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Linhas Gerais sobre a História da Universidade Conimbricense. Das
suas origens à Reforma Universitária Pombalina de 1772.
4ª Parte
Colégios de Coimbra. O Colégio Real ou Colégio das Artes.
Outro aspecto de grande alcance, enquadrado na reforma dos estudos, foi a criação
de Colégios na cidade de Coimbra, dos quais já foram referidos o de Santo Agostinho e o de
São João Baptista onde funcionaram alguns estudos, e os de São Miguel e Todos-os-Santos
destinados a alojamento dos estudantes e, todos eles, pertencentes a Santa Cruz.
Quando da instalação da Universidade em Coimbra, fundou-se e desenvolveu-se uma
rede de Colégios, nomeadamente na Rua da Sofia, em proporções que excediam
largamente o plano do “Infante das Sete Partidas”, D. Pedro, Duque de Coimbra. Com efeito,
foi na Rua da Sofia que a maioria dos colégios monásticos, fundados no reinado de D. João
III, teve os seus edifícios, de que ainda restam partes, bem como algumas das suas igrejas
anexas, ainda hoje abertas ao culto.
Na generalidade, estas instituições colegiais tinham por objectivo transmitir aos que
as frequentavam uma assistência intelectual e moral,
fazendo deles personalidades de elite, pela elevada
cultura e austeridade dos costumes, correspondendo
deste modo aos «desígnios ideológicos e políticos da
época da reforma católica. No seu conjunto, pela
concentração do ensino eclesiástico e congreganista em
redor da Universidade ou dentro dela própria, faziam de
Coimbra o cérebro do país e contribuíam para a
formação de uma mentalidade uniforme no escol
dirigente da nação, nos seus diversos escalões». Os
Colégios garantiam, geralmente, nos seus claustros,
embora com grau variável, o ensino dos preparatórios
bem como das ciências maiores, isto é, desde o ensino pré-universitário aos estudos pós
graduação de preparação para o doutoramento.
Carlos Jaca 2
A grande maioria destas instituições foi integrada na Universidade, perfazendo um
elevado número de escolas distintas construídas a partir de 1539, porém, a incorporação era
efectuada por diploma régio e considerada legalizada depois de considerada e aceite pelo
conselho escolar. Nestas condições passavam a gozar dos privilégios universitários em
matéria de representação nos actos oficiais da instituição académica, de preferências e
vantagens nas relações de tipo civil, económico, judicial, etc.
Para além dos já citados Colégios de Santa Cruz merecem referência, ainda que em
breves notas, aqueles que se integravam no âmbito da reforma joanina:
Colégio de São Tomás – Instalado para os estudantes dominicanos, em 1539, junto ao
Mondego, passou por algumas vicissitudes, dificuldades de dinheiro e também por via das
cheias do rio, pelo que foram obrigados a transferir-se para a Rua da Sofia.
Pela venda dos Bens Nacionais, provocada pela extinção das Ordens Religiosas, em
1834, o Colégio foi parar às mãos do Conde do Ameal que o mandou demolir quase
completamente, apenas poupando os claustros. O antigo Colégio de São Tomás, hoje não é
mais nem menos do que o actual Palácio da Justiça, nada tendo a ver com a traça original
da construção quinhentista.
Colégio de Nossa Senhora do Carmo – Também conhecido por “Colégio do Bispo do
Porto”, pois esse era o cargo eclesiástico do seu fundador, Frei Baltazar Limpo, destinava-se
a instituição para residência dos clérigos da sua diocese que pretendiam frequentar a
Universidade. Foi em 1543 que os religiosos do Carmo começaram a instalar-se no Colégio,
situado na Rua da Sofia, embora tenha havido já, desde 1537, uma residência provisória na
Rua Nova.
Em 1547 foi doado à Ordem dos Carmelitas Calçados, vindo a ser extinto pela lei de 1834
passando três anos depois para a Venerável Ordem Terceira de São Francisco, onde hoje
existe a Casa de Saúde da Sofia e um Asilo.
Colégio de São Pedro – Situado em frente ao Colégio de São Tomás, na Sofia, foi fundado
em 1540 por D. Rodrigo Lopes de Carvalho, futuro Bispo de Miranda. Destinava-se a 12
clérigos pobres, que já tivessem obtido o grau de bacharéis em Teologia ou Cânones e se
preparassem para prosseguimento dos estudos.
Mais tarde, em 1572, o Colégio sofreu profunda remodelação, transferindo-se da
cidade baixa para o edifício instalado no local dos antigos aposentos dos Infantes nos Paços
Reais, a sul da chamada Porta Férrea. Efectuada a mudança, a sua frequência passou a
destinar-se a doutores e licenciados com vista à docência.
Carlos Jaca 3
A partir de 1834 foi integrado no património da Universidade e, desde o século
passado, após ter sofrido grandes alterações, foi adaptado a reitoria e serviços
administrativos.
Colégio de Jesus – Pertencente à Companhia de Jesus (jesuítas), teve residência em
Coimbra no ano de 1542, fixando-se na parte alta da cidade, inicialmente em casas humildes
da rua cujo nome, Couraça dos Apóstolos, ainda hoje assinala o seu primitivo
estabelecimento, aliás, o nome de “Apóstolos”, refere-se aos próprios jesuítas.
Pouco depois, em 1547, passaram para o local que, primeiro fora escolhido para ali
se erguerem as escolas gerais. No referido ano foi lançada a primeira pedra do vasto bloco
de edifícios, tornando-se o maior Colégio da cidade e que ainda hoje existe parcialmente.
Tinha capacidade para mais de 200 alunos, corpo docente e pessoal auxiliar.
Foi o primeiro Colégio que a Companhia teve em todo o Mundo e talvez o mais
importante, «não só pelo alto grau de cultura literária e científica que o distinguia, mas
porque aqui se preparou uma enorme legião de “apóstolos” que seguiram para todos cantos
do globo terrestre, descobertos e conquistados pelos portugueses, descobertos e
conquistados pelos portugueses, onde pregaram a doutrina e a civilização cristã,
aumentando ao mesmo tempo o património da civilização ocidental com novas descobertas
e aquisições científicas e literárias». Por este Colégio, passaram homens de elevada
craveira intelectual, como o famoso orador Padre António Vieira.
Extinta a Companhia por Pombal, em 1759, ficaram os edifícios devolutos, sendo os
bens do Colégio anexados à Universidade e ao Cabido que, em 1772, atribui a categoria de
Catedral à sua Igreja, a Sé Nova. Com a reforma pombalina da Universidade parte do
edifício foi adaptado a Museu de História Natural, de alto valor histórico e científico, e que
ainda hoje existe.
Colégio da Graça – Mercê do auxílio de D. João III, e sob a direcção do espanhol Frei Luís
de Montoya, o Colégio começou a funcionar em 1543 para os Eremitas Calçados de Santo
Agostinho, mais conhecidos por “gracianos”, tendo sido incorporado na Universidade por
Carta régia em 1549. Tal como os outros, após a extinção das Ordens Religiosas e
nacionalização das suas casas e bens, foi a Igreja entregue à Irmandade do Senhor dos
Passos e a parte colegial ao Exército.
A Igreja, ainda hoje aberta ao culto, sempre que, em princípios de Julho, se realiza a
imponente Procissão da Rainha Santa Isabel, Padroeira da cidade, recebe a sua imagem
ficando exposta à veneração no templo “graciano”, na Rua da Sofia, desde Quinta-feira à
Carlos Jaca 4
noite até Domingo à tarde, quando se realiza a Procissão de regresso ao seu Mosteiro de
Santa Clara-a Nova.
Colégio do Espírito Santo ou de São Bernardo – Separado do Colégio de Nossa Senhora
do Carmo pela Ladeira do mesmo nome, e subsidiado pelo Infante D. Henrique, futuro
Cardeal-Rei, foi entregue aos monges cistercienses em 1549.
Actualmente, muito adulterado, apenas apresenta uma parte da fachada, tendo o lado do
edifício, junto à Ladeira do Carmo, sido transformado num palácio oitocentista.
Neste Colégio estudaram grandes vultos da historiografia nacional, Bernardo de Brito,
António e Francisco Brandão.
Colégio de São Jerónimo – O seu projecto data de 1535 e é da autoria do arquitecto Diogo
de Castilho, como consta da Carta régia para Frei Brás de Braga,
de 20 de Fevereiro de 1535: «Eu tenho determinado de, com a
ajuda de Nosso Senhor, fazer um Colégio nessa cidade, da
Ordem de São Jerónimo…Diogo de Castilho vos dará conta da
ordenança e maneira que quero que se tenha no edifício e obras
do dito colégio». No entanto, só em 1549 os Monges de São
Jerónimo dispuseram de instalações próprias, funcionando o
Colégio, durante cerca de 14 anos, nas dependências dos Paços
Reais.
Extinto em 1834 pelo liberalismo, dois anos depois o edifício
entrou na posse da Universidade, sendo, em 1848, adaptado a
serviços hospitalares (Hospital velho).
Colégio de São Paulo – Fundado por Frei Diogo de Murça e
destinado, inicialmente, tal como o de São Pedro, aos clérigos
pobres, a sua construção, no edifício dos “Estudos Velhos”,
decorreu entre 1550 e 1553. Entretanto, durante este período, D.
João III doara o Colégio à Universidade para que esta o
acabasse e dotasse à sua custa.
Entregue à Universidade em 1834, o local do Colégio foi
ocupado pelo Teatro Académico que, em 1912, deu lugar à
construção da Faculdade de Letras onde, por sua vez, depois de
operadas grandes transformações, no início da segunda metade do século passado,
funcionam a Biblioteca Geral e o Arquivo da Universidade.
Carlos Jaca 5
Porém, a mais notável destas instituições, e certamente até, talvez, o capítulo mais
brilhante da reforma joanina, foi o Colégio Real ou Colégio das Artes, já previsto em 1542
mas apenas inaugurado seis anos depois.
O malogro do ensino das artes e humanidades nos Colégios de Santa
Cruz. Projecto de um Colégio das Artes de tipo e nível europeu.
O ensino preparatório durante o seu funcionamento em Santa Cruz não atingiu os
objectivos correspondentes à expectativa dos governantes, nomeadamente no que dizia
respeito ao ensino das humanidades. Apesar de todos os esforços e cuidados, os anos iam
passando e não se vislumbrava o resultado proveitoso do capital investido e da firme
intenção de se modernizar o ensino. Efectivamente, a realidade dos acontecimentos
demonstrava que o ensino preparatório, ou seja, genericamente, o ensino “artístico”
ministrado em Santa Cruz, não estava a processar-se como tinha sido previsto e desejado.
Entre alguns motivos que terão concorrido para este “statu quo” pode, desde já,
referir-se a improvisação do corpo docente, agravada pela fraca qualidade de não poucos
dos seus membros; o estado de conflito, aberto ou latente, entre o priorado crúzio e a reitoria
da Universidade, levando à cisão de duas escolas independentes que se manteve desde a
transferência de 1537 até 1544, dando origem a más vontades e desacordos que muito
agitaram a vida académica conimbricense. Sublinhe-se que, ao lado das Faculdades
progressivas, Teologia, Medicina, Cânones e Leis, o estudo da latinidade vegetava num
atraso lamentável o que não deixaria de ser estranho, tanto mais, que a língua do Lácio era
a base das referidas ciências e… a disciplina querida dos humanistas. Provavelmente, terá
sido por esta razão que, em 1541, o Reitor da Universidade, D. Bernardo da Cruz, escreveu
ao Rei pedindo que chamasse à sua presença o Mestre João Fernandes, prestigiado
professor, que honrara as cátedras de Salamanca e Alcalá, para ouvir da sua boca o relato
dos males que urgia remediar. O seu testemunho, segundo o Professor Costa Pimpão,
poderá dizer-se «qualificado», mas ao Reitor, pessoa nada conciliável, não seria estranho o
desejo de subtrair o ensino “artístico” à autoridade do Prior de Santa Cruz.
Porém, considera-se como factor principal as deficiências de organização
administrativa e de orientação pedagógica atribuídas à direcção monástica, porquanto, já
durante o ano lectivo de 1540-41, é bem visível o descontentamento da Coroa com a
administração escolar de Santa Cruz, quando a Carta Régia de 21 de Janeiro do referido
ano, «deixava transparecer a iniciativa então tomada de colocar à frente da escola um
Carlos Jaca 6
director ou primário, com a incumbência de recrutar os professores e por eles distribuir os
alunos, de fazer os exames de passagem, fixar os programas, promover a disciplina da
actividade lectiva, etc.».
Também, a divisão entre a educação e o ensino é uma constatação nas escolas
secundárias de Santa Cruz, porquanto a simbiose das duas actividades, que era corrente
nos institutos de origem humanística e nos colégios franceses, nomeadamente nos de
Bordéus e Santa Bárbara, não encontraram nos dirigentes crúzios a devida protecção e
acolhimento.
Sem dúvida que a escolha de Frei Diogo de Murça para Reitor, em 1543, tem muito a
ver com este conjunto de circunstâncias, demonstrando as preocupações de D. João III
perante o malogro da execução da reforma dos estudos que planeara.
Poucos meses depois de Frei Diogo de Murça ter tomado posse do cargo, o grupo de
estudos concentrados nas dependências de Santa Cruz era transferido para o Paço das
Escolas e colocado sob a direcção e disciplina das autoridades universitárias.
Porém, no que respeita às artes e humanidades a mudança para “cima” não trouxe as
vantagens que se perspectivavam, continuando o corpo docente a ser improvisado e a não
se verificar melhoria, ou diminuição, nas carências orgânicas e didácticas existentes em
Santa Cruz.
Ao fim e ao cabo, a experiência pedagógica de 1535 a 1547 não correspondeu «aos
objectivos básicos que, na ordem da execução, lhe eram pedidos: a eficácia do ensino, a
organização colegial da vida académica, a categorização da escola de modo a dispensar os
serviços de Bordéus e Santa Bárbara a fazê-la rivalizar com Alcalá e Salamanca».
Um dos aspectos fundamentais da reforma era a separação entre o ensino
preparatório e o ensino universitário, com a finalidade de dar àquele uma solidez de
conhecimentos que servisse de base segura a todos os que pretendessem seguir estudos
superiores, visto que sem um bom ensino preparatório não poderia haver um bom
aproveitamento universitário. Assim, seria fundamental dar-lhe um apoio especial,
seleccionando professores competentes e, tanto quanto possível, organizá-lo em moldes
bem diferentes.
D. João III e os seus conselheiros terão concluído que, para o êxito desse tipo de
ensino, seria necessária uma instituição bem planeada que não o deixasse dispersar, como
até então, por diversos lugares e «por tantas mãos, que nem sempre pesariam,
convenientemente, a responsabilidade dos conhecimentos que ministravam».
Carlos Jaca 7
Assim, o projecto a que o Monarca pretendia dar execução, devido ao malogro da
escola de Artes instalada em Santa Cruz, apontava para a instauração de um Colégio
autónomo, independente tanto da Universidade como do Mosteiro, exclusivamente
destinado ao ensino das Artes, de nível categorizado, europeu, à maneira de Santa Bárbara
ou do Collège Royal fundado por Francisco I criando-se uma escola segundo o modelo
descrito, além de resolver o problema das deficiências existentes no ensino da latinidade,
evitaria á juventude portuguesa dificuldades e sacrifícios de vária ordem e, até, o risco de
ser “tocada” pela heresia. E mais, diminuindo o número de matrículas nos colégios
estrangeiros, o erário real seria aliviado dos elevados dispêndios canalizados para os
“bolseiros”, mercê da generosidade de D. João III.
Ao considerar o projecto da fundação do Colégio das Artes, em Coimbra, sem dúvida
o aspecto mais brilhante da reforma joanina, o rei “Piedoso” e os seus conselheiros na
matéria, não vislumbravam em Portugal as pessoas certas para elevar o ensino das Artes ao
nível desejado.
Nestas circunstâncias, e como já acontecera noutras ocasiões, era inevitável recorrer
ao estrangeiro. Porém, para este grau de ensino propedêutico entendeu-se que, por várias
razões, seria proveitoso recrutar os professores, pelo menos parte deles, portugueses que
exerciam em França funções docentes e cujo nome era “badalado” em toda a Europa culta.
Efectivamente, não faltavam pedagogos portugueses, de renome internacional, a quem
confiar a organização da nova instituição.
Um deles, André de Gouveia, grande pedagogo da Renascença, dera já provas
concludentes da sua competência na Direcção do Colégio de Santa Bárbara, em Paris, e do
Colégio da Guiene, em Bordéus, tendo a sua fama de pedagogo excedido a do próprio tio,
Diogo de Gouveia, não causando, pois, admiração que, em Portugal, o tivessem, desde há
muito debaixo “d´olho”. Com efeito, D. João III vinha procurando, insistentemente, atraí-lo ao
nosso País através de negociações e contactos directos, com vista à renovação dos estudos
em Coimbra, instalando e organizando um Colégio com pessoal docente recrutado pelo
ilustre humanista.
André de Gouveia. “Le plus grand et le plus noble Principal de France” - André de
Gouveia foi um dos três irmãos Gouveias, António e Marcial, que estudaram no Colégio de
Santa Bárbara sob a tutela do tio Diogo de Gouveia Sénior.
Cerca de 1530, já mestre no ensino “artístico” toma conta do principalato (Direcção)
do Colégio parisiense, por indicação e conveniência do tio, isto é, por via do seu interesse
Carlos Jaca 8
em actividades de natureza alheia à pedagogia e que não lhe permitiam exercer
devidamente aquele cargo.
Sabe-se que, durante o principalato de Santa Bárbara, André de Gouveia era figura
muito querida e estimada da juventude escolar, considerado um homem novo em todo o
sentido, tanto na idade como na adesão às novas ideias do século e, também, pela aliança
excepcional do talento com o carácter.
Quicherat, o historiador de Santa Bárbara, descreve do seguinte modo a sua direcção
no Colégio parisiense: «três palavras resumem a sua história, tranquilidade, prosperidade e
consideração. Tal foi a continuação da obra de Diogo de Gouveia por um homem capaz de a
aperfeiçoar. Nunca a disciplina foi mais rigorosamente observada, nem o quadro do pessoal
docente melhor provido. Com Marcial, António e Diogo de Gouveia, o Moço, com Diogo de
Teive e Beleago, a constelação portuguesa brilhava em todo o seu esplendor…».
Se a passagem de André de Gouveia por Santa Bárbara deixou um «traço luminoso e
individual», no Colégio de Guiene, cujo cargo ocupou desde 1534 a 1547, revelou-se por tal
forma o seu génio organizador, que Montaigne, que frequentara aquele estabelecimento, o
denominou nos seus “Ensaios” de “Le plus grand et le plus noble Principal de France”.
A atitude de Gouveia Sénior atribuindo a Direcção de Santa Bárbara ao sobrinho não podia
deixar de revelar a prova de confiança que nele depositava, e que as relações entre os dois eram
francamente cordiais. Só que, com o decorrer do tempo, e não foi preciso muito, André começou a
revelar-se menos concordante com as doutrinas da teologia escolástica tão acirradamente
defendidas pelo tio, o que levou este a interiorizar a ideia, ou a suspeita, de que o sobrinho estava a
seguir por caminhos errados e a rodear-se de más companhias, aproximando-se das doutrinas de
Lutero.
A origem do ódio de Diogo de Gouveia ao sobrinho André – A desconfiança parece ter
sido fundamentada pelas relações do sobrinho com homens de fé, em seu entender, muito
suspeita, nomeadamente com João Gélida e Nicolau Cop, os quais André de Gouveia
convidara para regentes do Colégio.
Aconteceu que, no período fugaz em que Cop, bacharel em Medicina, foi Reitor da
Universidade de Paris, proferiu, no Convento dos Franciscanos, local das assembleias
universitárias, um discurso, um tanto ou quanto veladamente, atacando a teologia medieval,
abordando melindrosos problemas, como o da justificação pela fé; o Novo Testamento
fundamento da verdadeira teologia; a brandura em vez da perseguição para as discórdias
religiosas, etc.
Carlos Jaca 9
As palavras do Reitor foram consideradas escandalosas, tendo sido denunciadas ao
Parlamento de Paris, que tinha as atribuições de tribunal da fé. Perante as acusações
atribuídas a Nicolau Cop levantou-se André de Gouveia que, devido à velha amizade e
convivência com o Reitor, serviu de testemunha o que, naturalmente, indignou Diogo de
Gouveia ao ver o sobrinho culpado da entrada do amigo no corpo docente do seu ortodoxo
Colégio, ligado pela amizade a tal herege, e ousar, até defendê-lo publicamente.
Nicolau Cop viu-se obrigado a abandonar precipitadamente Paris e a refugiar-se em
Basileia. Este acontecimento causou tal celeuma que viria a provocar a prisão de algumas
dezenas de pessoas e a colocar André de Gouveia em maus “lençóis”e, com ele, o prestígio
do Colégio de Santa Bárbara.
A situação do Principal de Santa Bárbara começou a tornar-se insustentável devido à
animosidade do tio e pelo receio de lhe exigirem responsabilidades como cúmplice do
fugitivo (Cop), tendo o Parlamento, por sua parte, oferecido elevada quantia a quem o
entregasse.
Nesta complicada e perigosa situação, André de Gouveia, aconselhado ou não, só
tinha um caminho a seguir: demitir-se do lugar de Principal de Santa Bárbara e deixar Paris,
o que de facto veio a acontecer.
André de Gouveia, Principal no Colégio da Guiena - Poucos meses depois, em Abril de
1534, um conjunto de circunstâncias proporcionaram-lhe um convite para a regência do
Colégio de Guiene, convite esse que se deverá à sua competência, mas também não terá
deixado de ser influenciado pelos correligionários da sua ideologia que, desse modo,
procuraram auxiliá-lo e livrá-lo de uma situação de consequências imprevisíveis.
Porém, a presença de André de Gouveia no Colégio da Aquitânia não iria ser menos
incómoda do que aquela que tivera em Paris. Contra ele, e de vários quadrantes,
nomeadamente do tio Diogo, levantaram-se vozes que o rotulavam de herege, homem
perigoso, criticando-o ainda, fortemente, pelo facto de ter escolhido para mestres do Colégio
indivíduos considerados «luteranos ou pouco menos que isso». Em jeito de parêntesis, diga-
se que, à época, não era necessário ir tão longe para fundamentar a suspeita de
heterodoxia. Segundo parece, bastava saber-se bem o Latim e o Grego para se despertar
desconfiança. Diogo de Teive, que se viu a braços com a Santa Inquisição, referiu-se, em
pleno processo a «algumas pessoas que têm comummente por suspeitos todos os homens
que sejam bons latinos e gregos».
Carlos Jaca 10
Como quer que fosse, o certo é que pouco tempo depois de assumir a Direcção, o
Colégio transformou-se numa das mais abalizadas escolas de França graças ao seu
Principal. Com efeito, o Colégio começou a tornar-se célebre por via da hábil direcção do
grande humanista português, que gozava de consideração geral mercê da honestidade e
diligência demonstradas no governo da Instituição. Acrescente-se, ainda, o mérito na
escolha dos seus colaboradores, pois alguns dos mestres contratados para o Colégio da
Guiena já os conhecia de Santa Bárbara e que, mais tarde, seguiriam com ele para Coimbra.
Além de alguns professores que já ensinavam no Colégio, novamente contratados,
acompanharam André de Gouveia, quatro professores de grande nomeada: Diogo de Teive,
Nicolau de Grouchy, Guilherme de Guérente e António de Gouveia.
Como o número de alunos tivesse, naturalmente, aumentado, o que implicava a
ampliação do corpo docente viajou até Paris donde veio acompanhado por cinco regentes:
Mathurin Cordier, Cláudio Budin, João da Costa, Junius Rabirius e Arnaldo Fabrício. Outros
dois lentes de renome internacional, e que também seguiriam para o Colégio das Artes, em
Coimbra, passaram, a partir de 1539, a fazer parte do corpo docente do famoso Colégio.
Desde a fundação do Colégio que havia suspeitas quanto à fé daqueles que estavam
sob a sua Direcção, havendo mesmo quem o considerasse o foco donde provinha a heresia
que «infeccionou toda a região “bordalesa”». Um dos responsáveis pelo Parlamento de
Bordéus, (tribunal que tinha a cargo a repressão da heterodoxia naquela província), João de
Calvimont, segredou a Diogo de Gouveia que tal Colégio era a causa da perdição de toda a
Aquitânia, como se o Velho Doutor não pensasse já o mesmo e… muito mais. É que, Diogo
tinha um carácter «mui veemente em suas paixões e pertinaz (obstinado, teimoso) no que
uma vez encaixa na cabeça».
Ora, Diogo de Gouveia, que até ao escândalo provocado por Nicolau Cop tinha
relações normais com o sobrinho, ficou desgostoso e amargurado com o seu procedimento,
demonstrando mesmo, abertamente, alguma antipatia, se bem que só nos últimos meses do
principalato de André as relações atingiram a gravidade que levaria ao corte de relações.
Com efeito, a saída de André de Gouveia do Colégio de Santa Bárbara para o Colégio
de Guiene, transformou a antipatia por ódio rancoroso que «nem a morte do sobrinho o
dobraria a esquecer os agravos».
Efectivamente, Diogo de Gouveia, o «implacável caçador de hereges», não podia
deixar de estar furioso com o sobrinho, porquanto, este, além de o abandonar e deixando-se
“embalar”, por ideias religiosas abominadas pelo teólogo, privou o seu Colégio de alguns dos
Carlos Jaca 11
melhores professores ao levá-los para o colégio “bordalês”. E mais, não foram poucos os
escolares portugueses, alguns com o apoio de D. João III, que preferiram optar pelo novo
Colégio onde André era o Principal, podendo afirmar-se que, com a sua partida, se inicia a
decadência de Santa Bárbara.
Como se não bastasse a concorrência que André de Gouveia iria fazer ao Colégio
parisiense, afastou-se sem prestar contas o que, de facto, competia propriamente, ao
administrador. Porém, Diogo de Gouveia, com razão ou sem ela, declarou ter sido lesado
em elevada quantia, daí ter considerado o sobrinho «herético maldito», ladrão e
demandando-o em tribunais.
Mais “envenenado” terá ficado quando teve conhecimento que D. João III convidava,
e com insistência, André de Gouveia e a sua equipa de professores do Colégio da Guiena,
que o velho Diogo considerava um “ninho de hereges” e foco de protestantismo, para
organizar e dirigir o Colégio de Coimbra.
Sublinhe-se que não é pura invenção que sobre a Escola “bordalesa” recaíam fortes
suspeitas de luteranismo, sabendo-se que vários entre os seus professores tinham sido
processados e punidos por esse motivo, enquanto outros, escapando-se, se tinham
refugiado na Alemanha e em Genebra. Há casos bem conhecidos e, cito apenas o notável
humanista escocês George Buchanan que, preso na sua pátria, salvou-se da morte na
fogueira por ter conseguido fugir para Inglaterra e daí para França, onde André de Gouveia o
levou para Bordéus. No entanto, embora haja casos bem fundamentados de desvios de
ortodoxia, não será lícito considerar que todos os mestres do Colégio da Aquitânia fossem
indiciados como verdadeiros protestantes.
Esta fama, para alguns, e proveito, para outros, não era desconhecida por D. João III,
a quem tudo era comunicado em termos vivos, pelo menos por Diogo de Gouveia que, como
se referiu, formalmente acusava o sobrinho de “ladrão” e de “herege”, sendo certo que
alguns ecos das acusações à ortodoxia dos mestres “bordaleses” não deixavam de chegar a
Portugal, aos ouvidos do Monarca.
Razões que levaram D. João III a confiar a Direcção do Colégio Real, ou
das Artes, a Mestre André de Gouveia.
Efectivamente, com tais informações, poderia parecer estranho que o Rei se
resolvesse a convidar André de Gouveia para Coimbra, na esperança de conseguir mais
proveito da sua reforma do ensino.
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Obviamente, que D. João III para tomar decisões teria de levar em conta as
informações que recebia. Só que, recebendo-as de origem diversa, como se verá, tiveram
mais influência as que eram favoráveis a André de Gouveia, e o facto é que D. João III,
embora zeloso em matéria de fé, não levou à risca os rumores que indiciavam de heresia o
Principal de Guiena e companheiros, convencido de que a má fama dos mestres se podia
filiar no despeito e inveja dos adversários. Ao Rei também não lhe seria de todo estranho
que a animosidade de Diogo ao sobrinho, pelo menos em parte, teria sido originária num
conflito de interesses materiais.
A fim de desfazer, ou esbater, as suspeitas de heresia não deixavam de chegar ao
conhecimento de D. João III «provas da educação religiosa ministrada aos escolares do
Colégio da Guiena. De facto, tanto ali como mais tarde no Colégio das Artes, fossem quais
fossem as verdadeiras crenças de André de Gouveia e companheiros, não há dúvida que
velaram pelo cumprimento acurado (aperfeiçoado) dos deveres religiosos pelos
discípulos…mas os mestres não se limitavam a mandar observar aos alunos os actos de
piedade, pois também os praticavam com maior ou menor sinceridade…».
Não havia dúvidas que André de Gouveia e os seus companheiros tinham adversários
que os abominavam e lhes queriam “fazer a cama” perante os meios ortodoxos e,
principalmente, perante D. João III.
No entanto, é um facto que os “bordaleses” e o seu Principal estavam rodeados de
amigos e admiradores cujos elogios e influência vieram a ter grande peso no espírito do Rei,
no sentido de os chamar para Coimbra.
André de Gouveia recomendado a D. João III. D. Gonçalo Pinheiro. Algum tempo antes
dos contactos, directos ou indirectos, entre André de Gouveia e o Rei, já o sobrinho do velho
Diogo pretendia regressar a Portugal e oferecer os seus serviços como pedagogo,
procurando a intercessão de personalidades influentes junto do Monarca, a fim de se fixar na
sua pátria, para o que chegou a escrever (11 de Agosto de 1537) ao embaixador em França,
Rui Fernandes de Almada, agradecendo-lhe os esforços que este já havia feito para
conseguir o que Mestre André pretendia.
Também D. Gonçalo Pinheiro, Bispo de Safim, conselheiro da Inquisição de Évora e
embaixador especial do nosso País na Corte Francesa, em carta de 6 de Fevereiro de 1539,
dirigida a D. João III, escrevia e recomendava: «Porque sei o virtuoso desejo de V. A. de em
seus reinos florescerem as letras, […] pareceu-me lembrar-lhe que aqui em Bordéus está
um português, que, como V. A. sabe, é principal do colégio de Bordéus e me dizem estes
Carlos Jaca 13
comissários de el-rei de França que é de tanta severidade e exemplo, que os estudantes
aproveitam muito mais com o seu temor que com a doutrina… Fiz esta lembrança, para que
V. A. se sirva dele em colégio ou no que lhe parecer». Só que, por esta altura, 1539, as
“coisas” não estavam ainda bem amadurecidas e a esperança régia, na reforma do ensino,
não era «uma simples ilusão perdida» como sucedia em 1542. Por razões que não interessa
agora justificar a carta terá sido redigida a rogo do próprio interessado mas, de qualquer
modo, o Rei não deixaria de registar e
considerar a informação tanto mais que,
sendo proveniente de um inquisidor da fé,
este não lhe recomendaria um herege.
Influência decisiva de Frei Jerónimo de
Padilha e Jorge de Santiago – De grande
peso na decisão de D. João III, ao confiar o
estabelecimento e direcção do Colégio das
Artes a André de Gouveia, foram as
informações elogiosas de dois dominicanos,
Frei Jerónimo de Padilha e Frei Jorge de
Santiago, ambos membros do Tribunal do
Santo Ofício.
Depois de terem contactado com
André de Gouveia em França, ficaram-lhe
muito gratos por este os ter livrado de
grandes dificuldades, possibilitando-lhes o regresso a Portugal depois de uma viagem a
Itália. Durante o tempo que permaneceram em Bordéus, os dois categorizados religiosos
tiveram oportunidade de visitar o Colégio da Guiena e observar a excelência do ensino ali
ministrado.
Regressados a Portugal, o nome de André de Gouveia, com intenção ou sem ela, foi
novamente sugerido a D. João III. Em Lisboa, os dominicanos relataram ao Rei o que viram
no Colégio da Aquitânia, dando-lhe conta da impressão favorável que o Director tinha
deixado neles. Em tais termos o fizeram que levaram o Monarca a chamar a Portugal Mestre
André e os seus companheiros.
Com efeito, a intervenção de Frei Jerónimo de Padilha e Frei Jorge de Santiago não
deixou de ser decisiva na resolução do Rei, o que é confirmado por João da Costa ao referir,
Carlos Jaca 14
na resposta autógrafa aos depoimentos das testemunhas de acusação, que «o Senhor
Padre Mestre Jorge de Santiago passou por Bordéus e com ele o Padre Frei Jerónimo de
Padilha que Deus tem e ambos foram ao Colégio e viram o exercício dele e ordem que nele
se tinha e pela Relação que eles deram a El- Rei nosso senhor mandou S. A. vir mestre
André e a companhia». Não faria sentido que João da Costa estivesse a mentir nesta
situação, tanto mais que um dos principais juízes que o estavam a julgar era precisamente
Frei Jorge de Santiago. Acrescente-se, ainda, que a responsabilidade deste dominicano na
vinda para Portugal dos “bordaleses”, demonstra também a relativa benevolência do Santo
Ofício quando do julgamento de três daqueles mestres que caíram sob a sua alçada.
Sem diminuir, antes pelo contrário, o empenho de D. Gonçalo Pinheiro e dos
embaixadores Rui Fernandes de Almada e D. Francisco de Noronha, não há dúvida que a
“Relação” dada pelos dominicanos a D. João III foi determinante para convencer o Soberano
que estava ali o homem certo para imprimir ao ensino preparatório nacional o impulso e o
rumo convenientes.
Acrescente-se que as informações fornecidas pelos dois religiosos vieram
precisamente em tempo adequado, visto que D. João e seus conselheiros haviam decidido,
nessa altura, proceder à reorganização da vida escolar de Coimbra, não tardando, assim,
que Mestre André fosse chamado a Portugal.
Contactos directos entre D. João III e André de Gouveia.
Só depois do regresso de Frei Jerónimo de Padilha e Frei Jorge de Santiago, fins de
1542 ou início de 1543, D. João III escreveu a André de Gouveia «a apertar com ele para vir
a Portugal a fim de se entenderem acerca da nova instituição».
O Principal da Guiena não se fez demorar deixando a dirigir a instituição “bordalesa”,
durante a sua ausência, o amigo e Mestre João da Costa, a quem passou procuração,
concedendo-lhe amplos poderes.
André de Gouveia terá permanecido em Portugal o tempo suficiente para acordar com
D. João III as negociações da fundação do Colégio, nomeadamente, a incumbência de
recrutar uma equipa de Lentes e pedagogos nos colégios de França e, ao mesmo tempo,
averiguar “in loco” das condições oferecidas na cidade e observar o ambiente em que iria
viver numa época de confronto de ideias, perturbada pela crítica religiosa, e quando se
decretavam severas proibições contra a leitura de determinados livros, como Bíblias,
Catecismos e outros, espalhados pelos propagandistas protestantes.
Carlos Jaca 15
Em Fevereiro de 1544, ou até nos últimos meses do ano anterior, já era conhecido em
Paris o motivo da viagem de André a Portugal, o que não deixou de provocar a indignação e
a reacção de Diogo de Gouveia Sénior em carta dirigida a D. João III, datada de 3 daquele
mês: «Cá soube como V. A. mandou chamar o “bom apóstolo” de Mestre André para fundar
o colégio. Eu por agora, não digo [mais] nada senão que espero…mandar a V. A. a sentença
asselada (com selo) no Parlamento, para que saiba que pessoa é e quais as suas obras…, e
dar a saber a V. A. o que furtaram ambos. Do mais se sente da farinha de Lutero ou não,
pelo presente não digo mais nada». Acrescentava ainda, que deveria, antes, chamar o
sobrinho Diogo de Gouveia, embora gostasse tanto dele que lhe custava vê-lo afastar-se da
sua companhia, e Paio Rodrigues Vilarinho, mestres cuja competência punha em contraste
com a insuficiência do “bom apóstolo” que chamara para Coimbra. Terminava, a fim de
estimular os escrúpulos religiosos do Rei, por pedir a Deus lhe concedesse a graça para
escolher «o que é mais necessário
assim para esse caso como para
salvação sua».
Dois anos depois da vinda de
André de Gouveia a Portugal as coisas
pareciam continuar, aparentemente,
em posição de “ponto morto”, pelo
menos no que dizia respeito à data da
instalação do Colégio. A demora
poderá, provavelmente, atribuir-se ao
facto de D. João procurar criar
condições propícias à fundação da
nova instituição e à vinda dos mestres
“bordaleses».
Não é de estranhar que se
levantassem rumores incómodos ao
facto de colocar sob a direcção de um
homem considerado suspeito por muitos a preparação pedagógica dos escolares. Por
alguma razão André de Gouveia parece ter preferido Lisboa a Coimbra, o que até ia ao
encontro de uma vasta camada da mocidade lisboeta, evitando-lhe inconvenientes de vária
Carlos Jaca 16
ordem e, por isso, é natural que da Capital fizessem pressão junto da Coroa; outro aspecto a
considerar seria convencer, antecipadamente, os monges crúzios à ideia do funcionamento
do ensino preparatório, artístico e humanístico, fora da sua esfera de influência, bem como,
quando chegasse a ocasião pedir-lhes a cedência das instalações; também o
relacionamento entre o futuro Colégio e a Universidade não deixaria de causar algumas
apreensões.
Havia ainda a levar em conta que a morosidade das negociações se devia também ao
facto de André de Gouveia ter de resolver os seus problemas pessoais, decidir sobre a
selecção e as condições de recrutamento dos colaboradores que fariam a viagem para
Coimbra e, não menos complicado, tratar das disposições a tomar sobre a reorganização do
Colégio de Bordéus, a cuja instituição pertencia a maioria dos professores a transplantar
para a cidade do Mondego.
No segundo semestre de 1546, D. João III volta a renovar por carta o convite a João
da Costa a fim de vir a integrar o futuro elenco de professores do Colégio das Artes e a
chamar à sua presença André de Gouveia que, desta vez, veio acompanhado de Diogo de
Teive.
Depois de ultimadas as negociações, André de Gouveia e Diogo de Teive estão de
regresso a França, sabendo-se que em 21 de Janeiro de 1547 já se encontravam em
Bordéus preparando a partida e procedendo à escolha do corpo
docente que faria a viagem até Portugal.
André de Gouveia levava consigo para Coimbra um
grupo de professores de primeira “água”, três deles
portugueses: João da Costa, sub-principal do Colégio da
Guiena e que em Coimbra iria desempenhar as mesmas
funções, Diogo de Teive e António Mendes de Carvalho; os
franceses, Nicolau de Grouchy, Guilherme de Guérente, Elias
Vinet, Arnaldo Fabrício e Jacques Tapie; dois escoceses, Jorge
Buchanan e seu irmão Patrício Buchanan.
Estes mestres, por terem vindo de Bordéus, constituíram um conjunto designado por
grupo dos “bordaleses”, enquanto os antigos docentes de artes e gramática, que já exerciam
o magistério em Coimbra, formavam o grupo dos “parisienses” por todos eles terem feito os
estudos no Colégio de Santa Bárbara em Paris.
Carlos Jaca 17
Viagem e chegada dos «bordaleses» a Portugal.
O grupo de professores contratado para o Colégio das Artes partiu de Bordéus em
Março de 1547, muito provavelmente antes de meados do mês, porquanto, havia
atravessado a Espanha durante a Quaresma (a Páscoa celebrara-se, nesse ano, a 10 de
Abril) e entraram em Portugal nos primeiros dias do referido mês.
A viagem fez-se por terra e os mestres foram divididos em dois grupos,
acompanhados por criados e alguns escolares que optaram por deixar o Colégio da Guiena,
a fim de facilitar os alojamentos e transporte. André de Gouveia não acompanhou os Lentes,
visto que a 21 de Março de 1547 ainda se encontrava em Bordéus, por via de três
procurações que passou para o recebimento das rendas dos seus benefícios eclesiásticos e
arrendamento de certas prebendas.
As duas comitivas encontraram-se em Salamanca. Após terem permanecido ali
alguns dias, prosseguiram jornada fazendo desvio pelo Minho, dirigindo-se para Braga onde
assistiram às solenidades dos últimos dias da Semana Santa, muito possivelmente a convite
de Diogo de Teive cujos pais residiam na cidade Primaz.
Apresentação dos “bordaleses” a D. João III. A demora na Corte – Alcançada Coimbra,
Domingo de Pascoela, 17 de Abril, logo empreenderam, viajem até Almeirim, onde se
encontrava a Corte, a fim de se apresentarem a D. João III.
Depois de apresentados os Lentes, e quando se devia esperar o seu regresso a
Coimbra passaram os meses de Abril, Maio, Junho e Julho, sem que se informasse a
Universidade do destino da equipa de Mestre André.
Esta demora não deixaria de provocar alarme na “Alma Mater” conimbricense, chegando a
recear-se que D. João viesse a fixar o Colégio em Lisboa, ideia que, como já se referiu, era,
ou tinha sido desejo do antigo Principal da Guiena.
Por motivos que não interessa aqui explicitar, parece não haver dúvida que o Rei “Piedoso”
nunca terá considerado a hipótese de implantar o Colégio na Capital. Fosse como fosse, o
certo é que Coimbra sentindo o perigo “mexeu-se”.
Assim, em 19 de Julho, a Universidade decidiu, em Conselho – Mor, escrever ao Rei: «E
no dito Conselho foi ordenado que se escreva a S. A. sobre o Colégio de Mestre André que
S. A. mandou vir, que o não deixe ficar em Lisboa e o mande a esta Universidade, pelo
muito proveito que fará, e ficando em Lisboa não se poderá sustentar a Universidade em
Coimbra».
Carlos Jaca 18
Esta carta seria seguida de outra dirigida ao Reitor, que já se encontrava na Corte em
negociações com D. João III e seus conselheiros e produziram o efeito desejado, pois, logo,
em início de Agosto era oficialmente anunciada a resolução do Monarca de estabelecer em
Coimbra a nova instituição. Efectivamente, numa provisão de 6 de Agosto de 1547, o
Monarca refere-se ao «Doutor Mestre André de Gouveia, principal do colégio que ora mando
fazer na cidade de Coimbra».
Instalações provisórias. Cedência dos edifícios dos Colégios de São Miguel e de
Todos-os- Santos – Numa altura em que os Lentes já se encontravam em Lisboa, havia
meses, e sem que as aulas pudessem ser iniciadas em tempo devido, a sua demora só
pode explicar-se pelo facto de D. João III ainda nada ter determinado quanto ao seu
alojamento.
Sem dúvida, estava a acontecer o mesmo que já havia acontecido anos antes,
quando da transferência de Universidade de Lisboa para Coimbra. Contrataram-se os
mestres, já se encontravam em Portugal, porém, não havia nada organizado para o
funcionamento do colégio, nem sequer para a sua instalação.
Mais uma vez a solução teve que ser improvisada. Eventualmente, alguém terá
sugerido que, naquele momento, a via mais adequada passava pela cedência dos edifícios
dos Colégios de São Miguel e de Todos-os- Santos, sendo bem provável que tal questão já
viesse a ser alvo de negociações, havia algum tempo.
Em 9 de Setembro, era expedido ao Prior de Santa Cruz, uma Carta Régia pedindo
os colégios por empréstimo:
«Padre Prior Geral. Eu El – Rei vos envio muito saudar. Eu mando já assentar nessa
cidade um Colégio em que hão-de ler todas as Artes, do qual há-de ser principal o Doutor
Mestre André de Gouveia, que para isso mandei vir de França com alguns lentes que logo
trouxe para o dito Colégio; e por não haver aposentamento conveniente para ele, em que
logo pudessem recolher como é necessário, vos rogo que me queirais para isso emprestar e
largar as casas, e aposentamento dos dois Colégios, que esse Mosteiro tem feito de novo,
enquanto se não fizerem as que tenho ordenado de mandar fazer para o dito Colégio […]. E
vos encomendo muito para que vós, e o vosso convento dos Cónegos sejam disto muito
contentes, pois convém a meu serviço e bem dessa nova Universidade; e que mandeis logo
entregar os ditos Colégios, e as casas deles, à pessoa que o Mestre André de Gouveia a
isso mandar. Os quais Colégios e casas eu os mandarei despejar e tornar, logo que forem
feitas as casas que mando fazer para o dito Colégio…».
Carlos Jaca 19
Anuiu o Prior Geral, D. Afonso, e os Cónegos regrantes, de boa ou má cara, viram-se
obrigados a ceder à vontade real, entregando as chaves dos edifícios, conforme a
recomendação da carta de D. João III, de 9 de Setembro de 1547, para o Prior do
Convento.
Inauguração do Colégio das Artes.
Embora já instalados em Coimbra desde Setembro de 1547, os “bordaleses” tardaram
ainda uns meses a iniciar as aulas, uma vez que as instalações eram insuficientes, e até
precárias, para as exigências da nova
instituição, sendo, por conseguinte, necessário
proceder a obras de adaptação e beneficiação,
o que levaria o seu tempo. Acrescente-se que o
Colégio de Todos-os- Santos, à data, ainda não
estava concluído, nem a parte já terminada em
funcionamento. O próprio Regimento,
indispensável para professores e alunos
saberem as condições em que iriam viver, nem
sequer tinha, ainda, sido promulgado por D.
João III, o que só veio a acontecer a 16 de
Novembro de 1547.
O Regimento ou Regulamento – Neste
documento estabelecia-se o carácter
pedagógico da instituição, análoga ao Colégio
de França, e como desenvolvimento dos
estudos superiores independentes da
Universidade. Com efeito, o ponto capital do
Regimento do Colégio das Artes era a
completa independência deste em relação à
Universidade, determinando que o Principal não esteja subordinado ao Reitor nem a outra
pessoa alguma com excepção do Rei.
O Regimento, ou Estatutos do Colégio Real, (o seu nome oficial) determinava a
fundação de um Colégio destinado ao ensino do Latim, Grego, Hebraico, Matemáticas,
Carlos Jaca 20
Lógica e Filosofia, com um corpo docente de dezasseis professores: dois para ensinar a ler
e escrever; oito para leccionarem Gramática, Retórica e Poesia (Latinidade), três para as
Artes, um para Hebraico, um para Grego e um para Matemáticas.
O Colégio tinha o exclusivo destas disciplinas em Coimbra, exceptuando uma aula de
Grego, outra de Hebraico, outra de Matemática e outra de Filosofia Moral na Universidade, e
exceptuando também o ensino dos conventos, sob condição de este ser ministrado aos
respectivos religiosos e seus familiares.
O mesmo documento ao indicar André de Gouveia para Principal atribuía-lhe
completa autoridade sobre os mestres, com o direito de os suspender dos serviços ou de os
substituir na docência se assim o entendesse. Igualmente, só o Principal e o Rei poderiam
intervir na vida do Colégio, tal como ocorria nos Colégios franceses similares.
O ensino no Colégio era gratuito, sendo admitidos alunos internos, em número
limitado devido às insuficiências das instalações, e alunos externos que constituíam a
maioria. Os primeiros pagavam, em dinheiro ou em serviços prestados na instituição, as
despesas relativas ao internamento (alimento e dormida). As quantias pagas designavam-se
por “porções” e os escolares que as pagavam por “porcionistas”. As porções variavam
segundo os três tipos de alimentação que se praticavam no Colégio. Porém, o alojamento
nas câmaras não distinguia os alunos que, em grande parte, eram de extracção burguesa e,
independentemente da origem, rica, remediada ou pobre o Colégio estava sempre aberto
aos candidatos , não se lhe exigindo provas de currículo anterior. Se não soubesse ler nem
escrever, aprendia-o no Colégio, caso já possuísse alguns conhecimentos era submetido a
determinadas provas a fim de se escolher a classe em que deveria ingressar.
Os escolares internos do Colégio das Artes estavam divididos em pequenos grupos,
tendo direito cada um a uma câmara para sua aposentação, dirigidos por um professor
encarregado de zelar por todas as suas actividades.
As obrigações escolares eram bastante duras, levantando-se às quatro da manhã e
deitando-se às nove da noite, desenvolvendo várias actividades: estudo, missa, aulas,
disputa das matérias leccionadas e almoço às onze horas, durante o qual ouviam leituras da
Bíblia; recreio do meio-dia à uma, seguindo-se o estudo ou lições extraordinárias, aulas e
novamente disputa; às seis, a ceia, seguida de interrogatório pelos mestres a fim de se
inteirarem do que tinham aprendido durante o dia, seguindo-se o recreio das sete às oito;
das oito às nove, estudo, que poderia prolongar se quisessem, depois de ter ido à capela
recitar as orações da noite.
Carlos Jaca 21
Nos dias considerados festivos ficavam livres desde o meio-dia da véspera às três
horas do dia seguinte. As férias de Natal iam de 22 a 28 de Dezembro; as da Páscoa, do
Domingo de Ramos ao de Pascoela; as férias grandes, que correspondiam a uma licença
para se ausentarem do Colégio, iam de meados de Agosto a meados de Setembro.
Numa visão global, a orgânica dos estudos consistia num primeiro ciclo de instrução
primária, num segundo ciclo, linguístico e literário, de carácter humanístico, e num terceiro
ciclo, de matérias filosóficas. O segundo ciclo poderia ter uma duração de quatro anos, se o
aluno mostrasse aptidão para tal; o terceiro ciclo tinha, igualmente, a duração de quatro
anos. O conjunto destas frequências constituía o curso da Artes, que só por si tinha
finalidade própria concedendo o grau em Artes, e servia de acesso à Universidade.
Sublinhe-se que a grande novidade do Colégio das Artes residia no sistema de vida
interna pautado pelos cânones do humanismo cristão, devendo educar-se e ensinar-se ao
mesmo tempo; o mestre devia ser também preceptor e a «aliança da piedade e do estudo
devia constituir o cerne de toda a pedagogia doméstica».
O Governo de D. João III conseguira, finalmente, implantar a escola padrão pela qual
tinha, durante vinte anos, desenvolvido os maiores esforços. Efectivamente, após as últimas
reformas da Universidade de Lisboa, e das tentativas no Colégio da Costa, e em Santa
Cruz, e das experiências de Braga, Évora e Porto, atingia-se o grau máximo de apuro de um
modelo para a rede de escolas menores que urgia criar ou desenvolver no País. Assim, ao
Colégio, concedeu-se-lhe, tal como se fizera em Santa Cruz, o monopólio do ensino público
do respectivo grau na cidade de Coimbra, subordinando-se-lhe, indirectamente, as outras
escolas nacionais e obrigando-as a seguir os esquemas e processos da instituição acabada
de criar.
Abertura solene das aulas. – Entre a data da promulgação do Regulamento e a
inauguração do Colégio decorreram ainda cerca de três meses. Efectivamente, foi a 21 de
Fevereiro de 1548 que se realizou a sessão solene de abertura, sendo o mestre francês
Arnaldo Fabrício, um dos «bordaleses” e eloquente orador, a ler o discurso inaugural, “De
Liberalium Artium Studiis oratio in Gymnasio Régio”, perante grande número de professores
e uma multidão de alunos que aguardavam o acontecimento com enorme expectativa.
Carlos Jaca 22
As aulas iniciaram-se no dia imediato e a sua abertura constituiu um verdadeiro êxito
sob o ponto de vista de afluência dos alunos, atraídos pela fama dos mestres “bordaleses”,
«tão louvados pelo saber, mas de cujas crenças se murmurava».
Logo no mês seguinte ao início das aulas o Colégio das Artes apresentava um
número de alunos superior a oitocentos e, no mês seguinte, Abril, ultrapassava o milhar,
atingindo pouco depois cerca de mil e quinhentos, pelo que, devido à insuficiência das
instalações, e em último recurso, o Rei ordenou o despejo de várias casas contíguas ao
Colégio, e estavam arrendadas na rua da Sofia.
Para André de Gouveia o problema das instalações foi sempre uma questão
prioritária, insistindo na construção de edifício próprio para o Colégio, conseguindo que o
Monarca encarregasse o arquitecto e escultor francês João de Ruão de delinear a
construção. Só que o projecto enviado para Lisboa, depois de submetido à apreciação do
espanhol João de Castilho e do português Miguel de Arruda foi rejeitado. André de Gouveia,
desgostoso com a rejeição, porquanto o projecto do arquitecto francês havia sido feito por
indicações suas, queixou-se ao Rei, em carta de 13 de Fevereiro de 1548 : «eles (Castilho e
Arruda) entendem tão pouco em fazer um colégio como eu o quero e deve de ser, como
aqueles que nunca fizeram outro senão de frades».
Também o corpo docente que veio de França não era suficiente para o funcionamento
regular do Colégio, segundo as determinações do Regimento, sendo necessário completá-lo
com professores que já exerciam o magistério em Portugal. Dos “bordaleses”, Diogo de
Teive, George Buchanan e Guérente eram os responsáveis pela Latinidade; Grouchy, pelas
Artes; Arnaldo Fabrício ficou com o Grego e Elias Vinet com a Matemática; de Mendes de
Carvalho, Tapie, e Patrício Buchanan não são conhecidas as classes que regiam. Os
professores necessários para completar o quadro foram Álvaro Lobato e Manuel Tomás para
as primeiras letras; Marcial de Gouveia e Pedro Henriques para a Gramática; Diogo de
Contreiras, Manuel da Pena e Belchior Beleago para as Artes; e o italiano mestre Eusébio
para o Hebraico.
Agrado e desagrado pela fundação do Colégio – A fundação do Colégio das Artes,
levada a cabo por D. João III, deu azo a que fossem tecidos grandes louvores ao Monarca,
que ecoaram não só por todo o País, mas também se fizeram sentir nos grandes centros
escolares do estrangeiro.
Carlos Jaca 23
Exemplo da repercussão desses elogios regista-se na carta do Bispo de Coimbra, D.
Fr. João Soares, que representou Portugal no 3º período do Concílio de Trento, datada de
Fevereiro de 1548, testemunhando ao soberano que o «Colégio de Mestre André, é com
tanta vontade recebido de todo o povo, que por ser cousa, que em extremo parece a todos
que é remédio de seus filhos serem cristãos, e letrados, o escrevo a Vossa Alteza».
Também João da Costa, “bordalês”, e que chegou a ser Principal da instituição
conimbricense, dava conta a D. João III, em 30 de Abril daquele ano, que muitos acorriam
ao Colégio para o observar «e se maravilham e dizem que nunca se tal coisa viu e dão
graças a Nosso Senhor».
De facto, o aparecimento do Colégio teve importância notável na afirmação de
Portugal na Europa, uma vez que nos colocava a par com os países mais desenvolvidos no
que dizia respeito ao ensino das humanidades.
A sua fama espalhou-se no País e, no espaço de alguns anos, foram criados colégios
similares no Porto, Braga, Bragança, São Manços de Évora, Funchal, Angra do Heroísmo e
Lisboa. Durante os séculos XVII e
XVIII alargaram-se a outras regiões
do País, permitindo a grande
número de portugueses o acesso a
um ensino de grande qualidade.
Porém, o regozijo que muitos
demonstraram pela instalação do
Colégio era apenas uma das faces
da mesma “moeda”, pois, sem que
possa causar admiração, era mais
que previsível, era esperado, o
descontentamento, a animosidade,
a inveja e o despeito daqueles que viriam a manifestar com repulsa a abertura dos novos
gerais. Para além, dos “bordaleses” serem considerados, mais ou menos sinceramente,
simpatizantes da doutrina luterana, outros sentiam-se prejudicados pelo favor real
dispensado aos mestres que, embora sendo alguns portugueses, eram de mentalidade
estrangeira.
Cerca de seis meses antes da inauguração, Marcial de Gouveia, um tanto ressabiado,
dirigia, em 1 de Agosto de 1547, uma carta a D. João III, relevando os bons resultados que o
seu professorado produzia no Porto: «Dando-me V. A. de comer como faz a outros, que em
Carlos Jaca 24
nenhuma coisa me fazem vantagem ponha V. A. diante dos olhos que também é Senhor do
Porto como de Coimbra, e que todos são vassalos. E que eu aqui lhe estou limpando o ferro
para lho mandar muito polido à sua Universidade de Coimbra. Se V. A. fosse bem informado
do que se passa, bem sei eu que me faria muitas mercês». Estas palavras parecem dar a
entender o seu ressentimento pelo facto de não ter sido ainda chamado a fazer parte do
corpo docente da nova instituição.
Nas vésperas da abertura do Colégio, e em carta datada de Paris, 1 de Fevereiro de
1548, Diogo de Gouveia lamentava-se, com grande desgosto, pelo facto de constatar o
triunfo do seu odiado sobrinho André: «Já V. A. sabe que eu hei-de trabalhar por edificar
pedras vivas e sempre me prezei deste ofício e se por usar disto me não fizeram o que é
feito a outros por edificarem pedras mortas com toda a minha pobreza me tenho mais rico e
mais próspero que eles com todas as dignidades do mundo e nem por isso não hei-de deixar
de continuar o meu ofício de que sempre me prezei e prezarei. Enquanto viver que hei-de
dar modo que nesse Reino haja homens letrados e que hajam de fazer o ofício que fez o
Filho de Deus neste mundo».
Também a fixação do Colégio em Coimbra nas condições determinadas por D. João
III não foram do total agrado para uma corporação poderosa e influente como era o
Convento de Santa Cruz. De facto a vinda de André de Gouveia e companheiros implicava,
materialmente, sérios prejuízos para o Mosteiro.
Já se referiu que o Rei pedira emprestados, para instalação provisória dos novos
gerais, os edifícios crúzios de São Miguel e de Todos-os- Santos. Ora, o empréstimo dos
edifícios atingia os cónegos regrantes nos seus interesses e estatuto, uma vez que essas
edificações tinham sido construídas mediante as rendas de Santa Cruz com elevado custo.
Aconteceu que ambos os colégios rapidamente foram extintos, porquanto, os frades cientes
de, a curto prazo, não reaverem as casas, apesar da promessa do Soberano, puseram
ponto final no sustento dos colegiais.
Só passados largos anos, em 1575, e depois de repetidas e nunca atendidas
solicitações para voltarem à posse dos edifícios, os crúzios lograram receber em pagamento
das expropriações uma quantia, de certo insuficiente, para os indemnizar dos prejuízos
causados.
Igualmente, e com os mesmos objectivos, D. João III determinou por alvará que os
arrendatários das casas contíguas ao Colégio de São Miguel, do lado da rua da Sofia, e que
os frades alugavam por 40.000 rs anuais, apesar dos contratos, as despejassem
Carlos Jaca 25
imediatamente. Tratava-se de casas de «dois sobrados e forradas, providas de belos portais
e janelas de pedra de Ançã, situadas na melhor via de Coimbra e onde viveram pessoas de
grande categoria social, como D. João de Portugal, D. Sancho de Noronha, o Dr. Afonso do
Prado e Manuel Luís Álvares Cabral».
Como essas moradas não bastassem, o Monarca, por alvará de 16 de Fevereiro de
1548, mandava desalojar todas as casas da rua da Sofia pretendidas por André de Gouveia.
Sendo assim, perante estas medidas, compreende-se perfeitamente que os inquilinos não
vissem com bons olhos o Principal e os mestres que os privavam das suas legítimas
residências.
Até a própria Universidade, embora desejando a fixação do Colégio em Coimbra, não
estava de acordo com alguns aspectos da sua organização. Naturalmente, não era do seu
agrado que uma escola, vocacionada para a preparação da maioria dos seus futuros alunos,
fosse inteiramente independente da interferência das autoridades académicas, porquanto D.
João III, como foi referido no Regimento, expressamente promulgou «que o Reitor da dita
Universidade, nem outra alguma pessoa tenha superioridade sobre o dito Colégio».
Além disso, entre os doutores não faltariam, certamente, alguns de espírito menos
aberto a quem desagradaria a importância atribuída aos estudos humanísticos, receando a
desvalorização de outras ciências e, até, o favor real em prol dos novos mestres não
deixaria de ferir “certas vaidades doutorais”.
Destas situações de desagrado não se pode, nem deve, inferir que o Convento de
Santa Cruz e a Universidade fossem corporações que estivessem de costas voltadas, ou
manifestamente adversas aos”bordaleses”, pois existem notícias das boas relações
existentes entre alguns dos regentes do Colégio, crúzios e professores universitários.
Rivalidade e conflitos entre “bordaleses” e “parisienses”.O grupo designado,
e conhecido, por “bordalês” era constituído pelo conjunto de mestres portugueses e
estrangeiros que, provenientes de Bordéus, do Colégio da Guiena, acompanharam André de
Gouveia até Coimbra, a fim de constituir e valorizar o corpo docente da nova escola.
Este grupo de homens notabilíssimos, cujo espírito representava a ala avançada do
humanismo português, procurava impregná-lo de mentalidade europeia fazendo dele um
instrumento capaz de transformar os nossos costumes e a cultura nacional.
Carlos Jaca 26
Os “bordaleses” constituíam um grupo nitidamente progressivo e, por conseguinte,
aberto às novas ideias que se iam impondo e circulando na Europa, abraçando o
humanismo de vanguarda.
A formação mental dos professores nacionais e estrangeiros vindos para o Colégio
das Artes identifica-se, plenamente, numa carta de André de Gouveia para o Embaixador de
Portugal em França: «Folgaria que (o senhor meu tio) me ouvisse, para ver se a teologia que
se aprende pela Sagrada Escritura e pelos Doutores da Igreja é melhor que a sua teologia
sofística que se aprende por Tartareto e Durando, nos quais porquanto eu não quis perder o
meu tempo tem ele comigo o que tem”.
Pode perfeitamente concluir-se que André de Gouveia integrava as fileiras dos
teólogos renovadores, e o que ele era, eram-no igualmente os seus companheiros que
vieram para o Colégio de Coimbra.
Os antigos docentes de artes e gramática, que já exerciam o magistério em Coimbra,
formavam o grupo dos “parisienses” por todos eles terem feito os estudos no Colégio de
Santa Bárbara em Paris, obviamente defensores da ortodoxia conotada com Diogo de
Gouveia Sénior.
Efectivamente, a orientação cultural do Colégio pode definir-se pela mentalidade do
velho Gouveia, homem de espírito abertamente conservador, temperamento fanático,
manifestando-se até, frequentemente, violento na correspondência com D. João III,
nomeadamente para desacreditar o sobrinho André. Paris tê-lo-á imbuído de ideias
retrógradas, ultrapassadas, pelos acima citados Tartareto na cátedra e Durando de Saint
Pourçain nos livros, «cegando-o para toda a forma de cultura ou de acção que saísse dos
trilhos medievais… Erasmo assomava-lhe à mente como desbravador dos caminhos de
Lutero. E por isso chamava luteranos – Diz Diogo de Teive – a homens que sabiam grego e
filosofia e estavam mal com a sofistaria».
Com incontida satisfação informava o Rei da acção levada a cabo na Sorbonne para
impedir a influência dos inovadores. Uma das suas actividades predilectas era a perseguição
policial dos protestantes.
Crise de unidade instalada no corpo docente. – Não correram muito felizes para a nova
Instituição os meses que se seguiram à sua abertura. Suspeitas e acusações de
heterodoxia, rivalidades entre “bordaleses” e “parisienses”, interesses feridos, vieram a
provocar intrigas e conflitos, que acabaram por levar à dispersão e ao afastamento dos
mestres que acompanharam André de Gouveia, não sem que três deles, dos mais notáveis,
Carlos Jaca 27
Diogo de Teive, João da Costa e Jorge Buchanan, deixassem de passar pelos cárceres da
Inquisição.
Apesar das excelentes condições de organização e estrutura, o Colégio padecia de
males profundos, a começar pela crise de unidade no espírito do corpo docente. A presença
dos mestres “bordaleses” foi olhada em Coimbra pelos antigos professores com inveja,
desconfiança e antipatia, vendo-os cheios de poder e autoridade, passeando pela cidade em
mulas, acompanhados de criados, verificando-se, ainda, que os alunos obtinham melhores
resultados com as suas lições.
Além de se tratar de indivíduos provenientes de regiões onde o luteranismo dispunha
de terreno propício à sua expansão e, por isso mesmo, alguns deles suspeitos na fé católica,
eram estrangeiros ou portugueses estrangeirados que vinham fixar-se em Coimbra a fim de
fomentarem um estado progressivo do ensino que se mostrava incapaz de modificação com
a orgânica e a docência nacionais.
Os “bordaleses”, no fundo, eram considerados intrusos, a sua presença implicava
para os “parisienses” uma situação de subalternidade e, mesmo, alguns poder-se-iam ver
desapossados das suas cátedras. Tratava-se de gente de fora que vinha dar as suas
ordens, impor a sua orientação e, obviamente, regiam as cadeiras de maior prestígio, onde
aplicavam a sua didáctica, livre de toda a fiscalização académica, uma vez que o Rei
determinara a sua independência em relação às autoridades universitárias. Sentindo-se
agravados, manifestaram pelos “bordaleses” tal aversão que viria
a ser a causa da ruína da obra de Mestre André.
Há quem pondere que a antipatia entre os dois grupos
nunca teria atingido tão graves conflitos, se não fosse o caso de
vários “parisienses”, e outros mestres estranhos ao bloco
“bordalês”, terem conseguido a nomeação para as cátedras do
Colégio das Artes, pois, e como se referiu, André de Gouveia não
trouxe consigo os professores considerados suficientes para todas
as cadeiras. Assim, entre o período da fundação da escola e as
prisões de Teive, Costa e Buchanan, em Agosto de 1550
ensinaram no Colégio, além dos “bordaleses”, pelo menos catorze docentes.
Luta de ideais e (ou) questão de interesses prejudicados. – Na sequência do que tem
vindo a ser descrito, aceita-se, sem qualquer contestação, que a origem remota da antipatia
Carlos Jaca 28
dos Lentes parisienses aos homens de Bordéus, se pode filiar nas suspeitas acerca da fé
dos mestres do Colégio da Guiena, que lhes incutiu Diogo de Gouveia Sénior. Porém, a
causa próxima parece corresponder mais a uma questão de interesses materiais ou
“vaidades magoadas”.
Assim, não é de rejeitar o facto de que todas as situações de conflito surgissem a
partir do momento em que os “parisienses” se sentiram desprestigiados na sua posição, fora
ou dentro da nova Instituição, inconformados com as classes que lhes foram atribuídas, e
que consideraram muito abaixo da sua categoria. Outros conflitos terão sido provocados por
constatarem que estavam a ser lesados nos lucros auferidos dos colegiais que habitavam
nos seus aposentos, bem como das “porções”, isto é, da alimentação dos alunos internos,
ou, ainda, em negócios particulares. Também a repartição das residências nos edifícios do
Colégio não deixou de ser alvo de polémica. Acrescente-se, ainda, que, embora não se
conheçam os quantitativos, não seria de admirar que os professores estrangeiros, e tão
prestigiados, teriam de ser muito bem pagos apesar das dificuldades das finanças públicas.
Sublinhe-se, no entanto, que embora a luta de ideais não tivesse sido,
fundamentalmente, o motivo das desavenças, a heterodoxia foi sempre o “cavalo de
batalha”, a arma terrível, e bem manejada, contra os “bordaleses”. Efectivamente, face à
documentação conhecida, grandes investigadores desta matéria consideram incontestável
que cabem ao bloco “parisiense” as maiores culpas na desarticulação registada no Colégio
das Artes, sendo também certo que, embora num grau menor, alguma culpa terá sido da
responsabilidade dos “bordaleses”,
Mercê do favor real e da sua projecção em Coimbra, os novos mestres não deixaram
de exibir a sua superioridade, manifestando incontido orgulho, olhando os antigos mestres
com sobranceria e considerando-os diminuídos de espírito e de fraca competência, evitando
o mais possível a aproximação, embora não fugissem completamente às relações com eles.
Um dos seus erros mais graves foi de não saber ou não querer adaptar-se ao
ambiente nacional, pois eram estrangeiros ou portugueses que, por via de terem vivido
desde muito jovens em França, se moldaram aos modos e costumes daquele país. A título
de curiosidade informe-se que, ainda em Paris, Diogo de Teive foi censurado e até
ameaçado pelo facto de se ter acomodado ao “modus vivendi” francês. O então jovem
humanista argumentava que se em França vivia conforme o modo dos franceses, quando
regressasse a Portugal cuidaria de se acomodar aos costumes dos seus compatriotas.
Mas…tal como hoje, e em tudo, era mais fácil dizê-lo do que levá-lo à prática…
Carlos Jaca 29
Chegados a Coimbra vindos de um país onde havia grande liberdade de costumes e
expressão, Teive e Buchanan, no processo que lhes havia de mover a Inquisição, alegaram
em sua defesa, precisamente, a liberdade da sociedade francesa, como desculpa de alguma
palavra condenável pronunciada lá fora, e que tivesse chegado aos ouvidos dos juízes.
Diogo de Teive não negou ter conversado sempre mais com franceses «homens livres em
suas práticas e que muitas vezes dizem mais do que cuidam» e reconheceu que alguns
daqueles com quem convivera em França «às vezes como é o costume dos franceses
falavam algumas coisas desatentadamente». Também Jorge Buchanan referiu a grande
liberdade francesa nos gracejos e comédias, em que nem a própria pessoa do rei se
poupava.
Provavelmente os “bordaleses” terão julgado que não era considerado condenável em
Portugal aquilo que em França se aceitava como legal. O certo é que já recaindo neles a
suspeita de heterodoxia, e num país completamente diferente daquele onde tinham feito a
sua formação, quaisquer atitudes ou palavras, desde que julgadas esquisitas ou
extravagantes, eram consideradas como prova de manifesta heresia.
O falecimento inesperado de André de Gouveia.
No início de Junho, André de Gouveia contraiu uma doença diagnosticada à época
como “cólica” e que, em breves, dias o vitimou. O falecimento inesperado do Principal, em 9
de Junho de 1548, apenas três meses após a abertura do novo estabelecimento, veio
agravar o já precário equilíbrio que se verificava na Instituição. Enquanto esteve à sua
frente, o prestígio e a função moderadora de André de Gouveia serviram de escudo, de
barreira defensiva, dos murmúrios e insinuações que se propalavam acerca do Real Colégio
e dos novos Lentes, embora já então despontassem prenúncios de futuras “tempestades”
Logo após a sua morte, começam a vir ao de cimo, as dúvidas ideológicas atiçadas,
desde Paris, por Gouveia Sénior, dando força aos ressentimentos “incubados” nos crúzios,
na Universidade e nos Lentes da Faculdade de Artes pela fundação da nova Escola, bem
como as acusações aos “bordaleses” de luteranos, do incumprimento dos preceitos
religiosos como a confissão anual, o jejum, a abstinência, comendo carne no Advento e na
Quaresma. Estas e outras acusações tornaram-se correntes e rapidamente ganharam
espaço. E mais, André de Gouveia, nos últimos momentos de vida, “in articulo mortis” (a
ponto de morrer), obstinadamente, segundo se provou, recusou a confissão e os últimos
sacramentos.
Carlos Jaca 30
Efectivamente, o desaparecimento do famoso Principal veio criar uma situação crítica
ao Colégio, levando à sua anarquização e à perseguição pelo Santo Ofício a alguns dos
seus Lentes, bem como ao afastamento de outros. Com efeito, as circunstâncias da morte
de André de Gouveia pesaram, directa e imediatamente, na sorte desses professores,
agravando as suspeitas acerca da heterodoxia do corpo docente “bordalês”.
O novo Principal do Colégio das Artes: Diogo de Gouveia, o Moço. - Tendo, pela força
das circunstâncias, o lugar de Principal ficado vago, seria de calcular que fosse ocupado por
João da Costa, então subprincipal e que, de facto, veio a dirigir o Colégio, interinamente, de
Junho a Setembro, enquanto se aguardava que D. João III procedesse à escolha do
substituto de André de Gouveia.
Surpreendentemente, ou não, D. João III
optou por nomear para o lugar de Principal o
“parisiense” Diogo de Gouveia, o Moço,
sobrinho e homónimo de Diogo Gouveia Sénior.
Seria, porque, ao tomar conhecimento da morte
impenitente de André de Gouveia quis dar uma
satisfação ao velho Principal de Santa Bárbara,
que bem o avisara da fé muito suspeita do
homem a quem confiara a direcção do Colégio,
a qual em tempos recomendara ao Rei que
fosse atribuída ao seu sobrinho dilecto? Parece
não ter sido esse exactamente o objectivo do
rei “Piedoso”, embora ao Doutor Gouveia,
Moço, ou Júnior, não lhe faltassem títulos
académicos para dirigir uma escola, uma vez
que durante alguns anos substituiu o tio, como
Principal, no Colégio de Santa Bárbara e
quanto à sua fé nada havia a recear, porquanto,
tinha o aval de Gouveia Sénior, além da acção
que exercera, ainda que ocasionalmente, como
juiz da Inquisição de Lisboa.
Ao preterir João da Costa, o mais próximo colaborador de André de Gouveia, em favor de
Diogo de Gouveia, D. João III parecia ter o propósito de conciliar a competência
Carlos Jaca 31
(“bordaleses”) com a segurança ideológica (“parisienses”) e travar as dissidências entre os
professores.
Porém, se a intenção do Rei era louvável, na prática constituiu um rotundo falhanço,
pelo que a referida nomeação representou um golpe fatal na novel Instituição.
De facto, a escolha do sobrinho do velho Diogo não terá sido a mais indicada, a não
ser que o Rei, antecipadamente, tivesse decidido substituir todo o corpo docente “bordalês”
o que não foi o caso.
Ora, nunca poderia haver tranquilidade, ainda que relativa, numa instituição que havia
sido programada segundo o espírito dos “bordaleses” e, na circunstância, dirigida por um
adversário desse espírito, tanto mais que Gouveia Júnior era um homem difícil, inflexível,
como o parecem provar os conflitos já passados com mestres e escolares em Santa
Bárbara.
Também João da Costa, na qualidade de subprincipal e grande colaborador de André
de Gouveia, ter-se-á sentido esbulhado do lugar de chefia, a que há a acrescentar as
antipatias já antigas e ideais antagónicos. Assim, as relações entre os maiores
representantes dos dois blocos adversos haviam de faiscar e, fatalmente, não poderiam
conviver em paz e trazer equilíbrio à Instituição. E mais, naturalmente, os mestres oriundos
da Faculdade de Artes não teriam esquecido o desprestígio social e os prejuízos de ordem
financeira, pelo facto de terem sido relegados para a docência de classes menos
categorizadas com a chegada de Mestre André e companhia.
Não deixa de ser estranho que D. João III, ao tomar a atitude que tomou, acreditasse
na conciliação.
Os desentendimentos e rivalidades, a princípio surdos, entre Gouveia Moço e João da
Costa, foram, gradualmente, degenerando em conflito aberto, de modo que o clima dentro
do Colégio era insuportável; a disputa de palavras não tardou a chegar a situações de vias
de facto; havia quem levasse a espada para as aulas. Os enredos, as desconsiderações, as
questiúnculas, os insultos, as ofensas entre João da Costa e Gouveia subiram de tom, a
ponto de chegarem ao conhecimento do Rei.
Ainda antes de terminar o ano lectivo de 1548-1549, por altura da Páscoa, três dos
mais notáveis “bordaleses”, Arnaldo Fabrício, Patrício Buchanan e Elias Vinet, cheirando-
lhes a “esturro”, resolveram deixar Coimbra e regressar a Paris, apresentando como pretexto
motivos de saúde. Porém, o mais verosímil terá sido a renúncia dos cargos por via do
ambiente de intrigas e guerrilhas que, eventualmente, lhes poderia trazer situações
complicadas, nomeadamente, a privação de liberdade.
Carlos Jaca 32
A escusa destes mestres teve as suas consequências, pois como era necessário
encontrar-lhes substitutos, foram nomeados novos professores do bloco “parisiense”,
reforçando, assim, o número de inimigos dentro do Colégio.
As discórdias eram de tal ordem, tão violentas as discussões entre Principal e
subprincipal, e os mestres, acrescidas com o péssimo exemplo de indisciplina dado aos
escolares, que D. João III entendeu por bem chamar os responsáveis a Lisboa e… ouvi-los
de viva voz, ficando em Coimbra Diogo de Teive, como Principal.
Diogo de Gouveia substituído pelo “bordalês” João da Costa.
Depois de ouvir um e outro, o Rei parece não ter tido dúvidas em assacar as culpas a
Diogo de Gouveia, o Moço, atribuindo-lhe a principal responsabilidade pela desordem que
reinava na Instituição, decidindo, assim, demitir o “parisiense” do principalato e nomear para
o seu lugar o “bordalês João da Costa.
Sendo quase certo que seria difícil, ou mesmo impossível, colocar à frente do Colégio
uma personalidade imparcial, a escolha de João da Costa estava longe de ser pacífica, o
governo do “bordalês” não iria ser mais tranquilo do que o do seu antecessor. A este, ainda
mais que a demissão do cargo, não deixaria de fazer grande “mossa” o facto de ser
substituído por quem era o seu maior adversário, ou inimigo.
Depois, a nomeação de João da Costa para principal representou apenas meia
vitória, uma vez que, pouco antes, o Rei, revogando a disposição do Regimento, colocava a
direcção do Colégio sob a tutela da Universidade. Efectivamente, por alvará de 8 de
Novembro de 1549, era suprimida a liberdade absoluta, até então independente da
autoridade universitária e só dependente do Rei, determinando que, de futuro, o Colégio
seria semestralmente inspeccionado pelo Reitor da Universidade, averiguando «se lêem os
Lentes dele como devem e são obrigados, e se o principal guarda o Regimento do Colégio.
E se algum dos Lentes e oficiais e colegiais dele, no tempo da visitação, se lhe agravarem
do dito principal, os ouvirá com ele e proverá nisso como for de justiça, e fará guardar o dito
regimento».
Embora na melhor das intenções, D. João III, talvez por influências contraditórias dos
seus privados e, (ou) em resultado da pressão da Universidade, tomava uma providência
que só viria a servir para diminuir a já enfraquecida autoridade do novo Principal perante a
corrente adversa. A obra empreendida por André de Gouveia não iria manter-se por muito
tempo, os dados do seu destino estavam lançados.
Carlos Jaca 33
O próprio João da Costa também não terá agido com um mínimo de prudência,
entendendo ter chegado a hora de vingar as humilhações sofridas, tomando medidas e
decisões nada aconselháveis, e mesmo provocatórias, que levavam os partidários de
Gouveia Júnior, feridos no seu orgulho, a rebelarem-se contra o “bordalês”, desfeiteando-o,
ameaçando-o e vaticinando-lhe que o seu principalato seria efémero. Assim foi.
Processo inquisitorial acerca da pureza de fé dos “bordaleses”.
A determinação do Rei ao nomear para o principalato João da Costa desencadeou a
maior vaga de conflitos que até então se tinham travado no Colégio. A desordem instalara-
se no corpo docente, João da Costa incompatibilizou-se com a maioria dos “parisienses”, o
ambiente era de “cortar à faca”, com professores repreendidos, cenas incríveis em que todas
as baixezas vieram a “lume”, com insultos e, até, ameaças de morte.
A fim de ostracizar os mestres “bordaleses”, “arrumando” com os seus Lentes mais
afamados para os cárceres do Santo Ofício, e dispersar os restantes, os “parisienses”,
aproveitaram a afronta sentida por Gouveia
Júnior, desde que tivera de entregar o
governo do Colégio a João da Costa, para o
persuadir de que a sua substituição fora
provocada pelos mestres de Bordéus. Tanto
bastou para que o sobrinho querido de
Gouveia Sénior denunciasse os
«bordaleses”, «uns perdidos», suspeitos de
heresia, ao Cardeal-Infante D. Henrique, Inquisidor Geral que, por provisão de 17 de
Outubro de 1549, ordenou imediatamente um inquérito ao Licenciado Brás de Alvide, em
Paris, para se informar do passado dos acusados e ao Doutor Ambrósio Campelo a
instauração de um processo na Inquisição de Lisboa.
Ao tomar conhecimento da denúncia contra os professores do Colégio das Artes, o
Santo Ofício actuou cautelosamente, respeitando o preceito de não ordenar a prisão de
incriminados baseando-se apenas nas declarações de uma única testemunha, deixando,
deste modo, os acusados, provisoriamente, em liberdade. Para além da denúncia ter sido
apresentada particularmente ao Cardeal – Inquisidor, nitidamente declarada pelo ódio, e por
isso não foi registada, também os acusados não eram quaisquer hereges anónimos, mas
sim humanistas de renome europeu. É que, se a Inquisição, embora infringindo o preceito
Carlos Jaca 34
legal, os tivesse encarcerado e as acusações não viessem a ser provadas o Tribunal poderia
vir a ser afectado no seu prestígio.
Refira-se a circunstância do Cardeal, e futuro rei, ter determinado a recolha de
testemunhos primeiramente em Paris e só posteriormente em Portugal. Este critério poderá,
eventualmente, explicar-se pelo facto, ou conveniência, em manter os acusados a “leste”
das diligências da Santa Inquisição mas, fundamentalmente, parece dever-se à convicção
de que as infracções mais graves dos mestres teriam sido cometidas em França, pois,
naturalmente, em Portugal o receio de ser confirmada a fama de que vinham precedidos tê-
los-ia aconselhado a ser mais cautelosos.
Sublinhe-se, ainda, numa altura em que Teive, João da Costa e Buchanan se
encontravam já privados de liberdade, Marcial de Gouveia, terá declarado ao parente Diogo
de Gouveia, que não o Moço, professor em Coimbra, que «estes três mestres estavam
presos por coisas que fizeram em Bordéus havia catorze ou quinze anos». Considere-se
que, até mesmo para este odiento adversário dos “bordaleses”, a prisão dos referidos
mestres não era justificada por delitos praticados em Portugal.
Concluída a devassa (investigação) na capital francesa, em data não indicada, Brás
de Alvide enviou os autos ao Cardeal D. Henrique, enquanto, em Lisboa, o notário da
Inquisição António Rodrigues fez chegar os autos conclusos ao Inquisidor- Geral, em 27 de
Junho de 1550.
Diogo de Teive, João da Costa e Buchanan nos cárceres do Santo Ofício. – Ao receber
os autos da devassa provenientes de Paris, o Santo Ofício ficou na posse de acusações cuja
gravidade constituíam uma base segura para dar seguimento ao processo, tanto mais que
as testemunhas interrogadas, na generalidade, indicavam os “bordaleses” como fortemente
suspeitos de protestantes e, um deles, até de ateísmo.
Os autos referenciavam apenas cinco Lentes, João da Costa, Buchanan, Teive, Guérente e
António Mendes. Porém, dos “bordaleses” referidos os dois últimos saíram da devassa
menos comprometidos que os colegas e, assim, os juízes da fé apenas decidiram levar a
cabo a prisão de João da Costa, Diogo de Teive e George Buchanan, o que aconteceu em
Agosto de 1550. No entanto, considerando que, se no decorrer dos processos, surgissem
revelações de maior gravidade para os restantes mestres, a qualquer tempo seria oportuno
serem chamados a “capítulo”. Só que, Guérente e Nicolau de Grouchy, já “chamuscados”, e
sabendo-se debaixo «d´olho», antes que o Santo Ofício lhes batesse à porta, acharam por
bem passar à França.
Carlos Jaca 35
Dois meses após a detenção dos três mestres “bordaleses”, D. João III, ao visitar
Coimbra, e inteirando-se da situação do Colégio, nomeou Principal da Instituição, o Lente de
Sagrada Escritura, Paio Rodrigues de Vilarinho, teólogo “parisiense”, homem de toda a
confiança, de espírito moderado e abertura de ideias. Porém, mesmo chamando Vicente
Fabrício e André de Resende «não conseguiu manter nem o corpo docente, nem o ensino,
nem a actividade formativa do Colégio, no alto nível que Mestre André lhe dera».
Posição da Universidade. Reacção de Martim Aspilcueta, o Doutor Navarro. – Embora
o Colégio das Artes estivesse, ao tempo das prisões, já integrado na Universidade, não se
conhecem, pelo menos oficialmente, que o reitor e os conselhos universitários tivessem
empreendido quaisquer diligências a favor dos culpados, ainda que lhes devesse interessar
que os processos não prosseguissem e se reabilitassem os réus.
Em toda a documentação universitária não há qualquer referência às prisões. Curiosa e
significativamente há uma carta do reitor Frei Diogo de Murça a D. João III, escrita
precisamente no mês em que se efectuaram as prisões, e quando o assunto em questão era
“badalado” em toda a cidade de Coimbra, carta essa referindo muitas e minuciosas
informações respeitantes à vida académica, mas sem qualquer alusão a um acontecimento
em que estavam em causa três dos mais notáveis mestres de uma Instituição subordinada à
autoridade do prelado universitário.
Frei Diogo de Murça, monge jerónimo, antigo escolar de Salamanca e Lovaina, reitor da
“Alma mater” conimbricense, tinha boas relações, pelo menos com Diogo de Teive, e não é
de rejeitar que no seu íntimo até partilhasse da posição espiritual dos “bordaleses” sem que,
no entanto, o possamos admitir peremptoriamente. Porém, sabe-se que os catálogos da
livraria na posse de Frei Diogo de Murça registavam obras de Lefèvre d’Étaples e um
significativo número das de Erasmo, e entre as destes autores três expressamente
condenadas em Portugal pelo rol dos livros defesos (proibidos) pelo Cardeal D. Henrique,
em 1547.
Louvável, e até corajosa, foi a atitude do insigne mestre e teólogo espanhol Martim de
Aspilcueta, o Doutor Navarro, que não esqueceu o infortúnio dos colegas do Colégio das
Artes. Este famoso canonista, homem de grande integridade moral, decidiu escrever à
Rainha D. Catarina, por quem tinha enorme apreço, sensibilizando-a para a gravidade do
que se estava a passar, movido, sem dúvida, pela amizade que o ligava a réus de tão alta
categoria, mas também pela defesa do prestígio da própria Universidade.
Carlos Jaca 36
Assim, por carta de 8 de Setembro de 1550, solicitava-lhe a intervenção a favor dos
mestres encarcerados «no para que las culpas, si las tienen tales, no sean castigadas», mas
sim para no caso de os delitos serem do teor que se afirmava em Coimbra, em breve
recuperassem a liberdade de modo a que «non se acabe de infamar esta universidad, hora
que esta ya harto manchada». Referia, ainda, que tanto na Península como fora dela, o
acontecimento causara efeitos negativos na reputação da Universidade, havendo uma única
solução para remediar esse dano: «procurar que esses maestros, si no tienen culpas, o no
tan graves, vuelvan a ca a enseñar, como soliam, por algunos meses y esto cumplia a la
honra de los mesmos».
Navarro terminava o notável apelo à Rainha declarando ter agido impulsionado pela
«buena voluntad y amor, que tengo a la universidad de Coimbra y su buena fama» e pelo
desejo de que todos os grandes letrados servissem com boa fama a Deus.
O apelo de Martim Aspilcueta não bastou para libertar os mestres “bordaleses” da
prisão, pois não era fácil travar a “engrenagem” inquisitorial, já em movimento, mas, talvez, a
súplica não tenha sido de todo em vão, e mais tarde tivesse influído na protecção
dispensada por D. Catarina a Diogo de Teive.
Sentença.
Ainda não tinha decorrido um ano completo sobre as prisões dos três acusados, o que não
se pode considerar tempo excessivo atendendo às formalidades processuais da Inquisição e
à necessidade de interrogatórios não só em Lisboa, Évora e Coimbra, mas também em
Paris, ouvindo elevado número de testemunhas de acusação e de abono, e já antes de
findar Julho de 1551, o tribunal lisboeta do Santo Ofício lavrara as sentenças condenatórias.
Delitos imputados aos três bordaleses nas sentenças. Dos três incriminados Buchanan
foi considerado o mais comprometido, visto ter confessado praticamente todos os delitos de
heterodoxia referidos na sentença. Entre outros, reconheceu ter andado três anos afastado
da Igreja católica, hesitando e duvidando em matérias de fé e perfilhando, muitas vezes,
doutrinas luteranas. Dos dois portugueses os juízes não encontraram nos autos provas
conclusivas para os declararem implicados em heresia formal, limitando-se a dá-los como
suspeitos na fé, sendo que Diogo de Teive era considerado como o menos comprometido e,
por isso, condenado apenas como suspeito “de levi”, «por pronunciar muitas palavras como
quem não pensava bem das constituições e leis da Igreja; por manter relações com
Carlos Jaca 37
numerosas pessoas de crenças duvidosas» e ainda o mais que mostravam os autos. A João
da Costa declararam-no suspeito “de vehementi”, «por andar duvidoso e perplexo durante
dias acerca da existência do Purgatório; por possuir livros condenados e de autores
heréticos ou suspeitos; por dizer certas palavras próprias de que não julgava bem da Igreja;
por se servir muitas vezes sem nenhum escrúpulo, de carne na Quaresma e dias defesos,
embora de saúde e boa disposição», bem como pelo mais que constava dos autos.
Comparando os delitos referidos nas
sentenças dos três lentes do Colégio das Artes,
com aqueles que lhes foram imputados no
decurso dos processos, constata-se, que ao fim
e ao cabo, os juízes limitaram-se praticamente a
considerarem como provados os que foram
confessados pelos próprios réus, além do crime
de João da Costa possuir, sem justificação,
livros proibidos factos que, obviamente, não se
podia contestar ou ocultar.
Atenuantes consideradas nas sentenças. –
Aos crimes dos mestres dados como provados,
os juízes levaram em conta as circunstâncias
atenuantes a “aliviá-los”. A Jorge Buchanan
consideraram a seu favor o facto de logo ter
reconhecido as culpas, pedindo para elas o
perdão de Deus e a misericórdia da Igreja,
dando muitas provas de arrependimento e,
ainda, «o mais que parecia depreender-se dos
autos». Diogo de Teive e João da Costa, menos comprometidos, os juízes tiveram em
atenção a “qualidade da prova”, as suas confissões e defesas, «e o mais que parecia
mostrarem os autos».
Muito provavelmente, ou de certeza, os membros do júri ao referirem como
atenuantes as defesas dos réus ter-se-ão rodeado nos depoimentos das testemunhas de
abonação, cujo peso não deixaria de ter enorme influência, pela categoria de muitas delas e
pela convicção que demonstraram acerca da inocência e ortodoxia de Teive e João da
Costa. Acrescente-se, também, que os juízes tiveram em mente a “prova da justiça”, «ou
Carlos Jaca 38
sejam os testemunhos de acusação, por reconhecerem os defeitos de que enfermavam,
sobretudo o de, pelo menos em grande parte, os ditarem o ódio, por vezes confessado nos
depoimentos, de adversários dos mestres».
Penas aplicadas e abjuração (renúncia) dos erros doutrinários. – Considerados
culpados passaram, então, os juízes a decretar as penas obrigando os réus a abjurar.
Publicadas, nas audiências de 29 de Julho de 1551, as sentenças aos professores do
Colégio das Artes, ali mesmo, na casa do despacho do tribunal, perante os inquisidores D.
Rodrigo Pinheiro e Fr. Jorge de Santiago, e os deputados do Santo Ofício, os réus fizeram
as abjurações impostas. De facto, os condenados declararam prestá-las de própria e livre
vontade, mas essas palavras não passariam de forma eufemística para coonestar (dar
aparência honesta) uma coacção, visto que se recusassem abjurar de qualquer dos erros
imputados, «inexoravelmente iriam a torrar no queimadeiro, como hereges pertinazes».
Buchanan e João da Costa, com a mão sobre os Evangelhos, prometeram abjurar de
todas as heresias e erros; Teive, do mesmo modo, prometeu uma declaração de fé católica,
afirmando especialmente crer e confessar que a Igreja podia fazer constituições, que
obrigavam os fiéis a cumpri-las sob pena de pecado mortal, e prometeu renegar a heresia
contrária, em que os juízes o consideraram leve suspeito.
Os mestres prometeram, ainda, afastarem-se de todas as heresias, e especialmente
renunciarem aos erros dados nas sentenças como provados. Seguidamente, pronunciaram
profissão de fé católica, jurando obediência ao Pontífice e seus sucessores e denunciarem
todos os hereges e não se lhes juntarem.
Por último o Tribunal do Santo Ofício condenava os Lentes “bordaleses” à reclusão
em mosteiros, que lhes serviriam de cárcere por tempo indeterminado, ao arbítrio dos
inquisidores e dedicando-se a práticas piedosas.
Efectivamente, realizadas as cerimónias das abjurações, os inquisidores
determinaram, de imediato, o destino a dar aos mestres condenados, entregando-os,
conforme o disposto nas sentenças, aos mosteiros onde cumpririam as penitências,
escolhendo-lhes para cárceres transitórios três dos conventos de Lisboa.
Diogo de Teive foi enviado para o Mosteiro de Belém, um dos centros religiosos de
maior fama em Portugal pela sumptuosidade e beleza artística, panteão da família real, e
sede de congregação de elevado nível cultural, pois ao seu prior cabia a dignidade de
provincial dos frades Jerónimos, ali dando entrada dois dias após a abjuração, em 31 de
Carlos Jaca 39
Julho de 1551. A João da Costa e Buchanan foram destinados para reclusão temporária,
respectivamente, o Convento de Santo Elói e o de São Bento.
Indultos. Libertação. – Menos de um ano passado sobre a prisão, os acusados saíram em
liberdade. Atendendo à natureza da condenação, o primeiro dos três mestres a receber o
indulto foi Diogo de Teive. Ao fim de mês e meio de “hospedagem” no Mosteiro, o Humanista
bracarense dirigia uma súplica ao Cardeal - Inquisidor, invocando o tempo de reclusão no
convento, a leveza das culpas e sentir-se bem arrependido delas, acrescentando encontrar-
se ali muitas vezes doente de “cólica”.
A refoçar a súplica, também o provincial e um religioso do Mosteiro, Frei Miguel, escreveram
ao Inquisidor – Geral a darem as melhores informações de Diogo de Teive. Dadas as razões
apresentadas, o Cardeal entendeu que era de atender o pedido, porém não querendo tomar
só por si a resolução propôs a situação aos deputados do Santo Ofício, que informados do
comportamento «muito virtuoso, humilde e resignado no sofrimento, assistindo aos ofícios
divinos com grande devoção, e comungando algumas vezes, pelo que todos os religiosos se
encontravam muito edificados com a sua vida naquela casa».
Assim, em 22 de Setembro, era passada uma provisão que autorizava Diogo de Teive
a abandonar o Mosteiro, recuperando a liberdade, menos de dois meses após a
condenação.
João da Costa e Buchanan, mais comprometidos, continuaram a cumprir as
penitências por mais algum tempo. O certo, é que em Dezembro do mesmo ano (1551), ou
por súplica dos mestres, ou por intercessão de alguém poderoso e, necessariamente, pelo
seu comportamento, o Cardeal autorizava que ambos os presos pudessem deixar os
mosteiros, mas com a limitação de lhes não ser permitido sair de Lisboa, sem sua
autorização. Porém, acrescentava, se o inquisidor Frei Jorge e os deputados dessem o seu
aval a fim de levantar a interdição, autorizá-los-ia a passar as respectivas provisões.
A sugestão foi aceite. Em 4 de Fevereiro de 1552, o Inquisidor permitia que João da
Costa poderia sair livremente para onde desejasse, mas com a limitação de não se ausentar
do Reino sem primeiro o comunicar ao Cardeal.
Buchanan, naturalmente, teve de esperar ainda umas semanas pela liberdade total e,
assim, só em 29 de Fevereiro lhe participaram que D. Henrique «havia por bem de dispensar
com ele de todo para se ir embora». Isto parece dar a entender que os inquisidores o
queriam ver longe da vista e, por conseguinte, a sua saída de Portugal, talvez para evitarem
Carlos Jaca 40
mais preocupações. De qualquer modo, foi aconselhado a que, de futuro, se mostrasse bom
cristão, a falar sempre com «pessoas de bem e virtuosas», a confessar-se com frequência e
a comungar, o que Buchanan, obviamente, prometeu, só que o fez com a “sinceridade” que
é de calcular.
Brandura da Inquisição nas penas aplicadas.
Até aqui já se percebeu claramente que João da Costa, Diogo de Teive e Jorge
Buchanan foram tratados no Santo Ofício com consideração e benevolamente.
Tendo em consideração os ideais religiosos praticados à época no nosso País e aos
métodos e finalidade do Santo Ofício, poderá causar alguma estranheza a benignidade dos
seus juízes em face de réus tão comprometidos. Consideradas as suas culpas,
nomeadamente as de Buchanan que eram gravíssimas e, ainda, comparados os seus casos
com os de muitos outros que passavam pela Inquisição, salta à vista que o severo tribunal
usou de muita clemência para com eles.
Recorde-se que os três “bordaleses”
deram entrada nas prisões do Santo Ofício
já altamente indiciados, pelos testemunhos
da devassa de Paris, de luteranos e por via
disso mandados encarcerar pelo próprio
Cardeal. Após estas acusações outras se
seguiram no decorrer dos processos, pelos
depoentes interrogados em Portugal,
embora muitas delas tivessem sido
refutadas o que, neste caso, segundo o direito inquisitorial, era-lhes aplicado o tormento
para esclarecer as divergências e dúvidas, situação a que foram poupados.
Basta dizer-se que as culpas das quais os mestres não puderam ser ilibados, só por
si eram mais que suficientes para incorrerem em severas condenações, se tivessem sido
julgados por juízes menos benévolos. Só os delitos confessados por Diogo da Teive e João
da Costa, noutras circunstâncias, seriam o bastante para os considerar hereges formais. O
próprio Buchanan, considerado pelos juízes como afastado do catolicismo e incorrido em
erros luteranos, foi apenas condenado na reclusão num convento e não, como seria de
esperar, a cárcere perpétuo. E mais, a este propósito, e já foi referido, até nos lugares para
onde foram enviados, e onde cumpriram penitências, não deixou de se manifestar a
Carlos Jaca 41
benevolência dos inquisidores, porquanto, não foram enviados para afastados e austeros
conventos da província, mas sim para mosteiros de Lisboa. João da Costa foi encontrar em
Santo Elói, como religioso, seu irmão, Bartolomeu da Conceição, e Buchanan, em São
Bento ofereceram-lhe condições para continuar uma obra há muito iniciada, e que viria a
alcançar enorme expansão através de inúmeras edições.
Motivos que levaram os Inquisidores a proceder com clemência. - Sem dúvida que as
circunstâncias verificadas na época determinaram o procedimento dos inquisidores em
relação ao julgamento dos três “bordaleses”.
Por este tempo, meados do século XVI, o Santo Ofício nunca levou ao máximo rigor o
julgamento de outros letrados que haviam caído sob a sua alçada como suspeitos de
protestantismo, não lhes aplicando o tormento, não os condenando à relaxação do braço
secular (entregar o réu condenado pelo Santo Ofício à justiça civil para aplicação da pena
capital que era a morte na fogueira), ou nem sequer à abjuração em auto de fé. Mais que por
compaixão com os réus, terá funcionado a prudência e os interesses do tribunal.
Recorde-se, aqui, e com toda a justiça, que o eminente canonista Martim de
Aspilcueta Navarro, anteriormente à carta que escrevera à Rainha em favor dos três mestres
encarcerados, propusera, com a liberdade que o seu prestígio lhe permitia, ao Conselho da
Inquisição de Castela, «não se dever encarcerar, ou dar a conhecer publicamente como
herege, nenhum letrado de fama, antes de secretamente se buscar emendá-lo, pelo prejuízo
que daí aos que levianamente se persuadiam, de haver alguma verdade naquilo que um
grande letrado afirmava apesar do risco de o prenderem». Os membros do Conselho parece
terem levado em consideração o juízo do Doutor Navarro.
Além dos motivos acabados de expor, e que certamente não deixariam de ser
ponderados, outra razão contribuiria para convencer os juízes a proceder com clemência em
relação aos “bordaleses”, porquanto, a condenação dos mestres a penas pesadas
redundaria em desabono de instituições e de pessoas da mais elevada categoria.
De facto, para a Universidade e para o Colégio das Artes, já tão abalados com a
prisão dos Lentes, caso os condenassem a figurar em autos de fé, ou a permanecerem
encerrados longos anos nos cárceres, as duas instituições não deixariam de sentir
fortemente os efeitos negativos dessas decisões.
Situação desconfortável para os juízes referia-se ao facto de não serem só os três
mestres que estavam em causa, mas também todos aqueles que, incluindo o Rei,
contribuíram para a sua vinda numa altura em que já eram apontados como suspeitos.
Carlos Jaca 42
Impondo severos castigos, e sabendo-se como se processou o encaminhamento dos
mestres de Bordéus para Portugal, o prestígio do Monarca não deixava de estar altamente
comprometido, pois cabia-lhe inteira responsabilidade na sua vinda, confiando-lhes a
direcção e o ensino no Colégio.
D. João III, que promoveu o estabelecimento do Tribunal da Inquisição em Portugal,
não poderia ignorar, pelo menos totalmente, serem os mestres que ele com tanto empenho
contratava em Bordéus considerados por muitos em França como protestantes. Para além
do obstinado Diogo de Gouveia Sénior, que nunca “desarmava” nos ataques,
nomeadamente, ao sobrinho André, sabe-se, e com situações concretas, que por outras vias
chegaram rumores do que corria além Pirenéus acerca das crenças dos professores do
Colégio da Guiena. O próprio Jorge Buchanan, antes de partir para Portugal, julgou de boa
política justificar-se a D. João III dos versos satíricos dirigidos, em tempos, contra os
franciscanos. Outros exemplos, mais elucidativos e graves, poderiam ser dados a conhecer.
Também o Inquisidor – Geral, Cardeal D. Henrique, irmão do Rei, não deixou de ter
algumas culpas no”cartório”, pois pertencia-lhe certa responsabilidade na vinda de homens
tão suspeitos. Embora lhe tivessem chegado aos ouvidos situações de certo modo
comprometedoras, e até casos relacionados com o Colégio da Guiena testemunhados no
Santo Ofício, antes da vinda dos “bordaleses”, não se conhece que da sua parte tenha
havido qualquer tipo de oposição.
O futuro dos três “bordaleses”. – Ninguém, por certo, estranharia que, embora
condenados a penas relativamente leves, o facto de terem passado pelos cárceres da
Inquisição seria o bastante para que os três Lentes penitenciados fossem objecto de alguma
ou, até, total marginalização. Tal não se passou, antes pelo contrário.
Curiosamente, não deixa de ser surpreendente mais esta atitude de D. João III, cuja
psicologia, dizem, «continua ainda hoje um mistério por desvendar».
Quando Jorge Buchanan, liberto pelo Santo Ofício rotulado de herético, optou por sair
de Portugal, o Rei propôs-lhe que ficasse, prometendo-lhe um emprego “digno da sua
pessoa”. Buchanan esperou… “sentado”. E como nesse tempo, tal como hoje, se calhar o
desemprego já era muito, e tratava-se de uma promessa política, D. João III não atava nem
desatava, o escocês partiu para Inglaterra, donde passou à França. Mais tarde regressou ao
seu país, tornando-se protestante e membro da Igreja Reformada da Escócia.
Carlos Jaca 43
Recuperada a liberdade, tanto João da Costa como Diogo de Teive decidiram optar
pelo sacerdócio, a fim de conseguirem um novo modo de vida, até porque os recentes
acontecimentos em que se viram envolvidos não seriam propícios a um regresso à carreira
docente.
De João da Costa muito pouco é conhecido, apenas se sabe que veio a falecer, a 4
de Agosto, como Prior da Igreja de São Miguel, que era a principal, como matriz das quatro
paróquias da, então, vila de Aveiro.
Quanto a Diogo de Teive as informações são bem mais completas. Após a saída do
Mosteiro de Belém partiu para Braga, sua terra natal, onde iniciou a carreira eclesiástica e
recebeu a ordenação sacerdotal.
Por este tempo governava a arquidiocese bracarense D. Frei Baltazar Limpo que,
apesar de ter sido um dos membros do Conselho Geral do Santo Ofício a assinar o
mandado de captura dos três Lentes
“bordaleses”, enviou informações
muito elogiosas ao Cardeal D.
Henrique acerca do antigo mestre do
Colégio das Artes.
O Inquisidor – Geral agradado
pelas informações recebidas, não
terá deixado, certamente, de as
participar ao irmão que, com
surpresa e desencanto dos
“parisienses”, determinou o regresso
do “bordalês” ao Colégio das Artes. E mais, Diogo de Teive não regressava a Coimbra em
situação de subalternidade, pois foi-lhe atribuída a cadeira de maior categoria das
Humanidades, a da primeira classe, de que já fora regente antes do processo e era, agora,
ocupada por outro mestre de renome, André de Resende, o qual preferia a tranquilidade da
sua terra natal, Évora, para onde acabou por se retirar.
De facto, Diogo de Gouveia já era outro homem, tendo agarrado com as “duas mãos”
as oportunidades que se lhe depararam para «louvar o rei, louvar o Santo Ofício e
confraternizar com as suas próprias testemunhas de acusação».
Carlos Jaca 44
Diogo de Teive, Principal. Entrega do Colégio à Companhia de Jesus. (1555) –
Surpreendentemente, ainda outra honra lhe estava reservada: a ascensão ao governo do
Colégio na qualidade de Principal mas, foi-o pela força das circunstâncias.
Que circunstâncias? Ao findar Dezembro de 1554, Paio Rodrigues de Vilarinho deu
por terminadas as suas funções na direcção do Colégio, o que é suposto ter acontecido pelo
facto de estar encaminhada a entrega projectada da Instituição à Companhia de Jesus.
Assim, ou por D. João III pretender poupar o mestre “parisiense” à desagradável situação de
vir a ser ele executá-la por ordem do Monarca, ou o próprio Vilarinho a desejar esquivar-se a
ser ele o transmissor do Colégio à Companhia, o lugar de Principal ficou vago.
Ora, como D. João III hesitasse na resolução a tomar, pois «a dádiva da Escola não foi, em
boa verdade, nem da iniciativa nem sequer da livre vontade do soberano “sino que se la
hicieron hacer”» e também não se efectivava sem demorados preparativos, forçoso se
tornou encontrar um substituto de Vilarinho para a direcção do Colégio.
A escolha recaiu em Diogo de Teive, certamente por ser o Lente mais categorizado
da Instituição, além de que era possuidor de alguma experiência do cargo, pelo facto de o já
ter exercido, provisoriamente, antes da prisão, quando da ausência dos Principais, Diogo de
Gouveia e João da Costa.
Depois, se para Vilarinho seria algo penoso proceder à entrega do Colégio â
Companhia de Jesus, D. João III terá pretendido dar a Diogo de Teive mais uma prova de
consideração, proporcionando-lhe a honra, embora por pouco tempo, de ser o último
Principal da Instituição que o “bordalês” ajudara a criar e prestigiara como mestre e orador.
Independentemente de quem o viesse a dirigir, o Colégio estava “marcado” e só uma
transformação radical o poderia elevar, de novo, a alto nível. A Companhia de Jesus estava
já, então, bem sólida e tinha pelo seu lado personalidades de grande peso tanto na política
como na cultura, como o próprio Inquisidor – Geral, Cardeal D. Henrique, depois do Rei, o
mais poderoso personagem de Portugal. Também a rainha D. Catarina, o Infante D. Luís e
os mestres espanhóis da Universidade de Coimbra, Martim de Aspilcueta e Ledesma
tentavam que D. João III aceitasse a sugestão dos padres jesuítas. António Pinheiro, antigo
bolseiro do Colégio de Santa Bárbara e que adquiriu grande peso político na época, parece
ter sido o «principal agenciador da decisão régia».
O Colégio tinha contra si escândalos recentes, a luta entre os mestres “bordaleses” e
“parisienses”, as prisões, os processos da Inquisição, as culpas confessadas e, até, a
presença de Diogo de Teive no Colégio, após ter sido encarcerado.
Carlos Jaca 45
Porém, outras razões terão sido decisivas: a precariedade dos recursos económicos
da nação, pois o tesouro esgotava-se na euforia dos Descobrimentos e o erário régio era
sobrecarregado pelas despesas de pagamento aos professores, alguns com vencimentos
elevadíssimos. Ora, esta despesa, que não era de somenos, cessaria, de imediato, caso os
jesuítas tomassem conta do Colégio, visto que os mestres seriam eles próprios, além de que
a nação nem sequer ficaria lesada na cedência do edifício do Colégio, uma vez que em sua
troca a Companhia dispunha-se a entregar o Colégio de Jesus.
A resistência de D João III ia progressivamente perdendo força, acontecendo que é
precisamente nesse ano de 1555 que o Cardeal Caraffa, o principal defensor da Contra-
Reforma, assume a direcção da Igreja, com o nome de Paulo III, o qual, dias depois, da sua
eleição, concedeu aos jesuítas poderes excepcionais colocando-os acima dos párocos e dos
prelados, com a faculdade de decidir sobre todos os casos reservados, mesmo os que eram
privados da Sé apostólica. Provavelmente, este reforço de autoridade dos inacianos terá
contribuído para D. João III ceder à pressão que sobre ele exerciam.
Com data de 10 de Setembro de 1555, Diogo de Teive recebe a ordem régia para no
dia 1 de Outubro entregar ao Provincial, Diogo Mirão, o Colégio que D. João III sempre
defendera, e que fora a coroa da reforma dos estudos humanísticos em Portugal.