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    Lei e Corpo

    por Professora Doutora Lea Marques Guimares Professor Doutor Murillo Mendes Guimares

    A histria do conhecimento humano registra pensadores e filsofos. Os pensadoresmenos importantes que os filsofos. Esta diferena torna-se transparente a partir dosurgimento dos escritos de Nietzsche. Mas a distino entre pensadores e filsofos que os primeiros pensam a vida, os outros a sistematizam. preciso pensar a vida nas suasmanifestaes e, livre das representaes em sistemas fechados de pensamento. Dentre orecentes pensadores destacam-se os franceses Gilles Deleuze e Flix Guattari, que melhorilustram esta diferena. Ambos somam foras para uma reflexo em profundidade sobre ovrios aspectos do mundo de conhecimentos. O pano de fundo de suas reflexes a proposta de Nietzsche, pensador alemo do sculo dezenove. Atravs deles possvetrabalhar o campo da cincia e da arte como expresses dos movimentos vitais do corpo.

    Os estudos sobre a teoria do desejo de Deleuze e Guattari se desenvolvem nosdois livros sobre Capitalismo e esquizofrenia. Um prope o desejo enquanto mquinasdesejantes e encontra-se no primeiro volume O anti-dipo. O outro trata de uma proposta para ver os efeitos desejantes nas produes lingsticas enquanto formao dregimes de signos e se encontra no segundo volume Mil plats.

    Gilles Deleuze e Felix Guattari, um filsofo e o outro psicanalista, uniram-se pararefletir o indivduo e a sociedade. Realizaram uma reflexo sobre os efeitos do capitalismoatuante e da esquizofrenia real manifesta nos dias atuais. O trabalho foi fazer uma inversodos modos clssicos do pensamento, semelhante s praticadas por Nietzsche e que se aplicaos sintomas doentios dos atuais sistemas scio-poltico-econmicos. A produo do pensamento desse modo no deve seguir sistemas rgidos e modelares de uma fixao idealmas tornar-se um fluxo vital das conexes desejantes.

    Lei como regime de signos

    Entende-se a lei como mecanismo que constri cdigos sobre os corpos. Regrasnascidas da conveno e se instituem enquanto marcas nos indivduos. A lei signo e base da formao social. Segundo Deleuze e Guattari:... a sociedade no primeiramente um meio de troca onde o essencial seria circular ou fazer circular, mas umsocius de inscrio onde o essencial marcar e ser marcado. 1 Por que a lei precisafazer inscrio no corpo em forma de marcas? A lei no pertence ao corpo, isto , nonasce com ele. Ela necessria para organizar o corpo selvagem atravs de seus cdigosPertence ordem moral.

    1 DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O anti-dipo. Capitalismo e esquizofrenia. Trad. GeorgesLamazire. Rio de Janeiro, Imago, 1976, p. 180.

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    nesse socius de inscrio que a lei ganha contedo significativo. So signos que percorrerem a sociedade, produzindo direitos e deveres; instaurando-se enquantomecanismos artificiais, isto , artifcios inventados pelas convenes morais. So alianaque os homens fazem entre si, alianas calcadas num comprometimento de fazer cumprirdeveres para receber direitos. So marcas necessrias para manter o mecanismo em

    funcionamento.O homem ao receber as inscries ele est recebendo um regime de signos

    instaurado na sociedade onde se encontra. muito interessante observar estecomportamento em Capitalismo e esquizofrenia de Deleuze e Guattari nos apontam esteregime de signos : ... no dizemos que um povo inventa esse regime de signos, mas

    somente que efetua em um dado momento o agenciamento que assegura a dominnciarelativa desse regime em condies histricas .... Com o povo judeu, um grupo de signos

    se destaca da rede imperial egpcia da qual fazia parte, comea a seguir uma linha de fugano deserto... 2

    O exemplo da fuga dos judeus do Egito permite perceber a explicao de uma leique permanecer na recordao do povo enquanto ordem social, mas que manter oindivduo num desconhecimento do prprio objeto dela; nesse sentido, ele precisar sercontinuamente marcado atravs da repetio das regras de lei, componentes de sua moralO que ocorre neste exemplo o produto de um tipo de formao social que teve umavivncia primeira com a lei do fara (a lei presente num corpo); depois os judeus fugiramcom Moiss, que introduziu as Tbuas de Lei; a lei perde o corpo e se mantm apenas comnormas, regras, padres de conduta: sentenas.

    A lei estar sempre numa sentena, se repetir nas palavras. Existe uma mquina, produzindo a lei de forma substantiva; tirando-a da condio de sentena abstrata, a lei sado regime de signos abstrato e se materializa. A noo de mquina enquanto regncianas relaes de uma sociedade tem uma amplitude muito mais vasta nas questes colocada por Deleuze e Guattari. Eles propem trs idias para a utilizao do termo Mquina: 1Toda mquina est relacionada com um fluxo material contnuo que ela corta; so fluxosassociativos no movimento intensos da matria, movimentos este que a mquina, ao cortar produz outros segmentos. 2) Toda mquina comporta uma espcie de cdigo que seencontra engendrado e estocado nela. Um cdigo inseparvel de sua prpria composio que traz consigo uma cadeia de signos legisladores. A mquina assim tem uma face tcnice outra social: existe como mecanismo tcnico e existe como meio de transmisso da leiPor exemplo, um relgio uma mquina tcnica para medir o tempo, mas funciona comouma mquina social para conduzir os comportamentos, para reproduzir as horas, h muitotempo legislado e para assegurar a ordem na cidade. 3) Toda mquina, ao cortar o fluxo e produzir a organizao atravs de seu cdigo, provoca um corte-resto ou resduo, que efeito do funcionamento e existncia da mquina. Esse terceiro aspecto da mquina sntese dos dois primeiros; todos os trs se inter-relacionam. A ao da mquina ao provocar o resduo, efeito de seu funcionamento, provoca o surgimento de um sujeito aolado dela, adjacente e inseparvel da mesma, sujeito que se sacrifica para se integrar a ela.

    2 ____. Mil plats. Capitalismo e esquizofrenia. Trad. Ana Lcia de Oliveira e Lcia Cludia Leo.Rio de Janeiro, Ed. 34, 1995, p. 74. V. 2

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    H um trabalho de Deleuze e Guattari sobre a obra literria de Kafka onde elesfazem uma reflexo sobre a mquina abstrata da lei:Sai assim da mquina abstrata dalei, que ope a lei ao desejo, como o esprito ao corpo, como a forma matria, paraentrar no agenciamento maqunico da justia, isto , na imanncia mtua de uma lei

    decodificada e de um desejo desterritorializado.3

    A mquina um agenciamento, trata-se de uma associao de funes de agentes.Os agentes so mltiplos e mantm entre si uma constante relao. pela relao das peaque a mquina funciona. Cada elemento da relao um agente que tem uma determinadfuno; o conjunto das funes produz o agenciamento.

    Uma mquina, no seu aspecto tcnico e material, tem, no seu constructo, peas oufunes prprias e caractersticas, que se relacionam para determinada finalidade. Oconjunto destas funes da mquina acionado para uma outra finalidade para alm damquina, e acionado por agentes externos que correspondem ao aspecto social damquina. um outro agenciamento que implica um conjunto de funes externas dada por outras relaes, como no exemplo da mquina-relgio.

    Logo, h uma funo interna da mquina e uma funo externa das relaes sociais.Consideremos agora um corpo como se fosse uma mquina tcnica, veremos que ele possuseu prprio agenciamento e vai se inserir num agenciamento transcendente a ele que so afunes dos cdigos da lei. O corpo, ento, possui seu prprio agenciamento e a lei possuoutro e diferente agenciamento externo a ele. Como possvel se unirem?

    Para compreender a introjeo da lei no corpo, utiliza-se a teoria dos afetos na obrado filsofo Espinoza (sc. XVII) o que facilita esta compreenso. Admite-se que todos oscorpos se relacionam atravs de encontros; um jogo de ao (agir) e de paixo (sofrerao). Nesses encontros os corpos se afetam mutuamente. uma questo de vida namatria-natureza e esta matria aparece em termos de composio e/ou decomposio.

    A composio rege uma lei e uma ordem na Natureza, onde a matria vive, quandoa relao produz composio; e perece quando a relao produz decomposio: umencontro que produz composio produz mais vida, aumento de fora; o contrrio resultaem enfraquecimento:...o mal sempre um mau encontro, sempre uma decomposio derelao .... Espinoza insiste sobre este ponto quando interpreta o clebre exemplo: Adocomeu o fruto proibido. No se deve pensar, diz Espinoza, que Deus proibiu algo a Ado.Simplesmente, Deus lhe havia dito que esse fruto era capaz de destruir o seu corpo e fazer a decomposio da relao. 4 Exemplo da primeirssima lei entre os homens. O conselhode Deus no uma lei externa e transcendente ao corpo de Ado, mas um sbio aviso deque o fruto o envenenar, um encontro que traria decomposio.

    3 ____. Kafka. Por uma literatura menor. Trad. Jlio C. Guimares. Rio de Janeiro, Imago, 1977, p.52.

    4 DELEUZE, Gilles. Spinoza et le problme de lxpression. Paris, Minuit, 1968, p. 226. (trad. doAutor)

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    Segundo o que Deleuze observa desta teoria de Espinoza, todos os fenmenos queagrupamos sob a categoria do mal moral, tais como as doenas e a morte, so desse tipomau encontro, indigesto, envenenamento, intoxicao, decomposio de relao. Logono jogo da ao (poder de um corpo de afetar outro) e da paixo (poder de um corpo de se

    afetado) nascem as composies e ou as decomposies. No homem, um encontro que produz composio resulta num sentimento de alegria

    bom encontro; um encontro que produz decomposio resulta num sentimento de tristeza mau encontro. Estes sentimentos que regem os desejos do homem. Um corpo seagencia com outro corpo, tem poder de afetar e de ser afetado, forma-se um agenciamentoneste os afetos se fortalecem ou se enfraquecem, dependendo dos bons ou dos mausencontros, ou seja, em termos dessa alegria ou dessa tristeza.

    Nesta perspectiva da teoria dos afetos, o desejo se insere na regio dos afetos; noest nem dentro do corpo, nem fora dele: efeito das relaes. Nesta noo do desejoutilizada por Deleuze e Guattari, o desejo no est regido pela falta, como na concepo dateorias freudianas; ele vai se constituir pelos estados do corpo, os seus humores, numagenciamento, na relao dos bons ou maus encontros ou relao de seus afetos.

    Parece haver uma contradio entre lei e desejo, oposio que surge de umaantinomia do esprito e do corpo, contribuindo para uma incompatibilidade entre matria eforma. O que ocorre que lei, esprito e forma se inserem no campo da transcendnciamas desejo, corpo e matria pertencem ao campo da imanncia.

    Concebemos imanncia como sendo o que est dentro de e transcendncia comosendo o que est fora de. Se desejo o que se produz no interstcio de um agenciamentocorpo um agenciamento de matria, e matria relao de intensidade de fora (conformea concepo da fsica ps-einsteiniana), logo, inserem-se numa imanncia.

    No entanto, a lei abstrata, foi abstrada do conhecimento do mundo, est fora domundo. O esprito concebido como um estado de coisas, uma alma, uma atmosfera quno est na relao, logo tambm est fora; a forma tomada na acepo de imagem, figuraou idia, uma perspectiva do observador sobre a coisa observada, dependendo da posiodo observador a forma ou imagem ser sempre outra, ela no pertence coisa, tambm seencontra fora. Portanto, podemos entender porque Deleuze e Guattari declaram aexistncia dessa oposio entre lei e desejo. E, durante uma formao social vai ocorreralguma coisa que Deleuze e Guattari chamam de captura do desejo. A lei, que era cdigexterno ao corpo, vai ser introduzida nos corpos, vai dominar os afetos, e nesse domnio elase torna imanente. Haver uma imanncia mtua de uma lei decodificada e um desejodesterritorializado, como os vimos afirmar na Nota n. 3 mais acima. Parece-nos ser estaa questo fundamental nos estudos sobre capitalismo e esquizofrenia que Deleuze eGuattari trabalharam.

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