Leonardo a Flauta - Uns Sentimentos Selvagens

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Rafael Menezes Bastos

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  • Leonardo, a flauta:uns sentimentos selvagens1

    Rafael Jos de Menezes Bastos2

    Professor do Departamento de Antropologia UFSC

    RESUMO: Este artigo pretende contribuir para a etnologia das flautas sa-gradas nas Terras Baixas da Amrica do Sul, retomando a anlise de umepisdio ocorrido entre 1947 e 1953, envolvendo Leonardo Villas Boas e osndios kamayur, xinguanos tupi-guarani. Nesse momento, Leonardo man-teve, continuada e publicamente, relaes amorosas com Pele de Reclusa,esposa do grande xam e chefe Kutamap. O affair provocou comoo en-tre os ndios, que colocaram um trio de flautas na casa do heri. Assim, quan-do Pele de Reclusa a freqentava, via as flautas. Violada a regra que probes mulheres ver as flautas, Pele de Reclusa sofreu estupro coletivo, o queoriginou seu ostracismo e o afastamento dos Villas Boas dos Kamayur. Paraestes, ver contrasta com ouvir. A primeira noo aponta para uma for-ma analtica de conhecimento (explicao), a segunda, sinttica (com-preenso). A exacerbao da capacidade de ver , para eles, sinal deassocialidade no caso dos feiticeiros e de suprema socialidade no casodos pajs. O exagero da aptido de ouvir, ao contrrio, considerado con-dio de virtuosidade na msica e nas artes verbais. Se entre esses ndios, smulheres vedado ver as flautas, ouvi-las delas esperado. As pistas para acompreenso indgena do episdio provm de sua maneira de construodos sentidos, dos gneros e do poder no todo, de sua forma de constitui-o do mundo: quando Pele de Reclusa violou o inviolvel, Leonardo trans-formou-se em flauta, sua casa na casa das flautas, e os homens numacoletividade delas, tudo passando a ocorrer sob sua tica feroz.

    PALAVRAS-CHAVE: flautas sagradas, Alto Xingu, ndios kamayur, cos-mologia, audio do mundo.

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    RAFAEL JOS DE MENEZES BASTOS. LEONARDO, A FLAUTA...

    The other great branch of sympathetic magic, which I have

    called Contagious Magic, proceeds upon the notion that

    things which have once been conjoined must remain ever

    afterwards, even when quite dissevered from each other, in

    such a sympathetic relation that whatever is done to the one

    must similarly affect the other. Thus the logical basis of

    Contagious Magic, like that of Homoeopathic Magic, is a

    mistaken association of ideas; its physical basis, if we may

    speak of such a thing, like the physical basis of Homoeopathic

    Magic, is a material medium of some sort which, like the

    ether of modern physics, is assumed to unite distant objects

    and to convey impressions from one to the other.

    Sir James George Frazer (1854-1941),

    The Golden Bough (1922)3

    De que estamos falando ao usar a expresso flautas sagradas (ou ri-tuais)? Responder a essa pergunta no nada fcil. Tudo comea pelofato de sabermos muito bem que no estamos a tratar simplesmente deflautas. Ou melhor, dos aerofones tipologicamente identificados pelonmero 421 no sistema de Hornbostel-Sachs (Hornbostel & Sachs,1961[1914]), um sistema de classificao de instrumentos musicais,alis, que a grande maioria dos antroplogos e etnomusiclogos osmuselogos so excepcionais a esse respeito nunca levou muito a s-rio, apesar o que acho de seu grande interesse.4 No tratamos so-mente de flautas, pois as flautas sagradas, dependendo de cada casoetnogrfico, podem compreender aerofones de vrios tipos ou mesmo,como no caso xinguano (kamayur) aqui abordado, alm de vrias esp-cies de aerofones (flautas, trompetes, clarinetes, zunidores), vriascategorias de idiofones5 (chocalhos globulares, em fieira etc.). Mas no somente devido a questes organolgicas de interesse sempre estra-

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    tgico para a compreenso do pensamento e da sensibilidade, tanto in-dgenas quanto daqueles que buscam conhec-los que a pergunta pos-ta acima no nada fcil de responder: pesa sobre a expresso em tela osqualificativos sagradas ou rituais, s vezes substitudos por secretasou outros, muito pouco adequados para descrever o estatuto dos instru-mentos em considerao.6

    Minha contribuio abordagem da questo das flautas em conside-rao que me mobiliza desde o comeo de minhas pesquisas no AltoXingu (ver Menezes Bastos, 1978[1999a]) vai se dar por meio do bre-ve estudo de um episdio envolvendo essas flautas, os ndios kamayure os clebres irmos Villas Boas. Num texto j antigo (Menezes Bastos,1989), em que estudei as exegeses kamayur (xinguanos tupi-guarani) eyawalapit (idem, aruaque) sobre o Parque Indgena do Xingu e a cons-truo da saga dos citados heris, recolhi uma narrativa que inclui a nar-rao desse episdio. Cada vez mais descubro que ele tem um grandeinteresse para a compreenso do universo das flautas sagradas nas Ter-ras Baixas da Amrica do Sul, assim como do pensamento amerndioem geral. Recordo que no texto referido cobri apenas com uma peque-na nota de p de pgina o episdio, passando, desde ento, alguma par-te dos cerca de 18 anos seguintes pensando nele. Resumirei aqui o quepensei, ento.

    A narrativa que conta o episdio, feita em 1981 por Takum, entochefe kamayur, reporta-se poca da chegada dos Villas Boas regiodos formadores do Rio Xingu. Isso coloca seu presente histrico maisou menos entre os dois ou trs ltimos anos da dcada de 1940 e os doisou trs primeiros da de 1950 algo como o intervalo 1947-1953.Takum ento era adolescente e estava no perodo de recluso pubertria(hoje ele deve estar perto dos 80 anos). Conforme disse em meu textode 1989, a narrativa revela uma face no mnimo descontente dos ndiosxinguanos dos Kamayur em particular com os irmos Villas Boas,

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    intencionalmente buscando demolir a retrica assexuada por meio daqual sua saga sempre tentou se apresentar ao mundo.7 Pretendo, atravsda breve anlise do episdio em tela que apresenta as flautas sagra-das, por assim dizer, em ao, como agentes portanto , contribuir paraa etnologia das Terras Baixas da Amrica do Sul nos captulos referentess maneiras ali vigentes de construo dos sentidos, dos gneros e dopoder no todo, no captulo relativo s formas amerndias de constitui-o do mundo. Subsidiariamente, farei uma pequena excurso stemticas do pensamento e do sentimento selvagens, rapidamente ex-plorando a questo da construo amerndia do mito e da histria.

    Transcrevo abaixo a narrativa em comentrio, que dividi em cincopartes, numeradas de 1 a 5:8

    1. [...] A eu fiquei no Xingu,9 com Leonardo.10 Fiquei. Fiquei por muito

    tempo (dez anos). Ento meu pai me chamou de volta aldeia.11 L, fui

    preso (recluso pubertria). Fiquei preso por muito pouco tempo (dois

    meses) e ento fui embora de novo para o Xingu.12 Leonardo havia me

    chamado. Fiquei l... A meu pai me chamou de novo. Em seguida, Leo-

    nardo foi buscar-me uma vez mais. A, eu fiquei, fiquei... com Leonardo.

    Nessa poca, Leonardo me emprestou carabina. Depois, ele deu outra pra

    mim, uma 44. A, eu fiquei com ele, fiquei, fiquei...

    2. Foi ento, depois, que Leonardo errou o caminho. Ele namorou (algu-

    mas) ndias. Ele tinha cime do pessoal (dos outros carabas):13 Pessoal

    no pode namorar ndias. Eles passam doenas para elas. Leonardo falava

    assim. Orlando tambm. Leonardo ficava brabo com o pessoal caraba.

    Ele queria mandar todos os carabas embora. Mas, como? Os Villas Boas

    ficariam sozinhos. A, Leonardo me chamou: Takum, voc tem que di-

    zer para as mulheres no entrarem nas casas dos trabalhadores. Assim, eles

    vo passar doenas pra elas. A, eu fui falar com as mulheres. Elas me

    disseram: No, ns no temos ido s casas dos carabas, no. A, eu fi-

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    quei conversando [com as mulheres kamayur], conversando, conversan-

    do... Foi a que Leonardo errou o caminho.14 Eu vi Leonardo errar o cami-

    nho. Os outros viram. Todo mundo viu...

    3. Ele namorou Pele de Reclusa. Mulher de meu pai. Meu pai era casado

    com Pele de Reclusa. Ela era mangauhet.15

    4. Ento, Pele de Reclusa viu yumiamae (as flautas sagradas).16 L na casa

    de Leonardo ns havamos deixado um trio de yumiamae. Pele de Reclu-

    sa, quando foi namorar com Leonardo, entrou l, ento viu as flautas.

    Ento, o pessoal (os Kamayur): Vamos estuprar Pele de Reclusa. Meu

    pai estava muito brabo. Meu pai sabia que Leonardo estava namorando

    Pele de Reclusa.

    5. A, outro dia, ns tocamos as flautas. Pele de Reclusa estava na casa de

    Leonardo. Os dois estavam dentro de uma rede, com mosquiteiro. Pele de

    Reclusa estava no mosquiteiro. Ningum sabia disso. Ento, o pessoal to-

    cou as flautas yumiamae. A, Leonardo achou ruim: Por que vocs toca-

    ram isso?. Ele brigou com os Kamayur. Falou mal, falou, falou...17 Ento,

    Leonardo pegou um revlver e disse: eu vou matar voc, Takum. Eu

    disse pra ele: Pode matar. Ele apontou o revlver para minha cara. Meu

    pai disse: Pode matar... Quem mata meu filho, pode me matar tambm...

    Por que voc tem cime de seu pessoal?... Voc est errado, Leonardo...

    Eu no quero mais Pele de Reclusa... Pode casar com ela....

    De comeo, o que eu gostaria de reter dessa narrativa impressionan-te a dupla identificao por contaminao produzida no evento:

    1) entre a casa das flautas (tapy em kamayur) e a casa de Leonardo;2) e entre as flautas e o prprio heri.

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    Essa identificao e por isso a estou chamando de contaminao,num movimento que procura evocar O ramo de ouro (a estando, por-tanto, o nexo da epgrafe com o presente texto) no se congela napura equao mental, metonmica no caso, j que foi feita um fato domundo emprico: a colocao das flautas no interior da casa de Leonar-do transformou esta ltima na casa das flautas, a partir de ento tudovindo a se passar para Pele de Reclusa e Leonardo, ou de seus pontosde vista ou perspectivas (apesar de, por assim dizer, forados) como seLeonardo, ele mesmo, fosse um indivduo da espcie yakui.

    Observe-se que essa colocao foi feita intencionalmente, e tudo in-dica que a mando de Kutamap, que, sabedor do affair entre Leonardoe Pele de Reclusa continuado, pblico e caracterizado pelo exclusivis-mo, dir-se-ia pela fidelidade, no caso da mulher em relao ao ho-mem , se sentiu vtima nada mais nada menos que de um ato de guerrado heri, do clssico tipo do roubo de mulheres. Kutamap era, almde um grande chefe, um grande paye, xam.

    Produzida a identificao, a vingana feroz, o estupro de Pele deReclusa pelos homens da aldeia transformados numa comunidade deyakui , pde colocar-se no horizonte: Pele de Reclusa, ao freqentara casa de Leonardo, sem saber e querer, estava a freqentar o tapy(casa das flautas), espao absolutamente interdito s mulheres entre osKamayur e xinguanos em geral, exatamente por ser a casa das yakui.Pior que isso, ao freqentar aquela casa, Pele de Reclusa cotidianamentevia as prprias flautas sagradas.

    O segundo ponto que apreciaria reter do episdio formidando cu-mulativo em relao ao primeiro: trata-se da colagem tambm realiza-da para alm de uma pura operao intelectual que ele produziu entreLeonardo e

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    1) o cime (comportamento acumulador, no caso de mulheres);2) a falta de discrio (ao manter, ele, relaes sexuais bandeirosas com

    uma mulher casada, e pior, pior com uma das mulheres do chefe);3) e a violncia verbal (falar mal, xingar) e fsica (expressa por

    meio da ameaa de morte com revlver) , dirigida, centralmente, nadamais nada menos que a Takum, filho do chefe kamayur e primeiro nalinha de sua sucesso. Essa violncia se evidenciou de maneira ainda maiscabal para os Kamayur pelo fato de Leonardo tornado uma flauta, ouum indivduo da espcie yakui ter reclamado (na quinta e ltima parteda narrativa) de maneira raivosa de sua execuo em sua casa (transfor-mada, como se viu, em casa das flautas) a flauta reclamava, com rai-va, da execuo de sua prpria msica. Recordo que essa reclamao veioa culminar na ameaa de Leonardo a Takum, com revlver em punho.

    Essa colagem d o arremate final identificao produzida pelosKamayur de Leonardo Villas Boas: ela se evidencia no patamar nosimplesmente de um feiticeiro, algum que enfim pode ter seu poderassocial eliminado pela sociedade, por meio da expulso ou mesmo daexecuo. Tambm no se faz to-somente em termos da equao deLeonardo como um inimigo, humano, de guerra. No, o patamar daidentificao de Leonardo nesse episdio o de um mais que declaradoinimigo mamae, esprito, extremamente poderoso e perigoso pelopoder incontrastvel que detm: Leonardo identificado no episdioem considerao com um indivduo da espcie do terrvel mamae yakuiou yumiamae, as flautas sagradas, um indivduo na casa de quem, alis(conforme o item 5 da narrativa), as flautas devem ser executadas, masso raivosamente rejeitadas. Note-se que em 1995 sugeri que a casa dasflautas era, poca da chegada dos Kamayur ao Alto Xingu (estimati-vamente, no sculo XVIII), a instituio de arregimentao de guerrei-ros, papel que ela desempenhou at o congelamento da guerra na re-

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    gio, no sculo XX, com a pax xinguensis imposta exatamente pelos ir-mos Villas Boas. Observe-se tambm que os mamae em geral somenteso controlveis pela poltica xamnica, monopolizada pelos paye, parti-cularmente entre os Kamayur monopolizado por seu paye de ver eouvir, o prprio chefe (Menezes Bastos, 1984-1985, 2001).

    Por fim, o terceiro aspecto que gostaria de realar no episdio: a vin-gana dos Kamayur foi violenta e inexorvel, abatendo-se tanto sobreLeonardo quanto sobre Pele de Reclusa. Sobre Leonardo, devido ci-me, indiscrio, violncia, irreciprocidade enfim. Leonardo teve de sairda aldeia kamayur e perdeu a namorada que, roubada do chefe, queriasomente para si. Perdeu-a violentada por todos do excesso por extre-ma restrio, representado pelo egosmo ou avareza amorosa, ao excessopor absoluta falta de limite, figurado pelo amor forado de todos. Pelede Reclusa a involuntria autora da violao original , estuprada, foiexpulsa da aldeia.18

    bom deixar claro que a vingana em tela no foi impulsionada porcime de Kutamap, ou seja, ela no foi ocasionada por um desejo acu-mulador do chefe kamayur, ele mesmo, em relao a Pele de Reclusa.No, a vingana foi impulsionada pela rejeio radical de Kutamap edos Kamayur em geral do cime pois Leonardo queria Pele de Re-clusa somente para si e da violncia, enfim da extrema irreciprocidadede todo o affair envolvendo Leonardo e Pele de Reclusa. Em relao aeste terceiro ponto, vale observar que as punies a traidores e traidorasconjugais no mundo kamayur no parecem alcanar dimenses maio-res que as da simples rusga. Na grande maioria das vezes, elas se redu-zem a pequenas surras do(a) trado(a) no(a) traidor(a) (diferena que osKamayur sempre fazem questo de salientar entre eles e os civiliza-dos). Na mitologia, porm, essas punies costumam ter intensidadeabsolutamente dramtica, quase sempre provocando catstrofes e rup-

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    turas (origens)19 tudo se passa, ento, no episdio aqui narrado,como se ele tivesse pertinncia mtica, ocasionando, como ocasionou,pelo menos duas importantes rupturas ou origens: o divrcio foradode Kutamap com o estupro e o ostracismo de Pele de Reclusa; e o afas-tamento a inimizade mesmo de Leonardo dos Kamayur, com suaprogressiva generalizao no relativo aos Villas Boas como um todo(Menezes Bastos, 1989).

    O que esse episdio ter a ver com meu objeto de ateno aqui? Pormeio do estudo das flautas sagradas nas Terras Baixas da Amrica doSul, contribuir para a etnologia respectiva nos captulos das relaes depoder, da construo sociocultural dos sentidos e dos gneros e, em ge-ral, da constituio do mundo.

    As flautas sagradas kamayur

    As flautas sagradas ou rituais kamayur em Kamayur, yakui ouyumiamae so aerofones do tipo flauta com conduto e defletor.20

    Medem em torno de um metro e tm quatro orifcios digitais (eviden-temente, no as devo mostrar em foto, como inadvertidamente o fiz emmeu texto de 1978[1999a]). Quase sempre, elas so tocadas em trio por um marakap, mestre de msica, e dois ajudantes ou aprendizes.Quando executadas em solo, o so sempre por um mestre, especialmen-te virtuoso. As yakui constituem o ego de um grupo de parentesco dotipo kindred (orientado em ego), chamado em Kamayur yakuiareyou yumiamaearey (ao p da letra, algo como semelhantes a yakui,pessoal de yakui). Trata-se de um grupo relativamente grande, envol-vendo outros onze instrumentos musicais, conforme a figura a seguir:21

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    Figura 1: As flautas sagradas kamayur e sua parentela

    Na gerao +2 da parentela em considerao, esto os aerofones dotipo trompete kuyahapi, arikamo e kuyaham (cujo meio a gua, sendosimilares a peixes);22 as flautas kuruta (similarmente s yakui, tambmcom conduto e defletor; seu meio a floresta, e elas so semelhantes aanimais de plo); os chocalhos globulares yakokoakamit; os aerofonestipo clarinete tarawi;23 o trocano warayumia; e os zunidores uriwuri eparapara (os cinco ltimos tambm so seres aquticos, identificadoscom peixes). Na gerao 0, a das yakui, localizam-se os chocalhosyakuiakamit, do tipo em fieira e usados amarrados ao tornozelo direitodos danarinos. O meio original desses dois instrumentos como tam-bm o das flautas yakui tambm a gua, sendo todos parecidos compeixes. Na gerao -1, ficam as flautas kurutai, que, como as yakui ekuruta, tm conduto e defletor. Seu meio a floresta e sua identificao como animal de plo. Note-se que interessantemente a essekindred falta a gerao +1.24 Vale deixar bem claro: todos esses instru-mentos tm o estatuto de mamae.

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    As flautas yakui encontram no tapy seu espao preferencial masno exclusivo de guarda. Essa casa ocupa uma importante posio naaldeia kamayur, uma aldeia que , ela mesma, uma cosmografia: situa-da no centro da aldeia, a casa das flautas um dos lugares originaispor excelncia de seu cosmo, nela se concentrando sua prpria criao.Consistentemente com isso, ela tambm chamada de hoka, literal-mente, casa da gua, e de hotatap, ao p da letra, casa do fogo. Si-multaneamente, ela o espao por excelncia da masculinidade entre osKamayur e xinguanos em geral, da a sua outra traduo de casa doshomens. Ali conforme j referido , as mulheres no podem entrar,sob pena de estupro coletivo.

    A casa das flautas tem, na face que d para oeste, duas portas (cha-madas de apy, narinas). Na oposta, somente uma. Lembro que, entreos Kamayur, as relaes sexuais so monitoradas, vigiadas pelo cheiroque elas mesmas emitem, assim como pelos odores que, isoladamente,os fluidos masculino e feminino (incluindo, crucialmente, o sanguemenstrual) liberam. Sendo o tapy o espao nevrlgico da masculinida-de entre esses ndios, masculinidade esta politicamente manifestada pelacapacidade de controle da sexualidade, atravs tipicamente de seus finosolores, nada de estupendo que essa casa seja, ela mesma, cosmografica-mente, um grande nariz a tudo sensoriar dir-se-ia algo no como umpan-tico, mas pan-osfrsico.

    Nos depoimentos nativos, a casa das flautas aparece como uma dasdistines bsicas dos apap, os Kamayur de verdade, chamados, exa-tamente, de tapyatapi (os da aldeia que tem tapy). Aqui, o tapy uma grande construo onde se passam os ritos secretos da comunidademasculina, ligados s flautas sagradas e aos outros instrumentos quecompem seu kindred. Aqui tambm onde se fazia antigamente a re-cluso pubertria, ento sempre coletiva (ver Menezes Bastos, 1995).

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    As yakui no podem ser vistas pelas mulheres, sua msica, porm, ouvida por elas de maneira extremamente diligente.25 Entre osKamayur, essa no a nica proibio visual mas no auditiva s mulheres: o Payemeramaraka, ritual da comunidade dos pajs,tambm no deve ser visto por elas (ver Menezes Bastos, 1984-1985).Adicionalmente a isso, vale recordar que presenciei um episdio na al-deia kamayur em 1981 ligado a uma caada de porcos, depositadosmortos no ptio da aldeia , do qual elas tambm se isolaram visual-mente, trancando-se em suas casas e fechando as portas, temerosas deque os homens se transformassem em mamae. Enquanto isso, os ho-mens discutiam dramaticamente no ptio da aldeia seu processo dexinguanizao (Menezes Bastos, 1995). Tudo faz parecer, ento, que asproibies visuais s mulheres, entre os Kamayur, apontam para umdever seu (das mulheres), absolutamente essencial, de evitao do univer-so dos mamae. Especificamente, elas tm como base o temor feminino,verdadeiro pavor, de que os homens se transformem em mamae, assimvindo a dar fim ao mundo, sempre por um fio entre eles, do contratosocial.26 Entre os Kamayur, o controle humano dos mamae somente passvel de ser feito atravs do xamanismo, monoplio masculino.

    Quanto s flautas sagradas, porm, observe-se que as mulheres nosomente no devem v-las: elas tambm no devem saber quem as toca.Note-se que os homens, quando as esto executando, encerram-se notapy quando eles as tocam no ptio da aldeia, as portas das casas resi-denciais so fechadas, ali devendo ficar reclusas as mulheres e crianas.Observe-se por fim que, quando executando as yakui, os homens nodevem tomar banho de imerso, mas de coit, no podem manter rela-es sexuais, sujeitando-se a mais uma srie de outros interditos, tudoevocando o comportamento das mulheres quando menstruadas. Essaevocao me inspirou uma comparao das yakui com os instrumen-

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    tos musicais similares do Alto Rio Negro (ver Hugh-Jones, 1979; Hill,1993; e Piedade, 1997), os dois universos musicais apontando para umamenstruao simblica dos homens sinal de seu poder no plano nobiolgico, mas poltico , o que recorda fatos em tudo por tudo seme-lhantes da Nova Guin.27

    As flautas rituais e sua parentela so temas muito presentes namitologia kamayur e xinguana em geral. Aponto abaixo, de maneiraextremamente resumida, alguns de seus nexos mais importantes nessamitologia:28

    1) As flautas em comentrio so taangap, cpias, feitas com a ma-deira de determinadas rvores, de mamae subaquticos. Essas cpiasforam produzidas por Ayanama, um dos demiurgos kamayur.29

    2) Era uma vez... essas flautas constituam domnio exclusivo das mu-lheres. Ento, havia uma completa inverso daquilo que hoje acontece:as mulheres pescavam, os homens trabalhavam a mandioca e cuidavamdas crianas; s mulheres cabia com exclusividade a casa das flautas, oshomens sendo proibidos de ali entrarem. Nesse tempo para sinteti-zar , a constituio do mundo kamayur, do ponto de vista daquilotudo que se refere aos gneros, era inversa daquela que hoje ele tem.

    3) Insatisfeitos com isso, os homens fizeram uma revoluo, toman-do as flautas das mulheres e constituindo o mundo como hoje ele .Para que essa revoluo pudesse ser feita, Morenayat, o dono do More-na, outro demiurgo kamayur, ameaou as mulheres, executando oshorrendos zunidores uriwuri e parapara.30 A partir de ento, a consti-tuio presente do mundo foi feita, sua manuteno estando assentadano medo, pavor, verdadeiro horror que as mulheres devotam ao univer-so das flautas rituais e dos mamae em geral. Repito que somente oshomens, entre os Kamayur e xinguanos em geral, podem ser xams.

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    Desde que iniciei meus estudos no Alto Xingu, tenho partido da idiade que os sentidos, para longe de constiturem aparelhos biopsicolgicosinvariveis, so como o corpo para Marcel Mauss os primeirssimosobjetos de construo cultural. Partindo desse princpio, elaborei a no-o de audio do mundo (em ingls, no original, world hearing [MenezesBastos, 1999b]) para dar conta de cosmologias amerndias com um n-tido primado no mundo da audio, diferentemente do que aconteceno Ocidente, onde a viso o sentido primordial. Os Kamayur so umpovo para o qual a noo de audio do mundo muito mais que a deviso do mundo cabe como uma luva: para eles, o verbo anup, cujosignificado original ouvir, indica tambm o sentido de compreen-der, tendo uma posio hierrquica superior quela ocupada pelo ver-bo tsak, originalmente ver, mas que tambm aponta para o nexo deentender. Assim, pode-se dizer que, entre os Kamayur, ver supeuma forma analtica de percepo e conhecimento, do campo dainteleco e explicao. Note-se que a exacerbao da capacidade dever, entre eles, tida como sinal de extrema associalidade, caso dosfeiticeiros e, pior ainda, dos mamae entre os quais as flautas yakui emuitos dos componentes de sua parentela, especialmente as buzinaskuyahapi, arikamo e kuyaham, que no tm ouvidos e nariz, somentetm olhos e bocas que devoram, no propriamente comem ferozes.Em contraponto a isso, a noo de ouvir indica, para os ndios emconsiderao, a percepo e o conhecimento sintticos do domnio dasensibilidade e da compreenso; a capacidade exagerada de ouvir con-siderada pelos Kamayur como ndice de virtuosidade nas artes da m-sica e verbal.

    Quando antes aqui falei que o episdio cuja narrativa deu comeo aeste texto tinha pertinncia mtica, desejava apontar para o fato de queele, para os Kamayur e para quem os procure compreender , tinhanatureza originante e modelar, encerrando catstrofes prototpicas ou,

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    exatamente, origens. Se, para os Kamayur, ento, o mito encontra suavocao na ruptura, a histria, em contraposio, a tem na continuida-de. Tudo se passa, para os Kamayur, como se o passado o passadomesmo, o irrecuperavelmente perdido somente existisse para o mito,para a histria somente existindo presentes, mais ou menos presentifica-dos pela indagao (Sousa, 1981). Como j apontei, o episdio em telaocasionou duas grandes rupturas ou catstrofes, demarcando as origens:

    1) do divrcio de Kutamap com o ostracismo de Pele de Reclusa,dramaticamente intermediados pelo estupro coletivo dela;

    2) e do afastamento de Leonardo dos Kamayur, germe do afasta-mento cada vez mais definitivo dos irmos Villas Boas como um todoem relao a esses ndios. Note-se que a partir da os Kamayur dife-rentemente dos Yawalapit passaram a orientar seu contato com omundo dos brancos para o Destacamento Xingu, estabelecimentoento mantido pela Fora Area Brasileira acerca do Jacar (ver MenezesBastos, 2004a).

    Kutamap ordenou a colocao na casa de Leonardo do trio de yakuito-somente porque, enciumado com o affair que envolvia sua esposa,calculadamente esperava a reao vingativa dos homens em face da viola-o, por parte dela, da regra de proibio s mulheres da viso das flautassagradas. Mas essa interpretao do episdio que o equacionaria comoum mero crime passional no faz o menor sentido para os Kamayure para quem quer que os procure compreender. Tudo comea pelo fatode que a reao do chefe ao affair responde ao carter de irreciprocidaderadical com que Leonardo estabeleceu suas relaes com Pele de Reclusa.Trata-se, enfim, de uma reao a um ato de guerra contra os Kamayur.Mas no s: essa interpretao sustenta-se na falsa idia de que as flau-tas em tela so entes materiais, inertes, e no como realmente elas so seres dotados de pessoalidade, agncia, de subjetividade enfim. Quando

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    Pele de Reclusa violou o inviolvel alicerce da constituio do mundokamayur , ela acionou o interruptor que desencadeou a seqncia detransformaes que aconteceram sob a tica feroz das flautas sagradas,liberadas de controle humano: a de Leonardo em flauta recusantede sua prpria msica , a de sua casa na casa das flautas e, por fim,dos homens kamayur numa coletividade delas.

    Notas

    1 A verso original deste texto, lida na mesa-redonda Antropologia & esttica aarte como gnsis e viso do mundo, na 25 Reunio Brasileira de Antropologia(Goinia, 11-14/6/6), saiu com alteraes em Antropologia em Primeira Mo,n. 85 (2006). Agradeo a Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes, organizador damesa, Ordep Serra e Idilva Germano, seus demais integrantes, pelos comentrios.A verso seguinte foi apresentada no simpsio Onda de choque: novas investi-gaes sobre as flautas rituais nas Terras Baixas da Amrica do Sul, no 52 Con-gresso Internacional de Americanistas (Sevilha, 17-21/7/6). Agradeo, agora, aJonathan Hill e a Jean-Pierre Chaumeil, organizadores do simpsio, e a seus outrosmembros. A presente verso diferente das anteriores.

    2 Na Universidade Federal de Santa Catarina, tambm coordena o Ncleo de EstudosArte, Cultura e Sociedade na Amrica Latina e Caribe (http://www.musa.ufsc.br); pesquisador do CNPq (1B). E-mail: [email protected].

    3 Conforme , acessado em 6/6/2006. Traduominha da epgrafe: O outro grande tipo de magia por simpatia, que eu chamo deMagia por Contgio, procede com base na noo de que as coisas que uma vezestiveram juntas devem assim permanecer para sempre, mesmo quando bem separa-das umas das outras, numa relao de simpatia tal que aquilo que ocorra com umasdeve tambm acontecer com as outras. Ento, a base lgica da Magia por Contgio,como aquela da Magia Homeoptica, uma associao errada de idias; sua basefsica, se que podemos falar disso aqui, como a base fsica da Magia Homeopti-ca, um meio material tal que, como o ter da fsica moderna, se supe que conecteos objetos distantes e possa transmitir caractersticas de uns para os outros.

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    4 Recordo que no sistema em comentrio o nmero 421 corresponde aos instru-mentos (aerofones) com defletor ou flautas (em ingls, edge [aerophones] instru-ments or flutes). Brevemente falando, esse sistema tem como nexos primeiros a dis-criminao entre os elementos (cordas, colunas de ar, membranas, etc.) responsveispela gerao sonora nos instrumentos musicais e pelos processos que a geram (paracordas, por exemplo, dedilhar, percutir, tocar com arco etc). Como se pode ver, adimenso timbrstica to importante, alis, para as msicas amerndias, como ocaso kamayur to bem ilustra est na sua base.

    5 No sistema em tela, idiofones so os instrumentos que tm no seu prprio (idio)corpo o elemento responsvel pela gerao do som.

    6 A proposta de Hill e Chaumeil (2006) para o simpsio referido na nota 1, ostrabalhos nele lidos, inclusive o meu a sair em livro organizado por Hill eChaumeil , coloca de maneira ao mesmo tempo detalhada e abrangente o interes-se etnogrfico do estudo das flautas sagradas. Ver Piedade (2004) para uma in-vestigao paradigmtica sobre a questo, com base no observatrio waur (wauja),aruaque xinguanos. Ver tambm Barcelos Neto (2004) e Mello (2005).

    7 As denncias indgenas (suy, kayab, truma) contidas em Menezes Bastos (2004a)tambm tm essa caracterstica. Note-se que a viso yawalapit dos Villas Boas bem diferente daquela dos Kamayur, sendo altamente positiva (conforme MenezesBastos, 1989, 1990, 1995).

    8 A presente transcrio resumida e aprimora a traduo de 1989, feita por infor-mantes bilnges, incluindo o prprio Takum.

    9 Xingu, no portugus dos Kamayur, a regio chamada por eles, em kamayur,de Yakarep (Jacar), acerca do hoje Posto Indgena Diauarum.

    10 Leonardo era o mais moo dos irmos Villas Boas (Orlando, o mais velho). Leo-nardo faleceu em 1961 de problemas cardacos, tendo sido dado seu nome ao an-tigo Posto Indgena Capito Vasconcelos como reconhecimento da importnciade sua contribuio para a criao do Parque.

    11 O pai de Takum era o ento chefe e grande paj Kutamap. Nessa poca, a aldeiakamayur localizava-se na boca do Ribeiro Tuatuari, em territrio que os prpriosKamayur reconhecem como yawalapit (ver Menezes Bastos, 1995).

    12 A nota 72 do original de 1989 considera que Takum aqui se queixa dos transtor-nos ocasionados ao perfeito cumprimento de seu perodo de recluso pubertriapor sua convivncia com os Villas Boas. Explicitamente, ele expe o choque entre

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    os pontos de vista de seu pai e os de Leonardo, e os dos Villas Boas em geral,quanto durao do mesmo. O primeiro que buscava formar Takum, seuprimognito, como chefe o queria longo, o segundo condicionando-o a ser cur-to. Se, no portugus kamayur de contato no contexto da presente narrativa, dezanos aponta para uma durao longa, dois meses o faz para uma muito breve.Note-se que a maior ou menor durao da recluso pubertria aponta o maior oumenor cuidado do pai na formao de seu filho, o que especialmente importanteno caso da formao do chefe.

    13 Esses outros carabas eram os demais funcionrios da Expedio Roncador-Xinguque acompanhavam os Villas Boas regio dos formadores do Xingu.

    14 Transcrevo ipsis litteris a nota 73 do original de 1989: A expresso errar cami-nho, com toda a piedade que a caracteriza, usada pelo narrador de maneira alta-mente sutil e eficaz no sentido da condenao moral de Leonardo do ponto devista do prprio quadro de valores retricos administrado por esse heri em suapedagogia de contato intertnico. No sentido da condenao e, caritativamente,do perdo!

    15 Mangauhet: imediatamente ex-reclusa pubertria. Kutamap, pai de Takum,tinha trs esposas ento, Pele de Reclusa sendo a mais jovem.

    16 Yumiamae (ou yakui) so as flautas sagradas kamayur (ver adiante).17 Falar mal (yeeng nikatuite), algo como xingar, comportamento verbal associal,

    caracterstico do feiticeiro e contrrio por excelncia etiqueta xinguana.18 Ela mudou-se desde ento para a Ilha do Bananal, onde se casou com um emi-

    nente chefe karaj.19 Recordo-me aqui imediatamente dos mitos de origem do ritual do Yawari (Menezes

    Bastos & Hermenegildo, 2002, p. 140; Menezes Bastos, 2004b, p. 96) e do pequi(Agostinho, 1974a, p. 109-12), entre tantos outros.

    20 Conforme meu texto de 1978[1999a]. Ver Piedade (2004) para um estudo, comoj disse, paradigmtico das flautas em comentrio entre os xinguanos aruaqueWauja. Vale referir como os xinguanos no so simplesmente iguais (nem sim-plesmente diferentes, como apontei uma vez) que, entre os Kamayur, as flautasem considerao no so mscaras, como o caso entre os Wauja, segundo o cita-do texto de Piedade, como tambm os tambm magnficos de Barcelos Neto(2004) e Mello (2005).

    21 Conforme figura que est em meu texto de 1978 (ver 1999a, p. 228).

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    22 Nesse tipo de aerofone, o som tem origem na vibrao, por presso de ar, doslbios do tocador.

    23 No caso dos clarinetes, o som tem origem numa palheta, posta a vibrar pelo aremitido pelo tocador. Essas diferenas acsticas envolvendo flautas, trompetes eclarinetes, assim como os demais instrumentos so de extremo interesse para osndios kamayur e, em geral, das Terras Baixas como um todo.

    24 Essa omisso talvez aponte para o nexo de que somente interessa ao referido kindredos ancestrais (geraes +2 e superiores), a prole (+1) e os siblings de ego (e ego, claro), devendo-se notar que no pensamento kamayur a autoria sua, por assimdizer, assinatura da substncia genealgica dos ancestrais, sendo apenas trans-mitida, veiculada pela gerao +1.

    25 Conforme Mello (2005), para um estudo aprofundado sobre essa temtica entreos Wauja, que envolve, de um lado, a msica das flautas sagradas masculinas e,de outro, parte relevante do repertrio da msica vocal feminina. Segundo esseestudo, as mulheres ouvem as flautas para gravarem suas melodias, transpondo-as ou melhor, tomando-as como modelos ; ento, para sua msica vocal, particu-larmente aquela do ritual do Iamurikum.

    26 Recordo que o mito que est na base do ritual do Iamurikum apresenta este, porassim dizer, risco em estado original o da transformao dos homens em mamae,provocando o mesmo entre as mulheres e, ento, o fim da socialidade (ver Mello,2005). Tratei da fragilidade do contrato social humano entre os Kamayur emalguns trabalhos, entre os quais os de 1990, 1993, 1995 e 2004b. Sobre o xama-nismo, conforme meu texto de 1984-1985.

    27 Conforme Hogbin (1970), entre tantos autores. A comparao referida est emMenezes Bastos (1999a[1978], pp. 223-32). Ver Piedade (2004) e alguns dos tex-tos presentes em Gregor e Tuzin (2001) para retomadas recentes da questo.

    28 Para coletneas da mitologia em tela, conforme o j referido Agostinho (1974a),Agostinho (1974b, pp. 159-201) e Villas Boas (1975). Agostinho (1974a,pp. 113-27) recolhe algumas narrativas especificamente sobre as ditas flautas esua parentela.

    29 A noo de taangap extremamente rica e complexa, tanto quanto a de mimese.Tratei dela em vrios textos, entre os quais os de 1984-1985, 1990 e 2001.

    30 Morena a regio onde o mundo se originou segundo os Kamayur. Ela se en-contra acerca do Yakarep.

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    31 Acessvel tambm on-line em .32 Este livro tem uma segunda edio, de 1999, feita em Florianpolis pela Editora

    da Universidade Federal de Santa Catarina. Recordo que ele transcreve, de manei-ra praticamente ipsis litteris, minha dissertao de mestrado, defendida em 1976na Universidade de Braslia.

    33 Disponvel tambm on-line em www.antropologia.ufsc.br.34 Idem.35 Disponvel tambm em .36 Idem.

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    ABSTRACT: The article contributes to the anthropology of the sacred flutesin lowland South America by retaking the analysis of an episode that oc-curred between 1947 and 1953 involving Leonardo Villas Boas and theKamayur, a Xinguano Tupian-Guarani speaking society. At that time,Leonardo the youngest of the Villas Boas Brothers had an ongoing andpublic love affair with Skin of Secluded, one of the wives of the great shamanand chief, Kutamap. The affair caused a commotion among the Indians,who placed a trio of sacred yaqui flutes inside Leonardos house. From thatmoment on, every time Skin of Secluded went there, she would see the flu-tes. As she broke the rule that dictates that women are prohibited of seeingthe flutes, Skin of Secluded was collectively raped. This originated her ostra-cism and the Villas Boas Brothers unfriendly relations with the Kamayur.For the Kamayur, seeing contrasts with hearing; the former pointingto an analytical form of knowledge (explanation), and the latter to a syn-thetic one (comprehension). The Kamayur interpret strengthening of thecapacity of seeing as a signal of anti-sociality, as in the case of the witches,or of supreme sociality, as in the case of the shamans. In contrast, thestrengthening of the aptitude of hearing is considered a signal of virtuo-sity in music and verbal art. Among the Kamayur, women are forbidden tosee the sacred yaqui flutes, yet they are expected to hear them. The clues foran indigenous interpretation of the episode arise from their construction ofthe senses, genders and power in short, from their ways of constitutingthe world: once Skin of Secluded violated the inviolable, Leonardo was trans-formed into a flute, his house into the flutes house, and the Kamayurmen into a collectivity of flutes. As a result of this, everything started tohappen under the flutes ferocious ethics.

    KEY-WORDS: sacred flutes, Upper Xingu, Kamayur Indians, cosmology,world hearing.

    Aceito em outubro de 2006.