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Autores Stélio Furlan José Carlos Siqueira 2009 Literatura Portuguesa

Literatura Portuguesa - videolivraria.com.br · acrescentar que não só a compreensão da literatura medieval, mas a Litera- tura Portuguesa de modo geral, das primeiras cantigas

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AutoresStélio FurlanJosé Carlos Siqueira

2009

Literatura Portuguesa

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© 2008 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

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Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482 • Batel 80730-200 • Curitiba • PR

www.iesde.com.br

F985 Furlan, Stélio; Siqueira, José Carlos. / Literatura Portuguesa. / Stélio Furlan; José Carlos Siqueira. — Curitiba : IESDE

Brasil S.A. , 2009. 220 p.

ISBN: 978-85-7638-872-2

1. Literatura Portuguesa. 2. História e Crítica. 3. Movimentos Literários. 4. Poesia. 5. Prosa. I. Título.

CDD 869.09

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Sumário

Trovadorismo: 1198-1418 | 7Contexto histórico | 7A poesia trovadoresca | 9A Cantiga de Amor | 11Cantiga de Amigo | 13Cantigas de Escárnio e Maldizer | 16Principais trovadores | 17A permanência do Trovadorismo | 17

O Humanismo | 25O homem como centro do universo | 25O Humanismo em Portugal | 27Gil Vicente (c. 1465-c. 1537): a grande figura literária do Humanismo | 28

Classicismo: 1527-1580 | 41A Renascença Portuguesa | 41Os gêneros clássicos | 42Épica: Os Lusíadas, um prodígio arquitetônico | 43Os Lusíadas: episódios | 45Conclusão sobre Os Lusíadas | 51A lírica camoniana | 52Os sonetos de Camões | 53Amor com engenho e arte | 54

Barroco: 1580-1756 | 59Pode-se falar em Barroco? | 59Poesia barroca portuguesa | 61Prosa barroca portuguesa | 64Conclusão | 67

Arcadismo: 1756-1825 | 73A reação contra o Barroco literário | 73Principais lemas dos poetas árcades | 75Bocage e o Arcadismo | 79Conclusão | 80

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O Romantismo: prosa | 89Romantismo e burguesia | 89A sensibilidade romântica e o gênero romance | 90O estabelecimento do liberalismo em Portugal e o romance | 92A sedimentação do romance em Portugal | 101

O Romantismo: poesia | 105A arte como mercadoria | 105A sensibilidade romântica e a poesia | 106As idéias liberais, o ultra-romantismo e o nacionalismo | 110A originalidade e a autenticidade tornadas convenção | 115

O Realismo: 1865-1890 | 123O “realismo” como arma de crítica social e política | 123A poesia realista | 129A prosa realista | 132

Simbolismo | 143Portugal simbolista | 147O Simbolismo Português | 147Modelos para o Modernismo | 153

O Saudosismo | 159A Sociedade Renascença Portuguesa e o Saudosismo | 159Florbela Espanca (1894-1930): uma poesia em suspensão | 164Precursores do Modernismo | 166

Modernismo: Geração de Orpheu | 171A revista Orpheu | 171Fernando Pessoa (1888-1935) | 172Mário de Sá-Carneiro (1890-1916) | 179Almada-Negreiros (1893-1970) | 180A epopéia portuguesa moderna: de Os Lusíadas a Mensagem | 181

Modernismo Presencista | 187O direito à liberdade de criação | 187A República e a ditadura de Salazar | 188A revista Seara Nova (1919-1974) | 188A revista Presença (1926-1940) | 190A autonomia da literaturae sua relação mediada com a realidade | 195

Gabarito | 201

Referências | 209

Anotações | 219

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Apresentação

Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutrae te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível que lhe deres:Trouxeste a chave?

Carlos Drummond de Andrade

“Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: ‘Navegar é preci-so, viver não é preciso’. Quero para mim o espírito (d)esta frase, transforma-da a forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar”: esta conhecida passagem de Fernando Pessoa serve-nos de mote para justificarmos as travessias e os percursos pelo vasto espaço da Literatura Portuguesa.

O objetivo principal é o de compreender elementos para o estudo crítico-produtivo das manifestações canônicas da Literatura Portuguesa, en-tre 1189 e 1915, situando-a no contexto da literatura ocidental.

Como estratégia de leitura, vamos centrar nosso investimento discur-sivo e investigativo no que singulariza as diferentes manifestações literárias do medievo ao início do século XX, a saber:

– Trovadorismo (1198-1418);

– Humanismo (1418-1527);

– Classicismo (1527-1580);

– Barroco (1580-1765);

– Arcadismo (1756-1825);

– Romantismo (1825-1865);

– Realismo (1865-1890);

– Simbolismo (1890-1915);

– Saudosismo (a partir de 1912); e

– Modernismo (a partir de 1915).

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Você deve se perguntar o porquê do ano 1189, o porquê do ano 1915. Utilizaremos essas datas menos como marcos definitivos que como balizas temporais para localizarmos, entre aproximações e distanciamentos, cada arte poética ao longo desse recorte temporal.

Alguns estudiosos das origens da Literatura Portuguesa consideram 1189 um dos anos prováveis da escrita da “Canção da Ribeirinha”, de Paio Soares de Taveirós, a quem se atribui o primeiro poema escrito em língua portuguesa. Outros pesquisadores consideram a publicação da revista Orpheu, em 1915, com a participação fundamental de Fernando Pessoa, o marco inicial do Modernismo em Portugal. Se tais datas não passam de convenções (não consensuais, diga-se de passagem), não é menos certo di-zer que derivam de um esforço reflexivo e investigativo sobre as condições de possibilidade da textualidade lusitana.

Em última instância, desejamos que estas páginas sobre Literatura Portuguesa estimulem a reflexão sobre a importância da Literatura como um modo privilegiado de conhecimento, como uma maneira especial de ver e dizer o mundo. E também que possam incentivar o contato prazeroso com o Texto, ao que chamaremos fruição textual.

Em A Lírica Trovadoresca, Segismundo Spina escreve que para se compreender a Literatura da Idade Média é necessário amá-la. Pode-se acrescentar que não só a compreensão da literatura medieval, mas a Litera-tura Portuguesa de modo geral, das primeiras cantigas de amor e de amigo às textualidades contemporâneas, solicita um envolvimento amoroso.

Nesse sentido, consideramos oportuno iniciarmos a nossa travessia literária com uma reflexão sobre a arte de amar (ars amatoria), tema por excelência do lirismo trovadoresco medieval.

Stélio Furlan e José Carlos Siqueira

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Classicismo: 1527-1580Stélio Furlan

José Carlos SiqueiraUma verdadeira viagem de descobrimento

não é encontrar novas terras,

mas ter um olhar novo.

Marcel Proust

A Renascença Portuguesa

Mar Portuguez(PESSOA, 1986)

Ó mar salgado, quanto do teu salSão lágrimas de Portugal!Por te cruzarmos, quantas mães choraram,Quantos filhos em vão rezaram!Quantas noivas ficaram por casarPara que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a penaSe a alma não é pequena!Quem quere passar além do BojadorTem que passar além da dor.Deus ao mar o perigo e o abysmo deu,Mas nelle é que espelhou o céu.

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“Mar Portuguez”, poema de Fernando Pessoa publicado no livro Mensagem (1934) evoca o espírito de conquista que marcou a época das Grandes Navegações oceânicas. Se em um primeiro momento questiona o valor pago pela ousadia daqueles empreendimen-tos marítimos, na segunda estrofe ele valida o esforço e adverte que para vencer o medo se faz necessária a coragem de enfrentar o desco-nhecido, os “perigos e abismos”. Ultrapassar o “Bojador” significava ir além daquele limite ge-ográfico (situado na costa ocidental da África) conhecido pelos navegadores europeus no fi-nal período medieval.

Uma das mais decisivas expedições marítimas foi a capitaneada por Vasco da Gama, ocorrida entre 1497 e 1499 e resultando na descoberta da tão ansiada rota marítima para as Índias. A partir desse mo-mento até meados do século XVI, Portugal alcançou o seu apogeu e tornou-se o “cais do mundo”. Como veremos, Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, publicado em Lisboa no ano de 1572, canta essa façanha que “transformou a face do mundo” (Fernando Pessoa), e faz isso em um estilo “grandíloco e corrente”.

Os gêneros clássicos Os Lusíadas é considerado a epopéia universal da era moderna. Mas o que se entende por epo-

péia? O que a diferencia da poesia lírica?

Dentre as características principais da poesia lírica, afora a expressão dos sentimentos do poeta sobre assuntos cotidianos (logo, a expressão da “primeira pessoa do singular do tempo presente”), men-ciona-se a brevidade e o poder de concisão.

O termo lírico deriva das origens desse tipo de poesia, antigamente entoada ou falada com o acompanhamento de um instrumento de cordas – a lira. Dessa associação nasceu uma de suas marcas registradas: a preocupação com a modulação sonora do texto. Vejamos um poema lírico de Camões:

Portugaliae (Portugal) no atlas Theatrum Orbis Terrarum (Teatro do mundo), Abraham Ortelius (1579?). Biblioteca do Congresso. Divisão de Geografia e Mapas.

Amor é um fogo que arde sem se ver,

é ferida que dói e não se sente;

é um contentamento descontente;

é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;

é um andar solitário entre a gente;

é nunca contentar-se de contente;

é um cuidar que ganha em se perder. (CAMÕES, 2008)

Com efeito, quando lemos os versos desse soneto a musicalidade do texto se efetiva graças à seleção vocabular que explora os dígrafos nasalados (am, um,em, em, in), ao uso da anáfora (repe-tição de versos na mesma posição na estrofe – “é um”, “É um”) e da aliteração (repetição de conso-antes: “contentamento descontente”, “dor que desatina”), e enfim à identidade sonora das últimas palavras nos versos (rimas) e a rigorosa versificação. É o que se pode chamar de uma autêntica par-titura lírica.

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43|Classicismo: 1527-1580

Conceito de epopéia Embora a preocupação com a qualidade sonora dos versos e a expressão de anseios pessoais não

destoe da epopéia camoniana, vale dizer que ela se distancia da poesia lírica por ser uma longa narra-tiva versificada com significação nacional e universal. O nome épico deriva do grego épos (“palavra, no-tícia, oráculo”) e poiein (“fazer”). Enquanto gênero literário, toda epopéia deve ser uma glorificação, no mais alto estilo poético, de fato heróico e maravilhoso. A definição proposta por Hegel (1770-1831) ca-lha à perfeição:

A epopéia, quando narra alguma coisa, tem por objeto uma ação que, por todas as circunstâncias que a acompanham e as condições nas quais se realiza, apresenta inumeráveis ramificações pelas quais contata com o mundo total de uma nação ou de uma época. É, portanto o conjunto da concepção do mundo e da vida de uma nação que [...] constitui o con-teúdo e determina a forma do épico propriamente dito. (HEGEL, 2004, p. 91, grifos nossos)

Então caberia perguntar: qual universalidade de Os Lusíadas? A narração de certa travessia maríti-ma possui tal dimensão? Para além de uma simples navegação, trata-se de uma verdadeira experiência oceânica. No plano horizontal, afora a celebração das glórias portuguesas, canta-se o início das relações marítimas entre Ocidente e Oriente. No plano vertical, há a representação do sistema total do universo, a engrenagem do mundo.

Épica: Os Lusíadas, um prodígio arquitetônico A rigor, não se pode discorrer sobre Os Lusíadas em algumas poucas páginas, tal a sua com-

plexidade estrutural, a diversidade de segmentos narrativos e de narradores, as diferentes concep-ções de mundo da época, o diálogo com os textos canônicos, a singular utilização da linguagem poética. Vamos privilegiar alguns aspectos que consideramos relevantes para a compreensão do plano geral da obra.

O estudo da obra camoniana e dos poetas representativos do Classicismo implica observar a emulação dos nomes consagrados da tradição, noutras palavras, a necessária imitação dos antigos. Se na poesia lírica Camões toma de empréstimo versos de Petrarca para recriá-los em outras varia-ções, na épica Camões colhe elementos das antigas epopéias. Assim como Homero celebrou os fei-tos dos gregos na Ilíada; assim como Virgílio cantou a grandeza de Roma e sua origem na Eneida, Camões enalteceu as glórias lusitanas. Observe as estrofes de abertura no primeiro canto de Os Lusíadas:1

As armas e os barões assinalados

Que, da Ocidental praia Lusitana, (Ocidental praia lusitana: a cidade de Lisboa)

Por mares nunca de antes navegados

Passaram ainda além da Taprobana, (Taprobana: o atual Sri-Lanka, ilha no oceano Índico)

E em perigos e guerras esforçados

Mais do que prometia a força humana,

E entre gente remota edificaram

Novo Reino, que tanto sublimaram.

1 As estrofes (ou estâncias) citadas ao longo desta aula foram da edição da Nova Fronteira, 1993, por conta da adaptação ao português con-temporâneo, que sem alterar a forma poética resultou em um texto mais fluente para o leitor moderno.

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E também as memórias gloriosas

Daqueles Reis que foram dilatando (Reis de Portugal que serão lembrados nos cantos III e IV)

A Fé, o Império, e as terras viciosas

De África e de Ásia andaram devastando,

E aqueles que por obras valerosas

Se vão da lei da Morte libertando:

− Cantando espalharei por toda a parte

Se a tanto me ajudar o engenho e arte. (CAMÕES, 1993, I, 1-2)

O verso inaugural revela o propósito do poema épico: celebrar as conquistas heróicas e os nobres guerreiros assinalados ou escolhidos por Deus. Em seguida, justifica a importância da sua escolha: cele-brar os varões que partiram do litoral português, ultrapassaram os limites do mundo conhecido e, com bravura e coragem, dominaram e construíram o novo reino tão desejado, o império português na Ásia.

Na segunda estrofe, o narrador amplia o tema: não só os bravos navegadores e seus feitos mili-tares, mas também a memória, o passado dos reis portugueses que ampliaram os domínios da pátria e contribuíram para a expansão do cristianismo, portanto merecedores de “entrar para a história”, de ter os seus nomes imortalizados pelo trabalho poético.

Nos dois últimos versos da segunda estrofe, o narrador faz alusão ao “engenho” (a capacidade de criação, o pensamento) e à “arte” (o conhecimento das técnicas de composição, na esteira da poesia de ex-tração clássica).

É o que se percebe logo na primeira estrofe, em oitava rima ou oitava real, pois é formada de oito versos decassílabos, com esquema regular de rimas:

a primeira palavra rima com a terceira e com a quinta;::::

a segunda palavra rima com a quarta e com a sexta;::::

e as duas últimas palavras possuem a mesma identidade sonora.::::

Esse é o esquema abababcc. Ao longo dos dez cantos que dividem o plano geral de Os Lusíadas, essa forma fixa de composição se repete 1.102 vezes, somando um total de 8.816 versos.

Partes da epopéia Os dez cantos da epopéia camoniana são estruturados conforme as cinco partes necessárias de

uma epopéia:

proposição – definição do assunto;::::

invocação – súplica às divindades da poesia para que auxiliem na criação do poema;::::

dedicatória – oferecimento da obra (no caso, em homenagem ao Rei D. Sebastião);::::

narração – sucessão dos episódios que formam a narrativa;::::

epílogo – as considerações finais.::::

Já abordamos a proposição e, assim, vamos aos outros elmentos.

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45|Classicismo: 1527-1580

Invocação No caso da invocação, a exemplo de Homero que invocava Calíope, divindade grega que dirigia

a atividade poética, Camões solicita o auxílio das Tágides, as ninfas do rio Tejo, para que elas lhe conce-dam entusiasmo para que a obra resulte tão elevada quanto o assunto proposto:

E vós, Tágides minhas, pois criado

Tendes em mim um novo engenho ardente,

Se sempre, em verso humilde, celebrado (verso humilde: a poesia lírica)

Foi de mim vosso rio alegremente,

Dai-me agora um som alto e sublimado, (sublimado: elevado)

Um estilo grandíloquo e corrente, (grandíloquo: nobre, altissonante)

Por que de vossas águas Febo ordene (Febo ou Apolo: deus do sol e da poesia)

Que não tenham inveja às de Hipocrene. (CAMÕES, 1993, I, 4)

O narrador sugere nos dois últimos versos que os feitos dos novos argonautas (o navegador Vasco da Gama e seus companheiros de viagem) rivalizam com o dos navegadores antigos. Em outras pala-vras, que o poema auxiliado pelas Tágides será tão sublime quanto os inspirados pela lendária fonte da Antigüidade (Hipocrene) que concedia o dom da poesia a quem bebesse de suas águas.

Dedicatória Na dedicatória, que ocupa 13 estrofes, o narrador se dirige à D. Sebastião, rei de Portugal:E vós, ó bem nascida segurança

Da Lusitana antiga liberdade,

E não menos certíssima esperança

De aumento da pequena Cristandade; (CAMÕES, 1993, I, 6)

Convém notar, nesses versos da sexta estrofe, a imagem proposta para D. Sebastião justamen-te como um barão assinalado: a um só tempo, segurança de autonomia política e esperança de difu-são do Cristianismo. Note-se que essa é uma imagem de D. Sebastião no campo da fabulação, uma imagem romanceada, pois seis anos após a publicação de Os Lusíadas, em uma tentativa de alargar a Fé e o Império, o rei desapareceu em meio a uma desastrada campanha militar em Alcácer Quibir, no Marrocos. Em conseqüência, Portugal perdeu sua autonomia política, sendo governado pela Espanha até 1640, quando ocorreu a chamada Restauração.

Os Lusíadas: episódios Cumpridas as primeiras etapas da epopéia, Camões solta as asas da imaginação e brinda o leitor

com uma história fabulosa. O fascínio da obra decorre menos do relato da história nacional dos portu-gueses e mais do modo como Camões articula o enredo, no qual contracenam seres humanos e deu-ses olímpicos.

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A narração da viagem começa já com as naus navegando em alto-mar, com ventos favoráveis. Nesse momento, os deuses do Olimpo reúnem-se em concílio para deliberarem sobre a jornada, uma vez que sobre ela não havia consenso. A viagem despertara a admiração e o afeto de Vênus, a deusa do amor, que identificara nos novos argonautas a mesma ousadia dos antigos navegadores. Ao longo de toda a viagem, ela intervém a favor dos lusitanos, advertindo-os dos ardis de Baco, acalmando tempes-tades e por aí afora. Assim, na obra se articulam dois planos:

o plano da história de Portugal e da viagem propriamente dita; e::::

o plano do maravilhoso, com a intriga entre deuses pagãos.::::

Velho do Restelo Convém notar que, se em Os Lusíadas há a celebração do valor de um povo que expande o mun-

do geograficamente – “No largo do mar fazendo novas vias” (Canto V, 66), “E, se mais mundo houvera, lá chegara” (Canto VII, 14) –, não se pode conceber esse poema como puramente laudatório das armas e dos barões assinalados de Portugal. Ao preservar as vozes dissonantes sobre o propósito das navega-ções, Camões se revela atento ao vasto rumor discursivo que o circundava. É o caso do Velho do Restelo, que, no episódio da partida das naus (Canto IV), dá voz ao seu descontentamento de modo a ser ouvi-do claramente pelo povo e pelos nautas. Leia-se:

– “Ó glória de mandar! Ó vã cobiça

Desta vaidade a quem chamamos Fama!

Ó fraudulento gosto, que se atiça

C’oa aura popular que honra se chama! (C’oa: com uma)

Que castigo tamanho e que justiça

Fazes no peito vão que muito te ama!

Que mortes, que perigos, que tormentas,

Que crueldades nele exprimentas! ( CAMÕES, 1993, IV, 95)

Dentre as possibilidades de leitura desse episódio, citamos em segunda mão Afrânio Peixoto, para o qual ele seria

[...] representativo do espírito conservador português das populações do Norte – eminentemente afeitas à terra –, em oposição a índole aventureira e comercial das populações do Sul – de vocação para o mar e impelidas por uma inquie-tação permanente [...] (BECHARA; SPINA, 2001, p. 21).

Outros estudiosos afirmam que o Velho do Restelo foi criado para expressar o veio crítico de Camões, dissimulando o seu ponto de vista sobre aquela aventura lusitana.

Por certo, afora o Velho do Restelo – que com “um saber só de experiências feito” (Canto IV, 94) tece uma alocução condenatória da aventura portuguesa e à política mercantilista –, outro episódio que problematiza o ufanismo acrítico é a história de Inês de Castro. Não se trata de uma história só de feitos militares e marítimos, portanto, mas também de amores frustrados ou não. Com os episódios da personagem histórica Inês de Castro e da figura mitológica do gigante Adamastor, Camões canta os mártires do amor.

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Inês de Castro A história de Inês de Castro é um dos temas

de maior repercussão na literatura portuguesa, do medievo aos dias atuais. Há muitas variações sobre esse tema. Camões retoma o assunto histó-rico para adorná-lo com engenho e arte.

Em poucas linhas, trata-se de uma pai-xão proibida entre o príncipe D. Pedro e Inês de Castro, dama de companhia de sua espo-sa. D. Pedro mandou construir um palácio em Coimbra, onde manteve uma ardente relação secreta com Inês, com quem teve filhos. Após desaprovação geral, o rei Afonso IV, pai do prín-cipe, ouviu o murmurar da nobreza e, persuadi-do por seus conselheiros, “tirar ao mundo Inês determina”, o que gerou a revolta de D. Pedro.

Segundo a lenda, quando assumiu o trono após a morte de Afonso IV, D. Pedro (agora o rei D. Pedro I de Portugal) puniu os antigos conselheiros de seu pai, assassinos de sua amada, mandando arrancar-lhe os corações. Não satisfeito, fez transladar de Coimbra para Lisboa o corpo de Inês e o coroou.

Essa é a história da “mísera e mesquinha”, pobre e infeliz, “Que despois de ser morta foi Rainha”. Daí deriva a máxima popular de que “agora é tarde, Inês é morta”.

Camões insere o episódio no terceiro canto. Na travessia rumo à Índia, a armada chega a Melinde (cidade pertencente ao Quênia, na África), cujo rei solicita a Vasco da Gama que conte a história de Portugal. Nos cantos III, IV e V, Vasco da Gama narra a história das duas primeiras dinastias portuguesas até o início da viagem. O episódio de Inês de Castro ocupa 17 estrofes do terceiro canto. Inês é apresen-tada como vítima da inexorabilidade do Amor (Canto III).

O Amor “áspero e tirano”, cuja força escraviza os corações, é responsabilizado pela morte de Inês: ele que não se satisfaz com as lágrimas dos amantes, pois também quer o sangue dos apaixonados nos seus altares.

Mas não só: Inês é morta também por razões de Estado. Camões não deixa de referir que o “ve-lho pai sesudo”, D. Afonso IV, mostra-se hesitante diante do crime – afinal, reconhecia o amor infinito de Pedro e Inês, mãe de seus netos. Porém, ele se deixa levar pela insistência dos seus conselheiros, que pretendiam sustentar a vontade do povo:

Traziam-na os horríficos algozes (horríficos algozes: terríveis carrascos, assassinos)

Ante o Rei, já movido a piedade; (movido a piedade: motivado pela piedade)

Mas o povo, com falsas e ferozes

Razões, à crua morte o persuade.

Ela, com tristes e piedosas vozes,

Saídas só da mágoa e saudade

Do seu príncipe e filhos, que deixava,

Que mais que a própria morte a magoava, (CAMÕES, 1993, III, 124)

O assassinato de D. Inês de Castro.

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Então, Inês torna-se um dos narradores do poema e tenta sensibilizar o rei e provar a sua inocên-cia. A sua fala eloqüente fez dela um dos grandes símbolos femininos da literatura universal. Resta dizer que, ao incorporar as vozes dissonantes, Os Lusíadas não é um texto monológico, não defende um só ponto de vista, e assim não mascara as torpezas cometidas pelos dirigentes da nação.

Adamastor Na seqüência da narração da história de Portugal e

da viagem ao rei de Melinde, Vasco da Gama descreve a proeza da superação do “Cabo Tormentório” e dos “vedados términos” (limites proibidos). Para que a travessia de Vasco da Gama às Índias fosse bem-sucedida, era necessário ultra-passar o cabo das Tormentas, ao sul da África. As tentativas anteriores resultaram em naufrágio. O grande feito dos na-vegadores lusitanos que venceram esse mar tenebroso foi celebrado com a figura mitológica do gigante Adamastor. É uma das passagens de maior brilho poético.

Ao chegarem ao extremo sul da África, os navegan-tes foram surpreendidos por uma gigantesca tempestade. A tormenta é personificada na figura do Adamastor, “ficção incomparável e única em toda a literatura épica” (BECHARA; SPINA, 2001, p.152), e um dos traços distintivos da originali-dade camoniana. Em meio à tempestade, “os nautas avistam uma figura “robusta e válida [forte], de disforme e grandíssi-ma estatura”, que os interpela, chama-os de “gente ousada” que navega em seus “longos mares”.

Então Vasco da Gama, capitão da armada, vence o medo e pergunta-lhe: “Quem és tu? Que esse estupendo/ Corpo, certo, me tem maravilhado”. Com a “boca e os olhos negros retorcendo”, Adamastor apresenta-se e conta a sua trágica história de amor: apaixonara-se perdidamente por Thetis, uma divinda-de marítima que recusara o seu amor em virtude da “grandeza feia” de seu “gesto” (rosto). Inconformado, Adamastor decide tomá-la à força, porém, é com astúcia que Dóris, mãe da ninfa, promete-lhe um en-contro com Thetis. Então, por desejar e lutar por um amor impossível, superior à sua condição, os deu-ses o punem com uma metamorfose:

“Oh, que não sei de nojo como o conte! (nojo: desgosto)

Que, crendo ter nos braços quem amava,

Abraçado me achei c’um duro monte

De áspero mato e de espessura brava.

Estando c’um penedo fronte a fronte, (fronte a fronte: frente a frente)

Que eu pelo rosto angélico apertava,

Não fiquei homem, não, mas mudo e quedo

E junto dum penedo outro penedo! (CAMÕES, 1993, V, 56)

O episódio de Adamastor está inserido no canto V, metade da viagem e metade do Poema. Vai da estrofe 37 à estrofe 61. Após contar a sua sina, que não deixa de comover o leitor com o seu desvario amoroso, o gigante é elevado à condição de profeta da decadência de Portugal, da “triste ventura, ne-

O encontro com o gigante Adamastor.

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gro fado” que pesará sobre o ilustre peito lusitano: “Naufrágios, perdições de toda sorte/ Que o menor mal de todos seja a morte” (Canto V, 44).

Em um sentido alegórico, Adamastor personifica a dureza do destino e as infelicidades do senti-mento amoroso, o desconcerto do mundo amoroso, é outro penitente do amor. Ou ainda, simboliza os perigos do mar, as forças da natureza. Para Ivan Teixeira, Adamastor representa não só o “limite entre a segurança da terra e o eterno abismo do fim do mundo”, como também “as dimensões míticas do mar tenebroso” (TEIXEIRA, 1999, p. 186). Em outras palavras, figura como um portal entre Oriente e Ocidente, marco divisor de continentes.

É importante lembrar que a poesia de extração clássica possuía uma função pedagógica, que consistia na máxima do dulce et utile: unir o útil ao agradável e vice-versa. Nas palavras de Camões, “Agora deleitando, ora ensinando” (Canto X, 84). Nesse sentido, a leitura de Os Lusíadas também ganha interesse não só pelas críticas à “glória de mandar, a vã cobiça”, mas também pelo modo de se pensar o mundo no século XVI, pela representação do sistema total do universo então concebido. Esse momen-to epifânico é precedido pelo episódio da ilha dos amores.

Ilha dos Amores Após a longa jornada por mares nunca dantes na-

vegados; após o enfrentamento dos perigos de terras e gentes, mares e céus e todas as ciladas armadas por Baco; enfim, após a descoberta da rota marítima que li-gasse Portugal às Índias, e estabelecidos contatos cul-turais e comerciais com o Samorim, rei do Indostão; na viagem de regresso os navegantes portugueses foram premiados com um paraíso terrestre e com a visão da máquina do mundo, como se lê nos cantos IX e X.

Como dissemos, é a mitologia que dá unidade ao enredo na epopéia camoniana. Ao final do poema, Vênus reúne as nereidas (as deusas mais formosas e sen-suais do oceano) em uma ilha paradisíaca, um verdadei-ro locus amoenus (lugar ameno, aprazível), próprio para a plena realização amorosa. Segue-se a satisfação da “cor-poral necessidade”, não sem antes haver alguma recusa para que a conquista fosse mais deleitosa (Canto IX, 72), o que nos permite afirmar que essa ilha divina é um espaço possível para o prazer e um contraponto aos insucessos de Inês e Adamastor. Aliás, António José Saraiva já havia notado uma constante em Os Lusíadas, uma caracterís-tica tipicamente renascentista: “a palpitação afrodisíaca que vibra em todo poema” (SARAIVA, 2001, p. 331).

Ao capitão da armada coube o amor de Tétis,2 a quem “Todo o coro das ninfas obedece”. A deu-sa Tétis toma a mão de Vasco da Gama e o leva ao seu palácio situado no “cume dum monte alto e divi-

2 Não confundir com a ninfa Thétis, filha de Dóris e Peleu, desejada por Adamastor. Na mitologia grega, Tétis é filha de Gea (a Terra) e Urano (Céu). Sendo a maior dentre todas as ninfas, segundo Camões, Tétis personifica a fecundidade feminina do mar.

Um sátiro e as ninfas.

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no”. E, após passarem o dia “em doces jogos e em prazer contínuo” (Canto IX,87), oferece a ele e aos demais nau-tas um banquete. Acerca do sentido alegórico da Ilha de Vênus, podemos compreendê-la como uma recom-pensa pelos “sofridos danos” (IX, 18) e pelas “lusitânicas fadigas” – enfim, um modo de festejar a “glória por tra-balhos alcançada” (IX,18). E mais. Afora a recompensa de Vênus pela viagem marítima no plano histórico, te-mos uma exaltação da navegação do espírito no plano mítico e transcendental.

É curioso notar que a “fermosa ilha, alegre e delei-tosa”, expressão renascentista por excelência do erotis-mo triunfal e pagão, antecede à revelação da máquina do mundo cristianizada. Após o banquete, Tétis guia o Gama a um “erguido cume” para expor os segredos da natureza jamais vistos por olhos humanos, nem compreendidos pela “vã ciência/ Dos errados e míseros mortais” (X, 76). É o momento de revelação do que move o mundo, de como então se concebia a relação da terra com o universo e os limites geopolí-ticos do século XVI, outro traço que contribui para a universalidade da obra.

Experiência Oceânica O final de Os Lusíadas é apoteótico (Canto X, 77 e 78).

Primeiro, há uma representação da esfera celeste, conforme a cosmografia de Ptolomeu: a ter-::::ra imóvel, no centro do universo, cercada pelo ar e pelo fogo e por 11 orbes (esferas) onde se situam a Lua, Mercúrio, Vênus, o Sol e por aí afora.

Na seqüência, Tétis descreve a Máquina do Mundo.:::: É de se notar que na construção do trasun-to, da visão resumida do mundo, Camões associa a tese de Ptolomeu à teologia medieval se-gundo a qual “Deus é Causa Primeira e Final” (HANSEN, 2005, p. 188), o autor máximo (Canto X, 79-80).

A revelação da “grande máquina do mundo” ao Gama é emblemática: assim se revela o aspecto ideológico da missão náutica, uma vez que positiva e legitima a política do reino, a sua cruzada expan-sionista como uma vontade divina. E assim Camões reitera, em outra variação, o que foi proposto logo no primeiro verso, no qual os navegantes seriam os assinalados, sagrados e consagrados para executar os desígnios de Deus.

A máquina do mundo.

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Conclusão sobre Os Lusíadas Resta perguntar: Os Lusíadas seria uma epopéia clássica? A rigor, se há elementos favoráveis a

essa tese, o mesmo se pode dizer do contrário. A começar pela presença do Poeta em seu poema – e vale notar que isso problematiza as regras da epopéia teorizadas por Aristóteles (384-322 a.C.).

Na sua Poética – o primeiro tratado sistemático sobre o discurso literário escrito no Ocidente –, Aristóteles define a epopéia como imitação narrativa metrificada: o relato em verso de uma história conduzido por um narrador. Além disso, a epopéia deve girar em torno de uma ação inteira e completa, com princípio, meio e fim, e tomar a aristocracia ou ações sérias como o objeto a ser representado. Tudo isso se aplica ao poema épico de Camões.

No entanto, Aristóteles pontifica que o poeta épico “deve dialogar com o leitor o menos possível, pois não é procedendo assim que ele é imitador” (ARISTÓTELES, 2008), o que não ocorre em Os Lusíadas, pois, como escreve Jorge de Sena, a obra camoniana é uma longa e constante e repetida exposição das suas opiniões pessoais, a que nem a impessoalidade do poema épico foi capaz de por eficazmente um freio. Na mesma linha, Helder Macedo observa que Camões intervém na sua narrativa por meio de re-correntes comentários que servem para caracterizar todos os outros narradores como ficção dramática de sua própria voz, ou para colocar o sentido global do poema na perspectiva crítica do seu presente. O epílogo da epopéia é significativo:

Não mais, Musa, não mais, que a Lira tenho

Destemperada e a voz enrouquecida, (Destemperada: desafinada )

E não do canto, mas de ver que venho

Cantar a gente surda e endurecida.

O favor com que mais se acende o engenho (Favor: aplauso)

Não no dá a pátria, não, que está metida

No gosto da cobiça e na rudeza (Gosto: prazer)

Duma austera, apagada e vil tristeza. (Austera, apagada e vil tristeza: tristeza sombria)

(CAMÕES, 1993)

É de se notar o desalento do poeta e como expõe o seu veio crítico. Afora a justaposição das cos-movisões cristã e ptolomaica, o que mais instiga é o fato de que após o momento apoteótico, a voz do narrador, identificada com a do poeta, inclina-se para um comentário de feições antiépicas.

Nesse sentido, não é possível classificar Os Lusíadas como epopéia inteiramente elaborada nos moldes clássicos.

Enfim, nada mais oportuno que concluir essa tentativa de esboço sobre o texto camoniano com as sábias palavras de Cleonice Berardinelli: “Os Lusíadas são a epopéia dos novos tempos, tempos con-traditórios. Alimentado de tais contradições, o poema adquire modernidade e se afirma como a única epopéia representativa do Renascimento europeu.” (BERARDINELLI, 2000, p. 55)

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A lírica camoniana Considerado o príncipe dos poetas pelos seus contemporâneos, Camões não é menos conheci-

do por sua poesia lírica, publicada em primeira mão em Rhythmas (Rimes), livro póstumo organizado por Fernão Rodrigues Lobo a partir da recolha de vários manuscritos e publicado por Estevão Lopes em 1595.

Luís Vaz de Camões. Folha de rosto da primeira edição de Rhythmas.

A primeira edição de Rhythmas foi dividida em cinco partes:

65 sonetos;::::

10 canções, 1 sextina e 5 odes;::::

4 elegias e 3 oitavas;::::

8 éclogas; e::::

78 composições em redondilhas (versos de cinco ou sete sílabas poéticas), bem ao gosto ::::popular.

Interessa destacar que em Rhythmas se encontram textos representativos do Classicismo, seja na rigidez das normas de composição, conforme os padrões consagrados pela tradição (soneto, écloga, elegia, ode etc.), seja na predileção pela medida nova (os versos decassílabos), seja no campo semânti-co (conteúdo) dessas composições, com várias alusões mitológicas, consciência da brevidade da vida, concepção neoplatônica de amor ou o seu questionamento.

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Os sonetos de Camões Selecionamos para a análise dois sonetos de Camões.

Eu cantarei de amor tão docemente

Eu cantarei de amor tão docemente,

Por uns termos em si tão concertados, (Concertados: harmoniosos)

Que dois mil acidentes namorados (Acidentes namorados: ocorrências amorosas)

Faça sentir ao peito que não sente.

Farei que amor a todos avivente, (Avivente: anime)

Pintando mil segredos delicados,

Brandas iras, suspiros magoados,

Temerosa ousadia e pena ausente. (Temerosa: tímida; pena: saudade)

Também, Senhora, do desprezo honesto (Desprezo honesto: orgulho da sua linhagem, altivez)

De vossa vista branda e rigorosa,

Contentar-me-ei dizendo a menor parte. (a menor parte: um pequeno defeito, ou o “desprezo honesto”)

Porém, pera cantar de vosso gesto (Pera: para; gesto: rosto)

A composição alta e milagrosa

Aqui falta saber, engenho e arte. (falta saber, engenho e arte: falta conhecimento dos preceitos, talento ou inspiração e a técnica poética)

(CAMÕES, 2008)

Ao longo desse soneto, escrito conforme a tradição italiana, constata-se uma celebração do amor e da singularidade da mulher. Note-se que o amor é apresentado de maneira contraditória, feito de “brandas iras” e “temerosa ousadia”, embora capaz de despertar os que não vivenciaram esse complexo sentimento.

No que diz respeito à figuração do feminino, Camões se refere a uma Senhora, dona de um olhar a um só tempo brando e rigoroso, o que pode sugerir tanto a sua condição social quanto o distancia-mento dela em relação ao sujeito poético.

É curioso notar que, tentando descrever o gesto, a expressão facial da Senhora, a composição alta e prodigiosa do rosto, o poeta afirma modestamente não ser possuidor de “engenho e arte”, o que tam-bém não deixa ser contraditório, pois o soneto é esteticamente perfeito. O nosso interesse se concen-tra na chave de ouro com que se arremata o poema. A fatura metapoética se caracteriza no verso “Aqui falta saber, engenho e arte”.

Saber::::: na Carta XII, de António Ferreira, recomendava-se o Saber como princípio fundamen-tal: “Do bom escrever, saber primeiro é fonte”, ou “Quem não sabe do ofício não o trata”, pois se considerava inadmissível a mediocridade ou a auto-suficiência.

Engenho e arte::::: o engenho remete à capacidade de concepção, à inspiração que deve ser dis-ciplinada pela regras da arte. Lembre-se que, dentre os preceitos da ars poética clássica, é pos-sível mencionar a adequação do tema ao estilo, a lapidação do verso, o chamado limae labor (trabalho da lima), que pode ser constatado na seleção vocabular, na elaboração de 14 versos decassílabos, no esquema regular de rimas e de estrofação, o que torna o trabalho do poeta similar ao de um ourives, como um joalheiro a lapidar um diamante. Vale mencionar que, jun-

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tamente com Bocage, Antero de Quental e Florbela Espanca, Camões é um dos principais re-presentantes, dessa ourivesaria do verbo em Portugal.

Observe:

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Eu ∕ can∕ ta∕ rei∕ de a∕ mor∕ tão∕ do∕ ce∕ men∕ te

O verso decassílabo é composto de dez sílabas métricas ou poéticas. Conta-se até a última sílaba tônica. É chamado de decassílabo heróico quando acentuado na sexta e na décima sílaba poética, caso do verso supracitado.

Quanto à adequação do tema ao estilo, da linguagem ao assunto, note-se a valorização do padrão culto da língua – verdadeira bandeira dos clássicos. A demanda pela afirmação do idioma português corria paralela a da afirmação da nacionalidade. No século XVI, verificou-se em Portugal não só a completa unifi-cação territorial, a centralização do poder nas mãos do rei, a unificação dos pesos e medidas, mas também o desenvolvimento do idioma. Já não se trata mais do português arcaico, misto de galego e português, uma vez que os poemas de Camões atestam a fixação do português erudito e moderno.

Enfim, se uma das condições de possibilidade da poesia clássica era a imitação dos antigos, vale dizer que Camões cede ao gosto do tempo ao “imitar” um soneto de Petrarca, “Io canterei d`amor si no-vamente”. A aceitação dos modelos canônicos desafiava o poeta a tentar superá-los: não se tratava de plágio, mas de emulação, isto é, a tentativa de se igualar ao modelo ou então superá-lo.

E o mesmo se pode dizer do soneto “Transforma-se o amador na cousa amada”, cujo mote tam-bém foi tomado de empréstimo a Petrarca, “L’amante nell’amato si trasforma”. Leia-se:

Transforma-se o amador na coisa amada,

Por virtude do muito imaginar;

Não tenho logo mais que desejar,

Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,

Que mais deseja o corpo de alcançar?

Em si somente pode descansar,

Pois consigo tal alma está ligada.

Mas esta linda e pura semidéia,

Que, como o acidente em seu sujeito,

Assim como a alma minha se conforma,

Está no pensamento como idéia;

O vivo e puro amor de que sou feito,

Como a matéria simples busca a forma. (CAMÕES, 2008)

Trata-se de um dos mais antológicos e per-feitos sonetos clássicos de Camões e nele se cultua

o limae labor, o que se constata na tessitura dos decassílabos heróicos, com esquema regular de rimas (abba abba cde cde).

Amor com engenho e arte Para Antonio Candido, o soneto é um instrumento expressivo italiano (ou fixado e explorado pe-

los italianos). Por sua estrutura, ele é apto a exprimir uma dialética, isto é, uma forma ordenada e pro-gressiva de argumentação. Candido nota certa analogia entre a marcha do soneto e a de certo tipo de raciocínio lógico: uma proposição ou uma série de proposições e uma conclusão (CANDIDO, s.d., p. 20). A definição se aplica ao texto de Camões?

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Por certo, o soneto “Transforma-se o amador na coisa amada” desenvolve uma linha de raciocí-nio contrastando dois conceitos sobre o Amor: como idéia e como forma. Nos quartetos, identifica-se a união do amante com a amada por meio do imaginar (“evocação, pensamento”). Daí decorre a desper-sonalização do sujeito poético, cuja identificação é tão intensa que ele termina por se fundir espiritual-mente à pessoa desejada. Aqui, emerge uma concepção de Amor enquanto idéia, ou representação de um ideal superior, imaterial – ao que se convencionou chamar neoplatonismo. Segundo José de Nicola, Camões retoma a filosofia de Platão:

Platão concebia dois mundos: o mundo sensível, em que habitamos, e o mundo inteligível, das idéias puras. Neste, en-contramos as divinas essências, as verdades: Deus, o Belo, o Bom, a Sabedoria, o Amor, a Justiça etc. No mundo sensível, as realidades concretas são simples sombras ou reflexos das idéias puras. As almas, que são imortais, habitam o mundo inteligível; quando as almas caem da esfera inteligível para a sensível, conservam uma recordação que podem avivar por meio da reminiscência. Há, dessa forma, uma constante busca do ideal, que não é mais uma tentativa de ascensão do mundo sensível (das realidades concretas, meras imitações particulares) ao mundo inteligível (da essência, a verda-de universal). No mundo sensível temos, por exemplo, amores particulares; no mundo inteligível, temos o Amor (a mai-úscula indica sempre a essência, a idéia) ou melhor, o Amor platônico (NICOLA, 1990, p. 64).

Contudo, se ao poeta do Classicismo se exige a imitação dos antigos, não é menos certo dizer que ele deve acrescentar engenho e arte com vistas à emulação. Deve ter a capacidade de suplementar o dado. Assim, como se pode ler nos tercertos finais do soneto em questão, Camões acrescenta um toque pessoal ao questionar a concepção do amor neoplatônico tomada de empréstimo a Petrarca. Ele argu-menta que, para ser pleno, o amor, não pode invalidar o contato físico – o que o distancia de Platão, que desqualificava o sensorial como imperfeição, mero reflexo deformado do Amor ideal, das idéias puras.

Para Camões, o amor também deve ser “vivo”, ou vivido, não apenas intelectualizado. É a matéria que busca a forma, o amador que busca a corporeidade da amada. Nessa busca, há uma afirmação do conhecimento do amor como derivado da experiência. É o que se lê, de outro modo, no famoso episó-dio da ilha dos amores, no canto IX de Os Lusíadas, pois, acerca do amor, “Melhor é exprimentá-lo que julgá-lo, / Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo.”

Nesse sentido, caberia perguntar se, ao colocar a impossibilidade de um amor pleno sem corres-pondência corporal, Camões não sugeriria uma visão de mundo marcada pela afirmação das potencia-lidades humanas, com dominância cultural antropocêntrica. No Renascimento, o ser humano acreditou ser capaz de romper os limites até então aceitos, a partir das Grandes Navegações tomou consciência da geografia do planeta, graças ao aperfeiçoamento do telescópio por Galileu começou a ver o universo com outros olhos, descobriu a circulação sanguínea observando mais atentamente o próprio corpo etc.

Dicas de estudo CAMÕES, Luís de. :::: Os Lusíadas: episódios. Apresentação e notas de Ivan Teixeira. São Paulo, Ateliê Editorial, 1999. Edição com os principais episódios do grande poema de Camões e um estudo que auxilia sua compreensão e apreciação. Esta obra foi concebida como introdução ao poema.

BECHARA, Evanildo; SEGISMUNDO, Spina:::: . Os Lusíadas: antologia. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999. Antologia sobre Os Lusíadas.

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Textos complementares

Camões diferente(LOURENÇO, 2002, p. 99-102)

Camões, graças a Os Lusíadas, se converteu para nós, ao longo do tempo, na imagem mesma de Portugal, e o poema na tão celebrada “bíblia da pátria”, alma da nossa alma [...]. É mais que tem-po de ler Os Lusíadas como um poema e não como um repositório devoto de verdades patrióticas, morais, políticas, ideológicas, filosóficas, religiosas ou místicas sumptuosamente versificadas. Não porque essas “verdades” de algum modo não se possam encontrar lá ou pelo menos o reflexo e eco delas, mas porque estão inseridas e envolvidas por algo bem mais decisivo e radical que é o “eu pro-fundo do poeta” e sob ele o inconsciente de uma época particularmente complexa e dilacerada cuja expressão verdadeira é de origem mítica (mitológica) e simbólica. Simplesmente, esse Poema não é um mero discurso poético, centrado essencialmente na temática subjetiva-universalizante da pai-xão amorosa tradicional ou na glosa da experiência social de uma época, é uma nova espécie de poesia. Essa poesia é aquela que só no Renascimento e enquanto “renascimento” aparece no hori-zonte cultural do ocidente, implicando uma nova maneira de o Homem se situar no Universo e pe-rante si mesmo enquanto indivíduo (realidade primeira dessa novidade) e enquanto actor cultural e até, como é o caso de Camões, enquanto súbdito de um Rei e sobretudo consciência do real histó-rico do povo a que pertence. Se a palavra “Renascimento” tem algum sentido em Portugal (fora do imitativo formal mesmo criador como o de Sá de Miranda ou António Ferreira) só à obra de Camões e em particular a Os Lusíadas o deve e nada mais.

No centro da obra(DUARTE, 2008)

No centro da obra está o próprio poeta/autor/personagem exemplar que, preocupado com o relato de grandes feitos, reúne as verdades da experiência vivida, os ensinamentos da cultura rece-bida e a capacidade de transformá-los em nova significação totalizante, que se poderia resumir num sentimento exaltado de nação. Os Lusíadas constroem-se assim com um estilo entusiasmado em que o real positivo se acentua através da imaginação. O autor quer ser reconhecido pelo seu canto, que reforça constantemente o eu, numa versificação rigorosa. Colocando-se como humilde, baixo, rude, desconhecido, esse eu quer mostrar, entretanto, que combina sabedoria, experiência e enge-nho – revelando mais um grande orgulho que modesta submissão.

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Atividades1. Você considera que o tema de Os Lusíadas é apropriado para uma epopéia? Por quê?

2. O poema épico Os Lusíadas foi considerado um verdadeiro prodígio arquitetônico. Quanto ao as-pecto formal, há elementos da poesia clássica? Justifique.

3. A invocação às divindades inspiradoras da atividade poética é uma das partes da epopéia camo-niana. Identifique-a e cite as outras partes da epopéia de Luís Vaz de Camões.

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4. Comente sobre o que é a Ilha dos Amores e qual seu o sentido alegórico.

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