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JornaldeExpressãoAnarquista Director:JoãoSantiago Redacção:ElisaAreias,JoãoSantiago,JoaquimAndrade,LuísGarciaeSilva,SérgioDuarte Compositor,proprietárioeeditor:CentrodeEstudosLibertários VISérie AnoXLII Bimestral 0,70Euros(IVAIncluído) nº275 Mai./Jun.2017 SaiuoprimeirolivrodaBarricadadosLivros,queédedicadoaorouborevolucio- nárioeàhistóriadasrelaçõesentreindividualistaslibertárioseilegalistas.Estaé umahistóriadecompromissocomoidealrevolucionáriodedistribuiçãojusta dariqueza.Éumahistóriadeconfrontocomastradicionaisformasdepropa- ganda, com a sua caducidade e o alumiar da propaganda pelo facto. Preferi roubar a ser roubado! Textos sobre o roubo revolucionárioéumlivroquedefine ospróprioslimitesdalegitimidadedosmeiosparaatingirdeterminadosfins, separando as águas entre o mito Bando Bonnot e a propaganda pelo facto executado por Marius Jacob, Clément Duval e Miguel Arcángel Roscina. Conversámos com Mário Rui Pinto, membro do colectivo da Barricada dos Livros,sobreesteimportanteestudoesobreofuturodamaisrecenteeditora anarquistaemPortugal. Oterrornegro EntrevistaaMárioRui AntigoÓrgãodaConfederaçãoGeraldoTrabalho Publicamosasegundapartedoensaiode RicardoAntónioAlvessobreahistóriada revistaRenovação.Noartigodestenúme- ro,estamosperanteumaleituracríticada antigapublicaçãodaConfederaçãoGeral doTrabalho:dofalhançonacriaçãodeum novoórgãodeummodernismoportuguês à pobreza das propostas estéticas que foram editadas nos 24 números que compõemacolecçãocompletadarevista. Importará seguir atentamente o próprio percurso de Ferreira de Castro e a sua admiração por Pyotr Kropotkin para comprovar as afinidades ideológicas que estariamnocoraçãodainspiraçãolibertá- riaqueoescritorpretendeuintroduzirnas páginas da Renovação e que conseguiu canalizarparaasuaobraliteráriafutura. FerreiradeCastroea Págs.6-7 Internacional| 3ºFórumGeral Anarquista MárioRui Pág.5 Editorial| ABatalhavai aoalfaiate Pág.2 Cultura| Bandadesenhada ebiqueirosanarcas! ProfessoraMarcivânia Pág.10 BD| CentroAnarquista Portuguêsde ArtesModestas MarcosFarrajota Pág.12 Poesia| AlexandreCaetano AntónioMargalha FranciscoCardo NunoMangas-Viegas Pág.11 Lainsobornable Pág.4 Ensaio|RicardoAntónioAlves Homenagem|AntoninaRodrigo segundapartenaspágs.8-9 EmhomenagemaJoaquinaDoradoPita,publicamosum artigodeAntoninaRodrigo,noqualsãotraçadasaslinhas biográficas desta incansável anarquista e militante anti- franquista.UmadasgrandesamigasdojornalA Batalhae doCentrodeEstudosLibertários,quefundouelhededi- cou, em 2005, o Círculo de Estudos Joaquina Dorado e LibertoSarrau.Destaforma,onossojornallembraavidade uma anarquista que nunca se deixou governar por nin- guém. ©xurxolobato

layout batalha 275c...ção do próximo número do jornal durante o mês de Outubro. O seu programa será noticiado nestas páginas e nos outros media independentes que têm desempenhado

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Page 1: layout batalha 275c...ção do próximo número do jornal durante o mês de Outubro. O seu programa será noticiado nestas páginas e nos outros media independentes que têm desempenhado

Jornal�de�Expressão�AnarquistaDirector:�João�Santiago Redacção:�Elisa�Areias,�João�Santiago,�Joaquim�Andrade,�Luís�Garcia�e�Silva,�Sérgio�DuarteCompositor,�proprietário�e�editor:�Centro�de�Estudos�Libertários

VI�Série Ano�XLII Bimestral 0,70�Euros�(IVA�Incluído)�nº�275 �Mai./Jun.�2017

Saiu�o�primeiro�livro�da�Barricada�dos�Livros,�que�é�dedicado�ao�roubo�revolucio-nário�e�à�história�das�relações�entre�individualistas�libertários�e�ilegalistas.�Esta�é�uma�história�de�compromisso�com�o�ideal�revolucionário�de�distribuição�justa�da�riqueza.�É�uma�história�de�confronto�com�as�tradicionais�formas�de�propa-ganda,�com�a�sua�caducidade�e�o�alumiar�da�propaganda�pelo� facto.�Preferi roubar a ser roubado! Textos sobre o roubo revolucionário�é�um�livro�que�define�os�próprios�limites�da�legitimidade�dos�meios�para�atingir�determinados�fins,�separando�as� águas�entre�o�mito�Bando�Bonnot� e� a�propaganda�pelo� facto�executado� por� Marius� Jacob,� Clément� Duval� e� Miguel� Arcángel� Roscina.�Conversámos� com�Mário� Rui� Pinto,� membro� do� colectivo� da� Barricada� dos�Livros,�sobre�este�importante�estudo�e�sobre�o�futuro�da�mais�recente�editora�anarquista�em�Portugal.

O�terror�negroEntrevista�a�Mário�Rui

Antigo�Órgão�da�Confederação�Geral�do�Trabalho

Publicamos�a�segunda�parte�do�ensaio�de�Ricardo�António�Alves�sobre�a�história�da�revista�Renovação.�No�artigo�deste�núme-ro,�estamos�perante�uma�leitura�crítica�da�antiga�publicação�da�Confederação�Geral�do�Trabalho:�do�falhanço�na�criação�de�um�novo�órgão�de�um�modernismo�português�à� pobreza� das� propostas� estéticas� que�foram� editadas� nos� 24� números� que�

compõem�a�colecção�completa�da�revista.�Importará� seguir� atentamente� o� próprio�percurso� de� Ferreira� de� Castro� e� a� sua�admiração� por� Pyotr� Kropotkin� para�comprovar� as� afinidades� ideológicas�que�estariam�no�coração�da�inspiração�libertá-ria�que�o�escritor�pretendeu�introduzir�nas�páginas� da� Renovação� e� que� conseguiu�canalizar�para�a�sua�obra�literária�futura.

Ferreira�de�Castro�e�a

Págs.�6-7

Internacional�|3º�Fórum�GeralAnarquistaMário�RuiPág.�5

Editorial�|A�Batalha�vaiao�alfaiatePág.�2

Cultura�|Banda�desenhadae�biqueiros�anarcas!Professora�MarcivâniaPág.�10

BD�|Centro�AnarquistaPortuguês�deArtes�Modestas��Marcos�FarrajotaPág.�12

Poesia�|�Alexandre�CaetanoAntónio�MargalhaFrancisco�CardoNuno�Mangas-ViegasPág.�11

La�insobornablePág.�4

Ensaio�|�Ricardo�António�Alves

Homenagem�|�Antonina�Rodrigo

segunda�parte�nas�págs.�8-9

Em�homenagem�a�Joaquina�Dorado�Pita,�publicamos�um�artigo�de�Antonina�Rodrigo,�no�qual�são�traçadas�as�linhas�biográficas� desta� incansável� anarquista� e�militante� anti-franquista.�Uma�das�grandes�amigas�do�jornal�A Batalha�e�do�Centro�de�Estudos�Libertários,�que�fundou�e�lhe�dedi-cou,� em� 2005,� o� Círculo� de� Estudos� Joaquina� Dorado� e�Liberto�Sarrau.�Desta�forma,�o�nosso�jornal�lembra�a�vida�de�uma� anarquista�que�nunca� se�deixou�governar�por� nin-guém.

©xurxolobato

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Olhemos� para� o� incêndio� de� Pedrógão�Grande.� Podia� ter� sido� um� incêndio�normal.�Ardiam�umas�dezenas� largas�de�

hectares�de�floresta�e�mato�e�no�fim�de�algumas�horas�estaria�extinto.�Mas�não�foi.�Uma�conjuga-ção� de� factores� provocou� uma� catástrofe� -� 64�mortos�confirmados.Temperaturas� muito� acima� da� média� para� a�estação� do� ano� e� para� a� zona,� fenómenos�atmosféricos�que�são�de�todo�imprevisíveis�para�locais� restritos� -� correntes� de� ar� ascendentes� e�descendentes,� ventos� fortes� com� rajados� sem�direcção� certa.� É� possível� prever� instabilidade�atmosférica� e� trovoada� para� áreas� grandes� -�norte,�centro�ou�sul�-,�mas�não�é�possível�prever�se�a�trovoada�vai�cair�no�meu�quintal�ou�se�o�vento�vai�partir�esta�árvore�e�não�aquela.�Se�tudo�isto�for�acompanhado� de� fogo� em� zonas� florestais� de�povoações�dispersas�e�com�falhas�nas�comunica-ções�para�ajudar�à�coordenação,�a�situação�torna-se�explosiva.É� possível� prevenir?� Pode-se� tentar.� Há� várias�

respostas.� Uma� é� do� tipo� militar.� Identificar� o�inimigo,�preparar�tropas�para�o�combater,�treinar�bem�a� estratégia,� a� táctica� e� a�operática,� como�diria�a�doutrina�militar� soviética.� Isto� leva�o� seu�tempo,�mas�mesmo�assim�nada�garante�que�um�grande�exército�não�seja�destruído.Outra�resposta�é�olhar�para�o�país�como�conjunto�assimétrico,�zonas�de�minifúndio�ou�de�latifúndio�com�diversos�tipos�de�cobertura�do�solo,�perceber�porque�é�que�há�zonas�que�se�vão�despovoando�e�os�que�ficam�são� idosos� sem�a�necessária� força�física�para�trabalhar�a�terra�(as�pessoas�também�se�esgotam).� E� quando� as� terras� deixam� de� ser�trabalhadas�não�há�gados�que�lá�entrem�porque�se�tornam�brenhas�e�os�seus�donos�ficam�à�mercê�de�algum�chico�esperto�que�chegue�e�lhes�ofereça�uns�tostões�para�não�semearem�ou�para�planta-rem�eucaliptos�ou�venderem�para�as�encher�de�olival�intensivo.A�ruralidade�hoje�é�praticamente�isto.�E�isto�é�um�problema�muito�grande.�Para�o�resolver�é�preciso�gente.�Sem�ela�não�é�possível�ocupar�o�território�de� forma� saudável.� Sem� ela� não� se� consegue�formar� um� associativismo� colectivista� que� dê�resposta� integrada� e� cooperante� em�diferentes�territórios�para�que�estes�não�fiquem�reduzidos�

por�uma�simples�fagulha�a�montes�de�cinzas.�Se�calhar�é�preciso�voltar�aos�pioneiros.�Dantes�dizia-se�que�o�reino�tinha�sido�obra�de�soldados.�Pois.Há�grupos�que�defendem�que�o�Estado�se�devia�tornar�dono�do�que�chamam�"terras�abandona-das".� Levando� em� conta� exemplos� de� outros�lados� -� veja-se� o� desastre� ecológico� que� os�grandes�planificadores�soviéticos�fizeram�no�mar�de�Aral� -�não�parece�que�o�Estado�com�os�seus�legisladores� seja� a� entidade� competente� para�resolver�problemas�deste�quilate.�Hoje�expropria�e� amanhã,� quando� estiver� na� bancarrota,� vai�vender�ao�desbarato.�Não�é�por�se�fazerem�muitas�leis�que�a�mentalidade�dos�povos�muda�de�um�dia�para�o�outro.�Claro�que�como�diria�o�poeta�"um�fraco�rei�faz�fraca�a�forte�gente".Uma� palavra� para� a� comunicação� social.� Há�jornalistas�que�se�vê�que�escrevem�muito�em�cima�do�joelho�e�para�eles�tudo�é�simples,�especialmen-te�quando�respeitam�a�voz�do�dono.�Houve�um�que� se� irritou� por� a� ministra� da� Administração�Interna�ter�aparecido�de�ténis�no� lugar�onde�se�combatia�o�fogo.�Parece�que�a�queria�ver�de�salto�alto,�de�saia�travada�e�com�espartilho,�para�citar�os�utensílios�vestimentários�que�um�aliado�da�chefa�do�CDS-PP�não�gosta�de�ver�na�chefa.�Do�caneco!

2 | EditorialA�BATALHA�|�Jornal�de�Expressão�Anarquista�|�nº�275�|�Mai./Jun.�2017

A�Batalha�vai�ao�alfaiate

Este�jornal�surgiu�em�23-2-1919,�no�mesmo�ano� em� que� a� Confederação� Geral� do�Trabalho� (CGT)� de� que� seria� porta-voz.� A�CGT,�única�confederação�sindical�existente,�agrupava�os�trabalhadores�mais�combativos�e� conscientes�da� altura�e� foi,� desde� início,�fortemente� influenciada� pelas� correntes�anarquista,�anarco-sindicalista�e�sindicalista�revolucionária.� Isto�determinou�a�sua� total�independência�face�aos�partidos�e�ao�poder�político� e� fê-la� procurar� que� as� justas�reivindicações� dos� trabalhadores� por�melhores�condições�de�vida�não�os�deixasse�esquecer�que�só�uma�profunda�transforma-ção� económica,� social� e� ética� permitiria�eliminar�a�opressão�e�exploração�do�homem�

pelo� homem.� Repudiou� sempre,� com�notável� antevisão,� que� a� libertação� dos�trabalhadores� se� pudesse� alcançar� através�duma� pretensa� “ditadura� do� proletariado”�ou�do�“Estado-patrão”.Hoje,�não�ligado�a�qualquer�dos�movimen-tos�sindicais�existentes,�de�cujos�princípios�e�prática�geralmente�discorda�(embora�tenha�o�maior�respeito�pelos�trabalhadores�que�os�constituem)� continua� a� pugnar� por� uma�sociedade�assente�em�formas�comunitárias�de� vida,� de� essência� autogestionária� e�cooperativa,� com� total� respeito� pela�liberdade�de�pensamento�e�pela�autonomia�individual,� em� conformidade� com� os�princípios�libertários�por�que�se�norteia.

ANTIGO�ÓRGÃO�DA�C.G.T.Fundado�em�23�de�Fevereiro�de�1919

COLABORADORESOs�artigos�não�assinados�são�da�responsabilidade�da�redacção.Os� artigos� não� solicitados� poderão� ser� recusados,�aceites� condicionalmente� (mediante� alterações�acordadas� com� os� autores)� ou� ser� diferida� a� sua�publicação� em� função� da� programação� geral� do�jornal.�Devem�ser�claros�e�sucintos,�não�excedendo�três�páginas�A4�dactilografadas�a�dois�espaços,�título�e� ilustrações� incluídos.� Em� caso� de� recusa� haverá�sempre�explicação�oral�ou�escrita�aos�autores.

Além�do�nome�e�endereço�agradecemos�também�o�envio�do� telefone� e/ou� e-mail.� O� pagamento� poderá� ser�efectuado�por�cheque�ou�Vale�Postal.

Neste�momento,� o� apartado� encontra-se� temporaria-mente�inactivo.Toda�a�correspondência�deverá�ser�remetida�para:

A�Batalha,�Az.�da�Alagueza,�Lote�X,�c/v�‒�Esq��1800�‒�005��Lisboa

�partir�do�próximo�número,�A Batalha�Airá� apresentar�uma�nova� configura-ção� gráfica,� dando� continuação� às�

alterações�de�conteúdos�que� tem�gradual-mente� revelado� no� último� ano.� Com� o�número�276,�correspondente�aos�meses�de�Setembro-Outubro,�o�jornal�vai�acertar�a�sua�periodicidade�bimestral�e�repor�a�regularida-de�de�publicação�que�merece.�As�principais�transformações�d'A Batalha�estão�relaciona-das� com� o� aumento� da� sua� extensão,�passando� das� actuais� 12� para� 16� páginas,�apesar� de� reduzir� o� seu� tamanho�para� um�formato� mais� equilibrado.� Estas� modifica-ções� pretendem� tornar� a� leitura� mais�agradável,� restabelecendo� o� carácter�sempre� efémero� de� um� periódico� que� se�quer�de�fácil�manuseio.

Além�da�renovação�gráfica,�continuar-se-á�a�insistir� na� fixação� d'A Batalha� enquanto�jornal� de� expressão� anarquista.� Neste�sentido,� é� com� bastante� naturalidade� que�este�espaço�manterá�as�suas�páginas�abertas�às� múltiplas� vozes� que� compõem� o� anar-quismo� coevo.� Tendo� em� conta� que� as�edições� d'A Batalha� serão� centenárias� em�2019,� continuaremos� com�a�publicação�de�artigos� sobre� a� sua� história,� num� esforço�arqueológico� que� servirá� para� alumiar� o�trabalho�de�difusão�das�ideias�libertárias�em�Portugal.�O�jornal�terá�uma�secção�regular�de�banda� desenhada� intitulada� "Centro�Anarquista� Português� de� Artes� Modestas",�que�se�inicia�no�presente�número.�Devido�à�pluralidade� de� lutas� contemporâneas,� A Batalha�publicará�artigos�sobre�as�reivindica-

ções� queer,� os� novíssimos� movimentos�sociais� e� as� suas� características� anti-hegemónicas� e� rizomáticas� ou� a� cultura�libertária� e� independente�da� institucionali-zação�mercantil�ou�estatal.Dar-se-á�também�conta�das�movimentações�políticas� no� estado� português� e� fora� dele,�procurando�estabelecer-se�como�um�jornal�que�afronte�a�desolação�do�espaço�público.�Assim,� torna-se� imperativo� prosseguir� o�esforço� de� mapear,� publicitar� e� analisar�criticamente�os� livros,� publicações�periódi-cas,� álbuns,� concertos,� filmes,� debates� e�eventos�culturais�que�nascem�ou�morrem�cá�no�burgo.�A Batalha� não� fará�opinião,�mas�tentará� dar� aos� seus� leitores� algumas�ferramentas�para�que� estes� a�possam�criar�autónoma�e�criticamente.

Finalmente,� a� vida� interna� do� Centro� de�Estudos�Libertários�será�revitalizada,�com�a�reorganização�e�actualização�da�sua�livraria,�além�da�catalogação�da�sua�biblioteca,�que�contém� um� dos� mais� ricos� espólios� da�história� e� do� pensamento� anarquistas� dos�últimos� 100� anos.� A� sua� sede� irá� também�receber� um� conjunto� importante� de�conversas,�que�se�iniciará�com�a�apresenta-ção�do�próximo�número�do�jornal�durante�o�mês� de� Outubro.� O� seu� programa� será�noticiado�nestas�páginas�e�nos�outros�media�independentes�que�têm�desempenhado�um�papel�precioso�na�divulgação�das�activida-des�libertárias�realizadas�nos�últimos�anos.A Batalha� voltará� com� a� roupa� que� lhe�convém�e�será�o�que�os�seus�leitores�fizerem�dela.�Assinem�ou�procurem-na�nas�bancas.

Director:�João�Santiago�Redacção:�Elisa�Areias,�João�Santiago,�Joaquim�Andrade,�Luís�Garcia�e�Silva,�Sérgio�DuarteNeste�número:���A.,�Alexandre�Caetano,�André�Calvário,�Aníbal�César�Almeida�Bastos,�Antonina�Rodrigo,�António�da�Cruz,�António�Gonçalves�Correia,�António�Margalha,�Francisca�Bicho,�Francisco�Cardo,�J.�Chagas,�JA,�José�Augusto,�Júlio�Palma,�Marcos�Farrajota,�Mário�Rui,�Nuno�Mangas-Viegas,�Pedro�Roque/Eyes�of�Madness!,�Professora�Marcivânia,�Ricardo�António�AlvesComposição:�Centro�de�Estudos�LibertáriosImpressão:�Gráfica�Sobreirense,�Artes�Gráficas,�Lda,�Sobreiro,�Mafra

Redacção�e�administração:�Az.�da�Alagueza,�Lote�X,�c/v�‒�Esq��1800�‒�005��Lisboa���[email protected]ário�e�Editor:�Centro�de�Estudos�Libertários�-�NIPC�501805214

Periodicidade�BimestralMaio�-�Junho�2017ISSN�0873-7223N.º�Depósito�Legal�291�643�/�09�|��Inscrito�na�Direcção�Geral�da�Comunicação�Social�Nº�104981

Continente 3,99 7,58 6,98 12,97

5,49 10,47 7,98 15,463,99 7,58 6,98 12,979,48 17,46 11,97 22,45

11,47 20,45 15,56 27,939,98 17,46 11,97 22,45

Envio�cintado Envio�em�Envelope6�números 12�números 6�números 12�números

IlhasVia�aérea�Via�económica

EuropaExtra-Europa

Via�aéreaVia�económica

CONDIÇÕES�DE�ASSINATURA�(Euros)

A�força�das�coisasJúlio�Palma

Visto�da�Parvónia

Capa�de�Viagem�à�Roda�da�Parvónia,�de�Guerra�Junqueiro�e�Guilherme�dʼAzevedoDesenho�de�Manuel�de�Macedo

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interesses� em� aluguer� de� aeronaves,� em�estratégias�individuais,�em�negócios,�cheias�de�i n c ênd i o s � e � d e s t r u i ç ão � do � p l ane t a .�Lamentavelmente�aconteceu,�agora,�a�tragédia��maior�de�Pedrógão.�28.� A� magia� do� futebol� continua.� Da� China�maoísta,� onde� as� classes� populares� foram�ideologicamente�educadas,�vêm�propostas�de�milhões� e� milhões� para� o� mundo� e� para� a�Europa�cristã,�pia�e�caritativa�pelos�desfavoreci-dos,�pobres�de�rua�e�doentes.�Mas�as�propostas�são�para�clubes�e�jogadores...29.�Também�temos�a�magia�do�dinheiro:�Posso�retirar�uns�milhões�deste�país�com�desempre-gados,� crianças,� pobres,� serviços� de� saúde�necessitados�e�pôr�num�«Paraíso»�fiscal?�Pensei�que�o�Paraíso�era�de�Amor�não�de�ladrões?30.� Nesta� � infelicidade� toda� nos� atentados�terroristas� de� Londres� e� Paris,� duas� grandes�cidades� deste�mundo,� os�media� sublinharam�que,�em�Paris,�um�migrante�trabalhador�ilegal,�escondido�numa�cave�salvou�várias�pessoas,�e,�em�Londres,�foram�os�miseráveis�que�dormem�na�rua�a�salvar�pessoas.�Em�ambos�os�casos�os�

espoliados� e� esquecidos� destas� democracias�burguesas� foram� lembrados� pela� pior� forma.�31.� A� festa� continua:� festivais,� tradições,�futebol,� shows� televisivos,� opiniões� baratas,�discussões�fúteis...�até�à�intoxicação�final!�32.� Continua� e� bem:� um� banco� abriu� linha�directa�para�depósitos-oferta-ajuda�e�à�cabeça�ofereceu�a�gigantesca�quantia�de�50�mil�euros�para�os�afectados�pelos�fogos.�Um�dia�antes,�o�mesmo� banco� (público)� era� notícia� por�armazenar� uma� pequena� quantia� de� vários�milhões�de�euros�para� indemnizar� (?)�os� seus�gestores...33.�Mas�continua�mesmo!�As�Finanças,�vejam�só,�prolongaram�até�ao�fim�do�mês,�cerca�de�10�dias,� o� pagamento� de� impostos� às� pobres�populações�atingidas�por�fogos.�Como�sabem,�muitos� ficaram� sem�casa,� sem�nada...� Grande�avaliação� da� situação� e� grande� ajuda!� Aos�poderosos� e� ricos,� por� vezes� em� falta� ou�tentando�ludibriar�o�fisco,�anos�seguidos,�eles�(finanças,�governo,�deputados)�legislam�ou�dão�um� perdão� fiscal!� Quando�mete� tribunais,� às�vezes�ainda�os�indemnizam...

3|História�e�BranaA�BATALHA�|�Jornal�de�Expressão�Anarquista�|�nº�275�|�Mai./Jun.�2017

Minha�Senhora:�Desde�o�dia�inesquecí-«vel� em�que,� à�mesa�daquele�modesto�hotel� de� Montemor,� o� “Hotel� Natal”,�

trocámos� largas� impressões�sobre�os�assuntos�sempre� interessantes� que� constituem� a� nossa�especialidade,�nunca�mais�tive�notícias�suas.�Vai�então�de�saúde?�Oxalá.�A�saúde,�corporal�como�espiritual,�é�de�todo�o�ponto�indispensável�para�a�felicidade�seja�de�quem�for�(...)Conseguiu�já,�ou�espera�conseguir�em�breve,�a�independência�económica�sobre�que�falámos?�Desejo-o�do�coração.�No�mundo�de�egoísmos�e�de�baixezas�que�aí�se�patenteia�miseravelmente�aos� nossos� olhos,� é� necessário� adquirir� uma�independência� económica� relativa� para� se�poder�fazer�propaganda�altivamente,�à�luz�clara�do� sol� criador� (...)� E� sobre� negócio?� Tem� feito�algo� de� compensador?� Tem� vendido� muita�máquina� de� escrever?� Tem� feito� muitos�seguros?� Oxalá.� É� preciso� ganhar� dinheiro,�muito�dinheiro!�(...)�Nós,�os�espíritos�que�voamos�a� altas� regiões,� não� precisamos� de� muito�dinheiro� para� desfrutarmos� os� melhores�prazeres� da� vida.� Mas� é� incontestável� que�carecemos�muito�dele�para�fomentar�a�revolta�sagrada�contra�o�erro�e�contra�a�tirania.�O�erro!�Maldito�erro!�O�que�terá�dito�o�erro�de�si,�minha�senhora,�depois�de�a�ter�visto�viajar�sozinha,�em�carros�e�em�caminhos�de�ferro?�(...)Sempre� foi� ao� Algarve,� como� penava,� em�viagem� comercial?� (...)� Com� o� seu� género� de�negócio,� máquinas� de� escrever,� julgo� que�poderá�ali�fazer�qualquer�coisa�de�remunerador�(e)�as�vantagens�morais�também�são�apreciáve-is.�O�Algarve,�terra�de�Luz,�de�Sol�e�de�Flores,�é�uma�idílica�mansão�para�os�amantes�do�divino�e�do�encantador�(...)�E�nós,�as�almas�que�procura-mos�Luz,�espíritos�ávidos�do�Belo,�consciências�revoltadas� contra�uma�organização� social�que�infelicita�a�espécie,�corações�confrangidos�ante�os� lamentos� dos� perseguidos,� almas� ardentes�num� Ideal� sublime� de� Amor� e� de� perdão,�encontramos�ali�camaradas�dos�dois�sexos�cuja�dedicação�é�ilimitada,�cuja�fé�se�manifesta�de�mil�maneiras.Vou� citar-lhe� um� facto,� pelo� qual� poderá�apreciar�a�crença�pura,�a� fé�sinceríssima�duma�nossa� dedicada� camarada� daquela� província,�professora� de� ensino� livre:� aí� pelas� alturas� de�

Fevereiro�último,�se�bem�me�recordo,�publicava�eu� as� minhas� “Impressões� da� Comuna”� no�extinto� semanário� “A� Questão� Social”� (...)� eu�escrevia�da� comuna�e�datava�de� lá� as�minhas�impressões�como�se�de� facto� já� lá�vivêssemos�muitos� comunistas� dos� dois� sexos.� Em� certa�altura�recebo�pelo�correio�uma�carta�entusiásti-ca,� assinada� pela� nossa� camarada� que� já�indiquei,� documento� onde� se� lia:� “Estou�encantada�com�a�descrição�que� fazeis�da�vida�feliz�que�todos�passais�nessa� ideal�comuna�da�Luz.� Poderei� daqui� a� umas� semanas,� fazendo-me� acompanhar� de� 100$00� que� possuo� das�minhas�economias,�ir�fazer-vos�companhia�para�sempre?”Veja,� veja,� camarada� digna!� Veja� a� pureza� de�sentimentos� (...)� Como� esta� mulher,� livre� de�preconceitos� estúpidos,� conhecedora� da�Verdade� libertária,� muitas� outras� existem�naquele�Algarve�lindo�e�aromático�(...)Mudando� de� assunto:� Já� visitou� os� seus� pais�depois�daquela�sua�viagem�a�Montemor,�onde�nos� encontrámos?� Ou� continuam� eles,� por�motivo�da�educação�preconceituosa�que�os�não�deixa�ser�justos,�de�relações�um�pouco�frias�com�a�camarada?�(...)�Os�pais!�A�indiscutível�autorida-de�paterna,�tantas�vezes�estúpida�e�condenável!�Pois�é�lá�humano,�é�lá�lógico,�é�lá�racional�que�os�pais� exerçam� sobre� os� filhos� uma� autoridade�indiscutível?�Não,�não�pode�ser!�Não,�não�é�justo!�Não,�não�é�razoável!�A�autoridade�paterna�tem�limites.� Um� pai� não� pode,� não� deve� exercer�sobre� os� filhos� o� seu� querer� absoluto,� o� seu�mando�omnipotente�(...)�O�pai�déspota�passou�à�história.�Hoje�vê-se,�pelo�menos�deve�ver-se,�o�pai�amigo,�o�pai�carinhoso�(...)�O�pai�de�cacete�e�palmatória�desapareceu� com�o� corte�das� asas�jesuíticas.�Hoje�vêem-se�pais�psicológicos,�isto�é,�pais� observadores,� amigos� do� estudo� da�constituição�da�criança,�amigos�do�seu�integral�desenvolvimento�e�do�vigor�das� suas� faculda-des.O�seu�caso,�minha�bondosa�camarada,�referente�às�suas�relações�com�o�lar�paterno,�não�é�único,�creia� (...)�É�censurável�que�uma�senhora�de�20�anos,� como� a� prezada� camarada,� abandone� a�casa�dos�pais?�No�seu�caso�não�é�censurável;�é�antes�plausível!�(...)�O�seu�caso�foi�nem�mais�nem�menos� do� que� uma� luta� gigantesca� que� se�

travou�entre�o�presente�e�o�futuro�(...)�seus�pais,�obedientes� fiéis� do� Deus� do� Céu,� do� Deus�Milhão�(...)�A�camarada,�obediente�fidelíssima�do�Deus�Razão,�do�Deus�Justiça,�do�Deus�Direito�(...)De� tudo�aqui� lhe� tenho� falado,�menos�da� sua�pensada� e� reflectida� ligação� livre� com� aquele�moralista�insigne�que�é�o�nosso�camarada�D.L.�Em� que� altura� vai� isso?� Sempre� pensa� na�realização�desse�acto�solene?�(...)�Quando,�boa�camarada?�Quando�realizam�esse�acto�da�vossa�união�livre,�sem�a�cooperação�da�igreja�católica,�que� bem� se� dispensa,� dispensam� por� serem�ultrajantes.�União� livre!�Amor� livre!�Junção�por�consentimento� mútuo!� Ah!� Minha� rebelde� e�digna�companheira�de�lutas�em�prol�da�Justiça�Eterna!� (...)� Amor� livre!� Ah!� Sim,� minha� boa�camarada!�Há-de�unir-se�livremente,�bem�o�sei!�Nem�a�camarada�nem�o�seu�futuro�companheiro�seriam�capazes�de�se�prestarem�a�desempenhar�essa� comédia� hilariante� que� é� o� casamento�religioso�ou�civil,�uma�das�maiores�imoralidades�da�sociedade�burguesa!�Casar�condicionalmen-te!...� Fazer�um�contrato�comercial� !...�Cooperar�com� a� burguesia,� não� repelindo� as� suas�instituições!...� Não!� Sei� bem� que� vós,� a� boa�camarada�a�quem�estou�dirigindo,�e�o�indepen-dente�D.L.,�repelirão�indignamente�(...)O� casamento!� A� grande� comédia!� (...)� E� o�casamento� religioso?� Esse� então,� pior,� muito�pior�do�que�o�casamento�civil!�Pois�haverá�coisa�mais� irracional�do�que�proclamar� indissolúveis�duas� criaturas� que� amanhã,� por� questões� de�educação,�de�temperamento�ou�por�quaisquer�outros�motivos,�podem�aborrecer-se?�(...)�Do�nosso�movimento�libertário,�que�me�diz?�Do�movimento�sobre�ideias,�na�região�portuguesa,�o�que�pensa?�(...)�Dá�pena�o�que�se�observa�(...)�Deixemos�passar�esse�monstro�infamíssimo�que�se�chama�a�guerra�(...)�Dias�melhores�virão�para�Portugal�e�para�todo�o�mundo!�(...)».

António�Gonçalves�Correia

Estreia d’Um Crente,�Edição�do�Auctor,�

Évora,�Minerva�Comercial,�1917,�pp.�59�-�68

«A�Uma�Mulher»�Textos�de�Gonçalves�CorreiaAntónio� Gonçalves� Correia� (G.C.)� publicou� em�

1917� Estreia d’Um Crente� e,� neste� ano� do�centenário,�registamos�em�A Batalha�excertos�de�algumas�das�cartas�que�integram�esse�livro�e�que�temos�vindo�a�seleccionar.�Os�destinatários�são�tantos� quantos� o� número� das� cartas,� e� o�desenvolvimento�do�conteúdo�ajusta-se�a�cada�um� deles:� o� Advogado,� o� Anarquista,� e,� nesta�edição,� Uma� Mulher,� sendo� que� o� assunto� de�fundo� está� presente� em� todas,� pois� ao� autor�interessa� passar� a� sua� mensagem,� ou� seja,� o�combate�pela�sociedade�nova,�a�da�Anarquia,�que�consagre�na�prática�os�princípios�que�defende�e�que�vai�explorando�nos�seus�textos.�Dirigindo-se�a�Uma�Mulher,�uma�camarada,�Gonçalves�Correia�utiliza�o�exemplo�dela�para�falar�de�relações�entre�pais�e�filhos�e�entre�mulher�e�homem,�companhe-iros�que�podem�unir-se�livremente.

Gonçalves�Correia�casou�em�Portimão�com�Ana�do�Carmo,�no�ano�de�1905,�e�desse�casamento�nasceram� 10� filhos,� tudo� indicando� que� a� vida�familiar�foi�estável.�Talvez�a�última�residência�da�família� tenha� sido� uma� casa� aparentemente�grande�e�construída�em�terreno�à�Rua�Tenente�Valadim,� Beja,� que� G.C.� arrematou,� segundo� a�sessão�da�Comissão�Executiva�da�Câmara�de�29�de�Dezembro�de�1919.

Contudo,� e� embora� não� tenhamos� elementos�para� afirmar� que� G.C.� foi� pai� de� criança(s)�nascida(s)�na�Comuna�da�Luz,�de�facto,�dois�filhos�houve� fora� do� casamento,� sendo� conhecida� a�relação�que�teria�com�uma�senhora�com�quem�ideologicamente�se�identificaria,�havendo�quem�se�lembre�da�sua�existência�em�Beja,�com�roupa�e�cabelo� que� a� diferenciavam,� vivendo� em�habitação�de�poucas�condições,�mas�rodeada�de�livros,�alegadamente�de�filosofia.

Efectivamente,� G.C.� referiu-se� no� Jornal� O Rebelde,�Beja,�10�de�Outubro�de�1918�(em�artigo�de� comentário� acerca� dʼA Sementeira)� ao�percurso�que�poderia�vir�a�fazer�a�criança�nascida�no�espaço�duma�comuna,�acrescentando�«(…)�O�signatário� do� presente� espera� a� intraduzível�alegria�de�assistir�ao�nascimento�dʼum�filho,�que�será� a� primeira� creança� nascida� dentro� da�“Comuna� da� Luz”.� E� espera� que� essa� linda� flôr�humana� será� bem� o� specimen� dos� seres�normalisados�integralmente,�saudável�do�corpo�e�do�espírito».�

G.C.�identificava-se�por�certo�com�o�exemplo�de�Réclus,�a�que�o�seu�jornal�A Questão Social,�Nº.�11,�Cuba,� 19� de� Março� de� 1916� faz� referência� no�artigo� sobre� aquele� professor� e� prático� dos�princípios�anarquistas,�em�particular�o� facto�de�ter� consagrado� a� união� livre� da� filha� e� do�companheiro,� pois� entendia� que� «O� seu�casamento� é� ainda� mais� válido� do� que� o�casamento� canónico� e� o� do� registo� civil.� O�Anarquismo�tem�por�norma�uma�única�lei:�ʻA�Lei�do�Amor�e�da�Universal�Solidariedadeʼ».

Com� efeito,� pese� embora� o� seu� casamento,� o�próprio� Gonçalves� Correia� seria� um� adepto� do�amor�livre,�da�união�livre�dos�que�se�amam�e�não�seguem�preconceitos�sociais�que�os�conduzam�ao� casamento,� que� em� Carta� a� Uma� Mulher�classifica�de�«comédia!»,�mais�ainda�o�casamento�religioso,� que� pressupõe� e� torna� indissolúvel� a�relação� de� duas� pessoas,� que� na� verdade� e� na�prática� podem� não� se� entender,� por� razões�culturais�ou�outras.

Nessa� carta� para� a� qual� remetemos,� está� em�questão�a�conversa�com�uma�senhora,�defenden-do� Gonçalves� Correia� que� é� importante� a�independência� económica,� para� combater� os�erros�e�a� tirania�da� incompreensão,�para�que�a�camarada� possa� prosseguir� no� seu� espírito� de�rebeldia�e�afirmação�dos�ideais�comuns.�Depois,�vai�G.C.�argumentando�sobre�a�relação�entre�pais�e� filhos,� justificando� que� pode� haver� rebeldia�destes�em�nome�do� Ideal,�ou�ainda� trazendo�à�conversa� a� relação� entre� a� camarada� e� o� seu�companheiro,� que� ele� espera� ver� convertida�numa�união�de�amor�livre,�sem�casamento.

Passemos� então� às� palavras� de� Gonçalves�Correia,�que�em�síntese�adaptámos�neste�registo.

Junho�de�2017Francisca�Bicho

nquanto� o� Universo� se� distende� como�Euma� membrana,� parece� que� a� nossa�esfera�planetária�derrapa�e�gira�intensa-

mente,�tonteando�os�Homens,�fazendo�rebolar�tudo�e� todos�nas� suas�mais�dolorosas�prova-ções.�27.� Foi�editado� recentemente�um� livro� sobre�«Portugal� a� arder»� (período� do� PREC/75).� Ou�seja,� � desde� que� a� moda� dos� atentados� à�bomba,�fogos/incêndios,�etc,�pegou.�Valia�tudo�para�destruir�o�«25�de�Abril»�e�a�«Revolução».�Sabemos�que�há�fogos�naturais,�por�descuido�ou� por�mão� criminosa.�Mas� a�moda� do� fogo�terrorista-político�de�'75�pegou�há�quarenta�e�três�anos�e� tem�tido�várias�vertentes�de�mão�humana:�interesses�de�propriedade�e�especula-ção�imobiliária;�interesse�madeireiro;�patologia�psicótica-maníaca.� São� quatro� décadas� a�produzir�ideais�favoráveis�ao�imediato,�ao�lucro,�ao�mercado,� aos� loucos� que� vão� alimentado�toda� a� «fogueira».� São� quatro� décadas� de�

JA

O�mundo�de�Brana�(VII)

Page 4: layout batalha 275c...ção do próximo número do jornal durante o mês de Outubro. O seu programa será noticiado nestas páginas e nos outros media independentes que têm desempenhado

4 | �InternacionalA�BATALHA�|�Jornal�de�Expressão�Anarquista�|�nº�275�|�Mai./Jun.�2017

La�insobornable

Brasil�do�futuro

Cuando�conocí�a�Joaquina�Dorado,�era�ya�para�mí�una�mujer�legendaria.�La�había�descubierto� en�el� libro�La mujer en la

lucha social (La guerra civil de España),�de� la�gran�Lola�Iturbe.�Luego,�Eduardo�Pons�Prades,�me�habló�de� ella� con� verdadera� admiración.�Había�trabajado�a�sus�órdenes�en�el�Sindicato�de� la�Madera,� adolescente,� niño� de� recados,�llevando�sobres�y�encargos�de�una�lado�para�otro,� cabalgando� en� su� primera� bicicleta.� Al�parecer,�Joaquina�era�una�mujer�que�a�nadie�dejaba� indiferente:� Bonita,� pequeña,� de�aspecto� delicado,� pero� mujer� gigante� y�enérgica,� insobornable,� como� la� hemos�conocido�todos,�hasta�el�final�de�sus�días.Joaquina�llegó�a�Barcelona,�de�su�Coruña�natal,�en�1934.�Tenía�17�años,� traía�ya� inoculado�el�germen�de�la�rebeldía,�incubado�en�su�barrio�de� pescadores� de� Santa� Lucía� Morelos.� El�frecuente� aviso� de� las� sirenas,� llamando� a�naufragio�la�marcó�para�siempre.�Llegaban�las�mujeres�de�los�marineros,�despavoridas� �ante�el�anuncio�de�la�tragedia.�Los�llantos�y�quejas�de�dolor,�sus�gritos�acusatorios,�desgranaban�el�drama�de�sus�vidas,�la�situación�de�sus�casas�y� de� sus� hijos� huérfanos� por� un� jornal� de�miseria.� Ese� fue� el� motor� de� su� lucha� en�aquellos� desolados� escenarios� de� vida� y�muerte,�de�las�gentes�que�faenaban�en�la�mar�y,� que� un�mal� día� no� regresaban,� dejando� a�mujeres�e�hijos�hundidos�en�la�en� �la�pobreza�absoluta.�En�Barcelona�Joaquina�trabaja�como�tapicera�y�barnizadora� y� se� sumerge� en� el� ambiente�palpitante�de�la�lucha�obrera,�donde�expansio-nar�sus�anhelos�solidarios.�Milita�pronto�en�la�CNT,� en� el� Sindicato� de� la� Madera� y� en� las�Juventudes�Libertarias.�El�18�de�julio�de�1936,�la�joven��generación�de�Joaquina,�va�a�adquirir�una�madurez�y�un�sentido�de�la�responsabili-dad,�que�no�correspondía�a�su�edad�cronológi-ca.�Y�se�integran� �a�los�grupos�surgidos�de�la�clase�trabajadora,�en�marcha�a� los�frentes�de�batalla.��De� ésta� primera� andadura� de� la� historia� de�Joaquina�se�va�a�hablar�hoy,�en�homenaje�a�su�

memoria. � Yo� quiero� recordar� algunos�momentos�de�íntima�conmoción�en�su�vida,�en�donde�la�vi�vibrar,�porque�tocaban�su�fibra�de�insobornable� luchadora,� sostenida�a� lo� largo�de�sus�cien�años�de�vida.�De�ahí,�que�uno�de�esos�momentos�mágicos�que�tuve�la�suerte�de�vivir� de� cerca,� fue� la� creación� en� Lisboa,� en�2005,�del�“Circulo�Joaquina�Dorado�y�Liberto�Sarrau”,�que�Elisa�Areias�y�Luis�García�de�Silva,�fundadores�del�Centro�de�Estudos�Libertários�y�directores�del�periódico�A Batalha,� le�dedica-ron�a�Joaquina�y�Liberto.�Liberto�fue�el�hombre�en�la�vida�de�Joaquina�y�compañero�en�la�lucha�antifranquista,� detenidos� en� reiteradas�ocasiones,� sufrieron� largos� años� de� prisión.�Grabados� en� su� cuerpo� la� ferocidad� de� los�interrogatorios,� en� tenebrosas�dependencias�policiales.�Cuando� la� tortura�dejó�a� Joaquina�fuera� de� juego,� creían� los� matarifes� de� la�cruzada,� la� enviaron� a� morir� a� su� casa.� En�cuanto� pudo� huyó� a� Francia.� Joaquina� fue�mujer� de� huídas,� de� la� guardia� civil,� de� la�policía,�de�los�campos�de�concentración,�de�los�geriátricos.�En�el�nutrido�programa�de�los�actos�en�Lisboa,�tuvo�gran� importancia� la�exposición�sobre� la�guerra,� el� exilio,� la� participación� de� � los�españoles�en�la�resistencia�durante�la�Segunda�Guerra�Mundial�y� la� lucha�clandestina�de� los�guerri l leros� españoles� en� montañas� y�ciudades,� contra� el� � franquismo,� en� los� que�Joaquina,� bajo� el� nombre� de� Nuri,� actuó� de�enlace� con� Quico� Sabaté,� dentro� y� fuera� de�España.�Otro�momento� de� esplendor� para� Joaquina,�fue�el�encuentro�de�Exilios�Femeninos,�que�La�Xunta� de� Gal ic ia � y � la � Univers idad� de�Pontevedra,�organizó�en�la�Illa�de�San�Simón,�(Pontevedra),��bajo�la�dirección�de�la�profesora�Aurora�Marco,�de�la�Universidad�de�Santiago.�La�Illa,�convertida�en�tiempos�tenebrosos�de�la�posguerra,� en� prisión� de� � represaliados�republicanos,�con�fusilamientos�en�agosto�de�1938,�fue�el�exuberante�escenario�de�los�actos.�Las�exiliadas,�llegaron�de�diferentes�países�de�Suramérica,�México,�Cuba,�Chile,�a�ofrecer�sus�testimonios� de� lucha,� cárceles,� torturas� y�desarraigo,� enraizadas� ya� en� sus� países� de�acogida,� por� la� desesperanza� de� tan� largos�

años�de�la�dictadura�franquista,�hasta�quedar�ancladas�por�la�cadena�biológica�de�la�vida:�los��hijos�y�los�nietos,�escindidos�ya�sus�sentimien-tos.�Algunas�de�las�convocadas,�en�su�imposi-ble� retorno,� las� representaban� sus� hijas,�depositarias�de�la�memoria�familiar.Nos�asombraron�sus�testimonios,�convertidos�ya� en� materia� de� estudio.� Joaquina� estaba�radiante,� la� oíamos� hablar� en� su� lengua� de�nacencia,�dormida�durante�tantos�años�en�lo�más� recóndito� de� su� recuerdo.� Exponía� sus�vivencias� con�entereza�y� sostenida�emoción,�conservadas�por�la�persistencia�de�la�memoria�y�la�morriña.�Y� para� terminar� este� capítulo� de� gesto�satisfechos:�El� homenaje� que� hace� tiempo� decidimos�organizar� cada� año,� ante� las� tumbas,� que�ocuparon:�Ferrer�y�Guardia,�Francisco�Ascaso,�y�Buenaventura� Durruti,� en� el� cementerio� de�Montjuic,�en�la�fecha�de�la�muerte�de�Durruti,�el�20� de� noviembre� de� 1936,� en� el� frente� de�Madrid.Para� la�emoción�de�Joaquina,�el�hallazgo�del�periódico� mural� Voluntad,� que� durante� la�guerra,�publicaban�las�Juventudes�Libertarias�

del� Sindicato� � de� la� Madera� Socializada,� en�donde�ella�colaboraba,�y�que�encontramos�en�la�Biblioteca�del�Pavellón�de� la�República,�de�Barcelona.Y,� por� último,� la� visita� a� la� tumba� de� Quico�Sabaté,� en� el� cementerio� de� San� Celoni,� un�cinco� de� enero,� día� del� aniversario� de� su�asesinato.�Aquel�día� lloró� la�Nuri,�sin�detener�las�lágrimas,�por�el�fiel�compañero�de�lucha.Mujeres�como�Joaquina,� �encarnan�a�miles�de�luchadoras�anónimas�que�hicieron�posible,�la�primera� gesta� revolucionaria� de� signo�libertario,�a�cuyo�compás�latió�entusiasmado,�apasionado� el� corazón� del� mundo.� Mujeres�que�tenían�clara�conciencia,�que�afirmaban�su�derecho� a� ser� reconocidas� como� seres�conscientes,� capaces� de� asumir� cualquier�papel,� por� encima� de� sus� compañeros,� sin�menoscabo�de�su�condición�de�mujer.�Por�lo�tanto,�debe�constar�a�todos,�que�ni�un�solo� de� los� mínimos� derechos,� de� que� hoy�disfrutamos,� hubiese� sido� realidad� sin� el�combate� valiente,� � tenaz� y� generoso� de�mujeres�como�Joaquina�Dorado.�Salud.

Barcelona,�10�de�junio�del�2017

enhum� território� pode� ser� uma�Nrepresentação� de� cosmética� ou�bricolage,�dando�a�ilusão�momentânea�

de�que�tudo�estará�bem�ao�mesmo�tempo�que�esconde�a�dor,�fome�e�pobreza.�Essas�experiên-cias�conjunturais�e�de�conjectura�política�que�entusiasmam� os� partidários� da� exploração�(ações,� mercados,� lucros,� altas)� são� fases�intermédias� do� paradigma� falhado� que�vivemos�há�milhares�de�anos.�E�tem�acontecido�intermitentemente:�muda-se� de� rei,�muda-se�de� república,� aceita-se� ditadura,� muda-se,�afinal,� na� forma� como� se� explora� pessoas� e�recursos...� O� Brasil� do� Futuro� será� qualquer�

coisa�que�nós�não�sabemos,�fora�dos�meandros�políticos,� económicos� e� sociais� actuais.� No�Brasil� não� haverá� mais� lugar� à� exploração�humana�e�ao�lucro,�não�haverá�mais�uma�única�casa� favelada,� não� haverá� criminalidade,� não�haverá� senhores� e� coronéis.�O�povo� será� um�imenso�exército�de�«capitães�da�areia»�do�amor�e�do�bem.A�idade�futura�será�brasileira.�O�povo�excluirá�dos�circuitos�de�suas�vidas�as�relações�hierárquicas,�o�pobre�e�o�rico,�a�exploração�e�o�lucro�e�todos�os�mecanismos� actuais�que� sufocam�os�humanos�brasileiros:�ações,�concorrência,�representações�partidárias,� empréstimos,�dívidas,� pagar� saúde,�crime,�etc.Em� determinado� momento� se� reunirão�condições�para�que�os�irmãos�brasileiros�tenham�uma�visão�clara�da�sua�sociedade�e�território,�das�suas�florestas,�serras�e�rios,�das�suas�cidades,�do�potencial�natural,� técnico�e�científico�em�áreas�da� habitação,� saúde,� alimentação,� educação� e��numa� tomada� de� consciência� irão� abolir� a�sociedade� de� classes� e� grupos,� o� � trabalho� se�tornará�obra�colectiva�de�combate�à�pobreza�e�fome�e�de� redistribuição.�Das� favelas�e�morros�hão-de� descer� pessoas� que� se� recolocam� em�prédios� abandonados� nas� cidades� e� campos�desprezados�por�antigos�donos-patrões,�outros�ficarão�nesses�lugares�repovoando�os�espaços�de�

natureza�e�árvores�de�fruto,�criando�agradáveis�espaços�florestados.�O�modelo�eco-vivente�dos�indígenas�expandir-se-á�com�o�repovoamento�e�retorno�de�grandes�florestas�e�a�nova�consciência�colectiva,�onde�os�povos�estarão�desamarrados�ao�estado�e�da�sua�administração�e�suas�políticas�impositivas� e� erradas.� Serão� demolidas� ocupa-ções�e�morros�pobres.�A�mão-de-obra�disponível�do� exército� e� de� exércitos� de� desempregados,�abandonados�e�outros,�completarão�milhões�de�habitações,� dando� às� populações� qualidades�negadas� até� hoje,� geradoras� de� sofrimento.�Florescerá� a� observação� e� amor� pela� vida,� a�tranquilidade,� não� a� passividade� miserável� e�pobre� do� Brasil� actual.� Como� a� economia�capitalista�do�lucro�e�dinheiro�não�funcionará,�se�auto-desactivará� e/ou� implodirá,� as� grandes�propriedades� latifundiárias� abandonadas�acolherão�milhões�de�brasileiros�que�repovoarão�com� negros-escravos,� índios,� sem� terra� e�desfavorecidos�o�território�de�António�Vieira,�de�forma� austera� mas� feliz,� laborando� fora� do�individualismo�capitalista�e�lucropata.�Esse�Brasil�será�politicamente�tão�avançado,�sem�represen-tações�eleitorais�ou�do�povo,�que�já�não�haverá�lugar�à�propriedade,�nem�à�ilusão�da�economia�mercantil,� suas� aquisições� supérfluas� e� suas�representações�político-partidárias.�Nesse�Brasil�nem�comissões�de�base�ou�outros�comités�serão�

necessários,�tal�a�transformação�que�se�operará�naquele� território,� a� qual� não� conseguimos�alcançar,� baseada� no� amor,� entreajuda� e�felicidade�entre�povos�da� terra-brasilis.� Todo�o�Brasil�será�um�colectivo�de�repartição�e�partilha�consciente� depois� da� queda� do� seu� sistema�político-partidário�favorável�a�algumas�famílias,�depois�da�anulação�natural�do�modelo�económi-co� produtivo� capitalista� mundial� instalado� no�território�há�cinco�séculos�e�a�terra�brasileira�será�abraçada�de� forma� feliz�e�alegre�pelo�povo�do�Brasil�que�viverá�de�forma�simples�e�consciente�uma�vida� futura�conjugada�com�seus� recursos.�Coronéis,�brancos,�ricos,�favorecidos,�criminosos,�compreenderão� que� aquele� território� já� não�funciona� com� medos,� cercas� separadoras� e�castradora.�Já�não�lucra�com�«cabeças�de�gado»,�droga�ou�meios�de�comunicação�porque�o�povo�virou-se�para�si�próprio�construindo�autonoma-mente�uma�outra� realidade,�uma�colectividade�desfavorável�às�políticas,�economias�e�sociedade�actuais.�Haverá�um�período,�dentro�do�próprio�Brasil,� em� que� tudo� isso� cairá� por� anulação�consciente�do�povo.�E�nada�disso�terá�valor.�Os�valores� estarão� na� repartição� e� entreajuda,� na�ecologia,�na�saúde�e�felicidade.O�Brasil�será�qualquer�coisa�que�não�imaginamos�e�que�contaminará�o�novo�paradigma�mundial.�Viva�o�povo�brasileiro!

Antonina�Rodrigo

J.�Chagas

Joaquina�Dorado�Pita�(1917-2017)

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Sob� o� título� O Espírito de 45,� a� RTP2�exibiu� um� excelente� documentário�sobre� a� Inglaterra� trabalhista� do� pós-�

Segunda�Guerra,�quando�o�Labour�se�assumiu�como� socialista� e� anti-fascista,� ouvindo-se�expressões� práticas� como� «fascismo� nunca�mais»�os�ricos�têm�tudo�e�«tudo�se�organiza�em� proveito� deles»,� somos� «nós� e� eles».�Nesses� momentos� a� população� receando�mais�pobreza,�miséria� �e�fascismo�mobilizou-se� em� torno� do� «programa� socialista»� dos�trabalhistas� e� assim� se�operaram�mudanças�profundas� na� sociedade� inglesa� contra� os�ricos,� o� capitalismo� e...� o� sistema� bancário,�repondo�igualdade�na�sociedade�inglesa.�Um�dos� testemunhos� dessa� época� recebeu� a�seguinte� mensagem:� «lembra-te� disto,� não�deixes�[mais]�acontecer,�continua�a�combater�a� fome,� ignorância,� ociosidade,� doença� e�miséria� para� onde�nos� arrastam».�O�partido�trabalhista� e� trabalhadores� clamavam� os�«recursos� para� o� povo� inglês».� E� assim� os�conservadores� foram� derrotados� e� havia�duros� mineiros� a� «chorarem»� de� alegria� e�esperança.� Os� trabalhistas� durante� vários�anos� nacionalizaram� sectores� vitais� da�economia� e� recursos, � desenvolveram�políticas�em�que�os�«bens�seriam�comuns»�a�todos� os� ingleses,� construiram� casas� para�

operár ios� e� miseráveis � (os� donos� da�Inglaterra,� achavam� demais� duas� casas� de�banho� em� casas� operárias),� desenvolveram�programas�de�saúde,�escolaridade,�etc.Acontece�que,�na�década�de�80,�os�conserva-dores�de�Margaret�Thatcher� (a�ministra�que�lançou�para�o�fundo�do�Atlântico�bidons�com�resíduos� nucleares.� E� agora?� Não� vai� ao�«Tribunal�de�Haia»,�ela�ou�a�Inglaterra?),�sob�influência� do� neo-liberalismo� dos� cowboys�Reagan� e� Milton� Friedman,� convence� o�povinho� que� o� «importante� é� cada� um�enriquecer»,�ganha�as�eleições�e�desmantela�décadas� de� «social ismo»� trabalhista :�desinveste� na� indústria,� retirando-lhe�capacidade;�apodera-se�do�estado�e�paralisa-o;�coloca�o�estado�sob�influência�do�mercado�livre,� descontrolado� e� privatizado;� reduz�sa lár ios , � despede� compuls ivamente,�neutraliza� os� sindicatos� (que� também�capitulam),�utiliza�fura-greves,�cria�um�estado�policial� contra� os� reivindicantes� («Quem�manda�bater?»,�queria�um�indignado�saber).���No� presente� temos,� infelizmente,� muitas�cópias�e�exemplos�deste�neo-liberalismo�em�Portugal,�Grécia,�Europa,�etc.�num� �trabalho�parcial�a�favor�do�capital�e�da�importância�de�enriquecer� uns� quantos,� empobrecendo�milhões.�O� liberalismo� de� Thatcher� teve� a� seguinte�actuação� de� privatizações,� cujas� vítimas� se�lamentavam�nos�depoimentos�do�documen-tário:� 1983-� privatização� de� serviços� de�limpeza,�refeições,�etc,�no�SNSaúde,�diminu-indo� a� empregabilidade� e� aumentando� os�custos�de�6%�para�12%.�1984-�telecomunica-ções;�águas.�1985�‒�«Aerospace».�1986�‒�gás;�desmantelamento�de�empresas�de�camiona-

gem.�1987�-� �Rolls�Royce�e�«Airways».�1988�‒�siderúrgias.�1989�‒�definitivamente�as�águas.�

1983-94�‒�havia�184�minas,�foram�privadas;�só�restavam�quinze.�1989�‒�abolição�do�regime�de� trabalho� portuário� (contratação� precária�de� não� estivadores);� electricidade.� 1994� ‒�caminhos-de-ferro� (estiveram� na� falência;�

acidentes;�pessoal�contratado�não�é�ferroviá-rio).� 2003� ‒� liberalização� dos� correios�

(redução� das� entregas).�2011�‒�privatização�de�90%�dos� correios.� � Mudem� as�siglas,� pensem� um� pouco�no�Portugal�capitulado,�no�Portugal�de�Portas&Coelho�e� parece� que� o� filme� é� o�mesmo...Os�vivos�que�têm�testemu-nhado�a�Inglaterra�de�1945�até�hoje� lamentam�aldeias�cheias�de�jovens�dedicados�à�droga�e�roubo,�a�necessi-dade� de� se� ter� um� seguro�para� assistência� médica,� o�país�entregando�benefícios�aos� r icos, � s indicatos� e�partidos� controlados� pela�classe�média-burguesa,�etc,�etc,� neste� «capitalismo�atencioso»,�nesta�Inglaterra�sem�«país�para�os�pobres».�«Vamos�lutar!»�,�dizem.O�documentário,�sobre�este�período� histórico� e� os�testemunhos� de� gente�ainda�viva,�não�mostrando�um�país�num�«apogeu»�de�igualdade�social�ou�formas�de � organização� soc ia l�muito� evoluídas,� constitui�interessante� documento�

que�nos�leva�a�reflectir�sobre�o�presente�e�uma�multitude� de� catástrofes� sociais,� políticas,�militares�e�de�estado(s)�que�nos�atormentam.�

5|InternacionalA�BATALHA�|�Jornal�de�Expressão�Anarquista�|�nº�275�|�Mai./Jun.�2017

3º�Fórum�Geral�Anarquista

ealizou-se� de� 16� a� 18� de� Junho� na�Rcidade� de� Campinas,� perto� de� São�Paulo,� o� 3º� Fórum� Geral� Anarquista,�

organizado� mais� uma� vez� pela� Iniciativa�Federalista�Anarquista�(IFA).

A�IFA�é�uma�organização�formal,�de�natureza�federalista� como� o� próprio� nome� indica,�sendo� constituída� actualmente� pelos�seguintes�grupos:�Liga�Anarquista�do�Rio�de�Janeiro,� Fenikso� Nigra� de� Campinas,�Comuna� Anarco-Punk� Aurora� Negra,�dinamizadora�do�Centro�de�Cultura�Social�da�Favela�Vila�Dalva�na�zona�oeste�de�São�Paulo,�e� Núcleo� de� Estudos� Libertários� Carlo�Aldegheri� (NELCA)� de� Guarujá,� cidade�situada�no�litoral�de�Santos.�Saliente-se�que�es ta � I FA � é � aderente � à � out ra � I FA , � a�Internacional� das� Federações� Anarquistas,�desde�o�seu�último�congresso,�que�ocorreu�

em�Frankfurt�no� início�de�Agosto�de�2016,�durante�o�qual�também�aderiram�mais�duas�organizações�do�continente�sul-americano:�a� Federação� Anarquista� Local� de� Valdívia�(região�chilena)�e�a�Federação�Anarquista�do�México.��

O� Fórum� decorreu� numa� casa� de� um� piso�com� jardim,� pertencente� à� comissão� de�moradores� do� bairro� Novo� Campo� Elíseos,�tendo� a� respectiva� direcção� e� alguns�moradores�assistido�ao�evento.�Ao�longo�dos�três�dias,�cerca�de�oitenta�pessoas�aparece-ram�para�participar�nas�diversas�actividades�que�estavam�programadas,�desde�as�“rodas�de� conversa”� informais� até� aos� grupos� de�discussão� e� às� apresentações�mais� formais�ao�final�do�dia.�Com�um�programa�cheio,�em�que� muitas� vezes� a� vontade� era� estar� em�mais�do�que�uma�conversa�ou�discussão�ao�mesmo�tempo,� sobressairam�as�apresenta-ções� sobre�os� “100�anos�da�greve�geral�de�1917”,� da� autoria� de� Alexandre� Samis,� e�

sobre�os�“100�anos�da�revolução�russa”�com�René� Berthier,� da� Federação� Anarquista�francesa.����

O�programa�incluía�um�grupo�de�discussão�sobre� o� anarquismo� em� Portugal,� onde� fiz�uma� resenha� da� sua� história,� seguida� da�apresentação� do� livro� Preferi� roubar� a� ser�roubado!,� recentemente� editado� pela�Barricada�de�Livros.� Infelizmente,�o�horário�deste�grupo�de�discussão�coincidiu�com�o�do�grupo�sobre�os�“40�anos�do�Inimigo�do�Rei”,�jornal� baiano� que� marcou� uma� época�(também� em� Portugal)� e� que� foi� muito�importante� na� renovação� do� anarquismo�brasileiro�no�período�pós-ditadura.

A� participação� foi� efectiva,� tendo� algumas�actividades� se� prolongado� para� além� do�previsto� devido� a� acaloradas� discussões�teóricas.� Por� outro� lado,� verificou-se� uma�grande�partilha�do�espaço,�entre�militantes�com�muitos� anos� de� activismo� e� jovens� à�

procura� do� seu� caminho� e� com� ânsia� de�aprender.�Mais�uma�vez,�fiquei�com�a�ideia�de�que�o�anarquismo�no�estado�brasileiro�está�em� crescimento� e� isto� apesar� de� algumas�“tricas”� pessoais� ou� organizacionais� que,�infelizmente,�também�existem�por�lá.

Uma�última�palavra�para�a�organização,�que�foi� excelente� em� todos� os� aspectos:�cumprimento� ou� ajustamento� de� horários,�actividades�complementares,�alojamento�no�bairro�para�todos�aqueles�que�o�solicitaram.�O�grupo�responsável�pela�cozinha,�apesar�de�toda� a� ajuda� que� recebeu,� fartou-se� de�trabalhar,� pondo� à� disposição� dos� partici-pantes� pequeno-almoço,� almoço� e� jantar�com�comida�vegan�de�boa�qualidade�e�em�abundância.�

Em�conclusão:�venha�daí�o�4º�Fórum...

Mário�Rui

O�trabalhismodo�pós-guerraJosé�Augusto

Ken�Loach,�2013

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Em�1981,� a� Antígona� editou� a� tradução�portuguesa�de�Ravachol e os anarquis-tas� de� Jean� Maitron.� 36� anos� depois,�

volta� a� publicar-se� um� novo� livro� sobre� a�relação�entre� ilegalismo�e�anarquismo,�desta�vez�saiu�sob�a�chancela�da�Barricada�de�Livros.�Para�este�número�de�A Batalha,�sentámo-nos�à�mesa�com�Mário�Rui�Pinto�(MRP),�do�colectivo�editorial,�para� falar�sobre�Preferi roubar a ser roubado! Textos sobre o roubo revolucionário�e�sobre� o� seu� percurso� enquanto� militante�anarquista,� que� passou� pelas� páginas� de� A Batalha�e�às�quais�regressa.�Bem-vindo!

A� Batalha:� Podemos� iniciar� esta� conversa� à�volta� d'A Batalha,� pois� fizeste� parte� da�redacção�durante�largos�anos.�Como�se�iniciou�a�tua�colaboração�no�jornal�e�como�acompa-nhaste�o�seu�trajecto�entre�as�décadas�de�1970�e�1980,�passando�de�um�periódico�quase�só�destinado� ao� mundo� do� trabalho� a� uma�publicação� com� uma� forte� componente� de�cultura�libertária?

MRP:� Apesar� de� ler� A Batalha� desde� o� 1º�número,� creio�que�de� Setembro�de� 1974,� só�passados� alguns� meses� é� que� entrei� pela�primeira� vez� na� sede� da� Rua� Angelina� Vidal.�Quem� me� abriu� a� porta� foi� uma� figura�inesquecível�para�mim,�o�Custódio�da�Costa,�sobrevivente� do� Tarrafal,� típico� militante� de�base,�sempre�disponível�para�qualquer�tipo�de�trabalho.� Depois,� entre� outros,� conheci� o�Emídio�Santana,� a� Lígia�de�Oliveira,� o�Acácio�Tomás� de� Aquino� e� o� Artur� Modesto,� outra�pessoa� que� muito� me� marcou� pela� sua�bondade�e�calma�em�todas�as�circunstâncias.�Todos� resistentes� ao� Estado� Novo� e� que�estavam�a�reactivar�o�jornal.�Havia�uma�certa�vontade� em� recuperar� a� aura� que�A Batalha�teve�até�1927,�como�se�notava�pelo�entusias-mo� de� editar� quinzenalmente� o� jornal.� O�problema� é� que� este� entusiasmo� não� era�partilhado� pelo� resto� da� população,� pois� a�memória� dʼA Batalha,� e� do� anarquismo� em�geral,�tinha�sido�apagada�durante�o�fascismo.�Com� o� passar� dos� anos,� as� grandes� tiragens�iniciais� diminuíram� e� a� edição� passou� de�quinzenal�para�mensal.�O�jornal�também�não�era�muito�atractivo�graficamente.�Parecia�uma�manta� de� retalhos.� O� director� era� o� Emídio�Santana,� mas� não� havia� qualquer� indicação�sobre� quem� era� a� redacção� e� raros� eram� os�artigos�assinados.�Comecei�a�escrever�no�jornal�só�em�1977,�depois�de�uns�anos�de�“aprendiza-gem”,� ao� mesmo� tempo� que� aparecia� uma�fornada�de� colaboradores� jovens:� Rui�Vaz�de�Carvalho,�Carlos�António,�José�Tavares,�Carlos�Reis,� Miguel� Serras� Pereira,� Carlos� Fontes,�António�Cândido�Franco,�André�Bandeira,�José�Maria� Carvalho� Ferreira,� etc.� Na� altura� havia�muita�coisa�a�acontecer,�pelo�que�a�redacção�era� muito� volátil.� Alguns� destes� nomes� não�coincidiram�no�tempo.�As�pessoas�entravam�e�saíam�com�facilidade.�Só�o�Emídio�e�a�Lígia�se�mantinham.�Eu,�por�exemplo,�a�partir�de�1979�também� fazia� parte� da� Mandrágora,� uma�associação� cultural� de� Cascais,� sucessora� do�jornal � “anarco-humoríst ico” � Pasquim .�Dedicávamo-nos� ao� teatro� e� à� arte� postal� e�mais�tarde�fizemos�algumas�edições.�Com�esta�entrada�na�redacção�dʼA Batalha�de�colabora-dores� de� uma� geração� muito� mais� nova,� o�jornal�teve�um�salto�qualitativo�a�nível�gráfico�e�os� temas� abordados� também� se� foram�alterando.�Se,�no�início,�a�quase�totalidade�do�jornal� era�direccionada,�principalmente,�para�as�lutas�dos�trabalhadores�e�questões�sindicais�e,�também,�para�a�análise�crítica�do�papel�da�

Intersindical�no�movimento�operário,�a�partir�do� quarto� ano� de� publicação� nota-se� uma�abertura�a�certos�temas,�até�então�completa-mente�ignorados,�como�cultura,�ecologia,�anti-militarismo,� quotidiano,� prisões,� nos� quais� o�anarquismo�se�fazia�sentir�com�mais�intensida-de� do� que� nas� fábricas.� Com� a� entrada� de�novos�redactores,�estas�questões�começaram�a� ser� abordadas� através� de� uma� óptica�libertária.�Quando�a� redacção�decidiu�que�as�páginas� dʼA Batalha� deviam� dividir-se� em�secções� temáticas,� fiquei� com� a� página�cultural,� talvez� por� também� pertencer� à�Mandrágora.�Esta�página�começou�a�integrar�textos� sobre� cinema,� teatro,� literatura� ou�música.�Os�tempos�das�recensões�às�publica-ções�exclusivamente�anarquistas,�como�A Voz Anarquista�ou�os�livros�de�memórias�sobre�o�18�de�Janeiro,�deram�lugar�a�um�período�no�qual�o�jornal�se�abria�às�novas�realidades�e�aos�novos�problemas�e�dúvidas�da�sociedade�de�então.�

A�Batalha:�Além�d'A Batalha,�também�tiveste�um�papel�muito� activo�na� feitura� da�Utopia�(1995-2012),�que�foi�uma�das�mais�interessan-tes� revistas�anarquistas�dos�últimos�40�anos�em�Portugal.� Como� foi� a� tua� aproximação�à�

Associação�Cultural�A�Vida,�como�surgiu�a�tua�relação� com� esta� publicação� e� o� que� te�motivou� a� entrar� para� o� seu� colectivo�redactorial?

MRP:�Um�dia�encontro�a�Utopia�numa�livraria�e�começo�a�folheá-la�porque�o�epíteto�"Revista�anarquista�de� cultura� e� intervenção"�desper-tou-me�a�atenção.�Começo�logo�a�reconhecer�uma�série�de�nomes�do�colectivo� redactorial�ou� colaboradores,� como� o� do� José� Maria�Carvalho� Ferreira,� Carlos�Nuno,� José� Tavares,�Félix,�Rui�Vaz�de�Carvalho�ou�Júlio�Henriques.�Esta� minha� descoberta� da� revista� coincidiu,�mais� ou�menos,� com� algumas� alterações� no�grupo�que�a�editava�devido,�penso,�à�doença�prolongada� e� posterior� falecimento� do� Rui.�Com�a�recomposição�da�redacção,�o�José�Maria�convidou-me�para�fazer�parte�dela�e�eu�aceitei,�ficando�até�ao�último�número,�em�2012,�apesar�de� já� não� ter� participado�na� sua� elaboração,�nem� me� rever� nele.� O� grupo� era� bastante�heterogéneo,�porque�cada�pessoa�tinha�feito�um�percurso�muito�próprio�até�chegar�à�Utopia�mas,� praticamente,� todos� tinham� passado�pelʼA Batalha,�se�bem�que�alguns�em�tempos�diferentes.� Mas� conhecíamo-nos,� havia�

amizade�e�afinidade�de�ideias.�O�colectivo�era�aberto�e�fomentava�a�própria�discussão�interna�sobre� os� temas� que� serviam�de� base� a� cada�dossier� temático.� Quanto� ao� conteúdo� da�revista,�havia�textos�nossos�e�artigos�da�autoria�de�muitos� colaboradores,� sendo� que� benefi-ciávamos�de�ter�um�forte�relacionamento�com�o�Brasil�e�com�pessoas�como�o�Jaime�Cubero�e�o� Edson� Passetti� ou� o� Christian� Ferrer,� na�Argentina.�Não�havia�qualquer�ortodoxia�nem�uma�visão�única�do�anarquismo,�convivendo�vários�argumentos�sobre�o�mesmo�assunto�nas�páginas�da�revista.�Como�é�evidente,�tudo�tem�o�seu� tempo,�as�pessoas� têm�o�seu�percurso�para� fazer,� algumas� afastam-se� e,� muito�naturalmente,�a�Utopia�termina�a�sua�publica-ção.�

A�Batalha:�Há�uns�meses�decidiste�lançar-te�na�edição� de� livros� com� a� Barricada� de� Livros,�cujo� primeiro� título� é� Preferi roubar a ser roubado! Textos sobre o roubo revolucioná-rio.� Além� dos� textos� de� Clément� Duval,� de�Alexandre�Marius�Jacob�e,�presumivelmente,�de�Enrico�Arrigoni,�são�da�tua�autoria�as�notas�biográficas� sobre� Duval,� Marius� Jacob� e�Miguel� Arcángel� Roscigna,� uma� breve�

contextualização�do�ilegalismo�na�Argentina�e�uma� excelente� introdução� ao� tema,� que� já�publicámos�neste� jornal� (A Batalha,�nº�273).�Como�é�a�primeira�edição�portuguesa,�de�que�temos� conhecimento,� do� conjunto� destes�textos,� talvez� seja� importante� discutir�algumas� questões� contigo.� Para� começar,�fala-nos�da�alteração�da�dinâmica�propagan-dística� das� últimas� duas� décadas� do� século�XIX:� da�propaganda�mais� formal,� através�de�periódicos,� para� a� propaganda� pelo� facto,�onde�diversos�libertários�decidiram�recorrer�a�atentados�e�assaltos�para�tornar�a�acção�mais�eficaz,� perante� a� notória� obsolescência� das�formas� tradicionais� de� propagar� o� ideário�anarquista.�

MRP:� O� momento� desta� viragem� pode� ser�determinado� pela� realização� do� Congresso�Anarquista�de�Londres�de�1881�e�pela�curiosa�recomendação� aos� sindicatos� e� militantes�ligados�à�AIT�“para�que�estudem�e�apliquem�as�ciências� técnicas� e� químicas,� como�meio� de�defesa� e� de� ataque”.� "Aprender� química"� é�claramente� um� eufemismo� para� aprender� a�fazer� bombas� artesanais.� Os� trabalhos� do�

congresso� serviram� também� para� chegar� à�conclusão�de�que�com�a�propaganda� “legal”�não�se�estava�a�conseguir�nenhum�propósito�transformador,�por�isso�seria�necessário�aplicar�novos�meios�de�difundir�as�ideias�anarquistas.�A� partir� desta� data,� entra-se� numa� década�caracterizada�por�um�certo�desapontamento�em� relação� à� propaganda� normal� (jornais,�revistas,�sessões�de�propaganda,�etc.),�que�não�estaria�a�resultar�como�os�anarquistas�queriam,�iniciando-se� a� “propaganda�pelo� facto”,�para�agitar� mais� as� águas,� com� uma� explícita�esperança�de�que�este�tipo�de�acções�pudesse�despoletar�revoltas�fortes�que�conduzissem�à�revolução.� Isso� foi�aproveitado�pelo�estado�e�pela� imprensa� para� denegrir� o� anarquismo,�apelidando-o� de� “terror� negro”,� quando� na�verdade� foram� atentados� quase� sempre�defensivos� e� direccionados.� Poucos� são� os�atentados� indiscriminados,� como�o�atentado�bombista�de�Émile�Henry,�na�Gare�Saint-�Lazare�em� Paris.� Quase� sempre� os� atentados� são�dirigidos�a�figuras�das�classes�dominantes�que�encarnam� o� poder� e� a� repressão,� como�aconteceu,�por�exemplo,�com�o�presidente�da�França,�Sadi�Carnot,�apunhalado�por�Caserio,�ou�com�Humberto�I�de�Itália,�assassinado�por�Bresci.�Ou�bombas�em�casas�de�juízes�ou�em�esquadras�da�polícia.�O�que�é�verdade�é�que�estes� atentados� também� não� originaram�grandes� revoltas,� nem� deram� à� luz� grandes�movimentações� de� massa.� Ligado� ou� não� a�isto,� há� anarquistas� que� enveredam� pelo�ilegalismo.� São� pessoas� que� não� aceitam�trabalhar� em� fábricas� insalubres,� serem�exploradas�pelo�patrão�para�ganhar�meia�dúzia�de�tostões.�Mendigar�também�não�é�possível�porque� consideram� este� acto� degradante.�Portanto,� há� um� enveredar� pelo� roubo�revolucionário� durante� a� Belle� Époque,� que�não�teve�nada�de�bela�para�os�trabalhadores.�A� Batalha:� Depois� dessa� década� negra,�marcada�por�uma� série�de�atentados� contra�chefes� de� estado� e� figuras� cimeiras� dos�regimes� europeus,� parece� existir� uma�repressão� dupla:� por� um� lado,� os� estados�europeus� reforçam� a� perseguição� política�com�as�leis�anti-anarquistas�e,�por�outro�lado,�tens�uma�corrente�maioritária,�que�se�opõe�à�tendência� ilegalista,� como� seria� o� caso� do�anarco-sindicalismo.� Os� ilegalistas� foram�apoiados�pela�facção�individualista.�A�relação�era�de�grande�proximidade�entre�individualis-tas�e�ilegalistas?�

MRP:� A� própria� entrada� dos� anarquistas� nos�sindicatos� gera� muita� discussão.� Há� aqueles�que�acham�que�a�propaganda�normal�não�está�a� funcionar�e�que�os�atentados�também�não�estão� a� correr� bem,� por� isso� começam� a�procurar�o�mundo�do�trabalho.�Daí�a�entrada�dos�anarquistas�nos�sindicatos�como�solução.�Na� época,� talvez� não� fosse�mal� pensado:� os�sindicatos�não�tinham�partidos�políticos�e�os�libertários� passavam� a� estar� no� coração� do�mundo� do� trabalho.� Houve� alguns� que� não�concordaram�e�mantiveram�a� sua� actividade�fora�destas�organizações,�como�foi�o�caso�dos�individualistas.� Estes� consideravam� que� a�entrada�nos�sindicatos�conduziria�os�anarquis-tas�a�uma�situação�de�mera�reivindicação�pela�melhoria� dos� salários� ou� do� horário� de�trabalho,�além�de�que�a�organização�perderia�força�porque�seria�abafada�por�burocracias�e�perder-se-ia�o�objectivo�final�da� revolução.�É�desta�corrente�do�individualismo�que�vêm�os�ilegalistas,� pois� a� fronteira� entre� as� duas�correntes�foi�sempre�muito�ténue.�O�individua-lismo�foi�a�corrente�mais�simpática�para�com�o�ilegalismo,� sendo� que� muitos� autores� não�

6 | EntrevistaA�BATALHA�|�Jornal�de�Expressão�Anarquista�|�nº�275�|�Mai./Jun.�2017

O�terror�negro

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A�Batalha

Preferi�roubar�a�ser�roubado!Barricada�de�LivrosLisboa,�2017,�116�pp.

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7|EntrevistaA�BATALHA�|�Jornal�de�Expressão�Anarquista�|�nº�275�|�Mai./Jun.�2017

fazem� distinção� entre� elas.� Mas� mesmo� na�outra� corrente� dominante,� a� comunista�libertária,� houve� alguns� simpatizantes,� como�terá�sido�o�caso�do�Elysée�Reclus,�que�admitiu�que� se� os� roubos� serviam� um� propósito�revolucionário� e� não� apenas� para� benefício�próprio,� então� deviam� ser� apoiados� pelos�anarquistas.�

A�Batalha:�Afloras�a�questão�do�Bando�Bonnot�no�texto�introdutório,�mas�não�exploras�muito�uma�questão� fundamental.�Porque�é�que�as�acções�do�Bando�Bonnot�tiveram�como�efeito�o�fim�do�ilegalismo�na�Europa?�

MRP:�O�Bando�Bonnot�sempre�teve�uma�aura�mítica�à�sua�volta,�talvez�por�causa�de�algumas�particularidades� dos� seus� membros,� como�serem� vegetarianos,� terem� passado� pela�comunidade� anarquista� de� Romainville� nos�arredores�de�Paris,� não�beberem�álcool,�mas�sobretudo� pela� sua� trajectória� e� pela� forma�como�morreram.�Mas�os�assaltos�tinham,�claro,�de�ser�bem�planeados.�Por�exemplo,�o�Marius�Jacob�era�bastante�minucioso�e,�como�admite�em�tribunal,�elevou�o�roubo�à�forma�industrial.�O�próprio�Roscigna�chegou�a�fazer�um�assalto�a�100�metros�de�um�quartel�de� infantaria,�pois�tinha� tudo� tão� estudado� que� ninguém� dava�por�nada.�Pelo�contrário,�o�Bando�Bonnot�não�tinha� esta� preocupação� com� a� minúcia.�Ficaram�conhecidos�por�terem�feito�o�primeiro�assalto� a� um� banco� com� automóvel!� O�primeiro�assalto�que�fizeram�foi�a�um�indivíduo�que�transportava�uma�mala�com�os�depósitos�de�um�banco.�Apesar�de�não�precisarem�de�o�fazer,� alvejaram� o� indivíduo� e� mataram� um�vigilante� que� o� acompanhava.� Numa� outra�ocasião,� na� qual� pretendiam� roubar� um�automóvel,�em�vez�de�bloquearem�a�estrada�e�fazerem�sair�os�passageiros,�decidiram�disparar�contra� quem� estava� dentro� do� carro.� Feitos�pelo� Marius� Jacob� ou� pelo� Roscigna� estes�assaltos� teriam� sido� simples� e� limpos.� Claro�que�isto�gerou�uma�espiral�de�violência�da�qual�o� grupo� já� não� conseguiu� escapar.� A� forma�como� Bonnot�morre,� cercado� durante� horas�por�centenas�de�polícias�e�com�uma�multidão�de�curiosos�a�assistir,�serviu�para�mitificar�um�grupo� que,� na� minha� opinião,� em� nada�contribuiu� para� o�movimento� anarquista.�Os�próprios�individualistas�começaram�a�repensar�a� sua� ligação� ao� ilegalismo�e� terá� sido�nesta�altura�que�E.�Armand�afirma�que�nem�todos�os�métodos�podiam�ser�aceites.�O�individualismo�começou�a�esmorecer�e�as�próprias� transfor-mações� sociais,� económicas� e� até� a� nível� da�investigação�policial�ocorridas�nas�sociedades�europeias�com�a�1ª�Guerra�Mundial�contribuí-ram� para� o� fim� desta� primeira� fase� do�ilegalismo�europeu.�

A� Batalha:� Parece� que� pode� surgir� um�problema�a�partir�desta�concepção:�porque�é�

que� não� há� dignidade� em� roubar� para�proveito�próprio?�Por�exemplo,�um�conjunto�de� assalariados,� que� toda� a� vida� foram�explorados,� decidem� roubar� um� aristocrata�ou�um�burguês�para�garantir�às�suas�famílias�uma�vida�mais�confortável.�Não�estão�a�apoiar�financeiramente� o� movimento� anarquista,�mas�as�vidas�dos�que�estão�mais�próximos.�Os�ilegalistas�de�que�falas�no�teu�livro�não�viam�este� tipo�de� roubo� como�um�acto� legítimo?�Fala-nos� também� do� conceito� de� roubo�revolucionário,�que�está�na�raiz�do�teu�livro.�

MRP:�Provavelmente�sim,�mas�a�forma�como�agiam� e� distribuíam� os� resultados� dos� seus�assaltos� era� diferente.� Naquela� altura,� eles�podiam�considerar� esse� caso� como�o�de�um�roubo� “normal”.�Quer�o�Duval�quer�o�Marius�Jacob�afirmavam,�e�praticavam,�que�parte�do�valor�roubado�tinha�que�ser�obrigatoriamente�direccionado�para�o�movimento�anarquista.�O�mesmo� aconteceria� mais� tarde� com� os�expropriadores�que�actuaram�na�Argentina�e�no�Uruguai.�Uma�parte�muito�significativa�dos�

roubos� destinava-se� a� financiar� as� fugas� de�companheiros� presos,� as� campanhas� para� a�libertação�de�Simón�Radowitzky�e�de�Sacco�e�Vanzetti�e�a�actividade�editorial�de�Severino�di�Giovanni.� Não� era� para� que� eles� pudessem�viver�melhor� ou� pior,� mas� para� que� a� causa�anarquista� ganhasse� um�motor�material.� No�

caso� dos� expropriadores� espanhóis,� as�actividades� ilegalistas� eram� essencialmente�para�financiar�a�luta�anti-franquista,�através�da�compra� de� armas,� impressão� de�material� de�propaganda�ou�mesmo�atentados,�como�foi�o�caso� da� tentativa� de� assassinar� Franco� em�1948,� em� San� Sebástian,� com� um� pequeno�avião,�protagonizada�entre�outros,�pelo�Ortiz.�O�nosso�2º�livro�vai�ser�sobre�um�grupo�francês�que� se� chamava� Os Cangaceiros.� Nunca� se�intitularam�anarquistas,� sempre�criticaram�as�organizações�“revolucionárias”�e�de�guerrilha�urbana,� assumiam-se� como� um� grupo� de�delinquentes,� que� roubava,� vandalizava� e�sabotava.� Mas� o� seu� objectivo� era� editar�panfletos,�revistas,�livros�e�estarem�envolvidos�nas�lutas�operárias,�como�as�dos�mineiros�das�Astúrias� e� da� Grã-Bretanha.� Em� França,� a�principal� área�de� actuação�deste�grupo� foi� a�luta� contra� as� prisões.� Uma� das� acções� que�fizeram,�entre�muitas,�foi�a�destruição�de�todos�os�carros�que�acompanhavam�o�famoso�Tour�de� France� em� bicicleta,� outra� foi� graffitar� os�comboios� com� as� reivindicações� dos� presos.�

Isto�no�final�da�década�de�1980.�A�partir�daí,�os�comboios� começaram� a� ser� utilizados� como�instrumentos�políticos.� Em� todos�estes� casos�que� falei,� há� sempre� um� propósito� que�transcende�a�mera�sobrevivência�do�indivíduo.�Há� sempre� um� objectivo� que� não� passava�apenas� por� roubar� para� viver.� Não� havia� o�

objectivo�de�viver�só�do�roubo�e�esquecer�tudo�o�resto.�O�objectivo�era�político�e�revolucioná-rio.� Daqui� nasceu,� necessariamente,� a� noção�de�roubo�revolucionário,�que�assenta�na�ideia�de�que�tem�de�existir�qualquer�coisa�além�do�mero�roubo,�isto�é,�tem�de�se�projectar�o�roubo�para�o�domínio�da�luta�política�e�social.

A� Batalha:� O� segundo� livro� da� Barricada� de�Livros�está�já�em�preparação�e�está�relaciona-do�com�Os�Cangaceiros,�de�que�acabaste�de�falar.�Queres�abrir�o�jogo?�

MRP:� Sim,� estamos� a� preparar� um� livro� para�que�saia�durante�a�Feira�do�Livro�Anarquista�de�Lisboa�(6�a�8�de�Outubro).�O�título�vai�ser�Os Canganceiros�e�será�uma�antologia�de�textos�deste� grupo,� divulgados� sobretudo� nos� três�números�da�sua�revista,�com�o�mesmo�nome,�publicada� entre� Janeiro� de� 1985� e� Junho�de�1987.�Também�sairão�outros�textos�de�outras�publicações�do�grupo.�Que�se�saiba,�este�grupo�nunca� se� intitulou� anarquista,� assumiu-se�como� “bandidos� sociais”,� mas� teve� sempre�

uma� prática� horizontal� e� anti-autoritária,�salientando-se� como� já� disse� na� luta� anti-carcerária.� Publicaram� textos� muito� interes-santes,�como�se�verá,�tiveram�uma�prática�que,�na� opinião� do� colectivo� editorial,� deve� ser�apreendida� e� divulgada,� e� de� repente�desapareceram.�

A.

Crust�emBeja

� festival� Santa� Maria� Summer� Fest� é,�Odesde�há�uns�anos�a�esta�parte,�uma�das�ma i s � in t r igantes � p ropos tas � no�

(saturadíssimo)� panorama� “festivaleiro“�português.�Por�um�lado,�a� léguas�de�distância�dos� happenings � “marqueteiros”� de� uma�qualquer� corporação� que� aproveita� o� Verão�para� continuar� a� sangria� que,� durante� todo�o�ano,� lhe�é�permitida�à�conta�de�uma�clientela�oferecida� em� mercado� monopolista� ou� lá�bastante�próximo.�Seria�enfadonho�enumerar�e�esta� não� fixação� até� tem� o� condão� de,�

provavelmente,� alargar� na� mente� do� leitor� o�número�de�exemplos.�Quem�sabe�até�enfiando�a�proverbial�carapuça...Por�outro�lado,�o�SMSF�também�não�faz�parte�de�um�aborrecidíssimo� fenómeno�de� repetição�e�imitação� de�modelos� estrangeiros.� Se� é� certo�que� nem� sempre� se� trata� de� um� cartaz� total-mente�isento�de�tais�problemas,�um�olhar�mais�sistemático�dissipa�tal�sensação:�o�objectivo�de�criar� um� festival� de� “música� extrema”� e� sem�constrangimentos�estilísticos,�produz�sequênci-as� que� são� impossíveis� de� reproduzir� num�qualquer�outro�festival,�incluindo�(e�talvez,�até�especialmente)� aqueles� que� apontam� o�eclecticismo�como�bandeira.No�primeiro�dia,�a�presença�de�Hypothermia�e�Dokuga�centrou�as�atenções�no�palco�2.�Os�suecos�já�foram�uma�referência�no�nicho�do�depressive�black�metal�mas�de�há�uns�anos�a�esta�parte�a�melancolia�perdeu�boa�parte�do�seu�

cariz� mais� nefasto� e� destrutivo,� centrando-se�numa� abordagem� mais� contemplativa.� Boa�parte�do�interesse�talvez�se�tenha�perdido�mas�ainda�há�algo�a�reter�na�experimentação�livre�do�projecto�de�Kim�Carlsson:�a�improvisação�como�linha� orientadora� da� música� e� as� viagens�emocionalmente� tocantes� são� ainda� aspectos�relativamente�únicos�no�género,�ainda�que�sem�o� brilhantismo� de� outrora.� Ainda� assim,�claramente�o�maior�ponto�de�interesse�do�dia�inicial.Os� portuenses� Dokuga� apresentam-se,� como�de�costume,�com�uma�dose�de�descomprometi-mento�violento�cheio�de�influências�nipónicas.�Uma�apresentação�ao�vivo�é�uma�oportunidade�para� destilar� mais� algum� ódio� e,� ao� mesmo�tempo,�para�mostrar�quem�manda�no�mundo�do� crust� em� Portugal.� Exemplar� em� todos� os�aspectos.Naquele�que�prometia�ser�o�dia�mais�preenchi-

do,� foram� os� Process� of� Guilt� a� arrancar� as�hostilidades,�gerando�uma�barreira�de�som�que�não�é�fácil�igualar,�mesmo�para�a�mais�abrasiva�banda�de�doom.�Um�bom�começo�para�um�dia�cujo�momento�mais�especial�estava�reservado�para�o�ritual�intoxicado�de�Urfaust.�A�capacida-de� de� gerar� atmosferas� épicas� através� de�estruturas�simples�e�o�hipnotismo�dos�riffs�são�imagens� de� marca� do� duo� e,� mais� uma� vez,�provou-se�que�forma�não�equivale�a�substância:�apesar�de�todos�os�percalços�técnicos,�nada�se�aproximou�do�que�foi�criado�no�segundo�palco�do�SMSF�durante�a�actuação�dos�holandeses.Como�o�SMSF�não�hesita�em�lançar-se�nos�mais�arriscados�terrenos,�os�bracarenses�Mão�Morta�fizeram�uma�aparição�bem�particular:�longe�dos�concertos�demasiado�esquematizados�que�não�raras� vezes� apresentam� em� cenários� mais�“convencionais”,� a� banda� de� Adolfo� Luxúria�Canibal�optou�por�um�alinhamento�bem�mais�

Ilustrações�de�José�Maria�Quadros

continua�na�página�10

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8 | EnsaioA�BATALHA�|�Jornal�de�Expressão�Anarquista�|�nº�275�|�Mai./Jun.�2017

Revista� de� cultura� e� pensamento�destinada�ao�proletariado,�e�apesar�de�ter� como� programa� «dar� batalha� ao�

passado»,� as� credenciais� de� modernidade�artística� da� Renovação� são� francamente�insatisfatórias.� É� escusado,� e� provavelmente�incorrecto,� compará-la� com� a� revista� do�modernismo� por� excelência,� quase� sua�contemporânea,� a� presença� de� José� Régio,�Branquinho�da�Fonseca�e�João�Gaspar�Simões,�para� se� aperceber� do� desfasamento� que�existia.� Não� fora� a� colaboração� de� alguns�artistas� plásticos� nas� capas� da� publicação,�como� Stuart� Carvalhais,� Roberto� Nobre� ou�Carlos�Botelho�e,�não�fora�Ferreira�de�Castro,�a�Renovação�passaria�completamente�ao�largo�daquilo�que�se�propusera�em�termos�artísticos.�Porque�para�os�autores�deste�quinzenário,�arte�de� vanguarda� era� a� que� difundia� as� ideias�avançadas�‒�mesmo�que�essas� ideias�fossem�veiculadas�através�de�uma�estética�do�século�XIX.�O�número� inaugural,� com�a� capa�de�Alonso,�dum�academismo�sem�remissão,�deixa�antever�o�pior;�as�estampas,�os�extratextos�que�a�revista�oferece�são�duma�irrelevância�que�impressio-na.� A� colaboração� propriamente� literária�circunscreve-se�aos�sonetos�inconformistas�de�Bento�Faria�(um�poeta�de�50�anos�no�bilhete�de�identidade,�mas� talvez� ainda�mais� velho� em�personalidade�artística)� e�uns� contos,� alguns�interessantes,� de� Eduardo� Frias,� de� tons�naturalistas�à�Abel�Botelho.Há,�aliás,�um�texto�catastrófico,�em�modo�de�libelo� ‒� não� assinado� e� que� eu� tenho,� pelo�estilo,�boas�razões�para�arriscar�a�atribuição�da�sua�autoria�a�Jaime�Brasil�‒,�intitulado�«Da�“arte�moderna”»¹.� Nele� se� critica� «o� suposto�modernismo»�por�não�ter�suscitado�a�adesão,�mas�antes�a�indiferença�das�«massas�incultas»�‒�«”arte”�postiça,�grotesca,�que�não�lhes�dizia�nada»,� ao� contrário� do� que� sucedia� com� os�«cervejeiros�teutónicos�e�a�aristocracia�gerada�na� Nep»� (a� «Nova� Política� Económica»� de�Lénine,�o�seu�célebre�passo atrás);�estes�sim,�«delicia[vam-se]»� com� as� novas� tendências.�Para� o� articulista,� «Ninguém� com� cultura�artística�acreditou�jamais�nas�mistificações�dos�futuristas�e�dos�cubistas,�dos�impressionistas�e�dos� expressionistas,� dos� primitivistas� e� dos�super-realistas� e� demais� fauna�pretensiosa� e�insípida.»�A�«arte�verdadeiramente�moderna»�não� pode� fazer� tábua� rasa� do� passado,� o�«realizador�de�beleza»�«é�o�passado�mais�um»�e�a�arte�tem�de�ser�«didáctica�e�morigeradora»,�deve�ter�uma�«função�social»,�sendo�por� isso�«comunitária�e�democrática».�Então�o�que�será�a� arte� de� vanguarda,� na� perspectiva� deste�autor?�

«Em�arte,�como�em�tudo,�a�tradição,�o�passado�são� fonte� de� emoções� e� de� ensinamentos.�O�estatuário� de� hoje� busca� a� linha� flexuosa� da�Vénus� de� Milo,� a� alada� leveza� da� Vitória� de�Samotrácia,� a� viril� postura� do� Apolo� de�Belvedere,� para� escopo� e� inspiração,� como� o�libertário� sonho� com� a� clã� primeira,� com� a�comuna�medieva,�e�com�a�cidade-livre,�que�são�o�exemplo�histórico�da� sociedade� futuro,�por�que�luta.»�

O� resto� é� «exaltação� do� capitalismo,� do�industrialismo,�do�individualismo.»�Castro� estava� distante� desta� concepção,�apesar�de�alguns�pontos�de�contacto.�Para�ele,�também�o�modernismo� deveria� ser� integral,�quer� dizer,� arte�moderna� e� ideias� avançadas�andariam� de� par.� Era� esse� o� seu� programa�vanguardista.�No�primeiro�livro�publicado�em�Portugal,�o�já�citado�Mas...�,�autodenominou-se�«classicófobo»�(«Ser�classicófobo�é�sentir�no�âmago� vagalhões� de� revolta:� ‒� contra� a�involuntária�expropriação�que�nos�fizeram�os�

clássicos»²);�na�Renovação,�embora�respeitan-do�o�património�legado�pelos�antigos,�insurge-se� contra� a� cópia� académica� dos� modelos�clássicos,� ao� mesmo� tempo� que� critica� a�tendência�primitivista,�que�teria�em�Gauguin�e�Picasso� ‒�por� si� tão� admirados� ‒� alguns�dos�seus�expoentes,�e�que�pretendia�beber�na�arte�pretensamente� das� origens� o� tónus� que�faltava�à�arte�ocidental.�Para�Castro�‒�que�não�nomeia�nenhum�dos�pintores�atrás�referidos�--,�a�representação�da�figura�humana�«como�um�manipanso�africano»�‒�é�uma�atitude�«reaccio-nária»,� porque� «volvida� para� as� brenhas� do�passado�e�não�para�as�alvoradas�do�futuro»³.�Mas,�por�outro�lado,�«realizar�uma�Arte�que�só�

pudesse� ser� compreendida� e� justificada� no�passado,� é� algo� de� grotesco,� algo� que�ultrapassa�as�próprias�fronteiras�do�Ridículo.»⁴�Aqui,� Castro� distancia-se� do� articulista� atrás�referido,�e�ilustra�uma�das�suas�perplexidades,�de�que�fez�eco�quando�da�morte�do�seu�grande�amigo� e� companheiro� de� jornada� artística,�Roberto� Nobre,� num� maravilhoso� texto� de�1969,� em� que� o� evoca,� o� autor� de� A Selva�recorda� esta� época� e� a� tertúlia� em�que� com�Nobre,� Assis� Esperança� e� Mário� Domingues�defendiam�«não�somente�uma�nova�organiza-ção�social,�mas�também�a�arte�de�vanguarda,�como� seu� complemento.»� E� lembrava� com�alguma�amargura:�«Todos�os�outros�elemen-tos�ideologicamente�avançados,�alguns�deles�nossos�amigos�bem�perto�do�nosso�coração,�eram� conservadores� em� Arte� e� todos� os�revolucionários� em� Arte� eram� reaccionários�nas�ideias.»⁵

A�atenção�que�Castro�deu�à�arte�sua�contem-porânea,� na� breve� existência� da�Renovação,�não� pode� deixar� de� merecer� um� justificado�destaque.�Num�artigo�intitulado�«A�cenografia�da� vanguarda»⁶,� destaca� a� «inquietude� e� o�anse io � renovador» � de � a r t i s tas � como�Meyerhold,�Gordon�Craig,�Max� Reinhardt,� os�futuristas� italianos� Bragaglia,� Ricciardi,�Prampolini�além�da�obra�pictórica�e�literária�do�próprio� Marinetti,� que� lera� atentamente⁷;�noutro,�não�assinado,�sobre�«A�literatura�social�e� os� valores� literários� na� Rússia»⁸,� depois� de�enumerar� alguns� dos� grandes� nomes� da�literatura� desse� país,� de� Dostoievki� a� Gorki,�refere-se�empolgado�aos�autores�da�vanguar-

da,� provavelmente� exemplos� do� que� ele�próprio� almejava� para� si,� enquanto� escritor:�dos� poetas� Vladimir� Maiakovski� a� Alexander�Blok,�passando�pelo�romancista�Andrey�Bely;�finalmente,�o�cinema,�a�que�Castro�deu�tanta�importância,�cinéfilo�que�era,�como�proclamou�Roberto� Nobre, � tendo� inclusivamente�realizado� um� documentário,� recentemente�redescoberto.⁹Considerando� o� cinema� como� uma� obra� de�arte�completa,�que�congrega�«numa�só,�todas�as� outras,� conservando,� contudo� a� sua�independência»¹⁰,� sendo� errado� tomá-lo� por�«um�prolongamento�do�teatro�e�do�romance»,�ao�mesmo�tempo�que�deplorava�o�mercantilis-mo� de� grande� parte� do� cinema� americano,�passa�em�revista�alguns�dos�grandes�nomes�da�7.ª�Arte:�de� Jean�Epstein� a�Robert�Wiene,�de�Marcel� LʼHerbier� a� René� Clair,� passando� por�Griffith�e�Abel�Gance.�Castro,�além�de�valorizar�

o�cinema�como�trabalho�também�plástico,�via�também�nele�a�possibilidade�de�alargamento�dos� horizontes� estéticos� e� ideológicos� a� um�público�mais�vasto.Ferreira�de�Castro�era,�pois,�nesses�anos�vinte,�dos�poucos�escritores�‒�e�como�jornalista�dos�raríssimos�‒�a�filtrar�e�difundir�a�arte�contem-porânea�e�de�vanguarda.�Não�por�acaso,�José�Régio,�um�dos�espíritos�mais�brilhantes�da�sua�geração,�dez�anos�mais�tarde,�deixa�expresso�nas�páginas�da�presença,�a�sua�esperança�em�que� a� direcção� de� O Diabo,� que� Castro� iria�assumir�pudesse�enfim�voltar�a�dar�relevância�ao�jornal,�gasto�que�estava�por�falta�de�rumo�e�em�mãos�medíocres.¹¹Deixo�para�o�fim�algumas�breves�notas�sobre�o�ponto�de�vista�pessoal�que�Ferreira�de�Castro�muitas�vezes�aduz�nos�seus�textos,�o�que�revela�também�a�sua�forte�individualidade,�o�traço�de�carácter�romântico�de�rebeldia�(e,�nestes�anos�juvenis,�de�intemperança,�até)�que�o�caracteri-zaram.No�artigo�em�que�defende�as�férias�pagas,�logo�no� número� inaugural,� como� vimos,� escreve,�orgulhosa�e�desassombradamente:

«[...]�eu,�que�trabalho,�que�trabalho�sempre�com�volúpia,� com� ardor,� elegendo� a� pena� como�amante�de� todas� as�horas� e� a� todas� as�horas�fundindo-a� no� tinteiro,� como� num� turíbulo�negro�donde�brotam,�já�delineadas,�as�espirais�de� incenso� de� meu� sonho� interminável,� não�defendo�aqui�uma�conquista�original�revolucio-nária,�não�chancelada�ainda�por�nenhum�país.�/�Não�defendo�essa�conquista,�sob�um�ponto�de�vista�pessoal,�porque�há�muito�deitei�a�chave�do�mundo� exterior� pela� janela� do� meu� quarto,�como� queria� Zola,� para� ficar� a� sós� com� o�trabalho�‒�com�o�trabalho�que�é�uma�necessi-dade� para� a� inquietude� do� meu� espírito.�Defendo�essa�conquista�social,�sob�o�ponto�de�vista� colectivo,� e� embora� me� fosse� grato�defendê-la�sozinho�contra�tudo�e�contra�todos,�como�tenho�feito�com�tantas�outras�[...]».¹²��

Ferreira�de�Castro� lamenta�noutro�texto,�não�assinado,� intitulado� «Da� alegria� de� viver»,� a�mediocridade�do�país:�

«[...]�Marchamos�molemente� como� sonâmbu-los.�[...]�Andamos�aos�encontrões,�acotovelamo-nos�nos�carros,�empurramo-nos,�agredimo-nos�quase,�num�afã�de�chegar�depressa,� como�se�tivéssemos� alguma� coisa� de� importante� a�resolver.�[...]�somos�um�povo�atrasado�doente,�sem�educação�social,�um�povo�que�precisa�de�aprender� a� viver,� um� povo� que� necessita�absolutamente�do�entusiasmo�de�quem�tenha�arrojo� de� pensar� numa� grande� obra� de�renovação,�numa�pedagogia�de�encanto...»�¹³

Como�décadas�mais�tarde�‒�em�pleno�regime�de� Salazar� e� num� conclave� oposicionista� de�apoio� à� candidatura� de� Norton� de� Matos� ‒�lembrará,�numa�das�suas�poderosas�«Mensa-gens»,�«o�povo�melancólico,�que�anda�devagar�nas�ruas,�como�se�procurasse�encontrar�o�seu�próprio�destino,�que�anda�com�um�ar�modes-to,�resignado�e�com�esse�aspecto�de�mediocri-dade�colectiva�que�lhe�dá�o�seu�baixo�nível�de�vida».¹⁴�E�verificando�que�é�o�mesquinho�e�o�trivial� que� nos� desperta� a� atenção,� que�verdadeiramente� nos� interessa,� que� «não�temos� motivos� de� beleza»� nem� «preocupa-ções� elevadas», � escreve, � melancólico:�«Fazemos�anedotas�malévolas�sobre�a�vida�dos�outros,�tiramos�efeitos�ruidosos�da�derrocada�dos� sonhos,� dos� incidentes� de� uma� derrota,�como� se� os� ideais� e� o� combate� fossem�manifestações�de�estupidez,�justificativas�dum�riso�cáustico.»¹⁵A�morte,�que�é�um�tema�forte�na�sua�obra�‒�basta�lembrarmos�Eternidade�(1933),�e�o�início�do� seu�poderoso� «Pórtico»:� «Nós�não�quere-mos� morrer!� Nós� não� queremos� morrer!»� ‒�também� surge� nas� páginas� da� Renovação,�através�dos�aforismos:�«É�muito�doloroso�saber�que� todos� os� rebeldes� são� passivos� ante� a�

continua�na�próxima�página

Ferreira�de�Castro�e�a�RenovaçãoRicardo�António�Alves

segunda�parte

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9|EnsaioA�BATALHA�|�Jornal�de�Expressão�Anarquista�|�nº�275�|�Mai./Jun.�2017

morte...»¹⁶;� ou:� «Só� depois� de� se� escravizar� a�morte,�pode�existir�o�verdadeiro�homem�livre.�E�esse�homem�livre,�terá�ainda,�para�ser�livre,�de�dominar�a�vida.»¹⁷As�recordações�de�infância,�as�boas,�as�do�Zeca�‒�tal�era�o�seu�diminutivo�‒,�de�alegre�comu-nhão� com� a� natureza;� as� dolorosas,� que� lhe�traziam�à�memória�os�castigos�corporais�‒�tudo�isso� ele� lembrou� já� na� velhice,� no� texto�evocativo� «A� aldeia� nativa»,� incluído� nʼOs Fragmentos,�mas�também�aqui,�nas�páginas�da�Renovação:�

«Eu�nasci�em�Maio�e�o�meu�primeiro�olhar�deve�ter�sido�para�uma�flor�[...]�/�Só�mais�tarde�eu�vi�a�montanha�que�ficava�por�detrás�da�minha�casa�‒� e� os� homens�que�passavam�e� aplaudiam� a�minha�mãe�quando�esta�me�castigava,�dizendo:�/��--�Nessa�idade�é�que�se�principia�a�ensiná-los...�/� Esta� recordação� nunca�mais� fugirá� do�meu�cérebro�[...].�/�Eu�tinha�seis�anos�‒�e�já�tinha�um�jardim...� Dois� metros� de� terra� junto� a� um�combro,� que� eu� vinha� cultivar� quando�abandonava� os� bancos� escolares.� [...]� /� Lírios,�rosas�e�margaridas,�desabrochadas�dificilmente�e�uma�velha�macieira�[...]�constituíam�o�grande�encanto� da� minha� infância� já� distante.� /� A�minha�mãe�elogiava-me�aquela�devoção�para�as�flores�e�nesses�elogios�eu�encontrei�os�raros�momentos� de� felicidade� de� toda� a� minha�vida...»¹⁸

Como�já�ficou�escrito,�Ferreira�de�Castro�sentiu-se�um�expatriado,�lá�longe�na�selva�amazónica,�entre�os�12�e�os�16�anos.�Sem�ter�escrito�um�livro� de� memórias,� é� autor� de� vários� textos�evocativos�que�são�também�algumas�das�suas�melhores�páginas.�Na�«Pequena�História�de�“A�Selva”»,� de� 1955,� redigida� para� a� edição�comemorativa�dos�25�anos�de�publicação�do�romance,� ilustrada� pelo� grande� Portinari,� o�escritor�lembrava�a�ânsia�de�fuga�por�que�fora�tomado�no�seringal:�«[...]�não�houve�um�só�dia�em�que�não�desejasse�evadir-me�para�a�cidade,�libertar-me�da�selva,�tomar�um�barco�e�fugir,�fugir� de� qualquer� forma,� mas� fugir!»¹⁹;� ou�quando�em�«A�aldeia�nativa»,�um�dos�escritos�do� livro� póstumo� Os Fragmentos,� lembrava�que�uma�das�maiores�angústias�que�tivera�na�vida�era� a�de� acordar� cada�dia� sem� saber� se�alguma�vez�retornaria�a�casa.²⁰No�texto�sobre�o�degredo,�a�que� já�aludi,�há�uma� tocante� passagem� sobre� esse� período�passado�no�Brasil:�

«Quem� já� meditou� deveras� sobre� o� trágico�significado�da�palavra�degredo?�[...]�/�Quando�li,�encostado� ao� primeiro� marco� da� minha�adolescência� ‒� recordo-o� tr istemente,�sinceramente� ‒� esse� pueril� drama� de� Camilo�que�é�«O�[sic]�Amor�de�Perdição»,�a�cena�que�mais�me�impressionou,�que�nublou�de�lágrimas�meus�olhos,�foi�aquela�em�que�o�protagonista�tem� apenas� por� destino� o� degredo� e� por�perspectiva�esse�barco�que�o�há-de�levar�e�que�se�baloiça,� indiferente�à�dor,�sobre�as�mansas�águas�do�Douro.�/�E�quando�há�dez�anos,�minha�vida�difícil�e�agitada�me� levou�várias�vezes�às�enseadas�da�Guiana�Francesa²¹,�eu�quedava-me�

largo�tempo�a�seguir�angustiosamente�todos�os�gestos�dos�degredados�‒�os�gestos�de�todos�os�que�a�França�envia�periodicamente�para�aquele�sepulcro� de� vivos.� /� Eu� ignorava� seus� delitos,�desconhecia� o� ritmo� de� seus� corações� ‒� e�contudo� para� eles� ia� toda� a� minha� ternura,�porque�eu�também�era�um�exilado,�e�emigrante�desprotegido�que�a�vida�fazia�rolar�entre�todos�os� seus� cotovelos.� Ia� para� eles� toda� a�minha�ternura,�porque�eu��abrigava-me�também�sob�o�

mesmo�sol�da�proscrição�e�porque�eles,�ali,�na�Caena�ou�em�Saint�George,�perante�o�Atlântico�ou� à� margem� do� Oyapock,� expiavam� crimes�muitas� vezes� fomentados� pela� própria�sociedade�ou�por�instintos�ancestrais,�que�essa�sociedade� nunca� se� preocupara� em� corrigir�pela�educação.�/�E�assim,�desde�esse�tempo�já�longínquo� em� minha� curta� vida,� a� palavra�

degredo,�sempre�que�a�leio,�revela-me�todo�o�seu� sinistro� significado� e� causa-me� uma�profunda�sensação�de�horror!»²²

Termino� com� estas� observações:� O� forte�pendor�anarquista�e�revolucionário�de�Ferreira�de� Castro� manifestou-se� claramente� neste�período� de� estertor� da� I� República,� que� ele�testemunhou�de�caneta�na�mão,�defendendo�no�primeiro�número�saído�após�o�28�de�Maio,�

ironicamente,�que�«chega[ra]�o�momento�em�que� o� próprio� conceito� de� Evolução� e[ra]�obrigado�a�evoluir»²³,�no�sentido�da�Revolução�‒� subentende-se...� Para� que� tal� sucedesse,�contava�com�os�escritores�e�outros�intelectua-is,� a� quem� «compet[ia]� soltar� o� grito� de�protesto,� desfazendo� o� ninho� onde� a� víbora�reaccionária�vai�distendendo�os�seus�anéis.»²⁴�

Ideias�que�o�acompanharão�sempre�ao�longo�de�toda�a�obra.Dos�entusiasmos�juvenis�trazidos�pelas�leituras�de� Nietzsche� e� Stirner²⁵,� evoluiu� para� uma�posição�menos�individualista�e�mais�colectiva�‒�ou�comunista�libertária�‒�inspirada�principal-mente�em�Kropotkin.�Mas�sempre�livre�e�com�independência,� sem� apóstolos� nem� tutelas,�pois� como� ele� escreveu� nas� páginas� da�Renovação,� «só� é� verdadeiramente� livre�aquele�que�não�é�discípulo,�aquele�que�não�é�fiel , � aquele� que� não� tem� mestre� nem�sacerdote.»²⁶

¹�[Jaime�Brasil�?],�«Da�“arte�moderna”»,�Renovação,�n.º�8,�Lisboa,�15�de�Outubro�de�1925,�pp.�2-3.²�Ferreira�de�Castro,�«Pedras�ao�poço»,�Mas...,�Lisboa,�1921,�p.�25.³�Ferreira�de�Castro,�«Arte�moderna»,�Renovação,�n.º�17,�Lisboa,�1�de�Março�de�1926,�p.�7.�⁴�Ibidem.⁵� Ferreira� de� Castro,� «Vida,� sonho� e� drama� de� Roberto�Nobre»,� apud Correspondência (1922-1969),� Lisboa,�Editorial� Notícias� e� Câmara� Municipal� de� Sintra,� 1994,�p.�238.⁶� Ferreira� de� Castro,� «A� cenografia� da� vanguarda»,�Renovação,�n.º�21,�Lisboa,�1�de�Maio�de�1926,�pp.�15-16.⁷� Ver� Ricardo� António� Alves,� «Ferreira� de� Castro,� entre�Marinetti� e� Kropotkine»,� O Escritor,� Lisboa,� Associação�Portuguesa�de�Escritores,�1998,�pp.�175-180.⁸� Ferreira� de� Castro,� «A� literatura� social� e� os� valores�literários� na� Rússia»,� Renovação,� n.º� 24,� Lisboa,� 15� de�Junho�de�1926,�pp.�1-2.⁹� Em� Singularidades do Cinema Português� (Lisboa,�Portugália�Editora�[1964],�pp.�135-136),�Nobre�refere-se�ao�filme� «Estátuas� de� Portugal»,� arquivado� na� Cinemateca�Portuguesa�/�Museu�do�Cinema.¹⁰�Ferreira�de�Castro,�«O�cinema�moderno�e�o�seu�papel�artístico� e� educador»,�Renovação,� n.º� 21,� Lisboa,� 15� de�Maio�de�1926,�pp.�10-11.¹¹�José�Régio,�Páginas de Doutrina e Crítica da�presença,�Porto,�Brasília�Editora,�1977,�p.�306.¹²�Ferreira�de�Castro,�«Ante�os�pórticos�do�estio�‒�Lutemos�pelas�férias�dos�que�trabalham!»,�Renovação,�n.º�1,�Lisboa,�2�de�Julho�de�1925,�pp.�10-11.¹³� [Ferreira�de�Castro],�«Da�alegria�de�viver»,�Renovação,�n.º�1,�Lisboa,�2�de�Julho�de�1925,�p.�12.�¹⁴�«Mensagem�de�Ferreira�de�Castro»,�Campanha Eleitoral da Oposição – Depoimentos (Terceira Série),� Lisboa,�Serviços�Centrais�da�Candidatura,�1949,�pp.�89-98.¹⁵�Ibidem.¹⁶�Ferreira�de�Castro,�«Ideologia»,�Renovação,�n.º�6,�Lisboa,�15�de�Setembro�de�1925,�p.�15.¹⁷�Ibidem.¹⁸� Ferreira�de�Castro,� «As�flores� como�eterno�motivo�de�beleza»,�Renovação,�n.º�21,�Lisboa,�17�de�Maio�de�1926,�p.�21.¹⁹� Ferreira� de� Castro,� A Selva,� 38.ª� edição,� Lisboa,�Guimarães�&�C.ª�Editores,�1980,�p.�18.²⁰�Ver�Ferreira�de�Castro,�«A�aldeia�nativa»,�Os Fragmentos,�2.ª�edição,�Lisboa,�Guimarães�&�C.ª�[1974],�pp.�45-46.²¹�Guiana.²²� Ferreira� de� Castro,� «A� caminho� do� degredo� e� as�responsabilidades� da� sociedade»,� Renovação,� n.º� 10,�Lisboa,�15�de�Novembro�de�1925,�p.�6.�²³� Ferreira� de� Castro,� «A� ideia� evolutiva� da� Justiça»,�Renovação,�n.º�23,�Lisboa,�1�de�Junho�de�1926,�p.�2.²⁴� Ferreira� de� Castro,� «Os� intelectuais� e� as� ditaduras»,�Renovação,�n.º�18,�Lisboa,�15�de�Março�de�1926,�p.�1.�²⁵�Ver�[Ferreira�de�Castro]�«O�papel�da�águia�na�filosofia»,�Renovação,�n.º�8,�Lisboa,�15�de�Outubro�de�1925,�pp.�1-2.²⁶�Ferreira�de�Castro,�«A�morte�dos�apóstolos»,�Renovação,�n.º�22,�Lisboa,�15�de�Maio�de�1926,�p.�2.

O�anti-pedagogo

edro�García�Olivo�(Fuente-Álamo,�1961)�Pé � uma � figu ra � nece s s a r i amen te�fascinante�para�quem�ainda�não�afogou�

de�vez�nos�néons�a�capacidade�de�se�espantar:�depois� de� trabalhar� como� investigador� e� de�uma�passagem�pelo�Nicarágua,�onde�ajudou�os� sandinistas,� foi� professor� anticapitalista� e�reformista� durante� largos� anos;� libertário,�porém,� foi� apreendendo� as� contradições�insanáveis�da�ideia�de�ensino�institucionaliza-do�e�deixou�crescer�uma�raiz�de�ódio�ao�seu�mister.�Hoje,�abandonado�o�ensino,�vive�como�autor mendicante� numa� aldeia� perdida� da�Comunidad� Valenciana,� onde� é� pastor� de�

cabras�e�se�dedica�à�destruição�sistemática�da�ideia�de�ensino�e�da�ideia�de�estado:�é�o�anti-pedagogo.A�novíssima�editora�Textos�Ígneos�estreou-se�com� dois� livros� de� Olivo:� O Irresponsável�(2016),� originalmente� editado� em� 2000,� e�O educador mercenário. Para uma crítica radical das escolas da democracia� (2017� [2009]).�O Irresponsável�é�uma�obra�fora�das�garras�das�classificações� de� género� -� nem� ensaio,� nem�tratado,� nem� romance,� nem� panfleto,� nem�autobiografia,� nem� proposta� poética,� nem�uma� mistela� modernaça� de� todas� estas.� Da�s omb r a � d a � fi g u r a � a r q u e t í p i c a � d ʼ O I r r e s p o n s á v e l � r a s t e j am � o u t r a s � - � O�Esquizofrénico,� O� Suicida,� O� Comediante,� O�Apátrida,�O�Libertino,�O�Desertor,�O�Criminoso�-� para� ajudar� a� mapear� todos� os� modos� de�oposição�à�ideia�e�prática�da�Escola.�É�um�livro�áspero,�violentíssimo,�escrito�num�estilo�muito�devedor� de� Nietzsche,� e� quase� sádico� na�

demolição�sistemática�de�evidências�cristaliza-das.�A�sua�demonstração,�se�não�acertada,�pelo�menos�muito� eloquente,� da� impossibilidade�quasi� física� de� existência� de� uma� escola�libertária� dentro� do� bunker� da� democracia�força� um� demónio� nas� sinapses� do� leitor:�porque�assim�sendo�nem�escola�nem�o�resto,�e�no�fim�da�leitura�só�nos�sobra�a�recusa�furiosa�porque� amedrontada� ou� a� acção� destrutiva,�imediata�e�sem�limites.�O Educador Mercenário...�é�um�apanhado�de�respostas�dadas�por�Olivo�em�várias�entrevis-tas�concedidas�ao�longo�dos�anos.�Dividido�em�núcleos� temáticos,� apresentado� numa�linguagem� muito� diferente,� porque� menos�metafórica�e�tortuosa,�da�de�O Irresponsável,�é�talvez�a�melhor�porta�para�se�aceder�à�obra�do�anti-pedagogo,� essencial� no� seu� radicalismo�sem�concessões.�Saudemos� Olivo� e� a� Textos� Ígneos� pela�coragem�e�por�tudo.

António�da�Cruz

O�educador�mercenárioPara�uma�crítica�radical�das�escolas�da�democraciaPedro�Garcia�OlivoTextos�ÍgneosLisboa,�2017,�126�pp.

O�IrresponsávelPedro�Garcia�OlivoTextos�ÍgneosLisboa,�2016,�144�pp.

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10 | CulturaA�BATALHA�|�Jornal�de�Expressão�Anarquista�|�nº�275�|�Mai./Jun.�2017

Durante� a� feira� do� livro,� a� Associação�Chili�com�Carne�e�a�Thisco,�em�parceria�com� a� Zerowork� Records,� lançaram�

nas� livrarias� o� oitavo� título� da� colecção�Thiscovery�CCChannel.�Trata-se�do�split book Corta-e-cola. Discos e histórias do punk em Portugal (1978-1998),�de�Afonso�Cortez,�e�Punk Comix. Banda desenhada e punk em Portugal,�de�Marcos�Farrajota.Como�a�Chili� já�habituou�os�seus� leitores,� foi�novamente� editado� um� excelente� livro� do�ponto� de� vista� gráfico,� o� que� nos� permite�afirmar�com�grande�certeza�que�esta�é�uma�das�poucas�chancelas�portuguesas�que�continua�a�preservar� a� ideia� do� livro� enquanto� objecto.�Porém,�seria�injusto�considerar�que�a�riqueza�do� livro� se� deve� exclusivamente� à� sua�componente� ilustrativa� e� à� bonecada� que�acompanha� o� texto:� ambos� os� estudos� são�preciosos� e� sumarentos,� revelando� uma�investigação� criteriosa� e� mais� intensiva� que�exaustiva.� O� resultado� é� um� brilhante�mapeamento�historiográfico�do�punk�e�da�sua�relação�com�a�banda�desenhada�em�Portugal.Afonso�Cortez,� agora�em�melhor� companhia�que� no� volume� Portugal Eléctrico - contra-cultura rock em Portugal, 1955-1982�(Groovie�Records,�2013),� realiza�um�estudo�minucioso�sobre�a�evolução�do�género�e�da�cultura�que�lhe� está� adjacente,� dividindo-a� em� quatro�momentos-chave.� O� primeiro� revela-se� pela�importação� do� punk� inglês� para� um� país�conservador�e�acanhado,�confrontado�com�a�desilusão�de�uma�revolução�que�acabou�por�

não�o�ser.�A�lógica�que�prevaleceria�por�cá�seria�a�de� tentar� replicar�o� sucesso� comercial�que�uns�Sex�Pistols�ou�The�Clash�tiveram�na�Grã-Bretanha,� através� da� apropriação� do� punk�enquanto� nicho� mercantilizável� e� lucrativo.�Numa�década�de�1970�onde�o�acesso�à�música�de� uma� parte� significativa� dos� curiosos� era�ainda�determinado�pela�publicitação�feita�pela�arbitrariedade�estética�dos�radialistas,�António�Sérgio�(que�trabalho�respeitável�fazem�agora�os� seus� sucessores?)� surge� como� figura� que�tenta�impulsionar�a�difusão�deste�género�em�Portugal,� fosse� através� das� suas� colunas� na�Música & Som,�fosse�através�do�seu�programa�Rotação� ou,� principalmente,� pelo� trabalho�editorial�que�realizava�na�não-licenciada�Pirate�Dream�Records�ou,�um�pouco�mais�tarde,�na�já�legal� Nova.� Isso� permite� dar� a� conhecer�projectos� mais� ou� menos� desconhecidos�como� seria� o� caso� dos� Leitmotiv,� no� qual�participa�um�Paulo�Nozolino�recém-chegado�de�Londres,�onde,�conta�a�lenda,�teve�relações�próximas� com� Sid� Vicious,� ou,� no� campo�oposto�de�reconhecimento�social,�os�Aqui�d'el�Rock�ou�os�Corpo�Diplomático� (chamamos�a�atenção�para�a�belíssima�capa�pós-irónica�do�Música Moderna),� estes� já� a� preparar� o�mergulho�no�new�wave,� que� se� completaria�com� a� total� alteração� de� imaginário� que�emanava�dos�Heróis�do�Mar.Como� o� sucesso� comercial� e� a� lógica� do�mercado�prevalecem�acima�de�tudo,�no�final�da�década�de�1970�a�nova�galinha�dos�ovos�de�ouro�passa�a� ser�o�não-tão-novo� rock�portu-guês.� Na� verdade,� o� punk� não� teria� gerado�assim� tanto� dinheiro� (há� ainda� algumas�tentativas� de� abrir� a� torneira,� como� o� senti-mentalão�London Town,� de�Derrick�Borte),� o�que�levaria�um�desanimado�Luís�Filipe�Barros�a�sentenciar� no� seu� Rock em Stock� (há� uma�excelente� tese� de� mestrado,� de� 2016,� que�incide�sobre�este�programa)�que�o� futuro�da�música�passa�pelo�hard�rock�e�pelo�new�wave.�A�onda�muda�e�o�investimento�da�máquina�de�propaganda� vira-se� para� a� "verdadeira�caquinha�de�bébé�mal�confeccionado"�que�foi�este� novo� rock� português,� que� muito� se�apoiou� na� aberrante� Lei de Protecção da Música Portuguesa na sua Difusão pela Rádio e Televisão� para� construir� a� sua� charneca� a�partir� de� financiamentos� e� apoios� culturais,�que�conferiu�aos�seus�músicos�a�vida�confortá-vel� que� qualquer� medíocre� ambiciona�alcançar� (actualmente,� a� promoção� musical�continua� a� preferir� versos� confrangedores�como�"Só�quero�sobreviver�ao�Tarrafal/Eu�só�quero�sobreviver",�que�uma�Fatiloquência).Durante�a�década�de�1980,�já�sem�a�visibilidade�mediática� que� lhe� foi� garantida� de� forma�breve,�o�punk�revitaliza-se�em�Portugal�através�da� recepção� do� anarco-punk� de� Crass� e�Subhuman.�Assim,�nasce�uma�segunda�vaga�do� género,� com� Peste� &� Sida� e� com� a� Ama�Romanta� de� João� Peste,� responsável� pela�edição� de� álbuns� de� Mler� Ife� Dada,� Pop�

Dell'Arte,�Mão�Morta,�Anamar�ou�Telectu�(faz�falta� um� ensaio� exaustivo� sobre� o� belíssimo�trabalho� editorial� de� João� Peste� durante� a�década� de� 1980� e,� quem� sabe,� um� dos�próximos� livros� da� colecção� Thiscovery�CCChannel�poderá�ser�sobre�esse�tema.�Cortez�tem�claramente�unhas�para�essa�tarefa).�Com�os�Peste�&�Sida�há�um�enriquecimento�gráfico�que�completa�o�seu�trabalho�musical:�os�dois�melhores� exemplos� são� a� capa� de� Veneno�(1987)�e�o�desdobrável�que� sai� com�Peste & Sida é que é�(1990),�da�autoria�da�Luís�Varatojo.�É�no�final�da�década�de�1980�e�na� transição�para�os�noventa�que�os�Mata-Ratos�emergem�na�cena�musical,�com�a�gravação�da�primeira�cassete�e�primeiro�LP.�Sobre�a�polémica�relação�entre� a� banda� e� a� subcultura� (em� todos� os�sentidos�que�o�leitor�possa�imaginar)�neo-nazi�dos� subúrbios� da� capital,� importa� ler� o�interessante� testemunho� de� Nuno� Saraiva�sobre� a� capa� que� desenhou� para� Rock Radioactivo�(1990).A�entrada�no�meio�de�distribuição�massificado�era� ainda� um� objectivo� de� algumas� bandas�desta�segunda�vaga.�Os�Peste�&�Sida�editam,�por�exemplo,�Portem-se bem�(1989)�e�Peste & Sida é que é�(1990)�pela�Polygram�(dois�anos�depois,�da�mesma�editora,�temos�o�importante�álbum�Uma vez na vida�de�Dino�Meira).�Será�durante�os�noventa�que�se�iniciará�o�boicote�explícito�à�distribuição�comercial�e�a�tentativa�de�construir�um�circuito�independente.�Talvez�seja�esta�a�raiz�ideológica�da�terceira�vaga�do�punk�em�Portugal,�que�se�projectará�musical-mente�em�bandas�como�Alcoore,�Subcaos�e�X-Acto.� Estes� últimos� serão� de� uma� tremenda�relevância�para�a�importação�e�divulgação�do�anti-especismo�e�do�estabelecimento�de�um�movimento�straight�edge�no�seu�círculo,�que�gradualmente� se� identificará� mais� com� o�hardcore,�até�se�concretizar�a�definitiva�cisão�com�o�punk.�Será�deste�cisma�que�nascerá�a�quarta� vaga,� já� no� final� do� século,� com�Renegados�de�Boliqueime�e�a�apologia�de�uma�cultura� da� libertinagem� absoluta,� rompendo�com�o�puritanismo�que�emergia�da�cena�core.Esta� é� apenas� uma� pequena� súmula� do�impressionante� ensaio� que� Afonso� Cortez�realizou� e� que� é� incomparavelmente� mais�digno�que�o�paupérrimo�As palavras do punk�(Alêtheia�[!!],�2015),�escrito�em�co-autoria�com�o�eminente�ministro�dos�negócios�estrangei-ros�e�que�é�o�resultado�de�um�longo�projecto�de�investigação�universitária�da�universidade�do� Porto.� Como� se� o� texto� de� Cortez� não�bastasse,� a� Chili� oferece� ainda� mais� um�excelente� texto� sobre� a� relação� entre�banda�desenhada� e� punk,� da� lavra� de� Marcos�Farrajota.�O�trabalho�de�Farrajota�beneficia�muito�do�seu�conhecimento� do� acervo� da� Bedeteca� de�Lisboa,� que� lhe� permite� entrar� em� contacto�directo�com�a�história�da�banda�desenhada�em�Portugal,�desde�o�António Maria�de�Bordalo�até�às�fanzines�artesanalmente�feitas�em�cima�de�

um�bidé�de�uma�okupa�(bidés�numa�okupa?).�Além�disso,�o�também�editor�da�colecção�dá�ao�leitor� algumas� referências� bibliográficas� (a�contra-gosto)�preciosas�-�como�é�o�caso�de�The Philosophy of Punk: More than noise� (Craig�O'Hara,� AK� Press,� 1999)� -,� que� servem� de�complemento�ao�livro�que�temos�em�mãos.�Ao�curto�apanhado�histórico�da�edição�de�banda�desenhada�em�Portugal�(à�qual�este�jornal�está�intimamente� ligado:� é� bom� relembrar� que�Stuart�Carvalhais�não�é�só�o�autor�do�Quim e Manecas,� mas� também� o� ilustrador� de� 66�gravuras�de� crítica� social� para� o�Suplemento Literário e Ilustrado de� A� Batalha,� publicado�entre� 1923� e� 1927),� junta-se� uma� reflexão�sobre� a� integração� do� imaginário� punk� nas�tiras� publicadas� em� revistas,� jornais,� suple-mentos� e� livros.� Esse� é� o� caso� da� Violeta� de�Fernando� Relvas,� apresentada� no� Se7e,� e�editada� pela� El� Pep� em� 2012� ou� das� bds� de�Diniz�Conefrey�no�Blitz�no�início�dos�noventas.�Mais�recentemente,�há�que�mencionar�a�zine�Mesinha de Cabeceira,� o� trabalho� de� José�Smith�Vargas�sobre�a�Fontinha,�a�colaboração�de� Sara� Gomes� e� André� Coelho� para� a�antologia�Destruição�(Chili�com�Carne,�2010)�e�os�dois�livros�de�Teresa�Câmara�Pestana�Aqui Babilónia�e�Continuamos aqui.�E�além�destes�dois�ensaios,�não�há�mais�nada?�Há.�Um�CD�onde�colaboram�Putan�Club,�dUAS�sEMIcOLCHEIAS� iNVERTIDAS,� Presidente�Drógado�ou�Albert�Fish.�E�fica�tudo�dito?�Talvez�não,�mas�este�trabalho�é�já�muito�importante.�Resta� fazer�um�estudo�sobre�as�últimas�duas�décadas� do� punk� em� Portugal.� Por� que� não�fazê-lo�nas�páginas�d'A Batalha,�Afonso?

Banda�desenhada�e�biqueiros�anarcas!Professora�Marcivânia

Corta-e-colaDiscos�e�histórias�do�punk�em�Portugal�(1978-1998)Afonso�CortezChili�com�Carne,�Thisco�e�Zerowork�Records2017,�177�pp.

Punk�ComixBanda�desenhada�e�punk�em�PortugalMarcos�FarrajotaChili�com�Carne,�Thisco�e�Zerowork�Records2017,�78�pp.

musculado� que� o� habitual.� O� final� com�“Arrastando� o� seu� Cadáver”� envergonharia�muitas� bandas� de� doom� que� tentam� criar�ambientes�desoladores�e/ou�opressivos.O� último� dia� do� festival� tinha� bem� menos�interesse� que� os� anteriores,� sendo� que�praticamente�só�as�actuações�de�Malthusian�e�Wolfbrigade� foram� dignas� de� registo.� Os�primeiros�com�uma�devastadora�demonstração�de�death/black�metal�com�claras�influências�de�Portal� (o� que,� por� si� só,� é� um� elogio);� e,� os�segundos,� a� não� desiludirem� quem� estava� ali�para�ver�uma�das�mais�interessantes�bandas�de�crust�da�última�vintena�de�anos:�lírica�apontada�ao� opressor,� atitude� sem� qualquer� tipo� de�

contemplações� e,� no� geral,� um� concerto� sem�mácula.O�SMSF�nem�sempre�é�o�festival�perfeito,�mas�quando� acerta� é� o� melhor� sítio� para� ouvir�música� em� Portugal.� Longe� das� feiras� de�vaidades,�das�“cenas”�e�das�ofertas�gourmet.�A�presença� no� cartaz� de� clichés� em� forma� de�banda�tem�vindo�a�diminuir�mas�é�improvável�que�desapareça:�talvez�seja�o�preço�a�pagar�por�tudo� o� resto� porque,� afinal,� “o� público� é� que�manda”,� mesmo� quando� se� está� perante� o�festival� mais� (positivamente)� alheado� daquilo�que� o� seu� público-alvo� espera.� Que� assim�continue�por�muitos�e�bons�anos.

Wolfbrigade�no�SMSFFotografia�por�Pedro�Roque/Eyes�of�Madness!

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11|Poesia�e�Edições

MIKHAIL�BAKUNINDeus�e�o�Estado�(6,00)Instrução�Integral�(6,00)

GIOVANNI�BALDELLIAnarquismo�Social�(5,00)

CH�BAY�e�CH�WALKERDesobediência�Civil�‒�Teoria�e�Prática�(2,00)

Edit.�MOK�CHIU�e�J�Frank�HARRISONVoices�from�Tianamen�Square��(17,00)

EDUARDO�COLOMBOAnálise�do�Estado�e�O�Estado�como�Paradigma�do�Poder�(6,00)Anarquismo,� obrigação� social� e� dever� de�obediência�(6,00)

ALBERT�COSSERYA�Violência�e�o�Escárnio�(13,00)Mendigos�e�Altivos�(15,00)

RONALD�CREAGHO�dia�em�que�o�mundo�mudou�(8,00)

LUCE�FABBRIO�Caminho�(3,00)

MANUEL�FIRMONas� trevas� da� longa� noite� (Da� Guerra� de�Espanha�ao�campo�do�Tarrafal�(17,00)

ALBERTO�FRANCOA�Revolução�é�a�Minha�Namorada�(7,48)

HERMÍNIO�FREITAS�NUNESAntecedentes�sociais�do�18�de�Janeiro�de�1934�na�Marinha�Grande�(15,00)

TONY�HARRIONV.��(9,80)

GASTON�LEVALEl�Estado�en�la�Historia��(7,48)

JACK�LONDONContos�do�Extremo�Norte�(14,00)Contos�Fantásticos�(18,00)Contos�do�Pacífico�(14,00)O�Cruzeiro�do�Snark��(14,00)O�Filho�do�Lobo�(14,00)O�Povo�do�Abismo�(12,00)

FLORES�MAGÓNA�Revolução�Mexicana�(6,00)

ERRICO�MALATESTAAutoritarismo�e�Anarquismo�(6,00)

MARGARETH�RAGOFoucault,�História�e�Anarquismo�(8,00)

J.M.�RAYNAUDApelo� à� unidade� do� movimento� Libertário�(6,00)

RAMÓN�SAFÓNO�Racionalismo�Combatente.�Francisco�Ferrrer�y�Guardia�(6,00)

ALEXANDRE�SAMISMinha�Pátria�é�o�Mundo�Inteiro.�Neno�Vasco,�o�Anarquismo�e�o�Sindicalismo�Revolucionário�em�dois�mundos�(25,00)

SILVA�MENDESSocialismo�Libertário�ou�Anarchismo�(15,00)

STEPHEN�SCHECTERPolítica�de�Libertação�Urbana��(2,00)

HAROLD�B�WILSONDemocracia�no�Trabalho��(2,00)

Estas�e�outras�obras�encontram-se�à�venda�na�sede� do� CEL,� Azinhaga� da�Alagueza,� Lote� X,��c/v�-�Esq�1800-005�LISBOA,�aos�sábados,�entre�as�15�e�as�18�horas

Encontram-se�também�à�venda�as�revistas������A�Ideia�e�Letra�a�Letra

A�Alternativa�Anarquista�(Júlio�Palma)

Agricultura�Biológica�(Colectânea)�Esgotado

Anarquismo�e�Política:�Revisão�critica�de�Camillo�Berneri�(Stefano�dʼErrico)

Autogestão,�Gestão�Directa,�Gestão�Operária�(M.Joyeux)

Centenário�do�nascimento�de�Emídio�Santana�-�Transcrição�das�sessões

Colectânea�(Liberto�Sarrau)

Contra�as�Touradas�(Colectânea)�Esgotado

O�Desafio�Islâmico�-�2ª�Edição�(Júlio�Palma)�Esgotado

3,50

2,50

5,00

1,50

6,50

2,50

2,00

3,50

2,50

3,50

2,50

1,80

4,50

2,50

2,50

4,50

Memória�1º�Ciclo�-�Textos�das�comunicações�EsgotadoMemória�2º�Ciclo�-�Textos�das�comunicaçõesMemória�3º�Ciclo�-�Textos�das�comunicações�

6,006,006,00

6,006,006,00

Memória�4º�Ciclo�-�Textos�das�comunicações�Memória�5º�Ciclo�-�Textos�das�comunicações�Memória�6º�Ciclo�-�Textos�das�comunicações

A�Doutrina�Anarquista�ao�Alcance�de�Todos�(J.Oiticica)�Esgotado

Ecos�da�Semana.�A�arte,�a�Vida�e�a�Sociedade�(F.de�Castro)�Esgotado

Eliseu�Réclus�(P.Kropotkin,�J.Grave,�L.Galleani�e�E.�Costa)�Esgotado

Porque�Sou�Anarquista�(R.�Rocker)�Esgotado

Portugal�dos�Pequeninos�(Fernando�J.�Almeida)

Sobre�Jornalismo�(Jaime�Brasil)�Esgotado

A�Verdade�Sobre�Cronstadt�-2.ª�Edição�(S.M.�Petritchenko)�Esgotado�

Voz�que�Clama�no�Deserto�(Jaime�Brasil)

Cadernos�dʼ�A�Batalha

À�venda�na�nossa�livraria

Cadernos�do�«Círculo�Joaquina�Dorado�e�Liberto�Sarrau»

A�BATALHA�|�Jornal�de�Expressão�Anarquista�|�nº�275�|�Mai./Jun.�2017

Edital�do�quotidiano lisboa

Sobre�o�exercício�de�acreditar�na�rebentação.

O�desafio�dos�dias

corredores

Desiludida�está�a�esperança�no�seu�aposentoem�já�severa�tristeza�e�tão�cruel�abandonopelo�ínvio�suceder�de�peripécias�a�contentodos�amanuenses�que�têm�no�poder�o�seu�patronoe�na�viral�tradição�de�negócios�e�influênciaso�sistema�procura�na�casta�sem�coluna�verticalos�ledos�bobos�mais�viciosos�nas�prepotênciascom�que�enchem�a�alma�e�tornam�o�inferno�normal

Procurados�em�vão�são�os�editais�da�dignidadepelos�palácios�mais�árduos�da�ébria�devassidãooportunistas�são�coveiros�de�Abril�na�voracidadedestes�recentes�primórdios�da�incauta�governaçãoe�de�tais�maravilhas�não�admira�esta�inquietudecom�que�o�presente�exaurido�tramita�em�julgadotão�amiúdes�vezes�apenas�socorrido�pela�virtudecom�que�sorri�às�condenações�de�que�é�acusado.

e�ele�disse-lhe�furiosamenteNão�pá!�Vamos�estourar�o�dinheiro�todovamos�deixar�tudo�o�que�temos�aqui,�meu�caroa�noite�é�nossa,�amigo,�vamos�estourar-nos� Mas�como�assim,�se�ainda�agora�nos�conhecemose�agora�penso,�calmamente,�e�me�parece�tudo�um�acto�demasiado�típico� Mas�assim�seguiram,�alimentando�as�delíciasesporádicas,�mutáveis�e�transitórias�da�gentrificaçãotripla�adjectivação� e�ele�disse-lhe�furiosamente� Lisboa�é�nossa�agora,�amigo...�não�pá!Vamos�estourar�o�dinheiro�todo

Procurar�a�desidentificação.Deixar�rendida�a�cara�que�tocastejá�não�sei�em�que�quadranteda�sedução�óssea�das�paredes.Há�manhãs�que�rebentam�nas�mãos�a�sua�tensa�miragem,e�levam�à�boca�os�fósforos�que�são�todos�os�dedos�na�planície�rápida�de�corpo.

Colámos�bússolas�nos�muros,queríamos�urgente�o�carácter�usáveldo�medo�e�do�tempo.Mas�tudo�rebenta�tão�depressa,os�ombros,�as�dunas,rebentando�como�os�ossos�todos�da�mão,�que�são�como�ondascansando�as�areias�do�eterno.

Gostava�de�acreditar�no�vento,gostava�que�o�vento�fosse�para�mim�uma�cadeiracoisa�concreta,�onde�se�pudesse�descansar,gostava�que�as�coisas�fossem�para�mimcomo�cadeiras,lugares�para�deixar�o�corpo,�todo�arco,sobre�as�mínimas�constelações�livres:os�laranjais�da�muito�jovem�manhã.Restará�do�gesto�o�prodígio�metálicoda�língua,�a�palavra�coisificando�a�voze�a�montanha,�que�é�um�corpo�dormindosobre�a�promessa�de�muito�tempo.

ʻA�mente�retira�as�cavilhas�cedo�demaisʼ,�dizias.

Um�homem�tem�dois�corposquando�a�madrugada�grita�a�sua�hora�feroz.Toda�a�desidentificação�advém�de�um�receio�singular,racha-se�no�que�no�centro�é�vidro,e�dois�corpos�serão�toda�a�madrugada�feroz.

Conhecemos�de�experiência�feita,�todas�asartimanhas�dos�títeres�sem�escrúpulos.Sabemos�de�saber�certo,�como�se�envenenamos�caudais�da�generosidade�e�da�militância.Em�cada�palavra,�bem�medida�e�sem�subterfúgios,é�urgente�anunciar�que�a�luta�ainda�mal�começou.Daqui�podem�esperar�a�total�intransigência�paracom�a�exploração,�a�sinecura�e�a�prepotência.Daqui,�porque�não�nos�calamos,�podemos�sempreanunciar�que�o�futuro�é�um�caminho�de�que�nãodesistimos�nem�muito�menos�hipotecamos.

� estavas�no�corredor�há�quase�quatro�metades�de�ciclo� Não!?�Como�não?�como�não�disseste�nada,�segui�em�frentea�noite�é�minha,�caro,�e�eu�quis�seguir�em�frente...

� havia�carros�que�chocavam�nʼoutrosovos�que�faltavam�às�pilhas�de�caixas�furadas,�redondasloiças�para�lavar�no�fundo�da�metade�do�ciclopés�para�usar�o�corredor�ou�as�suas�paredes

� estavas�no�corredor�há�quase�quatro�séculos�menos�399�anosjá�te�disse�que�estavas

Francisco�Cardo Alexandre�Caetano

Nuno�Mangas-Viegas

António�Margalha

Alexandre�Caetano

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12 | CAPAM�e�ÚltimasA�BATALHA�|�Jornal�de�Expressão�Anarquista�|�nº�275�|�Mai./Jun.�2017

Repressão�pimentianao� seu� Discurso sobre o filho-da-puta,�NAlberto� Pimenta� produziu� um� quase-tratado�sobre�esse�certo�modo�de�ser�e�

de�estar�que,�antes�de�tudo,�se�caracteriza�por�uma�intolerância�face�às�liberdades�e�liberalida-des�do�outro.�É,�no�seu�âmago,�uma�manifesta-ção�do�fenómeno�freudiano�da�projecção:�que�ninguém�se�atreva�a�vencer�os�meus�medos�e�as�minhas� faltas� e� falhas;� marcá-los-ei� a� ferro�quente�na�pele.�O�fim�é�sempre�a�anulação�da�diferença,�a�vulgarização�geral,�grande�tarefa�da�violência.Recentemente,� a� dita� justiça� democrática�surpreendeu-nos�com�uma�inaudita�acusação�a�18� polícias� -� toda� a� esquadra� de� Alfragide� -�referente�a�um�caso�de�2015,�em�que�6�habitan-tes� da� Cova� da� Moura� foram� sequestrados,�torturados,�humilhados�e�silenciados.�À�época,�a�imprensa� livre� tomou� a� liberdade� de� ser� o�megafone�das�autoridades:�em�parangonas,�fez�saber�que�um�grupo�de�delinquentes,� pretos,�evidentemente,� tinha� invadido� a� esquadra� e�que�a�polícia�tinha,�evidentemente,�respondido�na�divina�proporção�da�reposição�da�ordem�e�da�segurança.� Depois,� o� gangue� agiu� como� de�costume�e�como�é�de�regra:�mentiu,�encobriu,�difamou,�esperando�que�o�crime�de�patrocínio�estatal�fosse�passar�impune�como�sempre.Sobre�a�íntima�desumanização�que�é�decidir�ser�e� sobretudo� continuar� a� ser� polícia,� estamos,�espero� eu,� já� conversados� e�de� acordo� -� caso�

contrário,� leitor,� não� és� nem� mon semblable�nem� mon frère,� e� é� preferível� procurares�material� de� leitura� alhures.� Dizia:� não� é� a�barbárie�policial�que�interessa�a�este�texto,�mas�sim� o� opinionato� popular� sobre� o� caso� da�esquadra� de� Alfragide.� Sob� todo� e� qualquer�discurso�de�defesa�cega�da�polícia�corre�um�rio�de�ressentimento,�medo�e�ódio,�que�reflecte�a�essência�esquizóide�das� relações�de�poder�na�comunidade.�Quando�a�comunidade�defende�a�polícia,� quando� chega� ao� ponto� de� defender�directamente� os� seus� crimes�mais� hediondos,�expressa�uma�Síndrome�de�Estocolmo�colectiva�que�é�a�nossa�infeliz�regra�sob�o�reino�do�Capital�Democrático:� o� captor� salvar-nos-á� dos�inimigos�que�ele�próprio�inventou�para�nós.�O�estado,�na�sua� infinita�malícia,�consegue�fazer�de�nós�os�seres�mais�repugnantes�e�atávicos.Exemplos.�Numa�das�categorias�de�argumento�mais�vezes�utilizadas�-�"na�Cova�da�Moura�não�há�só�pretos�delinquentes,�também�há�gente�séria,�honesta�e�trabalhadora"�-,�descobre-se�acima�de�tudo� um� fundo� de� ressentimento� por� ter� de�trabalhar,�mais�importante�que�o�mero�filha-da-putismo� pimentiano� evidente.� A� infâmia� da�escravatura� do� trabalho� não� produz� apenas�seres� acríticos,� alienados,� homogeneizados:�produz�ódio�pelos�que�conseguem�escapar-lhe.�Mas�eis�o�pormenor�decisivo:�o�pobre�que�não�trabalha� é� odiado,� mas� o� rico� que� assenta� a�magna�colhoeira�numa�herança�é�invejado�ou�

mesmo� venerado.� Odiar� o� semelhantemente�pobre� e� admirar� o� ilegitimamente� rico� é� a�garantia� de� que� nunca� se� formará� uma�comunidade�consciente�e�actuante.Também� a� inversão� do� racismo� é� um� ponto�forte� no� argumentário� que� se� pode� acompa-nhar�na�internet�ou�no�tasco:�"os�pretos�também�fazem� discriminação� entre� eles",� etc.� A�irrelevância�ou�mesmo�a�falsidade�da�proposi-ção�não�beliscam�o�impacto�do�argumento�nas�sinapses� cansadas� e� sequestradas:� toda� esta�grande� infâmia�do�racismo�sistémico,�que�por�vezes� arranha� numa� qualquer� parte� mais�inocente� da� cabeça,� está� afinal� justificada.� É�para�continuar�enquanto�eles�não�pararem�de�fazer� uns� aos� outros� o� que� nós� lhes� fazemos�sistematicamente.�Uma�grande�obra�colectiva�de�bizarria.�E puor si muove!O�círculo�precisa�de�ser�completado,�para�que�a�grande�inversão�se�dê:�desumanizar�o�preto�e�o�pobre,�humanizar�o�policia:� "eles� também�são�humanos...� eles� são� assim� por� causa� das�condições�de�trabalho...�aetcetera�aetcetera".Daqui�até�à�defesa�aberta�da�violência�bárbara,�genocida�mesmo,�vai�um�pequenino�passo:�ou�a�polícia�deve�bater�mais�e�mais�-�"enquanto�não�sangrar,� o� boi� esta� vivo",� escreveu� um� ilustre�militar�na� reserva,� com� fotos�da� família� feliz�e�branquinha� em� exposição� no� seu� perfil� de�facebook�-,�ou�nem�as�balas�pagas�por�todos�nós�devem�ser�desperdiçadas:�"que�se�matem�uns�aos� outros,� voltem� à� Cova� da�Moura� quando�cheirar� muito� mal".� Os� brandos� brancos�costumes� foram� sempre� feitos� disto,� mal�escondidos�sob�uma�película�de�bienséance�e�alegria�(no�trabalho).

A� nada� do� que� se� descreve� será� alheia� a�transformação� da� PSP� na� esfera� social-tecnológica:� de� caixa� negra,� passou� a� uma�magnífica�máquina� de� propaganda.� A� página�de� facebook�da�PSP�é,� sem�qualquer�exagero,�uma� página� de� memes.� Compostinhos,�prontos-a-elogiar.�Há�uma�mascote,�o�Falco,�e�ninguém� se� coíbe� de� usar� crianças� como�chamariz� da� ternura.� Eis� a� grande� regra� do�estado,� transformar� tudo� no� seu� contrário:� o�ilegítimo� em� bom,� o� oprimido� em� besta,� o�injustificável�em�lei.Que�há�na�Cova�da�Moura?� Porque� é� alvo�de�tamanha� violência?� Para� além�da�pobreza,� da�questão�evidente�do�racismo,�talvez�a�explica-ção�maior�se�encontre�na�resistência�natural�aos�modos�de�ser� impostos�pela� ideologia�estatal.�Ser� comunidade,� com� laços� humanos� incom-preensíveis,�numa� língua�outra.�Desconfiar�da�escola.�Desconfiar�de�todos�os�poderes.�Rejeitar�o� trabalho.�Defender�o�corpo�da�mercantiliza-ção.�Procurar,�enfim,�uma�malga�de� felicidade�entre�os�néons�e�os�gritos.�E�isto�o�estado�não�suporta.� Enquanto� não� nivelar� todas� as�expressões�de�dissensão,�ou�enquanto�não�as�assimilar�para�expandir�o�seu�corpo�obeso�para�lá�da�conta,�haverá�sempre,�sempre�violência.Da� figura� do� filho-da-puta� deduz-se� todo� o�espírito�do�estado.�Com�a�linguagem�progressi-vamente� transformada,� diminuída,� para� estar�ao� serviço� da� confusão� geral,� precisamos� de�chamar� os� nomes� as� coisas.� Donde:� todo� o�polícia�é�filho-da-puta.�E�assim�sucessivamente,�até�acordarmos.Entretanto,�Américo�Amorim�morreu.�Fazia�sol�nesse�dia.

Aníbal�César�Almeida�Bastos