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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP Raquel Pires Limitações à circulação de veículos como instrumento de política urbana MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2010

Limitações à circulação de veículos como instrumento ... · sustentáveis como uma das diretrizes da política urbana ... o crescimento das ... qual a população urbana cresce

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC - SP

Raquel Pires

Limitações à circulação de veículos como instrument o de

política urbana

MESTRADO EM DIREITO

SÃO PAULO

2010

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Raquel Pires

Limitações à circulação de veículos como instrument o de política urbana

MESTRADO EM DIREITO

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Direito do Estado, área de concentração Direito Urbanístico, sob a orientação do Professor Doutor Márcio Cammarosano.

SÃO PAULO

2010

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Banca Examinadora

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_______________________________

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Dedico este trabalho aos meus pais,

com todo meu amor e gratidão.

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, a Deus, que me concedeu força e inspiração, nos momentos mais

difíceis; que me capacitou para continuar minha caminhada, quando tudo parecia tão

difícil;

Aos meus pais, pelo apoio e amor incondicional; pela bondade que irradia em seus

corações;

Ao meu noivo Omar, pela paciência e por estar sempre presente; por me fazer

acreditar que tudo é possível;

Ao professor doutor Márcio Cammarosano, de quem tive o privilégio de ser

orientanda e aluna desde a época em que fui ouvinte, nas aulas de Mestrado. Pela

confiança depositada em minha pessoa; pelo prazer de compartilhar de sua

amizade; pelo brilhantismo de seus ensinamentos; por cada palavra de incentivo e

pela oportunidade de acompanhá-lo em suas aulas de direito administrativo, na

graduação;

A todos os amigos e colegas da PUC – SP, em especial, à Mariana Mencio, que em

todos os momentos que precisei, sempre se mostrou solícita e receptiva.

Igualmente, à Patrícia de Mello Barboza e à Renata Fiori Pucetti, pelo prazer do

convívio enriquecedor e pela torcida sincera;

Às amigas, Juliana, Annaiza, Tatiane e Milena, que mesmo longe, estão sempre

presentes;

Por fim, a toda minha família, que participa e acompanha a minha trajetória

acadêmica.

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Raquel Pires Limitações à circulação de veículos como instrument o de política urbana Resumo O trabalho busca analisar as limitações à circulação de veículos enquanto instrumento de política urbana, que, à luz da Constituição Federal e do Estatuto da Cidade, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade de modo a garantir o direito coletivo a cidades sustentáveis. Demonstra os impactos do modelo de circulação centrado nos automóveis sobre a qualidade de vida da população. Verifica a importância do planejamento do trânsito e do transporte, aliado ao uso e ocupação do solo urbano. Apresenta o conceito de mobilidade urbana, bem como o Projeto de Lei n° 1.6 87/2007, como mudanças positivas no cenário de crise das condições de deslocamento na cidade. Evidencia que o Município tem competência para regular o trânsito e o tráfego local e, portanto, para estabelecer limitações à circulação de veículos, que estão relacionadas à liberdade de trânsito e tráfego. As regras municipais, expedidas no exercício de poder de polícia do Estado, para serem consideradas legítimas, devem ser estabelecidas por lei, de iniciativa concorrente, além de estarem sujeitas ao princípio da razoabilidade e da proporcionalidade. Palavras-chave: política urbana – limitações - circulação de veículos.

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Raquel Pires Limitations on movement of vehicles as an instrumen t of urban policy Abstract The work aims to analyze the limitations on movement of vehicles as an instrument of urban policy, which under the light of the Federal Constitution and the Statute of the City, aims to regulate the full development of the social functions of the city in order to guarantee the collective right to sustainable cities. It demonstrates the impacts of the model of circulation centered in automobiles on the quality of life of the population. It notes the importance of the integrated planning among transit, traffic and the use and occupation of urban land. It introduces the concept of urban mobility and the Law Project 1.687/2007, as positive changes in the displacement crisis conditions in the city. It shows the municipal legal authority to regulate the local transit and traffic and, therefore, to establish limitations on the movement of vehicles, which are related to the freedom of transit and traffic. The municipal rules, as issued in the exercise of police power of the State, to be regarded as legitimate, must be established by law, of concurrent initiative, besides being subjected to the principles of reasonableness and proportionality. Key-words: urban policy – limitations - movement of vehicles.

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SUMÁRIO

Introdução......................................... ................................................................................9

1. Processo de urbanização e o surgimento do direit o urbanístico no Brasil.........11

1.1 Urbanização e qualidade de vida...........................................................................11

1.2 Urbanificação, urbanismo e direito.........................................................................13

1.3 Atividade urbanística..............................................................................................16

1.4 Definição de direito urbanístico..............................................................................19

1.5 Interfaces entre o direito urbanístico e o direito administrativo..............................22

2. Política urbana e circulação.................... ..................................................................27

2.1 Políticas públicas...................................................................................................27

2.2 Política urbana.......................................................................................................29

2.2.1 A competência dos entes federativos...........................................................30

2.2.2 O direito a cidades sustentáveis...................................................................34

2.2.3 O planejamento urbanístico..........................................................................37

2.3 Circulação..............................................................................................................38

2.3.1 O modelo centrado nos automóveis.............................................................40

2.3.2 A construção de um novo paradigma...........................................................43

2.3.3 A mobilidade urbana.....................................................................................44

2.3.4 Projeto de Lei nº 1.687/2007.........................................................................45

3. Limitações à liberdade e à propriedade.......... .........................................................49

3.1 Considerações preliminares...................................................................................49

3.2 Poder de polícia: sentido amplo e sentido estrito............................................... ...50

3.3 Limitações e sistema jurídico constitucional..........................................................58 4. Limitações à circulação de veículos............. ...........................................................61

4.1 Limitações à liberdade de trânsito e tráfego..........................................................61

4.2 Competência legislativa sobre trânsito e tráfego...................................................62

4.3 O que pode ser objeto de ato infralegal.................................................................66

4.4 A razoabilidade e a proporcionalidade das limitações...........................................70

Conclusão.......................................... .............................................................................81

Bibliografia....................................... ...............................................................................84

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Introdução

Sabe-se que a Constituição de 1988 consagra um capítulo próprio

para tratar da política de desenvolvimento urbano, estabelecendo, no art. 182, seu

objetivo, qual seja: ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade

e garantir o bem-estar de seus habitantes.

Para viabilizar a concretização dos preceitos constitucionais, veio a

lume o Estatuto da Cidade, que apontou a garantia do direito às cidades

sustentáveis como uma das diretrizes da política urbana (art. 2°, I). Assim, tanto na

formulação como na implementação dessa política, o Poder Público tem o dever de

zelar pelo equilíbrio das funções sociais da cidade – dentre elas, a circulação - de

modo a garantir a realização do direito a cidades sustentáveis.

Nesse contexto, verifica-se que medidas para desafogar o trânsito e

o tráfego nas cidades estão cada vez mais em pauta nas políticas urbanas.

Por outro lado, se é verdade que a atividade urbanística destinada a

criar condições para a circulação encontra fundamento na garantia de realização do

direito de todos às cidades sustentáveis, da mesma forma, não pode estar alheia ao

direito à circulação dos indivíduos, também, assegurado constitucionalmente (art. 5°,

XV e LXVIII).

Com o objetivo precípuo de analisar até que ponto as limitações

urbanísticas à circulação de veículos se fundamentam à luz do sistema jurídico

brasileiro - considerando, sobretudo, a observância dos princípios da legalidade, da

razoabilidade e da proporcionalidade, bem como as questões relativas à

competência para regular a matéria - é que foi despertado o interesse em produzir

esta dissertação.

Para tanto, inicia-se com uma abordagem acerca do processo de

urbanização, procurando identificar as causas que conduziram ao quadro urbano

atual, marcado por congestionamentos crônicos, tráfego caótico, degradação das

condições ambientais, enfim, problemas relacionados diretamente à qualidade de

vida da população.

Nessa esteira, procura-se, inicialmente, demonstrar o surgimento da

necessidade da intervenção do Poder Público na ordenação do território municipal e

como se desenvolveu as normas urbanísticas.

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Em seguida, parte-se para a análise da política urbana, tal como

prevista na Constituição de 1988, o que reclama um perpassar de olhos pelo

conceito de políticas públicas em geral, antes de se investigar o conteúdo do direito

a cidades sustentáveis e sua relação com as condições de circulação no espaço

urbano. Nesse ponto, já é possível vislumbrar a finalidade tipicamente urbanística

das limitações à circulação de veículos estabelecidas com o propósito de facilitar as

condições de circulação nas cidades.

Note-se que é sob a perspectiva da finalidade urbanística que será

detida a análise do objeto do presente trabalho, conquanto as limitações à circulação

de veículos possam, também, apresentar uma finalidade ambiental – relacionada à

melhoria das condições do meio ambiente.

Feita essa ressalva, no terceiro capítulo, será dado enfoque sobre o

conceito e as características do poder de polícia do Estado, buscando evidenciar a

diferença entre limitar o direito e limitar o exercício do direito, bem como fixar o

sentido e o alcance do princípio da legalidade para as limitações estabelecidas no

exercício de função administrativa.

Por fim, o quarto capítulo trata, especialmente, das limitações à

circulação de veículos, aduzindo os principais debates envolvidos nesse campo, tais

como: a competência dos entes federativos para regular sobre trânsito e tráfego; o

questionamento sobre a necessidade de iniciativa legislativa privativa do Poder

Executivo nesta matéria; o controle de legalidade, bem como a razoabilidade e a

proporcionalidade das medidas, como critérios aferidores de sua constitucionalidade.

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1. Processo de urbanização e o surgimento do direit o urbanístico

no Brasil

1.1 Urbanização e qualidade de vida

O fenômeno da urbanização é típico da sociedade industrializada e

não significa, apenas, o crescimento das cidades, mas “[...] designa o processo pelo

qual a população urbana cresce em proporção superior à população rural [...]”.1

Notadamente, a urbanização, no Brasil, ocorreu de maneira

avassaladora:

Em menos de 40 anos, entre as décadas de 1940 e 1980, a população brasileira passou de predominantemente rural para majoritariamente urbana. Impulsionado pela imigração de um vasto contingente de pobres, esse movimento socioterritorial, um dos mais rápidos e intensos de que se tem notícia, ocorreu sob a égide de um modelo de desenvolvimento urbano que privou as faixas de menor renda de condições básicas de urbanidade e de inserção efetiva à cidade. Além de excludente, tal modelo mostrou-se também altamente concentrador [...].2

O país que, em 1940, apresentava índice de população urbana

equivalente a 30,24%, passou a registrar, no ano 2000, mais de 80% da população

vivendo em áreas urbanas.3

Essa urbanização crescente, mas prematura, segundo adverte Jorge

Wilheim:

[...] decorreu de fatores nem sempre desenvolvimentistas, como o êxodo rural, por causa da má condição de vida no campo e da liberação de mão-de-obra em razão da mecanização da lavoura ou da transformação de plantações em campos de criação de gado.4

Evidentemente:

A urbanização gera enormes problemas. Deteriora o ambiente urbano. Provoca a desorganização social, com carência de habitação, desemprego, problemas de higiene e de saneamento básico. Modifica a utilização do solo e transforma a paisagem urbana.5

1 SILVA, José Afonso. Direito urbanístico brasileiro, p. 26. 2 ROLNIK, Raquel. A lógica da desordem. Disponível em:

<http://www.polis.org.br/utilitarios/editor2.0/UserFiles/File/Raquel%20Rolnik-(2).pdf>. Acesso em: 01 jun. 2009.

3 População urbana (percentual). Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/series_estatisticas/subtema.php?idsubtema=107>. Acesso em 20 jan. 2010.

4 Urbanismo no subdesenvolvimento, p.24. RJ: Saga, 1969 apud SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 27.

5 Op. cit., p. 27.

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As cidades não estavam preparadas para atender à enorme

demanda populacional ocasionada pela ocupação desenfreada do solo urbano, o

que fez emergir graves problemas sociais, como mostra Daniela Libório:

A cidade, na condição de espaço voltado para a coletividade, desconhecia certos fenômenos que se sucederam a esta repentina e intensa ocupação. Problemas de saúde pública (água, alimentos e saneamento) e de uso do espaço, com a conseqüente ordenação das vias de circulação e a oferta de serviços públicos mínimos, fizeram o Poder Público elaborar políticas públicas e editar normas jurídicas até então inéditas. Foi o processo de urbanização, e não a existência das cidades que fez se desenvolver o urbanismo e, posteriormente, o Direito Urbanístico.6

Enquanto, na década de 40, as cidades brasileiras eram vistas como

a possibilidade de avanço e modernidade em relação ao campo, na década de 90,

essa imagem passou a ser associada à violência, poluição, tráfego caótico, etc. “[...]

É que a evolução mostrou que, ao lado de intenso crescimento econômico, o

processo de urbanização com crescimento da desigualdade resultou numa inédita e

gigantesca concentração espacial da pobreza”.7

Assim como em outros países em desenvolvimento, o processo de

urbanização brasileiro foi resultado da ocupação irracional do solo urbano, a partir

da abertura de novos bairros de moradia, cada vez mais distantes das áreas

centrais. A população de baixa renda acabou sendo expulsa para as áreas

periféricas dos Municípios, passando a se aglomerar em regiões desprovidas de

condições mínimas de uma vida com qualidade. É corrente que tanto a prestação de

serviços públicos como o acesso a equipamentos de saúde, educação, áreas de

lazer, rede de esgotos, etc., figuram absolutamente deficitários nessas áreas mais

pobres.

A par do agravamento do quadro de desigualdade social existente

no Brasil, a urbanização tem provocado impactos ambientais significativos, que são

causa de enchentes, desmoronamentos, poluição dos recursos hídricos, poluição do

ar, desmoronamentos, etc.

Consoante a análise de Raquel Rolnik, as cidades brasileiras são

definidas por um modelo de exclusão territorial, que exclui a maioria pobre do

acesso às áreas urbanas formais e estruturadas, de maneira a reproduzir

desigualdades. Explica a autora:

6 Elementos de direito urbanístico, p. 03. 7 MARICATO, Ermínia. Metrópole da periferia do capitalismo. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 55 apud

SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 23.

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[...] Em uma cidade dividida entre a porção rica, legal e infra- estruturada e a porção pobre, ilegal e precária, a população em situação desfavorável acaba tendo muito pouco acesso às oportunidades econômicas e culturais que o ambiente urbano oferece. O acesso aos territórios que concentram as melhores condições de urbanidade é exclusivo para quem já é parte deles.8

Ainda, segundo pensa a urbanista, esse modelo tem caráter

predatório e completa a “lógica da desordem”, condenando a cidade a um padrão

insustentável tanto do ponto de vista ambiental como econômico:

Em primeiro lugar, a concentração das oportunidades em um fragmento da cidade e a ocupação extensiva de periferias cada vez mais distantes impõem um padrão de circulação e mobilidade dependente do transporte sobre pneus e, portanto, de alto consumo energético e potencial poluidor. Em segundo lugar, a ocupação das áreas frágeis ou estratégicas do ponto de vista ambiental – como mananciais de água, complexos dunares ou mangues – é decorrente de um padrão extensivo de crescimento por abertura de novas fronteiras e expulsão permanente da população mais pobre das áreas ocupadas pelo mercado (grifo nosso).9

Se é verdade que a expansão urbana impôs a dependência do

transporte sobre pneus, elevando o consumo de energia e o nível de poluição, por

outro lado, esse uso ampliado do transporte motorizado acabou por estimular a

própria expansão urbana e a dispersão das atividades, trazendo reflexos

importantíssimos nas condições de circulação e, conseqüentemente, na qualidade

de vida das pessoas que vivem nas cidades.

1.2 Urbanificação, urbanismo e Direito

A solução para os problemas advindos com a urbanização, conforme

aponta José Afonso da Silva, está na intervenção do Poder Público através da

ordenação dos espaços habitáveis. Segundo enfatiza, isto ocorre com a

urbanificação, definida como “[...] processo deliberado de correção da urbanização,

consistente na renovação urbana, que é a reurbanização, ou na criação de núcleos

urbanos, como as cidades novas da Grã Bretanha e Brasília”.10

Explica o autor que “a urbanização criou problemas urbanos que

precisavam ser corrigidos pela urbanificação, mediante a ordenação dos espaços

habitáveis – de onde ser originou o urbanismo como técnica e ciência”. Embora

8 A lógica da desordem, p. 10. Le Monde Diplomatique Brasil, ago/08, p. 10-11. Disponível em:

<http://www.polis.org.br/utilitarios/editor2.0/UserFiles/File/Raquel%20Rolnik-(2).pdf>. Acesso em: 01 jun. 2009.

9 Ibid., mesma página. 10 Direito urbanístico brasileiro, p. 27.

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esteja o urbanismo correlacionado à cidade industrial, isso não significa que regras

urbanísticas inexistissem nas cidades antigas e medievais.

[...] Arruamento, estabelecimento de praças, alinhamento dos edifícios, são exigências urbanísticas que existiram na Antigüidade Clássica, como na Idade Média e mesmo no Brasil Colonial, quando também se iniciou o calçamento das vias públicas. Tratava-se, no entanto, de um urbanismo primitivo e empírico. (grifado no original).11

Num primeiro momento, o urbanismo foi concebido como uma arte

de embelezar a cidade, preocupando-se essencialmente com a ordenação do

espaço físico da cidade.

Foi a partir da obra de Ebenezer Howard (Garden Cities of

Tomorrow, 1902) – conforme noticia Toshio Mukai – que o urbanismo começou a

ganhar nova amplitude, passando a abranger, também, o campo.12

Desenvolveu-se, assim, o conceito moderno de urbanismo, cuja

preocupação, além de ultrapassar os aspectos meramente físicos do território e se

estender, também, ao campo, passou a revelar um sentido social, à medida que se

vinculou à melhoria das condições de vida do homem.

Nesse sentido, afirmou Campos Venuti que ”a consideração científica dos problemas da cidade leva a reconhecer que esta última não se apresenta como entidade com vida autônoma, destacada e a considerar separadamente do território em que surge...”, o que dá uma amplidão maior ao urbanismo, “ultrapassando os limites da cidade para abrigar um território inteiro, quer na sua parte urbana, quer na sua parte rural, sendo que “urbanismo” não mais significa “do urbano” mas “do território”, no sentido de que o objeto dessa ciência não mais coincide com o seu significado etimológico (urbanismo procede do latim urb, urbis, significando a cidade e seus habitantes).13

Acresça-se, também, que há uma forte ligação entre o urbanismo

contemporâneo e o meio ambiente, haja vista o inter-relacionamento entre a

qualidade ambiental e a qualidade de vida humana.

Nas lições de Diogo de Figueiredo Moreira Neto – autor do primeiro

livro de direito urbanístico brasileiro que se tem notícia, denominado Introdução ao

Direito Ecológico e ao Direito Urbanístico, de 1975 – o conceito de urbanismo está

relacionado à expressão “espaços habitáveis”. Conforme verifica:

[...] o Urbanismo transcedeu os problemas urbanos. Eles são compreendidos e tratados dentro de um todo em que a cidade se integra

11 Ibid., p. 27-28. 12 Direito urbano e ambiental, p. 23. 13 Ibid., p. 24.

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com os espaços circunvizinhos e com outras cidades, em plano local, regional, nacional e, em próximo futuro, até mesmo continental e global.

[...]

A dimensão social veio somar-se à física para tornar o Urbanismo a disciplina físico-social dos espaços habitáveis. (grifado no original).14

Lúcia Valle Figueiredo observa o seguinte:

[...] Daí se vê a amplitude que vem ganhando o termo, pois, na realidade, não se vai restringir apenas à cidade, à urbs, inserindo-se o problema do solo rural quer nas normas referentes ao Direito Urbanístico, quer nas concepções de Urbanismo.15

Para Maria Sylvia Zanella di Pietro:

Embora difícil de definir os contornos do urbanismo, pode-se aí incluir tudo o que se refere ao regulamento das construções, ao parcelamento do solo urbano, ao zoneamento, à preservação do patrimônio histórico artístico nacional, à higidez do meio ambiente, abrangendo a proteção das águas e das florestas.16

Por seu turno, José Afonso da Silva enfatiza que: “[...] o urbanismo

objetiva a organização dos espaços habitáveis visando à realização da qualidade de

vida humana” (grifado no original). 17

De acordo com o pensamento de Antônio Bezerra Baltar, que reflete

a concepção da famosa Carta de Atenas, elaborada em 1933:

o urbanismo é uma ciência, uma técnica e uma arte ao mesmo tempo, cujo objetivo é a organização do espaço urbano visando ao bem-estar coletivo – através de uma legislação, de um planejamento e da execução de obras públicas que permitam o desempenho harmônico e progressivo das funções urbanas elementares: habitação, trabalho, recreação do corpo e do espírito, circulação no espaço urbano.18

Corroborando as lições, aqui, trazidas, vale a pena reproduzir,

também, o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, segundo o qual:

[...] Urbanismo é o conjunto de medidas estatais destinadas a organizar os espaços habitáveis, de modo a propiciar melhores condições de vida ao homem na comunidade. Entenda-se por espaços habitáveis todas as áreas em que o homem exerce coletivamente qualquer das quatro funções sociais: habitação, trabalho, circulação, recreação.

14 P. 50. Note-se, entretanto, que antes da referida obra, estudos relativos ao direito urbanístico

iniciaram-se com Hely Lopes Meirelles em capítulos de seu clássico Direito Municipal Brasileiro (1957) e no seu Direito de Construir (1961), além de artigos publicados em revistas especializadas, conforme observação trazida por José Afonso da Silva (Direito urbanístico brasileiro, explicações na nota de rodapé 2, p. 36).

15 Disciplina urbanística da propriedade, p. 33. 16 Ibid, p. 31. 17 Ibid, p. 31. 18 Introdução ao planejamento urbano. Recife, 1947, p. 136 apud SILVA, José Afonso da. Direito

urbanístico brasileiro, p. 30.

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Assim sendo, o Urbanismo é incumbência de todos os níveis de governo e se estende a todas as áreas da cidade e do campo onde as realizações humanas ou a preservação da Natureza posam contribuir para o bem-estar individual e coletivo. Mas, como nas cidades se concentram as populações, suas áreas exigem mais e maiores empreendimentos urbanísticos, visando a oferecer o maior bem para o maior número – objetivo supremo do moderno Urbanismo (grifado no original).19

Mais adiante, o autor evidencia o papel tanto das normas técnicas

como das normas jurídicas para o alcance das finalidades urbanísticas, inferindo a

relação entre Urbanismo e Direito:

O urbanismo de hoje, como expressão do desejo coletivo na organização dos espaços habitáveis, atua em todos os sentidos e em todos os ambientes, através de normas de duas ordens: normas técnicas de planejamento e construção, recomendadas pelas ciências e artes que lhe são tributárias; e normas jurídicas de conduta social, exigidas e impostas pelo ordenamento legal vigente. As primeiras disciplinam a utilização do solo, o traçado urbano, as áreas livres e os espaços verdes, as edificações, o sistema viário, os serviços públicos e o que mais se relacione com a ordenação comunitária; as últimas visam assegurar coercitivamente a observância das regras técnicas. Aquelas são normas-fins; estas, normas-meios. Ambas imprescindíveis para o atingimento dos objetivos urbanísticos.

Aí está a íntima correlação entre Urbanismo e Direito, permitindo-nos afirmar, mesmo, que não há, nem pode haver atuação urbanística sem imposição legal. Isto porque o Urbanismo é feito de limitações de ordem pública ao uso da propriedade particular e ao exercício de atividades individuais, que afetam a coexistência social. Para a ordenação da vida em sociedade, cada componente do agregado humano deve ceder parcela mínima de seus direitos, recebendo em retribuição segurança, higiene, conforto e bem-estar coletivos. Mas, como o egoísmo é da natureza humana, necessário se torna que um poder superior aos indivíduos – o Poder Público – intervenha imparcialmente na repartição dos encargos, impondo a todos, indistintamente, as restrições reclamadas pelo interesse da comunidade. Esta repartição de encargos só o Direito pode realizar, com igualdade, coercitividade e justiça. Eis aí o fundamento e a razão de ser das imposições de ordem urbanística. Imposições que se estendem a todos e a tudo que possa propiciar o maior bem para o maior número. O estudo dessas imposições é matéria do direito urbanístico (grifado no original).20

1.3 Atividade urbanística

A atividade urbanística é tida como a essência do objeto do direito

urbanístico, razão pela qual não poderíamos deixar, aqui, de tecer algumas

considerações acerca de seu significado.

José Afonso da Silva, pautando-se nos ensinamentos de Joseff

Wolff, explica que essa atividade traduz-se na ação destinada a realizar os fins e

19 Direito municipal brasileiro, p. 522-523. 20 Op. cit., p. 524.

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aplicar os princípios do urbanismo.21 Segundo pensa, a atividade urbanística é uma

função pública e consiste na “[...] intervenção do Poder Público com o objetivo de

ordenar os espaços habitáveis [...]”22

Se função pública “[...] é a atividade exercida no cumprimento do

dever de alcançar o interesse público, mediante o uso dos poderes

instrumentalmente necessários conferidos pela ordem jurídica”23, dizer que a

atividade urbanística é função pública significa que ela é exercida no cumprimento

do dever de alcançar um interesse público, que se traduz, no caso, no pleno

desenvolvimento das funções sociais das cidades.

Para José Afonso da Silva, a atividade urbanística se opera

mediante intervenção na propriedade privada e na vida econômica e social das

aglomerações urbanas (e, também, no campo). Por isso, gera conflitos entre o

interesse coletivo à adequada ordenação dos espaços habitáveis, para o melhor

exercício das funções sociais da cidade, e os interesses individuais. À medida que

se exerce constrangendo e limitando interesses privados, a atividade urbanística “há

de exercitar-se segundo normas de lei naquilo em que crie direitos ou imponha

obrigações aos particulares”.24

Ao conceituar a atividade urbanística como intervenção do Poder

Público e dizer que ela está submetida ao princípio da legalidade, poder-se-ia supor

que o autor pretendeu considerá-la, além de função pública, como função

administrativa, atrelada à idéia aplicação de atos concretos, baseados na lei, para

cumprir as finalidades assinaladas no ordenamento jurídico.

Entretanto, numa análise mais apurada, não se pode deixar de

reconhecer que se trata uma atividade complexa, que implica a expedição de atos

jurídicos da mais diversa natureza, resultantes de uma etapa intelectual e outra

material, ou seja, a atividade urbanística envolve tanto planejamento como

execução. Vale dizer, com base naquilo que é elaborado intelectualmente ou

planejado, a Administração deve tomar decisões, expedir ordens, firmar contratos,

realizar obras públicas, regulamentar o uso dos logradouros públicos, etc.

21 Direito urbanístico brasileiro, p. 31. 22 Ibid, p. 34. 23 Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 29. 24 Op. cit., p. 34-35.

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Ao se referir à atividade urbanística, Mariana Mencio se manifesta

no sentido de que ela abrange tanto a função política como a função administrativa

do Estado:

[...] a atividade urbanística envolve o sentido amplo de Administração Pública, pois abrange atividades de governo e administração, isto é, planejamento e execução. No primeiro caso, encontra-se a vertente da elaboração da política urbana, através da edição de leis de zoneamento, uso e ocupação do solo, Planos Diretores, leis orçamentárias, e, no segundo caso, das atividades de intervenção urbanística, que compreendem atos de expedição de licenças de construção, autorizações, concessão de outorga onerosa.25

Segundo Daniela Libório, “de forma geral, melhor será colocar a

expressão no plural, atividades urbanísticas, tendo em vista que estas se reportam a

todas as ações destinadas a realizar o urbanismo e a urbanificação”26 (grifado no

original). No que diz respeito às divisões internas da atividade urbanística, a autora

explica que:

[...] a dinâmica da realização urbanística prescinde de certa seqüência entre suas etapas: plano urbanístico; elaboração de normas jurídicas específicas; execução de atividade urbanística e, dentro da execução, a utilização de instrumentos urbanísticos [...].27

Considerando-se que tanto a formulação da política urbana, como a

elaboração de normas jurídicas fazem parte da atividade urbanística, sem embargo

de entendimentos contrários, é forçoso reconhecer que tal atividade representa não

apenas exercício de função administrativa, mas envolve, também, as funções

políticas e legislativas do Estado.

Importante registrar que “o planejamento é – como diz Joseff Wolff –

o princípio de toda atividade urbanística, pois quem impulsiona e exerce essa ação

de ordenação precisa ter consciência do que quer alcançar com tal influxo [...]”.28

Depreende-se, portanto, que a atividade urbanística não pode

configurar um aglomerado de intervenções sem rumo, mas deve ser racionalmente

planejada.

25 Regime jurídico da audiência pública na gestão democrática das cidades, p. 27. 26 Elementos de direito urbanístico, p. 61. 27 Ibid., p. 62. 28 SILVA, José Afonso da Silva. Direito urbanístico brasileiro, p. 32.

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19

1.4 Definição de direito urbanístico

Impõe-se, agora, dizer, com precisão, o que se entende por direito

urbanístico.

No conceito formulado por José Afonso da Silva, “O direito

urbanístico objetivo consiste no conjunto de normas que têm por objeto organizar os

espaços habitáveis, de modo a propiciar melhores condições de vida ao homem na

comunidade” (grifado no original).29

Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto “[...] pode-se conceituar o

Direito Urbanístico como o conjunto de técnicas, regras e instrumentos jurídicos,

sistematizados e informados por princípios apropriados, que tenha por fim a

disciplina do comportamento relacionado aos espaços habitáveis”.30

O autor adverte, porém, que não se trata de um Direito Urbano, que

se refere à cidade, em oposição ao campo. De acordo com o seu pensamento,

direito urbanístico é a “disciplina jurídica do Urbanismo”, que não se opõe, mas se

integra ao rural, sendo aplicável a todos os espaços habitáveis.31

Dizer que as normas que compõem o Direito Urbanístico disciplinam

os espaços habitáveis significa, portanto, que elas alcançam não apenas o espaço

urbano, como, também, as áreas rurais que nele interferem, como, também, é o

entendimento esposado por Hely Lopes Meirelles:

As exigências urbanísticas desenvolveram-se de tal modo nas nações civilizadas e passaram a pedir soluções jurídicas, que se criou em nossos dias o direito urbanístico, ramo do direito público destinado ao estudo e formulação dos princípios e normas que devem reger os espaços habitáveis, no seu conjunto cidade-campo. Na amplitude desse conceito, incluem-se todas as áreas em que o homem exerce coletivamente qualquer de suas quatro funções essenciais na comunidade: habitação, trabalho, circulação e recreação, excluídas somente as terras de exploração agrícola, pecuária ou extrativa, que não afetem a vida urbana (grifado no original)

Segundo essa conceituação, cabem no âmbito do direito urbanístico não só a disciplina do uso do solo urbano e urbanizável, de seus equipamentos e de suas atividades, como a de qualquer área, elemento ou atividade em zona rural que interfira no agrupamento urbano, como ambiente natural do homem em sociedade. Essa concepção de ampla abrangência do direito urbanístico é a dominante entre seus iniciadores alienígenas e seus primeiros cultores no Brasil (grifado no original).32

29 Direito urbanístico brasileiro, p. 49. 30 Introdução ao Direito Ecológico e ao Direito Urbanístico, p. 56. 31 Ibid., mesma página. 32 Direito municipal brasileiro, p. 525.

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Assim, embora a etimologia do vocábulo “urbanismo” seja vinculada

à “urbs” (cidade), é preciso ter o desvelo para não se identificar o âmbito de

incidência do direito urbanístico como restrito às áreas urbanas dos Municípios. Na

verdade, suas normas abrangem o território municipal como um todo, inclusive, as

áreas rurais, que - embora em menor medida - também, podem estar voltadas ao

desenvolvimento de uma das funções sociais da cidade, que foram definidas, na

Carta de Atenas como: habitação, trabalho, circulação e lazer.

Neste sentido, manifesta-se Júlia Maria Plenamente Silva:

[...] Ainda que as funções sociais da cidade desenvolvam-se com maior intensidade no núcleos urbanos, o Município, para atender o interesse local, não pode deixar de promovê-las também no território rural. Deverá, contudo, respeitar as características do território que ensejarão tratamento diferenciado, bem como a competência da União para tratar de direito agrário e, dessa forma, regular as atividades econômicas e rurais.33

Hely Lopes Meirelles afirma que:

[...] o direito urbanístico visa precipuamente à ordenação das cidades, mas os seus preceitos incidem também sobre as áreas rurais, no vasto campo da ecologia e da proteção ambiental, intimamente relacionadas com as condições da vida humana em todos os núcleos populacionais, da cidade e do campo [...].34

Segundo o autor, a ação urbanística do Município

[...] é plena na área urbana e restrita na área rural, pois que o ordenamento desta, para suas funções agrícolas, pecuárias e extrativas compete à União, só sendo lícito ao Município intervir na zona rural para coibir empreendimentos ou condutas prejudiciais à coletividade urbana, ou para preservar ambientes naturais de interesse público local.35

Feita essa advertência, resulta que, de fato, as normas urbanísticas

incidem amplamente na zona urbana, mas isso não significa que estejam alheias às

zonas rurais, na medida em que estas possam afetar a vida urbana.

Corroborando esse entendimento, Carlos Ari Sundfeld aponta o

seguinte:

Tem se discutido se as áreas rurais são ou não alcançadas pela regulação do direito urbanístico; pergunta a que os especialistas vêm dando resposta enfaticamente positiva, baseados em uma visão integrada da cidade (visão, essa, aliás, acolhida pelo art. 40, § 2º, do Estatuto da Cidade, segundo o qual o plano diretor municipal “deverá englobar o território do Município como um todo”). É preciso, porém, algum cuidado com as simplificações. A Constituição isola, em capítulos separados, a política urbana (arts. 182-183) e a política fundiária (arts. 184-191), esta última ligada ao problema social

33 O planejamento urbano enquanto dever jurídico do Estado, p. 51. 34 Op. cit., p. 526. 35 Ibid, p. 395.

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da distribuição das terras (reforma agrária) e de sua exploração econômica. Assim, o direito agrário é efetivamente um limite do direito urbanístico, pois a política urbana não pode tomar para si definições que são próprias da política fundiária (agrária). Mas isso não quer dizer que o direito urbanístico seja alheio ao meio rural, pois a ele cabe a disciplina (a) da passagem de uma área da zona rural para a zona urbana (segundo o art. 182, § 1º, da CF, cabe ao plano diretor municipal fixar a “política de expansão urbana”), (b) da proteção dos recursos naturais necessários ao desenvolvimento da cidade como um todo (como as águas e o ar), independentemente da zona em que situados, (c) das relações em geral entre o meio rural e o meio urbano e (d) das questões espaciais do meio rural, naquilo que não esteja diretamente vinculado à política agrária.36

Registre-se, portanto, que o objetivo do direito urbanístico não

consiste em ordenar as atividades agropastoris ou extrativas, mas suas normas

recaem sobre a ordenação do uso e ocupação das áreas rurais que estejam

relacionadas com o planejamento urbano.

Este raciocínio coaduna-se com o pensamento de Lúcia Valle

Figueiredo, que define o direito urbanístico como “[...] o conjunto de normas

disciplinadoras do ordenamento urbano”37.

Destaca-se, também, o pensamento do doutrinador espanhol

Antonio Carceller Fernández, segundo o qual:

O Direito urbanístico, ou talvez mais propriamente a legislação urbanística, é um conjunto de normas jurídicas que, por si mesmas ou através do planejamento que regulam, estabelecem o regime urbanístico da propriedade do solo e a ordenação urbana e regulam a atividade administrativa direcionada ao uso do solo, à urbanização e à edificação.38

É de se notar, ainda, que, dentro de um mesmo município, existem

vários núcleos tipicamente urbanos que, apesar de situados na zona urbana, não

contêm a sede do governo municipal, ou seja, que não se ajustam ao conceito

jurídico-político de cidade39, mas nem por isso deixam de ser objeto de regulação do

direito urbanístico.

36 O Estatuto da Cidade e suas diretrizes gerais. In: DALLARI, Adilson de Abreu; FERRAZ, Sérgio.

Estatuto da Cidade: comentários à Lei Federal 10.257/01, explicações na nota de rodapé 10. 37 Disciplina urbanística da propriedade, p. 32. 38 Tradução livre do autor. No texto original: “El Derecho urbanístico, o quizá más propriamente la

legislación urbanística, es um conjunto de normas jurídicas que, por sí mismas o a través del planeamiento que regulan, establecen el regímen urbanístico de la propriedad del suelo y la ordenación urbana y regulan la actividad administrativa encaminada al uso del suelo, la urbanización y la edificación” (Introducción al derecho urbanístico, p. 17).

39 “Cidade, no Brasil, é um núcleo urbano qualificado por um conjunto de sistemas político-administrativo, econômico não agrícola, familiar e simbólico como sede do governo municipal, qualquer que seja sua população. A característica marcante da cidade no Brasil consiste no fato de ser um núcleo urbano, sede do governo municipal” (grifado no original) (SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 26).

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Por essas razões, é importante ressaltar que, para fins urbanísticos,

deve-se compreender por cidade tanto o território urbano – que seja ou não sede do

governo municipal – como, também, as áreas até então rurais à medida que passem

a ser utilizadas com atividades abrangidas pelo conceito funções sociais da cidade.

Este pensamento encontra-se afinado com a proposta trazida por

Júlia Maria Plenamente Silva, segundo a qual o direito urbanístico corresponde ao

[...] ramo do direito público que tem por objeto normas jurídicas de ordenação de todo o território de um município, destinadas ao pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, consistente em habitação, trabalho, lazer e circulação.

Assim, [...] ao elaborar e executar o planejamento urbano, deverá o Poder Público ter por finalidade a consecução das funções sociais da cidade, interesse público qualificado que identifica o direito urbanístico enquanto ciência, de modo que se não visar o alcance das funções sociais da cidade, não estará o Estado cumprindo o dever jurídico decorrente das normas de direito urbanístico.40

Frise-se, portanto, que as normas urbanísticas têm por finalidade a

otimização das funções sociais da cidade e, por conseguinte, proporcionar a

melhora na qualidade de vida das pessoas que nela vivem.

1.5 Interfaces entre o direito urbanístico e o dire ito administrativo

O direito urbanístico é considerado um ramo relativamente novo do

Direito, cujas normas passaram a ser desenvolvidas à medida que os aglomerados

urbanos foram adquirindo complexidade.

Igualmente inserido no campo do direito público, que se ocupa dos

interesses da coletividade, caracterizado pela idéia de função, de dever de

atendimento dos interesses públicos, não se pode deixar de reconhecer sua

imbricada relação com o direito administrativo. Aliás, boa parte da doutrina o

considera, apenas, um braço do direito administrativo, por considerar que suas

normas não passam de normas referentes ao poder de polícia.

José Afonso da Silva, embora discordante dessa posição a qual

considera reducionista, entende que as normas de direito urbanístico, todavia, não

adquiriram unidade substancial e, portanto, ainda, é cedo para atribuí-lo autonomia

científica. Segundo pensa: “[...] é prudente considerá-lo como uma disciplina de

40 Op. cit., p. 51-52.

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síntese, ou ramo multidisciplinar do Direito, que aos poucos vai configurando suas

próprias instituições” (grifado no original).41

Por outro lado, o autor enfatiza que autonomia é um conceito

relativo, ou seja, dizer que uma disciplina jurídica é autônoma não implica que ela

seja independente, tendo em vista que o Direito é uma unidade. Por essa razão,

nenhuma disciplina jurídica possui autonomia jurídica, mas pode possuir autonomia

didática e autonomia científica:

[...] a primeira justificada pela oportunidade de circunscrever o estudo a um grupo de normas que apresentam particular homogeneidade relativamente a seu objeto mas ainda se acham sujeitas a princípios de outro ramo; a segunda quando, além da necessidade indicada, verifica-se a formação de princípios e institutos próprios.42

Nessa ordem de raciocínio, um ramo do Direito só adquire

autonomia científica quando suas normas se desenvolveram a ponto de gerar, em

torno de seu objeto específico, princípios, conceitos e institutos próprios.

Para José Afonso da Silva, como já mencionado, o direito

urbanístico, ainda, não firmou essa autonomia científica “[...] dado que só muito

recentemente suas normas começaram a desenvolver-se em torno do objeto

específico que é a ordenação dos espaços habitáveis ou a sistematização do

território [...]”.43

Por sua vez, adverte Toshio Mukai:

De nossa parte, embora admitindo o posicionamento de José Afonso da Silva, concebendo o direito urbanístico como disciplina de síntese, sem autonomia própria, entendemos necessário, no estágio atual do urbanismo brasileiro, não deixar de enfatizar a enorme vinculação ee dependência do nosso direito do urbanismo ao direito administrativo, tendo em vista que ele evolui basicamente, no Brasil, como um desenvolvimento técnico-jurídico do direito administrativo (sua origem é esta), conforme se pode observar em nossa doutrina, na jurisprudência e até mesmo em nossa parca legislação existente.44

Em contrapartida, já se vislumbram entendimentos doutrinários que

propugnam a autonomia do direito urbanístico. Nesta esteira, figura o

posicionamento da prof° Daniela Campos Libório di S arno:

É possível falar em autonomia do Direito Urbanístico por ter ele objeto próprio e específico, que o diferencia de todo e qualquer outro ramo da ciência jurídica. Independe que alguns dos instrumentos utilizados também

41 Ibid., p. 44. 42 Direito urbanístico brasileiro, p. 42. 43 Ibid, p. 43. 44 Direito urbano e ambiental, p. 30.

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encontrem guarida em outros ramos do Direito Público, pois se estão sob sua égide, nada mais natural que seus ramos da ciência jurídica tenham semelhanças próprias de teoria geral, porém não lhes inibindo a particularidade de objetivos. Assim, não entendemos o Direito Urbanístico como um simples capítulo do Direito Administrativo.45

Pode-se afirmar que a tese da autonomia do direito urbanístico só se

revela sustentável à medida que é possível identificar um conjunto sistematizado de

normas - princípios e regras - que lhe conferem identidade. Em outras palavras, é

preciso que do universo do sistema jurídico se possa extrair um conjunto de normas

com unidade e coerência próprias, de tal sorte que passam a compor o objeto do

direito urbanístico.46

Consoante as lições de Márcio Cammarosano:

Falar em autonomia deste ou daquele ramo do direito implica identificar, compondo cada qual, plexos normativos a respeito de um dado objeto, com reconhecimento da incidência de princípios peculiares que conferem identidade própria ao ramo considerado, ensejando estudá-lo como sistema.47

De acordo com as explicações trazidas pelo autor, o direito

urbanístico é composto de normas que eram objeto de estudo do direito

administrativo. Conforme verifica:

Essas normas consubstanciam a disciplina jurídica dos espaços urbanizados e a urbanizar. E em razão mesmo do vertiginoso adensamento populacional, formando grandes centros e conglomerados urbanos, com os imensos e variados desafios daí decorrentes, a reclamar planejamento e soluções da maior abrangência e complexidade, a disciplina normativa dos espaços vocacionados para tanto adquiriu tal dimensão que passou a reclamar estudos jurídicos nela concentrados, cada vez mais aprofundados e sistematizados.

Referida produção normativa intensa e complexa, e a concomitante exigência de estudos jurídicos especializados, chegou a tal ponto que tornou-se forçoso reconhecer a formação de um novo ramo do direito: o direito urbanístico, sem embargo de sua herança genética do direito administrativo.48

45 Elementos de direito urbanístico, p. 57. 46 A palavra sistema, consoante a lição de Geraldo Ataliba, denomina a composição de elementos

sob uma perspectiva unitária (Sistema constitucional tributário brasileiro, p. 04). Norberto Bobbio traz as seguintes explicações: “Entendemos por ‘sistema’ uma totalidade ordenada, um conjunto de entes entre os quais existe uma certa ordem. Para que se possa falar de uma ordem, é necessário que os entes que a constituem não estejam somente em relacionamento com o todo, mas também num relacionamento de coerência entre si. Quando nos perguntamos se um ordenamento jurídico constitui um sistema nos perguntamos se as normas que o compõem estão num relacionamento de coerência entre si, e em que condições é possível essa relação (grifado no original) (Teoria do ordenamento jurídico, p. 71).

47 Direito administrativo, urbanístico e ambiental: interfaces. In: BEZNOS, Clovis; CAMMAROSANO, Márcio (coord.). Direito ambiental e urbanístico, p. 14.

48 Ibid., p. 15.

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Mais adiante, o professor conclui dizendo tratar-se o direito

urbanístico de disciplina jurídica que possui identidade própria, com matriz

constitucional e princípios basilares a informá-lo, conquanto compartilhe categorias

já conhecidas do direito administrativo, do qual emana. Sustenta, portanto, sua

autonomia, ainda que sempre relativa.49

Convém lembrar, também, o que ensina Celso Antônio Bandeira de

Mello:

[...] um ramo jurídico é verdadeiramente “autônomo” quando nele se reconhecem princípios que formam em seu todo uma unidade e que articulam um conjunto de regras de maneira a comporem um sistema, “um regime jurídico” que o peculiariza em confronto com outros blocos de regras (grifado no original).50

No que toca ao direito urbanístico, dentre os seus princípios

informadores, merecem destaque o da função social da propriedade e o das funções

sociais da cidade, por constituírem o núcleo da política urbana. É, precipuamente,

com base em tais princípios que se legitima a atividade urbanística.

José Afonso da Silva embora considere que os princípios do direito

urbanístico carecem de elaboração científica mais precisa, adverte que já é possível

perceber a formação de certas instituições e institutos que delineiam sua estrutura.

Em suas palavras:

[...] o conjunto de normas que configura a ordenação jurídica dos espaços habitáveis dá origem a verdadeiras instituições de direito urbanístico, como: o planejamento urbanístico (traduzido formalmente em planos urbanísticos), o parcelamento do solo urbano ou urbanizável, o zoneamento de uso do solo, a ocupação do solo, o reparcelamento. Em cada uma dessas instituições encontramos institutos jurídico-urbanísticos, como: o arruamento, o loteamento, o desmembramento, a outorga onerosa do direito de construir, as operações urbanas consorciadas, o direito de superfície, o direito de preempção, a transferência do direito de construir, a regularização fundiária, os índices urbanísticos (taxa de ocupação do solo, coeficiente de aproveitamento do solo, recuos, gabaritos) (grifado no original).51

Conquanto a autonomia do direito urbanístico seja tema recorrente

entre os estudiosos do assunto, mais importante do que solucionar essa questão é

admitir que autonomia não é sinônimo de independência.

É certo que o Poder Público encontra no direito administrativo vários

institutos de que se utiliza no exercício de atividade urbanística. Além do mais,

muitos dos atos provenientes da atividade urbanística são expedidos no exercício de

49 Ibid., p. 16. 50 Curso de direito administrativo, p. 28. 51 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 45-46.

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função administrativa. É ela que viabiliza os instrumentos que são considerados

próprios do direito urbanístico, como a licença urbanística, por exemplo.

Cumpre agregar, ainda, que, independentemente da questão de sua

autonomia, não pairam dúvidas no que diz respeito ao direito urbanístico ser ramo

pertencente ao direito público, porquanto: “[...] as relações que estabelecem têm

sempre como titular uma pessoa de direito público; protegem interesse coletivo e

são compulsórias”.52

Retomando-se as lições de Márcio Cammarosano, afirmar que o

direito urbanístico, assim como o direito ambiental e o direito administrativo, constitui

ramo do direito público implica reconhecer que suas normas são informadas por

alguns princípios de direito público comum - dentre os quais se reporta àqueles

explicitados no art. 37 da Constituição da República – além do fato de existirem

algumas categorias jurídicas compartilhadas, como as noções de limitação à

liberdade e à propriedade, função administrativa, ato e processo administrativo.53

52 Ibid, p. 44. 53 CAMMAROSANO, Márcio. Direito administrativo, urbanístico e ambiental: interfaces. In: BEZNOS,

Clovis; CAMMAROSANO, Márcio (coord.). Direito ambiental e urbanístico, p. 13-17.

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2. Política urbana e circulação

Cumpre, desde logo, ressaltar que “a Constituição de 1988, pela

primeira vez na história constitucional do País, consagra um capítulo à política

urbana”.54

Para melhor compreender o tratamento constitucional dispensado a

essa política, cumpre, antes, indagar o significado de políticas públicas.

2.1 Políticas públicas

Consoante a proposta trazida por Maria Paula Dallari Bucci, “[...] as

políticas são instrumentos de ação dos governos [...]” e apresentam como núcleo a

função de governar.55

Integram a função política ou de governo – conforme nos ensina

Celso Antônio Bandeira de Mello - “[...] atos de superior gestão da vida estatal ou de

enfrentamento de contingências extremas que pressupõem, acima de tudo, decisões

eminentemente políticas [...]”56. Segundo define, “política pública é um conjunto de

atos unificados por um fio condutor que os une ao objetivo comum de empreender

ou prosseguir um dado projeto governamental para o País”.57

Na mesma linha, Maria Sylvia Zanella di Pietro concebe a função

política como “[...] aquela que traça as grandes diretrizes, que dirige, que comanda,

que elabora os planos de governo nas suas várias áreas de atuação [...]”.58 Segundo

coloca, há uma estreita relação entre os conceitos de função política e função

administrativa: “Basicamente, a função política compreende as atividades co-

legislativas e de direção; e a função administrativa compreende o serviço público, a

intervenção, o fomento e a polícia”.59

No que tange ao exercício da função política, a par das demais

funções do Estado – legislativa, jurisdicional e administrativa – é preciso reconhecer

que ela se distribui entre os três poderes da União. Predomina, no entanto, a

atuação do Poder Executivo. 54 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 816. 55 Direito administrativo e políticas públicas, p. 252. 56 Curso de direito administrativo, p. 37. 57 Curso de direito administrativo, p. 814. 58 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo, p. 53. 59 Ibid, p. 51.

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Na realidade, existe uma preponderância do Poder Executivo no exercício das atribuições políticas; mas não existe exclusividade no exercício dessa atribuição. No direito brasileiro, de regime presidencialista e com grande concentração de poderes nas mãos do Presidente da República, é justificável a tendência de identificar-se o Governo como o Poder Executivo. E quando se pensa em função política como aquela que traça as grandes diretrizes, que dirige, que comanda, que elabora os planos de governo nas suas várias áreas de atuação, verifica-se que o Poder Executivo continua, na atual Constituição, a deter a maior parcela de atuação política, pelo menos no que diz respeito às iniciativas , embora grande parte delas sujeitas à aprovação, prévia ou posterior, do Congresso Nacional; aumenta a participação do Legislativo nas decisões do Governo.

Pode-se dizer que no direito brasileiro as funções políticas repartem-se entre Executivo e Legislativo, com acentuada predominância do primeiro (grifado no original).60

Neste mesmo sentido, Maria Paula Dallari Bucci sustenta que o mais

adequado seria a formulação das políticas públicas ficar a cargo do Poder Executivo,

a quem compete realizá-las de acordo com as diretrizes e limites aprovados pelo

Legislativo.61

A autora identifica certa proximidade entre as noções de política

pública e plano, uma vez que freqüentemente as políticas públicas são

exteriorizadas através de planos. No entanto considera que “a política é mais ampla

que o plano e define-se como o processo de escolha dos meios para a realização

dos objetivos do governo, com a participação dos agentes públicos e privados [...]”.62

Para Nelson Saule Júnior:

As políticas públicas compreendem o planejamento, os planos e programas de ação e projetos. Com relação ao plano que é o principal instrumento de planejamento, e que materializa a política pública os objetivos, as diretrizes, as metas, os órgãos do sistema de gestão, os instrumentos e procedimentos da política devem ser estabelecidos por lei.63

Cumprem, aqui, algumas considerações acerca da idéia de

planejamento que, à luz do sistema constitucional, revela-se um dever jurídico.

Com base em José Afonso da Silva:

O processo de planejamento encontra fundamentos sólidos na CF de 1988, quer quando, no art. 21, IX, reconhece a competência da União para “elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social”, quer quando, no art. 174, § 1°, inclui o planejamento entre os instrumentos de atuação do Estado no domínio econômico, estatuindo que “a lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual

60 PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., p. 53. 61 Direito administrativo e políticas públicas, p. 271. 62 Ibid., p. 259. 63 A participação dos cidadãos no controle da Administração Pública, p. 09. Disponível em:

<http://www.polis.org.br/obras/arquivo_174.pdf>. Acesso em: 15 jul. 2010.

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incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento”, ou, ainda, quando, mais especificamente, atribui aos Municípios competência para estabelecer o planejamento e os planos urbanísticos para o ordenamento do seu território (arts. 30, VIII, e 182).

O planejamento, assim, não é mais um processo dependente da mera vontade dos governantes. É uma previsão constitucional e uma provisão legal. Tornou-se imposição jurídica, mediante a obrigação de elaborar planos, que são os instrumentos consubstanciadores do respectivo processo [...] (grifado no original).64

Importante ressaltar que o planejamento que - num primeiro

momento, envolve a elaboração de estudos técnicos multidisciplinares, destinados a

identificar necessidades e apontar soluções que se amoldem à realidade local - só

adquire sentido jurídico quando manifestado em planos que, em face do princípio da

legalidade, disposto no art. 5°, II e art. 37 da Co nstituição Federal, devem ser

aprovados por lei. Antes disso, o planejamento não passa de um processo técnico.65

Nelson Saule Júnior aponta que “na Constituição estão previstas as

políticas públicas que devem ser implementadas e os instrumentos desta política,

como os planos nacionais e regionais de desenvolvimento econômico e social [...]”.

Em se tratando de política urbana, infere que estão previstos os planos nacionais e

regionais de ordenação do território e, no âmbito do Município, o plano diretor, como

instrumento básico desta política.66

2.2 Política urbana

A Constituição de 1988 vinculou, expressamente, a política urbana

ao pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e à garantia do bem-estar

de seus habitantes (art. 182, caput), estabelecendo o plano diretor como o

instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana (art. 182,

§1°), a ser executada pelo Poder Público Municipal, conforme diretrizes fixadas em

lei (art. 182, caput).

É notória a importância que a nossa Lei Maior representou para a

afirmação da existência e na fixação dos objetivos e instrumentos do direito

urbanístico, como expressa Carlos Ari Sundfeld:

64 Direito urbanístico brasileiro, p. 88. 65 O planejamento, em geral, é um processo técnico instrumentado para transformar a realidade

existente no sentido de objetivos previamente estabelecidos [...]” (grifado no original). SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 87.

66 Op. cit., p. 09.

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30

O papel que a Constituição de 1988 implicitamente assinalou ao direito urbanístico é o de servir à definição e implementação da “política de desenvolvimento urbano”, a qual tem por finalidade “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes” (art. 182, caput). O direito urbanístico surge, então, como o direito da política de desenvolvimento urbano, em três sentidos: a) como conjunto das normas que disciplinam a fixação dos objetivos da política urbana (exemplo: normas constitucionais); b) como conjunto de textos normativos em que estão fixados os objetivos da política urbana (os planos urbanísticos, por exemplo); c) como conjunto de normas em que estão previstos e regulados os instrumentos de implementação da política urbana (o próprio Estatuto da Cidade, entre outros) (grifado no original).67

Realizar as funções sociais das cidades importa criar condições para

que estas se prestem às necessidades sociais de moradia, habitação, trabalho,

educação, saúde, lazer, circulação, etc.

Trata-se de objetivo afeto diretamente à qualidade de vida daqueles

que vivem nas cidades – idéia, inclusive, reforçada no texto constitucional pela

expressão “bem-estar de seus habitantes”.

Feitos esses registros, impende, agora, analisar as competências

urbanísticas, para que seja possível compreender o papel de cada ente federativo

na consecução dos fins da política de desenvolvimento urbano.

2.2.1 A competência dos entes federativos

Até a promulgação da Constituição de 1988, não havia uma

distribuição constitucional de competências relativa ao Direito Urbanístico, mas a

doutrina já sustentava que a matéria incidia no âmbito tanto da União, como dos

Estados e dos Municípios.

Do texto constitucional, decorre que à União cabe editar normas

gerais de direito urbanístico (art. 24, I e § 1°), estabelecer planos urbanísticos

nacionais e regionais (art. 21, IX), além de instituir diretrizes para o desenvolvimento

urbano (art. 21, XX).

Aos Estados compete suplementar as normas gerais estabelecidas

pela União (art. 24, I e § 2°). A propósito, esclar ece José Afonso da Silva: “Abre-se

aos Estados, aí, no mínimo, a possibilidade de estabelecer normas de coordenação

67 O estatuto da cidade e suas diretrizes gerais. In: Adilson Abreu Dallari; Sérgio Ferraz (coord.).

Estatuto da cidade: comentários à lei federal 10.257/2001, p. 48-49.

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31

dos planos urbanísticos no nível de suas regiões, além de sua expressa

competência para estabelecer regiões metropolitanas (art. 25, § 3°)”. 68

No que toca aos Municípios, cabe, primeiramente, lembrar que a

Constituição de 1988 reconhece expressamente sua autonomia, nos termos do art.

34, VII, alínea “c”.

Roque Carrazza apresenta a seguinte definição:

A autonomia municipal, sob a ótica do direito, é a faculdade que a pessoa política município tem de, dentro do círculo de competência pré-traçado pela Constituição, organizar, sem interferências, seu governo e estabelecer sponte propria, suas normas jurídicas (João Mangabeira). Este último aspecto (competência para legislar) ganha particular relevo, para que bem se caracterize a autonomia jurídica do Município.69

Quanto à competência constitucionalmente atribuída, aos Municípios

cumpre legislar sobre assuntos de interesse local (art. 30, I). Neste ponto, Hely

Lopes Meirelles esclarece o seguinte: ”o que define e caracteriza o ‘interesse local’,

inscrito como dogma constitucional, é a predominância do interesse do Município

sobre o do Estado ou da União”.70

Mais adiante, conclui o autor “[...] que tudo quanto repercutir direta e

imediatamente na vida municipal é de interesse peculiar do Município, embora possa

interessar também indiretamente e mediatamente ao Estado-membro e à União

[...]”.71

Conforme adverte José Afonso da Silva:

[...] A competência municipal não é meramente suplementar de normas gerais federais ou de normas estaduais, pois não são criadas com fundamento no art. 30, II. Trata-se de competência própria que vem do texto constitucional.

Em verdade, as normas urbanísticas municipais são as mais características, porque é nos Municípios que se manifesta a atividade urbanística na sua forma mais concreta e dinâmica. Por isso, as competências da União e do Estado esbarram na competência própria que a Constituição reservou aos Municípios, embora estes tenham, por outro lado, que conformar sua atuação urbanística aos ditames, diretrizes e objetivos gerais do desenvolvimento urbano estabelecidos pela União e às regras genéricas de coordenação expedidas pelo Estado.72

68 Op. cit., p. 124. 69 Autonomia municipal, tributação e constituinte. Revista de direito constitucional e ciência política, p.

14 apud VICHI, Bruno de Souza. Política urbana: sentido jurídico, competências e responsabilidades, p. 138.

70 Direito municipal brasileiro, p. 111. 71 Ibid., p. 112. 72 Direito urbanístico brasileiro, p. 63.

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32

Aos Municípios cabe, ainda, promover, no que couber, o adequado

ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento

e da ocupação do solo urbano (art. 30, VIII) e executar a política de desenvolvimento

urbano, de acordo com as diretrizes gerais fixadas pela União (art. 182).

Hely Lopes Meirelles lembra que:

[...] Visando o Urbanismo, precipuamente, à ordenação espacial e à regulação das atividades humanas que entendem com as quatro funções sociais – habitação, trabalho, recreação, circulação -, é óbvio que cabe ao Município editar normas de atuação urbanística para seu território, especialmente para a cidade, provendo concretamente todos os assuntos que se relacionem com o uso do solo urbano, as construções, os equipamentos e as atividades que nele se realizam, e dos quais dependem a vida e o bem-estar da comunidade local (grifado no original).73

Entretanto, por mais que a atuação urbanística preponderante fique

a cargo dos Municípios, a quem compete executar a política urbana, através do

Plano Diretor, de forma a atender as peculiaridades locais, esta não deve ficar

atrelada, apenas, a objetivos intra-urbanos, mas fazer parte de uma política de

desenvolvimento econômico e social mais abrangente. Isso porque:

A concepção da política de desenvolvimento urbano da Constituição decorre da compatibilização do art. 21, XX, que dá competência para instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, com o art. 182, que estabelece que a política de desenvolvimento urbano tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes e é executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei. Entenda-se: conforme as diretrizes instituídas por lei federal nos termos do art. 21, XX. Por certo também que essas diretrizes instituídas pela União é que consubstanciam a política de desenvolvimento urbano, pois que uma política há de ser uma política nacional de desenvolvimento urbano que, por seu turno, há de ser elemento da política nacional de desenvolvimento em geral. Foi com base nesse dispositivo que a União expediu o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) (grifado no original).74

A repartição constitucional de competências urbanísticas traduziu a

necessidade de envolver todos os entes federativos no enfrentamento dos

problemas urbano, como mostra Nelson Saule Júnior:

[...] a constitucionalização de normas referentes ao direito urbanístico foi uma necessidade que se impôs diante dos problemas urbanos que não podem mais ser compreendidos como uma questão local, de uma região mais desenvolvida, mas sim como uma questão nacional pelos efeitos que ocasiona nos aspectos econômicos e sociais para a maioria da população brasileira que vive nas cidades, tornando-se relevante para o enfrentamento

73 Op. cit., p. 548. 74 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 816.

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dessa situação, a concretização do valor federativo da cooperação entre a União, os Estados e Municípios [...].75

Neste mesmo sentido, aponta Bruno de Souza Vichi: “[...] a

viabilidade dessa política urbana, que se dá no âmbito do Município, depende da

ação de todos os entes da federação (incluindo-se, portanto, a União e os Estados)

[...]”.76

Note-se que a importância do poder local para o enfrentamento da

problemática urbana tem sido cada vez mais destacada pela comunidade

internacional. Um dos principais resultados da Conferência das Nações Unidas

sobre Assentamentos Humanos - Habitat II - realizada no ano de 1996, em Istambul,

foi, justamente, a consagração do poder local e da descentralização.

É preciso considerar, ainda, que os problemas urbanos acabam por

repercutir em aspectos essenciais para o crescimento econômico ou

desenvolvimento nacional:

[...] Como não reconhecer a importância econômica de gigantescas ocupações ilegais e informais do território urbano, que colocam em risco mananciais de água potável como acontece em São Paulo e mesmo em Curitiba? Qual o custo do tratamento dessa água crescentemente poluída? Qual o custo de buscar fontes de água em bacias mais distantes? Qual o custo de manter essa população em condições precárias de vida? E em relação à questão fundiária urbana, quanto custa manter áreas servidas de infra-estrutura em condições ociosas, devido ao espraiamento horizontal das cidades? Quanto se perde pela ilegalidade fundiária de áreas de ocupação consolidada que, em alguns municípios periféricos metro-politanos, ultrapassam em muito a metade da área urbana total? Quanto se perde no sistema de saúde devido a doenças ligadas à falta de saneamento ambiental? Quanto se perde em negócios, empregos, arrecadação e recursos naturais pela ausência de uma política urbana e metropolitana? Quanto se perde na falta de coordenação e planejamento dos investimentos dos três níveis de governo nas cidades?77

Desta forma, para atender os objetivos assinalados no art. 182, é

fundamental que - além de envolver a participação de todos os entes federativos,

cada qual nos limites de sua competência – a política urbana esteja articulada com

as demais políticas de desenvolvimento econômico e social do país.

Em que pese a tais considerações, a história revela que as políticas

públicas, no Brasil, foram marcadas por uma visão setorial, absolutamente,

deficitária para solucionar os problemas advindos com a urbanização.

75 SAULE JÚNIOR, Nelson. Novas Perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro. Ordenamento

Constitucional da Política Urbana. Aplicação e Eficácia do Plano Diretor, p. 87. 76 Política urbana: sentido jurídico, competências e responsabilidades, p. 127. 77 BRASIL. Ministério das Cidades, Política nacional de desenvolvimento urbano, Cadernos MCidades

nº 1, p. 17.

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Conforme noticia Bruno de Souza Vichi, na década de 90, o Governo

Federal adotou uma postura que acabou por desarticular os entes federativos no

que tange à implementação das políticas públicas:

Ao longo dos anos 90, apontou-se para uma ação de natureza defensiva do Governo Federal sob o argumento (aparentemente neoliberal) de que este não deveria interferir na autonomia dos demais entes da federação e, nesse sentido, acabou por abandonar o seu papel de indutor e coordenador de políticas públicas coordenadas, atribuição que, diga-se, está prevista na Constituição Federal, art. 21, inciso IX, e que, portanto, para além de questões político-administrativas, poderia ter ensejado implicações jurídicas [...].78

Baseando-se na lição de Pedro Luiz Barros Silva e Vera Lúcia

Cabral Costa, destaca, ainda:

No campo das políticas sociais há inúmeras indicações dessa falta de clareza. A atuação do Governo federal “demolindo” as políticas nacionais de habitação e de transporte coletivo urbano, caracteriza bons exemplos de retiradas sem planejamento e sem a devida preocupação em dar continuidade a essas políticas setoriais, em estados e municípios, o que envolve uma nova articulação entre esferas de governo.79

Uma mudança positiva neste cenário só foi apontada em 2003, com

o Ministério das Cidades, criado para tratar da política de desenvolvimento urbano e

das políticas setoriais de habitação, saneamento ambiental, transporte urbano e

trânsito, buscando promover a articulação entre as políticas.

2.2.2 O direito a cidades sustentáveis

A Constituição Federal de 1988, ao estabelecer um capítulo próprio

para tratar da política urbana, representou uma vitória importantíssima na trajetória

das lutas sociais pela reforma urbana, formulada, inicialmente, em 1963.

Pela primeira vez, é bom frisar, a cidade foi tratada na Constituição Federal, que nasceu com o intuito de assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social.80

Nada obstante, carecia o texto constitucional de normatização

suficiente para alcançar suas finalidades, à medida que postulava a edição de uma

78 Op. cit., p. 133. 79 Descentralização e crise da federação. In: AFFONSO; SILVA (org.). A federação em perspectiva, p.

270 apud VICHI, Bruno de Souza. Política urbana: sentido jurídico, competências e responsabilidades, p. 133.

80 Isabel Cristina Eiras de Oliveira, Estatuto da cidade para compreender, p. 03.

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norma geral que estabelecesse as diretrizes gerais da política de desenvolvimento

urbano.

Finalmente, em 10 de julho de 2001, foi publicada a Lei nº 10.257,

dispondo em seu Preâmbulo que “Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição

Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências”

(grifado no original).81

Com efeito, essa lei - autodenominada Estatuto da Cidade - veio

trazer a densidade normativa indispensável para a concretização dos preceitos

constitucionais.82

Em seu art. 2°, I, estabelece:

Art. 2°. A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:

I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações; (grifo nosso).

Por conseguinte, a lei federal direcionou o rumo da política urbana,

qual seja: “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da

propriedade urbana, de modo a garantir o direito a cidades sustentáveis”.83

Por cidades sustentáveis podemos entender aquelas em que o

desenvolvimento urbano ocorre de forma ordenada e com respeito ao direito difuso

ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ou seja, a realização do direito a

81 Vale registrar a advertência trazida por Márcio Cammarosano: “Conquanto consagrada, a

expressão “regulamenta tais e quais dispositivos da Constituição”, não é, em rigor, apropriada, e isso ao menos por duas razões: em primeiro ligar porque quando se fala em regulamentar normas jurídicas usa-se a expressão que a própria Constituição associa ao exercício da competência, que ela mesma confere ao Chefe do Executivo, de expedir regulamentos para fiel execução das leis (art. 84, IV); em segundo porque as normas regulamentares, no sentido estrito do termo, são de nível hierárquico imediatamente infraconstitucional e têm por objeto não a lei em si mesmo considerada, mas a atuação dos agentes que lhe devem dar aplicação, não podendo inovar originariamente a ordem jurídica como as leis em geral”. Continua o autor: “Ora, a lei que consubstancia o denominado Estatuto da Cidade não se limita a estabelecer regras orgânicas e procedimentais para a execução dos dispositivos constitucionais que “regulamenta”. Inova originariamente a ordem jurídica, estabelece obrigações e proibições a particulares e a agentes públicos, cria institutos jurídicos, prevê sanções para os que violarem as regras que prescreve”. (Fundamentos constitucionais do estatuto da cidade. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coord.). Estatuto da cidade: comentários à lei federal 10.257/2001, p. 23).

82 CAMMAROSANO, Márcio. Fundamentos constitucionais do estatuto da cidade. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coord.). Estatuto da cidade: comentários à lei federal 10.257/2001, p. 25.

83 Calos Ari Sundfeld, O estatuto da cidade e suas diretrizes gerais. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coord.). Estatuto da cidade (comentários à lei federal 10.257/2001), p. 48.

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cidades sustentáveis implica, necessariamente, a leitura combinada dos dispositivos

relativos à Política Urbana com o art. 225 da Constituição.

Permeia o conceito a idéia da sustentabilidade do desenvolvimento

urbano, que denota, por assim dizer, a íntima relação entre o direito urbanístico e o

direito ambiental. Conforme acentua Toshio Mukai:

[...] é do âmbito de preocupação e de abrangência do direito urbanístico o disciplinar, convenientemente, visando um ambiente sadio, disciplina todas as ações humanas relacionadas com o uso do solo. Assim, exemplificativamente, a legislação que cuida do zoneamento industrial visa, através da disciplina do uso do solo, evitar ou minimizar a poluição atmosférica em doses anormais; a legislação de proteção aos mananciais visa, através de restrições profundas ao uso do solo, manter as fontes de alimentação da água potável para as cidades; e, a legislação de zoneamento e parcelamento do solo, contém, normalmente, dispositivos que visam, de um lado, a segregação de atividades que seriam por natureza prejudiciais, se indiscriminadamente misturadas em determinadas zonas (p. e.: atividade industrial ao lado de residências), e de outro, a densificação através de loteamentos, em áreas qu por seu interesse especial e ecológico devam ser preservadas da urbanização intensiva.

Afigura-se o direito a cidades sustentáveis como o direito coletivo a

certa ordem urbanística, radicado na idéia de equilíbrio e sustentabilidade.84

No que tange aos direitos subjetivos conferidos pelo indigitado inciso

I do art. 2° (o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-

estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer),

Carlos Ari Sundfeld apresenta a seguinte ressalva:

[...] O dispositivo não pretendeu outorgar esses direitos individualmente e em concreto, mas garanti-los como reflexo da obtenção do equilíbrio (da cidade sustentável). Em outros termos: a população tem o direito coletivo a uma cidade sustentável, o que deve levar à fruição individual das vantagens dela decorrentes (grifado no original).85

Com base em Nelson Saule Júnior:

O Direito à Cidade compreende os direitos inerentes às pessoas que vivem nas cidades de ter condições dignas de vida, de exercitar plenamente a cidadania, de ampliar os direitos fundamentais (individuais, econômicos, sociais, políticos e ambientais), de participar da gestão da cidade, de viver num meio ambiente ecologicamente equilibrado e sustentável.86

84 Ibid., p. 54-56. 85 Ibid., p. 55. 86 Novas perspectivas do direito urbanístico brasileiro. Ordenamento constitucional da política urbana.

Aplicação e eficácia do plano diretor, p. 22. Vale lembrar, ainda, que, para o autor, o direito a cidades sustentáveis, fruto do princípio constitucional das funções sociais da cidade, foi adotado como um novo direito fundamental, com base no § 2° do art. 5° da Constituição ( Direito urbanístico: vias jurídicas das políticas urbanas, p. 51).

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Assegurar o direito à cidade, especificando os direitos que são

inerentes às condições de vida na cidade (acesso de todos à moradia, transporte

público, saúde, educação, etc.) e com respeito às normas de direito ambiental é o

que objetiva as funções sociais da cidade, ao serem desenvolvidas.87

Evidentemente, viabilizar o pleno exercício do direito a cidades

sustentáveis deve ser a finalidade última de toda e qualquer política de

desenvolvimento urbano. Mais que o interesse público traduzido no pleno

desenvolvimento das funções sociais da cidade, deflui do ordenamento jurídico em

vigor, o direito coletivo a cidades sustentáveis.

2.2.3 O planejamento urbanístico

Estabelecido na Constituição Federal como um dever do Estado, o

planejamento constitui uma das diretrizes gerais da política urbana, trazidas pelo

Estatuto da Cidade (art. 2º, IV).

Conforme observa Carlos Ari Sundfeld, a política urbana se

apresenta como indispensável para implantar a ordem urbanística, que tem como

pressuposto o planejamento.88 Segundo explica:

Na lógica do Estatuto, o ordenamento urbanístico não pode ser um aglomerado inorgânico de imposições. Ele deve possuir um sentido geral, basear-se em propósitos claros, que orientarão todas as disposições. Desse modo, o ordenamento urbanístico deve surgir como resultado de um planejamento prévio – além de adequar-se sinceramente aos planos (grifado no original).89

Com relação aos planos, retomando a idéia de que são eles que

conferem sentido jurídico ao planejamento, José Afonso da Silva evidencia que:

[...] o planejamento urbanístico não é um simples fenômeno técnico, mas um verdadeiro processo de criação de normas jurídicas, que ocorre em duas fases: uma preparatória, que se manifesta em planos gerais normativos; e outra vinculante, que se realiza mediante planos de atuação concreta, de natureza executiva – como nota Joseff Wolff, em terminologia adequada ao sistema de planejamento urbanístico alemão (grifado no original).90

87 Ibid, p. 240. 88 O estatuto da cidade e suas diretrizes gerais. In: DALLARI, Adilson Abreu Dallari; FERRAZ, Sérgio

(coord.), Estatuto da cidade (comentários à lei federal 10.257/2001), p. 54 e 56. 89 Ibid, p.56. 90 Direito urbanístico brasileiro, p. 93.

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Os planos configuram, portanto, os instrumentos fundamentais de

atuação urbanística e, em decorrência do princípio da legalidade, todo plano

urbanístico deve ser aprovado por lei. 91

Nos termos da Constituição Federal e do Estatuto da Cidade, o

plano diretor é erigido como o instrumento básico da política de desenvolvimento e

de expansão urbana.

Cumpre agregar, ainda, a obrigatoriedade dos planos urbanísticos

serem resultado de um planejamento democrático, em que haja ampla participação

popular na identificação das prioridades, fixação de metas e programas de ações.

Com efeito, a Constituição de 1988, no art. 29, incisos XII e XIII,

substituiu a concepção de planejamento tecnocrático, que prevaleceu na década de

70 e início dos anos 80.

Por sua vez, o Estatuto da Cidade instituiu, também, como uma das

diretrizes da política urbana, a gestão democrática da cidade (art. 2°, II), tornando

obrigatória a participação popular por via de debates, audiências e consultas

públicas (art. 43, II) ou por iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas

e projetos de desenvolvimento urbano (art. 43, IV).

Evidenciada a relevância do planejamento urbanístico democrático

como um dos pilares da política urbana, impende, desde logo, ressaltar que,

necessariamente, ele deverá contemplar todos os aspectos relativos à circulação,

integrando o planejamento dos transportes, do trânsito e do uso do solo.

2.3 Circulação

A política urbana, no objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento

das funções sociais da cidade, em prol da realização do direito a cidades

sustentáveis, deve, necessariamente, zelar pelas condições de circulação nas

cidades.

Observa-se que quanto maior os municípios, mais os seus

habitantes vão depender do sistema viário para ter acesso a escolas, hospitais e

oportunidades de trabalho e lazer. É através desse sistema que se possibilita o

exercício do direito à circulação das pessoas, concebido como “[...] a manifestação

91 Aliás, a obrigatoriedade do plano diretor ser aprovado por lei resultou expressa no art. 40, caput, do

Estatuto da Cidade.

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mais característica do direito de locomoção, direito de ir e vir e também de ficar

(estacionar, parar), assegurado na Constituição Federal” (grifado no original).92 Além

de constituir meio para a circulação de pessoas, o sistema viário é condição

necessária, também, para a circulação de bens.

Tendo em vista a indispensabilidade das vias de circulação nos

assentos urbanos, José Afonso da Silva destaca a seguinte afirmativa:

[...] o sistema viário forma a estrutura da cidade, constituindo, talvez, seu mais importante elemento. Este sistema determina, em grande parte, a facilidade, a conveniência e a segurança como que o povo se locomove através da cidade; estabelece o tamanho das quadras; constitui um canal para luz e ar, bem como para instalação das redes aéreas e subterrâneas. Nenhum outro elemento da composição material da cidade é tão permanente quanto suas ruas.93

A rede ou infra-estrutura viária corresponde ao aspecto estático do

sistema viário, que apresenta, também, um aspecto dinâmico, representado pelos

transportes. A esse respeito, mais uma vez, vale a pena reproduzir as palavras de

José Afonso da Silva:

Os transportes constituem, com a rede de vias sobre as quais correm, um dos modos de uso do solo mais intensos nos dias de hoje. Cada vez mais solo tem que ser reservado para a circulação nas cidades modernas, especialmente por causa dos veículos a motor. As vias de circulação das cidades um pouco mais velhas já são demasiado estreitas para conter o tráfego urbano, sem contar com a escassez de área de estacionamento. Sua influência sobre o traçado urbano torna-se avassaladora. As cidades formam-se ou transformam-se em função dos transportes [...].

A vivência mostra que as cidades se renovam e se reconstroem rasgando ruas e avenidas, ou alargando-as sempre, para abrir espaço ao ‘senhor automóvel’. As leis urbanísticas de parcelamento do solo reservam um mínimo de 20% da área em urbanificação somente para as vias de circulação [...].94

Em sentido amplo, o sistema viário equivale ao ”[...] conjunto das

redes, meios e atividades de comunicação terrestres, aquáticos e aéreos que

permitem o deslocamento de pessoas e coisas de um ponto a outro do território

nacional, estadual e municipal”.95 Para fins urbanísticos, importam apenas as vias

terrestres e, dentre elas, especialmente as rodovias e, de maneira ainda mais típica,

o sistema viário urbano. Logo, o conceito urbanístico de sistema viário corresponde

92 Direito urbanístico brasileiro, p. 179. 93 Associação Internacional de Administradores Municipais, Planejamento Urbano. Trad. De Maria de

Lourdes Lima Modiano. RJ: Fundação Getúlio Vargas (FGV), 1965, p. 128 apud SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 179.

94 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro, p. 234-235. 95 Ibid., p. 181.

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à “[...] ordenação do espaço para o exercício da função de circular” (grifado no

original).96

Com efeito, os espaços destinados à circulação comportam

disciplina, para que haja o melhor funcionamento das cidades. Ordená-los implica

delimitá-los, no sentido do uso que as pessoas poderão deles fazer. José Afonso da

Silva, seguindo os ensinamentos de Pedro Escribano Collado, aponta que:

A Administração – claro está – tem o poder de estabelecer a regulamentação do uso dos logradouros públicos, inclusive, certamente, das vias urbanas, pelo qual pode determinar o tipo de circulação de cada via, a imposição de limitações e proibições à circulação de veículos, o controle prévio de determinados tipos de circulação, a imposição de requisitos para circular a determinadas categorias de veículos, a proibição de circulação de determinados animais, a imposição de sanções aos contraventores das normas estabelecidas, a vigilância permanente por seus próprios agentes (grifo nosso).97

Existem, no entanto, limites a esse poder regulamentar da

Administração, pois independentemente do meio através do qual se circula – seja a

pé, de bicicleta ou de veículo motorizado – ao transeunte é assegurado o direito

fundamental de circulação nos logradouros públicos, que são bens de uso comum

ou especial do povo. “Ressalvadas, pois, as restrições de trânsito e as demais

limitações de interesse comum, ninguém poderá ser impedido do direito de transitar

e permanecer neles [...]”.98

Vislumbramos, aqui, a possibilidade do Poder Público criar

limitações à circulação de veículos, com o intuito de melhorar a fluidez no trânsito

nas cidades, conquanto sejam respeitados certos limites. Essa atividade estatal -

destinada a criar condições para o exercício da circulação - possui, evidentemente,

finalidade urbanística, à medida que busca a otimização de uma das funções sociais

da cidade.

2.3.1 O modelo centrado nos automóveis

A necessidade de circular – segundo Vasconcellos – está ligada ao

desejo de realização das atividades sociais, culturais, políticas e econômicas,

consideradas necessárias na sociedade.99

96 Ibid., mesma página. 97 Ibid., p. 214. 98 Ibid, p. 213. 99 Transporte urbano, espaço e eqüidade, p. 85.

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O meio básico de locomoção das pessoas é o andar a pé. Todavia,

nas longas distâncias a percorrer, que caracterizam as grandes metrópoles, torna-se

cada vez mais imprescindível o uso do transporte motorizado.100

As maiores cidades brasileiras foram, na verdade, adaptadas para o

uso eficiente do automóvel, através da ampliação do sistema viário e da utilização

de técnicas garantidoras de boas condições de fluidez. Por outro lado, o crescimento

da frota de veículos particulares foi estimulado, também, pela oferta inadequada do

serviço de transporte público. Com mais automóveis circulando nas vias, aumenta-

se o nível de congestionamento, a poluição e a ineficiência do transporte público

(que se torna mais lento e menos confiável). Esse uso ampliado do transporte

individual, por sua vez, estimula a expansão urbana e a dispersão das atividades,

elevando o consumo de energia e dificultando o deslocamento e a acessibilidade

daqueles que não podem dispor do automóvel. 101

A relação entre pobreza e mobilidade – entendida esta como os

movimentos das pessoas dentro das cidades ou entre elas com determinadas

finalidades - foi objeto de um estudo aprofundado pelo Instituto de Desenvolvimento

e Informação em Transporte (Itrans), no ano de 2004, que apontou os problemas

relativos à mobilidade como agravantes da exclusão social e da pobreza.102

De acordo com a referida pesquisa, a mobilidade da população de

baixa renda é muito baixa, o que indica sérios problemas de acesso ao trabalho e às

oportunidades de emprego, às atividades de lazer e integração social e aos

equipamentos sociais básicos.

Ainda, com base nesse estudo do Itrans, os motivos dos baixos

índices de mobilidade, estão relacionados com as altas tarifas do transporte coletivo 100 De acordo com o Relatório Geral de Mobilidade Urbana 2008: “A maior parte das viagens foi

realizada a pé e por bicicleta (41,0%), seguidos dos meios de transporte individual motorizado (29,8%) e do transporte público (29,4%). Quando as viagens são classificadas por porte dos municípios, percebe-se que a participação do transporte público gira em torno de 20%, à exceção das cidades acima de 1 milhão de habitantes, nas quais ela atinge 36%. A participação dos autos é maior nas cidades entre 500 mil e 1 milhão de habitantes (31%), decrescendo com a diminuição da população. As viagens a pé são sempre dominantes, mas na maioria das vezes têm sua participação diminuída à medida que aumenta a população. Tanto as viagens de moto como as viagens de bicicleta aumentam significativamente nos municípios menores. Do ponto de vista da relação entre transporte não motorizado e transporte motorizado, vê-se que o primeiro é dominante (mais de 50% das viagens) nas cidades com menos de 100 mil habitantes”. Disponível em: <http://portal1.antp.net/site/simob/Lists/rltgrl08/rltgrlc.aspx?AspXPage=g_208EA817AB414706B02A11A82309B7D6:%2540%255Fx0069%255Fd1%3D1>. Acesso em 19 jul. 2010.

101 ANTP - Associação Nacional de Transportes Públicos. Transporte humano: cidades com qualidade de vida, p. 18-19.

102 Mobilidade e Pobreza (Relatório Final). Disponível em: <http://brasil.indymedia.org/media/2006/12//369479.pdf>. Acesso em: 20 jul. 2010.

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urbano e com graves deficiências na qualidade dos serviços de transporte,

sobretudo em termos de freqüência (longos tempos de espera) e de acesso às

linhas e terminais (pontos distantes). Os gastos com transporte pesam no orçamento

das famílias pobres, que acabam por substituir os meios motorizados por longas

caminhadas a pé ou de bicicleta, levando até mesmo à supressão das viagens.

Sob outro prisma, o crescimento sistemático do preço das tarifas de

ônibus urbanos acima da inflação, aliado às melhoras nas condições de renda da

população, evidenciadas a partir de 2003, também, estimula a substituição das

viagens de transporte coletivo por outros modos individuais.103

Não poderíamos deixar de mencionar, ainda, que a preferência da

população pelo automóvel incorporou-se à cultura da população urbana. Além de ser

considerado o meio mais confortável para o deslocamento, o carro transformou-se

em sinônimo de “status” e independência. E mais: possuir um automóvel passou a

ser desejo atrelado à própria idéia de liberdade, intrínseca ao ser humano.

Em contrapartida, a hegemonia dos automóveis como modo de

circulação revela um paradoxo: as pessoas adquirem um carro almejando liberdade

e conforto, mas vão parar em engarrafamentos e ser cada vez mais vítimas da

poluição e dos acidentes de trânsito. Devido às horas perdidas nos

congestionamentos, resta cada vez menos tempo para elas se dedicarem ao lazer, à

família e à educação.

Em face dos inúmeros problemas gerados pela intensificação do uso

do transporte motorizado - sobretudo dos automóveis - a qualidade de vida nas

cidades resta absolutamente comprometida. É evidente que esse modelo de

circulação urbana centrado nos automóveis não se sustenta.

A realidade paulistana ilustra bem essa crise de mobilidade. De

acordo com um estudo realizado pela IBM, São Paulo é o município que tem o sexto

trajeto mais penoso entre casa e trabalho, dentre vinte metrópoles mundiais

analisadas.104

103 CARVALHO, Carlos Henrique Ribeiro de; PEREIRA, Rafael Henrique Moraes. Efeitos da variação

da tarifa e da renda da população sobre a demanda de transporte público coletivo urbano no Brasil. Boletim Regional, Urbano e Ambiental, n. 3, p. 90. Disponível em: <http://agencia.ipea.gov.br/images/stories/PDFs/100406_boletimregio3.pdf>. Acesso em 20 jul. 2010.

104 Estudo da IBM traz radiografia do trânsito em 20 metrópoles mundiais. Disponível em: <http://www-03.ibm.com/press/br/pt/pressrelease/32027.wss>. Acesso em 19 jul. 2010.

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Ainda, com base em um levantamento realizado pelo Ibope, em

meados de 2009, o trânsito está entre as áreas mais problemáticas deste município

(38%), atrás somente de saúde (65%) e educação (41%). De cada 10 moradores, 07

avaliam a situação do trânsito como “ruim” ou “péssima”. E mais: 50% dos domicílios

possuem veículos de passeio, sendo que em 1/3 deles foram adquiridos no último

ano; caiu de 29% para 21% os que dizem não utilizar automóvel para se locomover

e o tempo médio de deslocamento do paulistano – que, em 2008 era de duas horas

e meia – passou para duas horas e quarenta e cinco minutos; 90% dos

entrevistados consideram a poluição um problema grave e que afeta a qualidade de

vida ou saúde, havendo a opinião de que os maiores causadores do problema são

os veículos, também, citados como os principais responsáveis pelo aquecimento

global.105

Vale lembrar, ainda, que os problemas relacionados ao aumento de

veículos em circulação não é exclusiva das grandes metrópoles. O município de

Taubaté, no interior de São Paulo, por exemplo, registrou um crescimento de 11%

da frota, apenas nos cinco primeiros meses de 2010. Esse índice - superior ao

registrado em todo o ano anterior - é incompatível com as ruas estreitas da região

central, que não comporta tanto movimento.106

2.3.2 A construção de um novo paradigma

Dentro da perspectiva da realização do direito a cidades

sustentáveis, as condições de circulação de pessoas e bens no espaço urbano são

pontos que, evidentemente, devem ser considerados no âmbito da política de

desenvolvimento urbano, em face dos prejuízos econômicos e sociais que acarretam

e, em última análise, por afetarem de maneira direta a qualidade de vida das

pessoas.

Como vimos anteriormente, as cidades brasileiras foram se

expandindo a partir da abertura de bairros de moradia cada vez mais distantes das

áreas centrais, onde se localiza a maior parte dos locais de trabalho e lazer. Esse

crescimento descontrolado exigiu recursos financeiros para a construção de ruas e

105 Pesquisa Ibope & Movimento Nossa São Paulo: Dia mundial sem carro 2009. Disponível em:

<http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/pesquisas>. Acesso em 19 jul. 2010. 106 Crescimento da frota de veículos de Taubaté já supera 2009. Vnews. Disponível em:

<http://www.vnews.com.br/noticia.php?id=75145>. Acesso em: 22 jul. 2010.

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avenidas, que logo se mostraram saturadas, devido ao aumento de veículos

motorizados particulares circulando nas vias e a oferta insuficiente de ônibus, trens e

metrôs.

Independentemente de outros fatores que contribuíram para essa

situação, é forçoso reconhecer que ela reflete decisões passadas nas políticas, que

dissociaram o planejamento do uso do solo, do trânsito e dos transportes.

Na tentativa de reverter esse quadro, o Estatuto da Cidade, trouxe

sua contribuição, ao estabelecer, no art. 41, §2°, a obrigatoriedade para cidades com

mais de 500.000 habitantes elaborarem de um plano de transporte urbano integrado,

o qual deve ser compatível com o plano diretor ou nele estar inserido. Também, no

art. 2°, VI, d, ao prescrever que a ordenação e o controle do uso do solo deve ser

realizada de forma a evitar a instalação de empreendimentos ou atividades

geradores de tráfego sem a previsão da infra-estrutura correspondente. E, no art. 37,

V, ao inserir a geração de tráfego e a demanda por transporte público como uma das

questões a serem analisadas pelo Estudo de Impacto de Vizinhança.

Nesse mesmo caminho, merece destaque a criação do Ministério

das Cidades, cujos debates contribuíram para o desenvolvimento do conceito de

mobilidade urbana e culminaram no Projeto de Lei 1.687/2007, dispondo sobre a

política de mobilidade urbana sustentável, como será melhor elucidado, a seguir.

2.3.3 A mobilidade urbana

Tida como um atributo das cidades, a mobilidade urbana está

relacionada com a facilidade de deslocamentos de pessoas e bens no espaço

urbano. Ela é o resultado da interação entre os deslocamentos de pessoas e bens

com a cidade. Por exemplo: a disponibilidade de meios de transporte adequados

contribui para o desenvolvimento de uma determinada área, assim como à medida

que esta se desenvolve, cada vez mais serão necessários meios e infra-estrutura

adequada para pessoas e bens se locomoverem. Planejar a mobilidade urbana,

portanto, requer mais que o planejamento dos meios de transporte e do trânsito,

mas o planejamento do uso e da ocupação do solo, de forma a garantir o acesso a

locais de emprego, escolas, hospitais, praças e áreas de lazer.107

107 VAZ, José Carlos Vaz; SANTORO, Paula. Cartilha Mobilidade urbana é desenvolvimento urbano!

Disponível em: <http://www.polis.org.br/obras/arquivo_194.pdf>. Acesso em 01 jul. 2009.

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Desta forma:

O novo conceito (mobilidade urbana) é em si uma novidade, um avanço na maneira tradicional de tratar, isoladamente, o trânsito, o planejamento e a regulação do transporte coletivo, a logística de distribuição das mercadorias, a construção da infra-estrutura viária, das calçadas e assim por diante. Em seu lugar, deve-se adotar uma visão sistêmica sobre toda a movimentação de bens e de pessoas, envolvendo todos os modos e todos os elementos que produzem as necessidades destes deslocamentos (grifo nosso).108

Perante o dever de se garantir o direito de todos circularem com

qualidade revela-se cada vez mais patente a necessidade da atividade urbanística

direcionada a reduzir o número de veículos motorizados que circulam nas cidades,

ampliando os modos coletivos e os meios não motorizados de transporte, diminuindo

as necessidades de deslocamentos – através da aproximação dos locais de moradia

dos locais de trabalho e de acesso aos equipamentos públicos – e criando soluções

para evitar o trânsito congestionado, como o programa de rodízio, por exemplo.

Sob a égide da Constituição de 1988 e do Estatuto da Cidade,

impossível dissociar a idéia de sustentabilidade do conceito de mobilidade urbana,

de maneira que:

A Mobilidade Urbana Sustentável pode ser definida como o resultado de um conjunto de políticas de transporte e circulação que visa proporcionar o acesso amplo e democrático ao espaço urbano, através da priorização dos modos não-motorizados e coletivos de transporte, de forma efetiva, que não gere segregações espaciais, socialmente inclusiva e ecologicamente sustentável. Ou seja: baseado nas pessoas e não nos veículos (grifo nosso).109

2.3.4 Projeto de Lei n° 1.687/2007

A partir do Ministério das Cidades, criado em 2003, vislumbrou-se

uma atuação mais ativa da União, que passou a reconhecer a questão urbana como

parte importante da política nacional de desenvolvimento em geral, incorporando,

assim, o que determina a nossa Lei Maior.

Instituído para exercer um trabalho de integração entre as políticas

que concorrem para o desenvolvimento urbano, o Ministério das Cidades reuniu as

108 BRASIL. Ministério das Cidades Brasil, Caderno de referência para elaboração de plano de

mobilidade urbana, p. 21. Disponível em: <http://www.cidades.gov.br/secretarias-nacionais/transporte-e-mobilidade/biblioteca/caderno-de-referencia-para-elaboracao-de-plano-de-mobilidade-urbana/>. Acesso em: 01 jul. 2009.

109 Política nacional de mobilidade urbana sustentável (Cadernos MCidades, 6), p. 14 Disponível em: < http://www.cidades.gov.br/ministerio-das-cidades/biblioteca/cadernos-do-ministerio-das-cidades/?searchterm=cadernos%20minist%C3%A9rio%20das%20cidades>. Acesso em: 01 jul. 2009.

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políticas de trânsito e transporte urbano, que antes se encontravam dispersas,

buscando articulá-las, também, com as políticas setoriais de habitação e

saneamento ambiental.

De uma série de debates promovidos, em que foi assegurada ampla

participação popular, resultou a elaboração do Projeto de Lei n° 1.687/2007, com o

objetivo de “[...] configurar um novo paradigma - o da mobilidade urbana para a

cidade sustentável.110

Dentro da sistemática constitucional que reconhece e preceitua a

exigibilidade de políticas nacionais para o desenvolvimento urbano, sob o princípio

da cooperação federativa, esse projeto visa estabelecer princípios e fornecer

instrumentos que possibilitem aos municípios executarem uma política de

mobilidade urbana que promova o desenvolvimento sustentável das cidades

brasileiras.

Nos termos do seu art. 1°:

Art. 1° A política de mobilidade urbana é instrumen to da política de desenvolvimento urbano de que tratam os arts. 21, inciso XX, e 182 da Constituição, e tem como objeto a interação dos deslocamentos de pessoas e bens com a cidade.

A política de mobilidade urbana apresenta-se fundamentada, de

acordo com os seguintes princípios:

Art. 5° [...]

I - acessibilidade universal;

II - desenvolvimento sustentável das cidades, nas dimensões socioeconômicas e ambientais;

III - eqüidade no acesso dos cidadãos ao transporte público coletivo;

IV - eficiência, eficácia e efetividade na prestação dos serviços de transporte urbano;

V - transparência e participação social no planejamento, controle e avaliação da política de mobilidade urbana;

VI - segurança nos deslocamentos das pessoas;

VII - justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do uso dos diferentes meios e serviços; e

VIII - eqüidade no uso do espaço público de circulação, vias e logradouros.

110 EM Interministerial nº 7/2006 - MCIDADES/MF, p. 19. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Projetos/EXPMOTIV/EMI/2006/7%20-%20MCID%20MF.htm>. Acesso em: 01 ago. 2010.

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Por sua vez, em seu art. 6°, estão previstas as dir etrizes que

orientam a referida política:

Art. 6° [...]

I - integração com as políticas de uso do solo e de desenvolvimento urbano;

II - prioridade dos meios não-motorizados sobre os motorizados, e dos serviços de transporte coletivo sobre o transporte individual motorizado;

III - complementaridade entre os meios de mobilidade urbana e os serviços de transporte urbano;

IV - mitigação dos custos ambientais, sociais e econômicos dos deslocamentos de pessoas e bens na cidade;

V - incentivo ao desenvolvimento científico-tecnológico e ao uso de energias renováveis e não-poluentes; e

VI - priorização de projetos de transporte coletivo estruturadores do território e indutores do desenvolvimento urbano integrado.

O Sistema de Mobilidade Urbana é definido como o conjunto

organizado e coordenado dos meios, serviços e infra-estruturas, que garante os

deslocamentos de pessoas e bens na cidade (art. 3°) . Contempla, portanto, a

interação equilibrada entre os serviços de transporte (coletivo e individual; público e

privado), os meios (motorizados e não-motorizados) e a infra-estrutura associada.111

É através do planejamento e da gestão do Sistema de Mobilidade

Urbana que a política de mobilidade urbana poderá alcançar seu objetivo, qual seja:

contribuir para o acesso universal à cidade (art. 2º).

No que diz respeito ao uso dos veículos particulares motorizados, o

Projeto busca fornecer as bases para sua racionalização, estabelecendo, no art. 20,

entre os instrumentos a ser utilizados pelos municípios:

Art. 20. [...]

I - restrição e controle de acesso e circulação, permanente ou temporário, de veículos motorizados em locais e horários predeterminados;

[...]

III - aplicação de taxas sobre meios e serviços e de tarifas sobre a utilização da infra-estrutura visando desestimular o uso de determinados meios e serviços de transporte urbano;

[...]

111 EM Interministerial nº 7/2006 - MCIDADES/MF, p. 18. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Projetos/EXPMOTIV/EMI/2006/7%20-%20MCID%20MF.htm>. Acesso em: 01 ago 2010.

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VI - controle do uso das vias urbanas destinadas a cargas e descargas, concedendo prioridade ou restrições;

[...]

Como instrumento de efetivação da política, remete ao art. 41, §2°,

da Lei n° 10.257/01, mas preferiu denominar “Plano de Mobilidade Urbana” aquilo

que o Estatuto designou “plano de transporte urbano”, o que reforça que o objeto da

política de mobilidade urbana é mais amplo que os serviços de transporte urbano.

Da proposta contida no Projeto de Lei da Mobilidade Urbana, infere-

se que ela é mais um passo importante no reconhecimento de que a realização do

direito a cidades sustentáveis passa pelo desafio de inverter a lógica de políticas que

foram centradas em favor dos veículos e não no bem-estar das pessoas.

Essa nova ordem requer medidas que potencializem o transporte

coletivo e os modos não motorizados de deslocamento, dissuadindo o uso dos

automóveis.

A par dessas medidas, também, limitar a circulação de veículos

motorizados – sejam automóveis, ônibus, motos ou caminhões – em determinadas

regiões da cidade, ou em certos dias e horários, tem se mostrado cada vez mais

necessário para melhorar as condições do trânsito.

Se, por um lado, o direito coletivo a cidades sustentáveis - ou

mesmo o interesse público ao pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade

- fundamenta a atividade do Poder Público, que cria essas limitações, os direitos dos

indivíduos circularem mediante tais veículos não podem ser preteridos.

Neste contexto, compreender como ambos os direitos coexistem, à

luz do direito positivo brasileiro, requer como premissa a análise do tratamento

conferido às limitações à liberdade e à propriedade.

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3. Limitações à liberdade e à propriedade

3.1 Considerações preliminares

Tendo em vista que ao Estado compete a realização do bem

comum112, é evidente que o exercício dos direitos individuais deve estar em

consonância com o bem-estar coletivo.

Leciona Celso Antônio Bandeira de Mello:

Através da Constituição e das leis os cidadãos recebem uma série de direitos. Cumpre, todavia, que o seu exercício seja compatível com o bem-estar social. Em suma, é necessário que o uso da liberdade e da propriedade esteja entrosado com a utilidade coletiva, de tal modo que não implique uma barreira capaz de obstar à realização dos objetivos públicos (grifado no original).113

Note-se, entretanto, que limitar o exercício do direito não se

confunde com limitar o próprio direito. A esse respeito, imprescindível lembrar a lição

de Celso Antônio Bandeira de Mello, mais uma vez, quando afirma:

Convém desde logo observar que não se deve confundir liberdade e propriedade com direito de liberdade e direito de propriedade. Estes últimos são as expressões daquelas, porém tal como admitidas em um dado sistema normativo. Por isso, rigorosamente falando, não há limitações administrativas ao direito de liberdade e ao direito de propriedade – é a brilhante observação de Alessi – uma vez que estas simplesmente integram o desenho do próprio perfil do direito. São elas, na verdade, a fisionomia normativa dele. Há, isto sim, limitações à liberdade e à propriedade (grifado no original).114

O autor enfatiza que “[...] descaberia falar em limitação a direitos,

pois os atos restritivos, legais ou administrativos, nada mais significam senão a

formulação jurídica do âmbito do Direito [...]”.115

112 Como explica Dalmo de Abreu Dallari: “[...] verifica-se que o Estado, como sociedade política, tem

um fim geral, constituindo-se em meio para que os indivíduos e as demais sociedades possam atingir seus respectivos fins particulares. Assim, pois, pode-se concluir que o fim do Estado é o bem comum, entendido este como o conceituou o Papa João XXIII, ou seja, o conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana. Mas se essa finalidade foi atribuída à sociedade humana no seu todo, não há diferença entre ela e o Estado? Na verdade, existe uma diferença fundamental, que qualifica a finalidade do Estado: este busca o bem comum de um certo povo, situado em determinado território. Assim, pois, o desenvolvimento integral da personalidade dos integrantes desse povo é que deve ser o seu objetivo, o que determina uma concepção particular de bem comum para cada Estado, em função das peculiaridades de cada povo” (Elementos de teoria geral do Estado, p. 107).

113 Curso de direito administrativo, p. 818. 114 Ibid, mesma página. 115 Op. cit., p. 820.

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As limitações, portanto, correspondem ao perfil do direito à liberdade

e à propriedade. Não importam em sacrifício a tais direitos.

Evidentemente, para que sejam legítimas, devem estar de acordo

com os princípios e regras constitucionais.

3.2 Poder de polícia: sentido amplo e sentido estri to

Em que pese aos inconvenientes do uso da expressão “poder de

polícia” para designar a atividade estatal que delineia o âmbito da liberdade e da

propriedade, prevalece, ainda, o referido termo na doutrina.116

Averba Celso Antônio Bandeira de Mello:

A atividade estatal de condicionar a liberdade e a propriedade ajustando-as aos interesses coletivos designa-se “poder de polícia“. A expressão, tomada neste sentido amplo, abrange tanto atos do Legislativo quanto do Executivo. Refere-se, pois, ao complexo de medidas do estado que delineia a esfera juridicamente tutelada da liberdade e da propriedade dos cidadãos [...].

A expressão “poder de polícia” pode ser tomada em sentido mais restrito, relacionando-se unicamente com as intervenções, quer gerais e abstratas, como os regulamentos, quer concretas e específicas (tais as autorizações, as licenças, as injunções) do Poder Executivo destinadas a alcançar o mesmo fim de prevenir e obstar ao desenvolvimento de atividades particulares contrastantes com os interesses sociais. Esta acepção mais limitada responde à noção de polícia administrativa (grifado no original). 117

116 Conforme menciona Celso Antônio Bandeira de Mello: “Trata-se de designativo manifestamente

infeliz. Engloba, sob um único nome, coisas radicalmente distintas, submetidas a regimes de inconciliável diversidade: leis e atos administrativos; isto é, disposições superiores e providências subalternas. Já isto seria, como é, fonte das mais lamentáveis e temíveis confusões, pois leva, algumas vezes, a reconhecer à Administração poderes que seriam inconcebíveis (no Estado de Direito), dando-lhe uma sobranceria que não possui, por ser imprópria de quem nada mais pode fazer senão atuar com base em lei que lhe confira os poderes tais ou quais e a serem exercidos nos termos e forma por ela estabelecidos.

Além disso, a expressão ‘poder de polícia’ traz consigo a evocação de uma época pretérita, a do ‘Estado de Polícia’, que precedeu ao Estado de Direito. Traz consigo a suposição de prerrogativas dantes existentes em prol do ‘príncipe’ e que se faz comunicar inadvertidamente ao Poder Executivo. Em suma: raciocina-se como se existisse uma ‘natural’ titularidade de poderes em prol da Administração e como se dela emanasse intrinsecamente, fruto de um abstrato ‘poder de polícia’.

[...] Atualmente, na maioria dos países europeus (de que a França é marcante exceção), em geral, o tema é tratado sob a titulação ‘limitações administrativas à liberdade e à propriedade’, e não mais sob o rótulo de ‘poder de polícia’ [...].

O certo é que, embora nos pareça uma terminologia indesejável, ela persiste largamente utilizada entre nós, não se podendo, então, simplesmente desconhecê-la [...]” (grifado no original). Op. cit., p. 821.

117 Op. cit., p. 822.

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Como é possível observar, o poder de polícia, em sentido amplo,

abarca tanto os atos do Legislativo como do Executivo e, em sentido estrito, refere-

se, apenas às intervenções do Executivo.

Cumpre ressaltar que, no Estado de Direito, toda atividade estatal

está submetida ao princípio da legalidade, cujo conteúdo evoluiu ao longo da

História.

Esse modelo de Estado sucedeu, cronologicamente, o denominado

Estado de Polícia e teve início na segunda etapa do Estado Moderno.118

Na primeira etapa, conhecida como Estado de Polícia, a forma de

Governo era a monarquia absoluta.119 Nesta época, não havia limites para a atuação

do monarca. A manutenção da “ordem social” era realizada a partir da leitura que o

Príncipe fizesse dessa expressão, ou seja, a “polícia” realizava-se ao talante das

decisões arbitrárias, como manifestação da força pela força e era sinônimo da

atividade estatal, incluindo tanto as atividades de administrar como as de legislar e

julgar.120

Como explica Luis Manuel Fonseca Pires – valendo-se da expressão

utilizada por Clóvis Beznos - somente “[...] no Estado de Direito, sob a primeira de

suas formas, o Estado Liberal de Direito, que o homem é valorizado como titular de

direitos naturais e a liberdade passa a ser entendida como ‘(...) algo imanente à

condição humana’ “.121

Prossegue o autor:

Recebe o nome de Estado de Direito porque ao Direito foi conferida a atribuição de assegurar as liberdades individuais. O fundamento deste novel modelo de Estado – de Direito – encontra-se no direito natural: direitos inerentes à natureza humana que por isto devem ser respeitados pelo poder institucionalizado, pois, segundo esta doutrina, tais direitos precedem a própria existência do estado e são a razão, o fundamento e a finalidade do ente estatal. O Direito, por esta perspectiva, deve promover a igualdade e prestigiar a liberdade individual, o que leva a estruturar mecanismos de contenção do poder do Estado, e desta forma as restrições e condicionamentos são pertinentes na medida em que apenas visam o bom convívio social [...] (grifado no original).122

118 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988, p. 17.

Note-se, com base nos ensinamentos da autora, que o Estado Moderno teve início na Europa, após o Renascimento.

119 Ibid., p. 17-18 120 PIRES, Luis Manuel Fonseca. Limitações administrativas à liberdade e à propriedade, p. 139. 121 Ibid., p. 141. 122 Ibid., p. 141-142.

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Note-se, ainda, que, neste modelo de Estado, a idéia da vontade do

rei como fonte do Direito foi substituída pela idéia da lei como resultante da vontade

geral. Em outras palavras, o poder só é legítimo quando resultante da lei.

Consagra-se, portanto, o princípio da legalidade sob a idéia de que o único poder legítimo é o que emana da vontade popular, e por tal se entende a manifestação da lei como expressão desta vontade que ocorre por representantes da sociedade os quais congregam sob um órgão estruturado e intitulado com Poder Legislativo. Por esta ordem de idéias, o Legislativo, dentro da divisão de poderes, contempla uma primazia em relação às demais funções públicas (Judiciário e Executivo). Estrutura-se o Estado de Direito, portanto, sob os princípios da legalidade, da igualdade e da separação de poderes (grifado no original).123

Nas palavras de Maria Sylvia Zanella di Pietro:

Na segunda etapa do Estado Moderno, instaurou-se o chamado Estado de Direito, estruturado sobe os princípios da legalidade, igualdade e separação de poderes, todo objetivando assegurar a proteção dos direitos individuais, não apenas nas relações entre particulares, mas também entre estes e o estado. É da mesma época o constitucionalismo, que vê na Constituição um instrumento de garantia da liberdade do homem, na medida em que impões limites às prerrogativas dos governantes (grifo nosso).124

Inseparável dos princípios da legalidade e da igualdade - acrescenta

a autora – é o controle judicial dos atos do poder público, ou de modo mais amplo, o

princípio da justicialidade.125

Como pontos fundamentais da concepção clássica do Estado de

Direito, menciona:

1. o reconhecimento da liberdade dos cidadãos, dotados de direitos fundamentais, universais, inalienáveis;

2. o princípio da legalidade, segundo o qual ninguém pode ser afetado em sua liberdade senão em virtude de lei e que traz, como conseqüência, a vinculação da Administração Pública à lei;

3. o princípio da justicialidade, que exige a existência de um órgão independente para decidir os litígios;

4. o princípio da igualdade de todos perante o direito, vedado qualquer tipo de discriminação;

5. a concepção substancial do direito que, fazendo-o decorrer da natureza do homem, imprime-lhe caráter de justiça (grifado no original).126

123 Ibid., p. 142. 124 Op. cit., p. 20. 125 Op. cit., p. 22. 126 Op. cit., p. 22-23.

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Quanto ao princípio da legalidade, no Estado Liberal de Direito,

embora vinculasse a Administração, esta podia fazer não só o que a lei

expressamente autorizasse, como, também, o que a lei não proibisse.

Se, conforme assinala Manuel Manuel Maria Diez, no Estado Liberal abriu-se caminho à tese conhecida pela denominação de “matérias reservadas à lei”, cuja virtude era reconhecer a antijuridicidade de qualquer forma de intervenção estatal sobre os direitos individuais de liberdade e de propriedade acaso não houvesse uma lei formal permitindo esta possibilidade, por outro lado, acrescentamos que é forçoso reconhecer que remanescia um campo livre à atuação da Administração Pública: era a chamada vinculação negativa, que na explanação de Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramon Fernandez, consistia em propugnar a idéia de que a Administração podia fazer não só o que a lei expressamente autorizava, mas ainda o que a lei não proibia, e era na seara desta autonomia que se entendia haver a “discricionariedade” do Poder Público. Não a discricionariedade no sentido contemporaneamente compreendido como a possibilidade de proceder a um juízo de conveniência e oportunidade dentro de parâmetros traçados pela lei, mas como um espaço livre de lei.

Esta “discricionariedade”concebida com tão franca larguesa e sem critérios, conduzia a Administração a agir isenta de qualquer controle jurisdicional toda vez que não houvesse disposição legal a respeito.127

O modelo liberal revelou-se insuficiente, ao longo do tempo,

conduzindo o Estado a rever sua postura de inércia e passar a intervir nas relações

econômicas e sociais, para ajudar os menos favorecidos, dando início ao chamado

Estado Social de Direito, em que a preocupação se desloca da liberdade para a

igualdade.128 Em outras palavras, passou a vigorar a concepção de que o Estado

deveria intervir nas relações econômicas e sociais de modo a garantir a igualdade.

Observa-se que, no Estado Social de Direito, houve o fortalecimento

do Poder Executivo, porque a Administração tornou-se prestadora de serviços.

Como conseqüência do grande volume de atribuições assumidas pelo Estado,

concentrado, sobretudo, nas mãos do Executivo, este passou a ter atribuição

normativa, valendo-se de Decretos-Leis, Leis Delegadas, etc, uma vez que sua

atuação não poderia depender do demorado procedimento legislativo. Além disso,

ao Poder Executivo foi outorgada grande parte da iniciativa das leis.129

Contemporânea à construção do Estado Social de Direito é a

doutrina de Hans Kelsen, cuja teoria pura do direito contribui para reduzir o campo

da discricionariedade, pois enquanto no Estado Liberal era possível à Administração

127 PIRES, Luis Manuel Fonseca. Op. cit., p. 144-145. 128 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988, p. 29. 129 Ibid., p. 31.

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fazer ou deixar de fazer o que a lei não previsse, no Estado Social, a Administração

só pode fazer o que a lei permite.

O princípio da legalidade passa, assim, a apresentar outro sentido,

substituindo-se a doutrina da vinculação negativa pela vinculação positiva da

Administração à lei. A discricionariedade é concebida, então, como um poder

jurídico, uma vez que a razão, os meios e os seus fins devem encontrar fundamento

de validade na lei.130

Se, por um lado, ao submeter toda a atividade da Administração

Pública à lei, o Estado Social de Direito (ou Estado Legal) representa avanço, sob o

aspecto da evolução sofrida pela própria idéia de lei, houve um retrocesso, pois à

medida que o Executivo passou a editar normas, a lei deixou de ser manifestação da

vontade geral do povo e instrumento de garantia dos direitos fundamentais.131

Mas, uma nova fase do Estado de Direito se desenvolve: a do

Estado Social e Democrático de Direito, onde o princípio da legalidade parece

reencontrar o seu prestígio.132

De acordo com as lições de Maria Sylvia Zanella di Pietro:

As conseqüências negativas produzidas pelo positivismo formalista (Estado Legal) e o insucesso do chamado Estado Social na conquista dos valores não apregoados pelo liberalismo acabaram por provocar reações no plano jurídico-constitucional, em que se procuraram introduzir novas concepções pretensamente mais aptas para produzir a justiça social. Acrescenta-se ao conteúdo do Estado Social de Direito um elemento novo, que é a participação popular no processo político, nas decisões de Governo, no controle da Administração Pública.

Além disso, protesta-se pelo retorno do Estado Legal ao Estado de Direito; quer-se novamente vincular a lei aos ideais de justiça; pretende-se submeter o Estado ao Direito, não à lei em sentido puramente formal. Daí hoje falar-se em Estado Democrático de Direito, que abrange os dois aspectos: o da participação popular (Estado Democrático) e o da justiça material (Estado de Direito) (grifado no original).133

A lei, no Estado de Direito, tem sentido formal, pelo fato de que,

ressalvadas algumas hipóteses, emana do Poder Legislativo, mas, também, sentido

material, à medida que deve realizar os valores consagrados pela Constituição, sob

130 PIRES, Luis Manuel Fonseca. Limitações administrativas à liberdade e à propriedade, p. 150. 131 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., p. 31. 132 PIRES, Luis Manuel Fonseca. Limitações administrativas à liberdade e à propriedade. Op. cit., p.

151-2. 133 Op. cit., p. 40.

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a forma de princípios fundamentais (enunciados no Título I do texto

constitucional).134

No mesmo sentido, as lições de José Afonso da Silva:

O princípio da legalidade é nota essencial do Estado de Direito. É, também, por conseguinte, um princípio basilar do Estado Democrático de Direito, [...] porquanto é da essência do seu conceito subordinar-se à Constituição e fundar-se na legalidade democrática. Sujeita-se ao império da lei, mas da lei que realize o princípio da igualdade e da justiça não pela sua generalidade, mas pela busca da igualização das condições dos socialmente desiguais. Toda a sua atividade fica sujeita à lei, entendida como expressão da vontade geral, que só se materializa num regime de divisão de poderes em que ela seja o ato formalmente criado pelos órgãos de representação popular, de acordo com o processo legislativo estabelecido na Constituição. É nesse sentido que se deve entender a assertiva de que o Estado, ou o Poder Público, ou os administradores não podem exigir qualquer ação, nem impor qualquer abstenção nem mandar tampouco proibir nada aos administrados, senão em virtude de lei.135

Em decorrência do princípio da legalidade, que, além de radicar na

própria estrutura do Estado de Direito, está previsto expressamente nos arts. 5°, II;

37, caput, e 84, IV, da Constituição Federal, a Administração só pode concretizar

aquilo que já estiver estabelecido na lei, ou seja, não pode impor nenhuma limitação

à liberdade e à propriedade se não houver lei que previamente a autorize.136

Celso Antônio Bandeira de Mello traz o seguinte ensinamento:

Michel Stassinopoulos, em fórmula sintética e feliz, esclarece que, além de não poder atuar contra legem ou praeter legem, a Administração só pode agir secundum legem. Aliás, no mesmo sentido é a observação de Alessi, ao averbar que a função administrativa se subordina à legislativa não apenas porque a lei pode estabelecer proibições e vedações à Administração, mas também porque esta só pode fazer aquilo que a lei antecipadamente autoriza. Afonso Rodrigues Queiró afirma que a Administração “é a longa manus do legislador” e que a “atividade administrativa é atividade de subsunção dos fatos da vida real às categorias legais” (grifado no original).137

Consoante a lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “[...] o poder de

polícia é a atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos

individuais em benefício do interesse público”.138 Segundo explica:

O poder de polícia reparte-se entre Legislativo e Executivo. Tomando-se como pressuposto o princípio da legalidade, que impede à Administração impor obrigações ou proibições senão em virtude de lei, é evidente que, quando se diz que o poder de polícia é a faculdade de limitar o exercício de

134 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988, p. 43. 135 Curso de direito constitucional positivo, p. 420. 136 Curso de direito administrativo, p. 102. 137 Ibid., p. 101. 138 Direito administrativo, p. 108.

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direitos individuais, está-se pressupondo que essa limitação seja prevista em lei.

O Poder Legislativo, no exercício do poder de polícia que incumbe ao Estado, cria, por lei, as chamadas limitações administrativas ao exercício das liberdades públicas.

A Administração Pública, no exercício da parcela que lhe é outorgada do mesmo poder, regulamenta as leis e controla a sua aplicação, preventivamente (por meio de ordens, notificações, licenças ou autorizações) ou repressivamente (mediante imposição de medidas coercitivas).139

No caso, por exemplo, do Programa de Redução ao Trânsito de

Veículos Automotores no Município de São Paulo - popularmente conhecido como

“rodízio de veículos” - criado pela Lei n° 12.490/9 7 e regulamentado pelo Decreto n°

37.085/97 - o Estado, através do exercício de seu poder de polícia, limitou a

circulação de veículos em determinadas vias públicas e em certos dias e horários,

com o objetivo de melhorar as condições do trânsito.

Note-se, portanto, que essa atividade estatal, por se tratar de

exercício do poder de polícia, não implica em violação ao direito de circulação das

pessoas, mas apenas limita o exercício desse direito individual em prol da realização

de um interesse público, como, inclusive, já pronunciou o Superior Tribunal de

Justiça. 140

Do mesmo modo, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em

vários julgados, afastou a inconstitucionalidade da referida lei municipal e respectivo

decreto que regulamentou os “rodízios”, entendendo não haver ofensa ao direito de

ir e vir das pessoas.141

139 Ibid, mesma página. 140 “PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. LEI MUNICIPAL.

PROGRAMA DE RESTRIÇÃO AO TRÂNSITO DE VEÍCULOS AUTOMOTORES (RODÍZIO MUNICIPAL). DECADÊNCIA. TERMO INICIAL DO PRAZO PREVISTO NO ART. 18, DA LEI Nº 1.533/51. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO. NECESSÁRIA DILAÇÃO PROBATÓRIA.

[...] 4. Nada obstante, e apenas obiter dictum, há de se considerar que, no caso sub examine, a

atividade engendrada pelo Estado atinente à implementação do programa de restrição ao trânsito de veículos automotores no Município de São Paulo, cognominado de rodízio", insere-se na conceituação de Poder de Polícia, que, consoante cediço, é a atividade engendrada pelo Estado com vistas a coibir ou limitar o exercício dos direitos individuais em prol do interesse público [...]” (RMS n° 19.820 – SP, rel. Min. Luiz Fux, j. 09.10.2 007).

141 Ap. 178.419-5/5-00, 6ª Câmara de Direito Público, TJSP, rel. Des. Afonso Faro, j. 01-12-2003; Ap. 89.195-5/8, Primeira Câmara de Direito Público de Férias, TJSP, rel. Des. Luis Ganzerla, j. 23.11.99, entre outras.

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Importante frisar que “não existe qualquer incompatibilidade entre os

direitos individuais e os limites opostos pelo poder de polícia do Estado [...]”.142

Nas palavras de Themístocles Brandão Cavalvanti, o poder de

polícia “constitui um meio de assegurar os direitos individuais porventura ameaçados

pelo exercício ilimitado, sem disciplina normativa dos direitos individuais por parte de

todos”. Trata-se de “limitação à liberdade individual mas tem por fim assegurar esta

própria liberdade e os direitos essenciais ao homem”.143

Por oportuno, merece destaque, também, o pensamento de Clóvis

Beznos, no sentido de que tanto a atividade legislativa que estabelece o perfil dos

direitos assegurados no sistema, quanto a atividade de polícia administrativa,

constituem elementos entrópicos negativos do sistema jurídico, ou seja, necessários

à própria sobrevivência do sistema.144

No que tange, à polícia administrativa, que se manifesta tanto por

atos normativos e de alcance geral – como os regulamentos – quanto por atos

concretos e específicos, seu fundamento repousa na supremacia geral da

Administração. Como explica Celso Antônio Bandeira de Mello:

O poder expressável através da atividade de polícia administrativa é o que resulta de sua qualidade de executora das leis administrativas. É a contraface de seu dever de dar execução a estas leis. Para cumpri-lo não pode se passar de exercer autoridade – nos termos destas mesmas leis – indistintamente sobre todos os cidadãos que estejam sujeitos ao império destas leis. Daí a “supremacia geral” que lhe cabe (grifado no original).145

É o que Luis Manuel Fonseca Pires considera como fundamento

jurídico das limitações. O fundamento político o autor imputa à necessidade de

conformar as normas que restringem a liberdade e a propriedade à realização do

interesse público.146

Lúcia Valle Figueiredo, por sua vez, menciona que “[...] o

fundamento jurídico-constitucional das limitações administrativas consiste na

necessidade de conformar a liberdade e a propriedade, nos termos dos vetores

142 Ibid, p. 105. 143 Tratado de direito administrativo. São Paulo-Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1956, t. 3, p. 6-7 apud

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo, p. 105. 144 Poder de polícia, p. 71. O autor, tomando por base os ensinamentos de Tércio Sampaio, Ferraz,

aduz o seguinte: “[...] todo sistema é dotado de entropia negativa. De fato, todo sistema vivo tende à sua desintegração. É essa a ordem natural das coisas. Daí a luta do sistema por sua sobrevivência, isto é, todo sistema vivo deve ser dotado de uma capacidade de fugir da morte, sob pena de sua extinção. Entropia negativa é, portanto, a luta pela sobrevivência do sistema” (p. 66).

145 Curso de direito administrativo, p. 823. 146 Op. cit., p. 177.

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constitucionais”.147 Segundo afirma, ”as limitações à liberdade e à propriedade

somente irão se justificar se e na medida em que os direitos coletivos e difusos –

também enumerados no texto constitucional, bem como o interesse público primário

– postulem”.148

3.1 Limitações e sistema jurídico constitucional

Notoriamente, a Constituição é a lei suprema do Estado. Infere-se da

teoria de Hans Kelsen, que ela constitui o fundamento de validade de toda ordem

jurídica. 149

De acordo com o conceito formulado por Konrad Hesse:

A Constituição é a ordem fundamental jurídica da coletividade. Ela determina os princípios diretivos, segundo os quais deve formar-se unidade política e tarefas estatais ser exercidas. Ela regula procedimentos de vencimento de conflitos no interior da coletividade. Ela ordena a organização e o procedimento da formação da unidade política e da atividade estatal. Ela cria bases e normaliza traços fundamentais da ordem total jurídica [...].150

Acresça-se, ainda, que todas as normas constitucionais são

vinculativas e obrigatórias, ou seja, “não há, numa Constituição, cláusulas a que se

deva atribuir meramente o valor moral de conselhos, avisos ou lições. Todas têm

força imperativa de regras, ditadas pela soberania nacional ou popular aos seus

órgãos.151 É o que se denomina força normativa da Constituição, cuja importância

merece destaque:

Uma das grandes mudanças de paradigma ocorridas ao longo do século XX foi a atribuição à norma constitucional do status de norma jurídica. Superou-se, assim, o modelo que vigorou na Europa até meados do século passado, no qual a Constituição era vista como um documento essencialmente político, um convite à atuação dos Poderes Públicos. A concretização de suas propostas ficava invariavelmente condicionada à liberdade de conformação do legislador ou à discricionariedade do administrador. Ao

147 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo, p. 307. 148 Op. cit., p. 305. 149 Segundo Kelsen: “[...] A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no

mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de norma jurídica. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por sua vez, é determinada por outra; e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental – pressuposta. A norma fundamental hipotética, nestes termos – é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora (Teoria pura do direito, p. 247).

150 Elementos de direito constitucional da república federal da Alemanha, p. 37. 151 Ruy Barbosa, Comentários à Constituição Federal brasileira, v. 2, p. 489 apud José Afonso da

Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 75.

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Judiciário não se reconhecia qualquer papel relevante na realização do conteúdo da Constituição

[...] Atualmente, passou a ser premissa do estudo da Constituição o reconhecimento de sua força normativa, do caráter vinculativo e obrigatório de suas disposições. Vale dizer: as normas constitucionais são dotadas de imperatividade, que é atributo de todas as normas jurídicas, e sua inobservância há de deflagrar os mecanismos próprios de coação, de cumprimento forçado.152

Luís Roberto Barroso sustenta, ainda, a idéia de constitucionalização

do Direito, no sentido de que o conteúdo material e axiológico das normas

constitucionais se irradia, com força normativa por todo o sistema jurídico. Segundo

afirma:

Os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional. Como intuitivo, a constitucionalização repercute sobre a atuação dos três Poderes, inclusive e notadamente nas suas relações com os particulares [...].153

Ressalta Agustin Gordillo que a Constituição é “[...] ordem jurídica

imperativa tanto para o Estado como para os habitantes” (grifado no original).154

Segundo explica:

[...] A Constituição oferece um certo equilíbrio das atribuições que outorga: por um lado reconhece algumas atribuições ao Estado porém, por outro lado, admite certos direitos inalteráveis dos indivíduos. Nem uma e nem outros podem ter supremacia: ambos devem harmonizar-se mutuamente dentro dos lindes da ordem jurídica constitucional [...].155

Por tais razões, o autor infere que os direitos individuais preexistem

às leis e aos atos administrativos, de maneira que: “As leis poderão regular os

direitos dos indivíduos fixando seus alcances e limites; porém, ainda que nenhuma

lei seja ditada, o direito individual existe não obstante por império da

Constituição”.156

Seguindo este raciocínio, o direito individual mantém sua vigência

ainda que eventual lei ou ato administrativo pretendam negá-lo, cumprindo aos

juízes declarar a inconstitucionalidade destes. Infere Gordillo:

152 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio

do Direito Constitucional no Brasil, p. 03-04. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7547>. Acesso em: 22 ago. 2010.

153 Ibid., p. 07. 154 Princípios gerais de direito público, p. 66. 155 Ibid,mesma página. 156 Ibid., mesma página.

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Por isso é possível afirmar que as normas constitucionais, e em particular aquelas que estabelecem os direitos dos indivíduos frente ao Estado, são imperativas e devem ser aplicadas tanto se não há lei que as reforcem, como existindo uma lei que pretenda negá-las; vale dizer, existem e devem ser aplicadas tanto com, contra ou sem a lei. São, pois, absolutamente independentes da vontade dos órgãos do estado precisamente porque elas integram uma ordem jurídica constitucional superior ao Estado.157

A Constituição de 1988, em seu art. 5°, II, estabel ece:

Art. 5° [...]

II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

Depreende-se, por conseguinte, que a Constituição outorgou ao

legislador ordinário competência para dizer aquilo que se pode ou não fazer, dentro

dos limites nela estabelecidos. É dizer: a Constituição admite que as leis possam

traçar o perfil dos direitos individuais, fixando os limites de tais direitos, mas

direciona a atividade legislativa ao alcance das finalidades de interesse público, que

são ditadas pelo próprio texto constitucional.

A propósito, vale lembrar:

O princípio de supremacia do interesse público sobre o privado não significa que interesses particulares juridicamente protegidos possam ser postergados com a mera invocação do que convém à maioria, à sociedade. A Constituição e as leis é que, num Estado democrático conformam a liberdade e a propriedade, do que resultam o direito de liberdade e o direito de propriedade. Segue-se que quando se fala em supremacia do interesse público sobre o interesse privado, quer-se dizer supremacia, prevalência nos termos em que estabelecido pelo ordenamento jurídico (grifado no original).158

No mesmo sentido, manifesta-se Clóvis Beznos:

É claro pois, que a necessidade de sobrevivência do sistema jurídico, impõe uma limitação a toda atuação humana, que lhe seja atentatória. Tal limitação, entretanto, não implica em sacrificar-se direito, pois os direitos albergados no sistema são tais como o sistema os concebe [...]” .159

Luis Manuel Fonseca Pires fala em “limites” às limitações, para

realçar que estas devem estar de acordo com os princípios e regras

constitucionais160.

Frise-se, portanto, que é na Constituição que devemos encontrar o

fundamento de validade de toda limitação à liberdade e à propriedade. 157 Ibid, p. 67-68. 158 Direito administrativo, urbanístico e ambiental: interfaces. In: BEZNOS, Clovis; CAMMAROSANO,

Márcio (coord.). Direito ambiental e urbanístico, p. 18. 159 Poder de polícia, p. 68. 160 Limitações administrativas à liberdade e à propriedade, p.248.

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4. Limitações à circulação de veículos

4.1 Limitações à liberdade de trânsito e tráfego

Quando se fala em limitar a circulação de veículos nas vias, como

atividade do Poder Público direcionada ao aprimoramento das condições de

circulação de pessoas e bens nas cidades, está se referindo àquela atividade estatal

de condicionar a liberdade e a propriedade individual em favor do interesse público.

Por se tratar de atividade afeta à otimização de uma das funções

sociais da cidade, constitui um importante instrumento de atuação urbanística a ser

utilizado no âmbito da política urbana.

Conforme se verifica, as limitações à circulação de veículos,

enquanto limitações de direito urbanístico, compartilham com o direito administrativo

das noções de limitação à liberdade e à propriedade, o que - na linha defendida pelo

pensamento de Márcio Cammarosano161 - denota, evidentemente, as interfaces

entre esses dois ramos do direito público. No mesmo sentido, José Afonso da Silva

manifesta que: “[...] o poder de polícia, relevante instituição do direito administrativo,

ainda é um meio fundamental para a atuação urbanística [...]”162.

As limitações à circulação de veículos sobre determinadas áreas das

cidades recaem sobre o uso das vias, que são bens de uso comum do povo. Como

dizem respeito ao uso, que está ligado à idéia de atuação humana, tais limitações

relacionam-se à liberdade das pessoas, mais especificamente: à liberdade de

trânsito e tráfego.163

Consoante as lições de Hely Lopes Meirelles:

[...] trânsito é o deslocamento de pessoas ou coisas (veículos ou animais) pelas vias de circulação; tráfego é o deslocamento de pessoas ou coisas pelas vias de circulação em missão de transporte. Assim, um caminhão vazio quando se desloca por uma rodovia está em trânsito; quando se desloca transportando mercadoria está em tráfego [...].164

161 CAMMAROSANO, Márcio. Direito administrativo, urbanístico e ambiental: interfaces. In: BEZNOS,

Clovis; CAMMAROSANO, Márcio (coord.). Direito ambiental e urbanístico, p. 16. 162 Direito urbanístico brasileiro, p. 48. 163 Note-se que, quando se fala em limitação à propriedade, na verdade, o que se limita é o uso do

bem objeto de propriedade e que esse uso diz respeito à ação humana, é possível afirmar que, em rigor, toda limitação é à liberdade.

164 Direito municipal brasileiro, p. 453.

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Em acatamento ao princípio da legalidade, somente a lei pode limitar

a atuação humana. Significa, portanto, que deve haver lei específica para quaisquer

limitações à liberdade de trânsito e tráfego que o Poder Público pretenda impor.

4.2 Competência legislativa sobre trânsito e tráfeg o

O trânsito e o tráfego, conforme ensina Hely Lopes Meirelles,

admitem a tríplice regulamentação – federal, estadual e municipal:

De um modo geral, pode-se dizer que cabe à União legislar sobe os assuntos nacionais de trânsito e transporte, ao Estado-membro compete regular e prover os aspectos regionais e a circulação intermunicipal em seu território, e ao Município cabe a ordenação do trânsito urbano, que é de seu interesse local (CF, art. 30, I e V). O art. 24 do CTB elenca as várias competências municipais nos incisos I-XXI [...]

O tráfego sujeita-se aos mesmos princípios enunciados para o trânsito no que concerne à competência para sua regulamentação: cabe à União legislar sobre o tráfego interestadual; cabe ao Estado-membro prover sobre o tráfego regional; e compete ao Município dispor sobre o tráfego local, especialmente o urbano.

E assim é na generalidade das nações civilizadas, que reconhecem às comunidades locais o direito-dever de zelar pala circulação e pelo transporte em seu território, preservando seu sistema viário – urbano e rural – contra o congestionamento do trânsito e os excessos do tráfego [...] (grifado no original).165

Depreende-se, portanto, que a competência do Município para

disciplinar o trânsito e o tráfego local deflui do art. 30, I, da Constituição Federal, e

abarca os assuntos que se subsumem no conceito de interesse local, nos aspectos

relativos ao uso das vias públicas.166

Conforme dispõe art. 1°, § 1°, da Lei n ° 9.503/97, que instituiu o

Código de Trânsito Brasileiro:

165 Op. cit., p. 454-456. 166 A esse respeito, já se posicionou o Supremo Tribunal Federal: “CONSTITUCIONAL. MUNICÍPIO:

COMPETÊNCIA: IMPOSIÇÃO DE MULTAS: VEÍCULOS ESTACIONADOS SOBRE CALÇADAS, MEIOS- FIOS, PASSEIOS, CANTEIROS E ÁREAS AJARDINADAS. Lei nº 10.328/87, do Município de São Paulo, SP. I. - Competência do Município para proibir o estacionamento de veículos sobre calçadas, meios-fios, passeios, canteiros e áreas ajardinadas, impondo multas aos infratores. Lei nº 10.328/87, do Município de São Paulo, SP. Exercício de competência própria" CF/67, art. 15, II, CF/88, art. 30, I "que reflete exercício do poder de polícia do Município. II. - Agravo não provido.” (RE-AgR 191.363, Min. Carlos Velloso, j. 11.12.1998).

“CABE AO MUNICÍPIO REGULAR A UTILIZAÇÃO DAS VIAS PUBLICAS DENTRO DE SUA ÁREA TERRITORIAL DE VEICULOS, INCLUSIVE DE LINHAS INTER-ESTADUAIS E INTERNACIONAIS, DESDE QUE, EM RELAÇÃO A ESTAS, NÃO PROCEDA COM ABUSO DE PODER, DE MODO A IMPOSSIBILITAR OU EMBARACAR ATIVIDADES REGULADAS PELOS PODERES ESTADUAIS E FEDERAIS.” (RMS 9.190, Min. Victor Nunes, j. 22.1.1962).

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Art.1° [...]

§ 1° Considera-se trânsito a utilização das vias po r pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga e descarga.

Em seu art. 24, II, assim, estabelece:

Art. 24. Compete aos órgãos e entidades executivos de trânsito dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição:

[...]

II - planejar, projetar, regulamentar e operar o trânsito de veículos, de pedestres e de animais, e promover o desenvolvimento da circulação e da segurança de ciclistas;

Veja-se, portanto, que o trânsito da cidade é matéria municipal e

nela se inclui a competência do Município para disciplinar a circulação de veículos e

suas restrições em seu território.

Como afirma Hely Lopes Meirelles:

[...] compete ao Município regulamentar o uso das vias sob sua jurisdição; conceder, autorizar ou permitir exploração de serviço de transporte coletivo para as linhas municipais; regulamentar o serviço de automóvel de aluguel (táxi); determinar o uso de taxímetro nos automóveis de aluguel; limitar o número de automóveis de aluguel. Essa enumeração é meramente exemplificativa, pois pode ser acrescida de outros assuntos não enumerados mas que se enquadrem no interesse local do Município, que é o atributo constitucional indicativo de sua competência. Na competência do Município insere-se, portanto, a fixação de mão e contramão nas vias urbanas, limites de velocidade e veículos admitidos em determinadas áreas e horários, locais de estacionamento, estações rodoviárias, e tudo o mais que afetar a vida da cidade (grifo nosso).167

Impende verificar, ainda, se o trânsito e o tráfego constituem

matérias de iniciativa privativa do Poder Executivo. Alguns esclarecimentos, no

entanto, fazem-se necessários.

A respeito do que se entende por iniciativa legislativa, João

Jampaulo Júnior afirma que “[...] é um poder ou faculdade que se atribui a alguém ou

a algum órgão, para apresentar projetos de lei ao Poder Legislativo. Esse poder ou

faculdade concedida caracteriza o seu destinatário como o titular da iniciativa”

(grifado no original).168

Com base nas explicações trazidas pelo autor, a iniciativa que

compete a mais de uma pessoa ou órgão denomina-se concorrente ou geral. Essa

167 Ibid., p. 456. 168 O processo legislativo municipal, p. 79.

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modalidade é a regra e se aplica tanto ao processo legislativo estadual como o

municipal.169

No caso dos Municípios, a iniciativa concorrente:

[...] é a que compete a qualquer Vereador, à Mesa ou Comissão da Câmara, ao Prefeito, ou, ainda, à população, na forma e nos casos previstos na Lei Orgânica de cada Município, obedecendo-se ao que dispõe o art. 61 da Constituição Federal. São ainda de iniciativa concorrente todas as demais que a Constituição Federal e a Lei Orgânica Municipal não reservaram exclusivamente ao Executivo, excetuando-se os projetos de resolução (efeitos internos) e de decretos legislativos (efeitos externos), que são de iniciativa privativa das Câmaras de Vereadores, não sujeitas a sanção e veto do Executivo. São exemplos de iniciativa concorrente: lei que delimita o perímetro urbano; projetos de lei que alterem o Plano Diretor; projetos de lei sobre matéria tributária (grifado no original).170

Por seu turno, a iniciativa privativa (exclusiva ou reservada) é a

exceção:

[...] Tal é conferida a apenas um órgão, agente ou pessoa, ou seja, é a que cabe exclusivamente a um titular, seja o Prefeito, seja a Câmara. As matérias de iniciativa privativa do Chefe do Executivo são aquelas que a Constituição da República reserva exclusivamente ao Presidente da República, e que por simetria e exclusão aplica-se ao Prefeito Municipal. Encontram-se elencadas nas alienas do inciso II do § 1° do art. 61 da CF. 171

Sustenta Hely Lopes Meirelles:

[...] As leis orgânicas municipais devem reproduzir, dentre as matérias previstas nos arts. 61, § 1°, e 165 da CF, as que s e inserem no âmbito da competência municipal. São, pois, de iniciativa exclusiva do prefeito, como chefe do Executivo local, os projetos de leis que disponham sobre a criação, estruturação e atribuição das secretarias, órgãos e entes da Administração Pública Municipal; matéria de organização administrativa e planejamento de execução de obras e serviços públicos; criação de cargos, funções ou empregos públicos na Administração direta, autárquica e fundacional do Município; o regime jurídico e previdenciário dos servidores públicos municipais, fixação e aumento de sua remuneração; o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias, o orçamento anual e os créditos suplementares e especiais. Os demais projetos competem concorrentemente ao prefeito e à Câmara, na forma regimental.172

Cumpre ressaltar que as regras que dispõem sobre a iniciativa

privativa não se presumem e tampouco comportam interpretação extensiva, vale

dizer, o rol estabelecido no art. 61, §1°, da Const ituição Federal, é taxativo, pois, do

contrário, implicaria violação do princípio da independência e harmonia entre os

poderes.

169 O processo legislativo, p. 93. 170 JAMPAULO JÚNIOR, João. O processo legislativo municipal, p. 79-80. 171 Ibid, p. 81. 172 Op. cit., p. 620.

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Observando-se o referido artigo constitucional, que trata da iniciativa

privativa das leis pelo Presidente da República, infere-se que, em nenhum dos casos

está o trânsito e o tráfego. Logo, ante os ensinamentos trazidos a lume, por simetria

e exclusão, a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre tais matérias não é

privativa do Prefeito.

Sendo assim, na hipótese da Câmara Municipal identificar a

necessidade de limitar a circulação de veículos em determinadas regiões da cidade,

ante a inércia do Poder executivo, entende-se que nada lhe impede de apresentar

um projeto de lei dispondo a esse respeito.

Entretanto, a questão não é pacífica e, na jurisprudência, verifica-se

tendência em sentido contrário, ou seja, julgados atribuindo competência privativa ao

chefe do Poder Executivo do Município para matérias que versem sobre o trânsito e

o tráfego local.173

Tendo em vista os princípios do planejamento e da gestão

democrática das cidades, o ideal, certamente, é que a lei que imponha a medida

restritiva esteja baseada em um plano. Neste sentido, pronuncia-se Daniela Libório:

[...] mesmo que a Constituição Federal não tenha deixado clara a vinculação da elaboração de leis urbanas específicas com a existência de um Plano Diretor, o desenvolvimento urbano adequado e harmônico, compatível com as necessidades dos habitantes locais, só será plenamente atingido se houver um diagnóstico da realidade, aliado à participação popular, que deverá definir as prioridades na cidade. E o resultado da compatibilização de todos os interesses deverá estar transcrito em um plano urbanístico.

173 “ADIN - LEI MUNICIPAL QUE PROÍBE A CIRCULAÇÃO DE VEÍCULOS DE CARGA EM

CORREDORES DE TRÂNSITO E A CARGA DE BENS E MERCADORIA NO HIPERCENTRO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE - INICIATIVA DE VEREADOR E PROMULGAÇÃO PELO PRESIDENTE DA CÂMARA DE VEREADORES, APÓS DERRUBAR O VETO DO EXECUTIVO - INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI. Resulta inconstitucional Lei que versa sobre matéria pertinente à área administrativa e já regulada pela Lei Federal nº 9.503/97 - CTB - art. 63 e 24, II, se tal Lei resultou de projeto de iniciativa de Vereador e da promulgação pelo Presidente da Câmara Municipal, após rejeitar veto do PREFEITO MUNICIPAL, caracterizando inversão de competência. Inconstitucionalidade que se declara, suspendendo-lhe a eficácia” (ADIn n° 1.0000.00.313096-0/000/Belo Horizonte, TJMG, Rel. Des. Orlando Carvalho, j. 26.11.03).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL N. 1.703/2007, PROVENIENTE DO MUNICÍPIO DE NOVO HAMBURGO/RS, QUE AUTORIZA O FECHAMENTO DE RUAS RESIDENCIAIS SEM SAÍDA, IMPOSSIBILITANDO O TRÁFEGO DE VEÍCULOS ESTRANHOS AOS MORADORES. VÍCIO DE INICIATIVA DO LEGISLATIVO LOCAL. Lei de iniciativa da Câmara de Vereadores não poderia dispor sobre o fechamento de ruas residenciais sem saída, inviabilizando o tráfego de veículos estranhos aos moradores. Embora não se esteja diante da hipótese de incidência da regra contida no inc. XI, do art. 22 da Constituição da República, sendo matéria de interesse local, é evidente a competência exclusiva do Poder Executivo para estabelecer diretrizes sobre o crescimento e dispersão do Município. Vício de iniciativa constatado. Afronta aos arts. 8º, 10 e 82, VII, da Constituição Estadual. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME”. (ADIN nº 70026580266/Novo Hamburgo, Tribunal Pleno, TJRS, Rel. Des. José Aquino Flores de Camargo, j. 17.08.09)

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Elaborar leis de cunho urbanístico, estando estas dissociadas deste processo, não contribuirá, em nada, para o equilíbrio do desenvolvimento urbano.174

O pensamento da autora ilustra de maneira satisfatória a importância

dos planos para a consecução dos objetivos da atividade urbanística. O plano de

mobilidade urbana, tal como previsto no projeto de lei n° 1.687/2007, certamente,

contribui para uma atuação urbanística mais eficaz.

Todavia, é preciso ressalvar que as limitações a circulação de

veículos não estão condicionadas à existência prévia de um plano. Vale dizer, ainda

que não haja plano anterior, inexiste norma impeditiva da elaboração de eventual lei

que restrinja a circulação de veículos, que pode ser de iniciativa tanto do Prefeito,

como da Câmara de Vereadores, ou, ainda, dos cidadãos, na forma e nos casos

previstos na Lei Orgânica de cada Município, obedecendo-se ao que dispõe o art. 61

da Lei Maior.

4.3 O que pode ser objeto de ato infralegal

A Constituição, haja vista o princípio da legalidade, veda a edição de

atos infralegais que criem obrigações ou estabeleçam proibições aos administrados.

Com efeito, o princípio da legalidade permeia todas as limitações e

figura no texto constitucional como uma garantia dos administrados, ao condicionar

a disciplina das limitações à lei.

Tomando por base o a redação do seu art. 5°, II, Ce lso Antônio

Bandeira de Mello adverte que o “[...] o preceptivo não diz ‘decreto’, ‘regulamento’,

‘portaria’, ‘resolução’ ou quejandos. Exige lei para que o Poder Público possa impor

obrigações aos administrados” (grifado no original).175

O autor enfatiza a supremacia da lei sobre o regulamento, o que

implica que este ato não pode contrariar a lei e a esta se subordina. Além disso,

repisando a assertiva de O. A. Bandeira de Mello, adverte que só a lei pode inovar

originariamente na ordem jurídica.176

174 Elementos de direito urbanístico, p. 66. 175 Curso de direito administrativo, p. 344-345. 176 Ibid., p. 344.

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Explica, ainda, que, no Brasil – nos termos do art. 84, I, da CF -a

função regulamentar restringe-se à produção de regulamentos para “fiel execução”

da lei os quais a doutrina estrangeira denomina “executivos”.177

E mais: conjugando o art. 37, que submete a Administração ao

princípio da legalidade com os indigitados artigos 5°, II e 84, I, da Lei Maior, infere

que “[...] a Administração, para agir, depende integralmente de uma anterior previsão

legal que lhe faculte ou imponha o dever de atuar”. E, por isso, o regulamento, além

de ato inferior, subordinado, é dependente de lei.178

Tendo em vista que o decreto é o meio através do qual são

expedidos os regulamentos, depreende-se que ele tem como objetivo minudenciar

as disposições da lei de modo a facilitar sua execução. No entanto, de forma

alguma, pode aumentar ou reduzir o conteúdo da lei, e tampouco inovar matéria que

não foi por ela prevista.

Assim, aos decretos regulamentares, que são de competência de

chefes de Executivo, é defeso criar limitações diversas das que foram estabelecidas

previamente na lei regulamentada.

Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello:

Há inovação proibida sempre que seja impossível afirmar-se que aquele específico direito, dever, obrigação, limitação ou restrição já estavam estatuídos e identificados na lei regulamentada. Ou, reversamente: há inovação proibida quando se possa afirmar que aquele específico direito, dever, obrigação, limitação ou restrição incidentes sobre alguém não estavam já estatuídos e identificados na lei regulamentada. A identificação não necessita ser absoluta, mas deve ser suficiente para que se reconheçam as condições básicas de sua existência em vista de seus pressupostos, estabelecidos na lei e nas finalidades que ela protege.

É, pois, à lei, e não ao regulamento, que compete indicar as condições de aquisição ou restrição de direito. Ao regulamento só pode assistir, à vista das condições preestabelecidas, a especificação delas. E esta especificação tem que se conter no interior do conteúdo significativo das palavras legais enunciadoras do teor do direito ou restrição e do teor das condições a serem preenchidas. Deveras, disciplinar certa matéria não é conferir a outrem o poder discipliná-la. Fora isto possível, e a segurança de que “ninguém poderá ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” deixaria de se constituir em proteção constitucional. Em suma: não mais haveria a garantia constitucional aludida, pois os ditames ali insculpidos teriam sua valia condicionada às decisões infraconstitucionais, isto é, às que resultassem do querer do legislador ordinário

É dizer: se à lei fosse dado dispor que o Executivo disciplinaria, por regulamento, tal ou qual liberdade, o ditame assecuratório de que “ninguém

177 Ibid., p. 345. 178 Ibid., p. 346-347.

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será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” perderia o caráter de garantia constitucional, pois o administrado seria obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa ora em virtude de regulamento, ora de lei, ao líbito do Legislativo, isto é, conforme o legislador ordinário entendesse de decidir. É óbvio, entretanto, que, em tal caso, este último estaria se sobrepondo ao constituinte e subvertendo a hierarquia entre Constituição e lei, evento juridicamente inadminssível em regime de Constituição rígida (grifado no original).179

Acresça-se, ainda, que não só o decreto regulamentar, mas

qualquer ato através do qual a Administração exerce seu poder normativo – sejam

resoluções, portarias, deliberações, instruções, editadas por autoridades que não o

Chefe do Executivo – não pode contrariar a lei, nem criar direitos, impor obrigações,

proibições, penalidades que nela não estejam previstos, sob pena de ofensa ao

princípio da legalidade.180

Ratifica Celso Antônio Bandeira de Mello:

[...] toda a dependência e subordinação do regulamento à lei, bem como os limites em que se há de conter, manifestam-se revigoradamente no caso de instruções, portarias, regimentos ou normas quejandas. Desatendê-los implica inconstitucionalidade. A regra geral contida no art. 68 da Carta Magna, da qual é procedente inferir vedação a delegação ostensiva ou disfarçada de poderes legislativos ao Executivo, incide e com maior evidência quando a delegação se faz em prol de entidades ou órgãos administrativos sediados em posição jurídica inferior à do Presidente e que se vão manifestar, portanto, mediante atos de qualificação menor.181

Nada obstante, não raras vezes, o Executivo baixa normas

infralegais criando limitações, em profundo descaso com esse princípio basilar do

Estado Democrático de Direito.

Cite-se, por exemplo, a Portaria n° 58/09 – SMT.GAB , de

27/07/2009, que limitou a área de circulação de ônibus fretados na região central do

município de São Paulo.

Para dar cumprimento ao art. 47, da Lei n° 14.933/0 9,182 o Poder

Executivo, por meio da Secretaria Municipal de Transportes, criou a referida portaria,

que organizou o trânsito dos ônibus fretados em duas áreas distintas (Zona de

Máxima Restrição de Fretamento – ZMRF - e Área Livre) e passou a exigir, dentre

179 Op. cit., p. 355-356. 180 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito administrativo, p. 85. 181 Op. cit., p. 370. 182 Lei que institui a Política de Mudança do Clima no Município de São Paulo. Reza o seu art. 47: “O

Poder Público Municipal estabelecerá, por lei específica, no prazo de 60 dias, as regras gerais de circulação, parada e estacionamento de ônibus fretados, bem como a definição de bolsões de estacionamento para este modal.

Parágrafo único. O Poder Executivo implementará as medidas de sua competência até a edição da lei específica de que trata o ‘caput’ deste artigo”.

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outras regras, "Autorização Especial de Trânsito" para as operadoras que realizam o

transporte rotineiro de passageiros circularem na denominada ZMRF, no período

das 05h00 às 21h00, de 2ª a 6ª feira.

Como condições para obterem essa autorização as operadoras,

além de cumprirem as exigências quanto à regularidade dos veículos, são obrigadas

a apresentar um “Plano de Operação”, que deve prever o local de embarque e

desembarque dos passageiros, conter a relação completa dos usuários do serviço

de fretamento, bem como indicar a origem, destino e itinerário da viagem, para

estudo do impacto viário.

Evidentemente, à luz do princípio da legalidade, tais regras não

poderiam ter sido veiculadas mediante portaria - ato administrativo que não pode

inovar o ordenamento jurídico - e, por conseguinte, padece de vício formal.

Vários sindicatos das empresas de transporte de passageiros por

fretamento e para turismo se uniram e propuseram ação cautelar contra a aplicação

das disposições contidas na portaria e chegaram a obter uma liminar que lhes

assegurava o direito de circulação na cidade, sem as restrições e sanções por ela

impostas.

Dentre os argumentos que embasaram o deferimento da medida,

destaca-se:

É certo que o fretamento está sujeito à regulamentação e prévia autorização do Poder Público, que tem o dever de impedir abusos e evitar prejuízos à população, porém, as medidas necessárias que podem ser implementadas pelo Executivo não se confundem com a criação de obrigações ou restrições à liberdade e atividades dos indivíduos, sob pena de ofensa ao princípio da legalidade.183

No entanto, a liminar foi suspensa por decisão do Tribunal de Justiça

de São Paulo e, posteriormente, extinto o processo, sob o argumento de que a

portaria foi convertida na Lei n° 14.971, de 25 de agosto de 2009 e, por isso, houve

perda do objeto da ação.184

183 Cf. notícia disponível em: <http://www.conjur.com.br/2009-jul-31/juiza-libera-onibus-fretados-

circular-todas-areas-sp>. Acesso em: 31 jul. 2009. 184 O processo encontra-se em grau de recurso. Informações disponíveis em

<http://esaj.tj.sp.gov.br/cpo/pg/show.do?processo.foro=53&processo.codigo=1H0000ZZX0000&cdForo=53&cdComarca=-1>. Acesso em: 20 ago. 2010 (Processo n° 053.09.026295-9 – Medida Cautelar - 9ª Vara da Fazenda Pública, juíza Simone Gomes Rodrigues Casoretti). Com relação à Lei n° 14.971/09, cumpre anotar que ela é objeto de ação direta de inconstitucionalidade n° 990.10.103736-0 - TJSP, ainda em curso.

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É evidente que os problemas de trânsito desafiam as Administrações

locais e é comum medidas restritivas suscitarem conflitos. No caso da Portaria n°

58/09, as primeiras semanas, após sua entrada em vigor, foram marcadas por uma

série de manifestações.

Segundo a Prefeitura, a portaria foi criada com o objetivo organizar

a circulação dos veículos fretados, para oferecer maior conforto aos passageiros e

maior fluidez ao trânsito.185 Todavia, cumpre ressaltar que por mais louvável que

tenha sido a iniciativa governamental, quando editou a referida portaria, não o fez de

acordo com o que reza o ordenamento jurídico.

Com efeito, “o Brasil, Estado Democrático de Direito, sob a forma

federativa, com governo republicano e sistema presidencial, tem na supremacia da

Constituição e no princípio da legalidade suas balizas impostergáveis”.186

Retomando-se as lições de Celso Antônio Bandeira de Mello:

[...] é livre de qualquer dúvida ou entredúvida que, entre nós, por força dos arts. 5º, II, 84, IV e 37 da Constituição, só por lei se regula liberdade e propriedade; só por lei se impõem obrigações de fazer e não fazer. Vale dizer: restrição alguma à liberdade ou à propriedade pode ser imposta se não estiver previamente delineada, configurada e estabelecida em alguma lei, e só para cumprir dispositivos legais é que o Executivo pode expedir decretos e regulamentos (grifado no original).187

A ordem jurídica em vigor, sem sombra de dúvidas, não tolera a

imposição de qualquer medida restritiva à circulação de veículos que não esteja

previamente delineada em lei.

4.4 A razoabilidade e a proporcionalidade das limit ações

A origem e o desenvolvimento do princípio da razoabilidade estão

ligados à garantia do devido processo legal, que remonta à cláusula law of the land,

inscrita na Carta Magna de 1215.

O devido processo legal, por sua vez, relaciona-se à idéia de

controle do poder estatal, no sentido de que o Estado não pode impor restrições aos

bens individuais de maneira arbitrária.

185 Prefeitura anuncia portaria que organiza circulação de ônibus fretados. Disponível em:

<http://www.prefeitura.sp.gov.br/portal/a_cidade/noticias/index.php?p=30504>. 186 Direito administrativo, urbanístico e ambiental: interfaces. In: BEZNOS, Clovis; CAMMAROSANO,

Márcio (coord.). Direito ambiental e urbanístico, p. 12. 187 Curso de direito administrativo, p. 349.

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Na sua origem, foi concebido como uma garantia meramente

processual, ou seja, assegurava tão apenas a observância de ritos procedimentais

previstos em lei.

Em momento posterior, passou a estar relacionado à idéia de justiça,

tornando-se importante instrumento de defesa dos direitos individuais, possibilitando

o controle do arbítrio do legislativo e da discricionariedade da Administração.

O princípio da razoabilidade decorre, justamente, dessa dimensão

substantiva do devido processo legal, que, nas palavras de Luís Roberto Barroso:

“[...] enseja a verificação da compatibilidade entre o meio empregado pelo legislador

e os fins visados, bem como a aferição da legitimidade dos fins [...]”.188

Mais adiante, observa o autor:

A atuação do Estado na produção de normas jurídicas normalmente far-se-á diante de certas circunstâncias concretas; será destinada à realização de determinados fins, a serem atingidos pelo emprego de determinados meios. Desse modo, são fatores invariavelmente presentes em toda ação relevante para a criação do direito: os motivos (circunstâncias de fato), os fins e os meios. Alem disso, há de se tomar em conta, também, os valores fundamentais da organização estatal, explícitos ou implícitos, como a ordem, a segurança, a paz, a solidariedade; em última análise, a justiça. A razoabilidade é, precisamente, a adequação de sentido que deve haver entre esses elementos.189

Essa razoabilidade - explica Barroso - deve ser aferida,

primeiramente, dentro da lei, buscando identificar uma relação racional e

proporcional entre os motivos, meios e fins da norma. É o que ele denomina

razoabilidade interna e ilustra com a seguinte situaação:

[...] se, diante de um surto inflacionário (motivo), o Poder Público congela o preço dos medicamentos vitais para certos doentes crônicos (meio) para assegurar que pessoas de baixa renda tenham acesso a eles (fim), há uma relação racional e razoável entre os elementos em questão, e a norma, em princípio, afigura-se válida. Ao revés, se, diante do crescimento estatístico da AIDS (motivo), o Poder Público proíbe o consumo de bebidas alcoólicas durante o carnaval (meio), para impedir a contaminação de cidadãos (fim), a medida será irrazoável. Isso porque estará rompida a conexão entre os motivos, os meios e os fins, já que inexiste qualquer relação direta entre o consumo de álcool e a contaminação.190

Percebe-se que esta última hipótese – relacionada a uma limitação

administrativa - é facilmente apreendida como desarrazoada pelo próprio senso

comum. Por isso é correta a afirmação no sentido de que: “Não há grande novidade

188 Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional

transformadora, p. 220. 189 Ibid., p. 226. 190 Ibid., mesma página

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no conceito jurídico de ‘razoabilidade’, que corresponde ao sentido usual desse

vocábulo. A novidade está na crescente utilização que se vem fazendo desse

princípio” (grifado no original).191

Como explica Maria Paula Dallari Bucci:

O princípio da razoabilidade, na origem, mais que um princípio jurídico, é uma diretriz de senso comum ou, mais exatamente, de bom senso, aplicada ao Direito. Esse “bom senso jurídico”s e faz necessário à medida que as exigências formais que decorrem do princípio da legalidade tendem a reforçar mais o texto das normas, a palavra da lei, que o seu espírito. A razoabilidade formulada como princípio jurídico, ou como diretriz de interpretação das leis e atos da Administração, é uma orientação que se contrapõe ao formalismo vazio, à mera observância dos aspectos exteriores da lei, formalismo esse que descaracteriza o sentido finalístico do Direito (grifado no original).192

Retomando-se as lições de Barroso, ainda que se constate aquela

razoabilidade interna, é preciso verificar se a norma está adequada aos meios e fins

previstos no texto constitucional, ou seja, impende que se analise a denominada

razoabilidade externa, como por exemplo:

[...] diante da impossibilidade de conter a degradação acelerada da qualidade da vida urbana (motivo), a autoridade municipal impedisse o ingresso nos limites da cidade de qualquer não-residente que não fosse capaz de provar estar apenas em trânsito (meio), como o que reduziria significativamente a demanda por habitações e equipamentos urbanos (fim). Norma desse teor poderia até ser internamente razoável, mas não passaria no teste de razoabilidade diante da Constituição, por contrariar princípios como o federativo, o da igualdade entre brasileiros etc.193

Além do requisito da adequação, Barroso menciona que - por

decorrência dos estudos desenvolvidos pelos autores alemães – a necessidade (ou

exigibilidade) e a proporcionalidade em sentido estrito, também, qualificam o

princípio a que mais comumente se referem como princípio da proporcionalidade.

Segundo explica: a adequação exige que as medidas adotadas pelo Poder Público

se mostrem aptas para alcançar os objetivos pretendidos; a necessidade impõe

verificar se inexiste meio menos gravoso para o atingimento desses fins; a

proporcionalidade em sentido estrito corresponde à ponderação entre o ônus

imposto e o benefício trazido.194

191 FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo administrativo, p. 79. 192 O princípio da razoabilidade em apoio à legalidade, Cadernos de direito constitucional e ciência

política 16/173 apud FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo administrativo, p. 79. 193 Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional

transformadora, p. 226-227. 194 Ibid., p. 229.

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Observa-se uma forte tendência na doutrina, bem como na

jurisprudência em tratar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade como

se fossem sinônimos. Para Barroso, em linhas gerais, o princípio da

proporcionalidade mantém uma relação de fungibilidade com o da razoabilidade.195

No mesmo sentido, manifesta-se José Roberto Pimenta Oliveira, ao tratar dos

princípios no direito administrativo brasileiro:

É possível verificar que, do mesmo modo em que o “direito administrativo” existente no âmbito da common law desenvolveu historicamente a noção jurídica do razoável, enquanto standad, na sindicabilidade judicial da discrição administrativa nos quadros do rule of law, os sistemas da família jurídica romano-germânica (civil law) encontraram na noção do proporcional equivalente instrumental axiológico para promover a contenção da arbitrariedade no exercício dos poderes administrativos no seio do Estado de Direito (grifado no original).196

Tirante as divergências relativas à questão terminológica, é

importante firmar que mesmo para aqueles que diferenciam a razoabilidade da

proporcionalidade, ambos os princípios são tidos como forma de controle dos atos

estatais, como critério limitador das restrições a direitos.

Ao tratar do princípio da razoabilidade no direito administrativo,

Celso Antônio Bandeira de Mello descreve o seguinte:

Enuncia-se com este princípio que a Administração, ao atuar no exercício de discrição, terá de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosa das finalidades que presidiram a outorga da competência exercida. Vale dizer: pretende-se colocar em claro que não serão apenas inconvenientes, mas também ilegítimas – e, portanto, jurisdicionalmente invalidáveis -, as condutas desarrazoadas, bizarras, incoerentes ou praticadas com desconsideração às situações e circunstâncias que seriam atendidas por quem tivesse atributos normais de prudência, sensatez e disposição de acatamento às finalidades da lei atributiva da discrição manejada.197

Com relação à proporcionalidade, expõe:

195 Ibid., p. 224. 196 Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo brasileiro, p. 192.

Note-se que diverso é o pensamento da administrativista Lúcia Valle Figueiredo, segundo o qual o princípio da proporcionalidade é entendido como um plus ao princípio da razoabilidade. Para a autora, “[...] é o sentido estrito o diferenciador da razoabilidade. Na verdade, os princípios se imbricam de tal sorte que se poderia confundi-los. Todavia, não nos parece impossível fazer a diferença” (Curso de direito administrativo, p. 51). Por sua vez, Maria Sylvia Zanella di Pietro entende a proporcionalidade como um dos aspectos contidos na razoabilidade (Direito administrativo, p. 76). Nessa mesma linha, Celso Antônio Bandeira de Mello menciona que “[...] o princípio da proporcionalidade não é senão uma faceta do princípio da razoabilidade [...]” (Curso de Direito administrativo, p. 111).

196 Curso de direito administrativo, p. 111. 197 Ibid, p. 108

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Este princípio enuncia a idéia – singela, aliás, conquanto freqüentemente desconsiderada – de que as competências administrativas só podem ser validamente exercidas na extensão e intensidade correspondentes ao que seja realmente demandado para cumprimento da finalidade de interesse público a que estão atreladas. Segue-se que os atos cujos conteúdos ultrapassem o necessário para alcançar o objetivo que justifica o uso da competência ficam maculados de ilegitimidade, porquanto desbordam do âmbito da competência; ou seja, superam os limites que naquele caso lhes corresponderiam.

Sobremodo quando a Administração restringe situação jurídica dos administrados além do que caberia, por imprimir às medidas tomadas uma intensidade ou extensão supérfluas, prescindendas, ressalta a ilegalidade de sua conduta. É que ninguém deve estar obrigado a suportar constrições em sua liberdade ou propriedade que não sejam indispensáveis à satisfação do interesse público (grifado no original).198

Reportando-se à razoabilidade como sinônimo de proporcionalidade,

Barroso explica que tal princípio era, tradicionalmente, utilizado como mecanismo de

controle judicial dos atos administrativos e funcionava como medida da legitimidade

do exercício do poder de polícia. Posteriormente, passou a alcançar, também, os

atos do Poder Legislativo e tem ganhado cada vez mais relevo na doutrina e na

jurisprudência, inclusive e, especialmente, na do Supremo Tribunal Federal.199

No que concerne à atuação do Judiciário, haja vista que o juiz não

pode substituir o administrador e o legislador, Barroso apresenta essa ressalva:

Por ser uma competência excepcional, que se exerce em domínio delicado, deve o Judiciário agir com prudência e parcimônia. É preciso ter em linha de conta que, em um Estado democrático, a definição das políticas públicas deve recair sobre órgãos que têm o batismo da representação popular, o que não é o caso dos juízes e tribunais. Mas, quando se trate de preservar a vontade do povo, isto é, do constituinte originário, contra os excessos de maiorias legislativas eventuais, não deve o juiz hesitar. O controle de constitucionalidade se exerce, precisamente, para assegurar a preservação dos valores permanentes sobre os ímpetos circunstanciais [...].200

Paulo Bonavides, referindo-se à proporcionalidade, apesar de

admitir que tal princípio ocasiona uma controvertida ascendência do juiz sobre o

legislador, sustenta que ela não fere a separação de poderes, e arremata, dizendo:

Com efeito, a limitação aos poderes do legislador não vulnera o princípio da separação, de Montesquieu, porque o raio de autonomia, a faculdade política decisória e a liberdade do legislador para eleger, conformar e determinar fins e meios se mantém de certo modo plenamente resguardada.

198 Ibid, p. 110. 199 Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional

transformadora, p.229-238. 200 Op. cit., p. 232.

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Mas tudo isso, é óbvio, sob a regência inviolável dos valores e princípios estabelecidos pela Constituição.201

Na visão do autor, o princípio da proporcionalidade fundamenta um

novo Estado de Direito, no qual vigora a supremacia da Constituição. Em suas

palavras:

As limitações de que hoje padece o legislador, até mesmo o legislador constituinte de segundo grau – titular do poder de reforma constitucional – configuram, conforme já assinalamos, a grande realidade da supremacia da Constituição sobre a lei, a saber, a preponderância sólida do princípio de constitucionalidade hegemônico e moderno, sobre o velho princípio de legalidade ora em declínio nos termos de sua versão clássica, de fundo e inspiração liberal.

Mas essa supremacia, introduzida de maneira definitiva pelo novo Estado de Direito, somente cobra sentido e explicação, uma vez vinculada à liberdade, à contenção dos poderes do Estado e à guarda eficaz dos direitos fundamentais. Aqui o princípio da proporcionalidade ocupa seu lugar primordial. Não é sem fundamento, pois, que ele foi consagrado por princípio ou máxima constitucional.

Fica assim erigido em barreira ao arbítrio, em freio à liberdade de que, à primeira vista, se poderia supor investido o titular da função legislativa para estabelecer e concretizar fins políticos. Em rigor, não podem tais fins contrariar valores e princípios constitucionais; um destes princípios vem a ser precisamente o da proporcionalidade, princípio não escrito, cuja observância independe de explicitação em texto constitucional, porquanto pertence à natureza e essência mesma do Estado de Direito (grifo nosso).202

Diante da falta de previsão expressa ao princípio no texto

constitucional, Barroso aponta que se abrem duas linhas de construção

constitucional: uma mais inspirada na doutrina alemã, que vislumbrará o princípio da

razoabilidade como inerente ao Estado de direito, integrando de modo implícito o

sistema; e outra, influenciada pela doutrina norte-americana, pretenderá extrair o

princípio da cláusula substantiva do devido processo legal. O importante é que

ambas as linhas conduzem ao mesmo resultado, qual seja: “[...] o princípio da

razoabilidade integra o direito constitucional brasileiro, devendo o teste de

razoabilidade ser aplicado pelo intérprete da Constituição em qualquer caso

submetido ao seu conhecimento [...]”.203

Ao final, sintetiza:

O princípio da razoabilidade é um mecanismo de controle da discricionariedade legislativa e administrativa. Ele permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou atos administrativos quando: (a) não haja

201 Curso de direito constitucional, p. 399. 202 Ibid., p. 400. 203 Op. cit., p. 237.

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relação de adequação entre o fim visado e o meio empregado; (b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo para chegar ao mesmo resultado com menor ônus a um direito individual; (c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha.

Um certo positivismo arraigado na formação jurídica nacional retardou o ingresso do princípio da razoabilidade na jurisprudência brasileira, por falta de previsão expressa na Constituição. Inequivocamente, contudo, ele é uma decorrência natural do Estado democrático de direito e do princípio do devido processo legal. O princípio, naturalmente, não liberta o juiz dos limites e possibilidades oferecidos pelo ordenamento. Não é de voluntarismo que se trata. A razoabilidade, no entanto, oferece uma alternativa de atuação construtiva do Judiciário para a produção do melhor resultado, ainda quando não seja o único possível ou mesmo aquele que mais obviamente resultaria da aplicação acrítica da lei.204

Das explicações trazidas, infere-se, evidentemente, que não basta

que as limitações à circulação de veículos sejam estabelecidas por lei. É imperioso

que a norma não veicule qualquer conteúdo irrazoável, ou seja, o Estado, ao legislar

sobre matéria que repercuta direta ou indiretamente no exercício da liberdade

individual, está necessariamente sujeito ao princípio constitucional da razoabilidade.

O mesmo vale para a Administração quando implementa medidas restritivas.

No município, o que o Poder Público está autorizado a fazer - seja

no exercício de função legislativa ou administrativa - é atuar em favor da

comunidade, observando sempre as peculiaridades locais.

Para que o interesse local não se confunda com o interesse da

autoridade local, os administrados, evidentemente, contam a seu favor com o

princípio da razoabilidade, que serve como parâmetro de valoração dos atos do

Poder Público, que podem ser declarados inconstitucionais pelo Judiciário, caso

emanados em descompasso com tal princípio.

Cite-se, para ilustrar, o Decreto nº 29.231, de 24 de abril de 2008,

editado pelo prefeito do Rio de Janeiro, que proíbe a circulação de veículos de carga

e a operação de carga e descarga nos períodos das 6h às 10h e das 17h às 20h, de

segunda à sexta-feira, em dias úteis, na orla marítima e nas vias que especifica.

A razoabilidade e a proporcionalidade da matéria veiculada pelo

Decreto foram submetidas à análise do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do

recurso em mandado de segurança nº 29.990 – RJ, cuja ementa vale a pena ser

reproduzida:

204 Op. cit., p. 245.

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ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DECRETO MUNICIPAL N. 29.231/2008. RESTRIÇAO DE HORÁRIO PARA CIRCULAÇAO DE VEÍCULOS DE CARGA E SUAS OPERAÇÕES NO ÂMBITO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. COMPETÊNCIA DO MUNICÍPIO PARA LEGISLAR SOBRE A CIRCULAÇAO DE VEÍCULOS NA SUA CIRCUNSCRIÇAO. PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE ATENDIDOS. PRECEDENTES DO STF.

1. À luz do art. 22, XI, combinado com o art. 30, I e II, ambos da Carta Magna de 1988, o município ostenta competência constitucional para legislar acerca das questões de interesse local.

2. Em âmbito infraconstitucional, o Código Nacional de Trânsito ruma para o mesmo norte e atribui competência ao município para legislar a respeito do trânsito de veículos no seu âmbito territorial, consoante se infere do seu art. 24, I e XVI.

3. Logo, não se vislumbra que o Decreto n. 29.231, de 24 de abril de 2008, padeça de qualquer ilegalidade, porquanto tão somente restringiu o horário de circulação de veículos de carga e suas operações nos períodos compreendidos entre 06 horas às 10 horas e das 17 horas às 20 horas, no interior da área delimitada pela orla marítima da cidade do Rio de Janeiro.

4. Também não revela atentatório ao princípio da razoabilidade decreto municipal que restringe o horário de circulação de veículos de carga e suas operações em determinada área da cidade, na qual o trânsito é sabidamente caótico.

5. As informações prestadas pela autoridade coatora dão conta que DE a restrição do tráfego de veículos de carga reduziu em mais de 50% (cinquenta por cento) o número de horas de congestionamento em "nível F" (nível crítico de classificação de fluidez em via pública), bem como diminuiu de 18% (dezoito por cento) para 11% (onze por cento) o número de veículos que enfrentam congestionamento.

6. Os 10 (dez) dias concedidos pelo Decreto n. 29.231/2008 para adaptação às alterações não se mostra exíguo, máxime porque as alterações foram apenas de cunho logístico e o aludido prazo mostra-se razoável para esse mister.

7. Recurso ordinário não provido (grifo nosso).205

Convém observar que o referido Decreto dispõe em seu Preâmbulo:

“CONSIDERANDO que o aumento recente do número de veículos nas vias da

Cidade, vem provocando congestionamento impondo à população gastos adicionais

consideráveis no tempo de deslocamentos;”,

Logo, ao reduzir o número de horas em congestionamento bem

como o número de veículos que enfrentam congestionamento, a medida estatal

mostrou-se apta para atingir o fim pretendido.

205 Primeira Turma, Rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 08.09.2009.

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Pode-se agregar, ainda, que a limitação à circulação dos veículos de

carga, na ausência de uma medida alternativa igualmente eficaz, revelou-se

necessária para a melhoria do trânsito nas vias municipais. E, sob a perspectiva da

proporcionalidade em sentido estrito, as vantagens obtidas com a limitação - que

acabam por beneficiar a população como um todo - supera as desvantagens

sofridas por algumas indústrias e fornecedores.

Oportuno, também, transcrever um excerto da decisão proferida pelo

Ministro Gilmar Mendes - no bojo da Suspensão de Segurança n° 3.629/RJ, ajuizada

pelo Município do Rio de Janeiro - que julgou válido o Decreto n° 29.231/08, bem

como o Decreto n° 29250/08:

Os estudos técnicos realizados pelos órgãos municipais indicam que o trânsito de veículos de carga e a realização de operações de carga e descarga nos horários de pico contribuem de forma decisiva para a maior lentidão do fluxo de veículos, a dificuldade de locomoção da população, a ocorrência de colisões de grandes proporções e de congestionamentos ocasionados por defeitos nos veículos (fls. 597-611).

A existência de atos administrativos anteriores, que restringiram a circulação de veículos em outras vias da cidade, evidenciam a previsibilidade de tais medidas (fls. 563-579).

As matérias veiculadas na imprensa local demonstram a efetividade das restrições impostas pela Prefeitura para a melhoria do trânsito na cidade (fls. 581-595).

O documento juntado pelo Município informa que a adoção de medidas restritivas à circulação de veículos representa uma economia de R$ 104.000.000,00, valor correspondente à redução da emissão de gases poluentes, à diminuição do custo das operações dos veículos em função da redução do tempo de viagem e a melhor utilização do tempo dos cidadãos com a diminuição das horas gastas no trânsito (fl. 609).

Note-se, portanto, que os estudos técnicos configuraram um

instrumental importante na verificação entre o meio empregado (restrição à

circulação de veículos de carga e da operação de carga e descarga nos horários de

pico) e o fim visado pela medida estatal (melhoria do trânsito na cidade).206

No que diz respeito à limitação da circulação dos veículos fretados,

no centro do município de São Paulo, uma das polêmicas levantadas é a de que a

medida ocasionaria o aumento dos veículos particulares nas vias e, por conseguinte,

206 Sem embargo da plausibilidade da decisão sob o aspecto da razoabilidade da restrição, vale

registrar que o Decreto 29.250/08, ao estabelecer que vans, kombis ou caminhonetes, que venham a ser utilizadas em substituição aos veículos de carga como forma de burlar o Decreto nº 29.231, serão apreendidas e levadas a depósitos, inovou matéria que não foi prevista em lei e, portanto, entende-se que padece de inconstitucionalidade.

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não atenderia o propósito de beneficiar o trânsito, que foi o principal argumento para

justificar a restrição. Dentro desta perspectiva, a medida não seria razoável.

Em contrapartida, segundo avaliação realizada pela Companhia de

Engenharia de Tráfego (CET), após um ano da regulamentação da Zona Máxima de

Restrição aos Fretados (ZMRF), a fluidez no trânsito em São Paulo teve um

aumento de 11%. De acordo com a CET, a nova regulamentação da circulação dos

fretados, aliada a outras ações em parceria com o Governo do Estado, como a

ampliação da Marginal do Tietê e do Rodoanel, trouxe mais fluidez para o trânsito

nos principais corredores da cidade.207

O objetivo, aqui, não é oferecer solução para este impasse, mas

apenas reforçar a idéia de que os estudos técnicos contribuirão, muitas vezes, para

a aferição da razoabilidade das medidas adotadas pelo Poder Público.

Não se poderia deixar de lembrar, ainda, a importância de não se

lesionar um princípio, registrada por Celso Antônio Bandeira de Mello, em lição

lapidar:

Princípio [...] é mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo

Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.208

Também, o pensamento de Paulo Bonavides, ao afirmar:

A lesão ao princípio é indubitavelmente a mais grave das inconstitucionalidades, porque sem princípio não há ordem constitucional e sem ordem constitucional não há garantia para as liberdades, cujo exercício somente se faz possível fora do reino do arbítrio e dos poderes absolutos.209

207 Trânsito em SP melhorou 11% após regulamentação de fretados, diz CET. Estadão. Disponível

em:<http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,transito-em-sp-melhorou-11-apos- regulamentacao-de-fretados-diz-cet,587135,0.htm>. Acesso em: 26 ago. 2010.

208 Curso de direito administrativo, p. 958-959. 209 Curso de direito constitucional, p. 435.

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Por fim, no que diz respeito à importância da proporcionalidade

como princípio limitador dos excessos do Estado e defensor dos direitos e

liberdades constitucionais, destaca o autor:

Admitir a interpretação de que o legislador pode a seu livre alvedrio legislar sem limites, seria pôr abaixo todo o edifício jurídico e ignorar, por inteiro, a eficácia e majestade dos princípios constitucionais. A Constituição estaria despedaçada pelo arbítrio do legislador.210

210 Ibid., p. 436.

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Conclusão

O modo como se desenvolveu o processo de urbanização, no Brasil,

marcado pela ocupação desenfreada do solo urbano, desencadeou diversos

problemas no campo da qualidade de vida da população.

Ante a necessidade de intervenção do Poder Público para ordenar o

espaço físico da cidade, surgiu o urbanismo, como técnica e ciência. Com o passar

do tempo, seu conceito evoluiu para um sentido social, correlacionado à finalidade

de realizar a qualidade de vida humana.

Firmou-se a idéia de urbanismo como um conjunto de medidas

estatais destinadas a organizar todas as áreas – sejam urbanas ou rurais - em que

são desenvolvidas uma das funções sociais da cidade, consistentes em habitação,

trabalho, lazer e circulação.

Uma vez que para impor tais medidas são necessárias normas

jurídicas, o Poder Público desencadeou produção normativa neste sentido.

Desenvolveu-se, portanto, o direito urbanístico como um conjunto de normas

destinadas a realizar os fins do urbanismo, ou seja, como o conjunto de princípios e

regras que visam disciplinar os espaços urbanizados e a urbanizar, de modo a

possibilitar o equilíbrio entre as funções sociais da cidade e, mediatamente,

contribuir para a melhoria da qualidade de vida.

Pode-se afirmar que o âmbito de aplicação das normas que compõe

o direito urbanístico corresponde à cidade desde que por esta se entenda qualquer

núcleo urbano – sede ou não do governo municipal – como os núcleos até então

rurais à medida que passem a ser utilizados com atividades abrangidas pelo

conceito funções sociais da cidade.

Como essência do objeto deste ramo do direito público, figura a

atividade urbanística, que abrange desde a formulação da política urbana, passando

pelo planejamento, pela elaboração de leis, até atividades de execução, mediante a

utilização de instrumentos urbanísticos.

A atividade estatal destinada a criar condições para a circulação nas

cidades subsume-se ao gênero “atividade urbanística”, à medida que se destina a

otimizar uma daquelas funções sociais da cidade.

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A Constituição de 1988, ao vincular a política urbana ao pleno

desenvolvimento das funções sociais da cidade e ao bem-estar de seus habitantes,

reflete, no direito positivo, o esforço doutrinário em delimitar o campo de atuação do

direito urbanístico.

Por sua vez, o Estatuto da Cidade, ao estabelecer a garantia do

direito a cidades sustentáveis como uma das diretrizes da política urbana,

representa mais um avanço na consecução dos objetivos assinalados

constitucionalmente. Além do interesse público traduzido no pleno desenvolvimento

das funções sociais da cidade, há o direito a cidades sustentáveis, que deve ser

buscado e realizado pelo Poder Público, através da política urbana.

Direcionar essa política para a consecução de cidades sustentáveis

remete, indubitavelmente, à necessidade de melhorar as condições de circulação,

reduzindo-se a quantidade de automóveis nas ruas, priorizando-se os meios

coletivos e não motorizados de transportes, desafogando o trânsito e os níveis de

poluição que acarreta.

A proposta trazida no Projeto de Lei n° 1.687/2007 vem neste

sentido. Nos termos do seu art. 1° § 1°, a política de mobilidade urbana é

instrumento da política urbana.

No que toca ao desafio de se melhorar o trânsito e o tráfego nas

cidades, medidas restritivas da circulação de veículos motorizados tornam-se

inevitáveis, apesar de encontrarem resistência por parte dos administrados.

Não obstante a finalidade urbanística das limitações à circulação de

veículos, seu regime jurídico se vale das noções de limitações à liberdade e

propriedade.

Portanto, sob a égide do Estado Democrático de Direito, devem ser

estabelecidas por lei, uma vez que estão relacionadas à liberdade de trânsito e

tráfego. Em outras palavras, a ordem jurídica em vigor não tolera a imposição de

qualquer medida restritiva que não esteja previamente delineada em lei.

Os Municípios são competentes para legislar sobre o trânsito e o

tráfego local. Essa matéria não é de iniciativa legislativa privativa do Executivo, visto

que a Constituição Federal não a excepcionou.

Sem prescindir da importância do planejamento democrático para a

consecução dos objetivos da política urbana, as limitações à circulação de veículos

não estão necessariamente condicionadas à existência de um plano anterior.

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Significa, portanto, que identificada a necessidade de se restringir a circulação de

veículos sobre determinadas áreas, em favor da mobilidade urbana ou, por assim

dizer, para que haja o melhor funcionamento das cidades, o Poder Público deve

valer-se de tal medida, ainda que ela não esteja vinculada a um plano.

Imperioso, no entanto, que a limitação esteja prevista em lei,

emanada de acordo com as regras de competência, e que esta lei – assim como o

ato administrativo que a regulamente - atenda aos princípios constitucionais da

razoabilidade e/ou proporcionalidade, que figuram como critérios limitadores do

arbítrio estatal.

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