LIVRO ARMENIO - Agricultura Ecologica

Embed Size (px)

Citation preview

1

Coordenao Juliana Potrio de Oliveira Projeto grfico Caf Design Reviso Mrcia Hein e Celso Muccio Editorao Muccio & Associado Capa Cbi Carvalho Ilustrao capa Yolanda Fumita Shimizu Livraria e Editora Agroecolgica Ilustraes internas Mnica Stein Aguiar Impresso Grfica CosgrafCaixa Postal 06, 18.603-970 - Botucatu - SP Fone: (14) 6821-1866 [email protected] www.agroecologica.com.br

Instituto Agronmico do Paranrea de Difuso de Tecnologia Rodovia Celso Garcia Cid, km 375 Caixa Postal 481 86.001-970 - Londrina - Paran Fone: (43) 376-2337 [email protected] www.iapar.pr.gov.br

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)Khatounian, C. A. A reconstruo ecolgica da agricultura / C. A. Khatounian. - - Botucatu : Agroecolgica, 2001. 1. Agricultura - Aspectos ambientais 2. Agricultura orgnica 3. Ecologia agrcola I. Ttulo.

01- 4253 ndices para catlogo sistemtico: 1. Agricultura ecolgica 631.583

CDD - 631.583

ISBN 85-88581-26-42

A reconstruo ecolgica da agricultura

Carlos Armnio Khatounian

3

4

M AURCIO B URMESTER

MEMRIA DE DE

B EATRIZ R UGANI R IBEIROE

C ASTRO

DO

A MARAL ,

CUJAS VIDAS CURTAS MAS PROFCUAS FORAM DEVOTADAS A ESSA RECONSTRUO .

5

6

Algumas palavras ao leitor

O leitor um participante temporariamente annimo e passivo na publicao de um livro, que busca sempre convenc-lo de algum conhecimento, idia ou valor, que o autor julga merecerem mais padrinhos. O presente livro no foge a essa regra. Ele busca transformar o leitor num entusiasta, praticante e conhecedor dos caminhos que podem levar reconstruo ecolgica da agricultura. Caminhos esses, que o autor vem trilhando nos ltimos vinte anos, e pelos quais no poucas vezes se perdeu e teve afinal de voltar. De certa forma, uma espcie de guia para o caminho mais curto e de alerta para os falsos atalhos. Na sua prpria caminhada, deparou o autor tambm com vrias dvidas e perguntas ainda carecendo de respostas, que muitas vezes tm de ser especficas para cada local. Assim, em todo o livro transparece uma pressa de encurtar o anonimato temporrio do leitor, propondo-lhe um grande nmero de desafios. O objetivo ltimo do autor tornar o leitor o autor do seu prprio romance. Essa necessidade de transformar o leitor em autor foi sendo evidenciada nos treinamentos em que atuamos como instrutor, sobretudo para profissionais das cincias agrrias e agricultores envolvidos na produo orgnica. Nesses treinamentos, fomos percebendo que o ponto mais importante era ensinar a pensar orgnico. Para isso, nos deparamos com freqncia com lacunas de conhecimento na formao agronmica convencional e com a necessidade de novos conceitos, que propiciassem o desenvolvimento de solues sustentveis para os problemas agrcolas. Contudo, pensar orgnico envolvia muitos aspectos. Alm de uma slida formao nos aspectos materiais da agricultura (as plantas, os animais, o ambiente - o hardware), era necessrio conhecer os fatores humanos (cultura, experincias, economia, organizao social o software) que definem como os elementos materiais sero administrados. Para completar, pensar orgnico implicava ainda uma atitude cidad em relao a vrios aspectos da atualidade. Em nossa atividade junto ao movimento orgnico, tentamos sempre atender ao aspecto tcnico de nossa funo de pesquisador, sem descuidar porm das dimenses humanas e filosficas que o pensar orgnico exige. Isso se refletiu neste livro: embora sendo um texto sobretudo tcnico, as dimenses no tcnicas dos problemas foram exploradas sempre que pareceu pertinente. O contedo do presente texto e a concepo das figuras foi o resultado da compilao de informaes e da reflexo ao longo de mais de duas dcadas. Desse fato resultaram aspectos positivos e negativos. Do lado positivo, ele nos7

permitiu enxugar detalhes e particularidades no essenciais compreenso e ao manejo de sistemas sustentveis. O aspecto mais negativo, que a origem de muitas informaes pontuais ficou difcil de traar. Recuperar as referncias bibliogrficas de toda a informao utilizada ao longo dos anos nessa reflexo tomaria, talvez, um ou dois anos de trabalho, e as citaes ocupariam uma grande parte do texto. Correramos ainda o risco de, por esquecimento, cometer alguma injustia em no citar fontes eventualmente utilizadas. Alm disso, para a finalidade de desenvolver o pensar orgnico, um texto enxuto seria mais agradvel e atenderia a maior parte dos leitores. Assim, decidimos citar no corpo do texto os autores e obras de que mais nos valemos, que so listados na bibliografia. Os leitores interessados em recuperar alguma informao especfica precisaro recorrer s bases de dados da literatura cientfica, hoje de fcil acesso pela internet. O livro est organizado em sete captulos, sendo cada um dependente da compreenso do anterior. O Captulo I focaliza a agricultura orgnica no cenrio mais amplo em que ela se insere e suas relaes com algumas das principais questes da atualidade. Historia seu desenvolvimento, traa o perfil das principais escolas no Brasil, esboa um quadro da situao no Brasil e expe o arcabouo do corpo tcnico e conceitual da produo sem agrotxicos. Discute ainda os desafios ampliao dessa produo e sua relao com o suprimento alimentar do planeta. O Captulo II trata da abordagem sistmica, que constitui o corpo metodolgico mais potente para a compreenso e aprimoramento dos sistemas agrcolas rumo sustentabilidade. um captulo em que se prepara o leitor para o exerccio de entender e desenvolver propostas realistas de interferncia nos sistemas operados pelos agricultores. Descrevem-se os conceitos e mtodos usuais, bem como os problemas mais comuns na sua aplicao. Dedica-se tambm um segmento compreenso da lgica especfica da produo familiar, identificando problemas que lhe so freqentes. Os Captulos III, IV, V e VI tratam de assuntos especificamente biolgicos. No apresentam conhecimento factual novo, os fatos agrcolas e biolgicos so os mesmos tratados na agricultura convencional. Entretanto, organiza e concatena tais fatos dentro de uma lgica distinta, espelhada no funcionamento da natureza. No Captulo III- A natureza como modelo, se constri o corpo conceitual bsico sobre o qual os problemas agrcolas sero analisados e suas solues delineadas. Nos Captulos IV- A fertilidade do sistema e V- O manejo da fertilidade do sistema, esse corpo conceitual e factual detalhadamente estudado sob vrios aspectos e situaes usuais nos sistemas agrcolas contemporneos no Brasil. Desenvolve-se o conceito abrangente de fertilidade do sistema, em oposio fertilidade do solo. A assimimilao e o domnio desse conceito nos parece ser a chave para a reconstruo ecolgica da agricultura, na sua dimenso biolgica. Estratgi8

as para o aprimoramento dos sistemas so discutidas, tanto a curto quanto a longo prazo, para culturas anuais, culturas perenes, pastagens e criaes. O Captulo VI trata da produo para consumo domstico. Em nossa opinio, no contexto em que atualmente se insere a agricultura orgnica, essa produo muito mais importante do que se pretende com a expresso agricultura de subsistncia, desgastada e inadequada. Focalizam-se suas possiblidades e limitaes, bem como sua estruturao e funcionamento em algumas regies do pas e do planeta. A compreenso da produo para consumo domstico exige a mobilizao do conhecimento exposto e construdo ao longo do livro. Discutem-se ainda as possibilidades de seu aprimoramento nos sistemas agrcolas atuais no Brasil. Finalmente, o Captulo VII focaliza a converso para a produo orgnica, o primeiro patamar concludo na reconstruo ecolgica da agricultura. Para essa converso, todo o restante do livro necessrio, tanto do ponto de vista metodolgico a abordagem sistmica, quando do conceitual e factual a natureza como modelo, a fertilidade do sistema e seu manejo, a produo para consumo domstico. Por facilidade de entendimento exemplifica-se o processo com uma propriedade familiar. Ao organizar o conjunto do texto, defrontamo-nos vrias vezes com a dificuldade de isolar cada tema e trat-lo separadamente dos demais. De fato, como a natureza funciona de maneira integrada, difcil separar as partes sem perder a viso do conjunto. Por isso, vrios assuntos so tratados pelo menos rapidamente em determinados captulos, sendo retomados em outros para detalhamento. No por modstia, mas porque a realidade, temos de registrar que boa parte deste livro no teria sido possvel sem a contribuio de nossos colegas de pesquisa do Instituto Agronmico do Paran. Alm de sua contribuio formal em vrios projetos conjuntos, tivemos o acesso privilegiado a vrias reas do conhecimento em conversas de corredor e cafs tomados juntos. No menos importante foi a abertura e a receptividade de inmeros agricultores e vrias organizaes ligadas produo orgnica, tanto governamentais quanto no governamentais, das quais temos tido constante apoio e boa vontade. A determinao e a perseverana desses amigos tm nos mostrado que solues so sempre possveis, quando se quer encontr-las. Cumpre ainda salientar o empenho na produo deste pela Editora Agroecolgica. Do agrnomo Manfred von Osterroht, tivemos sempre muito incentivo. Embora reconhecendo as contribuies recebidas, qualquer falha no texto naturalmente de nossa nica responsabilidade. O autor

9

10

APRESENTAO

A Agricultura Orgnica vem se tornando uma opo cada vez mais importante, atendendo uma clara e crescente demanda dos consumidores, tanto em nvel nacional quanto internacional, cujas exigncias em relao qualidade e segurana dos alimentos criam nichos de mercado que no podem mais ser ignorados, especialmente pelos produtores familiares que necessitam ampliar sua renda. O Governo do Paran, atravs de sua Secretaria de Estado da Agricultura e do Abastecimento vem se preocupando com essa opo no Projeto Paran 12 Meses, acionando, para isso, o rgo oficial de pesquisa agropecuria do Estado, o IAPAR Instituto Agronmico do Paran. Assim, ao definir que a Agricultura Orgnica merece um lugar de destaque nas polticas pblicas para o agronegcio paranaense, o Governo Estadual tem ativado as pesquisas e a extenso pelas vinculadas Iapar e Emater, bem como a implementao das iniciativas da sociedade, consciente que essas polticas s podem ser adequadamente implementadas quando, alm de um discurso coerente que sinalize as diretrizes governamentais, existam tambm parcerias para sua implementao e, principalmente, consistncia tcnica que a viabilizem dentro do sistema produtivo. Essa consistncia tcnica vem sendo construda no Iapar ao longo de muitos anos de atividades do autor deste livro, pesquisador e produtor Carlos Armnio Kathounian, em conjunto com outros integrantes da equipe do Instituto. Esse trabalho implica, alm de um constante monitoramento do ambiente agro-ecolgico e do mercado, na captao, gerao e validao de conhecimentos cientficos e tecnolgicos que permitem colocar disposio dos produtores uma orientao segura para sua tomada de deciso sobre o que e como plantar. Podem, portanto, os interessados em Agricultura Orgnica, a partir de hoje, contar com um amplo conjunto de informaes e orientaes tcnicas, de forma que possam aplicar toda sua dedicao e profissionalismo na implementao de uma atividade que, embora de difcil gesto, certamente leva a resultados de alta importncia no s para os que nela atuam, mas tambm para a Sociedade como um todo. Na qualidade de Secretrio recm-empossado, estou orgulhoso em poder fazer a apresentao deste trabalho, em especial pela importncia dada ao tema Agricultura Orgnica no Estado do Paran, pelo meu antecessor o ex-Secretrio Antonio Leonel Poloni, que a colocou de forma prioritria na agenda da Agricultura Paranaense. abril de 2002. Deni Lineu Schwartz Secretrio de Agricultura e do Abastecimento do Paran11

12

SUMRIOCAPTULO I

Histrico, contexto e desafios para uma agricultura ecolgica.............................................................................. 17A revoluo da qumica agrcola............................................................................................... 19 Aumenta o problema com pragas ............................................................................................ 21 Cresce o problema com doenas e plantas invasoras............................................................... 21 O pacote qumico se completa .................................................................................................. 23 O outro lado da moeda............................................................................................................... 23 O contexto da agricultura ecolgica .......................................................................................... 24 As escolas em agricultura ecolgica.......................................................................................... 25Biodinmica Orgnica Natural Biolgica Alternativa Agroecolgica Permacultura Orgnica como coletivo Sustentvel Ecolgica

A produo orgnica no Brasil ................................................................................................... 32 O corpo conceitual da agricultura sem agrotxicos ................................................................. 34Da qumica e da mecnica ecologia: a abordagem integrada A planta doente gera suas pragas O controle biolgico de pragas O solo um organismo vivo A diversificao das propriedades O rendimento timo em lugar do rendimento mximo A produo animal: tica integrada no sistema

Desafios ampliao da produo orgnica ............................................................................. 42Polticas agrcolas Resistncia ideolgica Treinamento dos tcnicos e dos agricultores Definio legal e certificao da produo orgnica Estruturas de comercializao no atacado Investigao agrcola Reeducao do consumidor Como os agricultores e a sociedade vem o trabalho agrcola Estreitamento do vnculo do agricultor com a terra e dos vnculos dos envolvidos na produo entre si

Poder a agricultura ecolgica alimentar o mundo?................................................................. 50Necessidade de mudana nos padres de consumo Aumento de consumo de produtos de origem animal e acar O desrespeito sazonalidade e regionalidade Universalizao das dietas a base de trigo Uma resposta conclusiva

CAPTULO II

A abordagem sistmica.................................................................................... 59Um pouco de histria .................................................................................................................. 60 O exerccio iterativo e interativo de anlise e sntese ............................................................. 61 A questo da abrangncia .......................................................................................................... 63O conceito de cadeia produtiva O sistema propriedade

A marcha do trabalho em sistemas de produo...................................................................... 66Diagnstico Tipificao Definio dos pontos-chave Esboo do perfil das solues ideais Busca das solues Validao das solues Incorporao da inovao rotina dos sistemas

A idia de sistema e a noo biodinmica de organismo agrcola.......................................... 71 O sistema ideal na agricultura orgnica................................................................................... 72 Alguns aspectos sistmicos das pequenas e mdias propriedades.......................................... 7213

Decises fundamentais e recorrentes

Renda x consumo domstico Risco x capitalizao Renda x mo-de-obra Trabalho familiar x assalariamentoConflitos internos e externos nos sistemas

Conflitos internosRenda x consumo domstico Animais x lavouras Diviso da renda entre as pessoas envolvidas na produo Choque de valores e de aspiraes entre geraes

Conflitos externosTransferncia de renda do campo para as cidades M distribuio de renda e riqueza rural Maior crescimento na produo nos trpicos do que na demanda nos pases ricos Presso dos mercados ricos sobre os custos de produo Intermediao comercial A compresso mltipla da renda dos agricultores Restrio de rea agrcola til Precariedade das condies urbanas como alternativa ao trabalho no campo

Estratgias de superao adotadas pelos agricultores como balizadores de solues potenciais

O modelo do sistema - propriedade ......................................................................................... 83 Alguns conceitos utilizados na abordagem sistmica............................................................... 88O sistema agrrio Sistema de produo Sistema de cultura Cultura ou explorao Itinerrio tecnico Agroecossistema

CAPTULO III

A natureza como modelo.................................................................................. 91Alguns conceitos bsicos sobre o mundo vivo.......................................................................... 93A biosfera

Luz Temperatura gua Ar Nutrientes mineraisA cobertura vegetal sobre a terra

Amido, celulose e lignina e a evoluo da cobertura vegetal A decomposio do amido, da celulose e da lignina e a formao de hmusOs ciclos da natureza As regies de origem das plantas e suas exigncias sob cultivo Pragas, doenas e deficincias minerais

Os centros de origem das plantas cultivadas........................................................................... 109Mediterrneo e sudoeste da sia Sudeste da sia Cordilheiras americanas Algumas culturas importantes de reas fora dos centros de Vavilov

Mandioca Batata-doce Caf Leguminosas fixadoras de nitrognio

O ambiente sentido pela planta: um pouco de fisiologia vegetal............................................ 126Luz Temperatura gua Ar Vento Organismos Solo Diferenciaes nas clulas vegetais

Os animais ................................................................................................................................. 140Amido, celulose, lignina e os animais Biodiversidade animal e densidade Os estercos Os estercos como fertilizantes

A agricultura e o estrato herbceo ........................................................................................... 150CAPTULO IV

A fertilidade do sistema..................................................................................... 15514

O conceito de fertilidade do sistema....................................................................................... 156O manejo da fertilidade: integrado e antrpico A organizao da propriedade rural e suas implicaes na fertilidade dos agroecossistemas A biomassa: elemento central na fertilidade do sistema O condicionamento climtico Organizao espacial e funcional do sistema Exploraes produtoras e consumidoras de fertilidade A organizao da propriedade para a manuteno da fertilidade no sistema

A ciclagem interna de biomassa............................................................................................... 171A propriedade como sistema biolgico A cadeia de decomposio da biomassa As vias usuais de ciclagem de biomassa

Ciclagem automtica Ciclagem intencional Ciclagem naturalA ciclagem ideal na agricultura ecolgica

A ciclagem interna de nutrientes minerais ............................................................................... 182Fluxo orgnico de nutrientes minerais Fluxo mineral Pontos de contato

Densidade e persistncia da trama radicular Profundidade das razes Acelerao da decomposio de rochas por organismosA ciclagem de N, P e K no agroecossistema

Potssio Fsforo Nitrognio

Os animais e a fertilidade do sistema...................................................................................... 196Criao fechada ou solta? Criao fechada: piso impermeabilizado e cama Criao solta ou a pasto: lotao correta e leguminosas As perdas de biomassa por morte de animais e por pragas

guisa de concluso................................................................................................................. 201CAPTULO V

Estratgias de manejo da fertilidade do sistema.................... 203Estruturao da propriedade ................................................................................................... 204 Condicionamento climtico....................................................................................................... 205 Ciclagem de biomassa e de nutrientes minerais..................................................................... 206Os principais adubos em agricultura ecolgica

Palhas Serragem e maravalha Esterco de aves Esterco de ruminantes e composto Esterco de sunos Adubos verdes Hmus de minhoca Ps de rocha Biofertilizantes Microrganismos eficazes

Estratgias de adubao orgnica segundo o tipo de explorao........................................... 222Culturas anuais Culturas arbreas e similares Pastagens Forrageiras para ceifa Hortalias e ornamentais

Manejo das criaes.................................................................................................................. 236Bovinos Sunos Aves Um comentrio sobre a comercializao dos produtos de origem animal

CAPTULO VI

A produo para consumo domstico................................................ 251Alguns conceitos sobre nutrio humana................................................................................. 252As dietas vegetarianas

Exemplos da lgica de diferentes sistemas agrcolas............................................................ 254 Os principais elementos da produo para consumo domstico no brasil .............................. 259A composio do sistema

reas de lavoura reas de cultivo intensivo reas e instalaes para as criaes15

reas para coleta de alimentos silvestresCulturas energticas Culturas proticas Hortalias

Folhas FrutosA agrofloresta alimentar Criaes domsticas e seu acoplamento no sistema

Porcos Galinhas Animais para leiteLenha

O caminho para uma era de abundncia.................................................................................. 282CAPTULO VII

A converso rumo sustentabilidade............................................... 285A abordagem sistmica na converso...................................................................................... 286 A marcha da converso............................................................................................................. 288O ponto de partida O ponto de chegada O caminho do ponto de partida ao de chegada: definio dos pontos-chaves Cronograma e metas setoriais Estabelecimento dos canais de comercializao A certificao A finalizao da converso O plano de converso

Aspectos normativos da converso .......................................................................................... 292 Aspectos biolgicos da converso............................................................................................. 293 Aspectos educativos da converso........................................................................................... 296 Pesquisadores, extensionistas e agricultores........................................................................... 297 Queda na produtividade durante a converso......................................................................... 298 A concluso da converso......................................................................................................... 299APNDICE

Exemplo de plano de converso para a agricultura orgnica........................................................................... 301Algumas explicaes necessrias............................................................................................. 301 Plano de converso do stio engenho velho............................................................................. 301Diagnstico

Informaes gerais Histrico de vida do agricultor e do sistema de produo O quadro natural O quadro econmico A fora de trabalho O gerenciamento do sistema Instalaes e equipamentosA proposta de converso

Objetivos gerais O sistema atual O sistema propostoOs pontos-chaves para a converso Cronograma de ataque aos pontos-chaves: metas setoriais O custo da converso A certificao Monitoramento Correes de percurso Periodicidade das visitas pelo tcnico Concluso

ndice remissivo................................................................................................................... 315 Bibliografia .............................................................................................................................. 329 Fotos ........................................................................................................................................ 331

16

CAPITULO I

Histrico, contexto e desafios para uma agricultura ecolgicaincio da agricultura pertence a um passado nebuloso, sobre o qual podemos fazer inferncias, mas do qual provavelmente jamais teremos uma idia exata. Estima-se que as primeiras lavouras tenham sido intencionalmente semeadas ao redor de dez mil anos atrs. O certo que as civilizaes que nos antecederam, ao tempo em que criavam a escrita, j tinham desenvolvido uma notvel capacidade agrcola, que lhes havia possibilitado sedentarizar-se e estabelecer sistemas sociais e culturais complexos. Na tradio ocidental, aprendemos a contar a histria a partir das civilizaes do Nilo e Tigre Eufrates, passando pela Antiguidade Greco-Romana, dita clssica, depois pelos seus desdobramentos atravs da Idade Mdia, Renascimento, Expanso Martima Europia ... at chegarmos atualidade. Essa trajetria freqentemente contada de forma positiva, como uma epopia a caminho do conhecimento e do domnio tecnolgico, mas no deixou de ter seus lados desastrosos, que tambm esto fartamente registrados 1 . Dentre os desastres, conta-se com especial freqncia a degradao dos recursos naturais sobre os quais se erigiram as civilizaes. Uma aps outra, civilizaes foram florescendo apoiadas sobre determinada base natural e, medida que cresciam, iam esgotando essa mesma base natural de que dependiam. De modo que, salvo raras excees, a histria do desenvolvimento e do declnio de civilizaes se assemelha imagem bblica do gigante sobre ps de barro. Assim, j na Mesopotmia antiga se registrava a salinizao das reas irrigadas que embasavam sua economia. Na antigidade clssica, os gregos destruram suas florestas e exauriram seus campos de cultura, sendo obrigados a lanar-se ao mar. Os romanos empreenderam contra Cartago as Guerras Pnicas,1 Um estudo cuidadoso desse processo de degradao do meio ambiente desde a pr-histria foi organizado por Jean Dorst, sob o ttulo de "Antes que a Natureza Morra", publicado pela editora da Universidade de So Paulo em 1978.17

conquistando afinal aquelas ento ricas terras agrcolas, onde hoje esto os areais de um deserto sem esperana. Mais prximos de ns, os portugueses, com escassas possibilidades agrcolas e geograficamente voltados para o mar, tiveram de lanar-se ao Oceano desconhecido, em cujas guas acabaram sepultados a maioria dos jovens embarcados. Esses jovens, cuja ambio encontrava terreno frtil nas encostas j ento descampadas e pedregosas de Portugal, onde haviam passado sua infncia, e para os quais, por falta de outra escolha, havia que se fazer vlido o adgio navegar preciso, viver no preciso. No Novo Mundo, assistiu-se ao mesmo processo de rpido desenvolvimento e declnio na economia aucareira das Antilhas, onde, aps efmera riqueza, entraram as ilhas em quase irreversvel decadncia. O mesmo fenmeno se observou no Nordeste e em outras partes do Brasil, apenas que numa escala de tempo mais dilatada devido maior extenso de terras por ocupar e exaurir. No Brasil, j no sculo XIX, a economia cafeeira veio a ser a pedra angular da riqueza do Segundo Imprio. Nessa poca, a mais importante regio cafeeira era o vale do rio Paraba do Sul, regio hoje de morros cobertos por pastos ralos. No fossem as terras roxas, ento virgens em So Paulo, a economia cafeeira teria entrado num rpido colapso. Mais tarde, quando essas mesmas terras se foram transformando em pasto ralo, foi chegando a vez das terras roxas do Paran. Assim, a histria do gigante em ps de barro continua a se reproduzir, no apenas no Brasil, mas em quase todo o mundo, de forma mais ou menos intensa. E o que assusta ainda mais que essa forma insustentvel de administrar a base natural da civilizao no se resume agricultura. Pelo contrrio, ainda mais intensa na indstria, seja pelo esgotamento de recursos no renovveis, seja pelo impacto da poluio nos ecossistemas. Mas a histria humana no se alimentou apenas de catstrofes. Em vrios pontos do planeta e em vrias pocas se acumularam conhecimentos sobre formas mais sustentveis de existncia. Talvez o exemplo de maior expresso seja as civilizaes orientais baseadas no arroz irrigado. H pelo menos 40 sculos, essas civilizaes do arroz ocupam os mesmos terrenos e mantm, apenas com o uso de recursos locais, rendimentos de 2t a 4t de arroz por hectare. Na poca das grandes navegaes, j era o Extremo Oriente densamente povoado para os padres de ento, e muito mais opulento que a semibrbara Europa, ainda no bem sada do feudalismo. Nessa mesma Europa feudal, vamos encontrar durante a Idade Mdia, sobretudo na Frana, um padro de cultivo que consistia numa rotao trienal de trigo, centeio ou cevada e pousio. Tal rotao permitiu colheitas estveis ao longo de sculos, com rendimentos da ordem de at 2t de gros por hectare.18

No trpico mido brasileiro, como em outras partes do planeta, os europeus encontraram sistemas relativamente sustentveis baseados na agricultura e coleta combinadas. O modo de utilizao do ambiente consistia na abertura de pequenos roados, de onde se obtinha a maior parte da energia alimentar, sobretudo a partir da mandioca. As protenas e nutrientes menores eram obtidos do ecossistema natural, atravs da caa, da pesca e da coleta de frutos da floresta. A rea de roado era abandonada aps um pequeno nmero de anos, e a floresta se restabelecia. Quanto caa e pesca, o esgotamento obrigava a freqentes deslocamentos. Opinam alguns antroplogos que a razo natural das guerras entre os indgenas poca do descobrimento era o domnio sobre as reas de coleta de protenas. Contudo, nenhum desses trs exemplos, nem outros tantos que se poderia mencionar, produziram sociedades em perfeita harmonia com o seu ambiente, tampouco sociedades ideais do ponto de vista social ou humanstico. O feudalismo chins era socialmente opressivo, ainda que com relativo acerto ecolgico. Para os tupis da costa brasileira, os grupos rivais no mereciam clemncia, fossem eles tapuias ou de outras hordas tambm tupis. Tais exemplos revelam apenas que houve formas de grupos humanos se relacionarem menos predatoriamente com seu ambiente, e que tais formas de relacionamento podem ser reaproveitadas e aprimoradas. O desafio da atualidade consiste em recuperar esses padres ecologicamente superiores e aprimor-los luz do conhecimento hoje disponvel.

A revoluo da qumica agrcolaDesde as origens remotas da agricultura at o incio do sculo passado, o declnio do rendimento dos cultivos num determinado terreno ao longo dos anos era um fato lquido e certo. As terras simplesmente se cansavam. Para corrigi-lo, ao largo de quase todo o mundo, quantitativamente, apenas dois procedimentos foram conhecidos at meados do sculo XIX: o descanso ou pousio e a adubao orgnica. O pousio era a base da relativa estabilidade tanto da rotao trienal da Idade Mdia francesa como dos roados amerndios. O nmero de anos de cultivo e o tempo de descanso eram variveis segundo a natureza do terreno, as tcnicas de cultivo, as espcies cultivadas e o clima. Para a recuperao da fertilidade via adubao orgnica, utilizavam-se sobretudo excrementos de animais. No caso das civilizaes do arroz, sobretudo fezes humanas. Na Europa, durante a Idade Moderna, havia-se aprendido as vantagens de utilizao dos estercos, sobretudo de bovinos. Da mesma forma, etnias agricultoras no Sahel recuperavam seus campos pedindo a etnias pastoras que deixassem seu gado pernoitar nos terrenos a cultivar na estao seguinte.19

Ambos os mtodos, ainda que eficazes, tinham seus pontos fracos. A utilizao do pousio impunha que apenas uma frao da terra disponvel podia ser cultivada a cada ano. Essa frao variava segundo o nmero de anos de pousio e de cultivo. Por exemplo, em sistemas baseados em pousio com bracatinga, praticados hoje no Sul do Paran, apenas 1/9 da terra pode ser cultivado a cada ano, posto que so 8 anos sob bracatinga para cada ano com milho e feijo. De modo geral, os sistemas baseados em pousio foram e continuam sendo sustentveis quando a terra efetivamente disponvel abundante em relao s necessidades do contingente humano. Ao cair a disponibilidade de terra, o sistema entra em colapso devido ao progressivo encurtamento do perodo de descanso. Ao contrrio do pousio, caracterstico de uma agricultura mais extensiva, a adubao orgnica com excrementos animais e humanos foi e continua sendo caracterstica de sistemas agrcolas mais intensivos, com efetivos humanos mais numerosos em relao rea agrcola disponvel. A limitao primordial da recuperao da fertilidade atravs da adubao orgnica era a quantidade de esterco disponvel. Alm disso, exigia muito trabalho para o transporte e distribuio do material. Na Europa, onde o esterco era sobretudo o de bovinos, a adubao orgnica impunha ainda a imobilizao de grandes reas para a criao dos animais. Assim, pousio e esterco eram as receitas conhecidas para a recuperao dos terrenos, quando em meados do sculo XIX se descobrem os fertilizantes minerais ou adubos qumicos. Foi uma grande revoluo, cuja magnitude dificilmente pode ser imaginada hoje. Num terreno cansado, uns poucos quilos de adubos qumicos podiam fazer aquilo que o pousio levaria anos para conseguir ou que exigiria toneladas de esterco e de esforo humano. As teorias ento vigentes sobre a nutrio das plantas so rapidamente suplantadas pelas evidncias da eficincia dos adubos minerais em promover maiores colheitas. Primeiro se descobriu o efeito fertilizante do nitrognio, seguido de perto pelos outros macronutrientes. Apenas h poucas dcadas, j no sculo XX, seriam descobertos os micronutrientes. Era tal a confiana nessas descobertas, que Justus von Liebig, considerado o pai da qumica agrcola, chegou a declarar que em pouco tempo iriam desenvolver algo mais nutritivo e eficaz para os bebs do que o leite materno! Sintomaticamente, foi ali mesmo na Alemanha, bero dessa nova cincia, que seus efeitos indesejveis foram primeiro percebidos, ensejando o desenvolvimento da mais antiga dentre as modernas escolas de agricultura orgnica, a biodinmica. A despeito dessa contestao, a revoluo ensejada pelos adubos qumicos ia de vento em popa, alicerada no apenas nos seus evidentes resultados, mas tambm na sua adequao aos interesses da crescente indstria qumica. A produo agrcola, antes autrquica e quase auto-suficiente, comeava a se tornar cliente da indstria.20

Aumenta o problema com pragasDesde a mais remota antiguidade, os insetos conviveram com a produo agrcola. Contudo, seu aumento vertiginoso a ponto de destrurem as culturas era algo bastante raro. Uma evidncia dessa raridade encontrada na Bblia. Castigando o rei Fara, por no libertar os hebreus, Deus lhe mandou, entre outros castigos, uma praga de gafanhotos, que destruiu os trigais do Egito. Tal era sua raridade, que o surto repentino de uma praga apenas podia ser entendido como um castigo dos Cus. Mais prximo de ns se atribui a Frei Ferno Cardim a observao de que ou o Brasil acabava com as savas ou as savas acabariam com o Brasil. Cumpre notar que, embora se registrem desde o perodo colonial os estragos feitos por formigas s roas dos colonos, no h um nico registro de fomes ou perodos de escassez causados por formigas, nem nas fontes portuguesas, nem na literatura oral ou mitologia dos vrios grupos indgenas do pas. No obstante, o fato que a difuso dos adubos qumicos e sua utilizao rotineira foram acompanhadas do crescimento do problema de pragas. Paralelamente, com os avanos na qumica do carbono, que no jargo da qumica dita orgnica2 , desenvolviam-se modernas armas qumicas, nas conflituosas primeiras dcadas do sculo XX. Posteriormente, com a proibio das armas qumicas, algumas das molculas bsicas se mostraram eficientes como inseticidas, abrindo espao para o que veio a ser um novo e lucrativo mercado. Embora alguns inseticidas orgnicos j fossem conhecidos h mais tempo, sua expanso resultou sobretudo da confluncia do interesse da indstria da guerra com o crescimento do problema das pragas. Num segundo e decisivo passo, a agricultura se ligava por um segundo lao como cliente da indstria qumica. Como seria de se esperar, a utilizao de inseticidas se expandiu inicialmente nos pases industrializados, j sendo corrente no final da dcada de 1950 nos EUA, na Europa Ocidental e no Japo. Ocupados esses mercados, a expanso orientada para os pases pobres, sobretudo para aquelas culturas que pudessem pag-los. No Brasil, a grande expanso do uso de inseticidas ocorrer apenas nos anos 1970, vinculada ao crdito rural subsidiado, quando a liberao do crdito foi condicionada utilizao dos agrotxicos.

Cresce o problema com doenas e plantas invasorasCom a utilizao corrente de adubos qumicos e inseticidas, os sistemas agrcolas puderam simplificar-se significativamente em comparao com os sistemas2 necessrio distinguir as diferentes acepes do termo orgnico em qumica orgnica e agricultura orgnica. A qumica orgnica se ocupa dos compostos em que predomina o elemento carbono, incluindo, alm dos produtos naturais, os combustveis fsseis e todos os seus derivados, tais como tintas, plsticos, fibras sintticas, etc. Em agricultura orgnica, o termo orgnico usado para designar o natural, ecolgico, derivado diretamente de um organismo vivo, sem artificialismos.21

antigos, cuja manuteno da fertilidade e sanidade dependiam de rotaes e/ ou de trabalhosos sistemas de adubao orgnica. Assim, numa regio onde determinado cereal era a cultura mais lucrativa, esse cereal podia agora ser cultivado em toda a rea disponvel por anos a fio. As culturas menos lucrativas, as reas de pastagens, os animais, podiam ser completamente eliminados, em proveito da cultura de maior interesse. Contudo, o pacote composto de monocultura, adubos qumicos e inseticidas foi acompanhado do crescimento de novos problemas sanitrios, sobretudo com doenas e plantas invasoras. Tais problemas existiam desde a Antiguidade; os romanos celebravam as Robiglias para proteger seus trigais da ferrugem, e separar o joio do trigo uma expresso que nos vem da Bblia. Entretanto, a intensidade de tais problemas assumia agora uma dimenso at ento desconhecida. Novamente, as solues surgiram da indstria qumica. Primeiro vieram os fungicidas, que permitiram o controle de vrias doenas vegetais cuja intensidade havia crescido. Os fungicidas possibilitaram tambm o cultivo de determinadas espcies fora daquelas condies normais para as quais haviam evoludo. Por exemplo, o tomate, planta de atmosfera seca, podia agora ser cultivado mesmo sob umidade relativa mais elevada, controlando-se as doenas foliares com esses novos produtos. O controle de plantas invasoras, que antes se operava pelo pousio ou por rotaes, complementados pelo cultivo mecnico, tambm passava a ser problemtico, uma vez que os novos sistemas monoculturais criavam condies para a seleo de espcies invasoras muito bem adaptadas aos nichos disponveis. Novamente a indstria qumica veio a oferecer a soluo com os herbicidas. De forma anloga aos adubos nitrogenados, desenvolvidos como corolrio da indstria do salitre para plvora, e dos inseticidas, ligados inicialmente guerra qumica, o avano no desenvolvimento dos herbicidas foi fruto da Guerra do Vietn. Para combater com pouco risco o inimigo escondido sob a floresta tropical, era necessrio desfolh-la, desenvolvendo-se para essa finalidade o agente laranja3 . Aps o agente laranja foram vindo outros herbicidas, reforando a posio da indstria qumica como principal supridora da agricultura. Os herbicidas causaram uma verdadeira revoluo na utilizao de mo-deobra pela agricultura, podendo um litro de produto substituir o trabalho de dezenas de homens e realizar o trabalho muito mais rapidamente. Assim, possi3 Como os EUA eram signatrios do tratado contra armas qumicas, demonstraram que tal produto era incuo a humanos, causando apenas sintomas genricos como nuseas e dores de cabea. Terminada a guerra, observaram-se anormalidades no nmero de dedos dos ps e das mos nos filhos de soldados vietnamitas expostos a altas doses do produto. Atualmente, nos netos dos soldados afetados, h uma alta incidncia de focomielia, m-formao caracterizada pela ausncia de braos e pernas, como nas focas. O principal princpio ativo do agente laranja, o 2,4-D, ainda hoje utilizado entre ns como arbusticida em pastagens. Culturas adubadas com estercos provenientes de reas tratadas com esse herbicida podem apresentar srio comprometimento em seu desenvolvimento.22

bilitaram simultaneamente a expanso das reas cultivadas, j predominantemente monocultoras, e o despovoamento do meio rural.

O pacote qumico se completaDessa forma, a dcada de 1970 viu completar-se o pacote dos insumos qumicos: adubos, inseticidas, fungicidas, herbicidas e ainda um conjunto de variedades modernas que ao longo do processo haviam sido selecionadas para bem aproveitar esses insumos. Sem dvida era um sistema no qual a agricultura se tornara completamente dependente da indstria qumica. Contudo, ao menos aparentemente, era to eficiente e produtivo que dispensava explicaes. Por essas vantagens, consolidou-se e se transformou, sobretudo nos pases industrializados, no modo convencional de produo. Nas dcadas seguintes, essa revoluo se incorporou s mentalidades dos agricultores, dos agrnomos e dos planejadores. Nas cidades, modificou radicalmente os hbitos alimentares, introduzindo produtos pouco adaptados s condies locais de cultivo. Contudo, tendo isso ocorrido ao longo do tempo, e visto como a face do progresso passou como sendo o rumo natural das coisas. Na Europa e nos EUA, at o incio dos anos 1980, e no Brasil, at o incio da dcada de 1990, para a maioria dos envolvidos com a produo agrcola, era pura tolice ou bizarrice tudo o que destoasse desse modelo convencional.

O outro lado da moedaContudo, a despeito do sucesso da agricultura convencional segundo alguns critrios, desenvolviam-se, pelo menos desde a segunda dcada do sculo XX, movimentos que apontavam em outras direes. Utilizando-se outros critrios, identificavam falhas na proposta dominada pela qumica, que entendiam no apenas como efeitos colaterais de um bom remdio, mas conseqncias previsveis e deletrias de um mau remdio. E, dessa perspectiva, propunham-se a desenvolver outras solues, com base nos exemplos de melhor convivncia com os recursos naturais tirados do passado, e no conhecimento cientfico utilizvel ento disponvel. Tratados marginalmente por longo tempo, apenas se tornaram visveis ao grande pblico quando sua crtica ao mtodo convencional mostrou-se irrefutvel. Nas conferncias da Organizao das Naes Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, ocorridas em 1972, 1982 e 1992, materializaram-se as evidncias de que os danos causados pela agricultura convencional eram de tal magnitude que urgia mudar de paradigma. A agricultura se tornara a principal fonte difusa de poluio no planeta, afetando desde a camada de oznio at os pingins na Antrtida, passando pelo prprio homem. Ao longo desse tempo, o conhecimento desses problemas no meio urbano criara um mercado para os produtos das agriculturas alternativas convencio23

nal. Esse mercado, hoje designado como mercado orgnico, tornou-se o setor de maior crescimento dentro do mercado de alimentos. O crescimento desse mercado orgnico reflete tambm uma mudana de atitude da humanidade em relao ao meio ambiente, uma reviso do papel que o homem se atribui no contexto do seu universo.

O contexto da agricultura ecolgicaOs mtodos alternativos ao convencional e seu crescente mercado no so fatos isolados. Esto inseridos numa profunda mudana na atitude da humanidade frente aos recursos naturais. Desde a mais remota antiguidade, a potncia das foras da natureza fazia o homem sentir-se pequeno demais, e a ver o planeta como um campo ilimitado. Assim, at o incio dos anos 1960, a atitude predominante era a do temor-domnio. No Ocidente, a atitude histrica diante dessa potncia avassaladora e desse campo ilimitado bem refletida no Gnesis (1:28): ... enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos cus e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra. Enquanto a populao humana era relativamente escassa e seu poder de transformao da natureza se restringia fora muscular do homem e dos seus animais, a atitude de temor-domnio foi pouco contestada. Contudo, com o desenvolvimento tecnolgico, especialmente aps as bombas atmicas sobre Hiroshima e Nagasaki, a humanidade comeou a se dar conta de que o campo a ser enchido e submetido no era assim ilimitado. O desenvolvimento tecnolgico possibilitava agora ao homem transformar o meio ambiente numa tal escala que os mecanismos naturais de reconstituio no eram mais suficientes. No incio dos anos 1960, a publicao de Silent Spring, de Rachel Carson, chamou a ateno da opinio pblica para os danos que a utilizao de inseticidas estava causando ao ambiente, inclusive a grandes distncias das reas de aplicao. Nas dcadas de 1970 e de 1980 se sucedem as constataes da poluio generalizada do planeta, dos pingins na Antrtida aos ursos polares no rtico, e se avizinha a exausto iminente das reservas de importantes recursos naturais. Em 1992, esse conjunto de informaes se cristaliza numa srie de documentos apresentados e aprovados na Terceira Conferncia das Naes Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, a ECO-92, no Rio de Janeiro. Nessa poca as alteraes climticas no parecem mais especulao e os buracos na camada de oznio so um fato. A Terra deixara de ser um campo ilimitado; tornara-se um pequeno jardim da humanidade. Essa seqncia de alteraes repercute na atitude do homem diante da Natureza. O temor e o domnio vo sendo substitudos por uma atitude de respeito e convivncia. Essa nova atitude caracteriza os documentos dos organismos internacionais sobre as relaes do homem com o seu ambiente para o sculo XXI.24

Nesse contexto, a busca de uma agricultura menos dependente de insumos qumicos parte de uma busca maior de desenvolvimento sustentvel, tentando conciliar as necessidades econmicas e sociais das populaes humanas com a preservao da sua base natural. O processo de desenvolvimento desse conceito de agricultura sustentvel e seus contornos histricos podem ser acompanhado no trabalho de E. Ehlers.

As escolas em agricultura ecolgicaEmbora inicialmente centrados no Ocidente, os sucessos e insucessos do desenvolvimento tcnico e econmico ocidental acabaram se espalhando por todo o planeta, juntamente com a expanso econmica da Europa e dos EUA. No Extremo Oriente essa expanso foi fortemente impulsionada pelo Japo, que desde o sculo passado se orientou para o desenvolvimento industrial no estilo ocidental. Assim, o modo de produo baseado em insumos qumicos, primeiro fertilizantes, depois biocidas, alcanou todos os quadrantes geogrficos do planeta, em maior ou menor intensidade, o mesmo ocorrendo com a poluio industrial. Disso resultou que os problemas trazidos pela poluio industrial e pela agricultura quimificada igualmente se generalizaram pelo mundo. Resultou tambm num grande nmero de reaes, buscando o desenvolvimento de modos de produo mais naturais ou ao menos de menor impacto no ambiente. Tais reaes surgiram quase que simultaneamente em vrios pases, incorporando elementos da cultura de onde emergiam ao seu corpo filosfico e prtico. Nas dcadas de 1920 a 1940 organizam-se os primeiros movimentos, que usavam adjetivos como biolgico-dinmico, orgnico ou natural, para se diferenciarem da doutrina dominante centrada na qumica. Biodinmica A Alemanha, bero da qumica agrcola, foi tambm o bero da mais antiga reao, cristalizada em 1924, sob a denominao de Biologische Dynamische Landwirtschaft, mais tarde disseminada como biodinmica. Esse movimento teve como figura central o filsofo Rudolf Steiner, cujas idias aliceraram a investigao de vrias geraes de agrnomos e agricultores. O motivador imediato dos agricultores que buscaram esse novo mtodo era o rpido declnio das lavouras e criaes submetidas s tecnologias de ponta de ento, centradas nos adubos qumicos. Detalhes sobre esse mtodo podem ser encontrados em Kpf et al. (1983). Esse mtodo preconizava a moderna abordagem sistmica, entendendo a propriedade como um organismo e destacava a presena de bovinos como um dos elementos centrais para o equilbrio do sistema. Foi bastante difundido nos pases de lngua e/ou25

influncia germnica. A escola biodinmica foi a primeira a estabelecer um sistema de certificao para seus produtos. O mtodo biodinmico de agricultura acompanhado na educao pela Pedagogia Waldorf e na sade pela Medicina Antroposfica. No Brasil, a agricultura biodinmica foi inicialmente ligada colnia alem, estabelecendo-se pioneiramente em Botucatu numa fazenda chamada Estncia Demtria. Posteriormente, essa unidade foi assumindo novas funes e se desmembrando em outras organizaes, que so atualmente ativas na formao de pessoal, certificao e divulgao. Orgnica Na Inglaterra surge a corrente denominada Organic Agriculture, que mais tarde se dissemina pelos Estados Unidos com o mesmo nome. Sua figura central foi o agrnomo Albert Howard, com extensa experincia na ndia, ento colnia britnica. Howard observava que a adubao qumica produzia excelentes resultados nos primeiros anos, mas depois os rendimentos caam drasticamente, enquanto os mtodos tradicionais dos camponeses indianos resultavam em rendimentos menores, mas constantes. O fertilizante bsico dos indianos era preparado misturando-se excrementos animais com restos de culturas, cinzas, ervas daninhas, o que resultava num compost manure (esterco composto), de onde se originou o termo composto, hoje corrente. Aps mais de trs dcadas de observao, experimentao e reflexo, Howard publica An Agricultural testament, em 1940, ainda hoje um clssico em agricultura ecolgica. Essa escola organiza um considervel esforo de convencimento, atravs da organizao The Soil Association, que atualmente funciona como uma certificadora. Irving Robert Rodale levou essa escola para os Estados Unidos, onde ela se difundiu atravs de seu grande esforo de divulgao, hoje concretizado no complexo Rodale na Pensilvnia. A escola orgnica inglesa se fundamenta no mbito da agricultura e dos recursos naturais, no se ligando a nenhuma concepo de carter filosfico-religioso. Natural No Japo, nas dcadas de 1930 e 1940, desenvolveu-se um movimento de carter filosfico-religioso, cuja figura central foi Mokiti Okada, e que resultou numa organizao conhecida como Igreja Messinica. Um dos pilares desse movimento foi o mtodo agrcola denominado Shizen Noho, traduzido como o mtodo natural ou agricultura natural. Esse mtodo foi influenciado pelo fitopatologista Masanobu Fukuoka, preconizando a menor alterao possvel no funcionamento natural dos26

ecossistemas, alimentando-se diretamente do Zen-Budismo. Constitui uma das mais ricas fontes de inspirao para o aprimoramento das tcnicas de produo orgnica. Mais recentemente, a agricultura natural tem se concentrado na utilizao de microrganismos benficos produo vegetal e animal, conhecidos pela sigla EM (do ingls, microrganismos eficazes). Esses microrganismos foram selecionados pelo Professor Teruo Higa, da Universidade de Ryukiu, e so difundidos e comercializados pela Igreja Messinica. No Brasil, a difuso inicial desse mtodo esteve ligada colnia japonesa, em cujo seio a Igreja Messinica se estabeleceu. Atualmente a Agricultura Natural inclui braos empresariais, voltados comercializao e certificao. Biolgica J incorporando a crtica aos produtos do ps-guerra, no incio dos anos 1960, organiza-se na Frana o movimento de agricultura ecolgica cujos fundamentos tericos sero sistematizados por Claude Aubert no livro LAgriculture Biologique: pourquoi et comment la pratiquer, publicado em 1974. Similarmente agricultura orgnica de Howard, a proposta sintetizada por Aubert no se vincula a uma doutrina filosfica ou religiosa particular. Esboa-se como uma abordagem tcnica sobre o pano de fundo de um relacionamento mais equilibrado com o meio ambiente e de melhor qualidade dos produtos colhidos. A sntese organizada por Aubert beneficia-se j de considervel experincia acumulada nos 50 anos anteriores, delineando com maior riqueza de detalhes os fundamentos tcnicos e cientficos da nova agricultura. Alternativa Nos anos 1970, aps as crises do petrleo, e especialmente nos anos 1980, os movimentos de agricultura ecolgica se multiplicariam ainda mais pelo planeta, impulsionados pelo movimento de contracultura e pela crescente conscincia da gravidade e da generalizao dos problemas ambientais. Essa conscincia faz ampliar-se grandemente o mercado para os produtos ecolgicos. Esse o ambiente nos Estados Unidos, quando as crises do petrleo expem subitamente sociedade americana a fragilidade da sua agricultura, umbilicalmente dependente de combustvel fssil. Agricultura essa que, assimilando totalmente o pacote da revoluo iniciada pelos fertilizantes minerais e completada com os herbicidas, era at ento o modelo supremo de eficincia em todo o mundo.27

O governo americano toma ento para si a responsabilidade de identificar alternativas para a soluo dessa dependncia, mobilizando para isso recursos humanos e materiais. o primeiro reconhecimento oficial de que o modelo baseado em agrotxicos e adubos qumicos apresentava problemas srios e que havia modelos alternativos que os contornavam. Os estudos ento conduzidos focalizaram propriedades que nas dcadas anteriores haviam aderido, total ou parcialmente, s propostas das escolas anteriores, sobretudo orgnica e biodinmica. Evidenciaram que vrias das propostas constituam alternativas interessantes para melhorar o aproveitamento dos recursos energticos, com produtividades compatveis com as mdias regionais. Coletivamente, as tcnicas estudadas foram denominadas de Alternative Agriculture, ttulo tambm utilizado numa obra hoje clssica no assunto, capitaneada pelo Professor John Pesek, da Universidade de Iowa, a pedido e com recursos do Conselho Nacional de Pesquisa dos Estados Unidos e publicada em 1989. Uma interessante constatao que tais propriedades no haviam criado tcnicas revolucionrias, mas simplesmente aplicado de forma cuidadosa os conhecimentos e recomendaes da agronomia tradicional, apenas excluindo os agroqumicos. Agroecolgica Na Amrica Latina surge o movimento que se denominaria de Agroecologia, procurando atender simultaneamente s necessidades de preservao ambiental e de promoo scio-econmica dos pequenos agricultores. Em face da excluso poltica e social desses agricultores, esse movimento caracterizou-se por uma clara orientao de fazer crescer seu insignificante peso poltico nas sociedades latino-americanas. Destaca-se nesse movimento o chileno Miguel Altieri, atualmente professor da Universidade da Califrnia em Berkeley, que popularizou a disciplina da Agroecologia. O trabalho de Altieri ligou as pontas da valorizao da produo familiar camponesa com o movimento ambientalista na Amrica Latina. Pela natureza da sua proposio, fazendo convergir a preocupao ambiental com a grave e crnica questo social latino-americana, essa escola encontrou meio frtil no seio de organizaes no governamentais ligadas ao desenvolvimento de comunidades rurais de pequenos agricultores. No Brasil, destaca-se, pela sua abrangncia geogrfica e capacidade de articulao, a ONG AS-PTA, que inclusive tem mantido um significativo esforo editorial. Dentre outras ONGs participantes dessa articulao, destacou-se o trabalho do Centro de Agricultura Ecolgica em Ip, na Serra Gacha, pela divulgao do uso de fermentados de esterco bovino, no esprito da Teoria da Trofobiose, formulada por Francis Chaboussou.28

Permacultura Nesse mesmo perodo, desenvolve-se na Austrlia o movimento da Permacultura, uma vertente extremamente profcua cujos conceitos criariam modelos sobretudo para as regies menos bem dotadas de recursos naturais. Desenvolvendo a idia da criao de agroecossistemas sustentveis atravs da simulao dos ecossistemas naturais, o movimento de permacultura caminha para a priorizao das culturas perenes como elemento central da sua proposta. Dentre as culturas perenes, destacam-se as rvores, das quais se procura espcies para suprir o maior nmero possvel das necessidades humanas, do amido ao tecido. O movimento de permacultura tem como idelogos Bill Mollisson e seus colaboradores. A permacultura ocupa-se tambm de assuntos urbanos, tais como a construo de cidades ecologicamente adaptadas, minimizando as necessidades de energia, materiais e esforos externos e maximizando os mecanismos naturais que podem contribuir para a satisfao das necessidades urbanas. Para o Brasil, um pas de natureza predominantemente florestal, o potencial de contribuio que sistemas permaculturais podem dar a uma economia sustentvel ainda est quase totalmente inexplorado. Ao lado de e convergente com a proposta de Fukuoka, a permacultura prope um modo inteiramente novo de enfocar a agricultura, utilizando a natureza como modelo. Orgnica como coletivo Com o seu desenvolvimento em nmero e em qualidade, e tambm com o crescimento do mercado para seus produtos, os movimentos de produo sem agroqumicos sentiram a necessidade de criar uma organizao em nvel internacional, tanto para o intercmbio de experincias como para estabelecer os padres mnimos de qualidade para os produtos de todos os movimentos. Decide-se pelo termo agricultura orgnica para designar o conjunto das propostas alternativas, fundando-se em 1972 a International Federation of Organic Agriculture Movements - IFOAM. A IFOAM passa a estabelecer as normas para que os produtos pudessem ser vendidos com o seu selo orgnico. Tais normas, alm de proibirem os agrotxicos, restringem a utilizao dos adubos qumicos e incluem aes de conservao dos recursos naturais. Incluem ainda aspectos ticos nas relaes sociais internas da propriedade e no trato com os animais. A partir desse momento, as vrias escolas surgidas no processo vo sendo coletivamente chamadas de agricultura orgnica, e sua definio fica claramente expressa em normas. A diferenciao entre as vrias escolas tende a se diluir atravs do intercmbio de experincias, envolvendo conceitos, prticas e produtos. No final dos anos 1980, a agricultura orgnica no mais um movimento rebelde. Por um lado, as premissas em que se baseava a contestao do mtodo29

convencional haviam se mostrado verdadeiras. Os danos causados sade do homem e do ambiente eram muito evidentes. No havia mais como escond-los ou neg-los. Por outro lado, o crescimento do mercado orgnico e a necessidade de proteo do consumidor levaram muitos pases a criar legislaes especficas. Na virada do sculo, a contestao havia sido incorporada pelo mercado, tornando-se o setor de maior crescimento no mercado de alimentos e obrigando a se repensar oficialmente os rumos da agricultura mundial. No Brasil, a entidade mais antiga nessa linha a Associao de Agricultura Orgnica, com sede em So Paulo. Essa associao comporta como scios desde pessoas fsicas at instituies, tendo um carter, por assim dizer, federativo. Sustentvel Para os organismos internacionais, especialmente a Organizao das Naes Unidas, a postura predominante at o incio dos anos 1970 era a de que toda a contestao ao modelo convencional era improcedente. Contudo, o acmulo de evidncias em contrrio foi obrigando a uma mudana na postura oficial. Na seqncia de conferncias sobre o desenvolvimento e o meio ambiente de 1972, 1982 e 1992, foi-se tornando cada vez mais evidente que tanto o padro industrial quanto o agrcola precisavam de mudanas urgentes. Ambos haviam se desenvolvido com a premissa do campo ilimitado, mas agora o planeta se mostrava pequeno em face da voracidade no consumo de matrias pela indstria e pela agricultura. A poluio dos ecossistemas havia atingido tais propores que ameaava as bases de sustentao da vida. A contaminao das guas doces e dos oceanos, a destruio da camada de oznio, o comprometimento das cadeias trficas, os resduos de agrotxicos no leite materno e na gua das chuvas, as chuvas cidas, tudo isso infelizmente no eram mais especulaes ou alarmismo, mas fatos concretos e fartamente documentados. A agricultura, em particular, tornara-se a maior fonte de poluio difusa do planeta. A situao era claramente insustentvel. Em face dessa situao, urgia definir-se um novo norte, que apontasse para a correo desses problemas. Desenvolve-se, assim, o conceito de sustentabilidade, entendido como o equilbrio dinmico entre trs ordens de fatores: os econmicos, os sociais e os ambientais (Figura I.1). No caso da agricultura, havia j considervel acmulo de experincias que se aproximavam do ideal de sustentabilidade, particularmente dentro do coletivo designado como orgnico. Contudo, em termos dos organismos30

Figura I.1

O trip da sustentabilidade

sustentabilidade

fatores econmicos fatores sociais

fatores ambientais

internacionais, havia uma impossibilidade poltica de declarar a agricultura orgnica como novo paradigma, por dois motivos. O primeiro, porque a proposta orgnica apresentava ainda lacunas tcnicas no que se referia ao seu uso em escala ampliada. O segundo, e mais importante, os pases membros mais ricos sediavam as maiores corporaes que lucravam com o mtodo convencional, e por isso no subscreveriam uma proposta que ferisse seus interesses comerciais imediatos. Assim, cria-se o termo agricultura sustentvel, como tentativa de conciliar as expectativas sociais de alimento e ambiente sadios com os interesses dessas corporaes. Por essa razo, o termo agricultura sustentvel comporta muita nebulosidade. No passado recente, no Brasil, realizaram-se grandes eventos patrocinados por empresas produtoras de agrotxicos, que se auto-atriburam o qualificativo de sustentvel. Por isso, a agricultura sustentvel, embora representando um avano, por ser um reconhecimento oficial da inadequao do modelo convencional, no deixa de ser tambm um retrocesso em relao agricultura orgnica, cujas normas so absolutamente claras. Ecolgica Para o grande pblico, at o final da dcada de 1970, o termo ecologia no existia. A ecologia era apenas uma disciplina da biologia, que se ocupava do estudo da interao de determinada espcie com o seu meio, restrita aos meios acadmicos. Com a crescente conscientizao da magnitude dos problemas ambientais, o termo foi ganhando o grande pblico, sempre associado preservao ou recuperao do meio ambiente.31

Ao se focalizar todas as escolas designadas pelo coletivo orgnico, e inclusive a nebulosa sustentvel, notrio que todas apontam no sentido de uma melhor convivncia com o meio ambiente. Algumas universidades europias e tambm parte do movimento orgnico no Brasil usam o adjetivo ecolgica no mesmo sentido de orgnico como coletivo. Por um lado, esse termo geralmente no est to associado s normas quanto o orgnico. Por outro, no normalmente to fugaz quanto o sustentvel. Por assim dizer, ele permite identificar claramente o caminho, sem se engessar dentro de normas rgidas. Salvo onde possam ocorrer confuses, os termos ecolgico e orgnico so utilizados nesse livro indistintamente e como coletivo para todas as escolas.

A produo orgnica no BrasilNo Brasil, a dcada de 1970 foi o perodo ureo da expanso no uso de agrotxicos, vinculada ao crdito rural dos governos militares. Nessa poca, as poucas vozes que se levantaram contra o padro agroqumico provinham do meio agronmico e eram fortemente hostilizadas e ridicularizadas. Dentre essas vrias vozes, destacaram-se pela sua exposio pblica e pelo seu alcance as de Jos Lutzemberger, Ana Maria Primavesi e Adilson Paschoal. Mais tarde, o tempo viria a mostrar que, no essencial, o que essas vozes planteavam seria o caminho das dcadas seguintes. Nos anos 1980 e especialmente nos 1990, as organizaes ligadas produo orgnica se multiplicaram, cresceu o nmero de produtores e a produo se expandiu em quantidade, diversidade e qualidade. H vinte anos, o mercado se restringia a umas poucas feiras de produtores e venda de cestes semanais diretamente ao consumidor. Atualmente, estas feiras esto presentes em praticamente todas as capitais do Centro-Sul do pas. As feiras se enquadram perfeitamente na filosofia do movimento orgnico, que preconiza a comercializao direta do agricultor ao consumidor, de modo a: (1) estabelecer uma relao personalizada e de cooperao entre o produtor e o consumidor e (2) possibilitar maiores ganhos aos agricultores e menores preos aos consumidores. Contudo, a forte demanda por produtos orgnicos tem levado as grandes redes de supermercados a estabelecerem estandes especficos num nmero crescente de lojas no Centro-Sul. Essa expanso tem forado a organizao de um mercado atacadista e tem levado incorporao dos produtos orgnicos s vias formais de distribuio. Atualmente, o crescimento desse mercado estimado em 30% ao ano, mas no h dados oficiais. A produo orgnica no Brasil inclui hortalias, soja, acar mascavo, caf, frutas (banana, citros), cereais (milho, arroz, trigo), leguminosas (feijo, amendoim), caju, dend, erva-mate, plantas medicinais e vrios produtos de menor32

expresso quantitativa. A produo animal orgnica ainda muito restrita, constituindo uma das reas de maior possibilidade de retorno dentro do mercado orgnico. H iniciativas na produo de aves de postura e de corte, bovinos de leite e carne, sunos e abelhas. Os principais produtos exportados tm sido a soja, o caf e o acar, mas a evoluo do mercado e das iniciativas de produo tem sido muito rpida. Observa-se um descompasso entre os anseios da populao consumidora por produtos limpos e a percepo pelos agricultores e distribuidores das oportunidades de negcios que tais anseios representam. Para esse atraso contribui tambm o despreparo dos tcnicos e agricultores, ainda mentalmente dependentes dos agroqumicos. Por essa razo, o treinamento de tcnicos e agricultores costuma ser a primeira fase das iniciativas de produo orgnica. A agricultura orgnica utiliza menos insumos materiais que a agroqumica, mas exige muito mais de um produto intangvel: o conhecimento. Essa menor dependncia de insumos materiais levanta contra a produo orgnica o peso econmico da indstria qumica, o que tem retardado o desenvolvimento de solues que prescindam de produtos comprados. A prpria indstria, por seu turno, tem investido no desenvolvimento de produtos biotecnolgicos, supostamente mais simpticos aos olhos dos consumidores. As primeiras indstrias com patentes de produtos biotecnolgicos j alardeiam opinio pblica os danos que as concorrentes causam com seus produtos qumicos txicos. No obstante, a oposio entre o movimento orgnico e a indstria no cessou, posto que o movimento procura estimular o funcionamento dos controles naturais existentes em cada propriedade agrcola, enquanto a indstria continua trabalhando no sentido de os agricultores terem de comprar anualmente seus insumos. Do ponto de vista tcnico, a agricultura ecolgica tem sido relativamente bem sucedida, apesar de o apoio da investigao cientfica e assistncia tcnica oficiais ter sido quase nulo at muito recentemente. O desenvolvimento tem sido mais rpido e tecnicamente mais slido onde se estabelecem polticas pblicas voltadas para esse fim, seja no nvel dos municpios ou dos estados. Tecnologicamente, os sistemas orgnicos costumam apresentar elementos recuperados de bons exemplos do passado, combinados com procedimentos de ponta em termos de manejo de microrganismos, controle fitossanitrio, variedades, mquinas e insumos ecologicamente corretos. Persistem lacunas tecnolgicas em algumas culturas, notadamente naquelas que tambm so as mais problemticas na agricultura convencional, tais como a batatinha, o tomate, o algodo e as uvas europias, dentre outras. Contudo, com o foco da pesquisa tendo recentemente se voltado para a busca de solues ambientalmente melhores, tais lacunas provavelmente acabaro sanadas em pouco tempo, a exemplo de outras j resolvidas.33

Outra soluo tambm possvel, mas ainda incipiente, a reeducao do consumidor, eliminando ou reduzindo os produtos cuja produo mais problemtica. Vale lembrar que produo problemtica freqentemente indicao de falta de adaptao evolutiva da espcie para o ambiente onde o problema se observa. Plantas bem adaptadas, em ambientes bem manejados, normalmente produzem bem, a despeito de pragas e doenas.

O corpo conceitual da agricultura sem agrotxicosNo Brasil, houve grandes discusses no meio agronmico a partir do final da dcada de 1970 e que se estenderam por quase toda a de 1980. De um lado, estava um pequeno grupo, que salientava os efeitos indesejveis da produo centrada em insumos industriais. Do outro lado, estava todo o establishment agronmico. Para o grupo majoritrio, poca, os problemas causados pelo modelo convencional ao ambiente e sade humana eram vistos como um alarmismo sem fundamento. Quando muito, esses problemas eram considerados pequenos efeitos colaterais de um bom remdio. E, como supostamente no havia outra alternativa, era necessrio aceitlos como preo da soluo. O controle biolgico de pragas era visto como uma elegante elucubrao de cientistas excntricos. A economia de fertilizantes minerais era tida como uma impossibilidade aritmtica. O autor deste livro, poca estudante de agronomia, ouviu algumas vezes seus mestres se referirem pejorativamente ao controle biolgico de pragas como uma bela filosofia e que a melhor adubao orgnica era sem dvida o NPK. Da qumica e da mecnica ecologia: a abordagem integrada Na verdade, o pano de fundo dessa discusso era o corpo conceitual da agronomia. tradicional abordagem compartimentalizada dos fatos agronmicos, opunha-se uma ainda incipiente abordagem integrada. Isso implicava mudar o eixo da agronomia, da mecnica e da qumica para a biologia, especialmente para a ecologia. A Figura I.2 apresenta um esquema do modelo conceitual dominante poca. O foco da cincia agronmica era a relao solo-planta-atmosfera. Da a nfase nos estudos de adubao, relaes hdricas e variedades melhoradas apenas em termos de produo bruta. Os ataques de pragas e doenas, deficincias minerais, adversidades climticas, eram compreendidas como rudos ao bom funcionamento da produo, rudos esses cuja dinmica era alheia dinmica da produo. Nessa linha de raciocnio, no havia porque procurar, por exemplo, relaes entre a adubao mineral e a incidncia de pragas, ou entre o sistema de manejo do solo e as deficincias minerais. Tais relaes seriam esdrxulas, posto que as causas de um rudo, por definio, estavam fora do campo de estudo observado.34

Figura I.2

Representao esquemtica do pensamento agronmico convencionalatmosfera

rudospragas doenas plantas invasoras adversidades climticas planta solo

Observar que os rudos so independentes, alheios, atrapalhando o normal funcionamento da relao solo-planta-atmosfera.

Por seu lado, o grupo minoritrio propunha que esses rudos no eram rudos, mas conseqncias esperadas dos mtodos da agroqumica, e que a aritmtica era insuficiente para destrinchar as relaes entre as plantas e os nutrientes minerais, que exigiam mais matemtica do que simplesmente aritmtica. Era a aplicao na produo agrcola dos conceitos da ecologia (Figura I.3). Em ecologia, raramente um fenmeno est ligado a uma nica causa ou tem uma nica conseqncia. A regra que a cada fato se ligam vrios outros, como causa, conseqncia ou outras implicaes. Um notvel e pioneiro exerccio dessa agronomia de mltiplas causas e mltiplos efeitos, ainda atual, foi o Manejo Ecolgico do Solo, publicado em 1980 por Ana Maria Primavesi, professora da Universidade Federal de Santa Maria. Resultado de anos de trabalho seu e de seu marido Artur Primavesi, tambm agrnomo e ento j falecido, o Manejo Ecolgico do Solo se diferenciava de todo o material para estudo de agronomia at ento disponvel. Era um livro de agricultura real, em que se imbricavam a fisiologia vegetal, a nutrio mineral, a conservao do solo, o controle do ambiente, o ataque de pragas e doenas, o manejo dos animais, e outras tantas facetas dos ecossistemas agrcolas. A abordagem dos problemas era integrada, em oposio compartimentalizao dominante e que ainda persiste. Determinada praga no era um rudo, podia ser uma das conseqncias da carncia de um micronutriente, que por sua vez se tornara indisponvel devido compactao do solo, que por35

Figura I.3

Representao esquemtica do modelo conceitual da agricultura ecolgica

clima

ecossistema pragas doena

cultura

invasora

solo Observar que as interaes so partes do funcionamento normal da natureza. Ocorrem mesmo que sejam ignoradas, transformando-se ento em rudos. Pontas duplas indicam interao em ambos os sentidos.

sua vez resultara do revolvimento excessivo e da adubao qumica. E em cada um desses passos, outras tantas variveis poderiam ser consideradas. A planta doente gera suas pragas Nesse mesmo ano de 1980, o pesquisador francs Francis Chaboussou publica na Frana Les Plantes Malades des Pesticides, que seria publicado no Brasil em 1987, como Plantas Doentes pelo Uso de Agrotxicos - a Teoria da Trofobiose. O livro de Chaboussou rene evidncias, de trabalhos do prprio autor e da literatura cientfica, de que tanto pesticidas quanto fertilizantes podem alterar a composio da seiva vegetal, tornando-a mais propcia multiplicao de pragas e doenas. Embora de amplitude menor e de carter mais disciplinar, o livro de Chaboussou veio a se somar em nosso meio ao trabalho de Ana Primavesi, para romper o tabu do pensamento agronmico convencional (Figura I.2) de que as pragas e doenas consistiam em rudos ligados dinmica macro do ambiente e no condio micro de cada planta. Uma conseqncia da queda desse tabu: se a intensidade do ataque das pragas e doenas dependia em importante medida das condies da prpria planta, ento seria possvel conduzir lavouras orgni36

cas em reas circundadas por cultivos convencionais. De fato, o desenvolvimento posterior da produo orgnica viria a demonstrar que essa idia era verdadeira na maioria dos casos. O controle biolgico de pragas No obstante, a descoberta das relaes entre a composio interna das plantas e a incidncia de pragas e doenas no implica que os fatores do ambiente circundante no sejam importantes. Miguel Angel Altieri, um dos mais conhecidos entomlogos no movimento orgnico latino-americano, tem centrado seus estudos na dinmica das populaes de insetos e de seus inimigos naturais para explicar a menor ocorrncia de pragas na agricultura ecolgica. A idia de se controlar organismos indesejveis atravs da introduo de seus inimigos naturais antiga, e foi exercitada desde a mais remota antiguidade. Um dos exemplos mais prosaicos o controle de ratos com gatos. A utilizao de organismos inferiores como meio de controle foi utilizada no povoamento ibero-africano da Amrica para dizimar populaes indgenas, atravs da introduo de pessoas doentes entre os ndios. Contudo, para fins agrcolas, dois casos clssicos ocorreram na Austrlia. Na dcada de 1920, operou-se o controle da palma forrageira (Opuntia inermis) com uma borboleta do Uruguai e Norte da Argentina (Cactoblastis cactorum), e na dcada de 1950, o do coelho com o vrus da mixomatose, este coletado no Brasil. Apesar disso, aps a Segunda Guerra, os inseticidas invadem o planeta, de modo que as idias de controle biolgico perdem o atrativo e as fontes de financiamento para pesquisa. No final da dcada de 1970, o assunto era tratado nas escolas de agronomia no Brasil como uma elegante possvel soluo, porm mais prxima da poesia do que da aplicao prtica, apesar de j no incio dessa mesma dcada o Instituto Biolgico do Estado de So Paulo haver criado uma Seo de Controle Biolgico de Pragas. O controle biolgico vai recobrando flego medida que os problemas ambientais e de sade e causados pelos agrotxicos vo se evidenciando e no mais podem ser negados. Inicialmente, esse novo flego direcionado s situaes em que o controle qumico se mostra antieconmico, particularmente nas grandes monoculturas com baixo preo unitrio do produto final, como a madeira, a cana-de-acar e a soja. Atualmente, um nmero significativo de pragas controlado por inimigos naturais artificialmente introduzidos, incluindo fungos, vrus, bactrias, predadores, parasitas e parasitides. Dentre as pragas controladas, menciona-se a broca da cana-de-acar, a lagarta da soja, o moleque-da-bananeira, a cigarrinha das pastagens, o mandarov da mandioca, vrias lagartas de hortalias, o pulgo do trigo, etc.37

Esse controle biolgico clssico consiste na criao artificial de inimigos naturais e sua posterior liberao massal nas culturas. Embora utilizando esse mtodo clssico, h um grande destaque na produo orgnica ao controle biolgico natural, que, em lugar de criar artificialmente os inimigos naturais, procura prover nichos para sua manuteno nas prprias reas de cultivo. Com esses nichos, permite a instalao de diversos inimigos naturais para cada praga, tornando mais eficiente o controle. Do ponto de vista prtico, a criao desses nichos se d pela manuteno da biodiversidade de insetos, a qual obtida pela biodiversidade na flora. Essa uma das razes da importncia atribuda na produo orgnica s reservas naturais, cercas-vivas, quebra-ventos e s comunidades de plantas invasoras. Alm de proteger os inimigos naturais das pragas, a biodiversidade vegetal constitui uma fonte de alimentao alternativa s pragas, diminuindo a presso sobre as lavouras. Nesse particular, a produo orgnica trabalha com um conceito que contrasta frontalmente com o convencional. Uma planta de serralha (Sonchus oleraceus), muito atacada por pulges, ser mantida numa plantao de repolho, porque um alimento alternativo praga e um ponto de partida para a multiplicao dos inimigos naturais. Na produo convencional, ela seria sumariamente destruda para evitar a colonizao do repolho. O solo um organismo vivo Outro conceito que veio a ser ultrapassado pela abordagem integrada era a de que o solo um corpo mineral. No livro Natureza e propriedades dos solos, de N. C. Brady, um dos livros-texto mais usados para o ensino de cincia do solo agrcola, o solo definido como um conjunto de corpos naturais, sintetizado em forma de perfil, composto de uma mistura varivel de minerais despedaados e desintegrados e de matria orgnica em decomposio, que cobre a terra com uma camada fina e que fornece, desde que contenha as quantidades necessrias de ar e de gua, amparo mecnico e subsistncia para os vegetais (edio de 1980). Tal definio, embora no falsa, incompleta. Ela salienta os aspectos morfolgicos do solo, por assim dizer, mortos, enquanto as evidncias j de algumas dcadas apontam para o fato de que, especialmente no trpico mido, as boas propriedades do solo esto fundamentalmente ligadas sua atividade biolgica, viva. Por essa razo, o manejo do solo em agricultura orgnica orientado para a ativao e a alimentao dessa frao viva, cuja atividade define, dentro de certos limites, as caractersticas fsicas e qumicas do solo. Nessa linha de raciocnio, o solo enfocado como um organismo, cuja vida exige alimentao e proteo. A alimentao se faz com a biomassa e oxignio, para a nutrio dos microrganismos e, sobretudo da mesofauna. A proteo se refere especialmente incidncia direta do sol e da chuva, visando manuteno da umidade, da temperatura e da porosidade propcias ao desenvolvimento dos organismos do solo.38

Em termos de cincias bsicas, essa mudana de enfoque do solo corresponde passagem da qumica e da fsica para a ecologia como referencial bsico de raciocnio. Na ecologia, dentro de cada ecossistema, o solo o mais complexo estrato de desenvolvimento de relaes biticas, funcionando como uma camada de absoro das oscilaes no ambiente. Esse poder tampo dos bons solos muito conhecido no que se refere gua, que armazenada durante os dias de chuva para ir sendo posteriormente liberada. Contudo, do ponto de vista agrcola, o poder tampo do solo se refere tambm s populaes de insetos, uma vez que muitas espcies a passam uma fase de suas vidas, bem como seus inimigos naturais. Analogamente, compreende-se o aforismo bastante apreciado na produo orgnica de que a adubao deve nutrir o solo, em lugar de simplesmente fornecer elementos minerais cultura em crescimento. O foco deixa de ser a cultura, tendo o solo como mero substrato, e passa a ser o prprio solo, cuja dinmica biolgica se quer estimular. Contudo, vale salientar que a idia dominante de que o solo agrcola um corpo de natureza mineral no falsa, dentro do contexto da produo centrada na agroqumica. Uma vez que o solo seja compreendido como mineral, e se lhe apliquem tratos qumicos e mecnicos, ele se tornar um corpo preponderantemente mineral, perdendo aquelas caractersticas dependentes da atividade biolgica. O solo vai morrendo, se mineralizando, restando como corpos vivos no seu interior apenas as razes das culturas e os organismos que lhe so associados, mormente pragas e doenas. medida que o solo vai morrendo, observa-se uma queda no rendimento das culturas e/ou na sua resposta prpria adubao mineral. Para compensar a perda progressiva na resposta adubao mineral, doses cada vez maiores de agroqumicos vo se tornando necessrias. A velocidade da queda no rendimento das culturas devida ao decrscimo da atividade biolgica no solo depende das caractersticas mineralgicas do terreno. Onde as caractersticas mineralgicas so excepcionalmente boas, como nas terras roxas, a queda no rendimento poder levar de uma a duas dcadas. Em terrenos com predominncia de argilas mais intemperizadas, a queda observada em poucas safras. Em solos nos quais a frao hmus responde pela maior parte da capacidade de reteno de nutrientes catinicos, mesmo aplicaes crescentes de agroqumicos podem no resolver. o caso de muitos latossolos e podzolizados derivados de material altamente intemperizado, que ocorrem em todo o pas, mas so especialmente abundantes no Brasil Central e na Amaznia. De maneira oposta, quando o manejo orientado para o estmulo atividade biolgica, incluindo a mesofauna e os microrganismos, atravs do fornecimento de biomassa e da proteo do solo, o declnio da produtividade das lavouras tende a ser consideravelmente mais lento. Nesse caso, o declnio est ligado 39

extrao dos nutrientes minerais, que podem ser repostos atravs da aplicao de produtos naturais ricos nesses nutrientes. Esses nutrientes so solubilizados por vrios tipos de organismos presentes na biota dos solos, incluindo plantas superiores, fungos, bactrias, liquens, etc. Dentre essas fontes de nutrientes minerais, so freqentes os ps de rochas e produtos de origem marinha. A manuteno da fertilidade dos terrenos atravs da utilizao sistemtica da biomassa e aplicao complementar de fontes de nutrientes minerais pode soar como novidade para meio agronmico atual, formado na era da agroqumica. Contudo, j era claramente expresso em 1911 por R. H. King, ento chefe da Diviso de Manejo de Solos do Departamento de Agricultura dos EUA, em seu livro Farmers for Fourty Centuries (Agricultores por quarenta sculos) referindo-se a sistemas agrcolas da China, Coria e Japo. A diversificao das propriedades O equilbrio biolgico das propriedades, bem como o equilbrio ambiental e o equilbrio econmico de grandes regies, no podem ser mantidos com as monoculturas. A diversificao de culturas o ponto-chave para a manuteno da fertilidade dos sistemas, para o controle de pragas e doenas e para a estabilidade econmica regional. Nesse aspecto, choca-se frontalmente com a idia de especializao agrcola, freqentemente levada ao extremo nas monoculturas regionais. Historicamente, as monoculturas regionais apenas se tm viabilizado com doses crescentes de agroqumicos ou com a incorporao de novas terras em substituio quelas j exauridas. Alm da diversificao, a produo orgnica se caracteriza pela busca de integrao interna. Os produtos disponibilizados ou no aproveitados por uma explorao devem ser complementarmente utilizados por outras exploraes. Como ideal, a diversificao deve ser tal que no exista lixo ou subproduto, mas que cada material produzido seja insumo para alguma outra atividade. Contudo, diversificao, alm de funcional, precisa tambm ser administrvel. Noutras palavras, no se trata de simplesmente diversificar, mas de diversificar funcionalmente, e dentro dos limites impostos pela capacidade de administrar. O rendimento timo em lugar do rendimento mximo Em termos dos rendimentos das lavouras e criaes, trabalha-se na agricultura ecolgica com a idia do timo em longo prazo em lugar do mximo em curto prazo. Rendimento timo aquele que concilia a economicidade da explorao com a preservao dos recursos naturais e qualidade satisfatria dos produtos. Por exemplo, h agricultores que colhem de 10 a 12 t/ha de milho. Contudo, isso apenas possvel com o uso intensivo de agrotxicos e de fertilizantes40

minerais, especialmente nitrogenados. Os fertilizantes minerais vo acelerar a decomposio da frao hmus do solo, contribuindo para a degradao das boas caractersticas fsicas e qumicas desse mesmo solo. Alm disso, a frao lixiviada dos adubos nitrogenados ir poluir a gua, cuja recuperao, se for possvel, ter custos. Os agrotxicos utilizados comprometem os equilbrios de vida, no apenas dos insetos, mas tambm da fauna aqutica, das aves e dos mamferos, silvestres e domsticos, inclusive do homem. De forma sucinta, as produtividades mximas normalmente esto associadas a altos nveis de desgaste ambiental (Figura I.4), resultando em: (1) aumento das quantidades de produtos qumicos e de degradao para se manterem os rendimentos das culturas; (2) repasse dos custos de degradao para outros setores da sociedade (o governo paga para limpar a gua, os custos de sade para a pessoa contaminada com resduos no pescado, etc.). Os custos de correo desses estragos, que so gerados por um agente econmico, mas pagos por outro, tm sido chamados de externalidades pelos economistas. Se tais custos fossem embutidos nos produtos colhidos, tais produtos custariam bem mais. Na agricultura ecolgica, a idia central de produzir preservando e pelo maior tempo possvel, idealmente sem nenhuma externalidade. O rendimento assim obtido o que tem sido chamado de timo. No se trata de um timo apenas econmico de curto prazo, mas de um timo que engloba preservao ambiental, quantidade de Figura I.4

Degradao e capacidade de recuperao ambiental em relao ao rendimento fsico das culturascapacidade de recuperao tempo capacidade de recuperao

degradao

rendimento

rendimento timo

--------------------------------

ltura da cu ento m rendi

Observar que o rendimento timo precisa conciliar a capacidade de recuperao e o nvel de degradao, podendo ser alterado segundo o manejo.41

produo e qualidade do produto, um timo que se desdobra no tempo e no compromete outros espaos (Figura I.4). A produo animal: tica integrada no sistema Na agricultura ecolgica, a maioria das escolas compreende a produo animal como parte integrante do sistema de produo e sua integrao com a produo vegetal encorajada. Idealmente, os efetivos animais devem ser compatveis com o tipo e a quantidade de produtos vegetais que podem ser produzidos na propriedade para o arraoamento. Com isso, evitam-se vrios problemas de especializao excessiva na criao, ligados disposio dos excrementos e concentrao da fertilidade nos pontos de criao, s custas do empobrecimento das reas de produo dos alimentos para os animais. Evitam-se tambm os passeios transocenicos de quantidades considerveis de gros, bem como os riscos ambientais e o desperdcio de energia implicados nesses passeios. Mundialmente, o Brasil um grande exportador de nutrientes, embutidos nas exportaes agrcolas, especialmente na soja em gro e farelo. A Europa Ocidental grande importadora de fertilidade, especialmente de nitrognio, na forma de forragem para seus animais. A concentrao de nitrognio na Holanda to expressiva que se livrar dele hoje um dos seus grandes problemas ambientais. Do lado brasileiro muitas lavouras no produzem o que poderiam justamente pela deficincia de nitrognio. O dimensionamento dos efetivos animais de acordo com a capacidade de produo de alimentos evitaria esses problemas. Contudo, no caso de pequenos animais, a opo dos agricultores por criaes como atividade de renda freqentemente est ligada restrio de rea agrcola, de modo que o dimensionamento ideal dos plantis costuma resultar num nmero reduzido de animais, tornando a explorao antieconmica. Para tentar contornar esse problema, as normas internacionais permitem a compra de alimentos de fora da propriedade, desde que orgnicos, mas fixam limites porcentagem que pode ser comprada de acordo com o tipo de animal.

Desafios ampliao da produo orgnicaEmbora a expanso da produo orgnica seja um dos fenmenos mais marcantes na agricultura atual, sua participao no total da produo agrcola mundial irrisria. No presente, em poucos pases a percentagem de propriedades orgnicas atingiu dois dgitos percentuais, ainda que alguns governos europeus j tenham anunciado sua inteno de converter parcelas crescentes das propriedades agricultura orgnica. Contudo, crescente a adeso dos meios polticos proposta orgnica, por vrias razes. A proposta orgn