito por quem viver.
Tivera filhos, esposa, netos, filho quando não esperava ter, como
uma dádiva do criador. A vida por si já vale a pena viver,
mesmo para aqueles que na vida nada têm, se não os pulmões
para respirar, viver. Acho que nem Freud explicaria, muito
menos eu o poderia...
191
Quanto a mim, vivo embriagado com uma volúpia
celeste ao contemplar o prazer que a vida pode proporcionar-me,
quantas alegrias advindas deste instante glorioso que é usufruir o
fôlego de Deus e do êxtase de ser humano, o projeto mais
imponente a ser elaborado na esfera mais alta da inteligência. E
todos os seres que respiram como eu devem se sentir ébrios de
satisfação pela realização alcançada, que é o respirar, o vir a ser,
privilégio de que o criador abre mãos para sustentar nossa vida
do lado de cá, do lado sensível... E sei que esta centelha divina
não se apagará, enquanto for alimentada com o azeite do amor
supremo. Quanto a mim respiro e compartilho com os meus
queridos, minha função na existência e divido-a em partes
distintas: como homem, como pai e, sobretudo como irmão. A
providência foi deveras generosa para comigo... Aqui fica minha
insignificante apreciação pela vida e meu reconhecimento da
existência de um criador, de um Deus... Meu julgamento, em si
não tem nenhum valor, homem comum, sem cultura, “apenas
penso que sou capaz de pensar” (não tenho certeza se já li isso,
na dúvida...), pois como todos os homens, sou movido pela santa
vaidade, vaidade que alimenta e destrói, que derruba e edifica,
que dissolve e solidifica. A vaidade que nos sustenta a vida, que
nos faz ser honrados e sem honra, quando essa vaidade nos põe
192
em uma posição de pessoa honrada, pois se agimos pela honra é
por não aceitarmos ser visto como alguém sem honra, sem
palavra, como alguém que não cumpre com seus deveres, ou
seja, nossa vaidade nesse aspecto não suporta a condenação da
reputação; pela vaidade dos outros. Se julgo e condeno o Walter
como homem fraco e o acuso de desequilíbrio moral e mental, é
sem dúvida porque eu não incorri no mesmo erro que ele. Porém
ele poderia me acusar também de homem fraco e desequilibrado
moral, pelo fato de que eu assumira tão prontamente seu lugar,
além de conquistar sua filha carente de amor e de atenção
paternal; não seria isso também falta grave de caráter e de moral
apurados?
Quanto à loucura quem não é louco? Diria Erasmo de
Roterdã, que todos são! A loucura é o nome dado à ausência de
consciência, ao mesmo tempo em que a consciência, dizem os
cônscios de lucidez que é um estado de embriaguez existencial,
onde o ser pensante acha que tem a razão e o dom do discurso.
Eu não me atrevo a classificar este expediente da psicologia
humana, pois, só enlouquecem os racionais.... Dizem que os
cães enlouquecem, no entanto é a consciência dos homens que
acomete de demência os animais... A loucura é o estado maior
da vaidade; quando esta não atinge o sucesso almejado, então
193
para escapar dos escárnios do orgulho, lança-se no abismo da
demência, dissimulando e negando a consciência...
A vida é uma caixinha de surpresa! E o homem é um viajante
solitário que vaga por campos hostis, que pega o trem da vida
com a passagem só de ida, em busca de descanso e de morada,
exausto da longa caminhada, tropeça em pedras do destino. O
homem dorme em cama de ilusão, sufoca seus desejos, com isso,
os sonhos adormecem. Perdura em seu peito a angústia da
razão. Perdido no deserto vagueia dia e noite, sem luz, sem
guia, sem sombra ou companhia. Mal sabe que está só, andando
em sua volta o peso em suas costas, que lhe arrasta para o
chão, o seu termo é o pó, o gen da criação.
194
O milagre
Era 1974. Já havíamos visitado todos os hospícios de São Paulo
e do Rio de Janeiro. Não tínhamos mais esperanças. Até que,
numa tarde de domingo, movidos mais pela força do hábito do
que pela crença de encontrá-lo; estávamos nós a caminho de
uma Casa de Repouso de Idosos, que por abandono ou por
vontade própria, ali viviam isolados do mundo exterior.
Encontramos o meu amigo Walter, que se fizera refém do
remorso e de sua amargura, para se punir por erros, como pai e
195
marido. Não estava muito bem, é claro! Porém, não estava
totalmente louco, pois, desta vez, não fugiu nem fingiu que não
nos conhecia, nos abraçou e pediu à filha perdão, por sua
fraqueza. Dizia:
− Minha filha: Não há mais razão para o meu viver, é
demais o meu sofrer. Eu não consegui viver à altura das
criaturas que Deus me deu para o meu deleite na vida. Depois da
morte de Beatriz e dos meninos, não posso mais e nem mereço
viver na companhia de vocês, por isso me bani da tribo da minha
consciência. Saiba isso, não vou mais causar dor e sofrimento a
vocês. Estou em paz comigo mesmo e, depois de tanto refletir
sobre minhas ações, verifiquei que só cabe a mim mesmo julgar-
me, condenado ou inocente. Então por me sentir culpado
continuei aqui e daqui não sairei – e nem insista em me tirar
daqui! Espero que o Deus de ternas misericórdias, o lavrador
celestial, me conceda ainda muitos anos aqui no seu jardim
terrestre; como planta imprestável que sou, que ELE não corte
minha herança eterna na videira da vida, que ELE permita que
minha semente perdure e dure para sempre em você e em meus
netos. Quanto a mim espero viver muitos anos ainda para pagar
meus erros nesta prisão que eu mesmo edifiquei e me tornei o
mais cruel e o mais justo de todos os condenados. Vivo preso
196
em um LABIRINTO EMOCIONAL que, por mais que eu
caminhe mais longe me encontro da saída!
Eu ia visitar o Walter no residencial para idosos
semanalmente por dez anos. A cada visita eu percebia que ele
piorava. Pouco se lembrava de nós. A última vez que o encontrei
lúcido, ele falou:
− Paulo, meu filho, eu considero você meu filho, embora
eu não tenha idade biológica para tal privilégio, porém o que é
um filho senão aquele que se comporta como tal? E o que é um
pai, senão aquele que vela, ama e protege um filho do coração?
Sei que é quase hora de eu me desligar desta vida, então quero
pedir-lhe isso a você, que seja para minha família o pai e avô
que eu não fui. Pausa. Choros. Não leve em conta meus erros,
não os valorize mais do que eles merecem. Sabe você que as
virtudes e os erros nos humanos são inerentes e são até
compatíveis e necessários. Claro que eu não fui um exemplo,
como ser humano, também nunca esperei nem cobrei isso de
mim mesmo. A vida e a experiência me ensinaram que todos os
homens erram por repetição, ou por herança. Meus pais, por
exemplo, não foram perfeitos para mim, meu pai foi um homem
exemplar e como filho me espelhei no seu exemplo; no entanto,
há quem diga que ele fora um fraco e um falso moralista. Certa
197
vez minha mãe me contou que ele, quando jovem teve uma
amante por dez anos e que, por este motivo foi considerado um
covarde pela família, sobretudo por minha mãe – embora ele
jamais tenha deixado de nos amparar. Paulo, eu não espero
perfeição também de sua parte, mas o que me incomoda é pensar
que todos falham e que você pode falhar ou ter falhado, mas
nunca faça minha Rute sofrer!
− Quer me contar algo, meu amigo? Fique à vontade,
abra o teu coração!
− Sim! Quero que saiba isso: Eu não tive apenas a
Beatriz como mulher, tive a Vera também. Vivi com Vera por
vinte anos e com ela tive uma filha, Patrícia, que mora em São
Paulo. Assim como a morte separou Beatriz de mim, também
Vera, ela morreu há quatro anos. Silêncio. Depois, ele: Nunca
contei esta outra fraqueza minha para ninguém. Agora é hora de
lavar minha alma, não devo morrer sem confessar este meu
último e talvez maior pecado... Pausa. Por favor, Paulo: Só conte
este meu segredo para Rute quando eu morrer! E por favor:
Quando puder, vá visitar a Patrícia. Sei que ela tem filhos e eu
netos – mas eu não os conheço. Quando resolvi sair de casa para
meu exílio moral, fui a São Paulo para reencontrá-la, mas não
fui bem recebido. Isso me marcou muito, choro até hoje por não
198
aceitar o desprezo de minha filha. Vi meus netos de longe
porque ela não permitiu que eu me aproximasse deles. Vejo isso
como uma consequência dos meus atos de covardia. Poucos
homens estão dispostos a pagar o preço exigido por suas
escolhas, eu sempre achei justo o preço pago pelas minhas.
− Walter, há quanto tempo você não via sua filha? Como
você e Vera se conheceram?
−Eu conheci Vera durante uma viagem que fiz a São
Paulo. Eu estava na biblioteca da Universidade de São Paulo
(USP) pesquisando sobre o desenvolvimento industrial paulista
e ela também. Esta pesquisa seria base para um de meus livros e
para uma matéria do jornal. A pesquisa nos uniu, a princípio
como amigos, mas depois amantes apaixonados. Paulo, eu não
resisti aos encantos de Vera, moça jovem com 24 anos, de
beleza singular, independente e desafiadora. Nossa cidade de
referência para nossos encontros era São Paulo, mas ela gostava
de variar: íamos ora para a Europa ora para a Ásia. Quando ela
engravidou, nossa relação mudou completamente. Ela pouco me
olhava como homem, mas como o pai da filha dela. Mas ela
nunca me cobrou além do que eu podia lhe oferecer – nem a
pensão para a menina ela queria. Nossa relação chegou ao
199
limite. Terminamos, então fui me encontrar com minha filha
quando ela tinha dezesseis anos – ela já com um filho nos
braços. Depois disso, eu a vi mais duas vezes apenas. Todavia,
estou preparado para morrer. Todo homem só deve morrer
quando for cabalmente instruído sobre a sua insignificância na
eternidade!!!
Ao olhar Walter mais de perto, cheguei a esta conclusão:
que eu deveria respeitá-lo, não o criticar, pois sua integridade e
resignação eram invejáveis: Walter abriu mão dos bens materiais
e morais que lhe eram devidos para terminar seus dias à margem
da sociedade, sociedade que ele não fazia questão alguma de
usufruir de seus bens, já que não se considerava merecedor por
não se comportar à altura dos princípios e valores que a regem.
Nem todos aceitaram a decisão de Walter morar no
residencial para idosos, contudo foram capazes de entender a
razão que o levara a este modo de pensar: ele achava que com
esta autocondenação seria absolvido não por Deus, porque sabia
que Deus perdoa todo pecador arrependido, mas por sua própria
consciência, a qual fora implacável ao sentenciá-lo à morte em
espírito, um homem de carne e osso que não conseguia mais se
mover com suas próprias pernas e mente, enfim, era deveras um
morto vivo! Ele pensava que agindo assim abrandaria seu
200
pecado e sua culpa, diminuindo um pouco o sofrimento dos que
ele havia feito sofrer, ou pelo menos não tinha evitado o que
podia evitar, ou tornar mais leve o drama vivido pelos seus
entes- queridos...
Eu passei a não questionar mais suas razões, só lhe ouvia
e o amparava na dor. Por exigência dele, não falava como os
filhos e netos estavam. Paulinho, por sua vez, até então morava
na Europa, quase não dava notícias e quando dava, nem
perguntava pelo pai.
Confesso não ter sido fácil ver Walter morrer aos
poucos.
Os filhos: Seus juízos são implacáveis para com os erros
dos pais, não conseguem ver com bons olhos as falhas dos seus
pais, mas quando se tornam também adultos e pais, cometem os
mesmos erros, então se dão conta de que todos os homens são
passíveis de erros. Aliás, muitos pais e muitos filhos não
atingem o refrigério n’alma e a paz que produz o perdão;
poucos, ou quase nenhum sabem ou dão o valor que os pais
merecem, esquecem que ao nascerem não são capazes de
sobreviver sozinhos, se os pais não os protegessem e os
alimentassem, não viveriam nem um dia à mercê de sua própria
201
sorte. “Não pediram para vir ao mundo”, dizem alguns
revoltados com suas fraquezas e limitações, pois bem: os pais
também nasceram pelo mesmo processo humano das paixões
inferiores, ou por amores arrebatadores que deram à luz filhos
bastardos; outros a filhos amados e nenhum é super-homem ou
perfeito... No entanto, todos têm a mesma natureza: são
humanos e, assim como seus pais tiveram a mesma origem: a
fecundação natural.
Quando completou 10 anos que Walter residia ali, seu
estado físico também piorou, sofria do coração e respirava com
ajuda de aparelhos. Não sei se foi uma boa, mas pedimos aos
médicos para levá-lo para casa, “Assim ele terá uma morte
digna: perto da família”, disse Rute. Comovida com o estado
do pai, Rute pediu para que Paulinho retornasse para o Brasil.
Não apenas ele retornou, mas sua esposa e os dois filhos.
Chegaram para ver o final daquele que não tinha conseguido seu
respeito como pai, mas que merecia, como último afeto, um
abraço, pelo menos como caridade cristã. Um final que era o
começo de uma vida sem o nosso amado Walter, principalmente
para o Paulinho, que durante quatro meses perdoou e amou seu
velho pai, apesar dos seus erros, que antes eram para ele
imperdoáveis.
202
Uma semana após a morte de Walter, eu chamei Rute e o
Paulinho para participar-lhes da existência de Patrícia. A
princípio ficaram revoltados com Walter, mas depois aceitaram,
afinal, como disse Paulinho: “Que culpa tem nossa irmã
Patrícia, pelos erros do nosso pai? ”.
Walter morreu no Rio de Janeiro. E para nós, que ainda
ficamos por aqui, ficou o peso e a responsabilidade de
continuarmos levando a carga pesada da vida.
Sim, perdoe-me. Eu com a pressa de levar o livro para
meu editor, havia me esquecido de matar e de enterrar a Dona
Francisca. Ela morreu dias depois do Walter, com 99 anos, “Eu
não morro antes do Walter e não chego aos 100”, dizia ela para
a família. Profecia cumprida! Levei-a para sua casa, para morrer
perto de sua família, como ela queria.
204
Epílogo
No romance que acabamos de ler, Paulo é o narrador
presente de um drama muito rico em poesia, contudo, um pouco
pobre em descrição física e psicológica. Um drama em que a
personagem principal, seu protagonista é o Walter, seu bom
amigo, sogro e protetor.
Pois bem eu sou o Walter e devo acrescentar algumas
informações sobre o romance em que Paulo, meu grande e
único amigo me deu a honra de ser enredo, embora sua
narrativa tenha sido fiel ao que realmente se propôs, todavia,
muitos abismos poderiam ser descortinados, caso eu resolvesse
escrever e descrever, com detalhes, os fatos narrados
superficialmente por Paulo, que como ele mesmo admitiu não
tem aptidão para romancista.
Paulo é um homem simples, e toda cultural que
conseguiu acumular foram histórias contadas por pessoas com
as quais conviveu. Vamos citar aqui alguns: seu primeiro
professor de música, o velho Antônio. Depois o outro professor
do conservatório de música, no Rio de Janeiro. Por último, sua
convivência comigo, onde assimilou muito do que eu, às vezes
em boas conversas lhe transmiti.
Como conheci o Paulo, foi exatamente como ele contou,
mas a cena, se for contada do meu ponto de vista, claro que a
história pode ter outro impacto no leitor. Eu sempre ia aos
bares da orla de Copacabana, não só ao bar onde Paulo
cantava, eu frequentei todos os bares e bordeis de Copacabana
205
nesta época, e, não raro, gostava de variar meus hábitos, o tipo
de bebida, mas, amigos, eu nunca consegui arrumar,
especialmente durante este tempo em que vaguei pelos bares da
Zona Sul.
Entre as minhas idas aos bares de Copacabana, logo
comecei a me interessar pela música que Paulo tocava,
sobretudo por ser um tanto distinta dos demais músicos
cariocas. Paulo não era um grande músico, não era um virtuoso
instrumentista, todavia a sua voz, em conjunto com sua forma
de harmonizar as canções, foram aos poucos me conquistando.
Sua aparência era simplória, um homem negro de meia idade e
que não se vestia lá muito bem, tudo isso é claro por conta da
miséria que ganhava como cantor da noite, então sua condição
econômica não lhe ajudava neste aspecto.
Qual era então o motivo de eu beber tanto? Não era só o
fato trágico que conta o Paulo sobre a morte do meu filho.
Nesta época meu casamento não estava nada bem, eu não me
sentia bem em casa, e minha relação com Beatriz estava em vias
de se complicar ainda mais, pois eu não a ouvia, nem lhe
apoiava, ela sofria sua dor de mãe calada, sozinha, eu
realmente fui um covarde, como ficou implícito na narrativa do
nosso romancista estreante.
É claro que se eu fosse escrever tudo o que Paulo não foi
capaz de captar com sua pena, com seus olhos de observador
envolvido emocionalmente com os fatos e pessoas que tentou
retratar com sua escrita, teria que escrever outro romance,
talvez mais volumoso. Contudo, não será necessário, pois o que
faltava de fato ao leitor da minha biografia era saber quem foi
seu narrador, suas intenções, motivações, e como se comportou
nas suas relações com as personagens da minha história.
Paulo era um homem como muitos outros, que procuram
se superar, sair da sua história simples para viver outra vida,
206
em outro lugar, com outras pessoas, alguém que procura seu
espaço no mundo, e pelo que ficou aqui exposto podemos
concluir que Paulo foi bem-sucedido em seu empenho de
autossuperação. Claro que pôde contar com a sorte, e teve o
bom empurrão, mas não podemos negar que ele se esforçou
bastante, e por isso mereceu o seu lugar ao sol. Toda sua
conquista está baseada na verdade, na justiça, e, sobretudo no
amor, amor este que ele dedicou à minha família, especialmente
à Rute, sua musa e esposa, por isso não o condeno, penso que se
eu estivesse no lugar dele teria feito da mesma maneira...
207
“Os sentimentos não envelhecem, amadurecem, e o tempo tem
a dieta certa para engordar ou emagrecer os vermes que nos
alimentam e nos devoram. ”
208
O artista necessita de tempo para lapidar sua habilidade, para
forjar do efêmero a eternidade.
Evan do Carmo 03/02/2017