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Livro - Crime, Polícia e Justiça no Brasil - Páginas 165 a ... · principais correntes da literatura ... o fascinio contemporâneo

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A área de estudos sobre crime

e violência no Brasil vem ganhan­

do espaço nos últimos 40 anos. Importantes pesquisas empíricas

amadas a uma reflexão própria

da realidade brasileira foram pro­

duzidas. Faltava, porém, um livro

de referência, à semelhança dos

handbooks de tradição anglo-saxã,

oferecendo um quadro do "esta­

do da arte" dessa área de pesqui­

sa. Crime, polícia e justiça no Brasil

mapeia e apresenta as principais

abordagens e focos temáticos dos

estudos sobre a área no país. Dessa

forma, a obra traz não apenas as

principais correntes da literatura

internacional, como também in­

corpora os avanços teóricos e me­

todológicos produzidos no Brasil.

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CRIME, ,

POLICIA E JUSTIÇA NO BRASIL

00012455

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Conselho Acadêmico Araliba Teixeira de Castilho Carlos Eduardo Lins da Silva

José Luiz Fiorin Magda Soares

Pedro Paulo Funari Rosângela Doin de Almeida Tania Regina de Luca

Proibida a reprodução coral ou parcial cm qualquer mídia sem a autorização escrita da editora.

Os infrarores estão sujeitos às penas da lei.

A Editora não ~ responsável pelo conteúdo da Obra, com o qual não necessariamente concorda. Os Organizadores e os Aurores conhecem os fatos narrados,

pelos quais são responsáveis, assim como se responsabilizam pelos juízos emitidos.

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CRIME, ,,

POLICIA E JUSTIÇA NO BRASIL

RENATO SÉRGIO DE LIMA JOSÉ LUIZ RATION

RODRIGO GHIRINGHELLI DE AZEVEDO (orgs.)

FORD -... FOUNDATION ~ r~UM BWIIEIRO OE

s,.~P•IUU,

cm ed itoracontexto

C A P E S

Estado de Goiás ACADEMIA OE POLICIA MILITAR

BIBLJOTECA (62) 3201-1614

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O,pyrigl1t€:J 2014 F,\rum Brasileiro de ~urança Pública

Todos os direitos desta edlção reservados à Editora Conro::ro (Editam Plnsk1• Lrda.)

Mon1.1grm d.- capa e diagr,w111fdo Gusr.ivo S. Vilas Bo3S Prr-pa.ntpio tÚ sextos Beatriz RodriguC1. Laís .Figucimlo Patrícia Nogueira Lilian Aquino

Rr,wio Tomoe Moroizurni

Dados Inrernacíonais de Catalogação na Publicação (cn-) (Ornara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Crime, policia e justiça ao Brasil / Organização Renato Sérgio de Li ma, José Luiz Rarton e Rodrigo Ghlringhelli de Azevedo. - 1. ed., ta reimpressão. -São Paulo: Contexto, 2014.

Vários autores. Bibliografia, l SBN 978-85-7244-744-7

1. Crimes e criminosos - Brasil 2. Criminologia - Aspectos sociais 3. Justiça penal - Brasil 4. Problemas sociais 5. Segurança pública - Brasil 6. Violência l. Lima, Renato Sérgio de. Il, Rauon, José Luiz. IH. Azevedo, Rodrigo Ghíringhclli de.

14-02523 CDD-364.981 f ndicc para cacálogo sistemático:

1. Brasil : Crime, polícia e justiça ; Problemas sociais 364.981

EDITOR/, CONTEXTO Direror editorial: Jaime Pimky

Rua Dr. José Elias, 520 - Alto da Lapa 05083-030-São Paulo-SI•

PAJIX; (ll) 3832 5838 [email protected] www.edicoraconm,ro.com.br

li

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Sumário

Um livro necessário 11

Introdução - 13

Modernidade tardia e violência 16 José.Vicente Tavares-dos-Santos

Violência e ordem social.. 26 Luiz Antonio Maclwdo da Silva

Eros guerreiro e criminalidade violenta 35 Alba Zaluar

Teorias clássicas e positivistas .51 Marcos César Alvarez

Violência e repres Maria Steln Porto

ciais .

Urbnnisn.o, <lesorganização social e criminalidade 71 Br<fülio Silt'll e Frederico Couto Marinho

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Criminologia e teorias da comunicação

Patrícia Bandeira de Melo

O s meios de comunicação são um componente da cultura contem­ porânea que trazem ao debate público fatos sociais selecionados como fatos jornalísticos, fixando-os por um tempo no imaginário dos indivíduos através de narrativas de apelo discursivo imediato.

Como espaço de expressão de episódios distantes no tempo e no espaço, a mídia oferta a simultaneidade da vivência desses fatos de modo simbólico, produzindo percepçõcs sobre os eventos em circunstâncias simuladas de experiência. compar­ tilhamos a sensação de uma vida em rede.

Essa simulação cria vínculos imaginários entre coletividades, concretizando o sentido de comunidade imaginada ou de aldeia global (Anderson, 2008; Mcl.uhan, 1969). As mudanças estruturais das redes cornunicacionais alteraram as relações sociais, tornando a experiência coletiva uma característica destas relações, nas quais episódios individuais tomam-se instantaneamente públicos. Entre os fatos sociai que ganham status de problema público está o crime, que ingressa na agenda d

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Crime, policia •• justiç« no fü-.1$il

faros noticiáveis pelos meios de comunicação conforme a sua capacidade de causar impacto e repercutir sobre os indivíduos.

ma vez que o acesso aos faros sociais é cada vez mais imagético, aumenta " percepção do indivíduo de si e do outro como imagens em circulação, numa comunidade virtual. Mudou a experiência do crime, do medo e da sensação de risco e insegurança. A ambivalência dos indivíduos sobre o sentido do crime cem origem nesta experiência modelada pelas representações midiáricas. as mudança recentes mais relevantes sobre o sentido da criminalidade ocorreram nos pressu­ postos culturais que embalam a sua ocorrência (Garland, 2002). Essa construção midiática do crime é parcial e distorcida, e produz sentidos quase hegemônico acerca dos envolvidos - vitimas, acusados e os fotos cm si (Barak, 1994).

Mesmo com alcance mundial e com uma legitimidade conquistada ao longo da história, os meios de comunicação têm suas condições de existência subsumidas à estrutura cultural. É embebida nesta cultura midiática" que a pesquisas sobre crime devem ser instauradas. Há uma conexão entre crime, mídia e cultura: o fascinio contemporâneo <la imprensa em noticiar a ação violenta relaciona o medo dos indivíduos de serem vítimas de um crime e o imperativo da modernidade de promoção do entretenimento (Chermak, 1994; Jewkes, 2006; Melo, 2010).

Na visão que Alexander elabora a partir de Geertz (Geertz, 1973 apud Alexander e Smith, 2002: 137), definimos cultura como "uma descrição densa de códigos, narrativas e símbolos que criam as redes textuais de significados sociais". O discurso é condutor de significações da ação do indivíduo, dispondo alguns sentidos como representações desses eventos e desprezando outros possíveis significados. As narrativas em qualquer meio (literatura, cinema, jornalismo, pu­ blicidade, redes sociais), dentro da estrutura social, são eficientes na transmissão e reforço de sentidos acerca <ln ato criminoso.

O CAMPO TEÓRICO DA COMUNICAÇÃO

Há inúmeras discussões sobre a autonomia da comunicação como campo científico. Seu caráter multidisciplinar - como um campo que se situa entre várias ciências humanas - faz da comunicação uma área que permeia outros domínios: a ociologia, a Linguística, a História, a Psicologia, a Antropologia, a Ciência Política,

a Psicanálise. É, por isso, espaço de interface teórico-metodológica. Muitos dos teóricos que se dedicaram ao campo comunicacional e ajudaram a formular teorias da comunicação são sociólogos, entre os quais Adorno, Horkheimer, Bourdieu. Habcrmas. No Brasil, o campo teórico da comunicação ainda é desarticulado e cem·

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Crimlnologta e teorias da comunicação

ílituoso, como constata Uma (2004), mas não entraremos neste debate, tentando extrair pontos de convergência entre a criminologia e as teorias da comunicação. De forma resumida, podemos destacar alguns paradigmas teóricos que nos permitem analisar a evolução histórica dos processos cornunicacionais. clá.ssíco (funcíonalista­ pragmático), crítico, culturológico, midiológico e tecnológico-interacionista.

Na lógica clássica ou funcionalista-pragmática, o crime nos meios de comunica­ ção pode ser estudado, por exemplo, através de análises estatísticas de informações obre as ações criminosas e a construção de sentidos sobre a sociedade contempo­ rânea a partir de uma ideia de massa afetada pelos meios de comunicação (Wolf, 2001), sobre os quais pesa os efeitos da informação. O jornalismo é o criador do sentido, doutor cognitivo da compreensão coletiva sobre os fatos. Isso coloca o ato comunicativo numa direção única verticalizada (no sentido cima/baixo) entre emissor-receptor, sobre o qual eram esperados os efeitos decorrentes da mensagem articulada. Modelos teóricos como o da agulha hipodérmica ou da bala mágica colocam o emissor na condição de senhor da mensagem, introduzida no receptor, que, sob o efeito da bala, é passivo na sua capacidade interpretativa. Com as individualidades diluídas, sobressai a ideia de uma massa amorfa, sem passado e sem bases culturais ou territoriais (Polistchuk e Trinta, 2003).

Uma das primeiras tendências de pesquisa desta lógica é a Mass Commuruccrion Research, desenvolvida por pesquisadores da escola de Chicago - entre os quai Robert Park -, que formularam a ideia de uma sociologia da mídia fundada na função que os meios possuem no contexto social. Várias pesquisas se originaram também do pensamento de Lasswell: análise do controle, análise do conteúdo, análise daaudiéncia (Mattelart e Mattclart, 1999). Inúmeros modelos de estudos se seguem, como o dos usos e satisfações - o uso e o prazer que os meios ofertam - e dos efeitos - a reação esperada sobre a mensagem recebida. De comum entre eles está a ausência da potencial capacidade reativa dos indivíduos na recepção da noticia.

A lógica crítica que se segue determina os paradigmas posteriores - cuíruro­ lógico, midiológico e tecnológico-interacionista. É a partir da compreensão crítica dos meios inaugurada pela escola de Frankfurt que se iniciam pesquisas que apontam a ambivalência do potencial midiático (Habermas, 1994). I Iá, de fato, uma mídia que busca neutralizar pelo consenso, mas há o contrapeso emancipatório cada vez mais concrl:!tiza<lo no formato recente de mídias digitais, estudados especialmente dentro do paradigma tecnológico-interacionista.

Os demais paradigmas - culturológico e midiológico - vão dizer que a ênfas dada ao estudo que se empreende. Pesquisas que ressaltam as bases culturais numa ~strutura social sâo categorizadas dentro da lógica culrurológica, entre os quais csrãc os estudos culturais da escola de Birrningham. O aspecto industrial da cultura d ll1'1SS0 11· ' ' '[• ' "' ao e uruco e L ircciounl do topo para a massa como pensavam os teóricos

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Crime, pohciu <' _ÍIISIÍÇ(l no Bmsil

da escola de Frankfurt, mas se constitui em algo mais complexo. No paradigma midialógico, aborda-se as condições de presença e impacto dos meios no cotidiano, em plena era digital e da interatividade da informação, numa perspectiva recente da vida em rede, dando consistência ao conceito de aldeia global (Rüdiger, 2003), tendo como exemplo o modelo mediativo de [csús Marrín-Bnrbero e o postulado crítico sobre as inovações técnicas de Mcluhan.

Os estudos da interface entre crime e mídia podem ser feitos a partir da lógica critica dos paradigmas contemporâneos das teorias da comunicação - culrurológico, micliológico r.:: tecnológico-interacwmsta. Modelos teóricos recentes buscam responder às questões postas pelos pós-estruturalisras, e encontramos na teoria do agenda­ setting, desenvolvida pelos norte-americanos Maxwell McCombs e Donald Shaw (2000a; 2000b), grande potencial para os estudos do crime nos meios de comuni­ cação dentro da atual estrutura tecnológica de interação. Pela agenda midiática, acessam-se os sentidos produ:i<los na modernidade. A corrente encontra-se entre as tendências teóricas emergentes e será desdobrada adiante.

CRIMINOLOGIA

A fundamentação de uma ação como crime resulta da relação entre o signifi­ cante - o aro em si - e o significado dado a ele. A relação significante/significado é imbricada pela variável cultural, responsável pela determinação do que é mal e que grau é atribuído a ele. Na estrutura social, sobressaem-se grupos sociais que têm poder de determinar que ato é mais ou menos grave. A competição de significação muitas vezes se dá no espaço rnidiárico, que encerra o sentido que prevalece. Por isso, à criminologia torna-se central levar em conta o intercâmbio rnidiático fluido e sem fim, na qual a audiência, ainda que ativa, age sob o efeito do sentido emitido pelos meios ele comunicação (Ferrell et al., 2008).

Como convenção simbólica sobre a conduta humana outorgada por agentes autorizados, o crime tem níveis distintos na mídia. Crimes de ordem tributária, por exemplo, estão nas páginas de economia ou política dos jornais, enquanto os crimes violemos ocupam as páginas policiais. No ato criminoso, há uma relação pendular entre o prazer da apropriação - de objetos, do corpo do outro ou simbólica - e a dor - <la perda material, física ou moral (Melo, 2010).

O discurso reverberado na mídia dispõe a ação criminosa como prática monstruosa, desumana, com punição fora da esfera do humano, divina, numa associação do monstro à pobreza ou como produto dela (Melo, 2010). Com base na criminologia, estabelecemos cinco percepções do mundo do crime: a) crime como responsabilidade da sociedade (que pede a reabilitação do preso); b) crime como escolha

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Criminologia e teorias da comunicaçâo

racional (que amplia a condenação); c) crime como ação cultural (que evidencia a diferenca cultural - religiosa ou étnica); d) crime como estratégia de sobrevivência (que [ustifica nação); e) crime como resultado da pobreza (que requer medidas em saúde e educação como solução) (Garland, 2002; Salla ct al., 2006).

0 campo da criminologia, a criminologia cultural é uma área de estudo que busca entender o fascínio contemporâneo pela violência, e mais ainda quando visto como prazer e espetáculo. Essa perspectiva teórica se alinha aos estudos cm cornu­ nicarão uma vez que analisa como o crime se tomou uma performance pública, . , onde a rua é o palco e a plateia é a audiência da mídia. A conexão entre crime, mídia e cultura é evidenciada por Ferrell et al. (2008) e por Jewkes (2006: 30), que afirma que "todo o crime é fundamentado na cultura". Para ela, a criminologia tradicional não dá conta de explicar sentimentos como prazer, emoção e desejo associados à prática criminosa. O crime assume qualidades como emocionante, per­ fonnático e perigoso, captados pela m ídia, cuja audiência expressiva comprova existir.

Essas percepções transitam nas ciências sociais e nas práticas e discursos penai e culturais, traçando as trajetórias das sensibilidades humanas acerca do sentido do crime (Garland, 2002; Salla et al., 2006; Melo, 2010). A criminologia cultural almeja compreender o crime como uma atividade expressiva, que quer dizer alguma coisa: entretenimento, protesto, ato subversivo, perigo, violência estatal sancionada? A criminologia cultural é antes uma criminologia critica que considera as ernoçõe que emergem dos atos criminosos, buscando entender as condições contemporâneas de um novo mundo do crime e controle definido pela imagem, pelos sentido em movimento e pela exclusão de populações marginais na modernidade tardia (Ferrell et ai., 2008).

A criminologia cultural reconhece a força <los meios de comunicação, cuja agenda é determinada pelo crime, e o crime é determinado pela agenda (Ferrell et ai., 2008). A comunicação simbólica de ações criminosas - o faro em si, o julga­ mento e o pronunciamento da sentença -, seus valores e sentidos ficam na alçada da mídia, cujo discurso persuasivo julga, absolve ou condena. Múltiplas perguntas cabem nesse campo interdisciplinar de pesquisa: qual o peso do discurso midiátic sobre as decisões judiciais? Como os interlocutores desse discurso - criminosos, vítimas e agentes (policiais, juízes, promotores de justiça) - percebem os sentido atribuldos ao crime e i\ punição, o sentido de impunidade, de medo, de lei e de ordem? Qual a capacidade de intervencão destes interlocutores nestas narrativas?

Duas possibilidades metodológi~as podem ser consideradas: a análise de discurso e a etnografia (Chermak, 1994). Ao examinarmos as histórias dos crimes e as falas dos indivíduos envolvidos, podemos submergir nos sentidos apresentados ao pt1blico no discurso midiático. Na etnografia, é possível entender o processo de produçno rnidiática para que as narrativas sobre os crimes sejam elaboradas.

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É fundamental entender que há uma ligação entre o processo produtivo e 0

sentido que os casos de crime violento ganham; logo, as <luas possibilidades não são excludentes.

A condução da pesquisa interdisciplinar entre crime e mídia deve produzir uma compreensão das condições contemporâneas da ação criminosa, de como

0 indivíduos a praticam ou são vitimizados e da capacidade real da punição promover controle e mudança. Hall (1989, apud Lima, 2004) salienta a impossibilidade de existência de uma teoria da comunicação sem uma teoria social e de uma teoria cultural. Também Habermas (1981) considera que uma teoria da comunicação serve para a teoria sociológica como meio para apontar em que medida a ação comuni­ cativa coordena a ação dos indivíduos e as interações sociais. Aqui, apresentamo, apenas alguns percursos possíveis.

O CRIME NA MÍDIA

O crime entra na agenda jornalística corno um tema que atrai público, está na pauta porque eleva o nível de consumo midiático pela audiência. O crime narrado pela mídia é o drama moderno do teatro de arena, exposto para manter a atenção e o interesse do público. Como cerimônia, contém o ritual no qual os indivíduos ão heróis, vilões e vítimas, criando uma ordem social própria, na qual os sentido ão imputados sumariamente, num discurso emocional que comove e estimula o consenso sobre o dano, a culpa e a punição (Melo, 2010).

A mídia é o elo entre as pessoas e os acontecimentos do mundo, pressu­ posto fundamental para a teoria do agenda-secting. Esse modelo teórico ressalta o poder do jornalismo de projetar temas ou faros sociais, comando-os tópicos de discussâo pública. Pesquisas no campo da comunicação indicam a conexão entre as agendas jornalística e dos indivíduos. O efeito observado foi de que a agenda dos indivíduos é determinada pela agenda da imprensa: questões que estão direta ou indiretamente ligadas aos indivíduos acabam por fazer parte do seu universo a partir da veiculação rnidiátíca,

Os crimes violentos são acontecimentos <lotados de valores-notícia 12 porque carregados de conflito. Esses crimes ingressam na pauta rnidiática e ganham a compreensão coletiva de relevância a partir do agendamento feito pela mídia. Ê interessante observar que nem todo crime violento é notícia ou ganha destaque na mídia: há fatos sociais dramáticos que ocupam a imprensa rotineiramente e outros que são reduzidos ou apagados do discurso jornalístico.

É neste ponto que reside um equívoco para o qual se deve estar atento nos estudos de mídia e crime: a redução do estado do crime violento às representações

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Criminologia e teorias da comuntcaçãc

dos meios de comunicação. A cobertura rnidiática do cri me é distorcida e dramática (Fcrrell et al., 2008; Garland, 2002; Melo, 201 O). Por isso, é central destacarmos que a pauta jornalística - os fatos que compõem a agenda midiárica - é uma constru­ cão social de remas eleitos numa gama de temas passiveis de seleção. Essa escolha decorre de decisões de política editorial que delimitam o grau de importância <los fatos segundo critérios jornalísticos - os valores-noticia - compartilhados pela mídia cm geral (Chcrmak, 1994; Melo, 2010).

Se os estudos do crime na sociedade contemporânea têm como perspectiva teórica a criminologia cultural combinada à teoria do agenda-serung, é possível ob­ servar quais as condições de possibilidade de que determinadas políticas públicas venham a ser adotadas para o controle da criminalidade face às determinante culturais que delineiam as compreensões coletivas sobre a ação criminosa e a sua contenção. A agenda da mídia mostra as tendências de percepção e os campos semânticos que se constroem sobre o tema.

Barak (1994) constitui o que chama de newsmaking criminology, uma proposta de esforço acadêmico focada na interpretação, influência e modelagem dos valores­ notícia acerca da representação sobre crime e justiça. A ideia é de desmistificar a imagem do crime e da punição, colocando os atos criminosos no contexto de atividades ilegais e nocivas e quebrando estigmas sobre o problem.a. O esforço seria de agir sobre a agenda rnidiática, produzindo discursos que afetem as atitudes do público, seus pensamentos sobre a criminalidade e a justiça, de modo a facilitar uma política pública de controle com base em análises estruturais e históricas. É a defesa de uma pesquisa-ação: não apenas estudar as representações do crime, mas aproveitar oportunidades de produção de notícias sobre o crime e influir na construção de sentido. Para tanto, os criminologistas devem ser vozes ativas no debate público.

O SENTIDO HEGEMÔNICO E O POTENCIAL DE DISSONÂNCIA

No formato virtual de comunicação, o indivíduo negocia trocas simbólicas, operando sobre ele os efeitos de sentido das narrativas. Não se sabe em que me­ dida ele é autônomo no processo, sobre o qual intervém a força tecnológica dos meios e a força cio poder simbólico por eles exercido. A capacidade de ação d indivíduo está marcada pela estrutura midiática. antes ator nas sociedades orais, hoje iuternauta em cidades virtuais, cuja arquitetura eletrônica a todo ternp nos leva aos novos processos comunicacionais. Das grandes narrativas, agora nos encontrarnos na grande rede, nas simulações do real. Portanto, a experiência

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'rirnt', policía t' justiça no Bni~il

eletiva do crime ganha sentido dentro de uma cultura particular, "urna ceia ulrural que está ligada em formas específicas de vida" (Garland, 2002: 147).

Por isso, um caminho rcóríco-merodologíco de pesquisa de interface entre rime e meio de comunicação se consolida quando observamos a ação crimi­ nosa numa estrutura cultural na qual a cultura é variável explicativa, como defende Alcxander (1995). Na sociedade contempordnea midiatizada (que vive sob a influencia da mídia), cuja estrutura social se consolida em bases culturai midiáticas (ambiente em que as relações sociais se desenvolvem e os fatos sociais são reconhecidos a pare-ir dos meios de comunicação), o sentido do crime, a percepção e a dimensão dos danos decorrentes e os sentimentos acerca da ação punitiva estão calcados nos discursos midiáticos que formam esta significação. Há condicionantes históricas e variações nacionais que devem ser reconhecidas neste procedimento, para evitar homogeneizações conceituais mesmo nos tempos atuais de redes virtuais de comunicação.

O repertório narrativo dos espaços de mediação jornalísticos e das redes sociais influencia a percepção do crime, regularmente retroalimentados até constituírem entidos que são tidos como "algo dado": a naturalização da relação entre pobreza

e criminalidade, o sentido de fatalidade dado à violência nas incursões policiais em favelas, o apagamento dos casos de suicídio e estupro, a definição da pena como um ritual de resolução e catarse coletiva e a compreensão de que novas leis penais ão soluções finais para alguns tipos de crime.

Estudos comparativos entre crimes divulgados na mídia e as estatísticas oficiai mostram que o que é noticiado diversas vezes é pouco relevante em termos estatís­ ticos, enquanto outros tipos de ação violenta, embora frequentes, não entram na pauta. Em um mês na Inglaterra, em 1989, 64,5% dos jornais continham notícias narrando crimes com uso de violência, enquanto no mesmo período as estatísticas britânicas davam conta de apenas 6% de crimes reportados como violentos pelas vítimas (Reiner, 2002). Isso parece dar sentido à proposta ele Barak acerca do newsmaking criminology.

Tanto a seleção dos fatos que vão para a pauta da mídia como a seleção dos enquadramentos para interpretar esses fatos são poderes importantes do jornalismo apontados pelo paradigma do agenda-setting. Os meios de comunicação são impul­ sionadores do conhecimento, e é isso que leva os indivíduos a comentarem sobre o que se fala na televisão e nas redes sociais e a ignorarem o que está próximo a eles, mas que não ascendeu à notícia. A elevação de status do crime de problema social a público - sem dimensionar as condições de suas práticas - é resultado da forma como os indivíduos são levados a pensar no assunto. O que sai na mídia norteia as agendas individuais de preocupações, fazendo-nos temer um conjunto de possíveis crimes que na maioria das vezes são raros e incomuns.

I 72

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Crímínologia e teorias da comunicação

Mas, se urna realidade é conhecida não pelo que é, mas pelo que se pensa tJiieé, então, estudos de interface entre criminologia e mídia devem considerar a influência da cultura midiática sobre a forma como os indivíduos veem o crime, pensam acerca dele, o temem ou o praticam. Assim, pode-se elaborar pesquisas inovadoras ao se conduzir análises sobre a relação entre narrativas rnidiáticas e enridos construídos sobre a prática criminosa, o prazer e o medo do crime e o indivíduo - vítima ou agressor - envolvido na ação criminosa. Os contextos de configuração do crime ganham uma nova chave de compreensão numa dimen­ são culturai-midiática e se abre a possibilidade de uma pesquisa-ação, em que o esforco acadêmico possa produzir discursos dissonantes às narrativas dominantes sobre o crime.

PARA SABER MAIS BARAK, G. (ed.). Media, process and th« social construction of crime: studies in Newsrnaking

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Violência, crime e mídia Sílvia Ramos

MASS MEDIA: DESÍGNIO DIABÓLICO OU ALVORADA DA DEMOCRACIA?

"Dê-me trinta minutos numa delegacia para levantar ocorrências e eu lhe darei uma onda de crimes". Esse era um lema dos tabloides do começo do século XX nos EUA (McCombs, 2007: 28). Outro. frase que se popularizou nas redações era: lf it bleeds, it !eads (se tem sangue, vira notícia). As relações entre meios de comunicação, crime, medo e comportamento violento foram objeto de análises e controvérsias desde a origem dos estudos sobre os efeitos dos meios de comunica­ ção de massas (mass media) nas sociedades. Nos Estados Unidos, uma das linhas predominantes de pesquisas sobre mídia nos anos 1940 e 1950 teve forte influência da psicologia behaviorista, que ncreditava que os "comportamentos" eram respostas d' " rreras a estímulos", fossem positivos ou negativos. Inúmeras pesquisas estudaram principalmente o efeito da propaganda na televisão e acreditavam que se uma

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pessoa e "npanhadn" pela propaganda, pode ser controlada, manipulada e levada a ag-ir (Wolf, 2009). Essa e outras linhas de pesquisa sobre a mídia no período do pós-guerra basenvam-se também na ideia de que a comunicação de massas, por meio de rádio, televisão, cinema, jornais ou livros, obedece a um modelo em que há um emissor ativo e um receptor passivo. Tanto os que viam nos mass media os instrumentos de um desígnio diabólico - especialmente com a chegada e rápida populatização da televisão a partir de 1950 -, como os que viam neles o advento de uma nova alvorada da democracia tinham no fundo o mesmo conceito do processo de comunicações de massa: de que alguns poucos, uma elite manipuladora, envia­ vam mensagens para uma massa homogênea e atomizada de milhões de leitores, ouvintes e espectadores (Lazarsfeld e Merton, 2002).

Um segundo grande campo de pesquisas pode ser reunido em torno da li­ nha <los "efeitos limitados". Da ideia de manipulação dos meios de comunicação passou-se à noção de persuasão e depois à de influencia. Pesquisas empíricas tanto de caráter psicológico como sociológico passaram a investigar características do público e da mensagem como sendo mediadoras das relações entre o emissor e o receptor para tentar compreender por que algumas emissões surtiam efeitos em certos públicos e em outros não. Estudaram dimensões como o interesse prévio Ja audiência na informação veiculada, a exposição seletiva (as pessoas assistem na televisão, escutam no rádio ou leem nos jornais aquilo em que têm interesse), a percepção e memorização seletivas, a credibilidade do comunicador, a ordem e a conclusão da argumentação e outras. Como foi observado por Mauro Wolf,

e a teoria hipodérmica falava de manipulação ou propaganda, e se a teoria psicológico-experimental tratava de persuasão, esta teoria (a teoria dos efeitos limitados) fala de influência e não apenas <la que é exercida pelos mass media, mas da influência mais geral que perpassa as relações comunitárias e de que a influência das comunicações de massa é só uma componente. (2009: 47)

As teorias associadas aos efeitos limitados têm caráter sociológico e passam a explorar o contexto social em que os processos de comunicação se realizam. esse campo, foram desenvolvidos estudos famosos, principalmente analisando o

efeito do noticiário durante as eleições norte-americanas. Um dos textos clássicos desse campo é Tit.e People's Choice: how the Voter Makes up his Mind in a Presidential Campaing, de Lazarsfeld, Berelson e Gaudet (1969). Nesse estudo, os aurore acompanharam 600 pessoas durante as eleições presidenciais de 1940, em que concorreram Roosevelt e Weldcll Wílkie, e as entrevistaram por sete vezes ao longo dos sete meses da campanha eleitoral (e testaram um método de estudo sociológico chamado "painel"). Embora os autores tivessem como hipótese inicial que votar é um ato individual afetado principalmente pela personalidade do eleitor e pela

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Violência, crime e mídia

sua exposição aos meios de comunicação, os resultados contrariaram a tese inicial, sugerindo que os efeitos dos mass media na decisão eleitoral era mínimo e que a influência decisiva escava nos grupos sociais a que os eleitores pertenciam. Esses estudos levaram a novas concepções sobre os receptores: longe de ser homogêneo e indefeso, o público dos mass media é heterogêneo, tem suas próprias redes de influência e está fortemente inclinado a identificar-se com as mensagens da mí­ dia, desde que elas sejam coincidentes com seu estatuto socioeconómico, de raça, religião, idade, local de residência etc.

ímultaneamente à multiplicação de pesquisas nos Estados Unidos, na Europa investigadores da chamada escola de Frankfurt (do Institut für Sozialforschung, fundado em 1923, onde se reuniam, entre outros, Herbert Marcuse, Erich Fromm, Walter Benjamin, Theodor Adorno, Jürgen Haberrnas e Max Horkheimer) se in­ teressaram pelo problema dos efeitos da comunicação de massas por meio de sua "teoria crítica", que examinava as relações entre critica, sociedade e cultura. Em um texto clássico de 1947, 1 lorkheimer e Adorno cunharam o conceito de "indústria cultural" (Adorno e Horkhcimer, 2006). Os pesquisadores da escola de Frankfurt caracterizaram um sistema que transforma progresso cultural no seu contrário a partir principalmente do cinema, da televisão, do rádio e dos jornais submetido a um mercado de massas que impõe estandardização de baixa qualidade, moldan­ do os gostos do público e suas necessidades. Esse sistema condicionaria de forma total o processo de consumo e sua qualidade, bem como a autonomia do consu­ midor. Para Adorno e Horkheimer, o homem encontra-se em uma sociedade que o manipula a seu bel-prazer. Como consumidor da indústria cultural, o sujeito não é sujeito, mas seu objeto. Adorno criticou duramente o uso que a indústria cultural fazia da arte e da cultura clássica, rebaixando-as e estereotipando-as. Seu texto Television and the patcerns of mass culture (1957) é pródigo cm ilustrações de clichês e dispositivos de mistificação que caracterizam o cinema e a televisão. Para os filósofos da escola de Frankfurt, o público da sociedade industrial é manipulado como fantoche e este é exatamente o objetivo da indústria cultural. Para a teoria critica, os mass media reproduzem as relações de força dos aparelhos econômico e ocial, que degradam a cultura e subjulgarn os sujeitos.

Em um texto divisor de águas, Umberro Eco caracterizou essas e outras teorias como "apocalípticas" (Eco, 1968). Contra as acusações de deturpação e rebaixamento da cultura, que seriam operadas pelos msss media, Eco argumentou que a chamada cultura de massas não é especifica dos regimes capitalistas; que a comunicação de massas difundiu para amplos setores da sociedade bens culturais que antes eram restritos às elites; que o excesso de informação de que os nias" m J· - 1 e ia sao acusnr os de promover pode reverter-se em formação para setores da audicncia; que os meios de comunicação não são conservadores do nonro d

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vista do estilo, como a teoria crítica afirma, mas, pelo contrário, que a televisão e outros meios de massa inrroducirarn novos esquemas perceptivos, como na gramática do cinema e da história em quadrinhos, ou no estilo jornalístico. Eco argumenta que os mnss media promoveram uma renovação estilística, e não o fim da cultura, como afirmam os carasrrofístas (Eco, 1968). O autor enfatizou um aspecto que será crucial nu debate sobre mídia e violência: o modelo da cultura de massas compete com outros (cultura de classe, conhecimentos tradicionais, cultura transmitida na educação etc.). Juntamente com Umberto Eco, pesquisa­ dores da tradição <la linguística e da serniologia chamaram atenção para o caráter negocial da comunicação. Entre o emissor e o receptor, a mensagem transrnitidn é um signo que deverá ser significado pelo receptor. Se emissor e receptor não compartilharem o mesmo sistema de códigos e subcódigos, isto é, de significações, não hã qualquer certeza de que a mensagem será acatada e que poderá convencer a audiência. Em resumo, os teóricos do modelo semiótico-textual enfatizaram o caráter complexo, imprevistvel, heterogêneo e negociado da comunicação e afas­ taram o debate dos esquemas convencionais, tipo estímulo e resposta, opressore e oprimidos, onde as reações seriam homogêneas para toda a audiência e essa seria manipulável pelo emissor (Wolf, 2009). Muitas décadas depois do início desse debate, o sociólogo espanhol Manuel Castells observou que constitui uma das grandes ironias da história o fato de serem precisamente os pensadores da escola de Frankfurt, que defendem a mudança social, "os mesmos que veem os individuas como receptáculos passivos de manipulação ideológica inibindo, na verdade, as ideias de movimentos sociais e mudanças sociais" (Castells, 2002: 441). Juntamente com outros autores, Castells observa que os sujeitos têm auto­ nomia para organizar e decidir seu comportamento e que as mensagens enviadas interagem com seus receptores, que as transformam.

AGENDANDO AS POLÍTICAS PÚBLICAS

Em 1968, dois jovens pesquisadores <la Universidade da Carolina do Norte, Maxwell McCombs e Don Shaw, deram início a um conjunto de perguntas e estu­ dos que ficaram conhecidos como "hipótese do agenda-seuing". Eles propuseram que em consequência da ação dos jornais, televisão e outros meios, o público sabe ou ignora, presta atenção ou se desl iga, dá importância ou negligencia assuntos e cenários públicos. Ou seja, os mass media não moldam as opiniões das pessoas obre os assuntos, mas influem nos assuntos sobre os quais as pessoas se dedicam a prestar atenção e formar opinião (McCombs, 2007). Segundo essa perspectiva, o noticiário nos jornais, televisões e rádio "agendam" o público e, fazendo isso,

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Violência, crime e rnldía

contribuem para "agendar" as políticas públicas e os governantes, que se veem pressionados pela opinião pública e pela mídia. Essas formulaçôes são importantes não só porque criaram uma nova tradição de pesquisas sobre mídia que, mais de 40 anos depois, continua sendo explorada por investigadores em vários países, mas também porque contribuíram para que se pensasse nos efeitos dos meios da comunicação a longo prazo: não mais mudança robótica de comportamento e atitude, mas contínua construção da visão de mundo.

A tradição de pesquisa de agenda-seumg propõe estudos não de uma propagan­ da, uma campanha eleitoral ou um caso rumoroso, mas da cobertura global de todo o sistema de mass media centrado sobre determinadas áreas temáticas (por exemplo, sobre violência, como veremos adiante). Em termos metodológicos, as pesquisas deixaram de se dedicar exclusivamente a entrevistas com o público (pesquisas de opinião) para propor metodologias integradas e complexas. E, mais importante, passaram a tentar compreender o processo pelo qual os indivíduos constroem a própria representação da realidade. Com essa teoria, adquiriu-se a consciência de que as comunicações não intervêm diretamente no comportamento, mas tendem a influenciar o modo como as pessoas organizam as imagens do ambiente em que vivem (McCombs, Shaw e Weaver, 1997).

Ainda entre os principais campos de pesquisa sobre mídia e sociedade, deve ser mencionado o newsmaking, também chamado de sociologia dos emis­ sores. São estudos, em geral de caráter etnográfico, realizados em redações de jornais, estúdios de televisão e cinema. As investigações procuram compreender os mecanismos de seleção das noticias que serão veiculadas, estudar as distor­ ções voluntárias e involuntárias cometidas por jornalistas e editores, o caráter das relações entre jornalistas e suas fontes de informação etc. A sociologia do profissionais de comunicação estuda os sistemas de informação por dentro e a pesquisas indagam quem e o que agenda a mídia. De certa maneira, os esrudo nesse campo, em vez de perguntar apenas o que a mídia foz às pessoas, perguntam o que as pessoas fazem ::i mídia e como o público (imaginado pelos profissionai de comunicação) influencia a cobertura (Wolf, 2009).

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INTERNET: A REDE É A MENSAGEM

No início dos anos 1960, a internet começou e ser pensada por dois grupos distintos de cientistas, um ligado aos mi I irares norte-americanos e outro ligado ª pesquisadores universitários. Em 1969, o primeiro sistema que ligava compu­ tadores foi estabelecido e, no final dos anos 1970, grupos de cientistas, hackers especialistas se comunicavam. Em meados dos anos 1990, a arquitetura aberta da

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internet permitiu que qualquer computador ligado a uma rede se comunicasse om computadores ligados em rede cm qualquer parte de mundo. Em 1995, a rede mundial (u·orld u 1idc web) estava criada, diversos softwares de acesso à internet (brou'St'Ts) estavam disponíveis e seria possíve] a partir <lní o acesso a informações, a transferência de dados e uma ampla variedade de recursos e serviços, incluindo os documentos interligados por meio de hiperligações, infraestrutura para cor­ reio eletrónico e serviços como comunicação instantânea e compartilhamento de arquivos. Manuel Castells, o principal pesquisador do campo da sociologia a estudar os fenômenos da sociedade em rede e da chamada "sociedade da in­ formação", observa que a internet conseguiu a mais rápida taxa de penetração do que qualquer outro meio de comunicação da história. O rádio nos Estados Unidos levou 30 anos para alcançar 60 milhões de pessoas, a TV, 15 anos e a internet levou só J anos após a criação da world wide web (Castells, 2002). A principal característica Jo novo sistema de comunicações organizado pela inte­ gração eletrônica é que todos os meios, do alfabético e tipográfico (a "Galáxia Gutemberg", como McLuhan, em 1962, chamou o sistema de comunicação que dominou a humanidade desde 700 anos antes de Cristo até o advento da televisão) aos sensoriais, isto é, aos audiovisuais, encontram-se integrados. Texto, rádio, televisão, cinema e telefone juntos. A segunda característica, esta mais importante e definidora de novos parâmetros para toda discussão sobre mass media, é que a internet permite a comunicação de muitos com muitos. Não mais o modelo de um emissor e milhões de receptores, mas uma nova condição em que os receptores são também emissores, por meio de correios eletrônicos, blogs, twitters, diversas redes sociais e dispositivos interativos em tempo real. Nesse enrido, a internet tem contribuído para alterar os processos de representação da realidade. Os efeitos desse novo momento na história das comunicações ainda não estão totalmente claros (Postman, 1993).

De toda forma, não se deve traçar um panorama idealizado de democrati­ zação ilimitada da informação. Primeiro, porque o acesso aos meios eletrônicos é desigual e abarca áreas <las sociedades e das regiões do mundo, criando zonas de marginalização, com acesso tardio aos desenvolvimentos tecnológicos. E, mais importante, se por um lado a liberdade de comunicação e de expressão se alargou imensamente, num cenário em que as pessoas compõem seus próprios noticiá­ rios e programas de entretenimento a partir de múltiplas fontes, ordenadas em horários e frequências definidas por elas (e não mais ficam cm frente à televisão à espera de ver o mundo pelo jornal das oito), por outro lado, os emissores das grandes redes de televisão e jornal estão cada vez mais concentrados, a partir de megafusões de redes de comunicação em vários países. Com a internet e a socie­ dade em rede, vivemos um momento paradoxal em que o público é segmentado,

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diferencia<lo e seletivo, não mais se apresentando corno uma audiência maciça, irnultânea e homogênea. Por outro lado, os emissores dos grandes canais de televisão, ao verem suas audiências despencarem, vêm procedendo a alianças estratégicas e fusões, e hoje são mais comerciais e oligopolistas <lo que em qual­ quer outro momento da história. Nesse contexto complexo, tudo indica, como ugere Castells, que

o que caracteriza o novo sistema de comunicações é sua capacidade de incluir e abranger todas as expressões culturais I ... J. Devido à sua diversificação, multi­ modalidade e versatilidade o novo sistema de comunicação é capaz de abarcar e integrar todas as formas de expressão, inclusive a <los conflitos sociais, bem como a diversidade de interesses, valores e imaginações. (2002: 491)

VIOLÊNCIA NOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO, COMPORTAMENTO VIOLENTO E MEDO DO CRIME

Em dezembro de 2012, em momento de comoção pela tragédia na escola Newton, em Connecticut, em que um jovem de 20 anos matou 6 adultos e 20 crian­ ças de 6 e 7 anos com disparos de um rifle semiautomático, a Associação Nacional do Rifle (NRA na sigla em inglês) recomendou que se colocasse um agente armado em cada escola e que se controlasse os meios de comunicação de massas. A NRA culpou o fato de "existir uma corrupta e insensível indústria que vende violência às pessoas" e apontou especialmente os jogos de vídeo game pela cultura de violência entre os jovens. Em resposta, a vice-presidente da Associação de Consurnidore de Entretenimenro respondeu com outro comunicado, afirmando que "diverso volumes de pesquisa cientifica dizem que não há ligação direta entre a violência na mídia e a violência na vida real" (Portal Terra, 2012). Mais de 70 anos e milhares de pesquisas após os estudos iniciais sobre os efeitos da veiculação de conteúdos violentos pelos mass media no comportamento dos indivíduos nos anos 1940, o as­ sunto retorna à pauta do dia, como se todas as pesquisas tivessem sido inconclusivas. A verdade é que os estudos se dão num campo em que, dependendo do método, das hipóteses iniciais e do objeto do estudo (games, desenhos animados, seriados de TV, filmes ou noticiário), tudo é suscetível de "comprovação", e os resultados parecem corresponder às tendências prévias de seus autores.

Um texto típico dessa discussão pode ser encontrado em The Role o[ Media Violcnce in Violent l3ehavior, de Rowcll l luesmann e Laramie Taylor (2006), no qual os autores concluem que a violência na mídia por meio de ficção e (>itleogamt:s cons­ titui uma ameaça à saúde pública. Os nu tores argumentam que, n despeito de os testes empíricos mostrarem variações pequenas de nlrcruçâo de comportamento

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Crnnc, ,,,hçín e justiça no ~m~il

em crianças expostas a jogos e filmes violentos, o assunto deveria ser tratado como as relações entre cigarro e câncer do pulmão: nem rodos os fumantes terão câncer e nem todos os portadores de câncer são fumantes. Fumar não ê o único fator que provoca câncer, mas é um fator iruporranre, argumentam esses pesquisadores.

De outro lado, Christopher Ferguson, em Media Violence Effects anel Vioien; Crime, questiona a metáfora do cigarro e do câncer, alegando que os dados en­ contrados nas pesquisas, cujos métodos em geral ele questiona, não sustentam tal hipótese. Ferguson faz uma ampla e detalhada revisão dos trabalhos que associam veiculação de conteúdos violentos e notícias sobre crime com comportamentos violentos e os classifica como pertencendo a uma categoria de trabalhos filiados à lógica do "pânico moral". Sugere que estudos em países do mundo ocidental, onde as crianças e adolescentes também jogam ·vídeo games e assistem ao Barman ou ao Homem-Aranha, não revelam ligação entre conteúdos violentos e comportamento violemo (por exemplo, Reino Unido, Israel ou Austrália) e que os ataques em escolas não têm qualquer relação com a mídia, embora os games sejam sistematicamente apontados como "culpados" sempre que mais uma tragédia ocorre. O mesmo autor mostra que a taxa de violência nos EscaJos Unidos declinou do inicio dos anos 1990 até hoje, a despeito do crescimento do consumo de mídias considerada violentas (Ferguson, 2010).

Em uma linha diferente da dos estudos empíricos, num trabalho importan­ te sobre o discurso do medo na mídia, David Altheíde argumenta que notícias obre crime e sobre terrorismo sustentaram as políticas de guerra às drogas e da guerra no Iraque e que a intensificação das notícias que envolvem situações de medo estimulam as pessoas a abrir mão de direitos civis e de liberdades, em favor de políticas policiais de controle. O crescimento da população carcerária nos ELA em mais de 600% dos anos 1970 aos anos 2000, composta predomi­ nantemente por populações minoritárias, segundo o autor, é influenciado pela agenda das noticias de crimes violentos e terrorismo, a despeito do fato de que a criminalidade naquele país veio sistematicamente decrescendo desde os anos 1990 (Altheíde, 2003).

MÍDIA E VIOLÊNCIA ESTUDOS NO BRASIL

o Brasil, em situação oposta a dos EUA e da Europa, as taxas de homicídio e crimes contra o patrimônio cresceram significativamente nas últimas décadas, não só em grandes centros urbanos, mas também em cidades de médio porte, rendo tomado a violência e a criminalidade um fenômeno importante no país

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Violência, crime e mídia

e de caráter nacional. Como os estudos de mídia vêm se dando nesse campo e como os meios de comunicação de massa vêm tratando esse processo? No país, tradicionalmente são escassas as pesquisas empíricas que procuraram comprovar as relncões entre exposição à violência nos mass media e comportamento violen­ to, corno já foi observado por vários autores (Cardia, 1994; Rondellí, 1998). Contudo, alguns estudos marcaram temas fundamentais e constituíram um campo, a partir da análise de notícias sobre linchamentos, crimes de impacto nas camadas populares, rebeliões de adolescentes, crimes de pistolagem ou de carreiras de homicidas (Benevides, 1981; Caldeira, 2000; Njaine e Minayo, 2002; Barreira, 2006 e Manso, 2012), ou em textos que se ocuparam <le revisar os estudos existentes (Cardia, 1994; Njaine e Minayo, 2004) ou pesquisando as lógicas discursivas de um veículo específico como a televisão no tratamento de notícias sobre violência urbana (Rondelli, 1998; Pereira, 2000) ou relacionando mídia e representações sobre segurança pública (Porto, 2009). Esses estudo não resultaram na criação de centros específicos de pesquisas sobre violência e meios de comunicação, mas o fato é que as principais instituições de pesquisa sobre criminalidade e segurança do país tiveram ou têm investigações ou linhas específicas sobre o papel dos meios de comunicação (USP-NEV, UFF, UFRJ, Crisp, UFRGS, UFCE, Fiocruz-Claves, CESeC, entre outros).

Outra fonte importante de análises e intervenção no caso brasileiro é a socie­ dade civil. Agências de cooperação internacional se ocuparam do tema dos meio de comunicação na prevenção da violência de jovens adolescentes e realizaram investigações em cooperação com centros de pesquisas (por exemplo, Unicef, 2005) e organizações não governamentais dedicadas a temas específicos (crianças e adoles­ centes, gênero, racismo) realizaram levantamentos e promovem sistematicamente diálogos críticos com profissionais de comunicação (por exemplo, Andi, Instituto Patrícia Galvão, Cojira etc.), tendo como foco os temas da violência, representaçõe de medo e formação de estereótipos. No Brasil, existe uma associação de jornalis­ mo invcstigativo (Abraji) que promove pesquisas e apoia livros de jornalistas sobre temas correlatos à comunicação e violência.

Em uma análise global da cobertura de jornais impressos sobre criminalida­ de e segurança pública, foram analisados 5.165 textos <los principais jornais em circulação no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais (Ramos e Paiva, 2007). autoras também entrevistaram 90 jornalistas e profissionais de segurança pública buscando compreender as características da cobertura de violência urbana <los jornais impressos. O estudo concluiu que a cobertura sofreu mudanças profundas em poucas décadas, mas a qualidade do setor, quando comparado a edirorias de eronomia ou política, ainda é significativamente inferior em termos de padrões de qualidade. Por exemplo, quase dois terços das notícias tinham como fonte a

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polícia, e assuntos importantes. como violência doméstica, racismo ou discrirm. nacõcs eram raros. Também se observou, no período da pesquisa (2004 a 2006), mo intensivo de palavras como tráfico e traficante associados à cobertura de crimes envolvendo favelas ou moradores de favelas, revelando uma dificuldade da imprensa cm fugir das notícias que confirmam os estereótipos e banalizam a violência entre os mais pobres. Apesar de verificar-se uma tendência clara de afastamento do jornalismo abertamente sensacionalista (com o fim de veículos ícones como Notícias Populares, O Povo e o fim de programas de televisão como Aqui e Agora), o noticiário diário, mesmo dos melhores veículos, ainda padece de pouca especialização dos profissionais e aceitação de padrões que são recusado cm outras edirorias.

o Brasil, os meios são importantes. A despeito de virem perdendo público ao longo dos anos, os maiores jornais impressos do país são fonte de informa­ ção para 250 a 300 mil leitores diariamente (Associação Nacional de Jornais, 2012). Os canais de televisão também vêm perdendo audiência cativa ao longo dos anos, com a difusão de TVs por assinatura e internet, mas alguns programas mantêm milhões de espectadores. Segundo dados do IRGE (PNAD), a incidência de microcomputadores com acesso à internet nos domicílios brasileiros aumentou quase 40% entre 2009 e 2.01 L Em 2011, cerca de 77, 7 milhões de pessoas de dez ou mais anos de idade declararam ter usado a rede mundial no período de três meses anteriores ao <lia no qual responderam a pesquisa. Tal índice representa um aumento de quase 15% em relação à PNAD 2009. No campo da produção de agendas públicas e representações sobre a violência, o aumento do acesso à internet significa que as pessoas passaram a ter acesso a mais fontes de informa­ ções sobre crime e segurança. E que também muito provavelmente passaram a emitir mais suas próprias opiniões em comunicações na rede. Um dos fenômenos observados foi o surgimento de uma blogosfera policial, constituída por blogs e páginas pessoais cujos autores são policiais (Ramos e Paiva, 2009). Segundo estimativa do blog Abordagem Policial, em 2012 contabilizava-se a existência de aproximadamente 300 blogs de autoria de policiais, 180 perfis de Twitter e 50 páginas de comunidades no Facebook.

A despeito do interesse genérico que o tema "mídia e violência" desperta no Brasil e do clima de polêmica que o debate sobre a cobertura dos meios de cornu­ nicação de massa suscita sempre que crimes chocantes ocorrem ou que ondas de violência são noticiadas, é necessário reconhecer que, para um país que mantém a cifra de 50 mil assassinatos por ano, o campo de estudos sobre meios de comunica­ ção e cri rninalidade no pais é comparativamente incipiente e seu desenvolvimento, assim como a quantidade e a densidade de pesquisas, não corresponde à gravidade do fenômeno.

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Violéncía, crime e mídia

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