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1. INTRODUÇÃO
Graciliano Ramos se consagrou na história literária nacional. Escritor,
artista, intelectual e político engajado, o autor publicou romances que passaram a
integrar o cânone literário em nossa ficção e são objeto de múltiplas e constantes
investigações acadêmicas, seja sob a análise autobiográfica, sociológica ou
eminentemente textual. Mas, a obra literária de Graciliano Ramos compreende muito
mais do que os seus romances mais conhecidos pelos leitores e reconhecidos pela
crítica literária. As crônicas do autor são exemplos de bons textos literários que
receberam menos atenção por parte de críticos e acadêmicos, a despeito de todos
os aspectos literários a serem estudados. A elaboração estética das crônicas do
autor é obviamente distinta daquela de seus romances e memórias, mas é inegável
que Graciliano deixou sua boa marca na imprensa, pertencendo ao rol dos inúmeros
escritores renomados em função da escrita de outros gêneros que atuaram como
cronistas, tais como Machado de Assis, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de
Andrade, Vinícius de Moraes e Rachel de Queirós.
No Brasil, a crônica é caracteristicamente conhecida como gênero
fronteiriço entre a literatura e o jornalismo, decorrente da modernização da imprensa
e da popularização dos jornais diários no país no século XIX, que oportunizaram a
criação de novos espaços jornalísticos para uma manifestação artísticocultural leve
e despretensiosa. Dentro desse contexto brasileiro moderno de crônica, Graciliano
publicou seus textos originalmente em jornais e periódicos de Alagoas, do Rio de
Janeiro, capital política e cultural à época, e de Portugal. Ao que parece, Graciliano
iniciou a atividade de cronista em 1915, assinando seus textos sob pseudônimos e,
com alguns pequenos intervalos, contribuiu para jornais até 1952, sendo, a princípio,
“uma atividade voltada principalmente para a obtenção de recursos que
completassem o magro orçamento.”1. Mas mesmo suas crônicas tendo sido escritas
para uma situação temporal específica, como os textos do gênero são produzidos,
1 GARBUGLIO, J. C.; BOSI, A.; FACIOLI, V. Graciliano Ramos. Coleção Escritores Brasileiros. Antologia e Estudos. São Paulo: Ática. 1987. p. 118.
1
as crônicas perduram e tendem a perdurar por um tempo mais longo ainda, pois
foram compiladas em dois livros, ambos publicados postmortem, em 1962: Viventes
das Alagoas e Linhas tortas.
O presente estudo se limitará a estudar Linhas tortas, que conta com
aproximadamente uma centena de crônicas escritas em diferentes momentos da
vida do autor. Nas crônicas reunidas nesse livro, o leitor se depara com um universo
temático extenso, já que Graciliano escreve sobre os mais variados assuntos:
cinema, teatro, religião, hinos nacionais, esmola, realidade nordestina, política
nacional e guerras mundiais, por exemplo. Mas o assunto predominante desse livro
é a literatura, seja através de uma abordagem específica e explícita sobre a
concepção de literatura de Graciliano, seja através de uma abordagem indireta ao
falar sobre concursos, prêmios, mercado editorial e crítica literária.
Essa constante preocupação do autor com os assuntos literários em
Linhas tortas motivou a focar a presente pesquisa nas crônicas em que o autor faz
reflexões diretas sobre o campo literário, objetivando extrair e trazer à luz a
concepção de literatura para Graciliano Ramos. Para tanto, o conhecimento prévio
dos aspectos da trajetória biográfica e da construção da obra do autor enquanto
ficcionista é extremamente relevante.
Do estilo de vida, partiuse da premissa de que o autor foi homem ativo
nas letras, no comércio e na política nacional. Homem público e político, Graciliano
foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, diretor da Imprensa Oficial de
Alagoas em 1930, diretor da Instrução Pública de Alagoas em 1933, tornouse preso
político em 1936, foi membro do Partido Comunista do Brasil em 1945, presidente da
Associação Brasileira de Escritores em 1951 e 1952. Cidadão ativo, Graciliano foi
um escritor engajado com a realidade nacional e “no seu quase século como homem
de letras, fez da sua atividade um permanente motivo de reflexão. Escritor de ficção,
poeta bissexto, teórico da literatura e cidadão envolvido em todas as questões
2
candentes vividas pelo povo brasileiro.”2 E, ainda que os elementos biográficos não
possam explicar a totalidade e grandeza da obra de Graciliano Ramos, porque “a
arte pressupõe algo diferente e mais amplo do que as vivências do artista”3 e seus
textos ultrapassem os limites autobiográficos, ela pode indicar pistas que auxiliam na
compreensão da prática literária do autor, já que literatura e experiência de vida
confundiamse na obra literária de Graciliano, como bem destaca Wander Mello
Miranda.
Literatura e experiência confundemse na obra de Graciliano Ramos (18951953) como se fossem a urdidura de uma trama comum. Romances, memórias, contos e textos circunstanciais parecem repetir a afirmação do escritor – “Nunca pude sair de mim mesmo. Só posso escrever o que eu sou” – chamando a atenção para o espaço autobiográfico em que sua obra se insere.4 (grifos meus)
Além dessa demonstração de comprometimento de Graciliano com a
realidade brasileira enquanto cidadão, da leitura dos romances do autor, também se
depreende a preocupação e o comprometimento com temas sociais e históricos
nacionais de sua época, sem, entretanto, resvalar para a literatura apologética ou
panfletária. Esse estilo de produção do Graciliano, utilizando a arte literária como um
tipo de conhecimento da realidade, será uma das diretrizes deste estudo.
Do estilo literário, além do referido compromisso do escritor com a
realidade históricosocial, o fato de o escritor ser notadamente reconhecido pela
agudeza e precisão de suas frases, pelo poder de síntese dos seus enredos e pelo
exercício minucioso de linguagem, valendose da “poupança verbal; a preferência
dada aos nomes de coisas e, em conseqüência, o parco uso de adjetivos.”5, indica
que a função de literatura defendida por Graciliano em suas crônicas deverá estar
relacionada ao labor técnicoartístico, sendo, essa, portanto, outra diretriz do
presente estudo.
2 ABEL, Carlos Alberto dos Santos. Graciliano Ramos: cidadão e artista. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999. p. 19.
3 CÂNDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. Estudos de teoria e história literária. 5ª Ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional. p. 22.
4 MIRANDA, Wander Mello. Graciliano Ramos. São Paulo: Publifolha, 2004. p. 8.5 BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 41ª ed. São Paulo: Cultrix. 2003.
p.404.
3
Em linhas gerais, essas são as duas vertentes que nortearão o estudo
das crônicas em Linhas tortas para, ao final, se apresentar a concepção de literatura
de Graciliano Ramos. O corpus para essa análise será composto de crônicas em
que o autor faz reflexões diretas sobre a concepção de literatura, excluindose, a
princípio, os textos que somente tangenciam o tema. Mas, por ser oportuno, ao final
do texto será feito um resumo das demais crônicas sobre o tema literário e que
tratam preponderantemente da crítica literária, do mercado editorial, de concursos,
para complementar o entendimento sobre a visão de literatura para Graciliano.
2. A CRÔNICA NA OBRA LITERÁRIA DE GRACILIANO RAMOS
Graciliano Ramos iniciou a carreira de escritor como cronista e ao
longo de toda sua vida, com algumas pausas e intervalos, deu prosseguimento à
atividade literária e colaborou com jornais e periódicos.
Inicialmente, em 1915, Graciliano assinou suas crônicas sob
pseudônimos, tais como G.R, J. Calisto e R.O, por talvez crer que a crônica
possuísse status “menor” dentre os gêneros literários. A par dessa hipótese, o
presente trabalho somente apresenta esse costume do autor, sem, contudo,
pretender esgotar as possibilidades de significação da adoção de pseudônimos, até
porque, segundo Brito Broca, à época em que Graciliano adotava pseudônimos nas
suas crônicas, tal atitude era modismo dentre os literatos, conforme se depreende
da leitura do seguinte trecho: “os pseudônimos estavam em moda na época e nas
cidades pequenas muita gente deles se utilizava para intrigar os leitores, pois a
identificação nem sempre se fazia com a facilidade que se pode imaginar.” 6
6 BROCA, Brito. Prefácio. Linhas tortas. 5ª Ed. São Paulo: Martins. 1972. p. 910.
4
Ricardo Ramos confessa que em conversa com seu pai, Graciliano
teria se oposto à publicação dessas crônicas assinadas sob pseudônimos por crer
que não sobrariam textos de boa qualidade literária, bem como também alerta o filho
quanto à qualidade dos textos publicados com as iniciais G.R e R.O:
Às vésperas de morrer, na linha das disposições finais, ele me instruiu a respeito de sua obra juvenil e avulsa, ao que escrevera antes do aparecimento do seu primeiro livro. Foi taxativo: “O que assinei com meu nome, pode publicar; no que usei as iniciais GR, leia com cuidado, veja bem; no que usei RO, tenha mais cuidado ainda; no que fiz sem assinatura ou sem iniciais não presta, deve ser tudo besteira, mas pode escapar uma ou outra página menos infeliz. Já com pseudônimo não, não sobra nada, não deixe sair.7
Ainda que assim o autor tenha se pronunciado, não se pode cogitar
que suas crônicas não contenham elaborações estéticas, mesmo aquelas
produzidas sob pseudônimos, nem se pode supor que desmereceriam a obra
literária de Graciliano. Ao contrário, as crônicas no mínimo auxiliam na compreensão
da totalidade da obra do autor, como bem destaca Brito Broca:
(...) Embora se trate de uma atividade quase marginal na grande obra do romancista de “Angústia”, a importância que ele adquiriu em nossas letras, não dispensa o conhecimento dessas páginas. O mínimo que elas podem oferecer será um subsídio indispensável para um estudo completo do escritor. Porque tais crônicas marcam, três etapas da vida de Graciliano Ramos e por conseguinte da evolução do seu espírito.8
Na leitura de Valentim Facioli, as crônicas de Graciliano não possuem
as mesmas qualidades dos romances ou memórias, mas, consideradas as
diferenças, há textos do autor que se destacam como obrasprimas no gênero
decorrentes da melhor tradição brasileira no gênero:
As crônicas e artigos de Graciliano certamente não têm a estatura textual de suas melhores páginas de romance ou memória. Ainda assim, em seu conjunto, respeitadas as diferentes condições de produção, circulação e consumo, são escritos que estão de longe de desmerecer o autor. Muitos são obrasprimas no gênero,
7 RAMOS, Ricardo. Lembranças de Graciliano. In: GARBUGLIO, J. C.; BOSI, A.; FACIOLI, V. Graciliano Ramos. Coleção Escritores Brasileiros. Antologia e Estudos. São Paulo: Ática. 1987. p. 19.
8 BROCA, Brito. Prefácio. Linhas tortas. p. 7.
5
continuação segura da melhor tradição brasileira no ramo, cuja fonte principal é Machado de Assis.9
Como romancista, Graciliano é reconhecido, dentre outras
características, pela agudeza e precisão de suas frases e pela constante
preocupação social. O cronista Graciliano também adota a linguagem concisa,
simples e breve nas suas crônicas para abordar temas literários, fazer crítica de
costumes e instigar reflexões sociais, transmitindo ao leitor sua visão peculiar de
mundo. Valentim Facioli define o texto das crônicas de Graciliano como “um texto
quase sempre forte, de termos próprios, alimentado de uma originalidade limitada
pela intenção de fazer o leitor ler de leve, sem, no entanto, deixálo de todo à
vontade, desprevenido e incauto.” 10 Nesse tom corriqueiro de conversa, comum ao
gênero da crônica e despretensiosamente, Graciliano registra sua preocupação
social de modo ímpar.
2.1 DO OFICIAL AO JORNAL
Antes de comentar sobre os livros de crônicas do autor é importante
destacar que a crônica nem sempre teve essa aparência de texto modesto com que
Graciliano já trabalha. Ela não nasceu com esse ar leve, de conversa fiada e
despretensiosa. No início, ela esteve intimamente ligada ao tempo e à história, em
que o cronista era escritor profissional pago pelo Estado para narrar feitos históricos,
registrandoos em livros oficiais, assim como o fez Pero Vaz de Caminha, que
relatou em 1500 a descoberta ao Brasil ao rei D. Manuel. Inclusive, isso nos permite
afirmar que a “nossa literatura nasceu, pois, com a circunstância de um
descobrimento: oficialmente, a Literatura Brasileira nasceu da crônica.” 11
9 GARBUGLIO, J. C.; BOSI, A.; FACIOLI, V. Graciliano Ramos. Coleção Escritores Brasileiros. Antologia e Estudos. p. 118.
10 GARBUGLIO, J. C.; BOSI, A.; FACIOLI, V. Graciliano Ramos. Coleção Escritores Brasileiros. Antologia e Estudos. p. 118.
11 SÁ, Jorge de. A crônica. São Paulo. Ed. Ática, 2002. p.6
6
Esse sentido da crônica como atividade histórica e oficial foi mudando
com o decorrer dos tempos, passando dos livros oficiais às folhas de jornais, da
linguagem formal à coloquial. Mas mesmo na concepção moderna da crônica, assim
entendida como um gênero literário atrelado ao jornalismo, perdura a noção de
narrativa cronológica dos costumes sociais e de fusão de literatura e história.
O cronista, em sua origem, era o guardião da história do povo, dos momentos que mereciam ser registrados para a posterioridade. Cedendo o lugar para o historiador, ele passou a se ocupar do résdochão da história e do jornal. (...) Talvez seja o caso de dizer que o cronista foi promovido de historiador a contador de histórias (ou estórias, como prefere o Guimarães), pois agora as fábulas do cotidiano é que são colocadas em ata, registradas e resgatadas do turbilhão do tempo para adquirirem diversos, múltiplos significados, desde que a crônica consiga superar seu consorte e adversário: o tempo.12
Nesse sentido contemporâneo do termo, em que a crônica é entendida
como “um gênero literário de prosa, ao qual menos importa o assunto, em geral
efêmero, do que as qualidades de estilo, a variedade, a finura e argúcia na
apreciação, a graça na análise de fatos miúdos e sem importância, ou na crítica de
pessoas”13, sua origem está relacionada ao folhetim que começou na França no
século XIX e foi trazido com sucesso para o Brasil. Esse precursor da crônica era
um espaço destinado ao entretenimento do leitor, com narrativas que não se
concluíam no dia da publicação e criavam a expectativa do público em relação à
continuidade do texto.
No contexto brasileiro, a consolidação da crônica na concepção
moderna do termo está ligada diretamente ao avanço da imprensa e à popularização
dos jornais nacionais em meados do século XIX, época em que o jornal oferece
outros atrativos além das notícias cotidianas e passa a incrementar suas folhas com
caricaturas e crônicas, por exemplo, como bem destaca Afrânio Coutinho em:
(...) a crônica vem a incorporarse aos hábitos de nossa imprensa quando se deu o desenvolvimento da imprensa com a sua modernização, ao serem adotadas as ilustrações a pena e os clichês fotográficos, quando se aumenta o número de páginas
12 CRUZ, Dilson Ferreira da. Estratégias e máscaras de um fingidor: a crônica de Machado de Assis. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo. 2001. p. 27.
13 COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. 6ª ed. v. 6. São Paulo: Global, 2003. p. 121.
7
das edições. Dispondo de maior espaço o jornal se enriquece de atrativos e, com o noticiário, o grave artigo de fundo e as seções ordinárias, transforma a crônica em matéria cotidiana, como recreio do espírito, amável e brilhante cintilação da inteligência.14
Nesse sentido, guardadas as peculiaridades da produção, circulação e
consumo da crônica no âmbito jornalístico, os cronistas brasileiros abusam da
liberdade temática e no carisma para conquistar o público e oferecer textos mais
leves do que as notícias, apostando “(...) no abuso da subjetividade e na
desconcentração do texto para criar peças que funcionam como oásis de respiração
e bom gosto no meio das crises e tragédias de um jornal.”15
Contudo, como bem salienta Davi Arrigucci Jr, a crônica brasileira não
se reduz a um apêndice de jornal. Escritores brasileiros renomados utilizaram o
espaço da crônica para desenvolverem textos literários de relevo estético. Nesse
sentido, segue transcrito excerto do texto do referido crítico sobre a relevância da
crônica no Brasil:
(...) seria injusto reduzila a um apêndice do jornal, pelo menos no Brasil, onde dependeu na origem da influência européia, alcançando logo, porém, um desenvolvimento próprio extremamente significativo. Teve aqui um florescimento de fato surpreendente como forma peculiar, com dimensão estética e relativa autonomia, a ponto de constituir um gênero propriamente literário, muito próximo de certas modalidades da épica e às vezes também da lírica, mas com uma história específica e bastante expressiva no conjunto da produção literária brasileira, uma vez que dela participaram grandes escritores, sem falar naqueles que ganharam fama sendo sobretudo cronistas.16 (grifos meus)
Mesmo a crônica tendo se desenvolvido de forma diferenciada no
contexto brasileiro, afastandose do relato histórico e configurandose como gênero
literário específico, muitos críticos a tratam como gênero periférico e menor, não lhe
conferindo notoriedade no campo literário, conforme destaca Antonio Candido no
excerto que segue:
14 Ibidem. p. 123.15 SANTOS, Joaquim Ferreira dos. As cem melhores crônicas brasileiras. Rio de Janeiro:
Objetiva. 2007. p. 16.16 ARRIGUCCI JUNIOR, Davi. Enigma e comentário: ensaios sobre literatura e experiência.
São Paulo: Companhia das Letras. 1987. p. 53.
8
A crônica não é um “gênero maior”. Não se imagina uma literatura feita de cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos grandes romancistas, dramaturgos e poetas. Nem se pensaria em atribuir um Prêmio Nobel a um cronista, por melhor que fosse. Portanto, parece mesmo que a crônica é um gênero menor.17
Apesar de alguns escritores e críticos não creditarem importância ao
gênero no contexto brasileiro, em que a crônica é a “primeiríssima paixão pelas
letras, através dos jornais, de um povo com pouco acesso aos livros” 18, a saga da
crônica nos aproximadamente 150 anos no Brasil é cheia de bons textos literários
que ultrapassam os limites da comunicação em massa e do cotidiano e acabam
adquirindo uma vida mais longa. Davi Arrigucci Jr destaca bem essa persistência da
crônica, que pela qualidade literária tende a ultrapassar os significados imediatos da
historicidade das relações sociais.
Não raro ela adquire assim, entre nós, a espessura de texto literário, tornandose, pela elaboração da linguagem, pela complexidade interna, pela penetração psicológica e social, pela força poética ou pelo humor, uma forma de conhecimento de meandros sutis de nossa realidade e de nossa história. Então, a uma só vez, ela parece penetrar agudamente na substância íntima de seu tempo e esquivarse da corrosão dos anos, como se nela se pudesse sempre renovar, aos olhos de um leitor atual, um teor de verdade íntima, humana e histórica, impresso na massa passageira dos fatos esfarelandose na direção do passado19. (grifos meus)
Nesse mesmo sentido, Antonio Candido destaca a persistência da
crônica na literatura brasileira e também a permanência dos textos por um período
maior do que o instante para o qual foi produzido, especialmente quando reunidos
em livros.
Um fenômeno interessante da literatura brasileira é a persistência da crônica. Antes se chamou folhetim, e sempre achou quem a cultivasse com tão boa mão, que os seus produtos, efêmeros em teoria, se reúnem não obstante com felicidade no livro, resistindo bem à prova deste veículo de escritos destinados a vida mais longa.20
(grifos meus)
17 CANDIDO, Antônio. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas. Ed. Unicamp. 1992, p. 13.
18 SANTOS, Joaquim Ferreira dos. As cem melhores crônicas brasileiras. p. 20. 19 ARRIGUCCI JUNIOR, Davi. Enigma e comentário: ensaios sobre literatura e experiência. p.
53.20 CANDIDO, Antonio. Textos de intervenção. Org. Vinícius Dantas. Ed. 34ª São Paulo: Duas
Cidades. 2002. p. 205.
9
Diante de todo o exposto, podemos verificar que a crônica se
desenvolveu com peculiaridade na literatura brasileira. O cronista brasileiro moderno
se afastou do profissional estatal que fazia relato histórico e também se distanciou
do folhetinista. Ele se aproximou do jornalista, observou os fatos contemporâneos e
as condições de produção, circulação e consumo da crônica e passou a adotar um
estilo próprio de cativar o leitor, de expor sua opinião e principalmente de produzir
bons textos literários. Enfim, essa preocupação estética do cronista moderno
conferiu à crônica brasileira moderna o status de gênero literário específico.
2.2 VIVENTES DAS ALAGOAS E LINHAS TORTAS
Dentro desse contexto de desenvolvimento da crônica moderna no
Brasil é que se inserem as crônicas de Graciliano Ramos, publicadas originalmente
em jornais e revistas do Rio de Janeiro, de Alagoas e de Portugal e reunidas em
dois livros, Viventes das Alagoas e Linhas tortas.
Os textos reunidos no livro Viventes das Alagoas foram publicados
inicialmente na revista Cultura Política, editada pelo Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP), órgão criado em 1939 para controlar, orientar e coordenar a
produção cultural durante o Estado Novo, e também no periódico português
Atlântico. As crônicas desse livro referemse à produção de 1941 a 1944 e foram
publicadas à época com o nome de Quadros e costumes do Nordeste. Quando
reunidas em livro, Jorge Amado sugeriu o título de Viventes das Alagoas à Livrarias
Martins.21
Já Linhas tortas, objeto do presente estudo, é o compêndio de textos
do autor produzidos e publicados em diferentes momentos, no período de 1915 a
1952. As crônicas reunidas nesse livro foram selecionadas por Heloisa Ramos,
21 ABEL, Carlos Alberto dos Santos. Graciliano Ramos: cidadão e artista. p. 22.
10
Ricardo Ramos e James Amado, sendo que a maioria dos textos originais está
arquivada no Fundo Graciliano Ramos, no Instituto de Estudos Brasileiros da
Universidade de São Paulo.
Estruturalmente, esse livro se divide em duas partes, sendo que na
primeira parte as crônicas são escritas para jornais de circulação regional e
assinadas sob pseudônimos, enquanto que, na segunda, são escritas para jornais e
revistas de grande circulação e assinadas com seu nome próprio.
A primeira parte de Linhas tortas abrange o período de publicação das
crônicas de 1915 a 1921. Inclui o início da atividade de cronista de Graciliano Ramos
em 1915, quando suas crônicas são publicadas no Jornal de Alagoas, de Maceió, e
no Jornal Paraíba do Sul, em ambos sob o pseudônimo R.O. E também os textos
publicados entre janeiro e abril de 1921 para o Jornal O Índio, de Palmeira dos
Índios, sob o pseudônimo de J. Calisto. Os textos dessa primeira parte do livro são
numerados por algarismos romanos e totalizam 28 crônicas.
A segunda parte do livro referese às crônicas publicadas
originalmente por vários jornais e revistas no período de 1935 a 1952, em que o
autor Graciliano Ramos assina os textos com seu nome próprio. No decorrer desse
período, o cronista já possui reconhecimento da crítica literária decorrente da
publicação de seus quatro romances iniciais, sendo eles, Caetés em 1933, São
Bernardo em 1934, Angústia em 1936 e Vidas secas em 1938.
Em todo o livro, Graciliano abusa de seu estilo preciso para exteriorizar
seu posicionamento intelectual em relação às condições sociais, econômicas e
políticas do Brasil da época. Os assuntos abordados em Linhas tortas variam desde
reflexões sobre temas frívolos até a crítica de costumes, havendo textos sobre
diversos assuntos, tais como teatro, cinema, religião, loteria, prostituição, futebol,
hinos, semana santa, jornalismo, guerra, corrupção e organização do poder estatal.
11
Contudo, há certa prevalência do tema literário. Das 71 crônicas que
compõem a segunda parte do livro, 40 referemse à literatura explicitamente, seja
sobre produção, mercado, crítica, concursos ou outros assuntos relacionados à
literatura. Assim, podese dizer que Graciliano assume o papel de teorizador acerca
da literatura e também a posição de crítico literário ao utilizar o espaço jornalístico
para fazer crítica de rodapé.
3. REFLEXÕES SOBRE LITERATURA EM LINHAS TORTAS
As crônicas datadas de 1915 e 1921 contidas na primeira parte de
Linhas tortas refletem um escritor mais preocupado com a temática social do que
com a atividade literária. Essa relação se inverte na segunda parte do livro, em que
os assuntos literários predominam nos textos escritos de 1935 a 1952.
Provavelmente esses enfoques temáticos distintos entre as épocas estejam
relacionados com as vivências do escritor, já que na primeira fase Graciliano ainda
objetivava construir uma carreira literária, sem possuir uma produção que
espelhasse seus ideais literários, enquanto que na segunda fase essa carreira já
estava consolidada, podendo ele defender o seu conceito de literatura com base na
sua produção. Assim, para alcançar o objetivo do presente estudo, a fundamentação
das idéias se sustentará especialmente nas crônicas de Linhas tortas publicadas
originariamente nos anos 30 e 40, por haver nesse período mais textos reflexivos do
autor sobre seu ideal de literatura e, inclusive, por se tratar de período peculiar do
romance na história literária nacional, em que tais decênios são lembrados como “a
era do romance brasileiro”.22
3.1 PANORAMA DO ROMANCE DE 30
22 BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. p. 388389.
12
Essa “era do romance” deve créditos à tradição brasileira iniciada no
Romantismo e às inovações marcantes do Realismo, do Simbolismo e do
Impressionismo. As influências desses estilos contribuíram tanto nos aspectos
técnicos quanto temáticos para a produção dos romances de 30 e 40, mas,
sobretudo, essas experiências foram fundamentais na incorporação de temas
nacionais, como bem destaca Afrânio Coutinho:
Sobretudo, no que concerne à seleção dos temas, a incorporação do material brasileiro, seja de fonte regional, seja de origem urbana, foi feita através de uma série de fórmulas, o indianismo, o sertanismo, o caboclismo, os ciclos regionais (sociais e econômicos) da seca, do cangaço, do garimpo, do gaúcho, do cacau, até das cidades e subúrbios.23
Além dessas experiências anteriores que foram fundamentais para a
realização da ficção dos anos 30 e 40, há que se considerar a importante
contribuição do Modernismo, já que o experimentalismo estético do modernismo de
1922 oportunizou aos ficcionistas subseqüentes o uso de uma linguagem literária
diferenciada, como bem destacou Alfredo Bosi ao reconhecer as influências do
modernismo na produção dos romances de 30.
A prosa de ficção encaminhada para o “realismo bruto” de Jorge Amado, de José Lins do Rego, de Érico Veríssimo e, em parte, de Graciliano Ramos, beneficiouse amplamente da “descida” à linguagem oral, aos brasileirismos e regionalismos léxicos e sintáticos, que a prosa moderna tinha preparado. E até mesmo em direções que parecem espiritualmente mais afastadas de 22 (o romance intimista de Otávio de Faria, Lúcio Cardoso, Cornélio Pena), sentese o desrecalque psicológico “freudianosurrealista” ou “freudianoexpressionista” que também chegou até nós com as águas do Modernismo.24 Mas, não obstante essa influência do modernismo de 22, o romance
de 30 não pode ser considerado um natural desmembramento do modernismo,
como se fosse uma segunda fase dessa experiência, até porque já ficou dito que
suas influências diretas são mais longínquas do que o modernismo.
Afora tais contribuições, a produção literária do século XIX também
deixou como legado para os romancistas de 30 e 40 duas tradições aparentemente
distintas na ficção brasileira. Uma tradição se constitui na produção do romance
23 COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. 6ª ed. v. 5. São Paulo: Global, 2003. p. 266.24 Ibidem. p. 385.
13
socialregional, em que predomina a relação do homem com o meio em que se
situa; a outra, na produção do romance psicológico ou intimista, em que predomina a
relação do homem consigo mesmo e seus conflitos em sociedade. Afrânio Coutinho
defende que ambas as vertentes tiveram um ponto de partida em comum: a obra
literária de José de Alencar.25 Já Luís Bueno traz a fala de Jorge Amado em seu
discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, para mostrar a crença do
escritor baiano em dois caminhos de origem distintos: um de José de Alencar e outro
de Machado de Assis.26 Independente da raiz, o fato é que há a tendência à
classificação da ficção modernista, separando a produção romanesca em duas
correntes supostamente autônomas: regionalista e psicológica, definidas por Afrânio
Coutinho nos seguintes termos:
a) Corrente social e territorial. O quadro predomina sobre o homem, seja o ambiente das zonas rurais, com os seus problemas geográficos e sociais (seca, cangaço, latifúndio, banditismo etc.); seja o urbano e suburbano, a vida de classe média e proletariado, as lutas de classes. Adota, de modo geral, a técnica realista e documental.(...)b) Corrente psicológica, subjetiva, introspectiva e costumista. Herdeira do Simbolismo e do Impressionismo, ligada também ao Neoespiritualismo e à reação estética, desenvolvese no sentido da indagação interior, acerca de problemas da alma, do destino, da consciência, da conduta, em que a personalidade humana é colocada em face de si mesma ou analisada nas suas reações aos outros homens.27
Essa polarização da obra nacional, que perpassa a passagem do
século XIX para o século XX, ganha contornos relevantes nos anos 30 e 40,
especialmente devido ao “processo de engajamento pelo qual a intelectualidade
brasileira passou nos anos 30.”28. As transformações históricosociais do período,
tanto no contexto nacional, com o Estado Novo (19371945), como no contexto
internacional, com a II Guerra Mundial, motivaram os escritores desse período,
independente da vertente escolhida, social ou psicológica, a fazerem romances
empenhados com os seus valores, a ponto de Alfredo Bosi dizer que “de um modo
sumário, podese dizer que o problema do engajamento, qualquer que fosse o valor
25 COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. 6ª ed. v. 5. p. 264.26 BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo; Campinhas: Editora da Unicamp. 2006. p. 31.27 Ibidem. p. 275.28 Ibidem. p. 36.
14
tomado como absoluto pelo intelectual participante, foi a tônica dos romancistas que
chegaram à idade adulta entre 30 e 40”29
Por certo que essa divisão da produção romanesca nacional auxilia na
compreensão do estilo literário da época, mas ela também encerra problemas
quando da análise de obras literárias. Isso porque as tendências não se separam
assim tão claramente e existem escritores que escreveram textos literários
fronteiriços, com aspectos tanto do romance socialregional quanto do romance
psicológico, como bem esclarece Alfredo Bosi:
A costumeira triagem por tendências em torno dos tipos romance socialregional/romance psicológico ajuda só até certo ponto o historiador literário; passado esse limite didático vêse que, além de ser precária em si mesma (pois regionais e psicológicas são obrasprimas como São Bernardo e Fogo Morto), acaba não dando conta das diferenças internas que separam os principais romancistas situados em uma mesma faixa.30
Para superar as dificuldades de classificação da ficção modernista em
romance social e romance psicológico, Alfredo Bosi sugere a distribuição do
romance moderno em quatro tendências, de acordo com o grau crescente de tensão
entre o “herói” e o seu mundo:
a) romances de tensão mínima. Há conflito, mas este configurase em termos de oposição verbal, sentimental quando muito: as personagens não se destacam visceralmente da estrutura e da paisagem que as condicionam. Exemplos, as histórias populistas de Jorge Amado, os romances ou crônicas da classe média de Érico Veríssimo e Marque Rebelo, e muito do neoregionalismo documental mais recente.
b) romances de tensão crítica. O herói opõese e resiste agonicamente às pressões da natureza e do meio social, formule ou não em ideologias explícitas, o seu malestar permanente. Exemplos, obras maduras de José Lins do Rego ( Usina, Fogo Morto ) e todo Graciliano Ramos;
c) romances de tensão interiorizada. O herói não se dispõe a enfrentar a antinomia eu/mundo pela ação: evadese, subjetivando o conflito. Exemplos, os romances psicológicos em suas várias modalidades (memorialismo, intimismo, autoanálise...) de Otávio de Faria, Lúcio Cardoso, Cornélio Pena, Cyro dos Anjos, Lygia Fagundes Telles, Osman Lins...;
d) romances de tensão transfigurada. O herói procura ultrapassar o conflito que o constitui existencialmente pela transmutação mítica ou metafísica da realidade. Exemplos, as experiências radicais de Guimarães Rosa e Clarice Lispector. O
29 BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. p. 390.30 Ibidem. p. 390.
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conflito, assim “resolvido”, força os limites do gênero romance e toca a poesia e a tragédia.31 (grifos meus)
Essa classificação não elide as áreas fronteiriças dentro da produção
de alguns autores da época. E, a par da problemática da classificação da ficção dos
anos 30 e 40 em romance socialregional versus romance psicológico, o binômio é
reiterado nos diversos estudos literários do período porque a presença ou não da
realidade brasileira no enredo era costumeiramente utilizada como parâmetro de
qualidade do romance, sendo a presença avaliada positivamente e a ausência,
negativamente, como bem explica Luis Bueno:
O que interessa perceber aqui é que, na base da tradição do romance brasileiro, a maior ou menor proximidade do intelectual em relação à realidade brasileira, mais do que definir duas linhas independentes de desenvolvimento, serve como parâmetro de avaliação das obras. (...) A conseqüência necessária desse estado de coisas é que a “outra” linha de desenvolvimento do romance brasileiro, a que não privilegia o contato direto com essa realidade, fica sendo não uma alternativa, mas um elemento marginal.32
Diante de tal juízo de valor dos escritores da época, durante os anos
30 e 40, o romance psicológico é considerado periférico na produção literária
nacional, havendo uma conseqüente predominância do romance socialregional em
detrimento ao experimentalismo estético e às preocupações intimistas. Nesse
contexto é que Graciliano Ramos se sobressai pela produção original de seus
principais romances: Caetés (1933), São Bernardo (1934), Angústia (1936) e Vidas
secas (1938), destacandose principalmente por ampliar os limites do romance
regional ao construir personagens reflexivos com problemas psicológicos e morais.
Por essa capacidade de conciliar os assuntos regionais com os conflitos
psicológicos e também pelos demais valores artísticos inovadores que o autor
confere aos seus textos é que Alfredo Bosi o reconheceu como “o ponto mais alto de
tensão entre o eu do escritor e a sociedade que o formou.”33.
31 BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. p. 392.32 BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. p. 33.33 Ibidem. p. 400.
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3.2 LITERATURA COMO FORMA DE CONHECIMENTO DO MUNDO
Como romancista, Graciliano demonstrou que sabia fazer essa
conciliação das vertentes da tradição romanesca, apresentando inovações artísticas
sem ter renegado a realidade social brasileira. Enquanto teórico e crítico literário nas
crônicas das décadas de 30 e 40 reunidas em Linhas tortas, Graciliano se deteve a
comentar a produção literária do momento que viveu, defendendo em diversos
momentos o comprometimento dos escritores nacionais com a realidade brasileira e
criticando os ficcionistas que só narravam os fatos contidos na imaginação. A
crônica “Norte e Sul”, de abril de 1937, serve de exemplo desse posicionamento do
autor.
Essa distinção que alguns cavalheiros procuram estabelecer entre o romance do norte e romance do sul dá ao leitor a impressão de que os escritores brasileiros formam dois grupos, como as pastorinhas do Natal, que dançam e cantam filiadas ao cordão azul ou ao cordão vermelho.Realmente a geografia não tem nada com isso. Não podemos traçar no mapa uma linha divisória dos campos onde os cordões cantam e dançam.O que há é que algumas pessoas gostam de escrever sobre coisas que existem na realidade, outras preferem tratar de fatos existentes na imaginação.34
No contexto nacional, o romance socialregional se desenvolveu com
grande relevo no regionalismo nordestino, mas o texto citado deixa claro que
Graciliano não é a favor da segregação da produção literária em romance do norte e
romance do sul, em alusão à generalização de que ao sul cabia o romance
psicológico e ao norte, o romance socialregional. Graciliano afirma que a
diferenciação dos textos literários não pode ser resolvida na delimitação do espaço
geográfico dos enredos ou de seus escritores, mas sim na referência à realidade
brasileira. Além disso, deixa claro que a referência à realidade nacional não exclui a
possibilidade de imaginação, mas os assuntos da ficção se misturam com “as facas
de ponta, chapéus de couro, cenas espalhafatosas, religião negra, o cangaço e o
eito, coisas que existem realmente”35. Na mesma crônica, Graciliano persiste na
defesa de que ao escritor, amigo da vida, cabe relacionar no mundo estético uma 34 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. 21ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 191.35 Ibidem. p. 192.
17
visão crítica das relações sociais brasileiras, porque “os inimigos da vida torcem o
nariz e fecham os olhos diante da narrativa crua, da expressão áspera”36. Ainda
critica esses “inimigos da vida” preocupados somente com os problemas
psicológicos que defendem enredos, personagens e conflitos distantes do diaadia
do leitor brasileiro e “querem que se fabrique nos romances um mundo diferente
deste, uma confusa humanidade só de almas, cheias de sofrimentos atrapalhados
que o leitor comum não entende. Põem essas almas longe da terra, soltas no
espaço.”37 Essa alusão específica do autor aos personagens com “almas longe da
terra”, de forma depreciativa, denota exatamente a importância que o mundo real
possui no juízo de valor de Graciliano.
Em outros momentos dessa mesma crônica, fica claro esse
engajamento do autor nos preceitos da literatura social, repulsando os autores que
renegam nossa realidade e “são delicados, são refinados, os seus nervos sensíveis
em demasia não toleram a imagem da fome e o palavrão obsceno”38 e para os quais
“a miséria é incômoda”39, apesar de fazer parte do nosso diaadia. Ao final e com
tom agudo, Graciliano incorpora a voz dos seus criticados e parece reproduzir o tom
de ordem que os romancistas intimistas utilizariam para repudiar a literatura social,
escrevendo “Vamos falar mal de todos os romancistas que aludem à fome e à
miséria das bagaceiras, das prisões, dos bairros operários, das casas de
cômodos”40. Sarcasticamente reproduz o que seria o final de uma oração dos
romancistas intimistas e conclui essa crônica com esse rogar: “E a literatura se
purificará, tornarseá inofensiva e corderosa, não provocará o mau humor de
ninguém, não perturbará a digestão dos que podem comer. Amém.”41
É importante destacar que apesar de Graciliano se posicionar sobre a
importância da temática nacional na literatura brasileira, seu juízo crítico não está
sedimentado somente na defesa do nacional como critério qualitativo dos romances.
36 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 192.37 Ibidem. p. 192.38 Ibidem. p. 192.39 Ibidem. p. 192.40 Ibidem. p. 193.41 Ibidem. p. 193.
18
Ao contrário. O autor aponta como ingênua essa postura de “patriotismo farfalhudo”42
e escreve que “a mania indígena de se comparar o literato cá da terra a um figurão
estrangeiro, hábito inocente e antigo, sempre em moda, é apenas um meio de fazer
crítica e não deve ser tomado a sério.”43. A crítica de Graciliano em diversos
momentos referiase à postura dos autores nacionais de se recusarem a escrever
sobre a realidade histórica e social brasileira e remeterem aos espaços estrangeiros,
ainda que desconhecidos deles, “(...) um sujeito, sem nunca sair do Rio de Janeiro,
imitava a algaravia de Lisboa e procurava assunto para obra de ficção do Egito e da
Índia.”44
Além desse ideal de literatura brasileira social ter balizado toda a
crítica e a própria obra literária de Graciliano Ramos, ele é assunto recorrente em
outras crônicas do autor, como no texto “O romance de Jorge Amado”, de 17 de
fevereiro de 1935. Na abordagem inicial desse texto, o autor critica a literatura
produzida por cidadãos elitistas, a literatura “exercida por cidadãos gordos,
banqueiros, acionistas, comerciantes, proprietários, indivíduos que não acham que
os outros tenham motivo para estar descontentes”45. Assim, para ele, somente os
detentores dos poderes econômicos e políticos pareciam ignorar os problemas da
realidade social brasileira, especialmente os decorrentes da industrialização dos
centros urbanos na década de 30. Para Graciliano, portanto, seriam esses cidadãos
de posses que auferiam lucros, que viviam confortavelmente e que renegavam os
problemas da pobreza urbana, que poderiam fazer uma literatura
descompromissada com os problemas sociais locais e preocupada com “coisas
agradáveis”. Inclusive, o texto inicial da crônica também dá conta dessa idéia:
Há uma literatura antipática e insincera que só usa expressões corretas, só se ocupa de coisas agradáveis, não se molha em dias de inverno e por isso ignora que há pessoas que não podem comprar capas de borracha. Quando a chuva aparece, essa literatura fica em casa, bem aquecida, com as portas fechadas. E se é obrigada a sair, embrulhase, enrola o pescoço e levanta os olhos, para não ver a lama nos sapatos.46
42 Ibidem. p. 254.43 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 361.44 Ibidem. p. 129.45 Ibidem. p. 127.46 Ibidem. p. 127.
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Enfim, é com essas cores que Graciliano pintou o ficcionista
descompromissado com a visão crítica social. Interessante notar que na descrição
desses romancistas Graciliano citou, dentre tantas atividades empresariais
“banqueiros, acionistas, comerciantes, proprietários”, o adjetivo “gordo”, sugerindo a
ausência de fome dessas pessoas. Em “Os donos da literatura”, crônica publicada
em setembro de 1937, portanto, dois anos depois de “O romance de Jorge Amado”,
Graciliano retoma o mesmo adjetivo, inclusive, em grau superlativo para também
depreciar os detentores de capital que se julgavam donos da literatura: “pessoas
razoáveis, bons pais de família, com dinheiro no banco e muita consideração na
praça, homens gordos, gordíssimos”47. Essa escolha da palavra chama a atenção
porque o autor é caracteristicamente reconhecido pela escolha minuciosa e seletiva
dos adjetivos e, portanto, “gordo” deve possuir um significado especial para o autor,
além da simples definição lexical daquele “que tem gordura (tecido adiposo) ou que
tem uma quantidade de gordura acima da usual; obeso, cheio, corpulento”48. Em
oposição, o adjetivo “magro” é bastante utilizado no romance Vidas secas para
definir as agruras físicas dos personagens, a exemplo de “(...) Meteu os dedos finos
pelo rasgão, coçou o peito magro”49, ou “Todos o abandonavam, a cadelinha era o
único vivente que lhe mostrava simpatia. Afagoua com os dedos magros e sujos, e
o animal encolheuse para sentir bem o contato agradável (...)”50 ou ainda “Sentiuse
fraco e desamparado, olhou os braços magros, os dedos finos, pôsse a fazer no
chão desenhos misteriosos.”51 Esses exemplos demonstram o peso de cada adjetivo
para o minucioso Graciliano.
Em “O romance de Jorge Amado”, Graciliano também chama a
atenção para os problemas sociais que parecem imperceptíveis aos olhos desses
escritores “gordos”, que rogam pela literatura corderosa e inofensiva e que só se
ocupam de coisas agradáveis, alertando que: “Nos algodoais e nos canaviais no
47 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 139.48 HOUAISS, Dicionário da Língua Portuguesa.49 RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 31ª ed. São Paulo: Martins. 1973. p. 90.50 Ibidem. p. 94.51 Ibidem. p. 100.
20
Nordeste, nas plantações de cacau e de café, nas cidadezinhas decadentes do
interior, nas fábricas, nas casas de cômodos, nos prostíbulos, há milhões de
criaturas que andam aperreadas.”52
Esse posicionamento e comprometimento de Graciliano em relação à
concepção da literatura social, preocupada com a fome, a seca, as desigualdades
sociais e as agruras e más condições de vida no meio rural e urbano, não pode ser
confundido com a defesa da produção literária panfletária ou apologética. Apesar de
Graciliano ter sido homem público e político filiado ao Partido Comunista do Brasil
(PCB), o autor não utiliza o texto literário para fomentar ideais políticospartidários e/
ou apresentar solução para os problemas sociais. Nesse sentido, inclusive, vale citar
o destaque de Carlos Alberto dos Santos Abel em descrever Graciliano como “Um
político, um político socialista, apaixonado pela humanidade, mas sua literatura não
é panfletária, não trabalha com teses e concepções apriorísticas. Jamais, a pretexto
de fazer literatura, impingenos a sua ideologia.”53 Sobre o assunto, Wander Melo
Miranda afirma que “indiscutivelmente articulado com a prática literária que constitui,
em nenhum momento faz essa prática resvalar para as facilidades do panfleto ou
ceder à sedução das relações imediatas.”54 O entendimento de João Roberto Maia
da Cruz a esse respeito é de que:
Outra questão que merece realce é a da opção do escritor pela separação relativa entre as esferas de sua prática literária e de sua militância política. Como se sabe, Graciliano foi membro disciplinado do PCB. Sua filiação partidária não afetou, todavia, sua independência artística. Jamais esteve na situação daqueles que aceitaram as concepções estreitas do partido a respeito de literatura. Como Drummond, teve lucidez suficiente para não cultivar as ilusões de parte considerável dos escritores que se situavam à esquerda; por isso, nunca pretendeu assumir a função de portavoz e consciência crítica da classe operária. Mostrouse consciente de que os escritores engajados não podiam atingir as massas. Além do que há de ilusório em tal pretensão, isso significaria seguir a rota do rebaixamento estético, pois a obra deveria ser simplificada para facilitar o acesso a sua “mensagem”.55 (grifos meus)
52 Ibidem. p. 128.53 ABEL, Carlos Alberto dos Santos. Graciliano Ramos: cidadão e artista. p. 21.54 MIRANDA, Wander Mello. Graciliano Ramos. p.9.55 CRUZ, João Roberto Maia da. Apontamentos sobre a obra de Graciliano Ramos. Disponível
em: <http://www.ucm.es/info/especulo/numero35/graramos.html>. Acesso em 1º.OUT.08.
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Partindo da premissa de que Graciliano distinguia a esfera literária da
esfera política, evitase qualquer leitura reducionista dos textos do autor e se pode
perceber que assumir uma concepção de literatura engajada, para o autor, não
significa vincular ao texto literário os ideais partidários e sim um empenho na
realidade históricosocial nacional. Sob outro enfoque, essa concepção tornase
bastante evidente na análise da crônica “O fator econômico no romance brasileiro”,
publicada em 15 de julho de 1945. Ao iniciar esse texto, Graciliano já instiga o leitor
sobre a qualidade da produção literária nacional, afirmando que “A leitura dos
romances brasileiros, até dos melhores, quase sempre nos dá a impressão de que
os nossos escritores não conseguem fazer senão trabalhos incompletos.”56. Para o
autor, essa imperfeição se deve à constante ausência de referência aos fatores
externos à obra literária no romance brasileiro, o que prejudica a narrativa, tornando
a inverossímil.
Graciliano afirma que falta aos ficcionistas brasileiros “a observação
cuidadosa dos fatos que devem contribuir para a formação da obra de arte.”57 ,
referindose, nesse momento, aos fatos econômicos, porque os escritores
“abandonaram a outras profissões tudo quanto se refere à economia.”58 Essa crítica
reflete mais um posicionamento do autor em relação à função da literatura. Ao
defender a existência dos fatores econômicos no romance nacional como elemento
fundamental, Graciliano defende que a literatura é um instrumento de compreensão
do homem e do mundo tal como ele é na realidade.
A tônica desse texto é a importância da relação entre a arte e a vida,
especialmente nos aspectos econômicos. Dentre as falhas que podem ocorrer num
romance pela ausência desses aspectos, Graciliano destaca os aspectos materiais
de subsistência dos personagens, o que o faz ironizar sobre a irrealidade e o
mistério da vida de um capitalista, cuja riqueza não se explica, de um agricultor, que
56 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 361.57 Ibidem. p. 362.58 Ibidem. p. 362.
22
não vivencia o cotidiano de suas plantações, e de um operário, que parece não
trabalhar.
Um cidadão é capitalista. Muito bem. Ficamos sem saber donde lhe veio o capital e de que maneira o utiliza. Outro é agricultor. Não visita as plantações, ignoramos como se entende com os moradores se a safra lhe deu lucro. O terceiro é operário. Nunca o vemos na fábrica, sabemos que trabalha porque nos afirmam que isto acontece mas seus músculos nos aparecem ordinariamente em repouso.59
Além desses exemplos na construção dos personagens na sua
individualidade, Graciliano aponta outra falha na vivência dos personagens na
coletividade. Ele aponta a falta de realismo dos romances nacionais por não traduzir
as relações naturais e existentes entre as classes de empresários e trabalhadores,
já que os escritores apresentam “ora o capitalista, ora o trabalhador, mas as
relações entre as duas classes ordinariamente não se percebem”60. Como para
Graciliano essas relações econômicas não são de pólos distintos e independentes,
deveriam ser consideradas com proximidade nos romances nacionais.
João Roberto Maia da Cruz destaca que o autor “criticou com vigor o
déficit que via na literatura brasileira quanto à representação das condições
materiais da existência”61, referindose justamente a esse posicionamento de
Graciliano em relação à ausência de justificativas do modo de produção e circulação
de bens e capitais no interior do romances brasileiros.
Na mesma crônica “O fator econômico no romance brasileiro”,
Graciliano critica os romancistas que se valem de “coisas de natureza subjetiva” na
produção de seus textos e defendem que não desejam ser fotógrafos da vida e nem
reproduzir fidedignamente os acontecimentos da vida. E, então, Graciliano os instiga
perguntando “Mas então por que põem nomes de gente nas suas idéias, por que as
vestem, fazem que elas andem e falem, tenham alegrias e dores?”62.
59 Ibidem. p. 364.60 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 364.61 CRUZ, João Roberto Maia da. Apontamentos sobre a obra de Graciliano Ramos. Disponível
em: <http://www.ucm.es/info/especulo/numero35/graramos.html>. Acesso em 1º.OUT.08.62 Ibidem. p. 366.
23
Por outro lado, ao defender a referência aos acontecimentos sociais e
históricos na ficção, Graciliano defende o posicionamento do romance social e a
função da literatura como meio de conhecimento do mundo, mas refuta a idéia de
pura mimese:
Está visto que não desejamos reportagens, embora reportagens sejam excelentes. De ordinário, entrando em romance, elas deixam de ser jornal e não chegam a constituir literatura. É inútil copiar bilhetes, pedaços de noticiários, recibos, anúncios e cartazes.63
Esperadamente percebese que a realidade que Graciliano defende
nas obras literárias nacionais não se limita à reprodução pura e simples dos
acontecimentos históricosociais. Inesperado seria se o autor apontasse essa
limitação à criação literária ou se alguém assim o interpretasse, até porque, à época
de publicação dessa crônica (1945), Graciliano já havia publicado a maioria de seus
romances e demonstrado que a literatura social e a mimese balizaram sua criação
artística. Inclusive por isso é que Graciliano ficou caracteristicamente marcado na
história literária nacional como autor que ampliou os limites do “realismo absoluto”
para abarcar uma “visão crítica das relações sociais” num tom de protesto, como
bem destaca Alfredo Bosi no texto que segue transcrito.
Mas, sendo um realismo absoluto antes um modelo ingênuo e um limite da velha concepção mimética da arte que uma norma efetiva da criação literária, também esse romance novo precisou passar pelo crivo das interpretações da vida e da História para conseguir dar um sentido aos seus enredos e às suas personagens. Assim, o realismo “científico” e “impessoal” do século XIX preferiram os nossos romancistas de 30 uma visão crítica das relações sociais. Esta poderá apresentarse menos áspera e mais acomodada às tradições do meio em José Américo Almeida, em Érico Veríssimo e em certo José Lins do Rego, mas daria à obra de Graciliano Ramos a grandeza severa de um testemunho e de um julgamento.64 (grifos meus)
Mas, para Graciliano, apontar essa visão crítica das relações sociais
não consiste em condenar ou perdoar os personagens, cabendo ao escritor expor os
fatos e analisálos de um modo distante, sem idéias preconcebidas e moralismo.
63 Ibidem. p. 368.64 BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. p. 389.
24
E o indivíduo que matou os filhos e deu um tiro na cabeça? De que se alimentava esse malvado, a que gênero de trabalho se dedicava? Certamente ele é um malvado. Mas a obrigação do romancista não é condenar nem perdoar a malvadez: é analisála, explicála. Sem ódios, sem idéias preconcebidas, que não somos moralistas.65
Esse posicionamento do escritor engajado a quem compete expor os
conflitos sociais, mas não solucionálos, coadunase com o pensamento do teórico
marxista Engels, no trecho que segue transcrito apud Carlos Alberto dos Santos
Abel:
Os russos e noruegueses modernos, que escrevem excelentes romances, são todos poetas de tese. Mas creio que a tese deve brotar da própria situação e da própria ação, sem que seja explicitamente formulada. O poeta não é obrigado a dar já pronta ao leitor a solução histórica futura dos conflitos sociais que descreve.66
Ao final da crônica “O fator econômico no romance brasileiro”,
Graciliano reitera a importância de se fazer referência ao elemento econômico nos
romances para que se tenha uma obra literária completa, porque para ele “não
podemos tratar convenientemente das relações sociais e políticas, se esquecemos a
estrutura econômica da região que desejamos apresentar em livro”67, enfatizando a
defesa da literatura como forma de conhecimento do mundo e do homem.
3.3 LITERATURA COMO ARTE
Ainda que defenda o engajamento, por crer que a literatura seja um
meio de conhecimento do mundo e do homem, o autor não desconsidera a
concepção de que literatura também é a arte da linguagem. Ao contrário. Graciliano
aponta em diversas crônicas, em especial em “Os sapateiros da literatura” e “Os
tostões do sr. Mário de Andrade”, que o conhecimento e o domínio da linguagem
são essenciais à produção de boas obras literárias. Essas duas crônicas de
Graciliano datam de 1939 e são mais bem compreendidas no seu contexto original
65 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 369.66 ABEL, Carlos Alberto dos Santos. Graciliano Ramos: cidadão e artista. p. 22.67 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p.368.
25
de publicação, devido à polêmica literária instaurada entre o autor e Mário de
Andrade.
A polêmica se iniciou com a publicação da crônica “A palavra em
falso”, de Mário de Andrade, em 06 de agosto de 1939, no Diário de Notícias. Nesse
texto, o autor teceu comentários sobre aspectos de análise de texto literário, usando
como exemplo os textos “Onda raivosa”, de Joel Silveira e “Irmandade”, de Newton
Sampaio. Para ele, esses e outros autores pecam em não se deter pacientemente
na elaboração de seus textos, fazendoos às pressas, com linguagem simples e sem
preocupação estética. Para Mário, o problema não está por si só na simplicidade,
mas na utilização dessa linguagem como “ideal de perfeição literária”68, porque, para
ele, “o ideal, digo mais: a lei moral do artista digno, é o fazer melhor, o esforço
contínuo de se realizar cada vez melhor em sua personalidade.”69
Joel Silveira, autor do livro de contos criticado por Mário de Andrade,
se manifestou sobre o assunto no texto “O tostão e o milhão”, no hebdomadário
Dom Casmurro. Por sua vez, Graciliano também se manifestou sobre o assunto,
através da crônica “Os sapateiros da literatura”, consignando em texto que a crítica
de Mário se restringe a dizer o óbvio: que o escritor deve dominar a linguagem
artística. E, antes mesmo de Graciliano expor a sua opinião sobre o assunto, ele
apresenta esse posicionamento de Mário nos seguintes termos:
Em resumo, o sr. Mário de Andrade sustentou, com citações e argumentos de peso, esta coisa intuitiva: um sujeito que se dedica ao ofício de escrever precisa, antes de tudo, saber escrever. Há tempo o Sr. Rubem Braga, num artigo curto, desprovido de citações e com poucos argumentos, tinha dito o mesmo. Isto é quase uma verdade laplaciana.70
Graciliano concorda com Mário que o literato somente poderá produzir
textos literários se tiver habilidade com a linguagem. Para Graciliano, da mesma
forma como um sapateiro tem que ter o conhecimento e a habilidade para fazer
68 ANDRADE, Mário de, Vida literária. São Paulo: Hucitec. Edusp, 1993. p. 9369 Ibidem. p. 9470 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 267268.
26
sapatos, o escritor também deve dominar a técnica da arte literária da palavra. Para
trabalhar com essa idéia, Graciliano faz comparações entre o romancista e o
sapateiro:
Dificilmente podemos coser idéias e sentimentos, apresentálos ao público, se nos falta a habilidade indispensável à tarefa, da mesma forma que não podemos juntar pedaços de couro e razoavelmente compor um par de sapatos, se os nossos dedos bisonhos não conseguem manejar a faca, a sovela, o cordel e as ilhós.71
Graciliano se vale dessa comparação entre o escritor e o sapateiro
para destacar a importância da técnica no desenvolvimento de qualquer ofício. A
dúvida de Graciliano reside em entender por que os rapazes do Dom Casmurro
torceram o nariz à opinião de Mário, já que a necessidade de domínio da linguagem
técnica para fazer a literatura é algo tão certo quanto a necessidade de domínio de
faca, sovela, cordel e ilhós para fazer sapatos. Com fundamento nesse raciocínio,
Graciliano defende que ele e os rapazes do Dom Casmurro são os sapateiros da
literatura, porque utilizam a linguagem para fazer literatura, que é ofício e meio de
sobrevivência, confessando que redigia as crônicas pela remuneração, já “que
dentro de poucas horas serão pagas e irão transformarse num par de sapatos
bastante necessários. Para ser franco, devo confessar que esta prosa não se faria
se os sapatos não fossem precisos.”72
Desse modo, percebese que Graciliano se filia aos ideais de literatura
como arte, como defendido por Mário de Andrade, mas ao mesmo tempo, defende a
forma com que os técnicos da linguagem artística, os sapateiros da literatura,
precisam se manter materialmente. Em oposição a esses sapateiros da literatura,
Graciliano destaca que “certamente há outros literatos por nomeação. (...) indivíduos
que se vestem bem, comem direito, gargarejam discursos, dançam e conversam
besteira com muita suficiência.”73
71 Ibidem. p. 268.72 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 268.73 Ibidem. p. 269.
27
Na seqüência, em 27 de agosto de 1939, Mário de Andrade publicou
outra crônica, intitulada “A raposa e o tostão”, reiterando seu posicionamento sobre
a concepção da literatura como arte, argumentando que a técnica estava sendo
substituída pelo “brilho disfarçador” e o cuidado da forma por uma vaga (e aliás
facilmente intimidada) intenção social.”74, que os escritores estavam se valendo da
fase de apressada improvisação, de despreocupação com a arte para comentar
qualquer assunto pragmático. E, por fim, reforça seu ideal de que “Não há obrade
arte sem forma e a beleza é um problema de técnica e de forma.” E, no caso da
literatura, Mário explica que a compreensão da forma da arte literária é mais difícil
do que a das demais formas de arte, porque “a beleza se prende imediatamente ao
assunto”, já que o material da arte literária é a palavra, que por ter “um valor impuro”
e ser um “elemento imediatamente interessado”, dificulta a distinção entre o que é o
trabalho estético com as palavras e o que é a mensagem contida nas palavras.
Em “Os tostões do sr. Mário de Andrade”, de 1939, mais uma vez
Graciliano concorda com a concepção da literatura como arte defendida por Mário
de Andrade. Contudo, o autor critica o modo como Mário defende esse pensamento,
porque para Graciliano, Mário “dividiu os nossos escritores em duas classes – a dos
contos de réis (...) e a dos tostões”, o que prejudica a boa causa defendida por
Mário. Essa interpretação que Graciliano faz do texto de Mário de Andrade e o seu
posicionamento crítico ficam bem claros ao escrever que
O que nos desagrada nessa questão, hoje morta, é notar que o crítico paulista, colocando em alguns escritores etiquetas com preços muito elevados e rebaixando em demasia o valor de outros, vai tornar antipática a boa causa que defende.75 (grifos meus)
A par da interpretação de Graciliano sobre o texto de Mário, o que nos
interessa destacar nesse momento é a idéia de que Graciliano concorda com a
defesa de Mário de Andrade em relação à valorização do domínio técnico da arte
literária, manifestando expressamente mais um ideal sobre literatura. Essa reflexão
74 ANDRADE, Mário de. O empalhador de passarinho. 4ª Ed. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 2002. p.105.
75 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 272.
28
sobre a literatura como arte volta a ser comentada pelo autor na crônica que encerra
Linhas tortas, intitulada “Uma palestra” e publicada originalmente em fevereiro de
1952, conforme se percebe da leitura do trecho inicial, que segue:
Ouvi, com espanto, um escritor afirmar que, em literatura e noutras coisas, era necessário suprimir a técnica. Não nos disse porquê: referiuse apenas à necessidade. Essa economia de razões levoume a impugnálo do mesmo jeito: declarei, simplesmente, o contrário do que ele declarou.76
Nesse texto, fica bem claro o posicionamento de Graciliano sobre a
técnica literária. Mas em seus pensamentos mais específicos sobre o assunto,
Graciliano escreve que só a técnica não resolve o problema do bom texto literário,
porque se assim fosse “qualquer pessoa alcançaria bom êxito folheando um desses
manuais que nos ensinam, em duzentas páginas, a maneira favorável de
escrever.”77. Em outros pensamentos sobre o trabalho artístico, comenta e
questionase sobre algumas fórmulas prontas para a prosa e para a poesia,
escrevendo que:
Em conversa, um crítico português jogoume esta fórmula: dez por cento de inspiração e noventa por cento de transpiração. Chegame também à memória a receita do espanhol a propósito de versos: maiúscula no princípio, rima no fim, talento no meio.Mas pergunto a mim mesmo se a busca da rima não influirá no talento, se a transpiração demasiada não será vantajosa à inspiração. Acho que sim.78
Postas as reflexões sobre a exata medida da técnica literária,
Graciliano conclui ao final desse texto que cabe ao literato cuidar para trabalhar
artisticamente com as palavras, mas sem cair no pedantismo e na ausência de
clareza, porque “se não conseguimos ser claros, para que trabalhamos? O nosso
interesse é que todas as pessoas nos entendam, de vante a ré.”79 Fica evidente o
quanto Graciliano está distante dos escritores que apostam no hermetismo e na
incompreensibilidade.
76 Ibidem. p. 391.77 Ibidem. p. 392.78 Ibidem. p. 392.79 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 396.
29
Além dos trechos supramencionados extraídos das crônicas de Linhas
tortas para fundamentar a idéia de literatura como arte defendida por Graciliano, vale
citar também a declaração do autor em entrevista em 1948, transcrita na contracapa
da edição de Linhas tortas que consta como referência deste trabalho:
Devese escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou riacho, torcem o pano, molhamno novamente, voltam a torcer. Colocam anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de ter feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.
Desse modo, podese concluir que essa concepção de literatura como
arte defendida por Graciliano não tem a ver com a de “arte pela arte”, em que o
escritor nega qualquer finalidade prática ao texto, não o relaciona com a vida e
defende a arte como primeiro plano. A defesa de literatura como arte para Graciliano
deve ser entendida como trabalho artístico minucioso de escolha de palavras, de
uso preciso das frases e da clareza, mas nunca desvinculada da realidade social.
Enfim, em meio às preocupações sociais, Graciliano também se preocupa com a
produção estética, refletindo e defendendo a literatura como arte em diversos textos
de Linhas tortas.
3.4 OUTRAS LINHAS TORTAS: A CRÍTICA E A VIDA LITERÁRIA
Além das reflexões sobre literatura como conhecimento e arte,
Graciliano também explora o campo literário em suas crônicas reunidas em Linhas
tortas, para refletir e comentar, dentre outros assuntos, sobre o mercado editorial, a
publicação de um novo livro, a construção de um personagem, a Academia
Brasileira de Letras, concursos literários e a crítica literária nacional. Sobre esse
30
último tema, vale transcrever e analisar textos de momentos distintos para
demonstrar o posicionamento irônico do autor.
Na primeira das crônicas citadas, publicada em 3 de junho de 1915,
Graciliano aborda a crítica de rodapé, retratando um crítico literário que, pela
necessidade de trabalhar para dois jornais com posicionamentos institucionais
diversos, se contradiz e se obrigar a ter posicionamentos diferentes sobre o mesmo
tema. Ao iniciar o texto, Graciliano já esclarece que
Escrevi há tempos em dois jornais hebdomadários que se publicavam por aí além. Eu trabalhava por necessidade. Aliás não me sujeitaria talvez a pertencer a duas folhas que pensavam (ou diziam pensar, o que vem a ser o mesmo) de maneira inteiramente diversa. Uma elogiava tudo incondicionalmente. Outra fazia uma oposição sistemática a todas as coisas.Com um bocado de diplomacia, conseguia eu sustentarme de um e de outro lado. Equilibravame. 80
Prossegue o texto, demonstrando um caso concreto em que o crítico
precisou se curvar aos interesses de seus empregadores e, sem realizar a leitura de
um livro, baseado somente nas informações de um amigo, se manifestou em dois
textos de forma antagônica sobre o primeiro livro da senhorita Gertrudes. Em uma
crítica, excedeu as qualidades e na outra, as imperfeições. Reproduziu os dois
textos na crônica e ao final alertou o leitor:
Como vêem os leitores, não poupei à sonetista os encômios que convêm a uma rapariga bonita, nem as acres censuras que todo o crítico que se preza deve atirar a um mau poeta, embora o poeta vista saias e a gente não tenha lido sua obra.A coisa mais fácil do mundo é fazer crítica, fiquem sabendo, principalmente a crítica literária. Eu, pelo menos, acho facílimo. As duas amostras que apresento são um ótimo exemplo. Examinem os senhores.Retirem dali os chavões, galicismos e as tolices, e vejam o que resta...81
Resta clara a opinião de Graciliano sobre a postura do crítico literário,
que em defesa de seu trabalho pode manifestar opinião diversa à sua, recorrendo a
adjetivos, frases, conceitos prontos e chavões típicos da crítica literária, para
escrever sobre livros que não foram lidos e consignar um entendimento que
80 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 50.81 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 53.
31
ultrapassa a sua subjetividade e perpassa a política ideológica do jornal. Não me
parece que o autor critique o fato de o escritor trabalhar para dois jornais com visões
distintas e sim, o arbítrio da crítica literária amparada somente na percepção inicial
do crítico e destituída de uma análise objetiva. Até porque, o autor demonstra já no
início da crônica que os dois trabalhos são o meio de sobrevivência do narrador,
porque o escritor é um profissional. E em outros textos, Graciliano mostra
consciência de que o escritor, o jornalista e o crítico brasileiro não possuem um
reconhecimento salarial pelo seu trabalho e precisam ganhar seu sustento material
de variadas formas, seja possuindo dois trabalhos ou seja como servidor público.
Tanto assim o é, que Graciliano comenta que o literato “não almoça todos os dias,
mas todos os dias escreve algumas tiras”82, e referencia “(...) as dificuldades em que
se acham quase todos num país onde a profissão literária ainda é uma remota
possibilidade e os artistas em geral se livram da fome entrando no funcionalismo
público.”83, ou ainda, solidarizase com os anúncios de um excolega, jornalista e
escritor brasileiro que fez publicar dois anúncios à procura de emprego e donativos,
os quais foram transcritos na crônica “Um amigo em talas” nos seguintes termos:
Intelectual desempregado. Amadeu Amaral Júnior, em estado de desemprego, aceita esmolas, donativos, roupa velha, pão dormido. Também aceita trabalho.(...)Escrevo poesias, crônicas, contos (policiais, psicológicos, de aventura, de terror, de mistério), novelas, discursos, conferências. Sei inglês, francês, italiano, espanhol e um bocado de alemão. Dêemme trabalho pelo amor de Deus ou do diabo.84
Essa opinião de Graciliano sobre a crítica literária descompromissada
publicada em 1915, quando o autor tinha 23 anos, parece ter permanecido na idéia
do autor até pelo menos 1934, já em sua idade madura, quando publicou outra
crônica sobre o assunto, intitulada “As opiniões do respeitável público”, reiterando o
posicionamento sobre a ausência de atitude reflexiva por parte da crítica literária
nacional.
O escritor profissional teria muitas surpresas se reparasse em algumas opiniões anônimas, ou quase anônimas, que às vezes aparecem nos jornais. Não repara.
82 Ibidem. p. 60.83 Ibidem. p. 365.84 Ibidem. p. 177.
32
Ordinariamente só liga importância à crítica de pessoas sisudas, que podem leválo para cima ou arrasálo. Sabemos que nem sempre isso é honesto, que um cidadão, por simpatia ou antipatia, por estar situado à direita ou à esquerda, ataca ou defende perfeitamente uma obra que não foi lida. Já o velho Balzac ensinava receitas úteis para esse gênero de trabalho.85
Novamente de um modo mordaz, aludindo ao pensamento do escritor
francês Balzac, Graciliano aponta a possibilidade da crítica literária não ser honesta
e objetiva, por crer que os críticos, ainda que profissionais, façam sua análise
independente da leitura da obra, com fundamento somente na simpatia ou antipatia
que tem em relação ao escritor. Em outro momento, Graciliano também pondera que
muitas vezes a crítica literária se limita a fazer um breve resumo da história criticada
sem efetuar um trabalho analítico de compreensão e julgamento do texto,
escrevendo que “Apesar de não ser crítico, poderia livrarme de dificuldades
fazendo, como outros, um resumo da história, sem tirar daí nenhuma
conseqüência.”86
Além disso, Graciliano ataca a crítica literária em outro momento, ao
publicar uma crônica sobre o literato em esboço que “lamenta a imbecilidade dos
homens, que lhe não erguem altares”, descrevendo esse escritor como ser que se
posiciona com arrogância e vive em conjunto com os demais escritores numa
espécie de seita, sugerindo que o funcionamento do espaço literário se dê na base
de troca de elogios e favores na crítica literária.
Assim, cada um dos sócios da comunidade encontra sempre quem o enalteça, despendendo grande cópia de adjetivos ruidosos. O sócio elogiado deve por amabilidade e por gratidão retribuir todos os encômios recebidos e afirmando que o sujeito que o honrou é simplesmente um gênio.Para isso escreve um artigo no qual introduz sagazmente vários sinônimos dos qualificativos que lhe foram aplicados.É inútil dizer que o artigo será cortesmente e generosamente recompensado.Por semelhante processo, com modo, suave, todos são grandes, pelo menos a seus próprios olhos.87
85 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 221.86 Ibidem. p. 161.87 Ibidem. p. 62.
33
Apesar dessa descrença de Graciliano em relação à crítica literária,
observase nas crônicas de Linhas tortas que o autor também se valeu do espaço do
jornal para tecer críticas a obras literárias de vários escritores, tais como Aurélio
Buarque de Holanda, Eça de Queirós, Guimarães Rosa, José Lins do Rego, Mário
de Andrade, Rachel de Queirós. Então, de certo modo, ao falar dos críticos literários,
Graciliano se autoreferenciou.
Em outros momentos, Graciliano criticou a recepção dos leitores
brasileiros em relação aos textos nacionais. Na crônica intitulada “Romances”, o
autor comenta que possuímos textos literários de qualidade extraordinária, mas que
não são consumidos nem pelo público interno, porque os leitores desconfiam da
qualidade literária e adquirem os romances franceses por mais caros que sejam:
Possuímos excelentes romances que não são lidos. Os críticos garantem a qualidade deles, os editores fazem uma propaganda terrível em jornal e em cartaz, mas os leitores desconfiam e vão direto à exposição dos livros franceses. (...)Os romances brasileiros custam uma ninharia e envelhecem nas prateleiras dos editores. Os romances franceses estão pela hora da morte e são procurados com avidez.88
E ao constatar esse perfil do leitor brasileiro, Graciliano sugere
ironicamente que os escritos literários brasileiros de qualidade fossem exportados,
traduzidos para uma língua estrangeira e importados novamente para consumo
interno, como se fazia com outros produtos manufaturados. Ou ainda, no mesmo
tom sarcástico, comenta que se os governantes do Estado pensassem sobre esse
comportamento do leitor brasileiro, poderiam intervir e traduzir algumas novelas
indígenas para o francês, que seriam consumidas rapidamente independentemente
do preço cobrado.
(...) poderíamos vender alguns para fora e depois comprálos de novo, exatamente como fazemos com certos produtos, que saem daqui e voltam melhorados, empacotados e recomendados por uma gente qualquer, que julgamos superiores.(...)O governo, se se ocupasse com isso, mandaria passar algumas novelas indígenas para o francês. Talvez elas não fossem vendidas lá fora. Não faria mal. Viria para
88 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 206.
34
aqui a tiragem toda. Vendoas em línguas de branco, o público arregalaria o olho, convencerseia de que estava diante de mercadoria boa e cairia no logro: daria vinte milréis por uma brochura que aqui se vende por seis.89
Comentando a mesma atitude do leitor brasileiro que menospreza a
produção literária nacional e supervaloriza a estrangeira, Graciliano publica a crônica
Bahia de Todos os Santos, para informar que o texto “Jubiabá”, de Jorge Amado,
escritor do realismo social da década de 30 refutado por parte da crítica nacional,
havia sido traduzido por Michel Berveiller e Pierre Hourcade e publicado pela N.R.F
sob o título “Bahia de tous les Saints” em um volume de quase trezentas páginas.
Ironizando a postura dos leitores nacionais malformados, que valorizam a produção
estrangeira em detrimento da nacional, Graciliano supõe que essa tradução para
língua francesa de um texto de Jorge Amado, comumente criticado como ofensivo
aos bons costumes sociais, já conferiria ao romance um status literário superior.
Jubiabá é, pois, uma espécie de contrabando literário – e está aí o maior elogio que podemos fazerlhe; tem de imporse por suas virtudes. Infelizmente foi publicado pela N.R.F. e custa vinte e oito francos, que, traduzidos no Brasil, significam aí uns vinte e dois mil–réis. Seria melhor ter saído numas dessas brochuras de capa amarelada que se vendem a três francos e meio. Melhor para o público europeu, é claro. Entre nós o livro ganha por estar em língua estrangeira e ser caro. Pessoas finas que desprezam o volume da José Olympio ilustrado por Santa Rosa vão achar excelente a mercadoria importada. O que será muito bom: o romance de Jorge Amado conquistará mais alguns leitores indígenas.90
Fica claro que o autor quer provocar o leitor da crônica, que
provavelmente também é o leitor das obras de ficção, a refletir sobre os valores da
obra literária nacional, sobre a desconfiança preexistente em relação ao produto
interno e o consumo impensado dos romances franceses, como se tais obras
fossem sinônimos de refinamento estético e as obras nacionais fossem inferiores.
Graciliano demonstra claramente que esse posicionamento é legado do
comportamento submisso de povo colonizado, “indígena”, aos padrões europeus
colonizadores, herança que as “pessoas finas” cultuam também no espaço literário.
89 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 207.90 Ibidem. p. 166.
35
Além de se manifestar sobre a crítica literária, o mercado editorial e a
recepção dos leitores brasileiros sobre os livros nacionais, chama a atenção o
posicionamento crítico do autor como julgador no concurso literário Humberto de
Campos, instituído pela Livraria José Olympio em 1938. Linhas tortas possui duas
crônicas sobre esse mesmo assunto: “Um livro inédito” e “Conversa de bastidores”.
O primeiro texto do autor, publicado em 20 de agosto de 1939, referese ao
julgamento do concurso em que Graciliano Ramos votou no livro Maria perigosa, de
Luís Jardim, vencedor por apenas um voto em relação ao segundo colocado, que
era um livro de contos assinado pelo pseudônimo Viator. Como o julgamento não foi
tranqüilo, Graciliano fez questão de justificar seu voto, afirmando que preferiu
escolher “um livro que não sobe demais nem desce muito”91 e que votou “contra
esse livro de Viator. Votei porque dois dos seus contos me parecem bastante
ordinários: a história dum médico morto na roça, reduzido à condição de trabalhador
de eito, e o namoro mais ou menos idiota dum engenheiro com uma professora dum
grupo escolar.”92. Não obstante as críticas ferozes, Graciliano lamenta que o escritor
que assine sob pseudônimo Viator não apareça na vida literária, até porque
Prudente de Morais “acha que ele fez alguns dos melhores contos que existem em
língua portuguesa.”93 Já na crônica “Conversa de bastidores”, publicada em 16 de
maio de 1946, Graciliano comenta que em 1944 foi apresentado a J. Guimarães
Rosa, um secretário de Embaixada, recémchegado da Europa, que se apresentou
como Viator. Enfim, eles puderam conversar sobre os contos submetidos ao
julgamento no concurso literário Humberto de Campos, Guimarães Rosa concordou
com os apontamentos de Graciliano e disse haver suprimido os textos mais fracos,
para publicar posteriormente um livro. Em 1946, Graciliano comenta a publicação do
referido livro, intitulado Sagarana, tecendo inúmeros comentários elogiosos ao texto
de Rosa e termina o texto afirmando que “certamente ele fará um romance, romance
que não lerei, pois, se for começado agora, estará pronto em 1956, quando os meus
ossos começarem a esfarelarse.”94 Rosa escreveu Grande sertão: veredas, que foi
publicado em 1956, mas Graciliano faleceu em 1953.
91 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. p. 216.92 Ibidem. p. 216.93 Ibidem. p. 216.94 Ibidem. p. 355.
36
Em síntese, as crônicas mencionadas servem de exemplo de como
Graciliano valeuse do espaço jornalístico para refletir diretamente sobre os mais
diversos assuntos do campo literário. São numerosos os fragmentos de Linhas
tortas não transcritos neste trabalho que, em maior ou menor grau, permitem
profundas reflexões sobre literatura.
4. CONCLUSÃO
Diante de todo o exposto, podese concluir que Linhas tortas é um livro
de crônicas de grande importância para o estudo do gênero literário e da obra de
Graciliano Ramos. Verificouse que essas linhas publicadas em jornais no período
de 1915 a 1952 possuem as características da melhor tradição da crônica brasileira,
em que os escritores abusam da subjetividade para, de forma a cativar o leitor a
uma leitura leve e rápida, apresentar importantes reflexões sociais, políticas e
literárias. Além disso, Graciliano valeuse de seu estilo preciso e, em diversos
momentos, do seu sarcasmo, mas dentre os assuntos tratados, privilegiou os
assuntos literários.
Ao se limitar o presente estudo às crônicas em que Graciliano faz
reflexões diretas sobre a sua concepção de literatura para apresentar o ideal de arte
literária tal como a pensou o autor, separouse um corpus de textos publicados
originalmente nos anos 30 e 40 e, disso decorreu a necessidade de se reconstruir o
panorama da produção literária do romance dessa época. Consignouse que, nesse
período conhecido como a “era do romance brasileiro”, a produção romanesca se
polarizou entre o romance socialregional, em que predomina a relação do homem
com o meio em que se insere, e o romance psicológico, em que predomina a relação
do homem consigo mesmo e seus conflitos em sociedade. E, a par de todos os
problemas dessa classificação da ficção em romance social versus romance
37
psicológico, o binômio é costumeiramente utilizado, visto que, nesse período, a
referência à realidade nacional nos enredos é vista como parâmetro de qualidade do
texto. Como conseqüência dessa valoração, o romance socialregional, entendido
como manifestação literária para conhecimento do mundo, predomina em relação ao
romance psicológico, entendido como manifestação literária estética e intimista.
Depois de traçado breve panorama literário do romance de 30 e 40,
apresentouse como Graciliano enxergava esse contexto e qual foi seu juízo de valor
em relação aos textos da época, mostrando através de excertos das crônicas “Norte
e Sul”, de abril de 1937, “O romance de Jorge Amado”, de 17 de fevereiro de 1935,
“Os donos da literatura”, de setembro de 1937, e “O fator econômico no romance
brasileiro”, de 15 de julho de 1945, que o posicionamento do autor é no sentido de
que o escritor deve ser engajado, apresentar os problemas nacionais, indo além da
pura mimese para apresentar uma visão crítica da realidade social brasileira. Ficou
claro que esse engajamento não pode ser confundido com uma produção literária
panfletária ou apologética. Graciliano soube distinguir a esfera literária da esfera
política e defendeu a produção literária comprometida com a realidade social
nacional, por crer que, em primeiro plano, a literatura seja uma forma de
conhecimento do homem e do mundo. Através de trechos das crônicas “Os
sapateiros da literatura” e “Os tostões do Sr. Mário de Andrade”, ambas de 1939, e
do texto “Uma palestra”, de 1952, podese concluir que além da concepção de
literatura como forma de conhecimento de mundo, Graciliano também defendeu a
literatura como a arte da linguagem clara, afastandoa do hermetismo e da
incompreensibilidade. Defendeu uma concepção de literatura como arte
desvinculada da “arte pela arte” e vinculada ao trabalho artístico minucioso de
escolha de palavras e de uso preciso das frases, sempre relacionada à realidade
social brasileira.
Para complementar as reflexões de Graciliano sobre a literatura como
forma de conhecimento do mundo e como arte da linguagem, apresentouse um
resumo de algumas outras crônicas de Linhas tortas que versam sobre assuntos
38
literários. Apesar dessas outras linhas não exprimirem explicitamente a concepção
de literatura do autor, elas apresentam o posicionamento de Graciliano em relação à
crítica literária, ao mercado editorial e aos concursos literários, de modo que também
auxiliam a refletir sobre as possíveis funções da literatura, tal como as pensou
Graciliano.
Esperase com as reflexões sobre literatura feitas no presente estudo
contribuir com os estudos acadêmicos sobre a obra literária de Graciliano Ramos,
divulgando a profundidade e a riqueza das crônicas do autor, porque Linhas tortas é,
sem dúvida, um livro capaz de encantar seus leitores pela beleza de seus textos e
auxiliálos a compreender a concepção de literatura do autor.
39
REFERÊNCIAS
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40
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Site oficial de Graciliano Ramos. Disponível em: <http://www.graciliano.com.br/>. Acesso em 05.ago.2008.
41
ANEXO A
Norte e Sul
Essa distinção que alguns cavalheiros procuram estabelecer entre o romance do norte e o romance do sul dá ao leitor a impressão de que os escritores brasileiros formam dois grupos, como as pastorinhas do Natal, que dançam e cantam filiadas ao cordão azul ou ao cordão vermelho.
Realmente a geografia não tem nada com isso. Não podemos traçar no mapa uma linha divisória dos campos onde os cordões cantam e dançam.
O que há é que algumas pessoas gostam de escrever sobre coisas que existem na realidade, outras preferem tratar de fatos existentes na imaginação. Esses fatos e essas coisas viram mercadorias. O crítico, munido de balanças e outros instrumentos adequados, pode medilas, pesálas, decidir sobre a mãodeobra e a qualidade da matériaprima, até certo ponto aumentar ou reduzir a procura, mas quem julga definitivamente é o freguês, que compra e paga.
O fabricante que não acha mercado para o seu produto zangase, é natural, queixase com razão da estupidez pública, mas não deve atacar abertamente a exposição do vizinho. O ataque feito por um concorrente não merece crédito, o consumidor desconfia dele.
Ora, nestes últimos tempos surgiram referências pouco lisonjeiras às vitrinas onde os autores nordestinos arrumam facas de ponta, chapéus de couro, cenas espalhafatosas, religião negra, o cangaço e o eito, coisas que existem realmente e são recebidas com satisfação pelas criaturas vivas.
As mortas, empalhadas em bibliotecas, naturalmente se aborrecem disso, detestam o Sr. Lins do Rego, que descobriu muitas verdades há séculos, escondidos no fundo dos canaviais, o sr. Jorge Amado, responsável por aqueles
42
horrores da Ladeira do Pelourinho, a sra. Rachel de Queiroz, mulher que se tornou indiscreta depois do “João Miguel”.
Os inimigos da vida torcem o nariz e fecham os olhos diante da narrativa crua, da expressão áspera. Querem que se fabrique nos romances um mundo diferente deste, uma confusa humanidade só de almas, cheias de sofrimentos atrapalhados que o leitor comum não entende. Põem essas almas longe da terra, soltas no espaço. Um espiritismo literário excelente como tapeação. Não admitem as dores ordinárias, que sentimos por as encontrarmos em toda a parte, em nós e fora de nós. A miséria é incômoda. Não toquemos em monturos.
São delicados, são refinados, os seus nervos sensíveis em demasia não toleram a imagem da fome e o palavrão obsceno. Façamos frases doces. Ou arranjemos torturas interiores, sem causa. É bom não contar que a moenda da usina triturou o rapaz, o tubarão comeu o barqueiro e um sujeito meteu a faca até o cabo na barriga do outro. Isso é desagradável.
É mesmo. É desagradável, mas é verdade. E o que é mais desagradável, e também verdade, é reconhecer que, apesar de haver sido muitas vezes xingada essa literatura o público se interessa por ela.
Orientemos o público. A ordem é apitar, estrilar reduzir ao silêncio alguns tipos indesejáveis.
Não há grupo do norte nem grupo do sul, está claro. Mas realmente os nordestinos têm escrito inconveniências. Pois não é que o sr. Amando Fontes foi dizer que as filhas dos operários se prostituem?
Ataquemos o sr. Amando Fontes e outros, os que têm aparecido ultimamente do Ceará até a Bahia, excetuando os que não disseram nada. Vamos falar mal de todos os romancistas que aludem à fome e à miséria das bagaceiras, das prisões, dos bairros operários, das casas de cômodos. Acabemos tudo isso.
E a literatura se purificará, tornarseá inofensiva e corderosa, não provocará o mau humor de ninguém, não perturbará a digestão dos que podem comer. Amém.
abril de 1937
43
ANEXO B
O romance de Jorge Amado
Há uma literatura antipática e insincera que só usa expressões corretas, só se ocupa de coisas agradáveis, não se molha em dias de inverno e por isso ignora que há pessoas que não podem comprar capas de borracha. Quando a chuva aparece, essa literatura fica em casa, bem aquecida, com as portas fechadas. E se é obrigada a sair, embrulhase, enrola o pescoço e levanta os olhos, para não ver a lama nos sapatos. Acha que tudo está direito, que o Brasil é um mundo e que somos felizes. Está claro que ela não sabe em que consiste esta felicidade, mas contentase com afirmações e ufanase do seu país. Foi ela que, em horas de amargura, receitou o sorriso como excelente remédio para a crise. Meteu a caneta nas mãos de poetas da Academia e compôs hinos patrióticos; brigou com os estrangeiros que disseram cobras e lagartos desta região abençoada; inspirou a estadistas discursos cheios de inflamações, e antigamente redigiu odes bastante ordinárias; tentou, na revolução de 30, pagar a dívida externa com donativos de alfinetes para gravatas, botões, broches e moedas de prata. Essa literatura é exercida por cidadãos gordos, banqueiros, acionistas, comerciantes, proprietários, indivíduos que não acham que os outros tenham motivo para estar descontentes.
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Vai tudo muito bem – exclamam, como o papagaio do naufrágio. Ora, não é verdade que tudo vá assim tão bem. Umas coisas vão
admiravelmente, porque há literatos com ordenados razoáveis; outras vão mal, porque os vagabundos que dormem nos bancos do passeio não são literatos nem capitalistas. Nos algodoais e nos canaviais do Nordeste, nas plantações de cacau e de café, nas cidadezinhas decadentes do interior, nas fábricas, nas casas de cômodos, nos prostíbulos, há milhões de criaturas que andam aperreadas.
Os srs. Jorge de Lima e Henrique Pongetti pensam de outra forma: o primeiro gosta da lama do sururu e da maleita; o segundo afirma que um agricultor se deita na rede, joga um punhado de sementes por cima da varanda e tem safra. Mas o sr. Jorge de Lima nunca apanhou sururu e conhece remédio para maleita, que é medico. E o sr. Pongetti, se arrastasse a enxada no eito de sol a sol, saberia que aquilo pesa e a terra é dura. Dizer que a nossa gente não tem vontade de trabalhar é brincadeira. Apesar dos vermes, da sífilis, da cachaça, da seca e de outros males, ela trabalha desesperadamente e vive, comendo da banda podre, está claro.
É natural que a literatura nova que por aí andam construindo se ocupe com ela. Sempre vale mais que descrever os lares felizes, que não existem, ou contar histórias sem pé nem cabeça, coisas bonitas arrumadas em conformidade com as regras, como há tempo, quando um sujeito, sem nunca sair do Rio de Janeiro, imitava a algaravia de Lisboa e procurava assunto para obra de ficção do Egito e da Índia.
Os escritores atuais foram estudar o subúrbio, a fábrica, o engenho, a prisão da roça, o colégio do professor cambembe. Para isso resignaramse a abandonar o asfalto e o café, viram de perto muita porcaria, tiveram a coragem de falar errado, como toda a gente, sem dicionário, sem gramática, sem manual de retórica. Ouviram gritos, pragas, palavrões, e meteram tudo nos livros que escreveram. Podiam ter mudado os gritos em suspiros, as pragas em orações. Podiam, mas acharam melhor por os pontos nos ii.
O sr. Jorge Amado é um desses escritores inimigos da convenção e da metáfora, desabusados, observadores atentos. Conheceu, há alguns anos, um casarão de três andares na Ladeira do Pelourinho, Bahia, e resolveu apresentarnos os hóspedes que lá encontrou – vagabundos, ladrões, meretrizes, operários, crianças viciadas, agitadores, seres que se injuriavam – em diversas línguas: árabes, judeus, italianos, espanhóis, pretos, retirantes do Ceará etc. Até bichos. Essa fauna heterogênea não se mostra por atacado na obra do romancista baiano: forma uma cadeia que se principia no violonista que percorreu a França, a Alemanha, outros países e acaba no rato que dorme junto à esteira de um mendigo.
O que liga os anéis da cadeia não é o trabalho, como o titulo do livro, Suor, poderia fazernos supor: é a miséria, a miséria completa, nojenta, esmolambada, sem nenhuma espécie de amparo.
Todos os habitantes do prédio vivem na indigência ou aproximamse dela. Sentese, de fato, no livro o cheiro de suor, pois logo no começo surgem à porta alguns trabalhadores do cais do porto. Esses trabalhadores, porém, à exceção do preto Henrique, mexemse pouco. Sentimos bem é o fedor de muitas coisas misturadas: lama, pus, cachaça, urina, roupa suja, sêmen uma grande imundície apanhada com minudências excessivas.
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O autor examinou de lápis na mão a casa de cômodos e muniuse de anotações, tantas que reproduziu com todos os erros, uma carta em que se agencia dinheiro para igreja, uma notícia de jornal, um recibo e um desses escritos extravagantes que as pessoas supersticiosas copiam, com receio de que lhes chegue desastre, e remetem a dez indivíduos de suas relações. Esse amor à verdade, às vezes prejudicial a um romancista, pois pode fazernos crer que lhe falta imaginação, dá a certas páginas de Suor um ar de reportagem.
A impressão esmorece logo: algumas linhas adiante vemos uma cena admirável em que os personagens saem do papel, movemse naturalmente, falam, sobretudo falam. O sr. Jorge Amado arranjou diálogos excelentes. Há frases que resumem uma situação. “Sim. Eu sou professor. E no meu cargo...” O caráter de um tipo esboçado com oito palavras.
O livro do sr. Jorge Amado não é propriamente um romance, pelo menos romance como os que estamos habituados a ler. É uma série de pequenos quadros tendentes a mostrar o ódio que os ricos inspiram aos moradores da hospedaria. Essas criaturas passam ràpidamente, mas vinte delas ficam gravadas na memória do leitor. Discutem, fuxicam, brigam, fazem confidências e dão rendezvous no corrimão perigoso da escada. As expressões que atiram à classe média são ferozes. Uma prostituta fala de um coronel: “Sujo. Que monturo de homem”.
Tudo natural quando os pobres se manifestam em palavrões de gíria, quase sempre numa linguagem obscena em excesso, nada literária, está visto, mas que tem curso na Ladeira do Pelourinho e até em lugares de boa reputação. O autor falha, porém, nos pontos em que a revolta de sua gente deixa de ser instintiva e adota as fórmulas inculcadas pelos agitadores. As figuras de Álvaro Lima, do anarquista espanhol, do comunista judeu, não tem relevo, apesar de serem as mais trabalhadas. Quando elas aparecem, o livro tornase quase campanudo, por causa das explicações, das definições, que dão aos três personagens um ar pedagógico e contrafeito. O preto Henrique, as moças do terceiro andar, o mendigo, os fregueses da bodega do Fernandez, as meretrizes, exprimemse ingenuamente. Chega um desses homens, traduz a fala em linguagem política, de cartaz – e sentimos um pouco mais ou menos o que experimentamos quando vemos letras explicativas por baixo de desenhos traçados a carvão nas paredes. Não nos parece que o autor, revolucionário, precisasse fazer mais que exibir a miséria e o descontentamento dos hospedes do casarão. A obra não seria menos boa por isso.
O sr. Jorge Amado tem dito várias vezes que o romance moderno vai suprimir o personagem, matar o indivíduo. O que interessa é o grupo – uma cidade inteira, um colégio, uma fábrica, um engenho de açúcar. Se isso fosse verdade, os romancistas ficariam em grande atrapalhação. Toda a análise introspectiva desapareceria. A obra ganharia em superfície, perderia em profundidade.
Ora, em Suor há personagens, personagens poucos numerosos. Não percebemos ali o movimento das massas. Na casa do Pelourinho vivem seiscentos moradores, mas apenas travamos relações com alguns deles. Dãose a conhecer em palestras animadas e os casos íntimos tomam grande importância. Às vezes as pessoas aparecem isoladas, uma tocando violino e chorando glórias perdidas, outra pensando em uma aldeia da Polônia. O sapateiro espanhol apresentase conversando com um gato, o homem de braços
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cortados é amigo de uma cobra, o mendigo Cabaça entendese com um rato. Sinal de misantropia. Em uma passagem, garotos, soldados, estudantes, martirizam Ricardo Bitencourt Viana, ótimo sujeito, que auxilia as viúvas e oferece bonecas às crianças. Depois de gritos, protestos, ameaças inúteis com o guardachuva quebrado, o homem fechase no quarto e vai arrumar ninharias na mala, só, feliz, esquecido da cambada que o atormentava. O autor sente necessidade de meter em casa os seus personagens: não se dão bem na rua. O que mais ressalta no livro são os caracteres individuais. Certas figuras estão admiravelmente lançadas, mas, quando entram na multidão, tornamse inexpressivas. O que sentimos é a vida de cada um; desgraças miúdas, vícios, doenças, manias.
O sr. Jorge Amado embirra com os heróis. Acha, por isso, que, em Suor o personagem principal é o prédio. História. Não é muito difícil emprestar qualidades humanas a um gato, a uma cobra, a um rato. Já houve quem humanizasse até formigas. Com um imóvel a coisa é diferente. Dizer que ele “vive da vida dos que nele habitam” é jogo de palavras. Em Suor há um personagem de carne e osso muito mais importante que os outros; é Jorge Amado, que morou na Ladeira do Pelourinho, 68 e lá conheceu Maria Cabassu e todos aqueles seres estragados que lhe forneceram material para um excelente romance.
17 de fevereiro de 1935
ANEXO C
Os donos da literatura
Um dia destes, à porta de certa livraria, um poeta queixavase amargamente dos donos da literatura.
Que donos? perguntou alguém.E surgiram na conversa alguns nomes, que não se reproduzem aqui porque
isto seria indiscrição. Em todo o caso fica registrada a amargura do poeta.
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Há realmente uns figurões que se tornaram, com habilidade, proprietários da literatura nacional, como poderiam ser proprietários de estabelecimentos comerciais, arranhacéus, usinas, charqueadas ou seringais. São muito importantes e formam um pequeno sindicato que representa a inteligência indígena lá fora, nos pontos em que ela precisa aparecer de casaca.
Impossível saber por que esses cavalheiros fingem adotar ofício tão ruim, podendo dedicarse a negócios rendosos, a política por exemplo, ou outra qualquer indústria. É preciso admitir que ser literato é bonito, embora o tipo que se enfeita com este nome nunca tenha escrito coisa nenhuma.
Se não fosse assim, não se compreenderia que pessoas razoáveis, bons pais de família, com dinheiro no banco e muita consideração na praça, homens gordos, gordíssimos, escolhessem uma profissão excelente para matar a fome os sujeitos que pretendem viver dela. Está claro que não ganham nada, isto é, ganham uma espécie de glória. Exatamente como se não ganhassem nada.
Mas é uma concorrência desleal, é uma desonestidade. O poeta que se lamentava na porta da livraria tem razão.
Há uma literatura que ninguém tem, que talvez nem tenha sido produzida, que se oferece ao estrangeiro, não em volumes, mas nas figuras de cidadãos bem educados, que falam com perfeição línguas difíceis e sabem freqüentar embaixadas. Há outra, suada, ainda bem fraquinha, mas enfim uma coisa real, arranjada não se sabe como por indivíduos bem ordinários.
A primeira comparece a sessões solenes e manifestase em discurso; a segunda atrapalhase e mete os pés pelas mãos na presença de gente de cerimônia e só desembucha no papel.
A literatura honorária, escorada e oficial, vive sempre lá fora, chega aqui de passagem e quando aparece, é vista de longe, rolando em automóvel; a literatura efetiva, mal vestida e de segunda classe, mora no interior ou vegeta aqui, no subúrbio, e viaja a bonde, às vezes de pingente.
Está errado tudo. Por que é que essas duas instituições, que não têm parentesco e usam o mesmo nome, não entram em combinação?
Já que a primeira, constituída pelos patrões, é bem alimentada e não produz, e a segunda, a da gentinha, trabalha com a barriga colada ao espinhaço, podiam entenderse. A primeira daria um salário (ou ordenado, que é o nome decente) à segunda, e esta faria livros que, com alguns consertos na ortografia e na sintaxe, poderiam ser assinados por ministro, conselheiro, desembargador e outros letrados deste gênero.
setembro de 1937
ANEXO D
O fator econômico no romance brasileiro
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A leitura dos romances brasileiros, até dos melhores, quase sempre nos dá a impressão de que os nossos escritores não conseguem fazer senão trabalhos incompletos. Sem nos deixarmos vencer pelo pessimismo que nos leva a olhar com desconfiança a obra de arte nacional, pessimismo às vezes interrompido bruscamente por acessos de exaltação ingênua, meio infantil, devemos reconhecer que nos trabalhos de ficção brasileiros falta alguma coisa.
A mania indígena de se comparar o literato cá da terra a um figurão estrangeiro, hábito inocente e antigo, sempre em moda, é apenas um meio de fazer crítica e não deve ser tomada a sério.
Perguntamos com desânimo se estamos condenados a ver surgirem nas vitrinas livros que fazem barulho e em menos de um ano morrem e se enterram, a elogiar outros que um patriotismo vesgo afirma serem ótimos e ninguém lê.
Prudente de Morais Neto me dizia há alguns anos que atribuía a deficiência dos nossos romances à escassez de material romanceável. Discordei. Se o mal fosse de natureza objetiva, estaríamos definitivamente perdidos, a menos que o meio se transformasse. Não devia ser isso.
Faltavanos naquele tempo, e ainda hoje nos falta, a observação cuidadosa dos fatos que devem contribuir para a formação da obra de arte. Numa coisa complexa como o romance o desconhecimento desses fatos acaba prejudicando os caracteres e tornando a narrativa inverossímil.
Parecenos que novelistas mais ou menos reputados julgaram certos estudos indignos de atenção e imaginaram poder livrarse deles. Assim, abandonaram a outras profissões tudo quanto se refere à economia. Em conseqüência disso, fizeram uma construção de cima para baixos, ocuparamse de questões sociais e questões políticas, sem notar que elas dependiam de outras mais profundas, que não podiam deixar de ser examinadas.
Talvez os amadores que falam tanto em Balzac e fingem imitálo não hajam percebido que este escritor em um só livro estuda a fabricação do papel, a imprensa de Paris, casas editoras, teatros, restaurantes, oficinas de impressão etc. Levantada essa base econômica, é que principia a moverse a sociedade balzaquiana, políticos, nobre, jornalistas, militares, negociantes, prostitutas e ladrões, tipos vivos que ainda nos enchem de admiração. Mesmo as figuras exageradas, que resvalam para o folhetim, familiarizamse com as outros: o jogo, a finança, a indústria, o comércio, aquele mundo de negócios, tudo as conduz para a realidade, quase para a atualidade, apesar de se terem afastado muito de nós, de se haverem iluminado com velas de cera e viajado em diligências.
Os romancistas brasileiros, ocupados com a política, de ordinário esquecem a produção, desdenham o número, são inimigos de estatísticas. Excetuandose as primeiras obras de José Lins do Rego e as últimas de Jorge Amado, em que assistimos à decadência da família rural, queda motivada pela vitória da exploração gringa sobre os engenhos de bangüê e as fazendas de cacau, o que temos são criações mais ou menos arbitrárias, complicações psicológicas, às vezes um lirismo atordoante, espécie de morfina, poesia adocicada, música de palavras.
Lendo certas novelas, temos o desejo de perguntar de que vivem as suas personagens. Está claro que os autores não conseguem furtarse a algumas explicações referentes a este assunto, mas fazemno como quem toca em matéria
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desagradável, percebemos que eles se repugnam e não querem deterse em minúcias.
Um cidadão é capitalista. Muito bem. Ficamos sem saber donde lhe veio o capital e de que maneira o utiliza. Outro é agricultor. Não visita as plantações, ignoramos como se entende como os morados e se safra lhe deu lucro. O terceiro é operário. Nunca o vemos na fábrica, sabemos que trabalha porque nos afirmam que isto acontece mas os seus músculos nos aparecem ordinariamente em repouso.
Não surpreendemos essas pessoas no ato de criar riqueza. A riqueza surge criada, como nas histórias maravilhosas, faznos pensar no deserto, onde o povo eleito recebia alimento do céu. Tornase irreal, misteriosa e como é indispensável à existência humana, irrealidade e mistério transmitemse aos indivíduos que circulam na maior parte dos livros nacionais.
Não me refiro, está claro, às combinações pacientes e caprichosas de vocábulos sonoros, infelizes quebra cabeças do tempo em que um sujeito, sem nunca sair do Rio de Janeiro, descrevia sertões absolutamente desconhecidos, quando não se aventurava a mais longas viagens pelo Egito e pela Índia. Tudo aí é falso, naturalmente, e hoje nos espantamos de que alguém se tenha dedicado a essas composições. Espantamonos porque vivemos numa época de lutas e dificuldades, mal pensamos que no princípio do século os homens tinham vagar para divertimentos inúteis.
Refirome à literatura nascida nestes últimos anos, diferente da que existia na pasmaceira anterior à outra guerra, diferente em quantidade e qualidade.
Testemunhas do conflito em que se debatem o capital e o trabalho, os romancistas brasileiros nos apresentam ora o capitalista, ora o trabalhador, mas as relações entre as duas classes ordinariamente não se percebem. Temos de um lado hábitos elegantes, sutilezas, conversações corretas, nada parecidas às que ouvimos na rua, insatisfação, torturas complicadas que a gente vulgar não pode sentir; do outro lado, bastante miséria, ódio e desejo de vingança.
Ignoramos, porém, se os sofrimentos daqueles homens requintados têm uma origem puramente religiosa ou se eles criam desgostos por falta de ocupação.
E, não tendo visto o operário no serviço, dificilmente acreditamos que ele manifeste ódio a um patrão invisível e queira vingarse. Em Suor, de Jorge Amado, as personagens descansam ou se exercitam nos movimentos de greve, e em Jubiabá mexese uma grande vagabunda, que vive de pequenos furtos e contrabandos. O trabalho aparece aí quase como um prazer e torna meio inconseqüente este livro notável, que tem passagens como a sentinela de defuntos, umas das melhores páginas escritas no Brasil.
Procuramos a razão da indiferença dos nossos escritores para os assuntos de natureza econômica. Talvez isso se relacione com as dificuldades em que se acham quase todo num país onde a profissão literária ainda é uma remota possibilidade e os artistas em geral se livram da fome entrando em funcionalismo público. Constrangidos pelo orçamento mesquinho, esses maus funcionários buscam na ficção um refúgio e esquecem voluntariamente as preocupações que os acabrunham. Sendo assim, temos de admitir que são exatamente cuidados excessivos de ordem dinâmica que lhes tiram o gosto de observar os fatos relativos à produção. O que eles produzem, rende pouco, rende uma insignificância, e é possível que não queiram pensar nisso.
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Acontece que alguns escritores se habituam a utilizar em romance apenas coisas de natureza subjetiva. Provavelmente há o receio de que, sendo comércio e indústria, oferta e procura etc. vistos muito de perto, a questão social venha à baila. Deve existir também um pouco do velho preconceito medieval que jogava para um plano secundário os produtores.
Como quer que seja, vemos aqui nos livros uma pequena humanidade incompleta, humanidade que às vezes sente e pensa, mas é absolutamente desprovida das necessidades essenciais. Com certeza os nossos autores dirão que não desejam ser fotógrafos, não têm o intuito de reproduzir com fidelidade o que se passa na vida. Mas então por que põem nomes de gente nas suas idéias, por que as vestem, fazem que elas andem e falem, tenham alegrias e dores?
Pode efetivamente haver grandeza nesses monstros, mas é inegável que são monstros. Abandonando os fatos objetivos, investigando exclusivamente o interior dos seus tipos, alguns escritores geraram uma fauna de seres estranhos em que há um pouco de homens, muito de espíritos e demônios.
Afinal essas complicações internas escapam ao leitor comum e apenas despertam a curiosidade das pessoas mais ou menos monstruosas. E às vezes fazem que gênios se embaracem para resolver questões miúdas, facilmente liquidáveis por sujeitos medíocres que tenham os seus negócios bem arrumados.
Foi o que sucedeu a Dostoievski na parte relativa à situação financeira das personagens de Crime e Castigo. Raskolnikoff e a irmã, Sônia e o resto da família do bêbado estão arrasados, dificilmente poderiam continuar a figurar na história. Nesse ponto surge Svidrigailoff e suicidase, deixando aos necessitados o dinheiro preciso para o romance acabar. Certamente Svidrigail morreu direito e teve antes o cuidado de passar a noite num pesadelo que é uma verdadeira maravilha, mas isto não impede que ele haja dado cabo da vida expressamente com o fim de deixar alguns milhares de rublos àquela gente sem recursos.
É possível que esse nobre exemplo tenha contribuído para que certos romancistas vejam apenas metade de um homem. Essa metade pode crescer muito, pode ser a metade de um gigante, mas será sempre metade, e isto não nos agrada.
Deixemos de parte as inteligências capazes de forjar humanidade diferente da nossa, humanidade de hospícios, cheia de aberrações, seres semelhantes às figuras mitológicas que representam animais e homens num corpo só. O lado humano confundese com um deus, o lado animal é qualquer coisa parecida com o diabo. Mas há desequilíbrio. Às vezes a divindade pesa demais, outras vezes o inferno prevalece.
Queremos a fusão dessas idealizações loucas. Somos criaturas medíocres, nem deuses nem diabos. E não nos interessa, fora das obras eternas feitas por degenerados extraordinários, a representação de anomalias. Leitores comuns e perfeitamente equilibrados, buscarmos na arte figuras vivas, imagens de sonho; tipos que se comportem como toda a gente, não nos mostrem ações e idéias que brigam com as nossas.
Está visto que não desejamos reportagens, embora certas reportagens sejam excelentes. De ordinário, entrando em romance, elas deixam de ser jornal e não chegam a constituir literatura. É inútil copiar bilhetes, pedaços de noticiário, recibos anúncios e cartazes.
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Mas se essas cópias nos desagradam, mais desagradáveis achamos a imitação de obras exóticas que nenhuma relação têm conosco. Simulando horror excessivo ao regional, alguns romancistas pretendem tornarse à pressa universal. Não há, porém, sinal de que o universo principie a interessarse pelas nossas letras, enquanto nós nos interessamos demais por ele e voluntariamente desconhecemos o que aqui se passa.
Para sermos completamente humanos, necessitamos estudar as coisas nacionais, estudálas de baixo para cima. Não podemos tratar convenientemente das relações sociais e políticas, se esquecemos a estrutura econômica da região que desejamos apresentar em livro.
Quando um negociante toca fogo na casa, devemos procurar o motivo deste lamentável acontecimento, não contálo como se ele fosse apenas um arranjo indispensável ao desenvolvimento da história que narramos. Se um cavalheiro mata os filhos e se suicida é com não afirmarmos precipitadamente que ele endoideceu: vamos tomar informações, tentar saber em que se ocupava o homem, que ordenado tinha, quanto devia à dona da pensão. Geralmente ninguém queima o negócio nem se suicida à toa.
Dizer que um ato reprovável foi praticado porque o seu autor obedeceu a impulso irresistível é pouco: isto satisfaz o leitor de notas policiais. Seria razoável que tentassem descobrir a causa do impulso, não se limitassem a apresentarnos o comerciante incendiário como desonesto, assassino como um sujeito perverso e louco.
Admitimos sem esforço a desonestidade e a loucura, mas precisamos saber por que elas existem, não queremos que sejam presentes do escritor às personagens, O romancista não é nenhum deus para tirar criaturas vivas da cabeça.
Romanceando por exemplo o crime e a loucura, está visto que ele deve visitar os seus heróis na cadeia e no hospício mas, se quiser realizar obra completa, precisa conhecêlos antes de chegar aí, acompanhálos na fábrica ou na loja, no escritório ou no campo de plantação. Necessariamente o ofício desses homens deve ter contribuído para que as coisas se passassem deste ou daquela forma.
É intuitivo que o negociante deitou fogo ao estabelecimento porque os seus lucros reduziam. Digamnos como se operou a redução.
E o indivíduo que matou os filhos e deu um tiro na cabeça? De que se alimentava esse malvado, a que gênero de trabalho se dedicava? Certamente ele é um malvado. Mas a obrigação do romancista não é condenar nem perdoar a malvadez: é analisála, explicála, explicitála. Sem ódios, sem idéias preconcebidas, que não somos moralistas.
Estamos diante de um fato. Vamos estudálo friamente.Parece que este advérbio não será bem recebido. A frieza convém aos
homens de ciência. O artista deve ser quente, exaltado. E mentiroso.Não sei por quê. Acho que o artista deve procurar dizer a verdade. Não a
grande verdade, naturalmente, Pequenas verdades, essas que são nossas conhecidas.
15 de julho de 1945
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ANEXO E
Os sapateiros da literatura
Foi uma questão muito séria que não chamou, como esperávamos, a atenção dos interessados e morreu no nascedouro. O sr. Mário de Andrade, num dos seus excelentes rodapés do Diário de Notícias, condenou, entre amável e acrimonioso, a literatura feita à pressa, abundante nestes dias de confusão. Um dos nossos grandes homens de letras divergiu azedamente do escritor paulista. Este voltou à carga e afinal o sr. Joel Silveira, no hebdomadário Dom Casmurro, fechou a discussão rápida com uma nota curiosa que infelizmente não foi examinada pelos entendidos. Os telegramas de guerra mataram essa pendência que agora procuro desenterrar.
Em resumo, o sr. Mário de Andrade sustentou, com citações e argumentos de peso, esta coisa intuitiva: um sujeito que se dedica ao ofício de escrever precisa, antes de tudo, saber escrever. Há tempo o sr. Rubem Braga, num artigo curto, desprovido de citações e com poucos argumentos, tinha dito o mesmo. Isto é quase uma verdade laplaciana.
Dificilmente podemos coser idéias e sentimentos apresentálos ao público, se nos falta a habilidade indispensável à tarefa, da mesma forma que não podemos juntar pedaços de couro e razoavelmente compor um par de sapatos, se os nossos dedos bisonhos não conseguem manejar a favela, a sovela, o cordel e as ilhós. A comparação efetivamente é grosseira: cordel e ilhós diferem muito de verbos e pronomes. E expostos à venda romance e calçado, muita gente considera o primeiro um objeto nobre e encolhe os ombros diante do segundo, coisa de somenos importância. Essa distinção é o preconceito. Se eu soubesse bater sola e grudar palmilha, estaria colando, martelando. Como não me habituei a semelhante gênero de trabalho, redijo umas linhas, que dentro de poucas horas serão pagas e irão transformarse num par de sapatos bastante necessários. Para ser franco, devo confessar que esta prosa não se faria se os sapatos não fossem precisos. Por isso desejo que o fabricante deles seja honesto, não tenha metido pedaços de papelão nos tacões. E espero também que meus fregueses fiquem satisfeitos com a mercadoria que lhes ofereço, aceitem as minhas idéias ou pelo menos, em falta disto, alguns adjetivos que enfeitam o produto.
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Evidentemente o sr. Mário de Andrade, homem de cultura e gosto, não iria aproximar um escritor dum operário. Mas agora estou pensando nos rapazes do Dom Casmurro. E não atino com a razão por que eles torceram o nariz à opinião do crítico.
Afinal, que são os rapazes do Dom Casmurro? Os sapateiros da literatura. Não se zanguem, é isto. Somos sapateiros, apensa. Quando, há alguns anos, desconhecidos, encolhidos e magros, descemos das nossas terras miseráveis, éramos retirantes, os flagelados da literatura. Tomamos o costume de arrastar os pés no asfalto, freqüentamos as livrarias e os jornais, arranjamos por aí ocupações precárias e ficamos na tripeça, cosendo, batendo, grudando.
Certamente há outros que são literatos por nomeação. Necessitamos letras, como qualquer país civilizado, e escolhemos para representálas um certo número de indivíduos que se vestem bem, comem direito, gargarejam discursos, dançam e conversam besteira com muita suficiência.
Os rapazes do Dom Casmurro, uns pobresdiabos, não sabem fazer nada disso. Peçam ao sr. Joel Silveira ou ao sr. Wilson Louzada uma conferência a respeito do namoro e verão o desastre: as moças da platéia se chatearão horrivelmente.
Restam, pois, a esses desgraçados, a essas criaturas famintas as sovelas e a faca miúda com que se corta o couro. Mas é preciso que a faca e as sovelas sejam bem manejadas. Quando lá foram disserem: “Esta crônica está bemfeita, este livro é mais ou menos legível”, os autores, uns infelizes, pensarão: “Bem. Não há no mundo uma pessoa que tenha interesse em elogiarnos. Fizemos qualquer coisa apreciável, é claro.” E dormirão tranqüilos um sono curto.
Enfim as sovelas furam e a faca pequena corta. São armas insignificantes, mas são armas.
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ANEXO F
Os tostões do sr. Mário de Andrade
O sr. Mário de Andrade, há algum tempo, lamentando o mau gosto e a imperícia que atualmente reinam e desembestam na literatura nacional, utilizou uma linguagem espirituosa e monetária: dividiu os nossos escritores em duas classes – a dos contos de réis, pelo menos centenas de milréis, onde se metem alguns indivíduos que arrumam idéias com desembaraço, e a dos tostões, gavetinha que encerra criaturas de munheca emperrada e escasso pensamento. O sr. Joel Silveira, sergipano bilioso, incluiuse modestamente na segunda categoria, tomou a defesa do troco miúdo, dos níqueis literários que enchem revistas, jornais, cafés, livrarias, cômodos ordinários em pensões do Catete.
Enquanto o autor de Macunaíma exige acatamento à tradição e à regra, o jovem contista de Onda raivosa se mostra desabusado e rebelde: não chega a atacar a cultura, mas referese a ela com tristeza, julgaa remota e inacessível ao homem comum.
Há uma técnica na arte, diz o sr. Mário de Andrade, Romain Rolland foi mais longe: afirmou, creio eu, que a arte é uma técnica. O moço nortista repele semelhantes exigências. Vivemos arrasados, o numerário foge, há dívidas e abundantes e faltanos vagar para os cortes, as emendas necessárias. Não faz mal que a produção artística saia capenga.
O que nos desagrada nessa questão, hoje morta, é notar que o crítico paulista, colando em alguns escritores etiquetas com preços muito elevados e rebaixando em demasia o valor de outros, vai tornar antipática a boa causa que defende, prepara terreno favorável ao paradoxo sustentado pelo sr. Joel Silveira. E teremos então uma demagogia louca. “Somos tostões, perfeitamente; um
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considerável número de tostões. Somem tudo isto e verão a quantia grossa que representamos.”
Não há nada mais falso. Mas os indivíduos que se imaginam com boa cotação no mercado naturalmente se encolhem, silenciosos por vaidade ou por não quererem molestar os níqueis comparandose a eles. E as moedinhas devem andar rolando por aí, satisfeitas, areadas, brilhantes, pensando mais ou menos assim: “Joel Silveira é dos nossos, inteiramente igual a qualquer um de nós. Ignorante que faz medo, nunca leu um livro. Conversa mal, não vai além destas pilhérias que a gente larga nos cafés. Mora numa casa cheia de pulgas, é amarelo como flor de algodão e tem a fala arrastada. Pobrezinho, com certeza come pouco ou não come. Pensa pouco ou não pensa. Um tostão, como eu, como tu, como aquele. Podemos supor que Joel Silveira valha mais de um tostão? Não podemos, razoavelmente, porque ele chegou perto de nós e gritou: Eu sou um tostão. Entretanto Joel Silveira inventa uns negócios que sujeitos entendidos elogiam. Ora se Joel, tão arrastado, tão amarelo, tão barato, faz contos e crônicas interessantes, por que não faremos nós coisa igual? Mexamonos, fundemos sociedades e pinguemos em revistas os nossos cinco vinténs de literatura.”
Um desastre. É necessário pôr fim a essa confusão, que nos pode render muito prejuízo. Já existe por aí uma quantidade enorme de livros ruins. E o sr. Joel Silveira não é tostão, nunca foi. Escreveu um excelente artigo para demonstrar que não sabe escrever.
1939ANEXO G
Uma palestra
Não me aventuro a discussões: limitome a dar alguns palpites, que provavelmente não serão aceitos, pois contrariam juízos bastante espalhados. Achome talvez em erro, mas arriscome a falar, procurando fugir a dificuldades que possam comprometerme. Vamos ao essencial.
Ouvi, com espanto, um escritor afirmar que, em literatura e noutras coisas, era necessário suprimir a técnica. Não nos disse porquê: referiuse apenas à necessidade. Essa economia de razões levoume a impugnálo do mesmo jeito: declarei simplesmente o contrário do que ele declarou. E o caso morreu, sem perda nem ganho para o auditório.
Não é conveniente, porém, ficarmos aí: reconheceremos sem esforço que o dito desse homem não tem pé nem cabeça. Se no trabalho simples não nos eximimos da aprendizagem, como evitála em trabalho complexo, na produção de um livro?
Ali por volta de 1935 realizouse em Moscou uma enquête sobre a literatura soviética. Lembrome da resposta de Romain Rolland. Havia nela uma frase de arrojo: “A arte é uma técnica” – o avesso do que ainda neste país asseveram, reproduzindo conceitos em moda entre 1922 e 1930. Com certeza o romancista exagerou: se a definição dele fosse justa, qualquer pessoa alcançaria bom êxito folheando um desses manuais que nos ensinam, em duzentas páginas, a maneira favorável de escrever. Isso não basta, suponho.
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Em conversa, um crítico português jogoume está fórmula: dez por cento de inspiração e noventa por cento de transpiração. Chegame também à memória a receita do espanhol a propósito de versos: maiúsculas no princípio, rima no fim, talento no meio.
Mas pergunto a mim mesmo se a busca da rima não influirá no talento, se a transpiração demasiada não será vantajosa à inspiração. Acho que sim. É o pensamento de um sujeito medíocre, estão julgando os senhores. De acordo, mas se me for possível, em rija labuta, reduzir um pouco a mediocridade, considerome bem pago.
Um cavalheiro nos amola querendo atenuar os prováveis defeitos de uma novela forjada em quinze dias. Falhas naturais, não é verdade? Foi a pressa. Quem exigiu tanta pressa? O nosso autor exporia obra mais aceitável se agüentasse dois anos, teimoso e paciente, o suadouro mencionado pelo crítico português. O dever do tipo que se dedica a este ofício é diminuir as suas imperfeições. Impossível dar cabo delas. Bem, já é um triunfo minorálas. Não devemos confiar às cegas num amável dom que a Divina Providência nos ofereceu. Em primeiro lugar não é certo havermos recebido tal presente; E, admitindose a dádiva, não nos ensinou as regras indispensáveis à fatura de um romance.
Essas miudezas são na verdade horrivelmente chatas. Surgiram na aula primária, alongamse, originam complicações – e não conseguimos livrarnos delas. Não conseguimos, que o pensamento vem daí, dessas pequenas arrumações de insignificâncias. Se não tivéssemos o verbo, seríamos animais, na opinião dos entendidos. O grito – emoções traduzidas em berros. Depois a interjeição. Em seguida a onomatopéia. Tornamonos afinal palradores, distanciamonos dos nossos irmãos mais velhos – e no fim da semana bíblica Deus viu que isto era bom. E aqui estamos a remexer idéias, impossíveis há alguns milênios, quando a humanidade vivia em nudez.
Temos o direito de achar desagradáveis as palavras que nos impingiram na infância, a maneira de flexionálas e juntálas. Mas é com essa matériaprima, boa ou má, que fabricamos nossos livros.
No Brasil, nesse infeliz meio século que se foi, indivíduos sagazes, de escrúpulos medianos, resolveram subir rápido criando uma língua nova do pé para a mão, uma espécie de esperanto, com pronomes e infinitos em greve, oposicionistas em demasia, e preposições no fim dos períodos. Revolta, cisma, e devotos desse credo tupinambá logo anunciaram nos jornais uma frescura que se chama “Gramatiquinha da fala brasileira”.
Essa gramatiquinha não foi publicada, é claro: não existe língua brasileira. Existirá, com certeza, mas por enquanto ainda percebemos a prosa velha dos cronistas. De fato, na lavoura, na fábrica, na repartição, no quartel, podemos contentarnos com a nossa gíria familiar. Seria absurdo, entretanto, buscarmos fazer com ela um romance. Às vezes a expressão vagabunda consegue estenderse, dominar os vizinhos, alargarse no tempo e no espaço.
Homens sabidos queimam as pestanas para dizernos porque uma palavra se fina sem remédio e outra tem fôlego se sete gatos. Respeitamos esses homens, quando eles metem uma delas no dicionário, respiramos com alívio. Estamos na presença de uma autoridade. No correr do tempo, achamos falhas nas autoridades e vamos corrigindo, com hesitações e dúvidas, um ponto, outro ponto. Mas afinal é
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bom que ela nos oriente. Desejamos saber o que nos diz, embora, depois de refletir, a mandemos para o inferno com muitos desaforos, redigidos, está visto, na sintaxe que abominamos. Enfim paciência. O homem tem rugas e cabelos brancos.
Não toleramos é que um novato nos ordene, esquecendo a regra, desrespeito aos frades. Por quê? Os frades não nos fizeram mal e não terem morrido em automóveis, em aeroplanos, não é motivo para que os matemos no papel. Já não existem galeões nem caravelas, mas a gente da minha terra abrasada, população que nem se pode lavar, conserva expressões dos mareantes aqui desembarcados no século XVI.
Perguntaramme há dias por que uma personagem sertaneja, esquecida em livro meu, se mexe de vante a ré. Sei lá! Sei que ela fala assim. Perdida no interior, longe da água, a minha parentela exprimese desse modo. – “Como vai, seu Fulano?” – “Assim, assim. Por aqui, navegando.” Navegar ali é impossível; contudo a palavra persiste, como no tempo das galés e dos bergantins. – “Anda ao socairo dele.” Talvez isso em Portugal se tenha arcaizado, mas no sertão do Nordeste, descendentes dos marujos que endureceram manejando socairos ainda guardam a locução esquisita, hoje corrompida. Não dizem ao socairo dizem assucar.
O que não existe, ao sul, ao norte, a leste, a oeste, são as novidades que pretenderam enxertar na literatura, com abundância de cacofonias, tapeações badaladas por moços dispostos a encoivarar duas dúzias de poemas em vinte e quatro horas e manufaturar romances com o vocabulário de um vendeiro.
Ninguém por estas bandas, que me conste, usou na linguagem falada preposições em fim de período. Essa construção inglesa não nos dará nenhum Swift. Porque em francês se diz jouer avec, o literato nacional descobre a pólvora escrevendo: “Temos aqui uma coisinhas para a gente brincar com.” Tencionarão justificar isso lembrando a sintaxe dos índios, mas a verdade é que não falamos nheengatu, e a composição insensata, alegremente recebida por garotos propensos a conquistar a glória num mês, é falsa.
De nenhum modo insinuo que devemos escrever como Frei Luís de Sousa, mas isto não é razão para acolhermos extravagâncias. Nos dois casos há pedantismo e ausência de clareza. E se não conseguirmos ser claros, para que trabalharmos? O nosso interesse é que todas as pessoas nos entendam, de vante a ré.
fevereiro de 1952
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