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    Histria das disciplinas escolares:

    reflexes sobre um campo de pesquisaAndr Chervel

    Ainda que a histria do ensino possa avocar uma tradio jamplamentesecular, o estudo histrico dos contedos do ensino primrio ou secundrioraramente suscitou o interesse dos pesquisadores ou do pblico. Limitado emgeral s pesquisas pontuais sobre um exerccio ou sobre uma poca precisa, eleno se eleva ao nvel de snteses mais amplas a no ser em alguns trabalhos,fundamentados em textos oficiais ou programticos, como os de Falcucci1 ou dePiobetta2. Mais recentemente, tem-se manifestado uma tendncia, entre osdocentes, em favor de uma histria de sua prpria disciplina. Dos contedos doensino, tais como so dados nos programas, o interesse ento evoluiu

    sensivelmente para uma viso mais global do problema, associando-se as ordensdo legislador ou das autoridades ministeriais ou hierrquicas realidade concretado ensino nos estabelecimentos, e, algumas vezes, at mesmo s produesescritas dos alunos. E no grupo do Servio de Histria da Educao que tem secolocado. desde alguns anos, o problema geral: a noo de histria dasdisciplinas escolares tem sentido? A histria das diferentes disciplinas apresentaanalogias, traos comuns? E, para ir mais longe, a observao histrica permiteresgatar as regras de funcionamento, ver um ou vrios modelos disciplinaresideais, cujo conhecimento e explorao poderiam ser de alguma utilidade nosdebates pedaggicos atuais ou do futuro?

    I.A noo de "disciplina escolar"

    Neste campo o historiador confrontado com um problema pouco usual.Aplicada ao ensino, a noo de disciplina, independentemente de todaconsiderao evolutiva, no foi, nas cincias do homem, e em particular nascincias da educao, objeto de uma reflexo aprofundada. Demasiado vagas3ou demasiado restritas,4 as definies que dela so dadas de fato no esto deacordo a no ser sobre a necessidade de encobrir o uso banal do termo, o qual

    1 Clment Facucci: LHumanisme dans lenseignement secondaire en France ao XIX sicle, Paris, Toulouse,1939.2 J.B. Piobetta: Le Baccalaurat. Paris, 1937.3 Conjunto especfico de conhecimentos que tem suas caractersticas prprias sobre o plano do ensino, daformao, dos mecanismos, dos mtodos e das matrias. Guy Palmade: Interdisciplinarit ET idologie. Paris,Anthropos, 1977, p. 22.4 A disciplina uma unidade metodolgica: ela a `regra (disciplina) comum a um conjunto de matriasreagrupadas para fins de ensino (discere). J.P. Resweber: La Mthode Interdisciplinaire, Paris, P.U.F., 1982, p.46.

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    no distinguido de seus sinnimos, como matrias ou contedos deensino. A disciplina aquilo que se ensina e ponto final. No se est muito longeda noo inglesa de subjeq, que est na base de uma nova tendncia da histriada educao de Alm-Mancha, e da qual a definio se d pela acumulao eassociao de partes constitutivas5. Retoma ento ao historiador a tarefa dedefinir a noo de disciplina ao mesmo tempo em que faz a sua histria.

    A histria da palavra disciplina (escolar) e as condies nas quais ela seimps aps a Primeira Guerra Mundial colocam contudo em plena luz aimportncia deste conceito, e no permitem confundi-lo com os termos vizinhos.

    No seu uso escolar, o termo disciplina e a expresso disciplinaescolar no designam, at fim do sculo XIX mais do que a vigilncia dosestabelecimentos, a represso das condutas prejudiciais sua boa ordem e aquelaparte da educao dos alunos que contribui para isso6. No sentido que nos

    interessa aqui, de "contedos do ensino", o termo est ausente de todos osdicionrios do sculo XIX, e mesmo do Dictionnaire de l'Academie de 1932.Como se designavam, antes dessa poca, as diferentes ordens de ensino? Quettulo geral se dava s rubricas dos diferentes cursos?

    Nos textos, oficiais ou no, um grande nmero de frmulas confusasmanifesta a ausncia e a necessidade de um termo genrico. Eis trs exemplos:"Foi publicado, este ano, em cada academia, uma brochura dando (...) a lista doscursos agrupados por analogia de ensino";7 "no se tinham ainda criado osinspetores gerais de todos os graus e de todos os tipos";8 "No segundo ciclo,quatro agrupamentos de cursos principais so oferecidos opo dos alunos".9Os equivalentes mais freqentes no sculo XIX so as expresses "objetos","partes", "ramos", ou ainda "matrias de ensino".10

    Lembremos igualmente aqui um termo que, ainda que tenha: totalmentedesaparecido neste sentido ao final do sculo XIX, designa, entretanto,ordinariamente, desde o sculo XVIII, as diferentes disciplinas, ou maisprecisamente, as composies dos alunos nessas disciplinas: a palavra"faculdade". Assim, o ministro Villemain fez-se remeter os melhores exemplares"de cada uma das faculdades seguidas pelos alunos de filosofia, matemtica

    5Para Ivor Goodson, por exemplo, os subjects rea not monolithic entities, but shifting amalgamations of sub-groups and traditions. Shool subjects and curriculum change. Case studies in curriculum history. Londres,Croom Helm, 1983, p. 3.6 ainda o nico sentido dado disciplina escolar no Nouveau dictionnaire de pdagogie ET dinstructionprimare, publicado por Ferdinand Buisson em 1911. o de Foucault, em Surveillir et punir.7 Circular de 24 de maro de 18848 Francisque Bouillier: Souvenirs dun vieil universitaire, Orlans, p. 38.9 Decreto de 31 de maio de 1902.10Por exemplo, o estatuto de 1821 estipula: Espera-se que todos os alunos sigma todas as partes do ensino esuas respectivas classes. Decreto de 4 de setembro de 1821.

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    especial, retrica, etc."11 E ainda, em todos os ltimos anos do sculo: "O alunoque, numa classe, obteve uma meno no concurso geral de um ano anterior, nopode concorrer na mesma faculdade a no ser para uma meno no mnimoigual".12

    A apario, durante os primeiros decnios do sculo XX, do termo"disciplina" em seu novo sentido vai, certamente, preencher uma lacunalexilgica, j que se tem necessidade de um termo genrico. Ela vai sobretudopr em evidncia, antes da banalizao da palavra, as novas tendnciasprofundas do ensino, tanto primrio quanto secundrio. Descartemosprimeiramente a informao falaciosa dos dicionrios etimolgicos13 queatribuem a Oresme, no comeo do sculo XIV a primeira utilizao da palavrano sentido de "contedo de ensino". Dever-se-ia acrescentar ainda que ela parecedesaparecer totalmente a seguir do uso para ressurgir no fim do sculo XIX,

    onde objeto de uma nova criao. um emprstimo do latim disciplina, quedesigna "a instruo que o aluno recebe do mestre"?14 Seria uma hipteseplausvel se a palavra francesa tivesse aparecido ou reaparecido no sculo XVIou XVII, numa poca onde a pedagogia se escreve correntemente em lngualatina15: mas este no o caso. Um emprstimo ao alemo16 deve tambm serdescartado, no obstante a influncia dos pedagogos de Alm-Reno no fim dosculo XIX.

    Na realidade, essa nova acepo da palavra trazida por uma largacorrente de pensamento pedaggico que se manifesta, na segunda metade dosculo XIX, em estreita ligao com a renovao das finalidades do ensinosecundrio e do ensino primrio. Ela faz par com o verbo disciplinar, e sepropaga primeiro como um sinnimo de ginstica intelectual, novo conceitorecentemente introduzido no debate. durante a dcada de 1850, que marca ocomeo da crise dos estudos clssicos, que os partidrios das lnguas antigascomeam a defender a idia de que, na falta de uma cultura, o latim traz aomenos uma ginstica intelectual, indispensvel ao homem cultivado.17

    11 Circular de 1 de julho de 1839. Cf. tambm P. Lorain: Tableau de linstruction primaire em France. Paris,1837, p. 115: A escrita nas escolas em que ela existe, geralmente no a faculdade de en sino maisnegligenciada.12 Circular de 20 de fevereiro de 1895.13Cf. ainda Tresor de La langue franaise, verbete disciplina14Por oposio doctrina, a instruo relativa quele que a d. Gardin-Dumesnil: Synonymes Latins, 1777;citado da 4 edio, 1815.15Cf. Claude Baduel. Disciplinas instituendae orationis, as disciplinas do ensino do discurso, a gramtica, adialtica, a reetrica (De Officio et munere eorum qui juventutem erudiendam suscipiunt, Lugduni, Gryphium,1544). Cf. igualmente o tratado De disciplinis de Vives.16Disciplin, ou Disziplin, Lehrzweig, Wissenschaft. Weigand: Deutsches Worlebuch, 4te Auft., Giessen, 1881.17 Cf. por exemplo, o abade J. Verniolles: Essai sur La traduction considre comme Le principal exercice dsclasses suprieures. Paris, 1856, p. 24. Raoul Frary a denunciar com pertinncia: porque o coroamento dos

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    Paralelamente, a confuso dos objetivos do ensino primrio durante a dcada de1870 leva a repensar em profundidade a natureza da formao dada ao aluno.At a, inculcava-se. Deseja-se, de agora em diante, disciplinar: "Disciplinar ainteligncia das crianas, isto constitui o objeto de uma cincia especial que sechama pedagogia", escreve, no rastro de Michel Bral, o lingista FrdricBaudry.18 E Clestin Hippeau, depois de ter criticado a "opinio que consideraeste estudo (das lnguas antigas) como mais conveniente para desenvolver, paraexercitar, disciplinar o esprito do que toda outra cincia, afirma que "por essaspalavras de disciplina intelectual, de ginstica do esprito, segundo a expressoconsagrada, entende-se o desenvolvimento do julgamento, da razo, da faculdadede combinao e de inveno".19

    Neste novo sentido de exerccio intelectual, primeiro com o matemtico filsofo Antoine Cournot que a palavra aparece.20 Mas sobretudo com Flix

    Pcaut,21

    e com os artesos da renovao pedaggica de 1880 que e1a se devepropagar como um dos temas fundamentais da nova instruo primria.22Faltam-lhe duas etapas a vencer para chegar at ns.

    Num primeiro momento, ela passa do geral ao particular, e passa asignificar uma "matria de ensino suscetvel de servir de exerccio intelectual".Parece que essa evoluo no se produz antes dos primeiros anos do sculo XX.Pode-se falar doravante, no plural, de diferentes disciplinas. Assim, o ministroSteeg, em 1911: "A Universidade fica em harmonia com seu tempo. Dasdisciplinas passadas, ela se empenha em preservar o melhor, dando todo o seuesforo para criar as novidades, impostas pela evoluo da sociedade".23

    surpreendente ver a palavra aparecer to tardiamente no ensinosecundrio, o qual jamais escondeu sua vocao em formar os espritos pelo

    estudos latinos falta a dezenove vigsimos dos alunos que se imaginou, alis tardiamente, essa teoria da ginsticaintelectual La Question Du latin, Paris, 4 ed., 1887, p. 117.18 Questions scolaires. props Du livre d e M. Brat et de La circulaire Du 27 septembre, 1872. Paris, 1873, p.6.19 Lducation et linstruction considre dans leus rapports avec Le bien-tre social et le perfectionnement delesprit humain. Paris, 1885, p. 300.20 Os cursos especiais de histria tem o grave inconveniente de se prestar mal determinao de deveres ou detarefas, que so o fundo da disciplina escolar e o verdadeiro modo de formar os espritos. Ds institutionsdinstruction publique em France. Paris, 1864, p. 82. Cf. tambm Considrations sur la marche des ides. 1872,

    t.l.p. 172.21 Cf. tudes ou jour Le jour sur l ducationale. Paris, 1879, p. 99.22 E alm disso secundria. Por exemplo, em Gabriel Compayr: As humanidades constituiro sempre umaexcelente disciplina, apropriada s mil maravilhas s faculdades da criana. tudes sur lenseignements et surlducation. Paris, 1891, p. 169.23 Carta aos peticionrios lhes solicitando, em nome dos interesses do francs, reexaminar a reforma de 1902.

    Bulletinadministratif, 1911, t.89, PP. 640-644. Cf. tambm Paul Van Tieghem: Legatrio universal das antigasdisciplinas [o latim, a gramtica, etc.] abolidas, diminudas ou transformadas, ele [o francs] deve representar-noso equivalente de tudo o que se sacrificou para enriquec-lo. isso que a classe de francs, RevueUniversitaire, 1909, t.1, p. 312.

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    exerccio intelectual. A razo desse atraso simples. At 1880, mesmo at 1902,para a Universidade no h seno um modo de formar os espritos, no mais doque uma "disciplina", no sentido forte do termo: ai humanidades clssicas. Umaeducao que fosse fundamentalmente matemtica ou cientfica no deveria ser,antes do comeo do sculo XX, plenamente reconhecida como uma verdadeiraformao do esprito. somente quando a evoluo da sociedade e dos espritospermite contrapor A disciplina literria uma disciplina cientfica que se faz sentira necessidade de um termo genrico.

    Logo aps a I Guerra Mundial, enfim, o termo "disciplina" vai perder afora que o caracterizava at ento. Toma-se uma pura e simples rubrica queclassifica as matrias de ensino, fora de qualquer referncia s exigncias daformao do esprito24. Basta dizer o quanto recente o termo que utilizamosatualmente: no mximo uns sessenta anos. Mas, ainda que esteja enfraquecido na

    linguagem atual, ele no deixou de se conservar e trazer lngua um valorespecfico ao qual, ns, queiramos ou no, fazemos inevitavelmente apeloquando o empregamos. Com ele, os contedos de ensino so concebidos comoentidades sui generis, prprios da classe escolar, independentes, numa certamedida, de toda realidade cultural exterior escola, e desfrutando de umaorganizao, de uma economia interna e de uma eficcia que elas no parecemdever a nada alm delas mesmas, quer dizer sua prpria histria. Alm do mais,no tendo sido rompido o contato com o verbo disciplinar, o valor forte do termoest sempre disponvel. Uma "disciplina", igualmente, para ns, em qualquercampo que se a encontre, um modo de disciplinar o esprito, quer dizer de lhe daros mtodos e as regras para abordar os diferentes domnios do pensamento, doconhecimento e da arte.

    II. As disciplinas escolares, as cincias de referncia e a pedagogia

    Estas consideraes lexicolgicas por certo no pesam, no debate, senoo peso das palavras. Em todo caso permitem atrair imediatamente a atenosobre a natureza prpria da entidade "disciplinar". Pois prevalece, no domniodos contedos de ensino, um consenso que, em geral, mesmo os historiadores do

    ensino partilham, e que no foi recolocado em questo a no ser a partir de unsquinze anos para c pelos especialistas de certas disciplinas.25 Estima-seordinariamente, de fato, que os contedos de ensino so impostos como tais

    24 No momento em que no h candidatos numa disciplina, h lugar, contudo, para evitar toda inc erteza porocasio do controle das tarefas, para estabelecer um relatrio aplicando a meno NULO. Circular sobre oconcurso geral, 17 de abril de 1929.25 Os I.R.E.M. parecem ter desempenhado um papel pioneiro neste ponto, como em outros.

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    escola pela sociedade que a rodeia e pela cultura na qual ela se banha. Naopinio comum, a escola ensina as cincias, as quais fizeram suas comprovaesem outro local. Ela ensina gramtica porque a gramtica, criao secular doslingistas, expressa a verdade da lngua; ela ensina as cincias exatas, como amatemtica, e, quando ela se envolve com a matemtica moderna , pensa-se,porque acaba de ocorrer uma revoluo na cincia matemtica; ela ensina ahistria dos historiadores, a civilizao e a cultura latina da Roma antiga, afilosofia dos grandes filsofos, o ingls que se fala na Inglaterra ou nos EstadosUnidos, e o francs de todo o mundo.

    a essa concepo dos ensinos escolares que est diretamente ligada aimagem que geralmente no faz da "pedagogia. Se se ligam diretamente asdisciplinas escolares s cincias, aos saberes, aos savoir-faire correntes nasociedade global, todos os desvios entre umas e outros so ento atribudos

    necessidade de simplificar, na verdade vulgarizar, para um pblico jovem, osconhecimentos que no se lhe podem apresentar na sua pureza e integridade. Atarefa dos pedagogos, supe-se, consiste em arranjar os mtodos de modo queeles permitam que os alunos assimilem o mais rpido e o melhor possvel amaior poro possvel da cincia de referncia.

    As disciplinas reduzem-se, nessa hiptese, s "metodologias": tal naverdade, de resto, o termo que designa, na Blgica, e mesmo s vezes na Frana,a pedagogia. Ao lado da disciplina-vulgarizao imposta a imagem dapedagogia-lubrificante, encarregada de lubrificar os mecanismos e de fazer girara mquina.

    Esse esquema, largamente aceito pelos pedagogos, os didticos e oshistoriadores, no deixa nenhum espao existncia autnoma das "disciplinas":elas no so mais do que combinaes de saberes e de mtodos pedaggicos. Ahistria cultural de um lado, a histria da pedagogia de outro, tm, at o presente,ocupado e esgotado a totalidade do campo.

    de uma ou de outra que a histria das disciplinas escolares tributria.De um lado, histria das cincias, dos saberes, da lngua, da arte, ela pedeemprestada toda a parte relevante do seu ensino. histria da pedagogia, elasolicita tudo o que parte integrante dos processos de aquisio, fazendo

    constantemente a separao entre as intenes anunciadas ou as grandes idiaspedaggicas e as prticas reais. Diante dessas duas correntes bem instaladas, elase encarrega de estabelecer que a escola no se define por uma funo detransmisso dos saberes, ou de iniciao s cincias de referncia. O que,apresentado desses termos abruptos, parece levar a um paradoxo.

    O exemplo da histria da gramtica escolar mostra, contudo, que a provapode ser fornecida. A escola ensina, sob esse nome, um sistema, ou melhor, uma

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    combinao de conceitos mais ou menos encadeados entre si. Mas trs resultadosda anlise histrica impedem definitivamente que se considere essa matriacomo uma vulgarizao cientfica. Ela mostra, primeiro, que contrariamente aoque se teria podido acreditar, a "teoria" gramatical ensinada na escola no expresso das cincias ditas, ou presumidas "de referncia", mas que ela foihistoricamente criada pela prpria escola, na escola e para a escola. O que jbastaria para distingui-la de uma vulgarizao. Em segundo lugar, oconhecimento da gramtica escolar no faz parte - com exceo de algunsconceitos gerais como o nome, o adjetivo ou o epteto26 - da cultura do homemcultivado. isto que o ministro da Instruo pblica dizia j em 1866: Ascrianas de dez a onze anos falam de verbos transitivos e intransitivos, deatributos simples e complexos, de proposies incidentes explicativas oudeterminativas, de complementos circunstanciais, etc., etc. necessrio no ter

    nenhuma idia do esprito das crianas, que contrrio s abstraes e sgeneralidades, para acreditar que elas compreendem tais expresses, que vs eeu, Senhor Reitor, nos esquecemos desde h muito; um puro esforo dememria em prol de inutilidades".27 Enfim, a prpria gnese dessa gramticaescolar no deixa nenhuma dvida sobre sua finalidade real. A criao de seusdiferentes conceitos tem constantemente coincidido no tempo com seu ensino,assim como com o ensino da ortografia, dentro de um vasto projeto pedaggico,que o da escola primria desde a Restaurao, e que traz, nos programas e nosplanos de estudo do sculo XIX, um ttulo que no faz referncia nem ortografia nem gramtica: "os elementos da lngua francesa". Na sua realidadedidtica cotidiana, como nas suas finalidades, a gramtica escolar francesaembarcou, de fato, na grande empresa nacional de aprendizagem da ortografia,empresa que no tem nada a ver com qualquer vulgarizao.

    Poder-se-ia demonstrar, da mesma forma, que os "mtodos pedaggicos"postos em ao nas aprendizagens so muito menos manifestao de uma cinciapedaggica que operaria sobre uma matria exterior do que de alguns doscomponentes internos dos ensinos. A prpria gramtica escolar no mais doque um mtodo pedaggico de aquisio da ortografia; a anlise gramatical nopassaria de um mtodo pedaggico de assimilao da gramtica, e assim por

    diante. Excluir a pedagogia do estudo dos contedos condenar-se s nadacompreender do funcionamento real dos ensinos. A pedagogia, longe de ser umlubrificante espalhado sobre. o mecanismo, no seno um elemento desse "mecanismo, aquele que transforma os ensinos em aprendizagens.

    Sobre a histria da Frana escolar, sobre o francs das redaes

    26 Os quais, pensando bem, remetem a mais alta antiguidade.27 Circular sobre o estudo da gramtica nas escolas, 7 de outubro de 1866. (Sou eu que sublinho).

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    tradicionalmente ensinado aos alunos, sobre a cultura latina dos colgios doAntigo Regime, sobre a filosofia "universitria", inaugurada por Victor Cousin,poder-se-iam fazer destaques da mesma ordem. Em suma, as disciplinasliterrias no esto sozinhas em jogo. Demonstrou-se28 que alguns conceitosmatemticos introduzidos h uns vinte anos no primeiro ciclo do secundrio notm muito em comum com seus homnimos eruditos que lhe serviriam desustentao: os didticos da matemtica medem hoje a distncia existente entre o"saber erudito" e o "saber ensinado".

    A concepo de escola como puro e simples agente de transmisso desaberes elaborados fora dela est na origem da idia, muito amplamentepartilhada no mundo das cincias humanas e entre o grande pblico, segundo aqual ela , por excelncia, o lugar do conservadorismo, da inrcia, da rotina. Pormais que ela se esforce, raramente pode-se v-la seguir, etapa por etapa, nos seus

    ensinos, o progresso das cincias que se supe ela deva difundir. Quantossarcasmos contra a gramtica escolar procederam, nos anos de 1960 e 1970, aintroduo triunfal da lingstica estrutural e transformacional! A vagamodernista devia refluir dez anos mais tarde, confirmando assim umaexperincia histrica bem densa: quando a escola recusa, ou expulsa depois deuma rodada, a cincia moderna, no certamente por incapacidade dos mestresde se adaptar, simplesmente porque seu verdadeiro papel est em outro lugar, eao querer servir de reposio para alguns saberes eruditos", ela se arriscaria ano cumprir sua misso.

    III. O objeto da histria das disciplinas escolares

    A histria dos contedos de ensino, e sobretudo a histria das disciplinasescolares, representa a lacuna mais grave na historiografia francesa do ensino,lacuna sublinhada desde h meio sculo. Afora Ferdinand Brunot, o historiadorda lngua, que desempenhou um papel de pioneiro na histria do ensino dofrancs,29 no da Universidade francesa que vieram os primeiros apelos emfavor dessas pesquisas. primeiramente um marginal - j que franco-americano-, Henri Peyre, que, inventariando os trabalhos que lhe pareciam indispensveis a

    uma histria da literatura, coloca em primeiro lugar a histria dos estudos: Ahistria do ensino e dos instrumentos de ensino vergonhosamentenegligenciada por aqueles dentre ns que desejam compreender a fundo os

    28 Yves Chevallard: La Transposition didactique Du savoir savant au savoir enseign. Grenoble. La Pensesauvage, 1985. A noo de transposio didtica foi introduzida por Michel Verret (Le Temps des tudes.

    Atelier de Reproduction ds thses de Lille, 1975, p. 140).29 Cf. seu Histoire de La langue franaise ds origines nos jours, surgido em Colin a partir de 1905 (23volumes).

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    escritores do passado".30 , depois, o padre Franois de Dainville, o historiadordos colgios jesutas: "Os historiadores das cincias negligenciaramdemasiadamente at aqui a histria do ensino das cincias".31 Mais recentementeJean Ehrard,32 Robert Mandrou,33 Antoine Lon,34 Roger Fayolle,35 e outrosainda, manifestaram seu interesse por essa orientao.

    A histria das disciplinas escolares no deve, entretanto ser consideradacomo uma parte negligenciada da histria do ensino que, depois de corrigida,viria a lhe acrescentar alguns captulos. Pois no se trata somente de preencheruma lacuna na pesquisa. O que est em questo aqui a prpria concepo dahistria do ensino. Afora algumas excees notveis, toda a tradiohistoriogrfica francesa na matria se inspira numa concepo redutora. Histriadas instituies educacionais, ela se comporta exatamente como toda histria dasinstituies, judicirias, religiosas, ou outras. Histria das populaes escolares,

    nada a distingue, em seu princpio, de todos os estudos sobre os corpos dematrias ou os grupos sociais. Quanto histria das polticas educacionais oudas idias pedaggicas, elas no fazem segredo, nenhuma nem outra, de suadependncia das rubricas histricas bem conhecidas. Nem as monografias, nem,a fortiori, as grandes snteses, escapam a estes quadros tradicionais. Enquanto serecusa a reconhecer a realidade especficas das disciplinas de ensino, o sistemaescolar no merece, de fato, outro tratamento por parte do historiador: ele no mais do que uma instituio particular que recebe e pe em contato dois tipos depopulao, e onde, de acordo com tal poltica educacional ou tal orientaopedaggica, ele "ensina" um certo nmero de matrias da qual a natureza no de modo algum problemtica.

    Tudo muda, evidentemente, a partir do momento em que se renuncia a

    30L Influence ds ltratures antiques sur La litrature franaise moderne. tal ds travaux. New HavenUniversity Press, 1941, p. 9. Seria fundamental saber, acrescenta ele, como se operou, e depois persistiu, essaescolha que h muito tempo fez de Xenoofonte ou de Iscrates o modelo de prosa grega (e da uma influnciapoderosa sobre a prosa francesa) ou de Ccero o ideal de todos os professores de traduo latina. Pois a aoconsidervel exercida sobre a prosa francesa (e estrangeira) pela leitura assdua do latim e do grego no foi

    jamais suficientemente determinada. Ibid, p. 18.31 Revue dhistoire ds sciences ET de leurs applications, 1954, t. VII, p. 6.32 Se verdade que toda histria literria sria deveria apoiar-se sobre uma histria do ensino, a histria da

    literatura no ameaada, ao menos na poca moderna e contempornea, de estar desprovida de matria:programas e instrues oficiais, assuntos de exame e de concursos, livretos de distribuio dos prmios, cursospblicos ou cadernos de nota, testemunhos individuais sobre o ensino recebido ou dado, etc. La littraturefranaise Du XVIII sicle dans lenseignement secondaire em France au XIX siele: Le Manuel de Noel LaPlace, 1804-1862, Transactions of the fourth international Congress of the Enlightennents, nos Studies onVoltaire and the eighteenth century. Ed. Por Th. Beatermann, Oxford, 1976.33 La France aux XVII ET XVIII sicles. Paris, P.U.F., Nouvelle Clio, 1967, pp. 280-282.34 Introduction lhistoire des faits ducatifs, Paris, P.U.F., 1980, p. 132.35Ls Confessions dans ls manuels scolaires de 1890 nos jours in: Oeuvres ET critiques. III, 1, Lecture dsConfessions de J.J. Rousseau, 1978.

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    identificar os contedos de ensino com as vulgarizaes ou com as adaptaes.Pois as disciplinas de ensino so irredutveis por natureza a essas categoriashistoriogrficas tradicionais. Sua constituio e seu funcionamento colocam deimediato ao pesquisador trs problemas. O primeiro o de sua gnese. Como aescola, sendo a partir da desqualificada toda outra instncia, comea a agir paraproduzi-las? O segundo refere-se sua funo. Se a escola se limitasse a"vulgarizar" as cincias ou a adaptar juventude as prticas dos adultos, atransparncia dos contedos e a evidncia de seus objetivos seriam totais. J queela ensina suas prprias produes, no se pode seno se questionar sobre suasfinalidades: elas servem para qu? Por que a escola foi levada a tomar taisiniciativas? Em qu determinada disciplina responde expectativa dos pais, dospoderes pblicos, dos que decidem?

    Terceiro e ltimo problema, o de seu funcionamento. Aqui ainda, a

    questo no teria sentido se a escola propagasse a vulgarizao para reproduzir acincia, o saber, as prticas dos adultos: a mquina funcionaria tal e qual, eimprimiria nos jovens espritos uma imagem idntica, ou uma imagemaproximada, do objetivo cultural visado. Ora, nada disso se passa no quadro dasdisciplinas. No, certamente, que no haja a um objetivo. Simplesmente,constata-se que, entre a disciplina escolar posta em ao no trabalho pedaggicoe os resultados reais obtidos, h muito mais do que uma diferena de grau, ou depreciso. Questo: como as disciplinas funcionam? De que maneira elasrealizam, sobre o esprito dos alunos, a "formao" desejada? Que eficcia real econcreta se lhes pode reconhecer? Ou, mais simplesmente, quais so osresultados do ensino?

    Essa problemtica distingue-se de todas as que foram levantadas at opresente na histria do ensino. Longe de ligar a histria da escola ou do sistemaescolar s categorias externas, ela se dedica a encontrar na prpria escola oprincpio de uma investigao e de uma descrio histrica especfica. Sua

    justificativa resulta da considerao da prpria natureza da escola. Se o papel daescola o de ensinar e, de um modo geral, o de "educar", como no ver que ahistria da funo educacional e docente deve constituir o piv ou o ncleo dahistria do ensino? Desde que se compreenda em toda a sua amplitude a noo

    de disciplina, desde que se reconhea que uma disciplina escolar comporta nosomente as prticas docentes da aula, mas tambm as grandes finalidades quepresidiram sua constituio e o fenmeno de aculturao do massa que eladetermina, ento a histria das disciplinas escolares pode desempenhar um papelimportante no somente na histria da educao mas na histria cultural. Se sepode atribuir um papel "estruturante" funo educativa da escola na histria doensino, devido a uma propriedade das disciplinas escolares. O estudo dessas

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    leva a pr em evidncia o carter eminentemente criativo do sistema escolar, e,portanto a classificar no estatuto dos acessrios a imagem do uma escolaencerrada na passividade, do uma escola receptculo dos sub-produtos culturaisda sociedade. Porque so criaes espontneas e originais do sistema escolar que as disciplinas merecem um interesse todo particular. E porque o sistemaescolar detentor do um poder criativo insuficientemente valorizado at aqui que ele desempenha na sociedade um papel o qual no se percebeu que eraduplo: de fato ele forma no somente os indivduos, mas tambm uma culturaque vem por sua vez penetrar, moldar, modificar a cultura da sociedade global.

    As disciplinas escolares que tiveram curso na histria do ensino francsconstituem em cada poca um conjunto acabado e com limites claramentetraados. Sua delimitao e sua designao realam problemas de naturezadiversa, dos quais a soluo no pode surgir a no ser de um estudo detalhado de

    cada caso. Aprendizagem da leitura, "francs", cosmografia, histria egeografia", instruo religiosa, filosofia: todas essas matrias de ensino trazemde fato sua problemtica prpria. As primeiras aprendizagens tm o mesmostatus que as outras? A ortografia, a composio e a leitura de textos so uma se mesma disciplina? Uma disciplina pode, com a esfera", limitar-se a umaquesto nica, como o caso em muitos colgios do sculo XVIII?

    As associaes terminolgicas e disciplinares familiares ao ensinofrancs, como histria o geografia, ou fsico-qumica, denunciam a existncia dedisciplinas vizinhas, ou combinadas, ou de uma s disciplina? O ensino religiosodos colgios o das escolas antes de 1880 est o domnio de uma formao maisgeral e mais decisiva dada pelo padre ou tem uma real autonomia? S aconsiderao da economia interna destes ensinos permite responder a essasquestes.

    Mas o quadro geral do exerccio das disciplinas apresenta de imediatouma limitao cuja natureza joga um papel determinante na sua gnese e dosseus caracteres: aquela que est ligada idade. A transmisso cultural de umagerao outra pe em ao processos que se diferenciam segundo a idade dosque aprendem. provvel que as caractersticas formais dos docentes para seisanos, dez anos o quatorze anos no sejam rigorosamente idnticas. Mas o

    verdadeiro limiar aquele que separa o ensino das crianas e dos adolescentes doensino dos adultos. A est um dos aspectos decisivos da histria das disciplinasescolares, que tem estado h muito eclipsado por fenmenos vizinhos muito maisvisveis. Entre o ensino primrio e o secundrio de um lado, e o ensino superiorde outro (para retomar uma terminologia que no remonta alm dos anos 1830ou 1840), as diferenas so mltiplas, e importantes. Elas se referem s matriasensinadas, mesmo se h alguns pontos comuns em letras e em cincias,

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    qualidade do pessoal docente, aos estabelecimentos de ensino, s relaes queunem mestres e alunos, e prpria natureza dos pblicos de alunos, "forados"num caso, e livres no outro.

    Mas o essencial no est a. O que caracteriza o ensino de nvel superior, que ele transmite diretamente o saber. Suas prticas coincidem amplamentecom suas finalidades. Nenhum hiato entre os objetivos distantes e os contedosdo ensino. O mestre ignora aqui a necessidade de adaptar a seu pblico oscontedos de acesso difcil, e de modificar esses contedos em funo dasvariaes de seu pblico: nessa relao pedaggica, o contedo uma invariante.Todos os seus problemas de ensino se remetem aos problemas da comunicao:eles so, quando muito, de ordem retrica. E tudo que se solicita ao aluno estudar" esta matria para domin-la e assimil-la: um "estudante". Alcanadaa idade adulta, ele no reivindica didtica particular sua idade. Certamente, o

    ponto de vista um pouco esquemtico aqui apresentado no leva em conta ofenmeno recente da "secundarizao" do ensino superior: mas justamente estaexpresso ilustra bem a conscincia profunda de uma diferenciao clara entredois tipos de ensino.

    Face aos ensinos "superiores", a particularidade das disciplinas escolaresconsiste em que elas misturam intimamente contedo cultural e formao doesprito. Seu papel, elas no o exercem seno nas idades da formao, seja elaprimria ou secundria. E a delicada mecnica que elas pem em ao no somente um efeito das exigncias do processo de comunicao entre sereshumanos. Ela sobretudo parte integrante da "pedagogia".

    Nada de mais significativo deste ponto de vista do que o emprego dotermo aluno (lve) para o primrio e para o secundrio. A tambm, o sculoXIX apresenta uma evoluo sensvel. Os sinonimistas opunham o escolar(coller) e o aluno (lve): "Ensina-se ao escolar, ensina-se a ele o que ele devesaber (...)Forma-se o aluno, ensina-se o que ele deve ser" escrevia por exemplo,Lafaye.36Aluno tambm empregado prioritariamente para o secundrio que fazda formao humanista seu nico objetivo; e Littr se recusa a utiliz-lo para oprimrio.37 O uso, por certo, foi muito menos sectrio, e no exclua o empregoda palavra aluno para o primrio. Permanece o fato de que, em todos os textos da

    poca, ela concorria constante e fortemente com a palavra criana. So asprofundas confuses que sacodem a escola primria no fim do sculo que,reaproximando suas finalidades daquelas do secundrio. transformando em"educao" e em "formao do esprito" o que at ento no era mais do que

    36 Dictionnaire ds synonymes de La langue franaise. Paris, 2 ed., s.v. colier.37leve (aluno): Aquele que recebe a instruo num liceu, num colgio, num internato, numa escola especial,como a Escola Politcnica, a Escola normal, etc. Dictionnaire de La langue franaise.

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    "instruo" e "'aprendizagens elementares" que vo aclimatar definitivamente otermo aluno no ensino primrio. A ligao entre "disciplina" o "aluno" clara.As disciplinas so esses modos de transmisso cultural que se dirigem aosalunos. Foi a existncia das disciplinas que historicamente traou o limite entresecundrio e superior. E alguns projetos atuais de criao de "colgios"encarregados do DEUG (Diplme d'tudes Universitaires Gnerales) poderiambem trazer uma confirmao muito moderna a essas observaes.

    Convm ento representar-se a escolaridade das crianas ou dosadolescentes como a princpio totalmente imersa nos procedimentos tipicamente"disciplinares", e evoluindo gradualmente em direo aos ensinamentos cada vezmenos disciplinares e, por exemplo, cada vez mais "cientficos". A determinaoexata dos limiares carece ainda aqui do estudo histrico. Em todo caso, ocontexto institucional explica o contraste, flagrante no sculo XIX, entro a

    filosofia "universitria" francesa e a dos pases vizinhos. riqueza, a fora e diversidade da filosofia alem das quais o bero o ensino superior, aUniversidade francesa no ope ento seno um amontoado ecltico" cujainsigne fraqueza terica devida natureza "disciplinar" da criao de VictorCausin, sendo a filosofia, na Frana, uma classe dos liceus e dos colgios.

    A histria das disciplinas escolares no ento obrigada a cobrir atotalidade dos ensinos. Pois sua especificidade, ela a encontra nos ensinos da"idade escolar" A histria dos contedos evidentemente seu componentecentral; o piv ao redor do qual ela se constitui. Mas seu papel mais amplo. Elase impe colocar esses ensinos em relao com as finalidades s quais eles estodesignados e com os resultados concretos que eles produzem. Trata-se ento paraela de fazer aparecer a estrutura interna da disciplina. a configurao original qual as finalidades deram origem, cada disciplina dispondo, sobre esse plano, deuma autonomia completa. mesmo se analogias possam se manifestar de uma paraa outra.

    IV. As finalidades do ensino escolar

    O problema das finalidades da escola certamente um dos mais

    complexos e dos mais sutis com os quais se v confrontada a histria do ensino.Seu estudo depende em parte da histria das disciplinas. Pode-se globalmentesupor que. a sociedade, a famlia. a religio experimentaram, em determinadapoca da histria, a necessidade de delegar certas tarefas educacionais a umainstituio especializada, que a escola e o colgio devem sua origem a essademanda, que as grandes finalidades educacionais que emanam da sociedadeglobal no deixaram de evoluir com as pocas e os sculos, e que os

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    comanditrios sociais da escola conduzem permanentemente os principaisobjetivos da instruo e da educao aos quais ela se encontra submetida.

    A identificao, a classificao e a organizao desses objetivos oudessas finalidades so uma das tarefas da histria das disciplinas escolares. Emdiferentes pocas vem-se aparecer finalidades de todas as ordens, que ainda queno ocupem o mesmo nvel nas prioridades da sociedades, so todas igualmenteimperativas. H. em primeiro lugar. as finalidades religiosas. fundamentais sob oAntigo Regime e, at 1882, na escola pblica. Assim. o regulamento modelo dasescolas primrias de 17 de agosto de 185138 estipula. em seu artigo 1 : "Oprimeiro dever do mestre de dar s crianas uma educao religiosa. e degravar profundamente em sua alma o sentimento de seus deveres para com Deus,para com seus pais, para com os outros homens e para com eles mesmos.". Asfinalidades scio-polticas vm a seguir. Os grandes objetivos da sociedade. que

    podem ser, segundo as pocas, a restaurao da antiga ordem. a formaodeliberada de uma classe mdia pelo ensino secundrio, o desenvolvimento doesprito patritico. etc., no deixam de determinar os contedos do ensino tantoquanto as grandes orientaes estruturais. Finalidades de cada um dos grandestipos de ensino, primrio, primrio superior, secundrio, etc. O sculo XIXproduziu sobre esse tema uma abundante literatura,39 e mesmo alguns slogansbem batidos, como a frase de Jules Ferry aos inspetores primrios e diretores deescola normal: "O que ns vos pedimos a todos, de nos fazer homens antes denos fazer gramticos40. Finalidades de ordem psicolgica. Elas expem aquelasfaculdades da criana que o primrio ou o secundrio so solicitados adesenvolver. "No lhes proponhais jamais assuntos de pura imaginao. Notendes que desenvolver neles o esprito de inveno, mas a reflexo, o

    julgamento, o sentimento moral e a faculdade de expressar simplesmente,claramente, corretamente, o que sabem e o que pensam".41 Finalidades culturaisdiversas reservadas escola, desde a aprendizagem da leitura ou da ortografia ata formao humanista tradicional, passando pelas cincias, as artes, as tcnicas.Finalidades mais sutis, do socializao do indivduo no sentido amplo, 42 daaprendizagem da disciplina social, da ordem, do silncio, da higiene, da polidez,dos comportamentos docentes, etc. Sem negligenciar tambm a funo de

    guarda, cujos efeitos sobre a organizao do ensino so particularmente

    38Bulletin administratif, 1851, p. 368.39 Cf., para o secundrio, Viviane Isambert-Jamati: Crises de La societ, crises de lenseignement. Paris, P.U.F.,1970.40 Conferences pdagogiques de Paris em 1880. Rapports ET procs-verbaux. Paris, 1880, p. 265.41 Moniteur de linstruction primaire Du dpartement de lEure, 1875, p. 13.42 Cf. sobre este ponto, Pierre Bourdieu, Systmes denseignement ET systmes de pense, Revueinternationale ds sciences sociales, XIX, 1967, PP. 367-388.

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    importantes na escola unidocente do sculo XIX.Naturalmente, estes diferentes estgios de finalidades esto em estreita

    correspondncia uns com os outros. A instituio escolar , em cada poca,tributria de um complexo de objetivos que se entrelaam e se combinam numadelicada arquitetura da qual alguns tentaram fazer um modelo.43 aqui queintervm a oposio entre educao e instruo. O conjunto dessas finalidadesconsigna escola sua funo educativa. Uma parte somente entre elas obriga-a adar uma instruo. Mas essa instruo est inteiramente integrada ao esquemaeducacional que governa o sistema escolar, ou o ramo estudado. As disciplinasescolares esto no centro desse dispositivo. Sua funo consiste em cada caso emcolocar um contedo de instruo a servio de uma finalidade educativa.

    Percebe-se ento por que o papel da escola no se limita ao exerccio dasdisciplinas escolares. A educao dada e recebida nos estabelecimentos escolares

    , imagem das finalidades correspondentes, um conjunto complexo que no sereduz aos ensinamentos explcitos e programados. O ensino clssico tradicional,por exemplo, alis tanto sob o Antigo Regime quanto no sculo XIX, acentuousuficientemente a importncia primordial da educao "moral" que era dada aosalunos em todos os instantes de sua presena nos locais escolares, para que sejanecessrio insistir nesse ponto.

    Mesmo que as disciplinas escolares, que repousam sobre os ensinosexplcitos, no constituam seno uma parte da educao escolar, e mesmo que,por outro lado, grande nmero das finalidades impostas escola no encontreseu campo de aplicao a no ser num ensino implcito, nos mtodos deeducao mais discretos, ou ainda nos princpios ativos que regem a vida escolar,nada nos impede, ainda assim, de reconduzir cada uma das disciplinas ensinadas finalidade qual ela est associada, dispostos a deixar de lado, por enquanto, atarefa de cuidar do conjunto deste campo. Limitemos pois claramente o objetivoda histria das disciplinas escolares neste ponto pesquisa ou determinaoexata das finalidades que lhe correspondem.

    Neste estgio, uma primeira documentao abre-se imediatamente diantedo historiador, a srie de textos oficiais programticos, discursos ministeriais,leis, ordens, decretos, acordos, instrues, circulares, fixando os planos de

    estudos, os programas. os mtodos. os exerccios. etc. O estudo das finalidadescomea evidentemente pela explorao deste corpus. Ai juntam-se oupreferentemente os precedem. os planos de estudos. os tratados de estudos, osratio, os regulamentos diversos que, sob o Antigo Regime, expem osobjetivos que perseguem os colgios das universidades ou das congregaes, ou

    43 Cf. por exemplo, V. e G. de Ladaheere, Dfinir ls objectifs de l ducation, Paris, P.U.F., 1975; Antonie Lon,op. Cit., cap. V, Ls objectifs de lenseignement.

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    as escolas, dos lassalistas ou das Ursulinas, por exemplo.Mas as finalidades de ensino no esto todas forosamente inscritas nos

    textos. Assim. novos ensinos s vezes se introduzem nas classes sem seremexplicitamente formulados.44 Alm disso, pode--se perguntar se todas asfinalidades inscritas nos textos so de fato finalidades "reais".

    Um exemplo permitir situar precisamente o debate. A lei Guizot de1833 e o Estatuto das escolas de 1834 colocam no programa do ensino primrioos "elementos da lngua francesa", quer dizer, a ortografia e a gramtica deacompanhamento. possvel afirmar entretanto que, at 1850, e sem dvidamais tarde, a grande maioria das escolas francesas, as das zonas rurais,negligenciaram essa parte do programa, e se limitaram ao ensino do catecismo edo ler. do escrever, do contar. A lei Guilzot certamente desempenhou um papelimportante na extenso do ensino do francs a um nmero crescente de escolas;

    mas a defasagem entre programa oficial e realidade escolar no menos patentee considervel. De que lado colocaremos as finalidades? Do lado da lei ou dolado das prticas concretas?

    O problema tanto mais delicado quando, na mesma poca. umapercentagem j significativa de escolas. sobretudo nas aglomeraesimportantes. se entregaram ao ensino da ortografia e da gramtica. Para estasltimas. no h uma defasagem entre a realidade pedaggica e os programasoficiais. As finalidades s quais elas esto submetidas no colocam dvida: aortografia faz doravante parte das grandes exigncias. Mas para as outras, asescolas rurais, as escolas unidocentes, o grosso da tropa? Pode-se afirmar semmais formalidades que elas esto tambm interessadas" na finalidadeortogrfica mas que, afinal, elas no a levam em conta? A resposta a esta questotem profundas implicaes para a histria das disciplinas escolares.

    Uma resposta positiva implicaria em se tomar uma sria distncia comrelao s realidades educacionais, em considerar os textos oficiais ouministeriais como a expresso sublimada da realidade pedaggica e, no fim dascontas. em reconduzir a histria das disciplinas escolares histria das idiaspedaggicas. Ela obrigaria o historiador, por exemplo, a dar importncia, semnenhuma desconfiana, a toda declarao de um determinado ministro

    encarregado das questes de ensino. Numa circular de 12 de novembro de1900,45 o ministro Georges Leygues decide tomar o ensino anti-alcolicoobrigatrio e conceder-lhe nos exames o mesmo lugar que o francs e amatemtica. Dever-se-ia ver a a expresso de uma finalidade pedaggicaimposta escola mesmo sabendo-se que o ministrio dever rapidamente voltar

    44 Encontrar-se- um exemplo adiante, p. 216.45 Cf. adiante, p. 218.

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    atrs diante dos lbis do lcool?O problema das finalidades serve ento de revelador, de analisador

    como diria a anlise institucional, no momento em que o aplicamos aosprogramas oficiais. A maior parte do programa da instruo primria contido noEstatuto de 1834 (instruo religiosa, ler, escrever) parece corresponderperfeitamente s finalidades incontestveis da escola contempornea. Os"elementos da lngua francesa" que esto prximos aos outros artigos doprograma no tm o mesmo status. Eles ainda no representam uma finalidade detoda a escola francesa. mas somente de sua frao mais moderna, e igualmente afinalidade que buscam impor escola os crculos dirigentes da Monarquia deJulho, descendentes do grupo dos Doutrinrios, muito ligados ao reerguimento e extenso da instruo primria, tanto quanto aos limites extremamente estrilasque lhe convm impor. Em escala nacional, a inscrio dos "elementos da lngua

    francesa" nos programas constitui ento apenas uma finalidade terica, umafinalidade de objetivo. No ainda uma finalidade real. A massa das escolasrurais, que se aplicam em satisfazer s demandas puramente locais dos pais, doproco e do comit de delegados cantonais no est ainda "interessada".

    A distino entre finalidades reais e finalidades de objetivo umanecessidade imperiosa para o historiador das disciplinas. Ele deve aprender adistingui-las, mesmo que os textos oficiais tenham tendncia a misturar umas eoutras. Deve sobretudo tomar conscincia de que uma estipulao oficial, numdecreto ou numa circular, visa mais freqentemente, mesmo se ela expressadaem termos positivos, corrigir um estado de coisas, modificar ou suprimir certasprticas, do que sancionar oficialmente Uma realidade. "Apenas o francs serusado na escola", estipula o regulamento modelo das escolas do 1851: finalidadede objetivo. Trinta anos mais tarde ensinava-se ainda em patois ou na lnguaregional.

    No podemos, pois, nos basear unicamente nos textos oficiais paradescobrir as finalidades do ensino. Considerar, com Louis Trnard, que asfinalidades so "definidas pelo Legislador"46 significa envolver-se na histria daspolticas educacionais, no na das disciplinas escolares. A definio dasfinalidades reais da escola passa pela resposta questo "por que a escola ensina

    o que ensina?" , e no pela questo qual muito freqentemente nos apegamos:"que que a escola deveria ensinar para satisfazer os poderes pblicos?"Isso significa dizer que a escola pde ensinar sem tomar conscincia do

    que fazia? No se encontra em nenhum lugar a expresso explcita dasfinalidades reais? O historiador das disciplinas intervm no campo no somente

    46Ls finalits de lenseignement primaire de 1770 1900 in: Actes D u 95 Congrs national des Socitlssavantes, Reims, 1970, p. 34.

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    enquanto tal, mas como o esprito clarividente que sozinho capaz de explicar,demasiado tarde, escola do passado as finalidades que ela perseguia e queningum na poca podia lhe expor? Certamente no. Cada poca produziu sobresua escola, sobre suas redes educacionais, sobre os problemas pedaggicos, umaliteratura freqentemente abundante: relatrios de inspeo, projetos de reforma,artigos ou manuais de didtica, prefcios de manuais, polmicas diversas,relatrios de presidentes de bancas, debates parlamentares, etc. essa literaturaque, ao menos tanto quanto os programas oficiais, esclarecia os mestres sobresua funo e que d hoje a chave do problema.

    O estudo das finalidades no pode,pois, de forma alguma, abstrair osensinos reais. Deve ser conduzido simultaneamente sobre os dois planos, eutilizar uma dupla documentao, a dos objetivos fixados e a da realidadepedaggica.

    No corao do processo que transforma as finalidades em ensino, h apessoa do docente. Apesar da dimenso "sociolgica" do fenmeno disciplinar, preciso que nos voltemos um instante em direo ao indivduo: como asfinalidades lhe so reveladas? Como ele toma conscincia ou conhecimentodelas? E sobretudo, cada docente deve refazer por sua conta todo o caminho etodo o trabalho intelectual que levam s finalidades ao ensino? Um sistemaeducacional no dedicado. de fato, infinita, diversidade dos ensinamentos,cada um trazendo a cada instante su prpria resposta aos problemas colocadospelas finalidades?

    com base nesse ponto que se podem apreciar os pesos e a eficcia realda tradio. Enquanto as finalidades se impem A escola desde decnios, a

    fortiori desde sculos, atravs de uma tradio pedaggica e didtica complexa,na verdade sofisticada, minuciosa, que elas chegam aos docentes. E no rarover a massa de prticas pedaggicas acumuladas numa disciplina ocultar. paranumerosos professores, alguns dos objetivos ltimos que eles perseguem. Agora uma mquina que gira totalmente sozinha, bem ajustada, e bem adaptada a seusfins. A histria da gramtica escolar do francs oferece disso um exemploprivilegiado. Aperfeioada e ensinada para servir de auxiliar ao ensino daortografia, que a nica finalidade real, ela no tardou em ser presa por uma das

    finalidades do ensino, desde o Segundo Imprio: e as advertncias freqentes dahierarquia universitria e escolar sobre este ponto47 no conseguiram jamaisextirpar essa heresia. A histria do ensino do latim e das finalidades invocadas

    47 Cf., por exemplo, circular de 20 de agosto de 1857, relativa direo pedaggica das escolas primrias(Circulaire ET instructions, t.5, PP. 149-153).

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    freqentemente para justific-lo fornece outros exemplos.48A realidade de nossos sistemas educacionais no coloca os docentes, a

    no ser excepcionalmente, em contato direto, com o problema das relaes entrefinalidades e ensinos. A funo maior da "formao dos mestres" a de lhesentregar as disciplinas inteiramente elaboradas, perfeitamente acabadas. as quaisfuncionaro sem incidentes e sem surpresas por menos que eles respeitem o seu"modo de usar". Pode-se at perguntar se a ignorncia das finalidades do ensinono proporcional ao volume e ao nmero de rgos de formao que presidemao funcionamento das disciplinas. No complexo dispositivo instaurado por JulesFerry, a sucesso em cascata das escolas normais superiores de instruoprimria, das escolas normais primrias e das escolas primrias, escalonando trsnveis de formao. mantm os instituteurs boa distancia do mundo dasfinalidades, mesmo se aparentemente o papel desta organizao no o de lhes

    esconder tal natureza.As coisas se passam de forma diferente quando escola so confiadasfinalidades novas, ou quando a evoluo das finalidades desarranja o curso dasdisciplinas antigas. Perodos privilegiados para o historiador, que dispe ento deuma dupla documentao, totalmente explcita. De um lado, os novos objetivosimpostos pela conjuntura poltica ou pela renovao do sistema educacionaltornam-se objeto de declaraes claras e circunstanciadas. De outro lado. cadadocente forado a se lanar por sua prpria conta em caminhos ainda notrilhados, ou a experimentar as solues que lhe so aconselhadas. o turbilhodas iniciativas e o triunfo gradual de uma dentre elas permitem reconstruir compreciso a natureza exata da finalidade.49

    V. Os ensinos escolares

    48 Cf. os destaques de Edmond Goblot, em La Barrire El Le niveau (1925), Paris, Monfort, nova Ed., 1984, PP.81-82.49 As relaes histricas que se tramam entre as finalidades e os ensinos constituem um campo de pesquisasrelativamente freqentado, com o desenvolvimento do marxismo na Universidade francesa desde o fim daSegunda Guerra mundial. Dedica-se a analisar o papel educacional da escola no interior de uma sociedade declasses, e a servio da classe dominante Consagrada reproduo das relaes sociais, a escola v-se

    essencialmente encarregada de inculcar uma ideologia de pereniz-la ou de refor-las. Pede-se ento aohistoriador para compreender as ideologias em ao num sistema educacional (Georges Snyders: La Pdagogieem France aux XVII ET XVIII, sicles. Paris, P.U.F., 1965, p. 2). Uma variante mais recente da mesmaorientao, inspirando-se nas cincias da linguagem, dedica-se a auscultar o discurso escolar, o dos manuaisem particular. Supe-se que a anlise de contedo ou de discurso, deve revelar as formas escolares da ideologia(Cf. Dominique Maingueneau: Ls Livres dcole de La Republique 1870-1914: discours ET idologie. Paris, LeSycomore, 1979). Seus resultados so, em geral, sem surpresa. Ela mostra facilmente que o sistema educacionalno protegido contras as crenas, os preconceitos, os erros, as concepes do mundo em que se banha asociedade ambiente. Fazendo isso, ela passa boa distncia dos fenmenos propriamente educativos queresultam da execuo das outras finalidades.

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    o ensino escolar esta parte da disciplina que pe em ao as finalidadesimpostas escola, e provoca a aculturao conveniente. A descrio de umadisciplina no deveria ento se limitar apresentao dos contedos de ensino,os quais so apenas meios utilizados para alcanar um fim. Permanece o fato deque o estudo dos ensinos efetivamente dispensados a tarefa essencial dohistoriador das disciplinas. Cabe-lhe dar uma descrio detalhada" do ensino emcada uma de suas etapas, descrever a evoluo da didtica, pesquisar as razes damudana, revelar a coerncia interna dos diferentes procedimentos aos quais seapela, e estabelecer a ligao entre o ensino dispensado e as finalidades quepresidem a seu exerccio.

    No intil lembrar aqui a gnese semntica do verbo que, porexcelncia, designa a atividade pela qual uma corporao profissionalespecializada forma, informa, transforma as jovens geraes no sentido

    preliminarmente definido pela sociedade. Ao lado de Instruir, educar, lecionar(apprendre), o verbo ensinar (enselgner) que o uso reteve como ocorrespondente exato do termo disciplina. Ensinar (enseigner), ,etimologicamente, "fazer conhecer pelos sinais", fazer com que a disciplina setransforme, no ato pedaggico,. em um conjunto significante que ter como valorrepresent-la, e por funo torn-la assimilvel. Tem-se desde h muito utilizado,nessa acepo, o verbo montrer. Montreras lnguas, a gramtica, a aritmtica.

    Montrercomo escrever", diz Littr. A oposio dos dois verbos e a escolha quefoi feita do primeiro so reveladoras, ao nvel infinitamente profundo do usolingstico, de uma tomada de conscincia que precisou se realizar em escalanacional. O ato pedaggico de uma natureza muito mais complexa do que asimples meno. E!e exige muito mais atividade.50 pe em jogo processos sutis.busca subterfgios. atribui funes a simulacros, reparte as dificuldades e,procedendo como o puro esprito cartesiano, produz em seguida enumeraescompletas. Pode-se. a rigor, "montrer"as letras, ou a esgrima. A leitura. o latim,o clculo, a ortografia, as lnguas vivas, as cincias requerem em todo caso umoutro tratamento pedaggico. O mestre faz os alunos adquiri-las apenas depoisde as ter decomposto metodicamente em "pequenos pedaos que eles assimilamum aps o outro. A confuso pedaggica que ocorre na instruo primria no

    ltimo tero do sculo XIX freqentemente deu, poca, a impresso de que aescola se elevava bruscamente a um nvel superior de atividade. o queexpressa, em 1877, Octave Grard, num comentrio sugestivo: graas renovao dos mtodos, "o institeur expe, comenta., interroga, (...) em uma

    50 Cf. a definio de ensinar por G. de Landsheere: Ensinar conduzir voluntariamente fazendo-o descobri-lo in:Ciles Dussult, Marcel Leclere, Jean Brunelle, Claire Turcotte: LAnalyse de lenseignement. Montreal. Presses delUniversit de Qubec, 1973, prefcio.

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    palavra pode-se dizer que comea a existir em nossas escolas um ensino".51Encarregada pela sociedade de algumas misses muito gerais que so as

    finalidades do ensino, a escola recebe em troca carta branca para regular asmodalidades desse ensino. As nicas barreiras que so colocadas em sualiberdade de ao nesse campo so-lhe impostas pelas outras finalidades. Assim,a pedagogia do latim nos colgios do Antigo Regime utiliza por muito tempo ascomdias de Trence, particularmente apreciadas pela qualidade de sua lnguaclssica familiar. Mas dever renunciar a Trence a partir do sculo XVIII, naverdade mais cedo, quando as exigncias da decncia, ou da pudiccia. seimporo na boa sociedade, e portanto na formao das elites. A parte esse tipo deproblemas, que coloca em oposio, na verdade em contradio, duas dasfinalidades s quais ele deve se submeter, o sistema pedaggico cria, adota,discute, abandona como entende seus mtodos de ensino.

    A histria das disciplinas escolares expe plena luz a liberdade demanobra que tem a escola na escolha de sua pedagogia. Ela depe contra a longatradio que, no querendo vernas disciplinas ensinadas seno as finalidades queso efetivamente a regra imposta, faz da escola o santurio no somente da rotinamas da sujeio, e do mestre, o agente impotente de uma didtica que lhe imposta do exterior. Se se deseja ento, permanecendo totalmente no interiordesse quadro rgido, explicar a evoluo concreta das diferentes disciplinas, nadamais resta, j que se fechou toda possibilidade de ver o movimento surgir dointerior, do que fazer um apelo aos grandes pensadores da pedagogia quepermitem, assim, desbloquear a mquina. A realidade, mostrar-se-, muitodiferente.

    Sem dvida, a liberdade pedaggica da instituio no , ao nvel dosindivduos, mais do que uma meia-liberdade. para eles necessrio levar emconta o lugar que ocupam ao lado de seus colegas no mesmo sistema do ensino eas progresses curriculares nas quais eles, em geral, no intervm mais do quepor uma durao limitada. Quando se faz a quinta ou oCM1* numestabelecimento, recebe-se uma turma de alunos, do comeo do ano, e entrega-se-a, no fim. aos colegas do mesmo estabelecimento. Quando se dirige umestabelecimento, como uma congregao no sculo XVIII, ou uma Universidade

    no XIX, se est cerceado igualmente pela presso que exerce - atravs das51LInstruction primaire Paris ET dans Le department de la Seine em 1875. Paris, 1877, p.102.* "Para esta e para outras referncias posteriores s sries do sistema francs o leitor deve ter em mente aseguinte correspondncia: as cinco sries do ensino elementar so designadas sucessivamente pelas siglas CP,CEI, CE2, CMI, CM2. As quatro sries do primeiro ciclo do ensino secundrio (correspondente ao nosso antigoginsio ou s ltimas sries do nosso atual primeiro grau) so designadas sucessivamente por sexta, quinta. quartae terceira (N. do E.).

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    tendncias dos visitadores. dos inspetores, dos exerccios pblicos, dosconcursos e exames - o conjunto do sistema escolar do qual no se administraseno uma unidade, freqentemente at mesmo oposta s demais pelas leis daconcorrncia.

    Quer dizer que algumas estruturas pedaggicas do aos indivduos, maisdo que outras, a possibilidade de colocar em questo a natureza de seu ensino. Oregente jesuta que acompanha seus alunos da quinta at retrica menosdependente de seus colegas do que se ele tomasse a seu cargo a cada ano umaclasse nova. O instituteur*; mestre de uma classe unidocente, est na mesmasituao. Sobretudo, os estabelecimentos que, em certas pocas floresceram smargens do sistema escolar tradicional, apresentam por vezes as condies ideaispara. O exerccio da liberdade pedaggica. Parece realmente, por exemplo, queos internatos e os pensionatos do sculo XVIII, que se desenvolveram ao lado

    dos colgios tradicionais, ou certos estabelecimentos livres no-catlicos do fimdo sculo XIX, so os verdadeiros vetores da inovao disciplinar'. Seriapossvel citar muitos exemplos anlogos no sculo XX.

    Mas por serem particularmente visveis, estes exemplos no esgotam aquesto. Mesmo no sistema escolar tradicional, aquele que na Frana ocupa olugar central por sua ligao com as congregaes mais poderosas ou com oEstado, observa-se constantemente, nas prticas de uns e outros, e em todos osperodos da histria da instruo primria ou sccundria desde o sculo XVI, ogerme da inovao no trabalho. Tanto mais que a caracterstica dessa inovao de ser abundante e de no renunciar, a no ser excepcionalmente; a traar oesboo daquilo que ser a soluo do futuro para problemas que no se colocama principio a no ser para uma minoria.

    No mbito de uma finalidade bem definida, a liberdade terica de criaodisciplinar do mestre se exerce em um lugar e sobre um pblico igualmente bemdeterminados: a sala de aula de um lado, o grupo de alunos de outro. Ascondies materiais nas quais se d o ensino esto estreitamente ligadas aos.contedos disciplinares. A histria tradicional do ensino constantementedestacou os limites impostos s prticas pedaggicas pela rusticidade dos locaisescolares, pelo estado sumrio do mobilirio, pela insuficincia do material

    pedaggico e pela caracterstica irregular dos livros de aula trazidos pelascrianas. Assim ela se dedica a criar a impressos de que os mestres deantigamente teriam se sado 'melhor se tivessem melhores condies de trabalhoe de que a antiga pedagogia era, em grande parte, determinada por consideraespuramente materiais. Argumento bem conhecido, sobre as relaes de

    * Pessoa encarregada da instruo das crianas nas escolas primrias (N. da T.).

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    determinao entre restries materiais e atividade humana (como o , alis, oargumento inverso). Mas um argumento, entretanto, muito pouco usual emhistria da educao para poder aqui passar em silncio. Nada permite afirmarque um sbito melhoramento dos locais, do mobilirio e do material teriamodificado substancialmente e duravelmente as normas e as prticas do ensino.

    O nico limite verdadeiro com o qual se depara a liberdade pedaggicado mestre o grupo de alunos que ele encontra diante de si. A recusa em admitiressa evidncia est na origem de muitas das incompreenses das quais o corpodocente por vezes vtima. A atividade do mestre em aula frequentementeresumida na expresso faire cours", a qual geralmente entendida como "dicterun cours", o que mantm um equvoco permanente sobre a prpria natureza datarefa docente. Certamente a histria do ensino abundante em exemplos decursos efetivamente ditados. Mas, alm do fato de que a ocupao dos mestres

    no se acabava nesse ditado, eles jamais constituram mais do que uma minoriados docentes de seu tempo, e se dirigiam em geral s classes superiores, portantoaos alunos mais velhos.

    A atividade magistral geradora das disciplinas escolares se parece muitomais do orador empenhado em convencer e em agradar do que do professorde faculdade que, pela vigsima vez, l suas notas ou recita as s1abas de umtexto ajustado vinte anos antes. A pedagogia est, sob um de seus aspectos,prxima da retrica.52 No essa retrica da ctedra professoral que os Villemain,os Michelet ou os Cousin adaptaram ao ensino superior, mas essa parte daretrica, ou mais ainda, esse esprito da retrica que se empenha em seengalfinhar com o pblico para fazer penetrar idias novas nos espritos,afastando de diante de si todos os obstculos psicolgicos ou epistemolgicos e,para isso, tomando em conta, durante o percurso as reaes que se percebemnesse pblico. Nesse amplo quadro, a pedagogia depara-se com problemasidnticos aos da atividade pastoral. Mas sua tarefa mais rida. No se trata de"convencer" dentro da razo e do dogma. Trata-se de implantar as prpriasformas do conhecimento, do raciocnio, da expresso normatizada, at mesmo docomportamento gestual.

    O trabalho no sentido fortedo mestre o da tenso de um corpo a

    corpo com o grupo. O grupo em si mesmo, enquanto tal, constitui uma peaessencial do dispositivo disciplinas. Num dado momento, um dos alunos que,melhor do que os outros, seja porque mais forte, seja porque mais fraco,expressar as dificuldades encontradas, e permite assim ao conjunto se beneficiardos complementos da explicao. Noutro momento, o grupo que serve de

    52 Cf. Alexander Bain: La Science de lducation. Paris, 1879, p. 172; Gabriel Compayr: Psychologie appliqu lducation. Paris. Delaplane, s. d., 4ed.t.II, p. 124.

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    substituto palavra do mestre diante dos alunos em dificuldade, pois melhorque eles prprios afastem sozinhos os obstculos. A funo pedaggica do grupo constante, ainda que disfarada, at mesmo clandestina.

    Da a diferena entre o ensino escolar e a preceptoria. Se as finalidadespodem ser idnticas para um e outro, as prticas de ensino no o so. O preceptorno ensina como o regente de colgio: ele toma por base evidentemente adisciplina j constituida nos estabelecimentos, mas ele pode igualmente sepermitir desvios considerveis, e em particular experimentar as novidades que apedagogia terica contempornea prope. A preceptoria, como o pensionatolivre, e talvez antes dele, frequentemente um agente ou um retransmissor dainovao53 tanto mais que suas finalidades so por vezes muito amplas. Aosdelfins, aos prncipes herdeiros. aos filhos dos nobres. o preceptor do AntigoRegime ensina por exemplo a histria, matria to indispensvel para eles quanto

    desconhecida. ou rara nos colgios. acidental que um dos primeiros usosdocumentados da "redao" em francs seja destacado por Bossuet como ummtodo que ele utilizou com o Grande Delfim?54

    As dificuldades e os problemas com que se depara o preceptor nopodem contribuir diretamente para o estabelecimento e para a estabilizao dasprticas pedaggicas. O jovem Montaigne aprendendo por impregnaolingstica o latim na sua mais tenra infncia , desse ponto de vista, umaconstruo to artificial quanto o Emlio de Rousseau. A aprendizagem do latimpara um grupo de alunos que no conhece uma palavra dele antes de sua entradana instituio coloca problemas muito diferentes. V-se que na tradio francesa.a origem desse ensino perde-se um pouco na noite do tempo, e que adocumentao disponvel no esclarece suficientemente a no ser os estgios jevoludos da disciplina.

    No h quase dvida, entretanto, de que a causa nica da diviso dogrupo de alunos e de sua repartio em classes por nveis no est,originalmente, na natureza das dificuldades encontradas. a prpria constituioda disciplina que determina essa importante inovao na histria pedaggica.Note-se que, at o fim do sculo XIX, a considerao da idade no desempenhapapel nenhum nesta repartio, nem no secundrio nem no primrio; encontram-

    se, em todas as divises. variaes considerveis, podendo essa variao alcanardez ou doze anos. No campo das classes, o secundrio tem sobre o primrio um

    53 Cf., por exemplo, a importncia que tiveram, nos colgios, certas obras redigidas pelos preceptores para seusalunos, como os manuais do abade Fleury, o Discours sur lhistoire universelle, o tllmaque, os Dialogues dsmorts ou as fbulas de Fnelon.54Ns contamos ao prncipe de viva voz tudo o que sua memria suscetvel de reter. Depois pedimo-lhe querepita; em seguida ele redige uma parte em francs, e a traduz em latim: isto a matria de um tema (Lettre Innocent XII, em latim, Oeuvres completes, 1863, t. XII, p. 7).

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    avano de vrios sculos. A organizao das classes. e sua denominao atual,esto de fato j colocadas ali desde o sculo XVI. E nos colgios do sculoXVII e XVIII que a expresso faire la classe"adquire seu valor propriamentepedaggico.55

    Ao contrrio, ainda em 1850, a grande maioria das escolas elementaresfrancesas ainda de classe nica. sem "organizao pedaggica", e condenadaseja ao estilo individual, seja s frmulas precrias. A repartio dos alunos emdiversas divises, sob um s mestre, foi no entanto recomendada, e praticada,tanto pelos Irmos das escolas crists quanto pelo ensino mtuo. Mas, para almdas cidades e dos burgos, ela no se difunde a no ser na segunda metade dosculo. Quanto ao prprio termo classe, no substitui, nem se soma, a no sermuito tarde, perto de 1880, aos de diviso e de curso. Otvio Grard que, emParis e no departamento de Seine, realiza essa transformao decisiva do ensino

    primrio: "Ns desejaramos, escreve aos inspetores primrios,56

    que os estudosprimrios se tornassem verdadeiramente classes, classes elementares e simples,acessveis ao maior nmero, mas tendo seu seguimento e seu coroamento,prprios para formar espritos esclarecidos e sbios, imbudos de princpiosexatos,... ".

    De resto, a repartio do ensino disciplinar em classes anuais, ou,frmula freqente sob o Antigo Regime, semi-anuais, no muda a natureza dosproblemas. As solues dadas para as dificuldades concretas no podem serseno fruto da colaborao de todos os mestres exercendo as mesmas funes. Amultiplicidade de iniciativas a princpio a regra antes que a confrontao dosmtodos e a difuso dos melhores manuais produzam a otimizao dorendimento. Nesse processo de comparao e de seleo, vrios fatorescomtribuem para a generalizao da melhor soluo: deslocamento de regentesou de instituteurs; visitadores de congregaes; publicao, desde o sculo XVI,de manuais pedaggicos. O sculo XIX acelerar esses processos multiplicandoos corpos de inspetores e os organismos de formao de mestres, confernciaspedaggicas, cursos normais, escolas normais, e desenvolvendo num grau jamaisalcanado todas as formas de literatura pedaggica.

    A instaurao das disciplinas ou das reformas disciplinares uma

    operao de longa durao. O sucesso ou o fracasso de um procedimentodidtico no. se manifesta a no ser ao trmino da escolaridade do aluno. Areforma do ensino secundrio de 1902, ainda que vivamente contestada desde o

    55Cf. Henri Marion: No liceu, o que quer que seja o que se ensina, necessrio faire la classe. necessriofaz-la mesmo nas classes em que se tem de faire um cours. a forma por excelncia do ensino secundrio.Lducation dans lUniversit.Paris, 1892.56 Circular de 14 de agosto de 1869 (Bulletin de linstruction primaire de La Seine, 1869, p. 309), em que eleapresenta um balano do primeiro ano de sua reforma.

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    incio pelos partidrios do latim, desembocou na "crise do francs" apenas em1908, data a partir da qual se tornou ento possvel, segundo seus detratores,fazer um balano, catastrfico, depois de seis anos de experimentao. Um outrofenmeno introduz um elemento de inrcia decisivo na mutao das disciplinas:trata-se da eternizao em seu posto, ou em suas funes, dos docentes, antesmesmo da poca em que sua atividade seja elevada ao status de funo pblica.Naturalmente, se a lei de otimizao do rendimento se aplica no domniopedaggico, poderamos esperar ver em ao aqui outras leis do mercado, eparticularmente a eliminao dos menos competentes. Mas isso significaria fazerpouco caso, de um lado das protees asseguradas. aos indivduos pelascorporaes do Antigo Regime, e sobretudo da parte considervel de "prtica"que adquire, com os anos um regente ou um mestre de escola. Noslicenciamentos ou nas demisses de docentes, a embriaguez, o desregramento ou

    a poltica so muito mais freqentemente invocados do que a rotina ou ainaptido aos mtodos mais modernos ou mais eficazes. Trinta anos, quarentaanos, cinqenta anos de atividade, ou at mesmo mais57: aqui se tem o bastantepara avaliar a rapidez possvel na generalizao das inovaes pedaggicas.

    A taxa de renovao do corpo docente ento um fator determinante naevoluo das disciplinas. a este efeito de inrcia ligado durao das carreirasprofissionais que a formao continuada visa combater. Os mestres de escola daprimeira metade do sculo XIX devem s "aposentadorias" e s confernciaspedaggicas organizadas durante os meses devero. terem aprendido. e ento.terem podido. comear a ensinar a gramtica, a ortografia, a sistema legal depesos e medidas, e a praticar os novos mtodos de aprendizagem da leitura. Asescolas normais da poca, de preferncia espordicas, no. teriam sido.suficientes para a tarefa. Quanto aos famosos "hussardos negros" da Repblica,eles no. teriam podido. ser majoritrias na instruo laica antes de 1900 o.u1910, se o movimento no tivesse sido. preparado. de longa data, e se a formaoinicial no fosse constantemente reforada por uma formao contnua.

    Os processos de instaurao e de funcionamento de uma disciplina secaracterizam por sua precauo, por sua lentido., e por sua segurana. Aestabilidade da disciplina assim constituda no ento., coma se pensa

    seguidamente, um efeito da rotina, do imobilismo, dos pesos e das inrciasinerentes instituio. Resulta de um amplo ajuste que ps em comum umaexperincia pedaggica considervel; e muito freqentemente as rivalidades das

    57 Os inventrios da situao das escolas primrias da segunda metade do sculo XIX apontam mestres de escolastendo passado dos 80 anos. O instituteur Nra, que dirige uma pequena escola de Vendme em 1973, tem 83 anose 51 anos de servio: Velho bom, homem cujas foras esto no fim, comenta o inspetor primrio (Arquivosnacionais, F1710502

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    congregaes do Antigo Regime tiveram que se tornar indistintas diante da"interesse" dos alunos. Ela se prevalece dos sucessos alcanados na formao.dos alunos, assim como de sua eficcia na execuo das finalidades impostas.Fidelidade aos objetivos, mtodos experimentados, progresses sem choques,manuais adequados e renomados, professores tanto mais experimentados quantoreproduzem com seus alunos a didtica que os formou em seus anos de

    juventude, e sobretudo consenso da escola e da sociedade, dos professores e dosalunos: igualmente fatores de solidez e de perenidade para as ensines escolares.

    Mas essa estabilidade se inscreve, ela prpria, numa transformaohistrica na qual se distinguem vrias perodos. O nascimento. e a instaurao.de uma nova disciplina levaram alguns decnios, por vezes meio. sculo.. Segue-se o apogeu, mais ou menos durvel segundo as circunstncias. Vrio.sobservadores,58 por exemplo., colocaram em torno de 1840 o. apogeu da

    formao humanista dada nos colgios da Universidade. Vem depois o declnio,ou, se se quer, a mudana. Pois a disciplina, ainda que parea imune por todos oslados, no. uma massa amorfa e inerte. V-se de repente florescerem os"novos" mtodos, que do. testemunho de uma insatisfao., e dos quais osucesso tambm o questionamento, ao. menos parcial, da tradio.. Quas so.Ento os agentes de renovao das disciplinas?

    As leis que mudam as lnguas, dizia um abscuro filsofo do sculo. XIX,so as leis que as criam.59 D-se o mesmo com as disciplinas ensinadas. Suatransformao como sua constituio esto. inteiramente inscritas entre doisplos: o objetiva a alcanar e a populao. de crianas e adolescentes a instruir. ai que se devem encontrar as fontes da mudana pedaggica. Pis ao, mesmotempo atravs de suas finalidades e atravs de seus alunos que elas participam dacultura e da vida social de seu tempo.

    A evoluo da didtica do latim desde h trs sculos, por exemplo, estestreitamente ligada evoluo dos objetivos culturais desse ensino durante o mesmo perodo e, em particular, no curso dos ltimos cento e vinte anos. Masno raro verificar-se que os contedos do ensino se transformam enquanto asfinalidades permaneceram imutveis. Por exemplo, o ensino da ortografia sofreuprofundas transformaes desde o comeo do sculo XIX, enquanto que a

    finalidade permaneceu idntica, mesmo se outras finalidades vieram desde entodiversificar os ensinos primrio e secundrio do francs. A transformao, sociale cultural, dos pblicos escolares mais que suficiente para explicar o essencial

    58 Por exemplo, J.J. Weiss: Lducation classique ET ls exercices scolaires. Le discours, Revue ds deuxmondes, 15 de setembro de 1873, p.394. Quanto vocao, quanto arte de ensinar, qua nto matrias deensino, o ponto culminante foi atingido ao redor de 1850. Em nenhuma parte do mundo civilizado, se distribua

    juventude um ensino mais completo e mais harmnico.59 Adolphe Garnier: Trait ds facultes de lme. Paris, 1852, t. II, p. 490.

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    dessa evoluo.At Revoluo, o ensino da ortografia para a juventude escolar, para

    no falar dos grupos corporativos que, de resto, detm seu monoplio, passa pelolatim, com exceo de uma pequena parte do primrio, que se inicia na gramticafrancesa e na ortografia: os Irmos das escolas crists, as Ursulinas e algunspensionatos funcionam um pouco como um ensino primrio superior.60 somente por volta de 1820 que o ensino primrio "elementar" coloca a ortografiaem seu programa, ou seja, que mais e mais professores se esforam em ensin-la:debatem-se os mtodos, os exerccios, uma teoria gramatical ad hoc, a de Noel eChapsal, difcil, abstrata, rebarbativa, mas na medida para responder snecessidades de um pblico ainda limitado. Ao redor da metade do sculo, omovimento de escolarizao ganha ainda em extenso, e, se se pode dizer isso,em profundidade, j que alcana as camadas ou as zonas mais recuadas, as mais

    atrasadas, as mais patosantes. A gramtica do Chapsal torna-se na mesmaocasio inutilizvel. A teoria, os exerccios se renovam: os novos mtodos terolugar mais ou menos no incio do sculo XX; desde ento eles no mudaramfundamentalmente. Nessas diversas evolues, a transformao do pblicoescolar que obrigou a disciplina a se adaptar.

    As transformaes "culturais" da sociedade francesa e da juventudeexplicam outras modificaes que ocorreram desde ento na histria da mesmadisciplina.. As formas mesmas do ensino ortogrfico o gramatical tal como eleera praticado por volta de 1880 seriam atualmente impensveis. Memorizao erecitao de pginas de gramtica antes mesmo que elas fossem explicadas;interminveis anlises gramaticais, "conjugaes" escritas que no deixavam delado nenhuma das formas do verbo; ditados pouco compreensveis, corrigidospela soletrao sistemtica de todas as palavras, sem nenhum comentrio: nemos alunos nem os mestres suportariam mais obrigaes to entendiantes.Acrescentemos que o interesse pelas duplas consoantes e pela concordncia doparticpio diminuiu sensivelmente desde a poca em que esse ensino ocupavapelo menos um tero do horrio. O prolongamento da escolaridade obrigatriapermitiu, verdade, escalonar as etapas numa durao mais longa.

    A transformao pelo pblico escolar do contedo dos ensinos sem

    dvida uma constante importante na histria da educao. Encontramo-la naorigem da constituio das disciplinas, nesse esforo coletivo realizado pelosmestres para deixar no ponto mtodos que "funcionem". Pois a criao, assimcomo a transformao das disciplinas, tem um s fim: tornar possvel o ensino. Afuno da escola, professores e alunos confundidos, surge ento aqui sob uma

    60A subdiviso dos ensinos primrios em elementar e superior data da lei Guizot (28 de junho de 1833).

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    luz particular. Nesse processo de elaborao disciplinar, ela tende a construir o"ensinvel".61 Intervindo assim no campo da cultura, da literatura, da gramtica,do conceito, a escola desempenha um papel eminentemente ativo e criativo quesomente a histria das disciplinas escolares est apta a evidenciar.

    A funo real da escola na sociedade ento dupla. A instruo dascrianas, que foi sempre considerada como seu objetivo nico, no mais do queum dos aspectos de sua atividade. O outro, . criao das disciplinas escolares,vasto conjunto cultural amplamente original que ela secretou ao longo dedecnios ou sculos e que funciona como uma mediao posta a servio da

    juventude escolar em sua lenta progresso em direo cultura da sociedadeglobal. No seu esforo secular de aculturao das jovens geraes, a sociedadeentrega-lhes uma linguagem de acesso cuja funcionalidade , em seu princpio,puramente transitria. Mas essa linguagem adquire imediatamente sua

    autonomia, tornando-se um objeto cultural em si e, apesar de um certo descrditoque se deve ao fato de sua origem escolar, ela consegue contudo se infiltrarsubrepticiamente na cultura da sociedade global.

    VI. Os constituintes de uma disciplina escolar

    As disciplinas que a escola instaurou e periodicamente reformou paraadapt-las a novas finalidades ou a novos pblicos envolvem campos muitodiversos. A natureza "disciplinar" dos diferentes contedos coloca, pois, umproblema importante: h traos comuns s diferentes disciplinas? A noo dedisciplina implica uma estrutura prpria, uma economia interna que adistinguiriam de outras entidades culturais? Haveria um modelo ideal dadisciplina em direo ao qual tendem todas as disciplinas em via de constituio?Algumas disciplinas so melhor "resolvidas" do que outras? H, dito de outromodo, matrias que se prestam mais do que outras a um processo de"disciplinarizao"?

    A organizao interna das disciplinas , numa certa medida. produto dahistria, que procedeu aqui pela adio de camadas sucessivas. Assim, vriasdentre elas conhecem, no sculo XIX, grandes debates sobre os "mtodos".

    raro que esses conflitos no se estabeleam por snteses.Conhecem-se, por exemplo, as grandes caractersticas do ensinotradicional. Ele baseado na exposio, feita pelo mestre ou pelo livro, namemorizao, na recitao, e, de um modo geral, nesse princpio de que, emtodas as aprendizagens, leitura, latim, clculo, tudo passa pela reflexo que

    61 Royer Fayolle mostrou o embarao dos professores diante da leitura em classe das Confessions, uma obradificilmente escolarizvel, diz ele, num sentido aproximado (art. Cit. P. 67).

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    classifica, identifica, assimila, constri e controla a todo momento o processo deelaborao do conhecimento. A memria, a memria consciente, quem est nocomando.

    A crtica desses mtodos,j explcita entre os grandes pensadores dapedagogia, como Comnio ou Rousseau, penetra na escola francesa do sculoXIX por diversas vias e sob diversas denominaes: "ensino intuitivo", mtodointuitivo", "mtodo socrtico", "mtodo de escolas maternais", ..mtodomaternal", "natural", "ativo", "prtico", "direto". -ensino por demonstrao","lies de coisas" ,etc. Em realidade, mesmo os que preconizam essas novidades,muito freqentemente, no tardam em recomendar uma mistura harmoniosa comos procedimentos tradicionais. Gabriel Compayr louva os mritos do mtodosocrtico, que se desenvolve pela interrogao; mas para limitar imediatamenteos seus efeitos: bem evidente que todas as matrias de ensino no comportam

    o mtodo socrtico no mesmo grau".62

    E para acrescentar imediatamente aocaptulo "a arte de interrogar", um captulo sobre "a arte de expor". Mesmoecumenismo, no fim do sculo, para encerrar os debates pedaggicos de ordemmuito geral sobre a anlise e a sntese: "A anlise no suficiente, ensinaMarion;63 ela deve ser seguida da sntese. Pois conhecemos as coisas, se asconhecemos apenas nos seus elementos, se no as vemos em suas relaes. S apercepo dos conjuntos conduz preciso das idias, ainda que apenas apercepo dos detalhes leve a distingui-las".

    Naturalmente, nem todos os componentes das disciplinas escolares sereduzem a esse esquema cumulativo. Mas provvel que os debates e assolues de compromisso tenham contribudo para que se tomasse conscinciamuito rapidamente da natureza obrigatoriamente complexa de uma "disciplina deensino. A partir do Segundo Imprio, a questo torna-se inclusive objeto deensino em algumas escolas normais. Veja-se, por exemplo, o Memoriallgislatif,,administratif et pdagogique des instituteurs primaries de F.J.Vincent, diretor da escola normal do Ain. "Em todo mtodo, necessria asucesso regular destas quatro coisas: 1. a exposio da matria pelo professorou o estudo num livro; 2. a interrogao (...); 3. a repetio (...); 4. a aplicao(...); que exercita o aluno no fazer uso daquilo que ele aprendeu".64

    Citamos anteriormente as observaes pertinentes de Augustin Cournot .propsito do curso de histria, "que pouco se presta para a determinao dedeveres e de tarefas (...) Aprender de cor um pequeno catecismo histrico,acrescenta, convm apenas primeira infncia e coloca em jogo apenas a

    62 Lducation intellectuelle ET morale. Paris, 1908, p. 152.63 op. Cit., p. 355.64 Bourg, 1864, p. 73.

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    memria. Redigir com base nas notas da lio do professor conduz rapidamente estenografia, ao invs de escut-la e de se assimil-la. Da as redaes imensas(...)".65 A histria disciplinvel? Esta . questo que se coloca ao " inspetorgeral.66 Para que uma disciplina "funcione", necessrio, com efeito, satisfazers exigncias internas que constituem aparentemente o seu "ncleo". Por nolevar isso em conta, o ensino fracassa, ou no atende seno a uma parte de seusobjetivos.

    So sobretudo os inspiradores da escola republicana que, antes mesmo de1880, colocaram o problema da eficcia das disciplinas, e mostraram anecessidade de equilibrar judiciosamente as suas partes constitutivas. "Por toda aparte, escreve Ferdinand Buisson, a experincia demonstrou que o ensinoprimrio no tem sobre uma gerao a influncia moral que se tem o direitomoral de esperar dele. se ele tivesse seriamente penetrado nos espritos, se

    tivesse ultrapassado a fase dos rudimentos".67

    E a revoluo pedaggica de 1880ser fundamentalmente, no ensino primrio, mas igualmente em certas partes dosecundrio, a emergncia de novas disciplinas, o enriquecimento de disciplinasantigas ou a ascenso ao nvel de disciplinas de frmulas pedaggicas quepodiam se vangloriar, at ento, to-somente de uma eficcia limitada.

    Dos diversos componentes de uma disciplina escolar, o primeiro naordem cronolgica, seno na ordem de importncia, a exposio pelo professorou pelo manual de um contedo de conhecimentos. esse componente quechama prioritariamente a ateno, pois ele que a distingue de todas asmodalidades no escolares de aprendizagem, as da famlia ou da sociedade. Paracada uma das disciplinas, o peso especifico desse contedo explcito constituiuma varivel histrica cujo estudo deve ter um papel privilegiado na histria dasdisciplinas escolares. uma varivel que, em geral, pe em evidncia algumasgrandes tendncias: evoluo que vai do curso ditado para a lio aprendida nolivro, da formulao estrita, at mesmo lapidar, para as exposies maisflexveis, da recitao para a impregnao, da exaustividade para a seleo daslinhas principais.

    Independentemente da prpria natureza desse contedo, a questo dopeso especfico da parte "terica", ou "expositiva", da disciplina levanta um

    problema importante. Tomemos o exemplo do ensino terico da retrica noensino clssico, testemunhado ao menos at o comeo do Segund