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Direitos Humanos no Século XXI Cenários de Tensão

Livro Direitos Humanos Século XXI

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Direitos Humanos no Século XXI

Cenários de Tensão

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Direitos Humanos no Século XXI Cenários de Tensão

Trabalhos reunidos pela Associação Nacional de Direitos Humanos — ANDHEP, sob a coordenação de Eduardo C. B. Bittar.

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1a edição – 2008

© CopyrightAssociação Nacional de Direitos Humanos – Pesquisa e Pós-graduação (ANDHEP)

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CIP-Brasil. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

D635

Direitos humanos no século XXI: cenários de tensão/organizador Eduardo C. B.

Bittar. Rio de Janeiro: Forense Universitária; São Paulo: ANDHEP; Brasília:

Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2008.

Inclui bibliografia

ISBN 978-85-218-0429-1

1. Direitos humanos – Brasil. 2. Direitos Fundamentais – Brasil.

3. Cidadania – Brasil. I. Bittar, Eduardo C. B. (Eduardo Carlos Bianca), 1974.

II. Associação Nacional de Direitos Humanos. III. Brasil. Secretaria Especial

dos Direitos Humanos.

08-1557. CDU: 342.7

Reservados os direitos de propriedade desta edição pelaEDITORA FORENSE UNIVERSITÁRIA

Rio de Janeiro: Rua do Rosário, 100 – Centro – CEP 20041-002Tels./Fax: 2509-3148 / 2509-7395

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Impresso no BrasilPrinted in Brazil

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Apresentação

Pensando e agindo em direitos humanos

Este livro registra mais uma iniciativa da Associação Nacional deDireitos Humanos – Pesquisa e Pós-graduação (ANDHEP), com apoioda Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da Re-pública, no sentido de fortalecer os vínculos, laços e amarras criadospelo esforço acadêmico de aprimorar, desenvolver, consolidar e darfundamento ao debate sobre os direitos humanos no Brasil. Aqui po-derão ser encontradas reflexões as mais variegadas, que contemplam,em grande parte, mas não somente, as discussões que têm se desen-volvido ao longo da série de encontros anuais, seminários e congres-sos da própria entidade. Seus convidados são, por isso, o corpo de ati-vistas e pensadores que refletem o espírito de comunhão e trabalhoem grupo, envolvendo-se nas diversas perspectivas abertas pelo pen-

sar e pelo agir em direitos humanos. A tarefa de pensar em conjunto,um desafio comum dos programas de pós-graduação em direitos hu-manos, tem sido desenvolvida com esprit de corps suficiente para fa-zer deslanchar algo que se propõe como problemático de ser afirmadoe proclamado em solo nacional: a eficácia desses direitos. Por isso,considera-se que o agir teórico, ético e crítico é de fundamental im-portância para o agir reflexivo transformador.

Ainda hoje, quando se fala em direitos humanos, no Brasil, certa-mente se fala de uma cultura social que, do ponto de vista mais amplo, éainda muito recente. Certamente, fomos inspirados por alguns ideais li-

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berais, quando do período imperial, e o constitucionalismo entrou paraa cultura nacional imbuído de liberalismo e positivismo. Apesar de ter-mos respirado ares europeus, especialmente a partir da vinda da famíliareal para o Brasil, é fato que o enraizamento de uma cultura que fala alinguagem dos direitos iguais para todos se estruturou de modo muitomais recente em nossa identidade nacional. Ainda mais recente é a ge-neralização da fala sobre os direitos humanos. Estes vão ser efetiva-mente recepcionados no Brasil a partir do período da repressão, comoum desdobramento das manifestações populares, políticas e estudantis,que se organizam para formar movimentos de protesto que vão encon-trar acolhimento reivindicatório e justificação no interior do discursodos direitos humanos. Desde então, a politização do tema permitiu aformação de uma cultura de pressões, que, em seu conjunto, permiti-ram que, quando da Constituinte de 1985, o debate sobre direitos hu-manos ocupasse o centro da agenda política, tornando constitucional alógica segundo a qual a dignidade da pessoa humana (art. 1o, inc. III)deve presidir a dinâmica dos valores internos do texto constitucional.Se a Constituição de 1988 tem algo de inovador é o fato de colocar otema dos direitos humanos como um tema anterior ao da estruturaçãodo Estado, além de salvaguardar diversos aspectos dos direitos huma-nos, como os direitos e deveres individuais (art. 5o), os direitos políti-cos (arts. 14 a 16), os diversos direitos sociais (art. 6o a 11, e 193 a 232)e os direitos ligados ao meio ambiente (art. 225).

Sabe-se bem que o Estado democrático de direito, na seriedade econsolidação das instituições, demanda condições de justiça distribu-tiva para se afirmar concretamente, no que participam efetivamentediversas categorias de direitos humanos. Assim, a própria consolida-ção do Estado depende da consolidação dos direitos humanos, e vi-ce-versa. Essa preocupação passa, sobretudo, por aquela outra de rea-lização da dignidade da pessoa humana a partir de um convívio e deuma socialização eqüitativa em oportunidades e em gestos de integra-ção social. Quem pensa na linguagem dos direitos humanos pensa emuma atitude reflexiva que valoriza a perspectiva de uma interação so-cial que valorize a vida, em suas diversas manifestações – artísticas,culturais, ambientais, econômicas, produtivas –, de modo a apostarna integração social a partir de incentivos à democracia, à tolerância,à compreensão das diferenças, ao diálogo profícuo, à valorização da

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diversidade, à integração multicultural dos povos. Os avanços que osetor indicar serão certamente aqueles mesmos favoráveis ao desen-volvimento de um espírito republicano e democrático, sem o que setorna impossível a formação humana plena e a preocupação com aigualdade de oportunidades. A consolidação, pois, da democracia,das instituições que afirmam a lógica do respeito aos direitos huma-nos, é desafio que evidencia a necessidade de integração da sociedadecivil mobilizada com os esforços do Estado, da universidade com asociedade, do empreendedorismo humano com o espírito solidário.Trata-se de desafios que somente podem ser enfrentados quando pas-sarmos a pensar a partir da unidade complementar dos diversos direi-tos humanos, esse que parece ser o espaço de uma luta comum, pelosbenefícios múltiplos que pode gerar, em favor do espírito de cidada-nia, participação e integração, sem os quais a própria sociedade se tor-na o lugar do sem-sentido.

São Paulo, 18 de março de 2008.

Eduardo Carlos Bianca Bittar

Presidente da Associação Nacional de Direitos Humanos.Professor Associado da Faculdade de Direito da USP.

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Sumário

IConceitos, preconceitos e direitos humanos

I.1. Apontamentos para uma teoria crítica acerca dos direitoshumanos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3

Celso Naoto Kashiura Júnior

I.2. Igualdade e diferença nos direitos humanos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18

Erica Roberts C. Serra

I.3. O direito ao desenvolvimento humano: uma sugestão sobrea definição desse conceito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

Ivanilda Figueiredo

I.4. A dignidade da pessoa humana e o direito ao mínimo vital. . . . . . . 34

Lilian Márcia Balmant Emerique

Sidney Guerra

I.5. 25 anos da Aids: desafios para o “tempo de direitos” . . . . . . . . . . . 49

Naira Brasil

IIEconomia, globalização, democracia e direitos humanos

II.1. Indivisibilidade entre os direitos civis e políticos e os direitoseconômicos, sociais e culturais: problemas de reconhecimento edificuldades na implementação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61

Denise Carvalho da Silva

II.2. Cosmopolitismo e direitos humanos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77

Eduardo C. B. Bittar

II.3. Financiamento para as políticas dos direitos humanos . . . . . . . . . . 94

Fernando Scaff

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II.4. O conceito hegemônico do progresso e os direitos humanos . . . . 106

Gilberto Dupas

II.5. Multiculturalismo, globalização e direitos humanos . . . . . . . . . . 127

Juana Kweitel

IIIEducação, abandono e direitos humanos

III.1. A formação para os direitos humanos: uma novaperspectiva para o ensino jurídico?. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143

Fernanda Rangel Schuler

III.2. Educação em direitos humanos: esboço de reflexão conceitual . 152

Paulo César Carbonari

III.3. Uma experiência de educação através do lazer: estudo decaso em São Benedito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 164

Raimunda Luzia de Brito

IVHistória, esquecimento e direitos humanos

IV.1. A internacionalização dos direitos humanos:evolução histórica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179

Ana Paula Martins Amaral

IV.2. As dificuldades para a implementação dos direitos humanos . . . 186

Dalmo de Abreu Dallari

IV.3. Constituição, direitos humanos e Justiça. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200

Gilberto Bercovici

IV.4. Movimento dos direitos humanos em São Paulo:desafios e perspectivas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 206

Gorete Marques

IV.5. A constituição dos direitos humanos e da justiça . . . . . . . . . . . . 213

Luciano M. Maia

IV.6. Direito, democracia e direitos humanos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 220

Renato Janine Ribeiro

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VInclusão, exclusão e direitos humanos

V.1. A via de mão-dupla da cidadania: a imposição de direitossociais para a concessão de direitos econômicos . . . . . . . . . . . . . . . . . 243

Ivanilda Figueiredo

V.2. Advocacia popular e os direitos dos carentes:a experiência do Empas-OAB. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 259

Paulo Henriques da Fonseca

V.3. Direitos humanos dos pobres: entre a violação e a exclusão . . . . 278

Paulo Henriques da Fonseca

V.4. A inclusão pelo simbólico: linguagem, dominaçãoe transformação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 297

Vitor Souza Lima Blotta

VIJustiça, injustiça e direitos humanos

VI.1. A justiciabilidade dos direitos humanos no Tribunalde Justiça do Estado do Rio de Janeiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 317

José Ricardo Cunha

Alexandre Garrido da Silva

Lívia Fernandes França

Joanna Vieira Noronha

VI.2. Entre a realidade e a realização: consciência de direitose acesso à justiça em comunidades urbanas carentes . . . . . . . . . . . . . . 334

Núcleo de Direitos Humanos do Departamento

de Direito, PUC-Rio

VI.3. O projeto moderno e a crise da razão: que justiça? . . . . . . . . . . . 344

Wilson Levy

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VIIMeio ambiente, ambiente-meio e direitos humanos

VII.1. Um estudo da Declaração do Milênio das Nações Unidas:desenvolvimento social e sustentabilidade ambiental como requisitospara a implementação dos direitos humanos em nível global . . . . . . . 367

Ana Paula Martins Amaral

VIIIOrdem, violência e direitos humanos

VIII.1. Leituras possíveis de O processo, de Franz Kafka, à luzda violência do Estado nos anos da ditadura civil-militar brasileira . . 389

Eduardo Manoel de Brito

VIII.2. A efetivação dos direitos humanos e a Fundação Estadualdo “Bem-Estar” do Menor – Febem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 409

Elisa Pires da Cruz

Lidiane Mazzoni

VIII.3. Os direitos humanos e seu subsolo disciplinar –uma leitura antifoucaldiana de Michel Foucault. . . . . . . . . . . . . . . . . . 418

Luciano Oliveira

VIII.4. Manicômio judiciário: espaço de violações de direitoshumanos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 433

Ludmila Cerqueira Correia

VIII.5. Cidadania e justiça social: palavras de ordem!!! . . . . . . . . . . . 448

Luiz Fernando C. P. do Amaral

VIII.6. O conceito de polícia e a noção de segurançano contexto atual dos direitos humanos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 456

Marcos Braga Júnior

VIII.7. Polícia Militar e direitos humanos:“o sono da razão produz monstros” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 473

Ronilson de Souza Luiz

Homero de Giorge Cerqueira

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I

CONCEITOS, PRECONCEITOS

E DIREITOS HUMANOS

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I.1. Apontamentos para uma teoria críticaacerca dos direitos humanos

Celso Naoto Kashiura Júnior*

A teoria crítica, cuja valia para a sociologia e para outras áreas doconhecimento já é conhecida, pode contribuir grandemente tambémpara o estudo dos direitos humanos. Não obstante, seu desenvolvi-mento nesse campo é pouco significativo, e disso se ressentem não sóos adeptos do pensamento dialético, mas também os teóricos dos di-reitos humanos em geral.

No caminho para a superação dessa carência, a questão do méto-do está, por certo, entre os primeiros e mais árduos obstáculos. A dia-lética, que não é exatamente simples ou dócil, oferece dificuldadesinolvidáveis àqueles que se dedicam a sondá-la. A mais notória desuas peculiaridades – a sua não-autonomia diante do objeto, que re-sulta na impossibilidade de expô-la como um para-si1 – torna impos-sível elaborar qualquer espécie de “guia metodológico” que, à modada tradição cartesiana, postule aplicabilidade universal. É impossível,portanto, partir de um método pronto no estudo dialético dos direitoshumanos. É possível, porém, contrapor os aspectos fundamentais dateoria tradicional e da teoria crítica, enumerar pressupostos a seremabandonados, delinear certos contornos da dialética, enfim, levantar

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* Mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo.1 “O não ser a dialética um método independente do seu objeto impede sua apresentação comoum para-si, tal como a permite o sistema dedutivo. Não obedece ao critério da definição; criti-ca-o.” Adorno, T. Introdução à controvérsia sobre o positivismo na sociologia alemã. p. 215.

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apontamentos – tão-somente indicativos e necessariamente incom-pletos – de forma a dar uma modesta contribuição. Isso é o que propo-nho realizar aqui.

Tal levantamento terá como base a concepção de teoria crítica daassim chamada “primeira geração” da Escola de Frankfurt:2 os pensa-mentos de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, mais especifica-mente aqueles expostos nos textos Teoria tradicional e teoria crítica

(1937) e Filosofia e teoria crítica (1937), de Horkheimer; Sobre a ló-

gica das ciências sociais (1972) e Introdução à controvérsia sobre o

positivismo na sociologia alemã (1974), de Adorno (ambos publica-dos postumamente); além de Dialética do esclarecimento (1944),obra conjunta de ambos.

O fundamento escolhido não é aleatório, mas decorre diretamen-te do vigor crítico inerente ao método de que tratam ou através do qualse constroem os referidos textos. Contra um certo descrédito que atual-mente tem recaído sobre a primeira geração dos frankfurtianos, querpor parte daqueles que censuram um exagerado “pessimismo”, querpor parte daqueles que apontam a não-realização do diagnóstico porela adotado de supressão da “anarquia do mercado” por um capitalis-mo de Estado, é preciso lembrar, por um lado, que a questão do capi-talismo de Estado foi plenamente justificável diante do contexto his-tórico em que foi pensada e, por outro, que nem esse diagnóstico nemo alegado pessimismo implicaram qualquer abrandamento na críticaà injustiça imanente à ordem social capitalista. E é precisamente essacrítica que precisa estar no centro e na raiz de um pensamento críticosobre os direitos humanos.

Dito isso, passo à exposição, que será construída a partir de pon-tos eleitos como centrais para o pensamento dialético. O primeiroserá a contraposição entre as modalidades tradicional e crítica de teo-ria. O segundo, a relação entre sujeito e objeto. O terceiro, a idéia deprimazia do objeto. O quarto, a questão da perspectiva da totalidade.Ao final serão apresentadas conclusões.

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2 A especificação se faz necessária, visto que, entre os teóricos posteriores da mesma escola, es-pecialmente a partir de Jürgen Habermas, a concepção de teoria crítica se altera.

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1. Teoria e crítica – o sentido de uma teoria crítica

Teoria, no sentido tradicional, é um conjunto de proposições hi-potéticas organizadas de maneira sistemática, isto é, ligadas umas àsoutras em cadeias dedutivas, sem qualquer contradição. Seu principalinstrumento é a lógica, sua atividade é o registro neutro da realidade eseu ideal é a possibilidade de tudo deduzir de um pequeno número deaxiomas, como na matemática. Aqui o teorizar se apresenta comoalheio ao processo social, o pensamento se coloca como exterior aoobjeto, o objeto se submete ao princípio da identidade pura: o funda-mento último, mesmo depois de mais de 300 anos de debates e refor-mas, continua a ser o Discurso do método cartesiano.

Presa a seus dogmas, a teoria tradicional é incapaz de captar a his-tória – não só a dos objetos que defronta, mas também a sua própria. Ateoria como registro neutro, o objeto que sucumbe à lógica, o sujeitoque observa à distância: na raiz disso está o processo de dominação danatureza por uma racionalidade instrumental, processo que conduztambém à dominação do homem pelo homem. Sem saber, por se tra-tar de questão “extracientífica”, a teoria tradicional apresenta a natu-reza ao homem tal como este a possa dominar (utilidade) e, ao capitu-lar diante do “dado”, contribui para ratificar o estado de coisas vigen-te (objetividade).

A teoria crítica, pelo contrário, nunca deixa de ter presente a con-cepção da sociedade como totalidade e não ignora o seu próprio lugarnela. Ela encara a si própria como parte do processo de produção davida social, como elemento na divisão social do trabalho, mas não seresigna à tarefa que dela se espera, que é a de registrar e catalogar demaneira a contribuir com a reprodução da ordem social na qual se in-sere. “O cientista e sua ciência” – assevera Horkheimer – “estão atre-lados ao aparelho social, suas realizações constituem um momento daautopreservação e da reprodução contínua do existente (...)”;3 de ou-tro lado, porém, existe um “comportamento humano crítico”, que,embora “provenha de estrutura social, não é nem a sua intenção cons-ciente nem a sua importância objetiva que faz com que alguma coisafuncione melhor nessa estrutura”.4

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3 Horkheimer, M. Teoria tradicional e teoria crítica. p. 123.4 Idem. Ibidem. p. 130.

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Esse comportamento crítico é a atitude dos sujeitos da teoria críti-ca. Eles reconhecem que a sociedade em que vivem é o seu mundo,mas, ao penetrarem essa sociedade e tomarem ciência de que sua or-ganização é ditada por forças outras que não a vontade dos homens,percebem que esse mundo não lhes pertence. Em outras palavras, “oreconhecimento crítico das categorias dominantes na vida social con-tém ao mesmo tempo a sua condenação”.5

A crítica de que se vale a teoria crítica não é, portanto, aquela decunho kantiano, cujo modelo é a Crítica da razão pura. Não se tratade depuração ou de aperfeiçoamento do conceito, da teoria, enfim, daidéia, para que se torne mais coerente ou mais adequada. Trata-se,pelo contrário, de crítica ao próprio objeto, à própria realidade. O mo-delo, como Adorno e Horkheimer declaram mais de uma vez,6 é a crí-tica da economia política de Marx.

Sendo crítica à própria coisa, não pode a teoria crítica ter comoreferencial a adequação entre hipótese e fato, tampouco pode se pau-tar pela utilidade de seus resultados. Ela não leva adiante o equívocode tomar a teoria como alheia à sociedade, e assim se põe em radicaloposição à objetividade cega da teoria tradicional: seu referencial nãoé a equivalência entre pensamento e realidade dada, mas está fundadona possibilidade do novo. A teoria crítica visa à superação da socieda-de presente, e isso, é evidente, rende-lhe a acusação de subjetiva e ar-bitrária.

“Se o pensamento não limita a registrar e classificar as categoriasda forma mais neutra possível, isto é, não se restringe às categorias in-dispensáveis à práxis da vida nas formas dadas, surge imediatamenteuma resistência.”7 Toda teoria que não se recolhe ao seu devido lugaré suspeita. No caso da teoria crítica, há ainda um vínculo com a filoso-fia8 que a faz soar ainda mais arbitrária. É da filosofia (portanto de um

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5 Idem. Ibidem. p. 131.6 Ver, por exemplo, Horkheimer, M. Teoria tradicional e teoria crítica. p. 130; e Adorno, T.Introdução à controvérsia sobre o positivismo na sociologia alemã. p. 226.7 Idem. Ibidem. p. 147.8 Evidentemente não se trata de uma filosofia qualquer. A filosofia de que se vale a teoria críticaé aquela que pretende transformação, e não aquela que se limita a “interpretar” o mundo. É o quediz Horkheimer: “A filosofia que pretende se acomodar em si mesma, repousando numa verda-de qualquer, nada tem a ver, por conseguinte, com a teoria crítica.” Horkheimer, M. Filosofia e

teoria crítica. p. 161.

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saber “não científico”) que ela pretende retirar as linhas gerais queapontam o sentido da transformação social. No entanto, seu procedi-mento não é arbitrário nem subjetivo. A diferença fundamental estána ausência de cânones e limitações que conduzem o pensamento àimpotência, de modo que se torna possível ver aquilo para que osolhos da teoria tradicional estão cegos. A orientação na transforma-ção da sociedade presente não é “inventada”, não é fruto da vontadeou da ideologia do sujeito: ela é retirada da análise materialista e dia-lética do movimento histórico,9 de acordo com o procedimento pró-prio da crítica imanente.

No mais, Horkheimer remarca que a transformação social pelaqual se orienta a teoria crítica não é do tipo gradual, como a “aduba-gem de uma planta” ou uma “terapia na medicina”.10 A transformaçãoé profunda, radical: implica ruptura com a ordem social presente, emnome de uma nova, de uma “sociedade verdadeira”.11

No que tange ao estudo dos direitos humanos, é essa transforma-ção que deve estar sempre em vista. Se pretende ser crítica, a teoriados direitos humanos não pode sucumbir ao registro e à observaçãoindiferente. A metodologia exclusivamente jurídica, a análise limita-da à estatística e a atitude de neutralidade não são com ela compatí-veis. A filosofia crítica deve ser sua maior aliada contra a impotênciadiante do “dado” e o imobilismo resultante da “evidência”.12

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9 “Os pontos de vista que a teoria crítica retira da análise histórica como metas da atividadehumana, principalmente a idéia de uma organização social racional correspondente ao interessede todos, são imanentes ao trabalho humano, sem que os indivíduos ou o espírito público ostenham presentes de forma correta.” Horkheimer, M. Teoria tradicional e teoria crítica. p. 134.10 Ver Horkheimer, M. Teoria tradicional e teoria crítica. p. 138-139.11 “A idéia de verdade científica não pode ser dissociada da de uma sociedade verdadeira.Apenas esta seria livre tanto da contradição como da não-contradição.” Adorno, T. Introdução

à controvérsia sobre o positivismo na sociologia alemã. p. 228.12 É precisamente nesse sentido que Eduardo C. B. Bittar afirma: “Na perspectiva de umaabordagem crítica, a filosofia permite e consente o abalo do que simplesmente aparece aosolhos como sendo a dimensão do dado, a experiência da evidência. A filosofia pressupõe umaatitude radical, perante a vida e perante o mundo. Onde há ordem, ela pode ver desordem; ondehá desordem, ela pode ver ordem. É dessa subversão que acaba por colher o espírito de suatarefa desafiadora, porque comprometida com a possibilidade do novo, do não visto e nãoexperimentado, do inovador, daquilo que desafia a ordem da regularidade dos fenômenos e daaceitação da tutela da vida desde fora.” Bittar, E. C. B. Filosofia crítica e filosofia do direito: poruma filosofia social do direito. p. 53.

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Uma teoria crítica autêntica deve reconhecer seu lugar na ordemsocial vigente, mas não deve se resignar diante dela. Esse reconheci-mento deve ser acompanhado de condenação, de modo que o pensa-mento acerca dos direitos humanos possa colocar-se como índice dereprovação de uma sociedade injusta e denúncia dessa injustiça. A“instrumentação” dos direitos humanos de algum modo que sirva àreprodução da sociedade presente deve ser recusada: fazer com quealgo, através dos direitos humanos, venha a “funcionar melhor” nocontexto das relações sociais dadas é algo com que não coaduna a teo-ria crítica. Sua referência é a superação dessas relações, sendo incum-bência sua concluir se os direitos humanos devem encontrar sua reali-zação radical ou sua própria superação nesse processo.

2. Sujeito e objeto

A separação entre sujeito e objeto, a partir da qual toda teoria édada como resultado da observação do objeto “de fora”, é tomada pelateoria tradicional, sem maiores reflexões, como algo natural, auto-evi-dente. Algo passa despercebido que, se percebido fosse, soaria parado-xal. Por um lado, tal separação é reveladora do processo pelo qual o su-jeito se afasta da natureza para dominá-la13 e, de outro, ela engendrauma teoria que se pretende um mero “reflexo” do real, uma espécie dedeclaração de impotência do sujeito que nada pode alterar na realidade.Dominar e ratificar parecem estar em oposição, mas estão ambos nabase desse pressuposto nada natural da teoria tradicional: dominar a na-tureza e os homens e ratificar as relações sociais dadas.

A teoria crítica, que não se presta a tais fins, parte da relação dia-lética entre sujeito e objeto, segundo a qual jamais ocorre um verda-deiro corte entre um termo e outro. Tal ponto de vista se revela precio-so quando o objeto de estudo é, como aqui, a sociedade: ela não pode

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13 “No distanciamento do sujeito em relação ao objeto, que realiza a história do espírito, o sujei-to se esquivava da superioridade real da objetividade. Sua dominação era a de um mais fraco so-bre um mais forte. De outro modo, talvez a auto-afirmação da espécie humana não teria sidopossível como, certamente, também o processo de objetivação científica. Mas, quanto mais osujeito se apropriava das determinações do objeto, tanto mais ele se convertia, inconsciente-mente, em objeto.” Adorno, T. Introdução à controvérsia sobre o positivismo na sociologia

alemã. p. 224.

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ser encarada como mero objeto exterior, como coisa na qual o sujeitonão toma parte. A sociedade é ao mesmo tempo sujeito e objeto – su-jeito porque ela é resultado da ação humana, ela é a ação humana; ob-jeto porque, embora seja feita pelos homens, estes não a fazem comobem entendem, mas de acordo com suas limitações, isto é, há tambémuma dimensão que se impõe objetivamente ao homem.

O sujeito não pode se colocar fora da sociedade para estudá-la.Sujeito e objeto não estão “soltos e solteiros” em um universo de en-tes isolados: estão ambos ligados à mesma totalidade, da qual são par-tes constitutivas. Quando volta sua atenção para qualquer objeto so-cial, o sujeito se põe a conhecer algo que apenas precariamente podeser separado dele mesmo. Teoria e realidade se integram não apenasporque a atividade teórica é uma forma de produção social, ligada atodas as demais, mas também porque a teoria, isto é, o modo de co-nhecer o objeto, faz parte da realidade do objeto e a altera.14

Assim sendo, não é dado ao teórico crítico analisar os direitos hu-manos como mera exterioridade. Esses direitos são produto da açãohumana, e o sujeito que os aborda está neles incluído, quer como por-tador de direitos humanos, quer como membro da sociedade na qualeles surgem, geram demandas, engendram ideologias, são frustradosetc. A ação transformadora deve estar presente também aqui: a teoriapode alterar a realidade do objeto ao postular aprofundamento dos di-reitos humanos diante de necessidades sociais reprimidas, ou denun-ciar a cumplicidade desses direitos com o capitalismo, ou denunciar amiséria do capitalismo que torna inviável sua realização etc.

“Mitos”, como o do caráter genérico e neutro do sujeito cognos-cente, devem cair por terra. “A suposição da invariabilidade social darelação sujeito, teoria e objeto” – afirma Horkheimer – “distingue aconcepção cartesiana de qualquer tipo de lógica dialética”.15 A relaçãosubjeito-objeto não é sempre a de uma coisa que se deixa “fotografar”

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14 Na teoria tradicional, a separação radical entre sujeito e objeto determina o caráter externo dateoria quanto à realidade. Confiram-se as palavras de Horkheimer: “A própria teoria do cientistaespecializado não toca de forma alguma o assunto com que tem a ver, o sujeito e objeto são rigo-rosamente separados, mesmo que se mostre que o acontecimento objetivo venha a ser influenci-ado posteriormente pela ação humana direta, o que é considerado também na ciência como umfato. O acontecimento objetivo é transcendente à teoria (...).” Horkheimer, M. Teoria tradicio-

nal e teoria crítica. p. 145.15 Horkheimer, M. Teoria tradicional e teoria crítica. p. 133.

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docilmente por alguém; a atividade transformadora do homem sobre acoisa é dada historicamente e é determinante para a abordagem teórica.Neutralidade, para o teórico, é sinônimo de capitulação diante da reali-dade teorizada. Quando estuda a sociedade, o sujeito não pode “des-pir-se” de sua condição de ser social; ele a estuda como um ser humanoconcreto, que traz consigo toda a carga de sua socialidade, seus interes-ses de classe, sua vontade de transformação.

A teoria crítica não se limita a descrever a realidade porque nãoprocura mascarar sua relação autêntica com o real. Ela não pode enca-rar os direitos humanos com pretensa neutralidade; ao invés disso,deve fazê-lo a partir do ponto de vista do processo social transforma-dor: deve, pois, levar em conta a dimensão de lutas e reivindicaçõesna qual estão concretamente imersos os sujeitos envolvidos com taisdireitos.

3. Primazia do objeto

A concepção que a teoria tradicional adota é aquela segundo aqual a realidade não passa de pura objetividade sem sentido, à qual osujeito, através da razão, atribui unidade, sistematicidade, coerência,enfim, aptidão para o uso de acordo com os fins humanos. Ela consa-gra uma hipóstase do logos – é a razão subjetiva, tornada independen-te da realidade e alheia ao processo social, que doa, desde fora, senti-do para tudo. Mesmo quando o objeto é um produto da ação humanae, portanto, já contém em si um sentido, a teoria tradicional o encaracomo “fato bruto”. De acordo com essa linha, o sujeito que se põe aestudar os direitos humanos deve tratá-los como coisa: “de fora”, eleos classifica (em “gerações”, por exemplo), atribui-lhes unidade (umcritério identificador comum), sistematicidade (enquadramento nahierarquia da ordem jurídica formal) etc.

O sujeito, que tem do seu lado a razão, é, na relação com a realida-de, todo-poderoso. “Enquanto soberanos da natureza, o Deus criadore o espírito ordenador se igualam.”16 Não há, nessas palavras deAdorno e Horkheimer, exagero algum. Muito embora o ideário da te-oria tradicional pregue a máxima objetividade, isto é, a não-interfe-

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16 Horkheimer, M.; Adorno, T. Dialética do esclarecimento. p. 24.

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rência das determinações do sujeito na atividade teórica, é precisa-mente uma determinação do sujeito que prevalece: o objeto sucumbediante do arauto da razão subjetiva, o método. O alegado subjetivis-mo com que os adeptos da teoria tradicional argumentam contra osadeptos da dialética se revela, assim, um argumento tu quoque (que sevolta contra si mesmo).17

O conceito de primazia do método, que Adorno levanta contra ospositivistas, expressa bem essa inversão. A teoria tradicional preten-de capturar o objeto “em si mesmo”, mas só é capaz de fazê-lo atravésda mais rigorosa aplicação do método (experiência controlada, lógicaformal, sistematicidade etc.). O sujeito predetermina o método e oimpõe ao objeto, de modo que, em um certo sentido, o sujeito conhecefazendo violência ao objeto. Não se obtêm do objeto a sua própria es-trutura, o seu próprio peso, os seus próprios critérios de validade, mastão-somente aquilo que o método é capaz de arrancar-lhe. O real cap-tado acaba sendo, pois, não o real “em si”, mas um real “inventado”.

Na dialética, a primazia é do objeto. O teórico crítico não se im-põe, mas se curva diante do objeto, dando voz àquilo que é real e, nãoobstante, por transgredir o ideal metodológico do sujeito neutro, es-capa à teoria tradicional.18 Ele se põe na condição de sujeito cognos-cente sem estar previamente munido de equipamentos e técnicas quepor si sós garantiriam o teor “científico” de sua análise; ele deixa o ob-jeto ditar o caminho a ser percorrido pela teoria. O método de aborda-gem de um objeto é determinado pelo próprio objeto:19 à teoria cum-pre reproduzir a estrutura do objeto, com as deficiências e contradi-ções a ela inerentes.

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17 “O positivismo, para o qual contradições são anátemas, possui a sua mais profunda e incons-ciente de si mesma [contradição], ao perseguir, intencionalmente, a mais extrema objetividade,purificada de todas as projeções subjetivas, contudo apenas enredando-se sempre mais na parti-cularidade de uma razão instrumental simplesmente subjetiva.” Adorno, T. Introdução à con-

trovérsia sobre o positivismo na sociologia alemã. p. 212.18 “O que o cientificismo simplesmente apresenta como progresso sempre constitui-se tambémem sacrifício. Através das malhas escapa o que no objeto não é conforme o ideal de um sujeitoque é para si ‘puro’, exteriorizado em relação à experiência viva própria; nesta medida, aconsciência em progresso era acompanhada pela sombra do falso.” Adorno, T. Introdução à

controvérsia sobre o positivismo na sociologia alemã. p. 224. Na mesma obra, à p. 242, em notade rodapé, Adorno cita um interessante exemplo: a arte como depósito do conhecimentorejeitado pela teoria pautada pela primazia do método.19 Eis a explicação da não-autonomia do método dialético diante do objeto.

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Se o objeto é complexo, obscuro e contém contradições internas,não pode a teoria aspirar à simplicidade, clareza e coerência. É preci-so ter em conta que “se teoremas sociais precisam ser simples oucomplexos, constitui objetivamente decisão dos próprios objetos”20 –simplificar o complexo ou clarificar o obscuro são, em última instân-cia, expedientes falseadores da realidade. No mesmo sentido, a coe-rência artificialmente construída na teoria é a máxima expressão desua inverdade: é somente por meio de um ato arbitrário do sujeito queas contradições de que é repleta a realidade – contradições que, na so-ciedade capitalista, só fazem se agravar – podem desaparecer na teo-ria. Em outras palavras, a contradição não é sempre erro que exige sercorrigido; pelo contrário, ela pode ser imposição da realidade, umavez que esta não aceita a lógica como seu princípio estruturador.21

O sujeito engajado com a teoria crítica deve, portanto, recusar aidéia de fazer “ciência” no sentido usual. A acusação de falta de cien-tificidade em seu trabalho não deve constrangê-lo: ela apenas revelaas limitações de seus acusadores. Ao se deparar com contradições,não deve buscar eliminá-las a todo custo, como se fosse escravo deum pensamento que ou é linear ou não é nada: “a circunstância de quea concepção do caráter contraditório da realidade social não sabota oconhecimento desta e não o entrega ao acaso reside na possibilidadede entender a contradição como necessária e, com isso, ampliar a racio-nalidade até ela”.22

Contradições como a do caráter social da produção com o caráterprivado da apropriação, bem demonstrada por Marx, ou da tendênciaemancipadora com a tendência mistificadora do esclarecimento,mote central da Dialética do esclarecimento, não estão somente na teo-ria, mas no próprio objeto. Assim também o fato de serem os direitoshumanos originalmente postulados pela sociedade capitalista, comocondição para o funcionamento de uma esfera de troca generalizadade mercadorias, e, ao mesmo tempo, essa mesma sociedade, pela for-

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20 Adorno, T. Introdução à controvérsia sobre o positivismo na sociologia alemã. p. 239.21 “As contradições das partes isoladas da teoria não são portanto resultantes de erros oudefinições mal cuidadas, mas resultam do fato da teoria visar a um objeto que se transformaconstantemente e que apesar do esfacelamento não deixa de ser um objeto único.” Horkheimer,M. Teoria tradicional e teoria crítica. p. 152.22 Adorno, T. Sobre a lógica das ciências sociais. p. 49.

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ma inerentemente exploratória e desigualadora de suas relações es-truturais, negar realização a tais direitos: eis uma contradição que re-side na realidade objetiva e que a teoria não pode suprimir. Caso con-trário, a teoria dos direitos humanos vai, “por amor à clareza e à exati-dão, passar ao largo daquilo que quer conhecer”.23

4. Perspectiva da totalidade

A relação dialética entre parte e todo, tão cara à tradição marxistae tão presente nas obras de Adorno e Horkheimer, é fundamental paraa teoria crítica. Se, em um extremo, Marx censurou os economistasclássicos por iniciarem seus tratados por uma totalidade abstrata, semcuidar do movimento interno de suas partes constitutivas,24 no outro,Adorno censura os positivistas por se limitarem ao fato isolado, que éparte, sem avançar para a totalidade. Em ambos os casos, a teoria tra-dicional se ampara no postulado cartesiano da igualdade entre o todoe a soma das partes. Perde, com isso, a capacidade de captar o movi-mento, a transformação, a história – a dialética, que rejeita a identida-de pura, permanece a par da dinâmica do real.

Todo e parte não podem ser tomados como autônomos. O todo seforma como resultado do movimento das partes, como produto dacomplexa rede de inter-relações entre as partes; é, portanto, mais doque mera soma. A parte, por sua vez, não pode ser reduzida à coisa iso-lada e existente por si, de vez que não se resume à identidade consigomesma e só pode ser compreendida através do contraponto com o todo.A verdade do todo só pode ser conhecida através da dinâmica das par-tes, sem o que o todo não passa de abstração vazia.25 A verdade da parte– isto é, o fato, o objeto isolado – só pode ser conhecida se, em sua sin-gularidade, a teoria é capaz de captar a perspectiva da totalidade.26

13

23 Idem. Ibidem. p. 47.24 Ver Marx, K. Introdução à crítica da economia política. p. 116-123.25 A dialética visa a conhecer o todo, mas este não pode ser apreendido diretamente. É precisocomeçar pelas partes e remontar a rica rede de relações entre elas até chegar à totalidade. Nessecaso, a totalidade já não aparece como totalidade abstrata, mas como totalidade concreta, isto é,unidade do diverso. É por isso que Marx inicia a crítica à economia política pela mercadoria, enão pela população ou pela sociedade.26 Os positivistas alegam a não-testabilidade do conceito de totalidade. Com efeito, o caráter hi-potético da teoria tradicional exige que todo postulado possa ser provado empiricamente, o que

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Nesse sentido, Adorno afirma:

“A totalidade social não leva uma vida própria além daquilo que ela en-globa e que a compõe. Ela se produz e se reproduz através de seus momentosindividuais. (...) Mas quanto menos se pode separar esse todo da vida, da co-operação e do antagonismo de seus elementos, tanto menos pode um ele-mento qualquer ser compreendido apenas no seu funcionamento, sem a vi-são do todo, cuja essência está justamente no movimento do singular. O sis-tema e a singularidade são recíprocos e somente reconhecíveis em sua reci-procidade.”27

Isso remete a uma outra questão acerca da teoria crítica: sua irre-dutibilidade ao esquema dado de divisão das áreas do conhecimento.Ela transita por sociologia, psicologia, economia, filosofia etc., masnão apenas não se reduz a qualquer dessas, como as engloba em umconjunto teórico mais avançado em termos de profundidade e com-plexidade. Trata-se de teoria crítica da sociedade, ou seja, teoria paraa qual os estudos centrados em elementos isolados não bastam por sisós, mas importam somente como momentos do estudo da sociedadecomo totalidade.

O estudo que tem os direitos humanos por objeto não pode, porconseguinte, ser fragmentado, estruturando-se como teoria especiali-zada à parte, visto que seu lugar no quadro geral do conhecimento é ode momento da crítica mais geral à sociedade como um todo. Essesdireitos não podem ser encarados como algo dissociado do todo social.O seu sentido não reside neles mesmos, e por isso a teoria crítica nãopode aceitar “recortá-los” para fora do contexto social no qual estãointegrados.

Como elemento da sociedade vigente que são, os direitos huma-nos, na mesma medida em que atuam como parte constitutiva do todo,

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desqualificaria a teoria crítica. Mas a totalidade não é fato e não se deixa testar como fato: ela éprecisamente aquilo que supera a mera faticidade. Nas palavras de Adorno: “Nenhum experi-mento poderia demonstrar sumariamente a dependência de qualquer fenômeno social à totali-dade, visto que o todo, que pré-forma os fenômenos captáveis, é refratário em si mesmo a planosexperimentais particulares. Apesar disso, aquela dependência social observável em relação àestrutura global pode ser tudo, menos mera construção mental e, além disso, é mais válida narealidade que quaisquer achados isolados irrefutavelmente verificáveis.” Adorno, T. Sobre a

lógica das ciências sociais. p. 52-53.27 Adorno, T. Sobre a lógica das ciências sociais. p. 48.

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carregam em si mesmos o traço determinante da sociedade. A teoriacrítica não pode ignorar esse traço: as teses idealistas acerca do surgi-mento e do papel dos direitos humanos devem ser preteridas em nomede um pensamento que ressalte a determinação objetiva, porém nãoevidente, exercida pela estrutura da sociedade capitalista sobre taisdireitos. Por outro lado, as partes, em sua dinâmica, podem ser nãoapenas contraditórias umas em relação às outras, mas também em re-lação à totalidade; a relação entre os elementos constitutivos e o todosocial não é de harmonia perfeita. Os direitos humanos podem se oporàs tendências da sociedade capitalista e esta é uma possibilidade que ateoria crítica deve não somente reconhecer, mas buscar realizar. Den-tro de certos limites – cuja maior ou menor extensão cabe à teoria crí-tica investigar –, podem os direitos humanos até mesmo ensejar trans-formação – que deve ser o referencial da teoria crítica – na estruturada sociedade presente.

5. Conclusões

A recusa à ratificação da sociedade capitalista, a relação dialéticaentre sujeito e objeto, a primazia do objeto ao invés da primazia dométodo, a perspectiva da totalidade sempre presente: a análise do mé-todo defendido por Adorno e Horkheimer revela que o fundamento eo ideal da crítica levada adiante através da teoria crítica são, em essên-cia, os do marxismo. Embora tenha apresentado desvios temáticos econceituais quanto aos marxistas de então, percebe-se que a primeirageração da Escola de Frankfurt mantém viva e com excepcional de-senvolvimento a dialética de Marx.

Sobretudo no compromisso com a transformação social, queconstitui o cerne de seu teor crítico e que a torna instigadora da ativi-dade ao invés da passividade, a teoria crítica revela sua fidelidade aoideal de Marx: a finitude do presente e a possibilidade do novo têmcomo porta-voz a dialética. Se, com o mesmo ideal, voltar a atençãoaos direitos humanos, a teoria deverá prosseguir ciente dessa finitudee em busca dessa transformação – ainda que a finitude em questãoseja a dos próprios direitos humanos e o novo seja a superação dessesdireitos. Se a crítica se dirige ao próprio objeto, então obviamente nãopode poupar os próprios direitos humanos.

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Por tudo quanto foi exposto, procurei dar indicações para umpensamento crítico acerca dos direitos humanos, sem antecipar resul-tados e conclusões. Ficam, contudo, certas questões das quais o críti-co não pode se esquivar. Até que ponto os direitos humanos são deter-minados pela ordem social capitalista e contribuem para seu funcio-namento? Até que ponto e como podem servir à resistência à socieda-de presente e ao empenho na sua transformação? Qual o limite entreperpetuar o mesmo e propugnar verdadeiramente pelo novo quandose trata de direitos humanos?

Por fim, resta claro que o caminho para levar a teoria crítica aosdireitos humanos é longo. Ainda assim, persiste a expectativa de queessa singela contribuição possa ao menos servir de incentivo para queele seja trilhado.

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16

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Page 30: Livro  Direitos Humanos Século XXI

I.2. Igualdade e diferença nos direitos humanos

Erica Roberts C. Serra*

1. Introdução

No presente artigo, pretendemos discutir os conceitos de igualda-de e diferença nos direitos humanos da mulher, e para isso o nossoapoio teórico consiste em aspectos das obras de Piovesan, Foucault eBoaventura de Sousa Santos. Fundamentalmente, iremos abordar aaplicação da Declaração Universal de Direitos Humanos, em especialseu inc. II, quando declara que ninguém será privado dos direitos e li-berdades daquela Declaração por distinção de raça, credo, sexo, lín-gua, religião, opinião política etc., e a influência do sistema dominan-te, cultura patriarcal, no momento da aplicação da norma universal aomundo concreto.

2. A Declaração dos Direitos Humanos – o conceitode igualdade e as mulheres

A Declaração Universal dos Direitos Humanos buscou a norma-tização de princípios fundamentais, como o direito à vida, liberdade,educação etc., abrangendo todos os povos de culturas diversas, pac-tuando o respeito aos direitos fundamentais por meio de regras decondutas predeterminadas, enfim, regras de condutas “universais”.

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* Advogada, formada pela Faculdade de Direito da PUC/Campinas, onde foi estudante de Ini-ciação Científica do grupo Filosofia, Cultura e Sociedade, orientanda do professor SamuelMendonça, pesquisador do referido grupo.

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A Carta Universal, em seu art. II, declara que ninguém será priva-do dos direitos e liberdades daquela Declaração por distinção de raça,credo, sexo, língua, religião, opinião política etc. A partir desse artigopodemos nos ater à proibição de qualquer distinção de sexo.1

Inicialmente, a Carta repetiu a práxis da normatização de princí-pios fundamentais, principalmente no chamado direito de igualdadeformal.

A adoção desses conceitos propõe um tratamento comum somen-te na esfera abstrata, ou seja, quando falamos na “forma” utilizadapela maior parte das legislações – por exemplo, “todos são iguais pe-rante a Lei sem distinção de qualquer natureza etc.” (art. 5o, caput, daCF/1988) – ela permanece no campo abstrato da norma, sem garantiade real efetividade no campo material. Por isso, chama-se igualdadeformal, ou seja, no campo abstrato das normas somos todos sujeitosde direitos.

Quando a Declaração garantiu uma igualdade formal, ou seja,dentro do seu mundo abstrato, assumiu como paradigma principal umsujeito universal assexuado. No entanto, um sujeito universal assexu-ado somente pode ser considerado de maneira abstrata, e não no mun-do concreto, e, por conta disso, a Carta Universal, quando aplicada aomundo real, perdeu seu caráter neutro e passou a manifestar-se de for-ma sexuada, ou seja, a manifestar-se através do sistema dominante,que seria, portanto, o sistema patriarcal.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos propõe, inicial-mente, um tratamento assexuado, desprendido de qualquer “parcia-lidade”. No entanto, quando iniciada sua aplicação e discussão so-bre os fatos concretos, observou-se uma “parcialidade” na sua apli-cação. Por conta disso, houve a necessidade da aprovação da “Con-venção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminaçãocontra a Mulher”, de 1979, inaugurando uma abordagem diversa daaplicação normativa por meio do incentivo às ações afirmativascompensatórias.

Por que essa necessidade de reafirmação de direitos através daConvenção de 1979 se a Carta Universal já contemplava e protegia aigualdade de direitos entre homem, mulher e sociedades? Para res-

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1 Declaração Universal dos Direitos Humanos.

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ponder a esse questionamento, é necessário discorrer sobre o uso doconceito de igualdade e suas variações.

Observa-se nesse ponto que a Declaração Universal dos DireitosHumanos caiu em vício, quando da sua aplicação aos interesses pa-triarcais arraigados na história das sociedades ocidentais. Podería-mos eliminar o risco do vício da adoção de uma parcialidade nas de-clarações universalizantes?

Na prática, todos sabemos da dificuldade e do grande desafio deatribuir neutralidade quando da aplicação da norma. O campo abstra-to, formal, em que se encontra a premissa inicial: “todos iguais peran-te a lei”, permanece estagnado, pois não acompanha e nem se realizano mundo concreto, na realidade das diferenças. Como vivemos econvivemos na realidade das diferenças, torna-se complicada a ade-quação da igualdade formal às relações e conflitos cotidianos.

Daí podemos citar a grande influência que a cultura patriarcal, osistema dominante, exerce no momento da aplicação da norma jurídi-ca. Nesse momento, como vivemos no mundo das diferenças, a nor-ma jurídica fica vulnerável à influência cultural, sendo, enfim, maisdo que necessária a procura de uma saída adequada para que a normanão seja aplicada injustamente.

Por conta dessa dificuldade procurou-se formular outro conceitode igualdade, o conceito da igualdade material, que considera um cri-tério socioeconômico para caracterizar se esta ou aquela pessoa efeti-vamente é sujeito de direitos. O ser humano que não tem acesso à edu-cação, saúde e lazer não efetiva seu direito abstrato de igualdade. Oconceito de igualdade material reconhece as diferenças entre os po-vos e propõe um caminho concreto para alcançar a justiça social.

Nessa esteira, Flavia Piovesan divide o conceito de igualdadematerial em dois momentos:

“1. igualdade material que corresponde ao ideal de justiça social e dis-tributiva (igualdade orientada pelo critério socioeconômico);

2. igualdade material que corresponde ao ideal de justiça como reco-nhecimento de identidades (igualdade orientada pelos critérios de gênero,raça, etnia etc.)”.2

20

2 Piovesan, Flavia. Ações afirmativas da perspectiva dos direitos humanos. Cadernos de Pes-

quisa, v. 35, n. 124, p. 47, jan./abr. 2005.

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Peço atenção ao segundo conceito de igualdade material, pelo re-conhecimento das identidades.

Houve momentos na história mundial em que o reconhecimentodas diferenças expressava temor, como no regime nazista, que utili-zou o conceito de igualdade formal para aniquilar uma etnia.

Sendo insuficiente o tratamento do indivíduo de forma genérica,através da igualdade formal, fez-se necessária a especificação do su-jeito de direito, enfim, o sujeito visto através de suas peculiaridades eparticularidades (Boaventura de Souza Santos):

“temos o direito a ser iguais quando nossa diferença nos inferioriza; etemos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza.Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de umadiferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”.3

Seria uma redistribuição de direitos somada ao reconhecimento deidentidades, introduzindo um novo caráter bidimensional de justiça.4

Enfim, ao pretendermos uniformizar as diferenças, criar regrasde conduta universais, acabamos por desconhecer as particularidadesdo ser humano, restringindo-lhe no âmbito da proteção.

Todavia, surgiram críticas ao uso dessa igualdade formal, quandoentrou em discussão a necessidade do respeito às diferenças como ga-rantia e concretização de direitos fundamentais, levando à aprovaçãoda Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discrimina-ção contra a Mulher, de 1979.

A Convenção de 1979 ratifica a necessidade do uso desse outroconceito de igualdade, o conceito de igualdade material pelo reconhe-cimento das identidades, prevendo em seu texto o risco do uso deigualdade formal prejudicial às mulheres que não têm o mesmo trata-mento no mundo das diferenças e, portanto, o incentivo ao uso de me-didas compensatórias, buscando reduzir o abismo desigual entre ho-mens e mulheres.

21

3 Santos, Boaventura. Reconhecer para libertar. p. 56.4 Piovesan, Flavia. Ibidem.

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3. Foucault, disciplina e as diferenças

O filósofo francês Michel Foucault, em seus estudos sobre as vá-rias formas de manifestação do poder, introduz o conceito de “discur-so verdadeiro”.5

Considerando que somos sujeitos históricos, ou seja, faz parte danossa construção como sujeito social toda uma história cultural, po-deríamos dizer a história do nosso povo, temos para nós um discursoverdadeiro, que é um discurso passado culturalmente para a manuten-ção dos corpos dóceis; por exemplo, o discurso de uma sociedade pa-triarcal, o sistema dominante, que desconsidera o respeito às capaci-dades da mulher, repassado, inclusive, pelas mães aos filhos peque-nos. Esse é um exemplo de um dos denominados discursos verdadei-ros tão arraigados na sociedade e repetidos inconscientemente, pois jáfazem parte da essência daquele sujeito social.

Foucault repudia qualquer forma de “repetição” dos discursos tidocomo verdadeiros por considerá-los totalitários, uniformizadores.

O discurso verdadeiro nada mais é do que a repetição de uma daspor ele denominadas tecnologias disciplinares: homem como objeto ecomo sujeito – que tornam o corpo ao mesmo tempo dócil e produtivo– e das tecnologias do eu – que obrigam o indivíduo a falar a verdadesobre si mesmo. Tais tecnologias disciplinares são manifestações decontrole das condutas da sociedade, um controle sutil, mas cruelmen-te eficaz.

Portanto, a eficácia de um sistema normativo tem por base a dis-ciplina dos corpos políticos. Toda forma de uniformização é umaaplicação da tecnologia disciplinar.

Uma das manifestações desses mecanismos disciplinares é abor-dada em História da sexualidade I: A vontade de saber, em que o filó-sofo identifica a incitação da colocação do sexo no discurso como for-ma de controle das condutas sociais, por exemplo, a descoberta do estu-do científico do sexo através dos médicos; a dura penalização normati-va por condutas tidas como perversões sexuais, por ele chamada de“implantação perversa”; as regras do direito canônico e, principalmen-te, do direito de família quanto às condutas do casamento.

22

5 Balbus, Isaac. Mulheres disciplinantes: Michel Foucault o poder do discurso feminista. In: Fe-

minismo como crítica da modernidade. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1987.

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Foucault introduz o conceito do “dispositivo de sexualidade”,que se trata do

“conjunto dos efeitos produzidos nos corpos, nos comportamentos, nasrelações sociais, produzidos por instituições, normas, leis, mecanismos eco-nômicos, toda uma tecnologia política complexa, cuja finalidade é captar,normalizar e usar em seu benefício as sexualidades individuais e a sexuali-dade coletiva”.6

A partir desse pensamento de Foucault, podemos questionar: aaplicação da norma formal garantidora de igualdade de direitos estásujeita às influências culturais? Considerando a resposta afirmativa aessa pergunta, podemos desenvolver a reflexão seguinte. A universa-lização da aplicação da Declaração poderia ser considerada uma re-petição de um discurso verdadeiro patriarcal, influenciado pelo siste-ma dominante, em que se cria um dispositivo de sexualidade com re-lação às mulheres do mundo, pois poderíamos, enfim, considerar queessa cultura histórica dominante faz parte do cotidiano das mulheresque vivem nos cinco continentes do planeta.

Em suma, a universalização de condutas dispostas na Declaraçãodos Direitos Humanos não é nada mais do que repetições de discursosverdadeiros, de tecnologias de controle exercidas pelo poder, pelosistema dominante.

Quando há o reconhecimento da diferença não se repete o discur-so, é um novo discurso que será desenvolvido.

No artigo “Theatrum philosoficum”, em que Foucault desenvol-ve os temas de dois livros do filósofo Gilles Deleuze: A lógica dos

sentidos e Diferença e repetição, ele explica justamente o uso de umanova forma de pensamento, na verdade, o verdadeiro uso do pensa-mento procurando a problematização dos conceitos.

Quando apenas repetimos os conceitos, acabamos por repetirconjuntamente seus vícios, sem qualquer perspectiva de uma nova re-flexão sobre a eliminação destes. A repetição de um discurso, porexemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de maneira“parcial”, masculinizada, garante a manutenção do vício do discurso.Diz Foucault: “Há que abandonar o círculo, mau princípio de retorno,

23

6 Muraro, Rose Marie. Sexualidade da mulher brasileira. p. 22.

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abandonar a organização esférica do todo.” A repetição dos discursosnos leva a uma prática da manutenção circular, esférica, dos conceitose do próprio pensamento. Faz-se necessário descentralizar, dispersara forma de pensar, desvincular-nos da repetição dos vícios e passar-mos a refletir sobre estes, criando novos discursos.

O filósofo sugere, enfim, que:

“(...) para libertar a diferença precisamos de um pensamento sem con-tradição, sem dialética, sem negação: um pensamento que diga sim à diver-gência; um pensamento afirmativo cujo instrumento seja a disjunção; umpensamento múltiplo (...) que não limita nem reagrupa nenhuma das coaçõesdo MESMO; um pensamento que não obedece ao modelo escolar”.7

Com base nessa nova forma de pensar a diferença, procurandonão cair na armadilha de categorizá-la, pois estaríamos realizando arepetição do discurso e descaracterizando sua identidade, poderemosidentificar a universalização dos discursos, percebendo seu caráteruniformizador, totalitário e, através dessa identificação, procurare-mos desconstruí-los, descentralizá-los, construir o conceito de umaigualdade material, de afirmação das diferenças.

4. A importância do debate de gênero

Através desse novo conceito de igualdade material com reconhe-cimento das diferenças surgem as discussões e a criação do conceitode gênero. O conceito de gênero compreende a identificação do sujei-to pela indivisibilidade de direitos, ou seja, pelo catálogo de direitoscivis e políticos conjugado ao catálogo dos direitos econômicos, so-ciais e culturais.

Reconhece as peculiaridades do indivíduo e de suas necessida-des, e procura identificá-las quando minoria vítima de discriminação.Trata-se da identificação do ser em um aspecto de ser político, da dis-tribuição desigual de poder, daí diz-se que as relações de gênero im-plicam relações de poder.

Ainda, nas relações de poder, o ser feminino sai perdendo, porprevalecer o ser masculino. As mulheres, como diziam Deleuze e

24

7 Idem. p. 102.

Page 37: Livro  Direitos Humanos Século XXI

Foucault, repetem a conduta masculina de ser, a conduta de ser domi-nante, e não promovem a diferença, que seria a conduta do ser femini-no, a conduta da diferença.

Já dizia Simone de Beauvoir: “Não se nasce, mas torna-se mu-lher.”8

Essa frase implica que, para a constituição do eu feminino, é ne-cessário fazer uma escolha, uma escolha de continuar a praticar um eu

fictício feminino imposto pela concepção patriarcal de mulher comosendo o “outro”, ou de escolher uma construção do eu feminino con-siderando as peculiaridades do que poderia ser uma mulher. Essa ci-tação de Beauvoir sugere uma descoberta incessante do que seria oser feminino, sugere uma liberdade de construção do ser femininocomo sujeito político na sociedade.

A partir dessa afirmativa, a mulher deve sempre procurar cons-truir sua identidade, pois é livre.

Enfim, a construção do conceito de gênero sugere uma constru-ção política e inovadora de respeito às peculiaridades da mulher em sie do homem, cada um tendo a liberdade de construir-se como sujeitopolítico-social.

5. Considerações finais

A normatização dos direitos fundamentais através da Carta Uni-versal, utilizando o conceito de igualdade formal, restou infrutífera nasua aplicação, pois a efetivação de direitos e garantias através do con-ceito formal de igualdade não se realiza no mundo concreto, o mundodas diferenças. Daí a necessidade de se elaborar uma segunda Carta(Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discrimina-ção contra a Mulher) para suprir esse “vazio” na aplicação da CartaUniversal, proporcionado pela repetição do discurso dominante, pa-triarcal, que se reflete em grande parte nas sociedades do mundo.

Uma possível saída para a solução desse impasse poderia ser aadoção do conceito de igualdade material como reconhecimento deidentidades. O reconhecimento das diferenças de gênero para propor-

25

8 Butler, Judith. Variações sobre sexo e gênero. In: Feminismo como crítica da modernidade.Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1987. p. 139.

Page 38: Livro  Direitos Humanos Século XXI

cionar a reação ao sistema dominante e buscar a construção de umaplataforma igualitária.

Bibliografia

BALBUS, Isaac. Mulheres disciplinantes: Michel Foucault o poder do dis-curso feminista. In: Feminismo como crítica da modernidade. Rio de Ja-neiro: Rosa dos Tempos, 1987.

BUTLER, Judith. Variações sobre sexo e gênero. In: Feminismo como críti-

ca da modernidade. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1987.CAMURÇA, Silvia; GOUVEIA, Taciana, O que é gênero?. Recife: SOS

Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, 2004.ESPINOZA, Olga. Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de

Discriminação contra a Mulher (1979). In: Direito internacional dos di-

reitos humanos. São Paulo: Atlas, 2002.FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: a vontade de saber. 16. ed.

Rio de Janeiro: Graal, 2005._____. Um diálogo sobre os prazeres do sexo e outros textos. In: Theatrum

Philosoficum. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005.MURARO, Rose Marie. Sexualidade da mulher brasileira. 1. ed. Petrópo-

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Internacional – As minorias e o direito. Disponível em: <www.cjf.gov.br/revista/seriecadernos/vol.24>.

SANTOS, Boaventura. Reconhecer para libertar. São Paulo: CivilizaçãoBrasileira, 2003.

26

Page 39: Livro  Direitos Humanos Século XXI

I.3. O direito ao desenvolvimento humano: umasugestão sobre a definição desse conceito

Ivanilda Figueiredo*

O direito ao desenvolvimento consagrou-se na Declaração sobreo Direito ao Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas, naqual foi definido como um direito humano através do qual toda pes-soa e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimen-to econômico, social, cultural e político da sociedade em que vivem.A Declaração e Programa de Ação de Viena, considerada como umareafirmação em termos contemporâneos da Declaração Universal deDireitos Humanos, assinada por 173 países, reproduz as disposiçõesda declaração anterior e mais uma vez anuncia que, “embora o desen-volvimento facilite a realização de todos os direitos humanos, a faltade desenvolvimento não poderá ser invocada como justificativa parase limitar os direitos humanos internacionalmente reconhecidos”. Jána Declaração do Milênio, mais uma vez o direito ao desenvolvimen-to recebe destaque. Nela se assevera que os Estados pactuantes estãocomprometidos com o objetivo de tornar esse direito uma realidade.

Os marcos legais destacados têm por intuito demonstrar que, pormais que o direito ao desenvolvimento já tenha sido tratado em diver-sas e importantes normas internacionais, sua conceituação ainda nãoé clara. Uma corrente chega a visualizá-lo como um direito que sim-

27

* Associada da ANDHEP desde maio de 2006, professora da Faculdade de Direito de Caruaru emestre em Direito Constitucional pela UFPE.

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plesmente reúne em si os demais direitos humanos.1 Outra o identifi-ca como uma prerrogativa peculiar que congrega os demais diretosfundamentais, contribuindo para enfatizar os pressupostos de indivi-sibilidade e interdependência deles característicos. Veja-se:

“el derecho al desarollo puede ser visto como um medio para reforzar

la importancia de los derechos humanos existentes y enfatizar la indivisibi-

lidad e interdependencia de los derechos economicos, sociales e culturales

y de los derechos civiles e politicos”.2

Essa perspectiva demonstra que o direito ao desenvolvimentoestá interligado de modo imanente ao conteúdo valorativo dos demaisdireitos humanos, mas neles não se basta. Ele expressa mais. Ao co-nectar tais direitos, normatiza a propalada interdependência dos mes-mos,3 o que traz como conseqüência imediata, por exemplo, a desvin-culação do desenvolvimento ao mero progresso material, pois, porforça da interdependência imposta por ele, o progresso econômicodeve ser uma meta, mas é imprescindível que a ele esteja atrelada umacorreta distribuição.

Embora, essa definição pareça mais apropriada, ela ainda é bas-tante imprecisa, pois não cria o conteúdo real do direito, não defineelementos constitutivos próprios, e, como se viu, esse não é um pro-blema meramente doutrinário. A normativa internacional tambémnão conseguiu se expressar com a necessária precisão para assegurara visualização dessa prerrogativa como um direito autônomo.

O conteúdo enigmático do direito ao desenvolvimento dificulta ateorização sobre o mesmo e tem um efeito ainda mais nefasto: gerauma escusa para a sua efetivação; ou situa políticas meramente eco-nômicas com pouca ou nenhuma referência a questões sociais comocapazes de representar a efetivação do mesmo.

Veja como exemplo paradigmático o capítulo do Relatório brasi-

leiro sobre o cumprimento dos objetivos do milênio, no qual constam

28

1 Isa, Felipe Gómez. El derecho al desarrollo: como derecho humano en el ámbito jurídico in-ternacional. Bilbao: Universidad de Deusto, 1999. p. 168.2 Alston, Phillipe. Apud Isa, Felipe Gómez. Ibidem. p. 171.3 Wolkmer, Antônio; Wolkmer, Maria de Fátima. Direitos humanos e desenvolvimento. In:Barral, Welber. Direito e desenvolvimento: análise da ordem jurídica brasileira sob a ótica dodesenvolvimento. São Paulo: Singular, 2005. p. 70-71.

Page 41: Livro  Direitos Humanos Século XXI

informações sobre a atuação econômica do Estado no âmbito internoe no da cooperação internacional sem qualquer referência a direitossociais, ao menos subjacentes a elas.4 Depois, sem uma ligação claracom as informações anteriores, o Estado se refere à telefonia, à inclu-são social digital e a políticas de combate ao HIV/Aids. Ora, em queessas atitudes podem representar uma concretização de um direitocomplexo, como o direito ao desenvolvimento, não está evidente.

A vagueza parece ser uma característica atual de tudo o que se re-fere ao direito ao desenvolvimento, doutrina, normas e políticas, in-capazes de o definir com precisão. Em sentido contrário, cada vez maisse publicam e se discutem temas concernentes a esse direito, tomandocomo uma verdade sua existência, mas nem sempre há uma preocu-pação detida com seu significado.

Além de não ter conteúdo próprio, poucos autores se preocupamem definir que direitos civis, políticos, sociais, econômicos, culturaise ambientais (DHESCAs) estão contemplados dentro do conteúdo dedireito ao desenvolvimento. E isso não é de diminuta importância,pois o próprio catálogo de direitos humanos/fundamentais5 é ampla-mente discutido sem que se chegue a um acordo sobre quais prerroga-tivas o compõem. Veja-se a esse respeito a concepção de Sarlet:

“Direitos fundamentais são todas aquelas posições jurídicas concer-nentes às pessoas que, do ponto de vista do direito constitucional positivo,foram, por seu conteúdo e importância (sentido material), integradas ao tex-to da Constituição (formal), bem como as que, por seu conteúdo, e significa-do, possam lhes ser equiparadas, agregando-se à Constituição material, ten-do, ou não, assento na Constituição formal.”6

A cláusula aberta dos direitos humanos/fundamentais é uma rea-lidade; portanto, quando se assegura que o direito ao desenvolvimen-to reúne direitos civis, políticos e DHESCAs, parece importante per-

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4 Ipea. Objetivos de desenvolvimento do milênio: relatório nacional de acompanhamento Brasí-lia: Ipea 2005. p. 188-211. Disponível em: <www.ipea.gov.br>. Acesso em: 12 mar. 2006.5 Compartilha-se da visão expressa pelo autor (Sarlet) no que diz respeito à divisão entre direitoshumanos e fundamentais, de acordo com a qual o conteúdo valorativo deles é o mesmo, e o queos distingue é o aspecto formal: os direitos humanos estão alocados na normativa internacional;os direitos fundamentais, nas constituições.6 Sarlet, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. rev., atual e ampl. PortoAlegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 83.

Page 42: Livro  Direitos Humanos Século XXI

quirir: quais são esses direitos? De acordo com Felipe Gómez Isa, oselementos constitutivos do direto ao desenvolvimento são:

“1. el respeto de todos los derechos humanos como parte integrante del

derecho ao desarrollo.

2. conexión del derecho ao desarrollo con el resto de los derechos hu-

manos de la tercera generación.

3. el desarme y su contribución al derecho al desarrollo, y

4. la participación popular como elemento fundamental en todo proce-

so de desarrollo”.7

Não parece esclarecedor o bastante. Por isso, embora se tenhaconsciência de que a delimitação de um conteúdo jurídico autônomopara o direito ao desenvolvimento necessita de um debate teórico bemmais profundo, lança-se uma idéia para fomentar a discussão. Se o“pai do pensamento moderno de desenvolvimento definiu desenvol-vimento como a ampliação das escolhas das pessoas”,8 por que nãodefinir o direito ao desenvolvimento a partir desse conceito?

Uma das maiores vantagens de se pensar o direito ao desenvolvi-mento, com fulcro na teoria de Sen, é que ela está moldada à realidadedos países que enfrentam dificuldades similares à brasileira. O autor in-clusive cita, em diversas ocasiões, como exemplo o Brasil. O comum éa necessidade de se adaptarem teorias européias e estadunidenses à rea-lidade local, mas, no caso de Sen, isso não se faz necessário.

O direito ao desenvolvimento seria, então, definido como o direi-to de todo indivíduo de dispor de condições materiais e formais paraorquestrar sua vida de acordo com suas aptidões e preferências e deum ambiente que lhe permita buscar com seus próprios meios o incre-mento dessas condições.

As condições materiais e formais de que trata a descrição do di-reito seriam concretizadas através dos cinco parâmetros propostospor Amartya Sen para engendrar um “desenvolvimento humano”, ou

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7 Isa, Felipe Gómez. El derecho al desarrollo: como derecho humano en el ámbito jurídico in-ternacional. Bilbao: Universidad de Deusto, 1999. p. 175.8 Fukuda-Parr, Sakiko. Operacionalizando as idéias de Amartya Sen sobre capacidades,

desenvolvimento, liberdade e direitos humanos – o deslocamento do foco das políticas de

abordagem do desenvolvimento humano. Disponível em: <www.pucminas.virtual.br>. Acessoem: 10 out. 2005.

Page 43: Livro  Direitos Humanos Século XXI

seja, progresso econômico e social calcado em bases democráticas: 1.liberdades políticas; 2. facilidades econômicas; 3. oportunidades so-ciais; 4. garantias de transparência; 5. segurança protetora.9 A inter-pretação do autor é de que a liberdade é o meio e o fim do desenvolvi-mento. Para se percorrer o caminho atrelado a ela, deve-se atentarpara a necessidade de se concederem “funcionamentos” aos indiví-duos. Esses funcionamentos podem ser visualizados como direitosconsagradores da liberdade-meio e que possibilitam a liberdade-fimcom a qual os indivíduos poderão desfrutar de sua capacidade de livreagentes.10

Para Sen, o catálogo de funcionamentos depende do estágio dasociedade. Quanto mais desenvolvida, maior número deles é exigí-vel, o que gerará a obtenção de maior capacidade pelos cidadãos.Entretanto, um rol mínimo de funcionamentos, conectado à satisfa-ção das necessidades básicas, precisa ser concedido para que existaalguma capacidade.11 Dito de outra forma, a capacidade de agente éum reflexo da liberdade substantiva e se compõe de um conjunto defuncionamentos realizados, os quais são capazes de dotar as pessoasda aptidão para efetuar escolhas conscientemente e eleger o modo devida que melhor lhes aprouver.12

Portanto, a proposta de enumeração a seguir delineada não criaum rol exaustivo, nem tampouco universal, mas visualiza o que pode-ria ser considerado o fundamental para desvelar o significado das“condições materiais e formais” expostas no conceito de direito aodesenvolvimento.

Os funcionamentos se referem à concessão de direitos definidos apartir dos cinco parâmetros expostos pelo autor. As liberdades políti-

cas são concernentes ao direito de votar e de ser votado, de fiscalizaras instâncias públicas, de poder expressar livremente e a garantia dopluripartidarismo.13 As facilidades econômicas são representadas pe-

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9 Sen, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução Laura Teixeira Motta. São Paulo:Companhia das Letras, 2000. p. 25.10 Idem. Ibidem. p. 32-33.11 Idem. Ibidem. p. 35-37.12 Idem. Desigualdade reexaminada. Tradução e apresentação Ricardo Doninelli. Rio deJaneiro: Record, 2001. p. 89-90.13 Idem. Desenvolvimento como liberdade. Tradução Laura Teixeira Motta. São Paulo:Companhia das Letras. 2000. p. 55.

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los direitos econômicos, que propiciam aos indivíduos a possibilida-de de “utilizar recursos econômicos com propósitos de consumo, pro-dução ou troca”.14 Referem-se, portanto, a salários mínimos dignos,disponibilidade de financiamento governamental através de micro-crédito, suporte financeiro para incentivar a agricultura familiar. Asoportunidades sociais se expressam através de direitos sociais à saú-de, educação, alimentação, habitação, vestuário, transporte etc. Asgarantias de transparência asseguram o direito a um ambiente social(privado e público) isento de corrupção e com relações livres entre osindivíduos, com confiança entre eles na sinceridade dos acordos pac-tuados e de responsabilidade no trato com as finanças públicas.Enfim, a segurança protetora é a esfera da proteção social represen-tada por benefícios monetários concedidos a pessoas em dificuldade,como desempregados ou indivíduos em situação de miséria.15 No en-tender desse estudo, a melhor maneira de materializar esta última di-retriz é através da concessão do direito à renda de cidadania, que, semdescuidar do respeito à dignidade dos indivíduos, ilide perpetuamen-te a possibilidade de as pessoas serem “reduzidas à miséria abjeta e,em alguns casos, à fome e à morte”,16 o que, assevera o autor, é a fun-ção da segurança protetora.

É importante destacar que, como se pode apreender, a noção deinterdependência permeia as diretrizes expostas por Sen. Veja-se:

“Essas liberdades instrumentais aumentam diretamente as capacidadesdas pessoas, mas também se suplementam mutuamente, e podem, além dis-so, reforçar umas as outras. É importante apreender essas interligações aodeliberar sobre políticas de desenvolvimento.”17

Essas são considerações iniciais que se pretende possam contri-buir para ampliar o debate sobre como é necessário (e possível) sechegar a um consenso sobre o significado da expressão “direito ao de-senvolvimento”, e como essa resposta é essencial para a efetivaçãodessa prerrogativa, pois possibilita que ela venha a ser exigida comoparâmetro de conduta das políticas públicas de um modo coerente e

32

14 Idem. Ibidem. p. 55.15 Idem. Ibidem. p. 56-57.16 Idem. Ibidem. p. 57.17 Idem. Ibidem. p. 57.

Page 45: Livro  Direitos Humanos Século XXI

sem subterfúgios. Além disso, o acréscimo do adjetivo “humano” eli-mina qualquer dúvida sobre a direção que esse direito quer indicar, oque é especialmente importante em países como o Brasil, no qual oconceito de desenvolvimento está atrelado à concepção de progressomaterial.

Bibliografia

FUKUDA-PARR, Sakiko. Operacionalizando as idéias de Amartya Sen so-

bre capacidades, desenvolvimento, liberdade e direitos humanos – o

deslocamento do foco das políticas de abordagem do desenvolvimento

humano. Disponível em: <www.pucminas.virtual.br>. Acesso em: 10out. 2005.

IPEA. Objetivos de desenvolvimento do milênio: relatório nacional de acom-panhamento. Brasília: Ipea, 2005. p. 188-211. Disponível em:<www.ipea.gov.br>. Acesso em: 12 mar. 2006.

ISA, Felipe Gómez. El derecho al desarrollo: como derecho humano en elámbito jurídico internacional. Bilbao: Universidad de Deusto, 1999.339p.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. rev.,atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. 416p.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução Laura TeixeiraMotta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

_____. Desigualdade reexaminada. Tradução e apresentação Ricardo Doni-nelli. Rio de Janeiro: Record, 2001.

33

Page 46: Livro  Direitos Humanos Século XXI

I.4. A dignidade da pessoa humanae o direito ao mínimo vital

Lilian Márcia Balmant Emerique*

Sidney Guerra**

1. Introdução

A pessoa humana é considerada como indivíduo em sua singula-ridade, e partindo dessa premissa obtém-se o princípio de que estadeve ser “livre” (liberdade externa oprimida apenas pelos obstáculospróprios da natureza, e ainda não afastados pelo avanço das ciênciascorrelatas). Por seu turno, como ser social, estando com os demais in-divíduos em uma relação de igualdade, a pessoa humana passa a rece-ber a carga opressora, também, dos obstáculos à sua vontade, oriun-dos da organização política da sociedade.

Os direitos humanos fundamentais não podem ser compreendi-dos como fruto das estruturas do Estado, mas da vontade de todos, ouseja, as liberdades não são criadas e não se manifestam senão, em suamaior parte, quando o povo as quer. Daí, a idéia de Bénoit: “as liber-

34

* Doutora em Direito pela PUC/SP e mestre em Direito pela PUC/Rio; pesquisadora e professo-ra do Curso de Mestrado em Direito da Faculdade de Direito de Campos (Uniflu/FDC); advoga-da. Contato: [email protected].**Pós-doutor, doutor e mestre em Direito; professor adjunto da Faculdade Nacional de Direito(UFRJ); professor titular e coordenador de Pesquisa Jurídica da Universidade do Grande Rio;professor do Curso de Mestrado da Faculdade de Direito de Campos; advogado e administradorde empresas no Rio de Janeiro. Contato: [email protected] e [email protected].

Page 47: Livro  Direitos Humanos Século XXI

dades não nascem senão de uma vontade, elas não duram senão en-quanto subsiste a vontade de as manter”.1

O presente artigo pretende demonstrar a inserção da dignidade dapessoa humana no constitucionalismo contemporâneo como direitofundamental e de comando estruturante da organização do Estado,bem como proceder ao estudo da dignidade da pessoa humana à luzda discussão sobre os direitos sociais, em especial sobre o direito aomínimo vital.

2. Conceito

A discussão relativa à dignidade da pessoa humana ganha relevono plano doméstico dos Estados e no âmbito da sociedade internacio-nal. Assim, para tentar enfrentar a questão, preliminarmente devemser observados alguns conceitos que foram formulados pela doutrinasobre a dignidade da pessoa humana.

Fábio Konder Comparato assinala que a dignidade da pessoa hu-mana não consiste apenas no fato de ser ela, diferentemente das coi-sas, um ser considerado e tratado como um fim em si e nunca comoum meio para a consecução de determinado resultado. Ela resultatambém do fato de que, pela sua vontade racional, só a pessoa vive emcondições de autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leisque ele próprio edita. Daí decorre, como assinalou o filósofo, quetodo homem tem dignidade, e não um preço, como as coisas.2

Ingo Wolfgang Sarlet3 propôs uma conceituação jurídica para adignidade da pessoa humana:

“Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e dis-tintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consi-deração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, umcomplexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tantocontra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a

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1 Bénoit, Francis Paul. Les conditions d’ existence des libertes. Paris: La Documentation Fran-çaise, 1985. p. 21 (tradução do autor).2 Comparato, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva,1999. p. 20.3 Sarlet, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre:Livraria do Advogado, 2001. p. 60.

Page 48: Livro  Direitos Humanos Século XXI

lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, alémde propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinosda própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos.”

Ricardo Lobo Torres4 acentua que o direito à alimentação, à saú-de e à educação, embora não sejam originariamente fundamentais,adquirem o status daqueles no que concerne à parcela mínima sem aqual a pessoa não sobrevive.

Para Luís Barroso,5 dignidade da pessoa humana é uma locuçãotão vaga, tão metafísica, que, embora carregue em si forte carga espi-ritual, não tem qualquer valia jurídica. Passar fome, dormir ao relen-to, não conseguir emprego são, por certo, situações ofensivas à digni-dade humana.

De fato, a dignidade da pessoa humana ganha destaque, não obs-tante esta se merecer como um conceito de contornos vagos e impre-cisos, caracterizado por sua ambigüidade e porosidade, assim comopor sua natureza necessariamente polissêmica.6 Tal relevância podeser facilmente compreendida à luz dos avanços tecnológicos e cientí-ficos da humanidade.7

3. A dignidade da pessoa humana no constitucionalismo

contemporâneo

Hodiernamente, as declarações de direitos contempladas no pla-no internacional e as constituições substanciais e/ou formais dos paí-ses livres consignam capítulo especial aos direitos e garantias funda-mentais, como condição essencial da manutenção da vida em socie-dade. Trata-se de uma das maiores conquistas da civilização, em prolda valorização da pessoa humana, consoante Norberto Bobbio: “To-das as declarações recentes dos direitos do homem compreendem,além dos direitos individuais tradicionais, que consistem em liberda-

36

4 Torres, Ricardo Lobo. Os direitos humanos e a tributação. Rio de Janeiro: Renovar, 1995.p. 133.5 Barroso, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. Rio de Janeiro:Renovar, 2000. p. 296.6 Idem. Ibidem. p. 38.7 Também Alves, Cleber Francisco. O princípio da dignidade da pessoa humana: o enfoque dadoutrina social da Igreja. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 118.

Page 49: Livro  Direitos Humanos Século XXI

des, também os chamados direitos sociais, que se constituem em po-deres.”8

Do postulado de Norberto Bobbio emergem três posicionamen-tos, a saber: a) a realidade das liberdades públicas globais configuraum sistema único (catálogo universal por elas formatado), em funçãode a diagnose lógico-analítica apurar uma natureza comum geral: li-

bertatum; b) a existência de espécies (liberdades públicas básicas),que, ao serem “mensuradas” – Ronald Dworkin9 – pelas sociedades,formam tensão entre si, e dessa forma necessitam de acomodaçãoharmonizadora; c) a localização do Estado não como titular de direi-tos fundamentais, mas como obstáculo para os reais titulares destes(ser humano), em outros termos, os direitos fundamentais compõemos “elementos constitucionais limitativos” exatamente por objetiva-rem restringir (limitar) a ingerência do Estado nas liberdades dos se-res humanos (compreendidos tanto em grupo quanto isoladamente).

Prima facie, a questão converge para o modus de equilíbrio detal tensão. Por sua vez, o saneamento da problemática fica a cargo da“convenção constituinte” de cada nação – John Rawls10 –, que deveeleger e firmar seus peculiares “padrões primários” de equilíbriodas liberdades (via constituições substanciais e formais), conside-rando para isso os costumes, tradições, história nacional, religiões,moral “média”, ética, valores axiológicos diversos etc. das respecti-vas sociedades, do próprio titular e dos “fatores reais de poder comforça política”.11

Embora haja uma preocupação significativa com os direitos fun-damentais no Brasil e com a valorização da dignidade da pessoa hu-mana, na medida em que estão tutelados e declarados no Texto Cons-titucional, infelizmente observa-se a violação contínua dos referidosdireitos e o aviltamento da dignidade humana.

Como assevera Daniel Sarmento,12 o Estado tem não apenas o de-ver de se abster de praticar atos que atentem contra a dignidade huma-

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8 Bobbio, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 21.9 Dworkin, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 269-304.10 Rawls, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 211-283.11 Lassale, Ferdinand. A essência da Constituição. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000.p. 10-18.12 Sarmento, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris,2000. p. 71.

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na, como também o de promover essa dignidade através de condutasativas, garantindo o mínimo existencial para cada ser humano em seuterritório. O homem tem a sua dignidade aviltada não apenas quandose vê privado de alguma das suas liberdades fundamentais, comotambém quando não tem acesso à alimentação, educação básica, saú-de, moradia etc.

4. A dignidade da pessoa humana como princípio

Os princípios transmitem a idéia de condão do núcleo do próprioordenamento jurídico. Como vigas mestras de um dado sistema, funcio-nam como bússolas para as normas jurídicas, de modo que, se estasapresentarem preceitos que se desviem do rumo indicado, imediata-mente esses seus preceitos se tornarão inválidos. Assim, consistem emdisposições fundamentais que se irradiam sobre as normas jurídicas(independentemente de sua espécie), compondo-lhes o espírito e ser-vindo de critério para uma exata compreensão. A irradiação do seu nú-cleo ocorre por força da abstração e alcança todas as demais normas ju-rídicas, moldando-as conforme as suas diretrizes de comando.13

Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema,verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobrediferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critériopara sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir alógica e a racionalidade do sistema normativo, no que confere a tôni-ca e lhe dá sentido harmônico.14

A dignidade da pessoa humana15 encontra-se no epicentro da or-dem jurídica brasileira, tendo em vista que concebe a valorização dapessoa humana como sendo razão fundamental para a estrutura de or-ganização do Estado e para o direito. O legislador constituinte elevouà categoria de princípio fundamental da República a dignidade dapessoa humana (um dos pilares estruturais fundamentais da organiza-

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13 Guerra, Sidney; Merçon, Gustavo. Direito constitucional aplicado à função legislativa. Riode Janeiro: América Jurídica, 2002. p. 96.14 Mello, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. São Paulo: RT,1986. p. 230.15 Silva, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular. São Paulo: Malheiros, 2000.p. 146.

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ção do Estado brasileiro), prevista no art. 1o, inc. III, da Constituiçãode 1988.

O princípio da dignidade da pessoa humana impõe um dever deabstenção e de condutas positivas tendentes a efetivar e proteger apessoa humana. É imposição que recai sobre o Estado de respeitar,proteger e promover as condições que viabilizem a vida com dignida-de. Ingo Wolgfang Sarlet amplia-lhe a abrangência:

“Para além desta vinculação (na dimensão positiva e negativa) do Esta-do, também a ordem comunitária e, portanto, todas as entidades privadas eos particulares encontram-se diretamente vinculados pelo princípio da dig-nidade da pessoa humana. (...) tal dimensão assume particular relevância emtempos de globalização econômica.”16

Sem embargo, o princípio da dignidade da pessoa humana adqui-riu contornos universalistas desde que a Declaração Universal dosDireitos do Homem o concebeu em seu preâmbulo.17 Em seqüência, oseu art. 1o proclamou que todos os seres humanos nascem livres eiguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, de-vem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade.

Partindo dessa proclamação, Jorge Miranda sistematizou as ca-racterísticas da dignidade da pessoa humana, como segue:

“a) a dignidade da pessoa humana reporta-se a todas e cada uma daspessoas e é a dignidade da pessoa individual e concreta; b) cada pessoa viveem relação comunitária, mas a dignidade que possui é dela mesma, e não dasituação em si; c) o primado da pessoa é o do ser, não o do ter; a liberdadeprevalece sobre a propriedade; d) a proteção da dignidade das pessoas estápara além da cidadania portuguesa e postula uma visão universalista da atri-buição de direitos; e) a dignidade da pessoa pressupõe a autonomia vital dapessoa, a sua autodeterminação relativamente ao Estado, às demais entida-des públicas e às outras pessoas”.18

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16 Sarlet, Ingo Wolfgang. Op. cit. p. 109-140.17 A Declaração Universal dos Direitos do Homem o concebeu em seu preâmbulo: “Conside-rando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e deseus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo...Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos funda-mentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos do ho-mem e da mulher, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vidaem uma liberdade mais ampla.”18 Miranda, Jorge. Manual de direito constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1991. t. IV,p. 169.

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No Brasil, em que pese o elevado grau de indeterminação, o prin-cípio da dignidade da pessoa humana constitui critério para integra-ção da ordem constitucional, prestando-se para reconhecimento dedireitos fundamentais atípicos, e, portanto, as pretensões essenciais àvida humana afirmam-se como direitos fundamentais.

5. A questão dos direitos sociais à luz do mínimoexistencial: possibilidades e limites

As formulações em torno do mínimo existencial expressam queeste apresenta uma vertente garantística e uma vertente prestacional.A feição garantística impede agressão do direito, isto é, requer cedên-cia de outros direitos ou de deveres (pagar imposto, por exemplo) pe-rante a garantia de meios que satisfaçam as mínimas condições de vi-vência digna da pessoa ou da sua família. Nesse aspecto o mínimoexistencial vincula o Estado e o particular.

A feição prestacional tem caráter de direito social, exigível pe-rante o Estado. Nesse caso, não se pode deixar de equacionar se essemínimo é suficiente para cumprir os desideratos do Estado democrá-tico de direito.

Um dos problemas em relação ao aspecto prestacional do mínimoexistencial consiste em determinar quais prestações de direitos sociaisconformam o seu núcleo. Caso seja vencida essa etapa, ainda assimperdurará a dificuldade de saber em relação a cada direito particularqual a extensão da obrigação do Estado de prover ou satisfazer a ne-cessidade ou interesse social ou econômico tutelados pelo direito.Quando um determinado direito social é reconhecido a certas pessoasou grupos em uma determinada medida, fica a dúvida sobre a possibi-lidade de estabelecer juízos de comparação entre a situação dos bene-ficiários, controlando a legalidade e razoabilidade do fator de diferen-ciação utilizado pelo Estado ao prover, garantir ou promover seletiva-mente os interesses tutelados pelo direito.

Enfim, a questão do mínimo existencial suscita inúmeras contro-vérsias, como, por exemplo, a conceituação, a identificação de quaisprestações são indispensáveis para a manutenção de uma vida digna,a função do Estado na promoção e proteção desse mínimo, dentre ou-

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tras. Toda essa discussão tem como pano de fundo o papel do direitodiante da escassez de recurso e traz à tona a indagação se a escassez debens ou a necessidade sem satisfação, as carências de muitas pessoas,podem ser resolvidas com a intervenção do direito na forma de direi-tos fundamentais ou não. Como compaginar objetivos diversos cujocumprimento simultâneo resulta problemático? Ainda supondo queum direito pudesse ser garantido plenamente, não seria isso muitasvezes em detrimento da satisfação de outros? E, em tal caso, como ar-bitrar entre eles? Trata-se do problema da escassez entendida comoincapacidade de satisfazer objetivos múltiplos sob restrições. Esseproblema existe realmente? Não deveriam ser os direitos fundamen-tais mutuamente compatíveis e complementares?

As respostas aos questionamentos lançados de acordo com Sal-vador Barberá passam pela atitude de abandonar posturas absolutasem relação a qualquer objetivo concreto que se formule com respeitoàs formas alternativas de organização social, e em favor de definirgraus de cumprimento de cada um, incluídos os de satisfação de dis-tintos direitos, o que permitiria arbitrar entre uns e outros em cadamomento ou inclusive discutir as possibilidades de ir aumentando ascotas de satisfação de distintos direitos com o passar do tempo.19

Porém, Salvador Barberà flexibiliza a posição relativista aceitan-do a existência de mínimos absolutos, de acordo com os quais a defe-sa das liberdades e os demais direitos deveriam adquirir prioridade to-tal, porque deixam de entrar em conflito entre si. Se a desigualdade éum conceito relativo, assim devem ser interpretados os distintos índi-ces que procuram medi-la. Por isso, defende que a posição relativistano tratamento dos graus de cumprimento de uns direitos em face deoutros, e em relação inclusive com outros objetivos, como o cresci-mento e a eficiência, só pode se sustentar em sociedades em que as co-tas mínimas de satisfação de direitos estejam garantidas. Só uma vezsolucionadas as situações de pobreza desesperada podem-se ter polí-ticas distributivas sofisticadas. Só depois de garantidos direitos ele-mentares podem-se permitir refinamentos acerca de quais devem sermais satisfeitos que outros, e em que níveis.20

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19 Barberà, Salvador. Escasez y derechos fundamentales. Apud Sauca, José Maria. Op. cit.p. 226-227.20 Idem. Ibidem. p. 226-227.

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De um modo geral, pode-se afirmar que em relação aos direitossociais de cunho prestacional existem obrigações genéricas do Esta-do que devem ser devidamente atendidas. Nas opiniões de VictorAbramovich e Christian Courtis,21 seriam elas:

a) obrigação de adotar medidas imediatas – o Estado deverá im-plementar, em um prazo razoavelmente breve, atos concretos, delibe-rados e orientados o mais claramente possível para a satisfação daobrigação, e a ele cabe justificar por que não avançou na consecuçãodo objetivo. Dentre as obrigações imediatas do Estado, destacam-se:i) obrigação de adequação do marco legal; ii) obrigação de vigilân-

cia efetiva, informação e formulação de plano; iii) obrigação de pro-

visão de recursos efetivos;b) obrigação de garantir níveis essenciais dos direitos – o Estado

deve demonstrar todo o esforço realizado para utilizar com prioridadea totalidade dos recursos que estão à sua disposição;

c) obrigação de progressividade e proibição de retrocesso – anoção de progressividade demanda o reconhecimento de que a satis-fação plena dos direitos prestacionais supõe uma gradualidade e umprogresso nas melhorias de condições de gozo e exercício dos direitossociais. No caso de retrocesso, cabe ao Estado demonstrar a estrita ne-cessidade da medida, comprovando: i) a existência do interesse esta-tal permissível; ii) o caráter imperioso da medida; iii) a inexistênciade cursos de ação alternativa menos restritivos do direito em questão.

A questão do mínimo existencial dentro de uma modalidade pres-tacional convive com a complexidade de definição de quais direitos eem que amplitude podem ser caracterizados como fundamentais den-tre os direitos sociais estipulados na Constituição. Tanto a doutrinainterna como a externa esbarram no problema da subjetividade do es-tabelecimento do padrão de referência ideal para a consecução decondições mínimas indispensáveis para a manutenção digna da vida.

Ingo Wolfgang Sarlet, em estudo sobre a eficácia dos direitosfundamentais, aponta a necessidade de reconhecimento de certos di-reitos subjetivos a prestações ligados aos recursos materiais mínimospara a existência de qualquer indivíduo. A existência digna, segundo

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21 Abramovich, Victor; Courtis, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibles. 2.ed. Madri: Editorial Trotta, 2004. p. 79-116.

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ele, estaria intimamente ligada à prestação de recursos materiais es-senciais, devendo ser analisada a problemática do salário mínimo, daassistência social, da educação, do direito à previdência social e do di-reito à saúde.22

Na concepção de Ricardo Lobo Torres, os direitos referentes aomínimo existencial incidiriam sobre um conjunto de condições queseriam pressupostos para o exercício da liberdade.23 Inclusive o autorsustenta a idéia de metamorfose dos direitos sociais em mínimo exis-tencial.24 Tal posicionamento reduz o caráter fundamental dos direi-tos sociais fora do âmbito do mínimo existencial, extraindo sua pleni-tude, colocando-os em patamares inferiores, mínimos de eficácia. Oconjunto dos direitos sociais, praticamente na sua integralidade, for-ma o bloco constitucional dos direitos fundamentais, e a identificaçãocom níveis mínimos, em que pese a contribuição para buscar um nívelde garantia mais adequado aos referidos direitos, acaba por menos-prezar seu impacto, deixando a cargo do Estado a cômoda condiçãode oferecer apenas o mínimo, ainda que esse grau seja insatisfatório.Uma verdadeira ótica de implementação dos direitos sociais presta-cionais não se coaduna com nivelamentos que excluem determinadosdireitos ou diminuem as dimensões dos mesmos, até porque essa pos-tura acentua as desigualdades socioeconômicas.

O mínimo existencial também é objeto de análise por Ana Paulade Barcellos, que o identifica como o núcleo sindicável da dignidadeda pessoa humana. A autora inclui como proposta para sua concreti-zação os direitos à educação fundamental, à saúde básica, à assistên-cia no caso de necessidade e ao acesso à Justiça, todos exigíveis judi-cialmente de forma direta.25

Embora a proposta referida tenha por objetivo evitar a total inefi-cácia jurídica de vários dispositivos sobre direitos sociais, cabe acla-

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22 Sarlet, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2. ed. Porto Alegre: Livraria doAdvogado, 2001. p. 322-323.23 Torres, Ricardo Lobo. Os direitos humanos e a tributação: imunidades e isonomia. Rio de Ja-neiro: Renovar, 1998. p. 128-129; Idem. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. Rio de Janeiro:Renovar, 2002. p. 267.24 Torres, Ricardo Lobo. Metamorfose dos direitos sociais em mínimo existencial. Apud Sarlet,Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais: estudos de direito constitucional, internacionale comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 1-46.25 Barcellos, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. Rio de Janeiro:Renovar, 2002. p. 305.

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rar que não se deve confundir a materialidade do princípio da dignida-de da pessoa humana com o mínimo existencial, nem se pode reduziro mínimo existencial ao direito de subsistir. Apesar de a vasta exten-são dos direitos sociais gerar problemas relacionados à amplitude desua eficácia e comprometer a credibilidade da construção do Estadodemocrático de direito, não se justifica partir para versões minimalis-tas, abandonando de vez uma visão mais global.

As restrições de direitos fundamentais se justificam quando nãoviolam o núcleo essencial de um determinado direito e são previstasou autorizadas na Lei Maior. Portanto, ainda que sejam direitos so-ciais, apenas podem ocorrer limitações se fundadas na própria Cons-tituição, e não as baseadas no alvedrio do intérprete, bem como de-vem respeitar o núcleo essencial do direito caso sejam objeto de des-dobramentos legislativos.

Os valores de ordem econômica não são postos como absolutosque sobressaem à efetivação dos direitos sociais cujo propósito con-siste na concretização dos princípios da igualdade e da dignidade dapessoa humana. Embora seja preciso ter certa dose de cautela paranão cair no extremo de pensar que o Estado pode tudo, também não sedeve admitir que o Estado não possa nada ou quase nada em funçãodas crises econômicas. Nesse meio termo se situa a necessidade deequilíbrio entre a dinâmica de emprego da reserva do possível em seugrau máximo, principalmente impedindo retrocessos nas conquistassociais.

Desse modo, a questão da eficácia dos direitos sociais, associadaao atendimento do princípio da reserva do possível, dadas as situa-ções de escassez enfrentadas pelo Estado, não deve ser tomada de for-ma absoluta ou como um dogma da economia globalizada. Antes, oprincípio em questão deve ser conjugado com a idéia de otimizaçãodos recursos mediante o emprego do máximo possível para promovera eficácia dos direitos mencionados.

Vale mencionar a experiência ainda em construção na jurispru-dência em relação ao mínimo existencial no aspecto prestacional.Destaca-se a decisão proferida pelo relator ministro Celso Mello emsede da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental no 45MC/DF, promovida contra o veto presidencial sobre o § 2o do art. 55(renumerado para art. 59), de proposição legislativa que se converteu

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na Lei no 10.707/2003 (LDO), destinada a fixar as diretrizes pertinen-tes à elaboração da lei orçamentária anual de 2004. Embora a ação te-nha sido julgada prejudicada em virtude da perda superveniente doobjeto devido à edição da lei mencionada, o relator posiciona-se emrelação à idoneidade da mesma para viabilizar a concretização de po-líticas públicas, quando, previstas no texto constitucional (no casoEC no 29/2000), venham a ser descumpridas, total ou parcialmente,pelas instâncias governamentais destinatárias do comando. Invocainclusive a importância do papel conferido ao Supremo Tribunal Fe-deral no exercício da jurisdição constitucional de tornar efetivo os di-reitos – econômicos, sociais e culturais. Assim, mesmo com as limita-ções em torno da cláusula da reserva do possível, existe a necessidadede preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangi-bilidade do núcleo essencial que constitui o mínimo vital.26

Enfim, é preciso uma ação e padrão mais uniformizado de atua-ção dos poderes estatais na realização dos direitos sociais com o intui-to de assegurar o mínimo existencial, para evitar que a falta de vonta-de política e medidas e decisões parciais sejam adotadas produzindocategorias variadas de oferecimento de prestações de conteúdo uni-versal. Contudo, com isso não se pretende partir para a defesa de ummínimo próprio a cada direito, porque seria o mesmo que nivelar porbaixo direitos que não foram hierarquizados na Constituição.

Uma seara um pouco menos controvertida diz respeito ao míni-mo existencial como objeto de dimensão negativa por parte do Esta-do. Nesse campo mais especificamente, é possível sustentar a adoçãode medidas protetoras das mínimas condições de vida digna para aspessoas, principalmente se tais medidas pretendem evitar ações pre-datórias relacionadas ao poder de tributar exercido pelo Estado, ga-

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26 ADPF no 45 MC/DF, relator ministro Celso Mello. Ementa: “Argüição de descumprimentode preceito fundamental. A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervençãodo Poder Judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipó-tese de abusividade governamental. Dimensão política da jurisdição constitucional atribuída aoSupremo Tribunal Federal. Inoponibilidade do arbítrio estatal à efetivação dos direitos sociais,econômicos e culturais. Caráter relativo da liberdade de conformação do legislador. Considera-ções em torno da cláusula da ‘reserva do possível’. Necessidade de preservação, em favor dosindivíduos, da integridade e da exigibilidade do núcleo consubstanciador do ‘mínimo existen-cial’. Viabilidade instrumental da argüição de descumprimento no processo de concretizaçãodas liberdades positivas (direitos constitucionais de segunda geração).” Disponível em:<www.interessepublico.com.br/content/imprime.asp?id=8855>. Acesso em: 26 abr. 2005.

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rantindo as condições iniciais de liberdade e a intributabilidade domínimo vital.

A imunidade do mínimo existencial se situa aquém da capacida-de contributiva, da mesma forma que a proibição de confisco veda aincidência além da aptidão de pagar. Em outras palavras, a capacida-de contributiva começa além do mínimo necessário à existência hu-mana digna.27

O mínimo vital no plano tributário é fundamento do princípio dacapacidade contributiva e do princípio da igualdade substancial, comisso são vedadas medidas que configurem desrespeito à capacidadecontributiva e que gerem efeitos confiscatórios.

6. Considerações finais

A dignidade da pessoa humana representa significativo vetor in-terpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira o ordena-mento jurídico dos Estados de direito, traduzindo-se, inclusive, comoum dos fundamentos do Estado brasileiro. Entretanto, se, por umlado, hodiernamente, existe grande preocupação com a tutela da dig-nidade da pessoa humana (seja no plano doméstico, seja no plano in-ternacional), por outro, evidencia-se que lesões de toda ordem sãoprocessadas e aviltam a dignidade humana.

José Augusto Lindgren Alves28 acentua que os direitos humanosvivem situação contraditória nesta fase de “pós-modernidade”.Adquiriam inusitada força discursiva, mas são ameaçados de todos oslados. Afirmaram-se como baliza da legitimidade institucional, massofrem rudes golpes de globalização econômica.

As formulações sobre o mínimo existencial expressam que esteapresenta uma vertente garantística e uma vertente prestacional. Aproposta de estabelecer um rol de direitos que comporia o mínimo vi-

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27 Defendem a vinculação dos tributos ao mínimo vital, dentre outros: Torres, Ricardo Lobo. Os

direitos humanos e a tributação: imunidades e isonomias. Rio de Janeiro: Renovar, 1995. p.121-175; Sacha, Calmon Navarro. O controle de constitucionalidade das leis e o poder de tri-

butar na Constituição de 1988. Belo Horizonte: Del Rey, 1992. p. 355-356, 373; Costa, ReginaHelena. Princípio da capacidade contributiva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 56, 65-68.28 Alves, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos na pós-modernidade. São Paulo: Pers-pectiva, 2005. p. 9.

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tal tem por objetivo evitar a total ineficácia jurídica de vários disposi-tivos sobre direitos sociais. Contudo, cabe aclarar que não se deveconfundir a materialidade do princípio da dignidade da pessoa huma-na com o mínimo existencial, nem reduzi-lo ao direito de subsistir.Apesar das dificuldades, não se justifica partir para versões minima-listas, abandonando de vez uma visão mais global, e nem seria corretodefinir quais seriam os limites internos de cada direito social selecio-nado como inerente ao mínimo vital sugerido, visto que igualmenteas graduações cairiam no mesmo problema da subjetividade de quemas estipulam.

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Page 61: Livro  Direitos Humanos Século XXI

I.5. 25 anos da Aids: desafiospara o “tempo de direitos”

Naira Brasil*

“Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei omundo futuro. O tempo é minha matéria, o tempo presente, os ho-mens presentes, a vida presente.”1

O tempo é invenção do ser humano. Para nós, também é umdado necessário à realidade do direito. Contudo, não falaremos do“tempo do direito”, ou seja, não trataremos da duração razoável doprocesso nem dos prazos processuais. Falaremos, sim, do “tempo dedireitos”.

No desenvolvimento da sociedade, podemos notar tempos nosquais, para determinados grupos, não havia direitos. Em partes, justi-fica-se tal postura na cultura machista e preconceituosa de inspiração“judaico-cristã”, que penetrou na mentalidade social, negando cida-dania, por exemplo, a mulheres, negros, pobres, idosos, deficientesfísicos e mentais, homossexuais, entre outros. Isso porque aquelesque não conseguiam produzir, ou seja, aqueles que não eram efi-cientes, não mereciam se individualizar na vida. É a exclusão moralque se dá

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* Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas.1 Andrade, Carlos Drummond de. Mãos dadas. In: Sentimento do Mundo. Rio de Janeiro: Afilia-da, 2002.

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“quando colocamos pessoas ou grupos fora das exigências básicas dajustiça, sem que isso nos incomode muito. É como se achássemos que essaspessoas não merecem viver. Não são consideradas vítimas, (...) – e com issonos sentimos desobrigados de nos importar com o que acontece com elas.Simplesmente ‘desligamos’ a nossa sensibilidade moral em tais casos”.2

Assim, é a busca dessa individualização que faz com que as mi-norias se organizem e lutem pelo reconhecimento dos seus direitos.Nasce o “tempo das lutas”. A esse período sucedeu-se o “tempo dasconquistas”, com o advento dos direitos humanos.

“A incomparável importância dos direitos humanos fundamentais nãoconsegue ser explicada por qualquer das teorias existentes, que se mostraminsuficientes. Na realidade, as teorias se completam, devendo coexistir, poissomente a partir da formação de uma consciência social (teoria de Perel-man), baseada principalmente em valores fixados na crença de uma ordem

superior, universal e imutável (teoria jusnaturalista), é que o legislador ou ostribunais (esses principalmente nos países anglo-saxões) encontram substra-to político e social para reconhecerem a existência de determinados direitoshumanos fundamentais como integrantes do ordenamento jurídico (teoriapositivista).”3

Segundo Celso Lafer, esses direitos também se originam das tra-dições judaico-cristã e estóica da civilização ocidental, afirmando-se,assim, o valor, a dignidade, o ser humano como valor-fonte, seja porter sido criado à imagem e semelhança de Deus, seja por ser cidadãoda “cosmo-polis”.4 Surge, pois, em 1948, a Declaração Universal dosDireitos do Homem, para funcionar como padrão ideal de comporta-mento entre Estados, na esfera internacional, e entre Estado e povo,no direito interno. Conforme Ihering:

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2 Arns, Paulo Evaristo. Para que todos tenham vida. In: Viana, Márcio Túlio; Renault, Luiz Ota-vio Linhares (Coord.). Discriminação. São Paulo: LTr, 2000. p. 20.3 Moraes, Alexandre de. Direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 35.4 Lafer, Celso. A reconstrução dos direitos humanos – um diálogo com o pensamento de Han-

nah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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“Todos os direitos da humanidade foram conquistados pela luta; seusprincípios mais importantes tiveram de enfrentar os ataques daqueles a que aeles se opunham; todo e qualquer direito, seja o direito de um povo, seja o di-reito de um indivíduo, só se afirma por uma imposição ininterrupta de luta.(...) Sem luta não há direito.”5

Contudo, a complexidade do desenvolvimento social, marcadapelas radicais diferenças, faz surgir situações inesperadas que exigemnovas lutas e, por conseguinte, novas conquistas. É o caso da Aids, naqual há falta de tempo para viver.

A sigla Aids, originária do nome científico na língua inglesa (ac-

quired immunological deficience syndrome – síndrome da imunode-ficiência adquirida), consiste em um ataque ao sistema imunológicodo indivíduo, no qual o corpo humano perde a capacidade de se prote-ger, abrindo, assim, portas para o desenvolvimento de diversas doen-ças. É transmitida pelo retrovírus HIV (vírus da imunodeficiência hu-mana), através de contágio direto. A Aids foi diagnosticada pela pri-meira vez em 1981 pelo cientista norte-americano Robert Gallo, doNational Institute of Health (Instituto Nacional de Saúde dos EstadosUnidos), juntamente com o Dr. Luc Montagnier, do Instituto Pasteurde Paris (França), depois que alguns jovens homossexuais tiveramseu sistema imunológico atacado e morreram em um curto período detempo.

Ainda na década de 1980, a Aids surge no Brasil, o qual, assimcomo o restante do mundo, atemorizou-se, reagindo de forma inten-samente discriminatória: nasce a expressão “câncer gay” ou “pragagay”, sem qualquer conhecimento, à época, de seu agente transmis-sor. Rapidamente a síndrome se espalhou, disseminando, também,medo e preconceito.

Enquanto a comunidade médico-científica de todo o mundo esfor-çava-se para descobrir as causas e eventuais métodos de cura para essanova doença, na política nacional, a Ditadura Militar criava um cenáriode incertezas: de um lado, o “milagre econômico” e, do outro, a repres-são (partidária, movimento estudantil, liberdade de expressão).

É nesse ambiente de insegurança que, em 1986, nasce a Assem-bléia Nacional Constituinte, que tem como resultado o advento da

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5 Ihering, Rudolf von. A luta pelo direito. São Paulo: Martin Claret, 2005. p. 27.

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Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, a “Constituição cida-dã” , como exaltou Ulysses Guimarães, restabelecendo, assim, direitose garantias individuais e assegurando uma série de conquistas sociais.

No entanto, é necessário ressaltar que esse novo pacto social nãoestava claro para o contexto social vivido, pois grande parcela da po-pulação não tinha noção da realidade repressiva da ditadura, até por-que o “milagre econômico” conseguia acalentar os ânimos da classemédia. Surge, aí, a primeira questão: uma Constituição Federal criadanesse cenário de incerteza, insegurança, foi escrita de modo a possibi-litar sua própria efetivação?

Efetivar a Constituição Federal é colocá-la a caminho de sua con-cretização, ou seja, é dar condições de realizabilidade aos valores su-premos ali contidos. É exatamente para identificar se esses valoressão respeitados, isto é, se há ou não violação aos direitos humanos eem que áreas da sociedade, que, aqui, ampliaremos o conceito deAids, conforme sugere a Organização Mundial da Saúde (OMS), paratrês situações de epidemias: a primeira, consistente na infecção pelovírus HIV; a segunda, nas doenças infecciosas (chamadas doençasoportunistas); e a terceira, nas reações sociais, religiosas, políticas,culturais. Assim, o conceito de Aids transcende o conceito clínico, in-serindo o portador do HIV/Aids como sujeito de direito e deveres, talcomo sugere a Organização Mundial de Saúde (OMS):

“Segundo o Dr. Jonathan Mann, da Organização Mundial de Saúde,podemos indicar pelo menos três fases da epidemia de Aids (...). A primeiraé a epidemia da infecção pelo HIV que silentemente penetra na comunidadee passa muitas vezes despercebida. A segunda epidemia, que ocorre algunsanos depois da primeira, é a epidemia da própria Aids: a síndrome de doen-ças infecciosas que se instalam em decorrência da imunodeficiência provo-cada pela infecção pelo HIV. Finalmente, a terceira (talvez, potencialmente,a mais explosiva) epidemia de reações sociais, culturais, econômicas e polí-ticas à Aids, reações que, nas palavras do Dr. Mann, são ‘tão fundamentaispara o desafio global da Aids quanto a própria doença’.”6

É a partir desse conceito, especificamente da terceira epidemia,que devemos analisar se os valores da Constituição Federal podem ser

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6 Daniel, Herbert; Parker, Richard. Aids, a terceira epidemia: ensaios e tentativas. São Paulo:Iglu, 1991. p. 13.

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identificados na vida dos portadores do HIV/Aids, isto é, se são respei-tados os princípios da dignidade humana, da não-discriminação, do di-reito à vida, direito à saúde, direito ao trabalho.

Em 25 anos, o HIV matou 25 milhões de pessoas. Desse total,95% estavam em países em desenvolvimento e menos de 1 milhão es-taria recebendo tratamento. Hoje, está presente em 40 milhões de pes-soas no mundo todo e as perspectivas são assustadoras, especialmen-te para o continente africano, onde as precárias condições de vida ace-leram a disseminação da doença.

No Brasil, de 1980 a junho de 2005 foram notificados 371 mil ca-sos da doença, que atinge, de forma intensificada, homens, usuáriosde drogas injetáveis, homossexuais masculinos e negros, expondo,assim, a desigualdade no acesso aos serviços de saúde para diagnósti-co e tratamento precoces das populações menos favorecidas socioe-conomicamente.

No nosso País a política de Aids, segundo o Poder Público, baseia-senaqueles princípios constitucionais do acesso universal à saúde inte-gral, incluindo pesquisa, prevenção e tratamento gratuito, entre ou-tros, sendo vedada a exclusão de qualquer pessoa devido à condiçãoeconômica ou outro fator. Esse reconhecimento do direito constitu-cional garantiu, desde logo, a intensa produção legislativa nesse sen-tido. Informa o Ministério da Saúde que, graças a essa política, milha-res de brasileiros vivem com o HIV/Aids há vários anos, com expec-tativa de vida ampliada.7

Surgem, quanto a isso, algumas questões: os princípios constitu-cionais são, de fato, efetivados? É possível oferecer uma vida dignaao portador do HIV/Aids? A violação dos direitos humanos aumentaa disseminação do HIV/Aids? Como vivem as pessoas infectadaspelo HIV/Aids? Isto é, questionar se tais políticas de prevenção têmeficácia social e se as políticas de apoio aos portadores do HIV, queampliam sua expectativa de vida, são capazes de garantir-lhes umavida digna, permitindo sua inclusão social.

Há, pois, o confronto permanente entre o tempo de vida, que sequer digna, seja saudável ou não, e o direito.

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7 <http://www.aids.gov.br>. Acesso em: 8 abr. 2006.

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O excesso de normas, na tentativa de superar lacunas no sistema,transforma e perturba o homem. Os anseios humanos estão fundadosem uma incompletude estrutural que o exagero de regras jamais pode-rá sanar. Por isso não se deve fazer mais e mais leis... A atenção deverecair sobre sua aplicação.

Esse é o tempo em que não devemos simplesmente pôr nas normaso resultado das lutas. É o “tempo de efetivação de tais conquistas”.

A Constituição Federal, desde seu preâmbulo, nos apresenta umnovo tempo, com vistas a assegurar o exercício de direitos individuaise coletivos, a liberdade, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdadee a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna.

O papel social, no entanto, não é exclusivo dos órgãos do PoderPúblico; compete também aos cidadãos e, nesse sentido, vale lem-brar o disposto no art. 64 do Ato das Disposições ConstitucionaisTransitórias:

“Art. 64. A Imprensa Nacional e demais gráficas da União, dos Esta-dos, do Distrito Federal e dos Municípios, da administração direta ou indire-ta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, promove-rão edição popular do texto integral da Constituição, que será posta à dispo-sição das escolas e dos cartórios, dos sindicatos, dos quartéis, das igrejas e deoutras instituições representativas da comunidade, gratuitamente, de modoque cada cidadão brasileiro possa receber do Estado um exemplar da Consti-tuição do Brasil.”

Portanto, ao garantir que a Constituição Federal chegue a todos, opróprio texto imputa aos cidadãos a responsabilidade de realização efiscalização dos valores aí contidos.

Para os intérpretes e aplicadores do direito, o momento “mágico”acontece quando se dá vida às palavras, ou seja, quando ocorre a deci-são judicial para solucionar os conflitos em uma situação fática ocor-rida no mundo empírico.

No campo da Aids, a concretização dos direitos constitucionaiscertamente ajudaria a conter a disseminação da doença, especialmen-te no que concerne à citada terceira epidemia.

É notório que a sociedade, desde as suas origens, convive com ta-bus e preconceitos, que trazem à tona visões distorcidas da realidade.Nesse caso específico, o surgimento da Aids consolidou posições deque todos devem seguir o comportamento padrão adotado pela socie-

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dade. Desde logo, as informações difundidas sobre a doença faziamreferência direta ao comportamento sexual promíscuo do aidético, fa-zendo dessa associação fonte principal de um preconceito que se ra-mifica em diversas formas de discriminação. A natureza contagiosa ea incurabilidade da doença provocaram muitas reações desagradá-veis, dentre as quais o temor infundado de contágio pelo contato so-cial com o portador, que fez com que muitos doentes fossem expulsosde casa, fossem rejeitados em hospitais, fossem dispensados, imoti-vadamente, do emprego. Essas reações intensificam a presença damorte para o doente e para as pessoas que convivem com ele. Fazemnascer uma espécie de morte social:

“Estou tendo, nos meus dias de vida, nestes meus dias da vida, nestesmeus dias em vida quando descobri que a vida é uma descoberta da fragilida-de, na vida destes meus dias onde a morte passou a ser uma presença quenada tem de pornográfica ou obscena (pelo contrário, sempre no palco,como uma respeitável atriz que rouba muitas das melhores cenas), estou ten-do a vida que os dias põem e de que me disponho – com uma gula que nadatem de incerteza, mas tem certamente de indirigida, como uma fome que jádeveria ter nascido há milênios, se eu soubesse já há milênios os milenaresprazeres de cada segundo que a intensidade da hora da vida põe e predispõeem cena (...). Ela me venceria, não se me matasse, mas se me retirasse a cons-ciência de que vivo com ela, e que devo me adaptar a certas circunstâncias devida impostas pela doença.”8 (Herbert; Parker, 1991, p. 49)

Isso é conseqüência da brutal expulsão dos aidéticos do convíviosocial, restando configurada a lesão aos direitos fundamentais, espe-cialmente trabalho (arts. 6o e 7o da CF), locomoção (art. 5o, inc. XV,da CF) e educação (art. 205 da CF), diante da qual se torna impossíveloferecimento da vida digna apenas com a garantia de acesso ao “co-quetel”.9

Portanto, é necessário ressaltar que, para promover a realizaçãodesses princípios, é indispensável que o ser humano reconheça taisvalores em sua própria consciência. Somente a partir daí afastaremosas arbitrariedades cometidas contra as minorias.

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8 Idem. Ibidem. p. 49.9 Lei Sarney (Lei Federal no 9.313/1996), elaborada e aprovada devido à pressão das ONGs.

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Para que isso ocorra, sugere-se que abandonemos a postura deque tudo vai permanecer como está e que os cidadãos busquem a con-cretização de valores, abandonando, também, o comodismo demo-crático. Chico Buarque não precisa mais falar por nós. Soltemos asvozes em busca desse novo tempo, como sugere o cantor Gabriel, “OPensador”: “Muda que quando a gente muda o mundo muda com agente. A gente muda o mundo na mudança da mente.”

E um dos maiores exemplos desse tipo de atitude é Betinho, que,em um mundo onde não há tempo para nada, sempre lutou contra otempo da sua morte, e mesmo sem ter expectativa quanto ao tempo decura, teve tempo de lutar contra muitas adversidades da vida.

Não é fácil concretizar e viver um “tempo de direitos”, mas é pos-sível. E, nesse sentido, encerramos com Drummond: “O presente étão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos demãos dadas.”10

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10 Idem. Ibidem. p. 37.

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TRASFERETTI, José Antônio. CNBB, Aids e governo: tarefas para umateologia da prevenção. São Paulo: Átomo, 2005.

Site

<http://www.aids.gov.br>.

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II

ECONOMIA, GLOBALIZAÇÃO,

DEMOCRACIA E DIREITOS

HUMANOS

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II.1. Indivisibilidade entre os direitos civis epolíticos e os direitos econômicos, sociaise culturais: problemas de reconhecimento

e dificuldades na implementação

Denise Carvalho da Silva*

Os direitos humanos possuem uma origem histórica, ao conside-rarmos que seu surgimento deriva de lutas enfrentadas pela humani-dade como uma etapa no processo das transformações decorrentesdessas lutas e da busca da emancipação. As mudanças que estavampor vir, como o desenvolvimento da técnica e as profundas mudançasnos âmbitos econômico e social, a expansão do universo de conheci-mentos a serem descobertos e o fortalecimento e ampliação dos meiosde comunicação, propulsionaram um apanhado de necessidades navida cotidiana e no convívio social, assim como uma busca de novasliberdades, no sentido de pôr em prática a exposição das opiniões e odireito de obter a verdade das informações e poderes, na forma de par-ticipar ativamente do poder decisório.

Dos eventos históricos enfrentados pela humanidade, a deflagra-ção da Segunda Guerra Mundial desencadeou sérios problemas de re-percussão mundial. Do ataque inicial à Polônia, em 1939, ao fim daguerra, em setembro de 1945, o mundo tornou-se um cenário de hor-rores, como a era atômica e o extermínio de cerca de 55 milhões de ci-vis. Tais fatalidades desencadearam uma ruptura entre os direitos hu-

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* Socióloga, mestranda em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade deSão Paulo.

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manos e a ordem internacional, revelada através dos esforços frustra-dos em preservar a paz mundial e, ao mesmo tempo, eliminar o trata-mento desumano concedido aos prisioneiros de guerra. O regime hi-tlerista e o nazismo anti-semita trouxeram conseqüências marcantes,como a dizimação de cerca de 12 milhões de civis, dentre eles grandeparcela dos judeus alemães, como resultado da tendência à banaliza-ção da vida, ou seja, da “concepção, explicitamente assumida pelo to-talitarismo, de que os seres humanos são supérfluos e descartáveis”.1

Tal fato apontou para uma nova realidade: a evidência clara de que,naquele momento, o próprio Estado tornou-se o agente ativo da viola-ção dos direitos humanos, por intermédio do extermínio dos indiví-duos por meio da preservação da soberania nacional.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, surgiu a necessidade deimplantação de um regulamento normativo efetivamente direcionadoà proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, res-ponsabilizando em âmbito internacional os Estados em decorrênciade possíveis falhas na proteção dos direitos humanos dos seus cida-dãos. Perante a urgência em evitar a reincidência de eventos seme-lhantes aos decorrentes da Segunda Guerra Mundial surgiu o direitointernacional dos direitos humanos, marcado pela busca do desenvol-vimento do processo de universalização e disseminação da garantiados direitos humanos. Dessa maneira, enquanto na maioria dos seg-mentos do direito e das relações internacionais os Estados buscamatender aos ditos “interesses nacionais”,2 no âmbito internacional dosdireitos humanos, os Estados que aderem às convenções sobre direi-tos humanos não aceitam vantagens claras, assumem obrigações in-ternacionais na defesa dos cidadãos contra os abusos ou omissões doEstado e aceitam a intrusão na soberania nacional, sob o formato deum monitoramento dos casos. Sob esse aspecto, a proteção e a garan-tia dos direitos humanos dos indivíduos asseguram a legitimidade dosgovernantes e, nesse sentido, o consentimento à vontade dos Estadostornou-se critério predominante.

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1 Lafer, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de HannahArent. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 19.2 Alves, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos como tema global. 2. ed. São Paulo: Pers-pectiva, 2003. O caráter peculiar no direito e nas relações internacionais deve-se ao fato de: a)ter como sujeitos do direito não os Estados, mas o homem e a mulher, aqueles denominados porBobbio os “cidadãos do mundo”; b) ao menos inicialmente, a interação dos governos não visa àproteção dos interesses próprios; c) o tratamento internacional da questão dos direitos humanos.

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O processo de universalização dos direitos humanos do períodopós-guerra resultou na constituição e na utilização de marcos como ostribunais de Nuremberg e de Tóquio3 (1945-1949), e na elaboração daCarta das Nações Unidas.4

Mais uma evidência da historicidade dos direitos humanos é acriação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinadaapós a Segunda Guerra Mundial, em 1948. Articulada a partir da reu-nião de delegações5 de vários países em Paris, no período de 1947 e1948, para elaborar o esboço de uma declaração que protegesse os di-reitos de todos os indivíduos do mundo, a Declaração Universal dosDireitos Humanos, adotada em 10 de dezembro de 1948, introduziude forma inovadora a concepção contemporânea de direitos humanos

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3 Trindade, Antônio Augusto Cançado. O acesso direto dos indivíduos à justiça internacional.In: Lima Jr., Jayme Benvenuto (Org.). Manual de direitos humanos internacionais – acessos ao

sistema global e regional de proteção dos direitos humanos. São Paulo: Brasil, 2002. p. 15-22.Tais tribunais constituíram a alternativa encontrada pela ONU para julgar os crimes cometidosdurante a Segunda Guerra Mundial. Como não existiam antes da guerra, foram constituídos ad

hoc, porque foram particularmente criados para julgar ações específicas, como as violaçõesprotagonizadas pelo nazismo alemão em Nuremberg e pelos japoneses em Tóquio. Assim, oTribunal de Nuremberg processou 13 julgamentos, e ao julgar a Alemanha culpada por violaçãode um direito de âmbito internacional, pioneiramente deliberou a condenação de um Estado porviolações ocorridas no interior do seu território. Dessa forma, apesar de terem sido considera-dos como vingança dos países vitoriosos na Segunda Guerra Mundial, os Tribunais de Nurem-berg e de Tóquio foram os precursores da Corte Penal Internacional (Internacional CriminalCourt), instituída em 17 de julho de 1998 pelo Estatuto de Roma, e constituíram um avanço re-presentativo no desenvolvimento do direito internacional (Trindade, 2002, p. 15). Constituídacomo um tribunal de caráter permanente, efetivo e independente, a Corte Penal Internacionalpossui como função elaborar o julgamento sobre pessoas físicas – até mesmo líderes de governoresponsáveis individualmente em escala internacional – por crimes como genocídio, de guerra econtra a humanidade.4 Seiteinfus, Ricardo Antônio Silva. Manual das organizações internacionais. Porto Alegre:Livraria do Advogado, 1997. 352p. A Carta das Nações Unidas foi criada em 25 de junho de1945 pela Organização das Nações Unidas (ONU) logo após a Segunda Guerra Mundial, comoinstrumento para a manutenção da paz. Na época, os Estados Unidos tiveram papel decisivo naestruturação do organismo. A própria expressão “nações unidas” foi usada pela primeira vezpelo presidente norte-americano Franklin Roosevelt, em 1942, referindo-se às 26 nações quelutaram contra o Eixo (Alemanha, Itália e Japão), com o objetivo de discutir questões políticas,diplomáticas e econômicas.5 Após cerca de 90 reuniões, dos 58 Estados-membros da ONU, 48 aprovaram unanimemente aDeclaração Universal, com oito abstenções (Bielo-Rússia, Tchecoslováquia, Polônia, ArábiaSaudita, Ucrânia, União Soviética, África do Sul e Iugoslávia) e duas ausências. Com a Declara-ção Universal, nasceu a idéia da dignidade humana como alicerce da proteção aos direitos hu-manos.

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no plano internacional. Sua aceitação consensual e unânime contri-buiu para a consolidação de uma ética universal e de um novo valorque, a partir de então, passariam a orientar as decisões dos Estados. ADeclaração exprime o processo contínuo e gradual da consciênciahistórica dos indivíduos, em face dos valores tidos como fundamenta-is por volta da segunda metade do século XX, e foi elaborada com oobjetivo de universalizar os direitos dos homens. E isso não sob umponto de vista “genérico e massificante”,6 mas através do reconheci-mento de suas singularidades culturais e de suas características espe-cíficas. O regimento da Declaração Universal asseguraria à totalidadedos indivíduos o direito de não estarem limitados à sujeição diantedas violações aos seus direitos pelo Estado, mas passariam a tomar aposição de cidadãos do mundo ou cidadãos globais. Como forma dereagir diante da insuficiência do Estado em relação à efetividade dagarantia dos direitos do homem, seria instituída uma comunidade in-ternacional capaz de aplicar com maior eficácia a garantia dos direi-tos humanos – o que até então não ocorria no âmbito interno dos Esta-dos – e de afirmar a autoridade da comunidade internacional7 no pla-no externo.

Através da Declaração foram estabelecidas duas categorias de di-reitos: os direitos civis e políticos e os direitos sociais, econômicos eculturais. Esses direitos são classificados como direitos de primeira,segunda e terceira geração, tendo como base a seqüência cronológicaem que passaram a ser constitucionalmente reconhecidos. Os direitosde primeira geração compõem os direitos civis e políticos, que ex-

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6 Trindade, Antônio Augusto Cançado. O legado da Declaração e o futuro da proteção interna-cional dos direitos humanos. In: Amaral Jr., Alberto do (Org.); Perrone-Moisés, Cláudia. O cin-

qüentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. São Paulo: Edusp, 1999. p. 17.7 Dentre as tarefas aplicadas pelas comunidades internacionais, destacam-se três aspectos (Bob-bio, 1992): a promoção, aplicação de um apanhado de ações de implantação da tutela dos direi-tos humanos nos Estados que não possuem uma disciplina específica em relação à defesa dessesdireitos, e promoção do desenvolvimento, tanto numérico quanto qualitativo, nos Estados quejá utilizam a tutela dos direitos referidos anteriormente; o controle, que é aplicado mediante for-mas de a comunidade internacional verificar se as recomendações foram postas em prática e emque grau foram obedecidas – por meio de relatórios dos Estados signatários das convenções queestabeleceram o compromisso de apresentar os tipos de medidas adotadas e de comunicados dedenúncia de um determinado Estado contra outro que não cumpriu as recomendações previstasno pacto internacional; e a garantia, expositora da possibilidade da implantação da garantia in-ternacional dos direitos do homem diante da ineficácia ou até mesmo da ausência da garantianacional.

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pressam o valor da liberdade. Os direitos de segunda geração com-põem os direitos sociais, econômicos e culturais, que expressam o va-lor da liberdade e a ação positiva do Estado. Os direitos de terceira ge-ração, também denominados direitos de titularidade coletiva ou devocação comunitária, traduzem o valor da sociedade e contemplamos sujeitos do direito internacional, ou seja, as nações, povos e indiví-duos, englobando o direito ao desenvolvimento,8 à paz,9 a autodeter-minação dos povos e ao meio ambiente.10 Também “já se apresentamnovas exigências que só poderiam chamar-se de direitos de quarta ge-ração, referentes aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisabiológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético decada indivíduo”.11

O preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos(1948) assegura o princípio da indivisibilidade dos direitos:

“Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta,sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoahumana e na igualdade do homem e da mulher, e que decidiram promover oprogresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla.”

A Declaração segue dedicando os arts. 1o a 21 aos direitos huma-nos civis e políticos e os arts. 22 a 27 aos direitos humanos econômi-cos, sociais e culturais. Dentre os direitos civis e políticos, desta-cam-se os direitos às liberdades – de locomoção, de associação, de reu-nião e de expressão (expressos nos arts. 1o, 2o, 3o, 4o, 13, 18, 19 e 20); àigualdade (arts. 1o e 7o); à vida (art. 3o); à segurança pessoal e à inte-gridade física (arts. 3o e 5o); à personalidade (art. 6o); ao julgamentojusto e ao devido processo legal (arts. 8o, 9o, 10 e 11); ao respeito à pri-vacidade (art. 20); ao asilo (art. 14); à nacionalidade (art. 15); ao casa-mento (art. 16); à propriedade (art. 17); e à livre escolha dos gover-nantes (art. 21). Dentre os direitos econômicos, sociais e culturais,destacam-se o direito à segurança social e ao bem-estar social (art.

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8 Pleiteados pelos países subdesenvolvidos nas negociações, nos encontros entre os países Nor-te/Sul, sem suas discussões sobre uma nova ordem econômica.9 Reivindicados nas discussões sobre desarmamento.10 Largamente discutidos na temática ecológica.11 Bobbio, Norberto. Era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Cam-pus, 1992. p. 6.

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22); o direito ao trabalho, a condições justas de trabalho e igual e justaremuneração para trabalho igual, à proteção contra o desemprego e àorganização sindical para a proteção de seus interesses (art. 23); o di-reito ao repouso e ao lazer, à limitação das horas de trabalho e fériasremuneradas (art. 24); o direito à saúde, à alimentação, ao vestuário, àhabitação, a serviços sociais e de previdência social, à proteção espe-cial à maternidade e à infância (art. 25); o direito à educação, à gratui-dade e obrigatoriedade do ensino fundamental, à educação para pro-mover a paz e a tolerância racial e religiosa (art. 26); e o direito à cul-tura e à proteção histórica e promoção cultural (art. 27).

Essas categorias traduzem o discurso liberal, representado porintermédio dos direitos civis e políticos, e o discurso social da cida-

dania, demonstrado através dos direitos sociais, econômicos e cultu-rais, além de conciliarem o valor da igualdade com o valor da liberda-de.12 Observamos, portanto, que a discussão dos direitos humanosapresentava uma intensa dicotomia. A Guerra Fria evidenciou o cerneda rivalidade e da disputa ideológica entre o liberalismo capitalista,no enfoque aos diretos civis e políticos, e o socialismo, na defesa dosdireitos sociais, econômicos e culturais.

A Assembléia Geral da ONU, em 10 de dezembro de 1966, apro-vou por unanimidade o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polí-

ticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Cul-

turais, com base no fato de que prevaleceu a afirmação das naçõesocidentais de que seria necessária a elaboração de dois pactos diferen-tes, diante da possibilidade dos direitos civis e políticos serem imple-mentados antes dos direitos econômicos, sociais e culturais. Tais pac-tos entraram em vigor em 1976 e, apesar de possuírem um caráter de

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12 Piovesan, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7. ed. São Paulo:Saraiva, 2006. p. 131. Ao realizarmos uma retrospectiva histórica, identificamos uma aguda di-cotomia entre o direito à liberdade e o direito à igualdade. Ao término do século XVII, as Decla-rações de Direitos (a francesa, de 1789, e a americana, de 1776) evidenciavam o discurso libe-ral, reduziam a temática dos direitos humanos aos direitos à liberdade, segurança e propriedadee acrescentavam à luta pela defesa desses direitos a resistência à opressão. A personificação doEstado todo-poderoso (Trindade, 2001, p. 10), inspirada na filosofia de Hegel, teve uma in-fluência nefasta na evolução do direito internacional – a esse ponto, reduzido a um direito inte-restatal – no final do século XIX e no início do século XX. Essa corrente doutrinária resistiu for-temente ao ideal de emancipação do ser humano da tutela absoluta do Estado, e ao reconheci-mento do indivíduo como sujeito do direito internacional. Nesse contexto, a ausência da atua-ção estatal representava a liberdade, por meio do destaque aos direitos civis e políticos.

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dualidade, buscavam reiterar a indivisibilidade e a universalidade dosdireitos humanos, anteriormente mencionados na Declaração Uni-versal, devendo compor, na prática, instrumentos normativos marca-dos pela unicidade e completude.

O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos elabora aenunciação dos direitos à igualdade, às liberdades (de locomoção, deassociação, de reunião e de expressão), ao julgamento justo e ao devi-do processo legal, à vida, à integridade física e à segurança pessoal, àprivacidade, à paz, à família, ao casamento. O Pacto Internacional deDireitos Civis e Políticos também institui o Comitê de Direitos Hu-manos, responsável por monitorar a implementação dos referidos di-reitos, por meio do recebimento e da análise de relatórios periódicosdos Estados e da apresentação de comunicações pelos Estados em re-lação a outros que autorizaram de modo formal tal monitoramento. OPacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

enuncia o direito ao trabalho, à associação em sindicatos, à greve, àprevidência social, à constituição e manutenção da família, à prote-ção especial de crianças e adolescentes contra a exploração econômi-ca e no trabalho, à proteção contra a fome, à cooperação internacio-nal, à saúde física e mental, à educação, ao respeito à cultura de cadapovo e região, ao progresso científico e técnico, à alimentação, aovestuário e à moradia adequada.

Prontamente, após a elaboração desses pactos, de forma dissocia-da e sob a influência dos países ocidentais, os direitos civis e políticosforam classificados como auto-aplicáveis, absolutos e passíveis deserem assegurados em todos os países, ricos ou pobres, mediante apli-cação imediata. Na jornada pela concretização dos direitos previstosno Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, foi instituído umComitê de Direitos Humanos, com a função de monitorar sua aplica-ção e os sistemas de comunicações interestatais e de denúncias indivi-duais necessários para a aplicação imediata dos direitos em questão.No âmbito do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais eCulturais, o sistema de monitoramento somente foi aplicado atravésde uma sistemática de apresentação de relatórios ao secretário-geralda ONU no primeiro ano após o pacto em vigor e, posteriormente, porintermédio da elaboração de pareceres, por parte do Comitê de Direi-tos Econômicos, Sociais e Culturais, após a análise de relatórios pe-

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riódicos elaborados pelos países. A ausência de um sistema de medi-das claramente definidas, em grande parte, dificultou a exigibilidadedesses direitos no cenário internacional, resultando em um entrave degrandes proporções na aplicabilidade dos direitos previstos nessepacto. Os direitos sociais, econômicos e culturais foram caracteriza-dos como programáticos, relativos, recomendados aos Estados e quedemandam uma implementação progressiva, perante a impossibili-dade de uma aplicação em um curto período de tempo. Em outras pa-lavras, os direitos sociais, econômicos e culturais são menos suscetí-veis à ação imediata e dependem de métodos de implementação dire-tamente ligados aos recursos de cada país, assim como do grau de prio-ridade atribuído a eles, em grande parte destituídos de um standard

técnico-econômico, de um modelo mínimo de cooperação econômi-ca internacional e de sua inserção como tema na agenda pública depolíticas nacionais. Ressalte-se que o princípio da indivisibilidadedos direitos humanos, é reconhecido e reforçado no preâmbulo deambos os pactos:

“Reconhecendo que, em conformidade com a Declaração Universal dosDireitos Humanos, o ideal do ser humano livre, no gozo das liberdades civis epolíticas e liberto do temor e da miséria, não pode ser realizado, a menos quese criem as condições que permitam a cada um gozar de seus direitos civis epolíticos, assim como de seus direitos econômicos, sociais e culturais.”

A concepção da proteção aos direitos sociais, econômicos e cul-turais está alicerçada na visão de que o bem-estar e a plena realizaçãodo indivíduo estão relacionados, na maioria das vezes, à concretiza-ção do atendimento às suas necessidades sociais, econômicas e cultu-rais. Em termos gerais, a violação dos direitos sociais, econômicos eculturais é resultado da ausência de suporte e intervenção governa-mental, da ausência de políticas públicas capazes de resolver os pro-blemas de ordem social e da inexistência de pressão internacional emfavor dessa mesma intervenção governamental no processo de trans-formação e desenvolvimento social dos indivíduos; ou seja, o proble-ma da não-efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais é,antes de mais nada, parte de um problema de inexistência de ações eínfima prioridade no plano governamental. A falha na efetividade dosdireitos sociais, econômicos e culturais reduz os direitos civis e políti-

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cos a meras categorias formais e classificatórias; sem os direitos civise políticos, os direitos sociais, econômicos e culturais necessitariamde uma real significação;13 e ao considerarmos a subdivisão dos direi-tos humanos em gerações, é necessário observarmos que uma gera-ção não substitui a outra, mas com ela interage. Sob essa ótica, não épossível dissociar a liberdade da justiça social. Os direitos humanosem sua totalidade compõem um sistema universal, integral, único, in-ter-relacionado, interdependente e indivisível,14 de forma a afastar oconceito de sucessão geracional de direitos.

Instituída em 1986, a Declaração sobre o Direito de Desenvolvi-mento buscou ampliar as ferramentas dispostas em direção aos direi-tos humanos econômicos, sociais e culturais, apesar de, como decla-ração, ser desprovida da capacidade jurídica de obrigatoriedade pe-rante os Estados. Independentemente dessa restrição, a Declaraçãodefine claramente o princípio da indivisibilidade em seu preâmbulo:

“Preocupada com a existência de sérios obstáculos ao desenvolvimen-to, assim como à completa realização dos seres humanos e dos povos, consti-tuídos, inter alia, pela negação dos direitos civis, políticos, econômicos, so-ciais e culturais, e considerando que todos os direitos humanos e as liberda-des fundamentais são indivisíveis e interdependentes, e que, para promovero desenvolvimento, devem ser dadas atenção igual e consideração urgente àimplementação, promoção e proteção dos direitos civis, políticos, econômi-cos, sociais e culturais, e que, por conseguinte, a promoção, o respeito e ogozo de certos direitos humanos e liberdades fundamentais não podem justi-ficar a negação de outros direitos humanos e liberdades fundamentais.”

Mais uma vez em seu preâmbulo, a Declaração caracteriza “de-senvolvimento” como “um processo econômico, social, cultural e po-lítico abrangente”, reafirmando assim a idéia da indivisibilidade,“que visa ao constante incremento do bem-estar de toda a população ede todos os indivíduos com base em sua participação ativa, livre e sig-nificativa no desenvolvimento e na distribuição justa dos benefíciosdaí resultantes”.

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13 Piovesan, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7. ed. São Paulo:Saraiva, 2006. p. 133-136.14 Alves, J. A. Lindgren. Os direitos humanos na pós-modernidade. São Paulo: Perspectiva,2005. 254p.

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Os direitos humanos compreendem, em conformidade com a De-claração Universal dos Direitos Humanos, o reconhecimento da dig-nidade de todos os seres humanos e da igualdade plena. Tais direitoscompreendem o usufruto tanto das liberdades políticas e civis dos se-res humanos, dissociadas do medo e da miséria, como dos direitoseconômicos, sociais e culturais, indispensáveis para permitir ao indi-víduo o livre gozo dos seus direitos. É colocado diante de todos os po-vos o direito de desenvolverem livremente o seu estatuto político esuas vidas nos aspectos econômico, social e cultural, de disporem li-vremente de suas riquezas e recursos naturais, de estarem livres dequalquer violação dos seus direitos – mesmo que tenha sido cometidapor indivíduos agindo no exercício de suas funções oficiais – e dequalquer espécie de discriminação de raça, cor, sexo, voto, pensa-mento, consciência, língua, religião, opinião política ou posição.Além disso, ninguém deve ser submetido à tortura, nem a pena ou aoutros tipos de tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, tam-pouco à escravidão, ao trabalho forçado ou à servidão.

Assim como os direitos civis e políticos, os direitos sociais, eco-nômicos e culturais compreendem igualmente, em conformidadecom a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o reconhecimen-to da dignidade de todos os seres humanos e da igualdade plena destesperante a lei. Também defendem o usufruto das liberdades políticas ecivis dos seres humanos separadamente do medo e da miséria. Os di-reitos humanos fornecem o substrato normativo para a defesa de to-dos os seres humanos, o direito de colocar em prática a sua dignidade,independentemente de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião, pen-samento e demais convicções. A particularidade dos direitos econô-micos, sociais e culturais é a afirmação de que todos os indivíduos ne-cessitam de educação, de uma vida cultural e de um salário compatí-vel com as condições necessárias para um viver digno.

Existem certos direitos que são considerados mais importantesque outros,15 em face do seu significado na história da humanidade, oque possibilitaria a emergência de mecanismos de proteção mais efi-cazes. No entanto, o obstáculo que se destaca na classificação gera-

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15 Lima Jr., Jayme Benvenuto. O caráter expansivo dos direitos humanos na afirmação de sua in-divisibilidade e exigibilidade. In: Lima Jr., Jayme Benvenuto (Org.). Direitos humanos interna-

cionais – avanços e desafios no início do século XXI. Recife: Gajop, 2001. p. 76.

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cional dos direitos humanos reside na dificuldade do desenvolvimen-to de distinções objetivas desses direitos. Dentre os direitos de nature-za física, o direito à vida, por exemplo, além de ocupar espaço priori-tário na esfera natural e jurídica,16 pode ser dimensionado como per-tencente à geração dos direitos civis e políticos. Verificado sob o pon-to de vista da sua ampla dimensão, o direito à vida é passível de serigualmente caracterizado pela capacidade de abranger a geração dosdireitos sociais, econômicos e sociais, visto que sua abrangência in-clui semelhantemente o direito a uma vida digna.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos é a representaçãoda concepção contemporânea dos direitos humanos, personificadanos conceitos de universalidade e de indivisibilidade.17 Universalida-de, no sentido de percebermos a urgência pela extensão mundial dosdireitos, e indivisibilidade, ao nos colocarmos em face da questão deque a garantia dos direitos civis e políticos é caracterizada como crité-rio condicional para efetivar a defesa dos direitos sociais, econômicose culturais. Além da busca da descoberta sobre quais e quantos são osdireitos dos homens, qual a sua natureza e fundamento, ou até mesmode saber se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos,é necessário que se descubra, a partir da cidadania ativa, o papel dosatores sociais e dos mecanismos políticos de ação que exerçam a in-fluência necessária para que os direitos previstos na lei sejam efetiva-mente garantidos e executados.18

Quanto à concepção acerca da indivisibilidade dos direitos hu-manos,19 a Declaração Universal dos Direitos Humanos defende aomesmo tempo a proteção aos direitos civis e políticos (arts. 3o a 21) eaos direitos humanos econômicos, sociais e culturais (arts. 22 a 28). ADeclaração Universal reafirma a importância dos direitos humanoscomo universais e indivisíveis. Dessa maneira, se não há acesso ao di-

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16 Bittar, Carlos Alberto. Teoria geral do direito civil. Rio de Janeiro: Forense Universitária,1991. p. 246-248.17 Piovesan, Flávia. Direitos humanos globais, justiça internacional e o Brasil. In: Amaral Jr.,Alberto do; Perrone-Moisés, Cláudia (Org.). O cinqüentenário da Declaração Universal dos

Direitos do Homem. São Paulo: Edusp, 1999. p. 240.18 Bobbio, Norberto. Era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Cam-pus, 1992. p. 25.19 Hidaka, Leonardo Jun Ferreira. Introdução ao direito internacional dos direitos humanos. In:Lima Jr., Jayme Benvenuto (Org.). Manual de direitos humanos internacionais: acesso aos sis-temas global e regional de proteção aos direitos humanos. São Paulo: Loyola, 2002. p. 8.

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reito à liberdade, conseqüentemente, o direito à igualdade perde o seusignificado.

Formalmente, com base nos instrumentos internacionais, os direi-tos econômicos, sociais e culturais estão descritos na legislação posi-tiva brasileira, em especial na Constituição brasileira de 1988, consi-derada o marco jurídico no desenvolvimento do processo democráti-co no País por deter, em sua inscrição, o princípio fundamental daprevalência dos direitos humanos. Termos descritos como “os valo-res sociais do trabalho” e o direcionamento do Estado brasileiro como“destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, aliberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade,a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralistae sem preconceitos (...)”, no Preâmbulo da Constituição brasileira, e“solidariedade”, “desenvolvimento nacional” “redução das desigual-dades sociais e regionais” e “erradicação da pobreza e da marginali-zação”, relatados como objetivos fundamentais da República Federa-tiva do Brasil (art. 3o), são as claras evidências da adoção do princípioda indivisibilidade entre os direitos civis e políticos e os direitos so-ciais, econômicos e culturais.

Por outro lado, a realidade brasileira demonstra que uma parcelaconsiderável de indivíduos encontra-se em grave situação de pobrezae exclusão social, sem condições dignas de moradia e sem acesso àeducação, ou seja, sem os recursos sociais, econômicos e institucio-nais que venham a proporcionar o seu ajuste na sociedade, como ho-mens livres. Dentre vários fatores que podem ser classificados, essesexercem influência fundamental nas oportunidades que serão apre-sentadas a esses indivíduos. E esse processo é decisivo sobre as con-dições de sobrevivência futura de toda uma geração, pois a destitui-ção de certos direitos torna-se determinante para o futuro de um indi-víduo, para a sua dignidade e para sua chance de sobrevida. A maiorparcela das injustiças sociais presentes em nossa sociedade atual pos-sui raiz nos setores pobres. As condições de risco impostas à convi-vência de certos indivíduos em condições de pobreza ou miséria ex-trema revelam o fato de que, à medida que os mesmos são destituídosde recursos de desenvolvimento financeiro, educacional e da qualida-de de vida em geral, suas capacidades e perspectivas de futuro são alie-nadas. Como em um processo de desenvolvimento cíclico, cada vez

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que uma necessidade deixa de ser atendida, é proporcionalmente ex-tinta a possibilidade de os indivíduos desenvolverem suas capacida-des, caso esse que caracteriza a violação dos direitos desses indivíduos,não apenas dos civis e políticos, mas também dos sociais, econômicose culturais.

A pobreza tem sido um fenômeno herdado, caracterizado pelofato de que os pobres reproduzem os seus problemas e a pobreza dosseus antecessores. A inexistência de mecanismos de mobilidade so-cial e de significativa distribuição de renda é um dos fatores mais im-portantes para a reprodução do estigma da pobreza. O trabalho malremunerado, precário e instável tem sido o componente preponderan-te como elemento causal e mantenedor da pobreza. Um outro compo-nente característico da pobreza é o conformismo. No campo do mer-cado do trabalho, o maior problema reside na existência única deoportunidades de subemprego, subutilização e sub-remuneração damão-de-obra.

A divisão entre os direitos civis e políticos e os direitos econômi-cos, sociais e culturais desencadeia uma série de falhas na qualidade devida e nas possibilidades de desenvolvimento do indivíduo, compro-metendo até mesmo sua integridade física e sua sobrevivência futura,no sentido de que um indivíduo que é destituído de condições mínimasde sobrevivência perde o direito de desfrutar de um viver digno e atémesmo corre o risco de, ao ser tolhido, não por sua condição de vida,mas pela ausência dela, perder sua própria perspectiva de vida futura. Amaioria dos problemas referentes à defesa dos direitos humanos dos in-divíduos está, em seu âmago, associada à questão da indivisibilidadedos direitos. Muitas vezes, no momento em que um indivíduo é destituí-do de seus direitos econômicos, sociais e culturais, surgem como con-seqüências situações que põem em risco sua liberdade individual, re-presentada pelos direitos civis e políticos. E é irrefutável a evidência deque uma pessoa sem qualquer perspectiva e possibilidade de desenvol-vimento futuro há muito já perdeu o principal de seus direitos funda-mentais e individuais: o próprio direito à vida.

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Page 89: Livro  Direitos Humanos Século XXI

II.2. Cosmopolitismo e direitos humanos

Eduardo C. B. Bittar*

Resumo: Trata-se de discutir a relevância do discurso dos direitoshumanos na constituição de uma globalização em que esteja assegu-rado um encontro multicultural entre os povos, para além dos estrei-tos limites da mera globalização econômica, e de refletir a respeitodas questões que gravitam na órbita de uma cultura cosmopolita dedireitos.

A transição do Estado nacional (Estado de direito europeu mo-derno ocidental) para um Estado pós-nacional, em um mundo de fran-cas transformações pós-modernas, importa na análise dos próprioselementos formadores do Estado, quais sejam, território (1), povo (2),soberania (3) e governo autônomo (4). Assim, podem-se indicar sen-síveis mudanças, no mínimo, nos seguintes aspectos examinados aseguir:

(1) a fragmentação das fronteiras territoriais e de barreiras territo-riais limitativas do espaço de circulação de populações nacionais,através de mecanismos de integração, de blocos econômicos, da eli-minação de barreiras financeiras, tributárias e alfandegárias para acirculação de bens e produtos, preparando-se caminho para uma trocaintensa (econômica, em primeiro plano, mas lingüística, cultural, po-

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* Livre-docente e doutor; professor associado do Departamento de Filosofia e Teoria Geral doDireito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP); professor e pesquisadordo Programa de Mestrado em Direitos Humanos do UniFIEO; presidente da Associação Nacio-nal de Direitos Humanos (ANDHEP).

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lítica e social, em um segundo plano) desintegradora dos critérios geo-políticos que definiam o afastamento das nações por limites fictícios etraçados jurídico-territoriais;

(2) a compreensão de uma nova concepção de povo-cidadão,com a própria necessidade de criação de novos nichos de regulamen-tação do estatuto do cidadão do mundo (weltbürger, do pensamentohabermasiano), permitindo a transformação da compreensão de atre-lamento de acesso a direitos enquanto acesso a direitos pela fixaçãoterritorial ou pela nacionalidade, ou, como decorre de um us sangui-

nis, em direção a concepções transnacionais de cidadania e base hu-manitária de fixação de direitos;

(3) desaparecimento de uma concepção estanque de soberania,como modelo de atuação com absolutidade da capacidade de autode-terminação do Estado (de criar regras, executar regras e julgar confor-me regras, independentemente da intervenção de forças externas),seja pela incapacidade dos Estados de se isolarem das políticas eco-nômicas internacionais (FMI, BIRD...), seja pela profunda e perma-nente interferência da globalização no cenário político interno dosEstados, seja pela quebra da concepção de soberania-isolamen-to-competição-proteção-nacionalismo em direção a uma concepçãointegração-cooperação-intecâmbio, seja pela existência de um núme-ro suficiente de mecanismos internacionais, inclusive e sobretudo dedireitos humanos, que instrumentalizam a atuação de forças interna-cionais para debelar atentados contra direitos humanos, ainda queocorram dentro de um Estado nacional (Huanda, Kosovo, Afeganis-tão, Iraque...);

(4) decadência da capacidade de gerir o Estado com plena auto-nomia das políticas internacionais, especialmente no campo econô-mico, que definem a atuação de um governo autônomo, comprome-tendo os tradicionais mecanismos de gestão pública e de metas políti-cas governamentais, uma vez que os Estados nacionais se vêem viti-mizados por políticas externo-estrangeiras definidoras de metas, in-vestimentos, indicadores, finalidades, quantificadores, resultados,que cerceiam a livre constituição das políticas públicas por regrasvindas de fora, e não de dentro.

Assim, o que se pode perceber é a transformação dos modos de tro-ca contemporâneos, com efeitos diretos no modelo institucional que

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orienta a formatação da idéia de Estado nacional.1 O processo clara-mente delineado hodiernamente é o de um adiantado estágio de transi-ção entre a dimensão do Estado nacional em direção ao Estadopós-nacional, estágio de passagem da idéia de soberania para a idéia deblocos de interesse, estágio de germinação da cultura cosmopolita emdireção ao ecumenismo (idealizado pelos estóicos, disseminados peloscristão-católicos, praticado pelos adeptos da maçonaria oitocentista)2

mais completo e ao respeito a todas as identidades, estágio médio entreo direito internacional e o direito cosmopolita, na concepção de Haber-mas.3 Trata-se de um momento peculiar para os Estados, momento detransição paradigmática, num contexto pós-westfaliano, em que se co-meça a pensar com mais abrangência e seriedade o projeto da cidadaniacosmopolita, como afirma Boaventura:

“Haverá uma alternativa contra-hegemônica a esta leitura da ordempós-westfaliana? Em meu entender, essa alternativa existe e parte de umanova combinação estratégica entre uma ruptura radical com o estatocentris-mo e uma reconstrução do papel dos Estados-nação. A reivindicação do in-ternacionalismo solidário tem de ser guiada pelo ethos de uma democraciacosmopolita. A metáfora do cidadão-peregrino, empregada por RichardFalk (1995:95; 1999:153), talvez a melhor antecipação dessa reivindicação.Ela reforça a necessidade de redefinir a nossa noção de cidadania, dando pri-mazia ao alcance indiscriminado da responsabilidade partilhada sobre a au-

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1 “Eurocentrismo, universalidade, pretensão de superioridade, racismo antropológico em dire-ção às culturas primitivas etc.: ‘Nossa outra preocupação política, ao optarmos por chamarmosde pós-modernos, é o processo pelo qual a Europa vai aos poucos se tornando um museu. O pro-jeto chamado ‘Europa’ sempre foi a cultura hermenêutica par excellence. Esse caráter herme-nêutico inerente criou uma tensão interna peculiar no projeto desde tempos imemoriais. Por ou-tro lado, a ‘Europa’ sempre foi mais expansiva e expressamente universalista que outros proje-tos culturais. Os europeus não apenas entendiam sua cultura como superior às outras, e essas ou-tras, estranhas, como inferiores a eles. Também achavam que a ‘verdade’ da cultura européia éna mesma medida a verdade (e o telos) ainda oculta de outras culturas, mas que ainda não chega-ra a hora de as últimas compreenderem isso. Por outro lado, os europeus vinham sujeitando re-gularmente sua própria cultura a indagações sobre suas proposições universais, para denun-ciá-las como outras tantas proposições particulares com falsa pretensão a universalidade” (Hel-ler, Agnes; Fehér, Ferenc. A condição política pós moderna, 1998. p. 12-13).2 Maltez. Curso de relações internacionais, 2002. p. 102-115.3 Falta ao direito internacional um órgão executivo que dê sustentação à Declaração Universal.Essa preocupação aparece em Habermas. (A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002.p. 205). Quanto à transição das formas de direito: “A situação mundial da atualidade pode serentendida, na melhor das hipóteses, como transição do direito internacional ao direito cosmopo-lita” (Habermas. A Ibidem. p. 206).

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tonomia individual e a uma contextualizada ética de cuidado (stewardship

ethics) sobre uma ética de princípios abstratos.”4

Ainda mais, isso pode se traduzir em uma outra dimensão: em umprocesso de crescente globalização, como pensar os desafios dela de-correntes, na medida em que a interseção de culturas, na pós-moder-nidade, torna-se um processo inevitável? Agora que o século XX ter-minou, vale pensar:

“Agora que o século terminou, podemos arriscar-nos a uma avaliação.Foi um século que se caracterizou, como previra ou preconizara Nietzsche,pelo fim de todos os valores, ou pela ‘transmutação dos valores’. Num pro-cesso que, naturalmente, já se iniciara muito antes, o século XX viu prevale-cer a Realpolitik, a razão pragmática, a adoção da máxima o fim justifica osmeios, e quaisquer meios – genocídios, câmaras de gás, bombardeio de ci-vis, bombas atômicas, tortura etc. –, e uma subjugação quase completa daspopulações à vontade dos governantes. Mesmo nas chamadas democraciasocidentais, os mecanismos de tomada de decisão são viciados pelo mecanis-mo de escolha, pelo poder do dinheiro nas eleições, pelas estruturas burocrá-ticas e hierárquicas permanentes, pela mídia e assim por diante e, dessemodo, os governantes, na prática, e as elites que os suportam, são quem real-mente tomam as decisões importantes”5

O que pensar após o final do século XX? No albor dos processospós-modernos de relativização de paradigmas anteriores, o que pen-sar como paradigma para o futuro? Quais as possibilidades no campodos direitos humanos no século XXI, questão essa que já se formulouanteriormente aqui e que deve ganhar maior tônus quando se trata dediscutir como direitos humanos poderão adentrar a esfera cosmopoli-ta e se transformarem em parâmetros universais?6

Em um momento de transição do Estado nacional para o Estadopós-nacional, na linguagem habermasiana, quais os rumos a seremtomados nas relações internacionais? Em que condição os Estadosnacionais, como o Brasil, adentrarão o âmbito das discussões de cará-

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4 Santos. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural, 2003.p. 518.5 Rouanet. Ralws e o enigma da justiça, 2002. p. 11.6 Esse mesmo tom lânguido aparece na Conclusão do livro A afirmação histórica dos direitos

humanos (1999, p. 403-414), de Fábio Konder Comparato.

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ter internacional, valorizados como atores em igualdade, ou de acor-do com a condição econômica, ou seja, como desenvolvidos e subde-senvolvidos (ou, com o eufemismo, como “países em vias de desen-volvimento” – pays en voies du développement)?7 É possível univer-salizar paradigmas por vezes ocidentais e regionais de direitos huma-nos?8 Como não adentrar o universo interno das culturas sem rompercom seus paradigmas e dogmas tradicionais?9 Como respeitar cultu-ras e implantar desenvolvimento, democracia e liberdades funda-mentais? Para o que têm servido os direitos humanos, no processo deexpansão do contato entre as nações e os povos?10 Qual tem sido o di-recionamento das políticas internacionais nos últimos anos? Em

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7 Com outras palavras, essa mesma pergunta é feita por Habermas, identificável neste trecho:“Independentemente do pano de fundo cultural, todos os participantes justamente sabem intui-tivamente muito bem que um consenso baseado na convicção não pode se concretizar enquantonão existirem relações simétricas entre os participantes da comunicação – relações de reconhe-cimento mútuo, de transposição recíproca das atividades, de disposição esperada de ambos paraobservar a própria tradição também com o olhar de um estrangeiro, de aprender um com outroetc. Partindo desse princípio, podem-se criticar não apenas leituras parciais, interpretações ten-denciosas e aplicações estreitas dos direitos humanos, mas também aquelas instrumentaliza-ções inescrupulosas dos direitos humanos voltadas para um encobrimento universalizante deinteresses particulares que induzem à falsa suposição de que o sentido dos direitos humanos seesgota no seu abuso” (Habermas. A constelação pós-nacional: ensaios políticos, 2001. p.162-163).8 Encontra-se no texto de Habermas a mesma perplexidade aqui textualizada: “Portanto, existeuma tensão peculiar entre o sentido universal dos direitos humanos e as condições locais da suaefetivação: eles devem valer de modo ilimitado para todas as pessoas – mas como pode-se atin-gir isso?” (Habermas. Ibidem. p. 150).9 “De resto, o pluralismo cosmopolita desabrocha mesmo no interior daquelas sociedades deter-minadas ainda por tradições fortes” (Habermas. Ibidem. p. 161).10 A resposta é clara, e quem nos dá é Boaventura de Souza Santos: “Os direitos humanos são odesafio mais coerente e poderoso à ideologia da globalização. A globalização é orientada para oindivíduo, glorifica a cobiça e os incentivos aos indivíduos, ao mesmo tempo que trata as pessoascomo mercadorias (trabalho) ou como consumidores, que é guiada pelo lucro, fragmenta e des-trói comunidades, apropria-se de bens comuns, produz vulnerabilidade e insegurança sem valo-res comuns. A globalização baseia-se em monopólios e hierarquias. Por outro lado, o regime dedireitos humanos enfatiza a democracia e a participação, a solidariedade, a ação coletiva e a res-ponsabilidade, e procura assegurar as necessidades básicas, a dignidade, o reconhecimento so-cial e a segurança. Oferece uma visão alternativa da globalização, em que a justiça social e soli-dariedade são enfatizadas. Na realidade, os direitos humanos são por vezes as únicas armas àdisposição dos fracos e das vítimas de diferentes tipos de opressão e violência. Porém, na suaversão hegemônica, o regime de direitos humanos é um instrumento de homogeneização e, porisso, tende a suprimir culturas que não sejam dominantes na emergência da teoria moderna dedireitos; existe, no entanto, a possibilidade de ser estendido a outros valores e a outras culturas.O quadro dos direitos humanos também oferece opções ao individualismo que é contrário aos

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suma, seria o projeto cosmopolita pós-nacional, apesar de inevitável,possível?

Essa aproximação de culturas se fará na medida das abruptas di-ferenças e intolerâncias, marcadamente fruto de uma política de inte-resses econômicos na disputa globalizada por espaços geomercantis,ou mesmo se fará na medida da compreensão e da aproximação tole-rante, cumprindo-se uma expectativa de federalização cosmopolitados interesses globais comuns?11 Neste momento, a pergunta de Ha-bermas é:

“Para as nações que levaram em 1914 o mundo a uma guerra tecnologi-camente sem limites e para os povos que foram confrontados depois de 1939com o crime em massa [Massenverbrechen] de uma luta de extermínio ideolo-gicamente para além dos limites, o ano de 1945 marca um ponto de virada –uma virada para o melhor, para a domesticação daquelas forças bárbaras queirromperam na Alemanha do solo da civilização mesma. Será que de fatoaprendemos algo a partir das catástrofes da primeira metade do século?”12

A partir desse questionamento, pode-se começar a ensaiar uma li-nha de respostas aos desafios trazidos neste tópico. Uma linha de saí-da para a humanidade – truncada, de um lado, pela inevitabilidade dainterseção de mercados e culturas, e, de outro, pelo imperativo hobbe-siano da beligerância que assalta a realidade internacional contempo-rânea – repousaria na idéia habermasiana, também discutida porRawls (Law of peoples), da intensificação do diálogo internacional,veio esse que se tornaria possível a partir do momento em que a sofis-ticação do aparelhamento das relações internacionais se desse por or-

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valores comunitários, um tipo de cosmopolitismo, de liberdade de associação para comunida-des que permite a estas escolher, dentro de certos limites, ‘retirar-se’ parcialmente da culturadominante e desenvolver a sua própria cultura, procurar o reconhecimento da sua identidade eobjetivos coletivos” (Santos. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multi-cultural, 2003. p. 565-566).11 Essa é a mesma preocupação externada também por Habermas, que vê na ascensão do merca-do pós-nacional o único interesse de articulação real dos Estados entre si, pouco movidos pelaidéia de solidariedade, quando afirma: “E quão mais difícil que a unificação dos Estados euro-peus em uma união política é a concordância quanto ao projeto de uma ordem econômica mun-dial que não se esgote na criação e institucionalização jurídica de mercados, mas sim que intro-duza elementos de uma vontade política mundial e que irá garantir uma domesticação das con-seqüências sociais secundária do trânsito comercial globalizado” (Habermas. A constelação

pós-nacional: ensaios políticos, 2001. p. 71).12 Habermas. Ibidem. p. 61.

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ganismos comuns e coletivos que conferissem representatividadesglobais e praticassem justiça cosmopolita.13 Somando-se a essa idéiahabermasiana de intensificação dos modos de interação dialogais noplano mundial vem aquela outra de Boaventura de Souza Santos, deque o cosmopolitismo se fará com a agregação de um modus de respei-to multicultural,14 habilidade essa a ser desenvolvida para que o pro-cesso de globalização realmente represente um passo substancial emdireção à libertação e ao cosmopolistismo. Diálogo e multiculturalis-mo são, portanto, dois ingredientes necessários para que a globaliza-ção ganhe um sentido valorativo aceitável no século XXI.

E, para isso, certamente a via dos dualismos, das dicotomias tradi-cionais, as concepções opostas e marginalizantes não asseguram resul-tados. Essas diferenças tradicionais, e modernas, se expressam, sobre-tudo, pelos seguintes aspectos: ocidentais versus orientais; desenvolvi-dos versus subdesenvolvidos; norte versus sul; individualismo versus

coletivismo; capitalismo versus socialismo; liberalismo versus estatis-mo; agroeconomia versus tecnoeconomia etc. Enquanto o afluxo dosvalores que medram no cenário das relações internacionais continuar

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13 O que, sem dúvida, esbarra em certos problemas de legitimação, fundamentação e prática dauniversalização dos direitos humanos, pois os extremos continuam a brigar por valores radical-mente opostos: “Essas reservas com relação ao individualismo europeu são freqüentementemanifestadas não como intenção normativa, mas antes estratégica. A intenção estratégica podeser reconhecida desde que os argumentos encontrem-se ligados à legitimação política do autori-tarismo mais ou menos “brando” das ditaduras que promovem o desenvolvimento. Isso valeparticularmente para a polêmica em torno da precedência dos direitos humanos. Os governos deCingapura, Malásia, Taiwan e China costumam justificar as suas violações dos direitos funda-mentais e direitos civis políticos – denunciadas pelos países ocidentais – com uma “precedên-cia” de direitos fundamentais sociais e culturais. Eles vêem-se autorizados com base no “direitoao desenvolvimento econômico” – compreendido evidentemente em termos coletivos – a “sus-pender” a concretização do direito liberal à liberdade e do direito político à participação até opaís alcançar um patamar de desenvolvimento econômico que permita saciar de modo igualitá-rio as necessidades materiais básicas da população. Para a população carente, a igualdade de di-reitos e a liberdade de opinião justamente não seriam tão relevantes quanto a perspectiva de umpadrão de vida melhor” (Habermas. Ibidem. p. 156-157).14 Sobre a expressão multiculturalismo: “A expressão multiculturalismo designa, originalmen-te, a coexistência de formas culturais ou de grupos caracterizados por culturas diferentes no seioda sociedade ‘moderna’. Rapidamente, contudo, o termo se tornou um modo de descrever as di-ferenças culturais em um contexto transnacional e global. Existem diferentes noções de multi-culturalismo, nem todas de sentido emancipatório. O termo apresenta as mesmas dificuldades eos mesmos potenciais do conceito de ‘cultura’, um conceito central das humanidades e das ciên-cias sociais e que, nas últimas décadas, se tornou um terreno explícito de lutas políticas” (San-tos. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural, 2003. p. 26).

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situado no âmbito das diferenças, certamente as oposições serão maio-res que os motivos de integração, o que trará a desagregação, a discri-minação, a exploração, entre outros fatores de exclusão.

“Por isso, deve-se livrar-se a compreensão dos direitos humanos do far-do metafísico da suposição de um indivíduo existente antes de qualquer so-cialização e que como que vem ao mundo com direitos naturais. Juntamentecom essa tese ‘ocidental’ é descartada também a necessidade de uma antíte-se ‘oriental’ segundo a qual as reivindicações da comunidade merecem pre-cedência diante das reivindicações de direito individuais. A alternativa ‘in-dividualista’ versus ‘coletivista’ torna-se vazia quando se incorpora aos con-ceitos fundamentais do direito a unidade dos processos opostos de individua-ção e de socialização. Porque também as pessoas jurídicas individuais só sãoindividuadas no caminho da socialização, a integridade da pessoa particularsó pode ser protegida juntamente com acesso livre àquelas relações interpes-soais e às tradições culturais nas quais ela pode manter sua identidade. O in-dividualismo compreendido de modo correto permanece incompleto semessa dose de ‘comunitarismo’.”15

Ora, não haverá de ser a via da guerra, da dominação, da exclu-são, da beligerância, da dominação, da exploração ainda uma vez avingar como modelo de “integração” entre os povos a partir da globa-lização. Se assim for, trata-se de um processo sem legitimidade inter-nacional, sem identidade cultural, bem como sem respeito a culturaslocais. A globalização, para ser aceitável, deverá tornar-se um conceitoporoso para valores de inclusão social, o que somente permitirá con-ferir legitimidade aos direitos humanos se sob suas investidas não es-tiverem mascarados interesses escusos de nações desenvolvidas.Com Boaventura, pode-se traçar a preocupação central da formataçãodos direitos humanos em um movimento aceitável e tolerável do pon-to de vista cosmopolita:

“Nesta ordem de idéias, o meu objetivo é desenvolver um quadro analí-tico capaz de reforçar o potencial da política dos direitos humanos no duplocontexto da globalização, por um lado, da fragmentação cultural e da políti-ca de identidade, por outro. Pretendo apontar as condições que permitemconferir aos direitos humanos tanto o caráter global quanto a legitimidadelocal, para fundar uma política progressiva de direitos humanos – direitoshumanos concebidos como a energia e a linguagem de esferas públicas lo-

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15 Habermas. A constelação pós-nacional: ensaios políticos, 2001. p. 158-159.

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cais, nacionais e transnacionais atuando em rede para garantir novas e maisintensas formas de inclusão social”16

Nem tanto aos ocidentais, nem tanto aos orientais. Não se trata deuma terceira via em políticas internacionais, mas de se perceber quenenhum dos extremos na concepção da política permitirá a agregaçãodos valores da comunidade internacional, e muito menos a integraçãodas concepções de direitos humanos. Trata-se também de se perceberque a questão dos direitos humanos não é um legado ocidental a serimposto a povos orientais,17 e muito menos um legado do Norte a serimposto ao Sul.18 Com clareza é que se pode dizer que nem o extre-mismo individualista europeu e americano, nem o extremismo funda-mentalista muçulmano e asiático colaboram com uma visão de mun-do que não dê origem a maiores desentendimentos étnicos, religiosos,políticos, sociais e econômicos:19

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16 Santos. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural, 2003. p. 432.17 Na leitura habermasiana: “No que se segue, assumirei o papel apologético de um participanteocidental na discussão [Diskurs] intercultural sobre os direitos humanos e, nesse contexto, tratareida hipótese segundo a qual aquele modelo deve menos ao fundo cultural específico da civilizaçãoocidental do que à tentativa de se responder aos desafios específicos de uma modernidade socialentrementes globalmente propagada. Essas condições dadas da modernidade, sejam avaliadas demodo que forem, constituem hoje um fato [Faktum] para nós que não nos deixa nenhuma escolhae, por isso, não necessita (ou não somos capazes) de uma justificação retrospectiva. Na disputaquanto à interpretação adequada dos direitos humanos, não se trata de se desejar a modern condi-

tion, mas sim de uma interpretação dos direitos humanos que seja justa com o mundo modernotambém do ponto de vista de outras culturas. A controvérsia gira sobretudo em torno do indivi-dualismo e do caráter secular dos direitos humanos que se encontraram centrados no conceito deautonomia” (Habermas. A constelação pós-nacional: ensaios políticos, 2001. p. 153).18 “Imperialismo cultural e epistemicídio são parte da trajetória histórica da modernidade oci-dental. Após séculos de trocas culturais desiguais, será justo tratar todas as culturas de formaigual? Será necessário tornar impronunciável algumas aspirações da cultura ocidental para darespaço à pronunciabilidade de outras aspirações de outras culturas? Paradoxalmente – e contra-riando o discurso hegemônico – é precisamente no campo dos direitos humanos que a culturaocidental tem de aprender com o Sul para que a falsa universalidade atribuída aos direitos huma-nos no contexto imperial seja convertida em uma nova universalidade, construída a partir debaixo, o cosmopolitismo” (Santos. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismomulticultural, 2003. p. 452).19 Com fartos exemplos (curdos, chechenos, minorias africanas...) se poderia ilustrar o quantoisso tem se transformado em rotina na cultura contemporânea: “Nas nossas sociedades debem-estar social intensificam-se reações etnocêntricas da população local contra tudo o que éestrangeiro – ódio e violência contra estrangeiros, contra adeptos de outros credos ou pessoas decor, mas também contra grupos marginais e contra os portadores de deficiências” (Habermas. A

constelação pós-nacional: ensaios políticos, 2001. p. 92).

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“Não apenas com o aspecto da autonomia – o atalho individualista dedireitos subjetivos – a concepção européia dos direitos humanos ofereceuma superfície vulnerável aos porta-vozes de outras culturas, mas, do mes-mo modo, com o outro aspecto – a secularização de um domínio político des-conectado de imagens de mundo religiosas e cosmológicas. Do ponto de vis-ta de um Islã, do cristianismo ou do judaísmo, compreendidos de modo fun-damentalista, a própria aspiração à verdade é absoluta também no sentido deque, em caso de necessidade, ela deve poder ser imposta por meio da força eviolência políticas. Essa concepção possui conseqüências para o caráter ex-clusivista da comunidade; legitimações religiosas ou segundo determinadasvisões de mundo desse gênero são incompatíveis com a inclusão igualitáriade adeptos de outros credos”20

As imposições unilaterais de certos Estados, com interesses béli-cos, territoriais ou econômicos, seriam bloqueadas por forças comunsdos Estados pertencentes à comunidade internacional organizada, de-tendo-se o processo de constituição da diferença econômico-tecno-lógica como único mecanismo de imposição internacional. Em maisde uma oportunidade Habermas já afirmou que a experiência da ONUtem-se demonstrado incapaz de reproduzir as reais necessidades dacomunidade internacional,21 servindo como “escudo para o protecio-nismo e o arbítrio de certas potências”,22 ou, ainda, para a proteção

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20 Idem. Ibidem. p. 160.21 As diferenças de legitimidade, poder de voto, critérios de participação, não-extensividade atodos os países etc. criam impasses insuperáveis no que tange à representatividade da ONU:“Hoje a ONU reúne Estados-membros que apresentam diferenças extremas no que toca ao nú-mero e à densidade populacional, bem como ao status de legitimação e ao nível de desenvolvi-mento. Na Assembléia Geral, cada Estado dispõe de um voto, enquanto a composição do Con-selho de Segurança e o direito ao voto dos seus membros levam em conta as relações de poderefetivas. O regulamento obriga os governos nacionais a respeitar os direitos humanos, a sobera-nia recíproca de cada um, bem como a abdicar ao uso da violência militar. Com a criminalizaçãodas guerras ofensivas e dos crimes contra a humanidade, os sujeitos do direito internacional per-deram a suposição geral da inocência. É verdade que as Nações Unidas não dispõem nem deuma Corte de justiça internacional (que, de resto, acabou de ser encaminhada em Roma) nem detropas próprias. Mas podem impor sanções e conferir mandatos para a execução de intervençõeshumanitárias” (Idem. Ibidem, 2001. p. 134).22 A expressão é de inspiração habermasiana: “Pois a cada vez, a reivindicação igualitária à vali-dade e conclusão universal também serviu para encobrir o tratamento desigual fático dos tacita-mente excluídos. Essa observação despertou a suspeita de que os direitos humanos poderiam serabsorvidos por essa função ideológica. Eles não teriam servido sempre como o escudo de umafalsa universalidade – de uma humanidade imaginária, por detrás da qual um Ocidente impe-rialista podia esconder a sua particularidade e o seu interesse próprio?” (Idem. Ibidem, 2001.p. 151).

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de certas práticas ilícitas de Estados que se apresentam diplomáticaou economicamente superiores à própria ordem normativa interna-cional. Ainda assim não custa renovar a expressão habermasiana arespeito:

“Isso não é o suficiente para a institucionalização de procedimentos,práticas e regulamentações relevantes em termos da economia mundial queiriam permitir a solução de problemas globais. Uma regulação da sociedademundial desencadeada exige políticas que distribuam os prejuízos. Isso sóserá possível com base em uma solidariedade cosmopolita até o momentoinexistente que, sem dúvida, terá uma qualidade de ligação mais fraca que asolidariedade civil surgida no interior dos Estados nacionais. Objetivamen-te, a população mundial uniu-se já há algum tempo de modo involuntário emuma comunidade de risco. Daí não parecer tão implausível a expectativa deque sob essa pressão ocorra a continuação daquela grande virada abstrata,historicamente cheia de conseqüências, que fez a consciência local e dinásti-ca ser sucedida por uma nacional e democrática.”23

Estaria a política internacional preparada para adotar formas dejustiça de igualização dos Estados, em termos de direitos e em termosde concessão de benefícios materiais, que é o que efetivamente inte-ressa a todos os povos? Estariam os órgãos de cúpula das políticas in-ternacionais preparados para os desafios daí gerados? Estariam asculturas preparadas para um convívio, ainda considerado estranho,decorrente da circulação por todas as partes de cidadãos do mundo(Welbürger)?24 Seria justo que os direitos humanos se transformas-sem em recurso ocidental de uniformização da mundialidade, a partirde seus critérios e formas culturais?25 Estariam as organizações inter-

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23 Idem. Ibidem. p. 73-74.24 Para Habermas, não se trata mais de pensar se essas culturas, ocidental e oriental, conseguemconviver, mas de se saber se a política internacional está preparada para enfrentar esses desa-fios: “Do ponto de vista dos países asiáticos, a questão não é se os direitos humanos como partede uma ordem jurídica individualista são conciliáveis com tradições culturais próprias, mas simse as formas tradicionais de integração política e social podem ser adaptadas aos imperativos di-ficilmente recusáveis de uma modernização aceita por inteira. Ou podem ser afirmadas contraela” (Idem. Ibidem. p. 156-157).25 Essa questão é aqui tematizada em Boaventura: “A hermenêutica diatópica baseia-se na idéiade que os topai de uma dada cultura, por mais forte que sejam, são tão incompletos quanto a pró-pria cultura a que pertencem. Tal incompletude não é visível a partir do interior dessa cultura,uma vez que a aspiração à totalidade induz a que se tome a parte ao todo. O objetivo da herme-nêutica diatópica não é, porém, atingir a completude – um objetivo inatingível – mas, pelo con-

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nacionais aparelhadas e dispostas a uma reengenharia completa desuas formas de distribuição de poder?26 Estariam os Estados sobera-nos dispostos a abdicar de exclusividades e benefícios de que desfru-tam em sua condição de clausura internacional?

Necessariamente, as soluções demandam mais que esforços deintegração econômica, como vem ocorrendo com os blocos geoeco-nômicos, tratando-se da necessidade de implementação de políticasde integração que favoreçam a inclusão.27 Trata-se da criação de umaconcepção de democracia cosmopolita,28 a projetar-se como aliançaforte em temas da agenda mundial, por mecanismos de sentido pacífi-co a implementar políticas favoráveis à coexistência e ao desenvolvi-mento global harmônico.

De qualquer forma, o que se deve procurar evitar, por meio deprocedimentos teóricos obtusos, é a extensão da idéia de direitos hu-manos como simples baluarte de sustentação de um ocidentalismoneocolonialista, patrocinado por ONGs, setores organizados, empre-sários, agentes humanitários, organizações internacionais, a ser

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trário, ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua por intermédio de um diálogoque se desenrola, por assim dizer, com um pé em uma cultura e outro em outra. Nisto reside o seucaráter diatópico” (Santos. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multi-cultural, 2003. p. 444).26 “É preciso ao menos mencionar quatro variáveis importantes para esse contexto: a composi-ção do Conselho de Segurança, que precisa se unir em torno de um objetivo único; a cultura po-lítica dos Estados, cujos governos só se deixam mobilizar em prol de políticas ‘abnegadas’ acurto prazo, quando têm de reagir à pressão normativa da opinião pública; a formação de regi-mes regionais que propiciem só então alicerces efetivos à Organização Mundial; e, por fim, a in-citação branda a um comércio coordenado em nível global, cujo ponto de partida é a percepçãodos perigos globais. São evidentes os perigos resultantes de desequilíbrios ecológicos, de assi-metrias do bem-estar e do poder econômico, das tecnologias pesadas, do comércio de armas, doterrorismo, da criminalidade ligada às drogas etc.” (Habermas. A inclusão do outro: estudos deteoria política, 2002. p. 209).27 Cf. Habermas. A constelação pós-nacional: ensaios políticos, 2001. p. 104.28 “Os defensores de uma ‘democracia cosmopolita’ buscam três objetivos: primeiro, a criaçãodos status político dos cosmopolitas [Weltbürger, cidadãos do mundo] que pertencem às Na-ções Unidas não apenas por intermédio dos seus Estados, mas que também são representados epor eles eleitos; em segundo lugar, a construção de uma Corte de justiça internacional com assuas competências usuais cujos juízos seriam válidos também para os governos nacionais; e, fi-nalmente, a ampliação do Conselho de Segurança nos termos de um Executivo capaz de ação.Mesmo uma ONU operando fortalecida desse modo e ampliada nos seus fundamentos de legiti-mação poderia tornar-se efetivamente ativa, no entanto, apenas nos âmbitos de competência li-mitados de uma política reativa de segurança ou de direitos humanos bem como de uma políticaecológica preventiva” (Idem. Ibidem. p. 135).

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sub-repticiamente implantado aos poucos sobre os orientais, a pretex-to de praticar-se liberdade e democracia. Aqui não haveria globaliza-ção e nem cosmopolitismo, muito menos defesa de direitos humanos,mas sim exploração, imperialismo e dominação. O real sentido docosmopolitismo se dá a partir da ruptura da condição de subalternida-de por aquele que é feito refém dela, ou seja, por quem é feito subal-terno em políticas internacionais.29 Desse fascismo mascarado, aomenos os intelectuais desse movimento cosmopolita devem estarisentos, apesar de se saber que as demais instâncias não estão neces-sariamente isentas.30

Estar isento pode ser mesmo ter o discernimento de distinguir en-tre as diversas formas de globalização e delas saber escolher a únicalegítima e verdadeira. Isso pode significar repudiar seja o localismoglobalizado, seja o globalismo localizado, nas definições de Boaven-tura de Souza Santos, ambas formas fascistas de se realizar a aproxi-mação integrativa dos povos, e que, certamente, seguem o modelo deimposição e desprezo cultural, dominação e opressão populares eeconômicas.31 A forma de globalização aceitável e legítima passa

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29 Essa é a lição de cosmopolitismo que assume Boaventura de Souza Santos: “Para mim, cos-mopolitismo é a solidariedade transnacional entre grupos explorados, oprimidos ou excluídospela globalização hegemônica. Quer ser trate de população hiperlocalizada (e.g., populaçãodeslocada pela guerra ou por grandes projetos hidrelétricos, imigrantes ilegais na Europa ou naAmérica do Norte), estes grupos vivem a compreensão do espaço-tempo sem terem sobre elaqualquer controle. O cosmopolitismo que defendo é o cosmopolitismo do subalterno em lutacontra a sua subalternização” (Santos. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitis-mo multicultural, 2003. p. 437).30 Cf. Habermas. Ibidem. p. 151.31 “A primeira forma de globalização é o localismo globalizado. Consiste no processo pelo qualdeterminado fenômeno local é a globalização com sucesso, seja a atividade mundial das multi-nacionais, a transformação da língua inglesa em língua franca, a globalização do fast-food ame-ricano ou da sua música popular, ou a adoção mundial das leis de propriedade intelectual ou detelecomunicações dos EUA.À segunda forma de globalização chamo globalismo localizado. Consiste no impacto específi-co de práticas e imperativos transnacionais nas condições locais, as quais são, por essa via, de-sestruturadas e reestruturadas de modo a responder a esses imperativos transnacionais. Taisglobalismos localizados incluem: enclaves de comércio livre ou zonas francas; desmatamento edestruição maciça dos recursos naturais para pagamento da dívida externa; tesouros históricos,lugares ou cerimônias religiosos, artesanato e vida selvagem postos à disposição da indústriaglobal do turismo; dumping ecológico (‘compra’ pelos países do Terceiro Mundo de lixo tóxicoproduzido nos países capitalistas centrais para gerar divisas externas); conversão da agriculturade subsistência em agricultura para exportação como parte do ‘ajuste estrutural’; alterações le-gislativas e políticas impostas pelos países centrais ou pelas agências multilaterais que elas con-

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pela concepção já delineada e denominada cosmopolitismo, que rece-be em Boaventura um tom claramente emancipatório:

“Todavia, a intensificação de interações globais pressupõe outros doisprocessos, os quais não podem ser corretamente caracterizados nem comolocalismo globalizado nem como globalismo localizado. Chamo o primeirode cosmopolitismo. Trata-se de um conjunto muito vasto e heterogêneo deiniciativas, movimentos e organizações que partilham a luta contra a exclu-são e a discriminação sociais e a destruição ambiental produzidas pelos loca-lismo globalizado e pelo globalismo, recorrendo a articulações transnacio-nais tornadas possíveis pelo revolução das tecnologias de informação e decomunicação. As atividades cosmopolitas incluem, entre outras, diálogos earticulações Sul-Sul; novas formas de intercâmbio operário; redes transna-cionais de lutas ecológicas, pelos direitos da mulher, pelos direitos dos po-vos indígenas, pelos direitos humanos em geral; serviços jurídicos alternati-vos de caráter transnacional; solidariedade anticapitalista entre o Norte e oSul; organizações de desenvolvimento alternativo e em luta contra o regimehegemônico de propriedade intelectual que desqualifica os saberes tradicio-nais e destrói a biodiversidade. O Fórum Social Mundial que se reuniu emPorto Alegre em 2001 e 2002 é hoje a mais pujante afirmação de cosmopoli-tismo no sentido aqui adotado.”32

Os direitos humanos, em verdade, na luta pela afirmação de rela-ções internacionais realmente pautadas pela afirmação dessa catego-ria de direitos, devem ser a expressão do front de reação ao localismoglobalizado. Trata-se de pensar que, se tomados não no sentido uni-versalista a eles atribuído pelo Ocidente, mas em seu sentido multi-cultural, podem servir de cultura contra-hegemônica em face dos des-varios dominadores dos ocidentais expansionistas de suas ideologias,de seus mercados, de seus imperialismos.

Os direitos humanos não podem provocar o choque de civiliza-ções, caso contrário estarão servindo para opressão cultural. No en-tanto, as concepções tradicionais de direitos humanos, em si alber-

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trolam; uso de mão-de-obra local por parte de empresas multinacionais sem qualquer respeitoao parâmetro mínimo de trabalho (labor standards). A divisão internacional da produção daglobalização assume o seguinte padrão: os países centrais especializam-se em localismos glo-balizados, enquanto aos países periféricos cabe tão-só a escolha entre várias alternativas de glo-balismo localizado. O sistema-mundo é uma trama de globalismo localizado e localismo globa-lizado” (Santos. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural,2003. p. 435-436).32 Idem. Ibidem. p. 436.

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gam concepções caracteristicamente liberais, quais sejam: universa-lidade do indivíduo, certa forma de organização do Estado, dignidadeabsoluta, superioridade da natureza humana.33 Com esse sentido, osdireitos humanos serão somente a bandeira de conquista do Orientepelo Ocidente, do Sul pelo Norte. Assim, para que a afirmação dos di-reitos humanos no plano internacional realmente corresponda a umprojeto cosmopolita, é necessário o respeito a certas premissas:34

• a necessidade de superação do debate sobre universalismo erelativismo cultural e, no lugar dessas tradicionais concep-ções, a propositura de diálogos interculturais sobre preocupa-ções isomórficas, ou seja, sobre preocupações que podem pos-suir nomes diversos em culturas diversas, mas que traduzem omesmo tipo de questão de fundo;

• a necessidade de identificação da diversidade de concepçõesde dignidade humana, não traduzidas sob o clichê de direitoshumanos, para a verificação das identidades possíveis nos va-lores a serem protegidos;

• a necessidade de compreensão de que existem diversas con-cepções de dignidade humana e de que todas as concepçõessão ao mesmo tempo relativas e incompletas, a partir da ad-missão de que não há um absoluto no que tange à dignidade dapessoa humana;

• a necessidade de afirmação da diversidade cultural da expres-são dignidade da pessoa humana, daí decorrendo a necessida-

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33 “O conceito de direitos é baseado em um bem conhecido conjunto de pressupostos, todos elestipicamente ocidentais, designadamente: existe uma natureza humana universal que pode serconhecida racionalmente; a natureza humana é essencialmente diferente e superior à restanterealidade; o indivíduo possui uma dignidade absoluta e irredutível que tem de ser defendida dasociedade ou do Estado; a autonomia do indivíduo exige que a sociedade esteja organizada deforma não hierárquica, como soma de indivíduos livres (Panikkar, 1984:30). Uma vez que todosestes pressupostos soam claramente ocidentais e facilmente distinguíveis de outras concepçõesde dignidade humana em outras culturas, há que averiguar as razões pelas quais universalidadese transformou em uma das características marcantes dos direitos humanos. Tudo leva a crerque a universalidade sociológica da questão da universalidade dos direitos humanos se tenhasobreposto à sua universalidade filosófica” (Idem. Ibidem. p. 439).34 Cf. longo trecho de reflexões em Santos. Ibidem. p. 438-443.

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de de opção por aquela que traduz com maior intensidade be-nefícios maiores e mais largos;

• a necessidade de fazer da política emancipatória de direitos hu-manos uma política a serviço de duas trincheiras de batalha, aluta pela igualdade e a luta pelo reconhecimento igualitário dasdiferenças, para que ambas sejam realizadas com resultados.35

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35 Volta-se a insistir que a inspiração dessas reflexões, seguindo longo trecho de propostas, é re-tirada de Santos. Ibidem. p. 438-443.

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II.3. Financiamento para as políticasdos direitos humanos

Palestra de 8.6.2006

Fernando Scaff*

Gostaria de agradecer o convite para falar sobre alguns temas queeu diria à primeira vista meio esotéricos, mas chegaremos lá. O quedevo falar a vocês é uma proposta de mergulho nas entranhas do Esta-do, e tenho uma pergunta básica: como a sociedade financia o Estadopara implementação dos direitos humanos, ou, por outras palavras,como se tem dinheiro para os direitos humanos no Brasil? O professorDalmo acabou de mencionar que os direitos econômicos, sociais eculturais precisam de políticas públicas, precisam de dinheiro paraserem implementados.

Portanto, a minha fala vai neste sentido: Existe dinheiro? Ondeestá o dinheiro? Como é a organização do Brasil e como isso tem sidoimplementado? Para tanto, minha fala se dividirá em três partes: a pri-meira parte de estrutura, uma parte de conjuntura e uma parte de desa-fios e possibilidades de solução.

Isso não é um trabalho isolado, pois parte de uma pesquisa quedesenvolvo na Universidade Federal do Pará, onde sou professor ePaulo Veil é coordenador, sendo essa temática uma parte apenas. Nãoposso esquecer e deixar de mencionar as partes financiadas pela Fun-dação Ford, que implementou uma rede de direitos humanos na

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* Professor de Direito Financeiro e Tributário da Universidade Federal do Pará e diretor daANDHEP.

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pós-graduação, unindo de uma maneira muito interessante e inteli-gente a Universidade Federal do Pará, a Universidade Federal da Pa-raíba e a USP, em uma rede que implementa o estudo dos direitos hu-manos sobre vários prismas. Esse é um prisma um pouco diferente doque talvez seja rotineiramente mencionado. Então vamos lá.

Como a sociedade financia o Estado para a implementação dosdireitos humanos?

Primeira parte: estrutura do sistema dentro da nossa Constitui-ção, nenhuma novidade, fundamentos da República brasileira.

Para que a República existe? Quais os fundamentos dela?Fundamentos da soberania, cidadania, dignidade da pessoa hu-

mana, valores sociais do trabalho, livre-iniciativa e pluralismo políti-co, são esses os fundamentos da nossa República. E quais são os obje-tivos? Onde queremos chegar? São aquelas normas de aquisição, comas quais queremos construir nosso objetivo. A nossa norma. O objeti-vo é construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desen-volvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduziras desigualdades sociais e regionais. Promover o bem de todos, sempreconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras for-mas de discriminação – art. 3o da Constituição.

Para implementar tudo isso, precisa-se de dinheiro e organização.E a Constituição diz o seguinte: para implementar isso, tem de sermontado um sistema orçamentário composto de um plano plurianual,que deve conter uma Lei de Diretrizes Orçamentárias, na qual está in-serida uma Lei Orçamentária Anual. Portanto, uma deve se encaixarna outra, com uma compatibilidade não apenas formal, mas tambémmaterial. Ou seja, na essência, quando se propõe investir em educa-ção, com um plano plurianual, a Lei de Diretrizes Orçamentárias nãopode deixar a educação de lado e partir para a segurança ou para asquestões de pobreza e não convergir cada uma.

Não é assim que deve ser feito, é uma compatibilidade formal ematerial que parte do seguinte enquadramento temporal: a Constitui-ção é uma norma perene. O plano plurianual é um plano de cada qua-tro anos, ou seja, é um mandato.

A Lei de Diretrizes Orçamentárias é uma lei anual. Estuda-se nasfaculdades que as leis devem ser feitas para durar, mas essa idéia aquié falsa, porque pelo menos essas normas têm prazos certos.

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A Lei de Diretrizes Orçamentárias é uma lei que existe por quatroou cinco meses apenas, porque ela vai dar as diretrizes da elaboraçãodo orçamento, que, o próprio nome diz, é anual. A cada ano há um or-çamento novo, votado pelo Congresso, discutido em comissão mista.Isso tudo que vocês viram que neste ano aconteceu em seu quartomês, ou seja, o orçamento de 2006 foi aprovado em abril de 2006. Nãofoi a primeira vez no Brasil.

Qual a causa desse enquadramento? É plantada na Constituiçãouma desconfiança no legislador ordinário, desconfiança essa que re-vela uma limitação à liberdade de conformação do legislador orça-mentário. Traduzindo para o bom português, afinal direitos humanosnão é refém do direito. É algo que atinge todas as áreas, então vamostentar traduzir do “juridiquês” para algo mais simples. A limitação àliberdade de conformação do legislador ordinário quer dizer o se-guinte: o Congresso Nacional não pode fazer o que bem entender. Eletem limites, e aqui na parte financeira o limite dele está na Constitui-ção, que é perene, e em seus arts. 3o, 1o etc. aponta para onde deve ir odinheiro, quais são os objetivos a serem traçados, e destes deve emer-gir a construção do plano plurianual, a Lei de Diretrizes Orçamentá-rias. Então o legislador não está absolutamente livre, ele está limitadoà conformação preexistente nas normas anteriores.

Feito esse enquadramento, vamos para outro passo desse mesmoitem dessa mesma estrutura. Como a sociedade financia o Estado, por-que o Estado vive do nosso bolso pessoal. Alguém pode dizer: “eunão pago imposto”. Mas isso é falso, pois quando você fuma um ci-garro, para quem fuma, paga-se pelo menos 80% de IPI e ICMS, eisso é um exemplo barato.

E há outras formas de se arrecadar. Então, como a sociedade fi-nancia o Estado? Há dois tipos de receita: receitas originárias e recei-tas derivadas. As originárias são aquelas vendas do próprio patrimô-nio público, privatização, exploração do seu patrimônio, como roya-

lites, laudênio. Isso é receita originária. A receita derivada são impos-tos, taxas, contribuições de melhorias sociais de intervenção etc.

Vamos nos deter aqui nos impostos e nas contribuições, basica-mente nas sociais. Para que servem esses tributos? Não é tudo igual,há uma teoria por trás disso que diz que um serve para umas coisas eoutros servem para outras coisas.

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Para que serve os impostos? Eles são não causais, ou seja, vocêtem o imposto para sustentar os gastos gerais do Estado, por exemplo,a universidade pública é sustentada por uma fração de ICMS.

O ICMS é um imposto geral, ele não tem uma causa específicaque justifique a sua criação. É distinto, por exemplo, das taxas, pelasquais o Estado tem de efetivamente prestar um poder de polícia ouefetivamente prestar ou disponibilizar serviços públicos específicos edivisíveis; sendo também diferente das contribuições, porque estasservem para financiar as atividades previstas na lei que as criou. Ten-tarei ser mais claro: enquanto os tributos vão para o caixa único geral– como na lei orçamentária, por exemplo, com a idéia de aumentarpara a saúde ou diminuir para a educação, ou então fazer Bolsa Escolaou Bolsa Família –, as contribuições se vinculam à lei que as criou.

Impostos no Brasil: essa “sopa de letrinhas” que apenas demons-tra o que existe de imposto estabelecido no Brasil. Imposto de renda,“IPI”: imposto de produtos industrializados, imposto sobre opera-ções financeiras, imposto de exportação e importação, imposto terri-torial rural, e aquele estranho – pelo menos o mais estranho –, o im-posto sobre grande fortuna que nunca foi implementado. Existe, aliás,um projeto de lei que já deve ter sido arquivado, vindo de um senadorque propôs a regulamentação do imposto sobre grandes fortunas, nãosei se vocês conhecem; foi um senador chamado Fernando Henrique.Com certeza engavetaram.

Bom, Estados podem cobrar ICMS, IPVA, IT-CMD – impostode transmissão causa mortis e doações, enquanto, os Municípios,ISS, IPTU, imposto de circulação de mercadoria em alguns serviços,impostos de propriedades de veículos automotores, de transmissãocausa mortis, doações, sobre serviços, imposto da propriedade terri-torial urbana, de transmissão intervivos etc.

Então isso é o que o Estado brasileiro, lato sensu, pode cobrar pormeio da União, dos Estados e dos Municípios, mas esses tributos nãoficam só com quem arrecada, uma parte deles é dividida. Por exem-plo, a Constituição estabeleceu que do imposto de renda e do IPI21,5% vão para os Estados e 22,5% vão para os Municípios. Tradu-zindo: quem paga 100 reais de imposto de renda para a União não estácolocando o dinheiro todo na União; uma parte dele, 21,5% desses100 reais, vai para os Estados e uma parte vai para os Municípios,

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quer dizer, tem uma parcela de redistribuição. Isso a Constituição de-nominou “federalismo participativo”, ou seja, um arrecada e o outropartilha esse valor. O imposto territorial rural – 50% entre União eMunicípio – também é uma divisão entre Estado e Municípios.ICMS, 25%, IPVA, 50%, ou seja, existe uma regra de partilha.

Por que fiz questão de colocar isso? Porque nós vamos ver no pas-so seguinte, e aqui em uma transição histórica do Governo Collor parao de Fernando Henrique, uma situação extremamente curiosa, que é “oabandono” da arrecadação ou da gestão desses impostos de renda e IPI.Por quê? Porque a cada 100 reais que o Governo tivesse o desgaste de au-mentar nesses impostos, ele teria de repassar aproximadamente 40%.Por que ele iria fazer isso? Por que aumentaria impostos partilhados?

Qual foi a fuga? O aumento de uma outra figura que vai aparecermais adiante, chamada contribuição. É a partir daqui que chegaremosnos direitos humanos.

Uma parte daqueles impostos, ainda por força da Constituição – eaqui nós começamos a entrar em uma parte mais interessante para aanálise de direitos humanos –, vai para o Fundo Nacional de Saúde. AUnião, a partir de 2005, deixou isso a cargo da lei complementar.Estados e o Distrito Federal têm de destinar 12% da receita de seusimpostos, todos daquela sopa de letrinhas: ICMS, IPVA etc. Municí-pios devem destinar 15% da sopa de letrinhas: IRR, ISS, IPTU, tudoisso para o Fundo Nacional de Saúde. Para o Fundo Nacional de Edu-cação, vão 18% das receitas dos impostos da União. Estados, DistritoFederal e Municípios têm de destinar 25% da receita dos seus impos-tos para essa finalidade, o que também está na Constituição.

O Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, previsto na Cons-tituição na parte do ADCT (Ato das Disposições ConstitucionaisTransitórias – uma gama de disposições gerais, constitucionais, tran-sitórias contidas no final da CF/1988, em que esse Fundo está inseri-do), é fruto de uma emenda constitucional. Esse Fundo é composto de5% do IPI sobre produtos supérfluos (não é geral, mas somente sobresupérfluos) – mas imposto sobre grande fortuna que ainda não foi re-gulamentado. Estados e Distrito Federal têm 2% do ICMS sobre pro-dutos e serviços supérfluos, e Municípios, 0,5% do ISS sobre o servi-ço supérfluo. Tenho uma certa dificuldade de saber o que é o serviçosupérfluo, mas todo o serviço supérfluo deve colocar 0,5%.

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Chega-se, então, às contribuições. Mencionei-as na transição doGoverno Collor para o de Fernando Henrique, quando este deixou decolocar dinheiro ou gerir adequadamente o imposto de renda e o IPI ecomeçou a criar e aumentar contribuições. Como havia dito, as con-

tribuições têm uma finalidade estabelecida na lei; o imposto valepara o fundo geral, mas a contribuição tem uma finalidade: oPIS-Pasep. Destes, 60% vão para o Fundo de Amparo ao Trabalha-dor, e, de tudo o que foi arrecadado, 40% vão para a gestão doBNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social.O Cofins é outra contribuição, da qual 100% vão para a seguridadesocial, o que está na lei. Já no caso da CIDE – Contribuiçao de Inter-venção no Domínio Econômico, 100% devem ser aplicados em sub-sídio a preços ou transporte, projetos ambientais e infra-estrutura detransportes. E a CPMF, que todos nós conhecemos e que vem de lon-ga data, deve ser partilhada em 25% para fundos de erradicação da po-breza, 50% ao Ministério da Saúde e 25% para benefícios da previ-dência.1

Então, essa é a estrutura daquelas contribuições, mas existem ou-tras. Contribuição Social sobre o Lucro é outra contribuição daquelasque foram criadas para não serem partilhadas com Estados e Municí-pios, porque tudo é resultado da arrecadação da União. Assim, 100%da Contribuição Social sobre o Lucro vão para a seguridade social,salário, educação: um terço para o Fundo Nacional de Desenvolvi-mento e dois terços para as Secretarias Estaduais da Educação. E ascontribuições previdenciárias, que são recolhidas por cada qual parasua unidade da Federação: Institutos de Previdência, INSS etc.

E aqui encerramos a primeira parte com uma reflexão: o Brasil ar-recadou em 2005 quase 38% do seu Produto Interno Bruto. São aque-las contas que sempre aparecem na parte econômica dos jornais, quediz “você trabalha quatro meses por ano para financiar o Estado e aívocê deixa quatro salários”. Então, 38% do PIB foram arrecadadosem tributos, ou seja, 733 bilhões de reais. E grande parte deles, comodemonstrado anteriormente, é destinada à área social. Foi mostrado:fundo de amparo disso, daquilo, educação, pobreza etc. Observa-se

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1 À época desta palestra, a CPMF ainda não havia sido julgada inconstitucional pelo SupremoTribunal Federal.

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mesmo que 16 pontos percentuais, dos 38, correspondem a contribui-ções; assim, daquele montante de impostos, 42% são de contribuição,leia-se vinculados e normalmente destinados àquelas finalidades so-ciais mencionadas, mas no Índice de Desenvolvimento Humano oBrasil aparece em 63o lugar. Ou seja, arrecada-se muito, mas temosavançado a passos de cágado. Arrecada-se muito vinculado ao social,mas a nossa vantagem tem sido lenta. Aí cabe uma referência antes depassarmos para a segunda parte: estou apresentando uma análise empoucos minutos vinculada ao ano 2005 que eu poderia fazer de 2004,2003 e 2002, e o resultado seria muito parecido.

Segunda parte, na análise da conjuntura, para responder à per-gunta: por que se arrecada tanto para o social e nós estamos mal noIDH? Tenho algumas suposições, aliás, nosso grupo de pesquisa tem.Como primeira hipótese, de que esse fato decorre de uma coisa que devez em quando vocês devem ver nos jornais e passar por cima, cha-mada “DRU”. Essa sigla quer dizer Desvinculação das Receitas daUnião. Tenho até dificuldade de explicar o que seja, mas é um fundoque foi criado em 1994 com o nome de Fundo Social de Emergência,tendo passado para os anos 1996 a 1999 com o nome de Fundo deEstabilização Fiscal, e, posteriormente, em 2000 a 2007 – é datado eestá previsto para encerrar em 2007 –, batizando-se de Desvincula-ção das Receitas da União. O que é e como é composto? Seu art. 76determina que seja desvinculado de órgão, fundo ou despesas no pe-ríodo, até 2007, 20% da arrecadação da União de impostos e contri-buições sociais e de intervenção já instituídos ou que vierem a serinstituídos etc.

Mais uma vez traduzindo para o português, vocês viram todasaquelas vinculações que foram mencionadas, 18% para a educação,não me lembro mais quanto para a saúde, aquela coisa toda. Isso aquié como se passasse uma régua, tudo aquilo menos 20% é o que vai serdestinado.

Portanto, tirou-se uma base da arrecadação destinada a dar essas fi-nalidades às contribuições e aos impostos. O que diz o nosso poderosoTribunal de Contas da União no relatório publicado deste ano, mas combase em 2005? O Tribunal de Contas da União, ao apreciar as contas doano 2005, disse o seguinte, referindo-se à execução em educação, saú-de e segurança pública: “As despesas realizadas em 2005 pela União

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foram de 1 trilhão e 100 bilhões de reais. Desse total apenas 5,1%, ouseja, 55 bilhões foram destinados à educação, saúde e segurança.”

“O Governo Federal não cumpriu o limite mínimo de aplicaçõese recursos na erradicação do analfabetismo e na manutenção do de-senvolvimento do ensino fundamental.” E, ainda, o “Tribunal deContas” considerou o fato ainda mais grave por se tratar de reincidên-cia, pois o limite mínimo já não tinha sido alcançado em 2004.

Vou aqui mais uma vez fazer o registro: estou analisando em2005, mas os dados de 2004, 2003, 2002 e 2001 seguem nas mesmastrilhas. Ou seja, os limites mínimos não têm sido alcançados. Segun-do o próprio Tribunal de Contas, os recursos empenhados em 2005para área de saúde representaram um incremento de 14,8% em rela-ção a exercício anterior. “A pessoa fica contente, puxa, aumenta qua-se 15% em saúde”; frase seguinte: esse crescimento inclui as transfe-rências de renda do programa Bolsa Família, o que possibilitou ocumprimento do limite mínimo estabelecido na lei. Caso gastos comBolsa Família fossem desconsiderados, apesar de indiretamente paramelhoria das condições de saúde da população, o Governo não teriaalcançado esse limite mínimo de aplicação dos recursos em ações deserviço de saúde. É um bom tema para debate: o Bolsa Família é saú-de? Ou esse é um outro programa de transferência de renda importan-te e relevante mas que não deveria compor essa fração de saúde, deve-ria compor uma outra fração, para pobreza, para o que seja? Mas saú-de talvez não seja bem o Bolsa Família. Isso é um jeito de você au-mentar ou dizer que cumpriu a meta.

Quanto à seguridade social, ainda segundo o relatório do Tribu-nal de Contas, as receitas vinculadas a essa área somaram tantos mi-lhões, entretanto a receita seria muito maior se não houvesse a inci-dência da “DRU”. Nessa hipótese, a seguridade social apresentariaum saldo positivo de 19 milhões, ou seja, se não tivessem cortado os20%, haveria mais dinheiro.

O relator concluiu que uma parcela dos recursos desvinculadosdo orçamento da seguridade financiou despesas para o orçamento fis-cal no exercício de 2005, contribuindo com 34% dos superavits pri-mários alcançados pelo Governo Federal no exercício, ou seja, o quefoi retirado de “DRU” foi para essa figura chamada do superavit pri-

mário, que vamos ver adiante para que serve.

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Então, não se aplicou na seguridade social, foi para outra coisa. Eaqui um corte no Tribunal de Contas para falarmos de contribuições.Há um outro detalhe importante aqui: eu mencionei antes que as contri-buições têm aplicação ou vinculação à lei que as criou. De acordo. Maso Supremo Tribunal Federal, até dezembro de 2003, rotineiramentejulgava o seguinte: nós não podemos apreciar a efetiva aplicação dosrecursos das contribuições; portanto, se a CPMF está sendo para a saú-de, nós, do Supremo, não podemos tratar das várias ações que forampropostas dizendo que o dinheiro não estava sendo destinado para asaúde. Se a Cofins ou o PIS não estão sendo levados ou destinados ouaplicados nas finalidades previstas, nós do Supremo Tribunal Federalnão podemos tratar dos vários julgamentos nesse sentido. Todavia, issoé parte da doutrina, da fala do verbo que propagamos.

Em dezembro de 2003 houve um julgamento emblemático quemudou esse entendimento. Trata-se da Ação Direta de Inconstitucio-nalidade no 2.925, sobre um caso de CIDE – Contribuição de Inter-venção no Domínio Econômico. Observe que não foi um caso de con-tribuição social, mas de intervenção no domínio econômico, aquelapara asfaltamento de estradas etc.

Nesse caso, a Confederação Nacional dos Transportes entroucom uma ação dizendo o seguinte: o que não foi gasto de CIDE no anopassado tem uma arrecadação vínculada a asfaltamento; portanto, aConfederação Nacional quer que seja reservado esse dinheiro paragasto em asfaltamento no ano seguinte. É a Lei Orçamentária Anual,é verdade. Mas, se sobrou dinheiro nessa rubrica, ele não deve ser le-vado no ano seguinte para gastos gerais; deve continuar vinculado àfinalidade constitucionalmente prevista. Nesse caso o Supremo disseque tem razão, portanto, “bloqueie”; o Governo não está obrigado agastar, mas, se gastar tem de gastar na finalidade constitucionalmenteprevista; e disse isso para a CIDE, nunca dito antes para as contribui-ções sociais, sendo um avanço. E o que disse o relatório do Tribunalde Contas sobre a CIDE? Em 2005, a arrecadação, a conta da CIDEfoi de 2 bilhões, mas permaneceu em indisponibilidade no final de2005; ou seja, está-se reservando dinheiro; ainda não estão gastandoesse recurso, que tem sido objeto de acompanhamento pelo TCU,contribuindo para modificações na forma de utilização dessa verba.Ou seja, antes era dissipada, e agora estão guardando na forma de de-

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cisão do Supremo. Mas o que tem sido guardado é um percentual infe-rior, isto é, a aplicação tem sido maior.

Para acabar a segunda parte, outros dois questionamentos: quemcontrola a efetiva aplicação das demais contribuições, mas focadas nosocial? Ou seja, se a CIDE, segundo o Supremo, tem de ser aplicadanas finalidades, e o Tribunal de Contas diz que ela as tem observado.E a segunda questão: para onde tem sido estimada a arrecadação des-ses impostos vinculados? E essas contribuições, para onde vão? Rela-tório dos Tribunais de Contas: “os números comprovam que, apesarde toda austeridade fiscal com a superação da meta de superavit pri-mário, a economia gerada não foi suficiente para o pagamento dos en-cargos da dívida pública, gastou-se mais do que aquilo que se conse-guiu arrecadar e essa diferença foi bem maior do que a prevista”. Ouseja, paga-se e não se quita. Paga-se muito e não se tem a quitação dovalor.

Tirando de onde? Do social, como demonstrado. Isso é uma traje-tória, eu só mostro uma fotografia, mas é uma trajetória de 2004, 2003e assim vai.

Parte final: riscos e desafio. Quanto aos riscos, há dois que eugostaria de apontar para vocês. Primeiro, o risco de manutenção dosdesvios de finalidade na destinação da arrecadação de impostos vin-culados e de contribuições, ou seja, manter a situação tal como hojeestá. Isso é um problema, porque nós temos desafios socioambientais,socioeducacionais; temos enormes desafios a serem enfrentados eprecisamos de dinheiro. Os DESCS precisam de políticas públicas,precisam de dinheiro para serem implementados. Se se continua des-viando o dinheiro, como é que vamos implementar isso?!

Segundo, e aqui é para chamar a atenção para uma coisa que temàs vezes saído de foco, mas que está aí: não vamos perder de vista oque é um projeto de emenda constitucional popular – PEC revisional,o que quer dizer que, por proposta de um deputado de Pernambuco,Roberto Magalhães, com o relator Michel Temer, já foi aprovada naComissão de Constituição e Justiça essa “PEC” – Proposta de Emen-da Constitucional, que vai fazer com que esse Congresso a ser eleitoem outubro de 2006 tenha poderes revisionais; por isso é uma PEC re-visional. Traduzindo para o bom português: a Constituição determinaque, para mudanças nela, os quoruns devem ser ampliados, é preciso

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maior número de pessoas para votar as mudanças. Mesmo porque,com isso, já há mais de 50 alterações.

A proposta da PEC revisional quer dizer: baixo quorum, apenasmetade mais um de todos, poderá votar, apreciar e alterar o que bementender. Claro que tem um debate se eles poderão ou não alterar asCláusulas Pétreas etc. É claro e pacífico, ninguém discute mais queeles não podem alterar as Cláusulas Pétreas, entre elas aquelas quetratam de direitos e garantias fundamentais, o que faz com que o temaganhe um outro sabor. É claro que estamos falando de direitos huma-nos, tributação e vinculações orçamentárias. Então, o que está em de-bate no meio dessa discussão de “PEC”? Ampliação e perenização da“DRU”, incluindo uma “DRU” para os Estados, porque estes aindatêm aquelas vinculações obrigatórias de 25%, para a educação, oupara a saúde. Pretende-se cortar 20% também sem precisar ter prazocerto, pois pode-se fazê-lo para sempre, enquanto diminuem-se asvinculações de impostos e contribuições. Portanto, aquela idéia de x

por cento para a educação, x por cento para a saúde e x por cento para aFate, há um interesse forte exposto em vários relatórios do FMI e dosgovernos, pós-1988 (todos), de redução dessas vinculações. Vocêslembram da menção de Sarney dizendo que a Constituição deixava oPaís ingovernável. Aconteceu nesse momento, porque ele diz: “eunão tenho dinheiro para nada, está tudo vinculado, tem que dar tantopara a saúde, tanto para aquilo, tanto para isso e não sobra nada”. Ouseja, não sobra para fazer as políticas que têm interesse próprio. Porisso volto lá atrás: há uma limitação de liberdade do legislador; sejapara a educação, seja para a saúde, ele está limitado a isso.

Defesas: o que podemos fazer em uma situação dessas? Po-dem-se alegar três situações, e aqui é um perfil muito advocatício. Aprimeira é uma tese de supremacia da Constituição, que quer dizer:Constituição não é fantasia. Se tem de cumprir; se é dito que deve serdado x para a educação, tem se ser feito, não se pode desviar, não sepode alterar. Segundo, e aqui focado na PEC revisional: essas vincu-lações são Cláusulas Pétreas. Pode-se até aumentar ou diminuir o im-posto de renda, criar imposto sobre grandes fortunas, os Rembrandt,os Portinari que existem nas telas das mansões, não tem problema,mas tem limite, você não pode modificar essas vinculações ou desviaro dinheiro que está sendo gasto em saúde, educação etc.

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E mais, vinculando todo esse entendimento, é importante utilizartambém aquela Ação Direta de Inconstitucionalidade no 2.925 do Su-premo, que mencionei, sobre a CIDE, que decidiu que deve ser vincu-lada a contribuição, deve-se reservar o dinheiro para usar no ano se-guinte se ele não tiver sido utilizado totalmente. Essa e algumas pos-sibilidades que me ocorreram de sugerir aqui, aos militantes na áreados direitos humanos, para defender esses riscos no horizonte em queaparecem. Esse é um item de preocupação pelas reformas e pelos pro-blemas ocasionados. É o que faz com que no Brasil, a despeito de ha-ver uma previsão constitucional de gastos enormes em áreas sociaisna conjuntura, isso não esteja ocorrendo há muito tempo, não sendouma questão deste Governo e nem do anterior, mas de todos nós, quetemos de trabalhar em cima disso para reverter a situação.

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II.4. O conceito hegemônico do progressoe os direitos humanos

Palestra de 7.6.2006

Gilberto Dupas*

A intenção desta fala é provocá-los para uma reflexão um poucomais densa sobre o mito do Progresso, a sociedade global e os seusimpactos naquilo que se costuma estruturar como direitos humanos.

No alvorecer do século XXI, há em toda parte o paradoxo da ca-pacidade de se produzir mais e melhor, não cessar de crescer, o queexige ser chamado de progresso. Mas esse progresso, no discurso do-minante das elites globais, traz também mais exclusão social, concen-tração de renda, subdesenvolvimento e graves danos ambientais,agredindo direitos humanos essenciais e acumulando um passivocrescente de riscos graves que podem levar de roldão um imenso es-forço de séculos da aventura humana para estruturar um futuro viávele mais justo para as gerações vindouras.

Ao final desta fala, provavelmente muitos perguntarão se não re-conheço que a impressionante evolução da tecnociência é uma provaespetacular do engenho humano e uma fonte inesgotável de produtose serviços que tornam a vida muito mais confortável. Obviamenteresponderei que seria uma insensatez negar os benefícios que a verti-ginosa evolução das tecnologias propiciou ao ser humano, ao deslo-car-se mais rápido, viver mais tempo, comunicar-se instantaneamen-te e outras proezas como essas.

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* Coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional da Universidade de São Paulo epresidente do Instituto de Estudos Econômicos Internacionais – IEEI.

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Trata-se aqui de analisar, no entanto, a quem dominantementeesse progresso serve e quais os riscos e custos de natureza social, am-biental e de sobrevivência da espécie que ele está provocando, alémdas catástrofes futuras que ele poderá ocasionar aos direitos do ho-mem. É preciso determinar quem escolhe a direção desse progresso ecom que objetivos.

Fazendo uma ligeira retrospectiva, a grande obra produzida naInglaterra, a respeito das questões sociais e do desenvolvimento hu-mano no século XVIII, foi A riqueza das nações, de Adam Smith. Eleinaugurava a tese controversa de que o comércio entre nações seria degrande vantagem para todos. Já quase na virada do século XIX apare-cem Malthus e seus famosos ensaios sobre o princípio da população.

As teses alarmantes e pessimistas de Malthus e Goldwin tiveramgrande impacto na sociedade da época, fazendo germinar as idéias so-cialistas. Formavam-se, portanto, duas linhas gerais sobre o conceitode progresso.

A primeira se baseava nas doutrinas políticas do liberalismo, pe-las quais a liberdade individual era a chave e a força motivadora para aevolução da sociedade. A segunda, com os socialistas, afirmava que odesenvolvimento do homem seria um sistema em que a autoridade deum novo Estado era fundamental.

Mas o que definitivamente consolidou a idéia contemporânea deprogresso foi a revolução provocada por Darwin com sua Origem das

espécies, publicada por ele depois de muita excitação social em 1859.Galileu já havia abalado definitivamente a idéia narcisista e oni-

potente da Terra e do homem como centros do universo. Agora o ho-mem, ainda que uma criação original de Deus, teria evoluído a partirdo macaco e só prometia um eventual futuro melhor por meio da evo-lução, um segundo impacto.

Sintomas de descrença no ambiente intelectual em torno da idéiade progresso já haviam aparecido durante todo o século XIX, por in-fluência, entre outros, de Tocqueville, Schoppenhauer, Nietzsche eWeber. O entusiasmo com que a juventude e as lideranças européiasse entregaram à Primeira Guerra Mundial, como se tratasse de umexercício de purificação civilizatória, foi sintomático de um profundodesarranjo nos padrões intelectuais em vigor.

Finalmente veio a escalada nazista e a solução final liquidadacom dois brutais ataques nucleares, considerados pela maioria desne-

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cessários e cruéis. Tudo isso escondeu o progresso no “porão da his-tória”. Para os comunistas, com socialismo real, a idéia de avançoinevitável consolidou-se por outra vertente. Ele incorporava a visãomarxista do inexorável caminho do mundo para uma sociedade semclasses. Mais tarde, a progressiva revelação do aparato ditatorial e arepressão do regime de Stalin encarregaram-se de introduzir as de-cepções que primeiro relativizaram e depois destruíram o que muitosesperavam ser a prova definitiva do determinismo do progresso.

Entre as vertentes críticas dentro do pensamento marxista, a maisoriginal na reflexão sobre o conceito de progresso, em minha opinião,são as teses de Walter Benjamim sobre o conceito da história. Revisi-tadas hoje, essas teses de Benjamim podem parecer revelar um pensa-dor totalmente utópico, mas ele estava muito menos preocupado como princípio da esperança do que com a necessidade urgente de organi-

zar o pessimismo; menos interessado no amanhã do que nos perigosiminentes que ameaçam a humanidade.

Após a queda do socialismo real, o triunfo do capitalismo globalapossou-se integralmente do conceito de progresso, tendo como ban-deira os avanços formidáveis do desenvolvimento cientifico e técni-co. Mas essa perspectiva triunfalista durou pouco. O sinal de alarmemais estridente parece ter sido os ataques terroristas às torres de NovaIorque.

A contribuição fundamental de Benjamim ao sentido da históriafoi fugir das rotas de mão única escritas pelos vencedores, assumindoa constatação essencial de que cada presente abre uma multiplicidadede futuros possíveis.

Muita coisa é evitável, como teria sido a eventual decisão de nãofabricar a bomba nuclear, apesar do domínio do subatômico completo.Ou pelo menos de não lançá-la sobre Hiroshima e Nagasaki. A profun-da mensagem de esperança de Benjamim é que o futuro pode reabrir osdossiês históricos fechados, reabilitar vítimas caluniadas, reatrelar as-pirações vencidas e redescobrir bons combates esquecidos.

Mas coube a Habermas o trabalho seminal sobre o sentido do pro-gresso. Em Técnica e ciência como “ideologia”, publicado em 1968, omodo de produção capitalista, segundo o autor, exige permanentemen-te a inovação tecnológica para operar seu conceito motor schumpete-riano de destruição criativa, ou seja, novos produtos a serem promovi-

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dos como objeto de desejo, sucateando cada vez mais rapidamente oproduto anterior e mantendo a lógica da acumulação em pulso. Se Ha-bermas tinha razão em 1968, imagine-se quando olha o mundo de hoje.

Deformada pelo capitalismo, a técnica moderna perdeu a inocên-cia de uma simples força produtiva; a instituição do mercado comolugar de troca de forças do trabalho prometia justiça das equivalênciasdas relações de troca.

A partir daí, o poder político pôde ser legitimado a partir de bai-

xo. Afinal, cada um é livre para vender seu trabalho no mercado pelomelhor preço possível, ainda que este seja muito baixo.

Foi assim que o desenvolvimento da ciência e da técnica trans-formou-se em variável independente. Implantada a ilusão do pro-gresso técnico redentor, a propaganda se encarregou de explicar elegitimar as razões pelas quais nas sociedades modernas um proces-so de formação democrática da vontade política deve abdicar dequestões práticas que interessam ao cidadão, e conformar-se comdecisões plebiscitárias restritas a temas como eleger o novo presi-dente. Discussões sobre as condições da vida, o crescimento econô-mico e mais ainda sobre metas de inflação são discussões de especia-listas, não cabem ao povo.

Na verdade, nos anos 1960 e 1970, apesar de o liberalismo man-ter a premissa sobre a liberdade individual, ainda divulgava o planeja-mento estatal para catalisar o crescimento econômico. Mas essas ten-dências foram atropeladas pelas idéias neoliberais, que sustentaram eforam sustentadas pelo intenso processo de globalização que se insta-lou a partir do final da década de 1980. Nele, o Estado voltou a ser ogrande vilão, e o mote bíblico: “abram, privatizem e estabilizem quetudo mais lhes será dado por acréscimo” varreu os céus como a verda-de que prometia o progresso e a redenção.

Foi justamente no meio desse aprofundamento da crise que o neo-liberalismo buscou de novo em seus porões o conceito de progresso,associando a liberdade dos mercados globais a um círculo benévoloda lógica do capital.

Os benefícios da globalização dos mercados eliminariam a misé-ria, as guerras e o papel dos Estados Nacionais mundo afora, realizan-do a curto prazo a utopia do progresso, agora fortemente amparadopor um marketing também global. Os resultados concretos estão sen-

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do muito diferentes, e mais uma fantasia do mito do progresso se foi,não restando quase nada a comemorar.

O fracasso do socialismo significa que as sociedades complexasnão se viabilizam sem a auto-regulação de uma economia de merca-do. Construir hoje um metarrelato que assuma o frio e cruel capitalis-mo, mas que ainda assim possua a força dramática e a compulsão deum relato marxista, por exemplo, não parece tarefa fácil; propor àsnovas gerações a imagem do “cowboy bushiano”, ou do sorridentevendedor Tony Blair para substituir no seu imaginário figuras comoLenin e Guevara.

Sabemos que cada situação histórica é única e requer sua própriateoria, então como substituir a teoria marxista por uma outra doutrinageral de dominação que amarre as complexidades da era global e rein-troduza utopia e propostas de solução?

Progresso é um conceito relativo, Ortega y Gasset lembrava que,para os antigos fabricantes de piteiras de âmbara, o mundo estaria pro-gredindo se mais pessoas desejassem fumar com piteiras de âmbara.

Hoje a manipulação mediática induz o indivíduo a acreditar queele será muito mais feliz se substituir seu aparelho de TV por outrocom profundidade menor, agora de plasma, ainda que lhe custe 10 ve-zes mais.

A questão central é quanto desse progresso podemos suportar.Dito em outras palavras, com Bauman, a mente humana pode domi-nar o que ela tem criado? Nietzsche discorria sobre o homem comoum animal não fixado em contínuo processo de acabamento por meioda produção e da cultura. Diante do relâmpago ele foi capaz de passarda oração ao pára-raios, reduzindo o seu medo e limitando o risco.Mas a mesma técnica e o conhecimento que nos criam blindagens,próteses, espaços protetores e roupas de abrigo também nos tornamdependentes deles, criando novos e imensos riscos. Imagine-se umcolapso na Internet hoje, para não dizer o desespero de nós todos se osmagníficos telefones celulares parassem de repente de tocar; o mun-do praticamente “acabaria”.

O atual processo de globalização acelerada é um bom exemplo decontrafluxo do verdadeiro progresso; a ideologia liberal permite queo capital seja cosmopolita; sua pátria é onde ele pode render bem.Também são cosmopolitas os grandes jogadores de futebol, mais ain-

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da, num mês de Copa do Mundo, que os astros da música. No entanto,os trabalhadores em geral continuam impedidos de circular livremen-te pelo mundo global. A globalização não amplia os espaços; estrei-ta-os, não assume responsabilidades sociais e ambientais. Pelo con-trário, acumula problemas.

A história é o resultado de numerosas e complexas intenções par-ticulares que se entrecruzam, enlaçam e desviam. O homem não fazpropriamente a história, está enredado em um cipoal de histórias. Aorelacioná-las, faz surgir outras novas. Não há um farol que indiqueum caminho a seguir. Abrir uma clareira nesse cipoal significa ser ca-paz de cultivar formas de conduta e pensamentos originais, e não pa-dronizadas pelo pensamento único globalizante. Isso significa menosrapidez, o resgate do capricho, o cultivo do sentido local, a capacida-de para desconectar-se e não estar disponível no momento. Sempreacessível e conectado passou a ser o lema do progresso da era da tec-nologia e da informação.

Sentimo-nos culpados, e temos de justificar não se sabe paraquem quando não estamos conectados. Nossas casas, últimas zonasteóricas de intimidade, são invadidas até nos fins de semana por insa-ciáveis operadores de telemarketing, agredindo com vendas de pro-dutos indesejáveis. Fica parecendo um enorme privilégio podermosnão fazer parte obrigatória de uma rede, voltando a sermos bons vizi-nhos das coisas mais próximas, como dizia Nietzsche.

Para o filósofo, o historiador virtuoso seria aquele que se opõe àtirania real, nada contra as ondas da história e sabe lutar contra elas.Em suma, escovar a história contra pêlo, como dizia Benjamin. Nãoaderir ao cortejo triunfal que continua a marcha sobre aqueles quejazem por terra. Para Benjamim, os arcos do triunfo celebram aguerra e o massacre, assim como as pirâmides e outras maravilhasda civilização só puderam ser feitos com o sofrimento e a escravidãode multidões.

O que possibilita a capacidade de criticar e julgar é a construçãode zonas de descanso para reflexão que ajudem a alargar a visão eabranger aquilo que é excluído do ritmo alucinante do chamadoprogresso. A queda da Basílica e o trágico terremoto de Lisboa de-moram meses até serem noticiados em cidades mais longínquas e ou-tros países.

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Hoje tudo se converte em instantaneidade e proximidade; o espa-ço da reflexão desapareceu, mas, como lembra Safranski, quem se di-rige depressa demais a qualquer lugar não está em lugar nenhum. Porisso, quando faziam longas caminhadas a pé, os primitivos da Austrá-lia sentavam-se algumas horas antes de entrar no lugar do destinopara dar tempo à alma de chegar.

Sobre estarmos aqui e estruturarmos uma visão excessivamentepessimista, fica com Marleau-Ponty, quando dizia, em suma: “cami-nhamos e não progredimos. Transformar caminhada em progresso éelaboração ideológica das elites”.

A incorporação das tecnologias dá forma ao sistema das tecnolo-gias da informação, ao sistema produtivo global; gerou uma espéciede tecnologia do conhecimento que contraditoriamente atribui ao tra-balho tanto mais importância quanto mais barato puder ser seu custo.Isso agrega crescente importância à utilização da mão-de-obra muitoprecária e pessimamente remunerada, surpresa para todos que imagi-naram a globalização na década de 1980, incluindo a mão-de-obra decaracterística informal, especialmente quando mantida nos seus paí-ses de origem pobres, de modo a não demandar custos sociais com osimigrantes nos países ricos.

O valor mercantil do trabalho diminui com a massificação do co-nhecimento, transformando-se em um bem acessível a todos, padro-nizados e socializados pela tecnologia da informação. Acessível amuitos, ele deprecia continuamente o seu valor. Um excelente exem-plo é a queda da remuneração real de várias categorias como operado-res de computador e de telemarketing.

A questão central é que lutar contra esse sistema que bem ou malmantém a máquina econômica em movimento é atacar os própriosprincípios do capitalismo, no momento em que nenhum outro siste-ma, ainda que sobre a forma de utopia, aparece no horizonte comofonte de alternativa real.

Um exemplo que já virou clássico na condição do trabalho danova lógica global é o Wal-Mart, a maior empresa do mundo, que setransformou em um símbolo da cultura capitalista neste início de sé-culo XXI, faturando cerca de 260 bilhões de dólares, portanto, em suacadeia global, alguma coisa parecida com metade do PIB brasileiroou mexicano. Ela atende a mais de 100 milhões de consumidores por

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semana. Em cada época da história do capitalismo, certas grandescorporações assumiram um caráter “produtípico”, como a Ford, a Ge-neral Motors e depois a Microsoft foram, respectivamente, em mea-dos do final do século passado. Vamos nos lembrar que Ford, GeneralMotors e GE construíram aquela pujante classe média americana, queconstruiu um padrão de consumo americano como se podia ver, porexemplo, na série de televisão “Anos Incríveis”.

Hoje, paradigma disso é o Wal-Mart: 150 mil trabalhadores sónos Estados Unidos da América, quando a média salarial doWal-Mart é de 19 mil dólares por ano e a linha de pobreza dos EstadosUnidos é de 18 mil. Quer dizer, alta tecnologia e salários médios pró-ximos à linha da pobreza.

Isso infelizmente é o capitalismo deste século XXI, certamentemuito mais perverso e excludente do que foi o capitalismo em seu“período de ouro”.

Nesses últimos anos, o discurso neoliberal varreu as economiasnacionais, e a conseqüência desse processo foi uma sucessão de crisesque afetaram a América Latina e vários grandes países da periferia dosistema, provocando um aumento significativo da explosão social emboa parte do mundo e acarretando marginalização de grupos até re-centemente integrados ao padrão de desenvolvimento. Enquantoisso, a revolução nas tecnologias da informação e da comunicaçãoelevou incessantemente aspirações de consumo de grande parte dapopulação mundial, inclusive dos excluídos. É necessário lembrarque os mesmos outdoors de um produto expostos em uma rua de Ma-nhattan são expostos em uma favela do Rio de Janeiro ou de São Pau-lo. O consumidor é muito diferente, apesar de o outdoor e de o produ-to serem os mesmos.

Os países latino-americanos haviam respondido com grande ímpe-to ao discurso hegemônico de integração com os mercados globais; ocrescimento das importações sobre o PIB quase dobrou durante as duasúltimas décadas do século XX, evidenciando um grande esforço de in-tegração. Mas a década de 1990 e o início de 2000 foram mais um pe-ríodo perdido na economia latino-americana, e o único aspecto positi-vo foi o controle de alguns dos processos hiperinflacionários na região.

A população latino-americana abaixo da linha de pobreza evo-luiu de 41% em 1980 – 136 milhões de pessoas – para 44% em 2003 –

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237 milhões de pessoas –, o que quer dizer que, de 1980 a 2003, maisde 100 milhões de pobres se incorporaram na América Latina.

A proporção de pessoas ocupadas nos setores informais ou de bai-xa produtividade tinha atingido quase 60% da força de trabalho em2000. O Brasil só começou a reverter esse quadro nos dois últimosanos, em função de um crescimento econômico finalmente um poucomais elevado.

Agrava-se entre os mais jovens a descrença na possibilidade deascensão social e na melhoria da situação pessoal e familiar por meiodo próprio trabalho, transformando-se em exércitos industriais de re-serva do crime organizado; as classes médias definham e amplia-se asensação generalizada de insegurança.

A sociedade brasileira convive pela primeira vez com uma geraçãode adolescentes que cresceu em comunidades integralmente controla-das muitos casos por facções de criminosos, vivendo na extrema vio-lência, nas quais a agressão por armas de fogo e de morte são banais.

O antropólogo britânico Luke Dowdney esteve aqui há cincoanos estudando as favelas do Rio de Janeiro e fez algumas constata-ções importantes. Essas crianças são tanto vítimas como agressores; asociedade desejou que elas crescessem nesse ambiente hostil e agoratêm de sofrer as conseqüências e assumir, queira ou não, as responsa-bilidades. As crianças vão para o crime porque têm poucas opções.Elas perdem rapidamente a infância e são forçadas a viver repentina-mente como adultos, sabendo, também, que, quando “normas inter-nas” não são seguidas, a penalidade é a morte.

E como falar para elas de direitos humanos?No afã de manter elevadas as taxas da acumulação e diante da ree-

ducada renda média mundial, o capitalismo global avança agora parasua nova fronteira: o mercado da pobreza. A Nestlé descobriu aqui noBrasil que uma lata de leite condensado em regiões pobres é presentede aniversário. Ela anunciou esse produto com uma embalagem dou-rada e laço impresso em fita vermelha, provavelmente 20% maiscaro, que será o novo mascote da empresa no País.

Um bom exemplo da inclusão dos pobres é a maneira pela qual seestá expandindo nas regiões miseráveis africanas o mercado de tele-fonia celular. No árido topo de uma montanha africana, apanhar águado rio pode levar quatro horas; a iluminação é à luz de velas e para co-

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zinhar muitas vezes se faz uma fogueira. Mas seus habitantes estãosendo convencidos pela propaganda de que precisam de um telefonecelular, senão não serão felizes.

Hoje há dezenas de milhões de assinantes desses serviços naÁfrica Subsaariana; aldeões muito pobres gastam dois dólares pormês para comprar cinco minutos de créditos; províncias da Serra doCongo construíram antenas de 15 metros de comprimento improvi-sando topos de árvores para captar sinais. Mas como carregar bateriassem eletricidade? Pensou-se em carregadores movidos a pedal de bi-cicleta, mas isso exige uma bicicleta, propriedade rara na África rural.A solução foi utilizar baterias de automóvel carregáveis em postos degasolina por indivíduos que se locomovem de ônibus e cobram umdólar para recarregar o celular.

O capitalismo global mostra mais uma vez sua imensa capacida-de de adaptação e consegue explorar aquela que talvez seja sua últimafronteira de acumulação. Esses pobres africanos estarão comendo demodo ainda pior, mas conectados ao mundo em tempo real.

Em meio a esse contexto avassalador em que a lógica do capitalse impõe de maneira tão plena sobre considerações sociais e a ética,como situar os direitos humanos? Nas ciências médicas, o resultadodo progresso parece se autolegitimar por seus impressionantes avan-ços, fazendo as áreas da medicina adquirirem uma auréola mágica de-terminista que as coloque acima da razão e da moral; discursos lauda-tórios sobre o aumento da expectativa média de vida, novas compe-tências de cura de alguns cânceres e os maravilhosos transplantes deórgãos parecem desqualificar como absolutamente sem sentido qual-quer restrição ou maneira como avança a tecnologia da saúde, que setransforma em sinônimo de progresso. Restrições contra a excessivamedicalização ou dependência tecnológica da medicina, posições decautela contra o uso excessivo de medicamentos, objeções éticas con-tra os imensos riscos da manipulação genética ou a qualidade da vidados transplantados são questões encaradas sistematicamente comoposição reacionária de quem não quer o progresso.

Uma série de depoimentos de pesquisadores importantes, no en-tanto, tenta alertar para as conseqüências dessa primazia: uma técnicasubordinada crescentemente ao lucro privado, e não a uma concepçãode saúde verdadeiramente pública e plena de valores e significados.

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Cientistas responsáveis por padrões de referências relativas dediagnósticos de saúde apertam cada vez mais os índices máximos per-mitidos para o indivíduo médio ser considerado sadio, reforçandomedicalização preventiva para atenuar riscos. Cada vez que se faz umcheck-up ultimamente, esses limites não estão se reduzindo.

Um importante especialista internacional na área de check-ups,empolgado com seus recursos bioeletrônicos de ultima geração, de-clarou recentemente que não há indivíduos sãos, apenas doenças nãodiagnosticadas. O imperativo da medicalização está estreitamenteatrelado à lógica do retorno do investimento da pungente indústria dosetor da saúde, cada vez mais concentrada e transnacional.

Frank Furedi, professor da Universidade de Kent, denuncia queaté questões que durante séculos foram classificadas de existenciaisestão recebendo nomes de doenças e drogas específicas para o seu tra-tamento. É o caso da velha e comum timidez, agora diagnosticadacomo fobia social.

Furedi lembra que, quando um rótulo médico é fixado, a indústriafarmacêutica é sua parceira no esforço de medicalização e, no caso, játem uma pílula contra a timidez. Uma criança que tem problema deconduta na escola e é encaminhada para um serviço médico que de-tecta fobias noturnas e anorexias, ao ser medicada em seus sintomas e“normalizada” com uma droga lícita, é considerada caso resolvido.

O que significa nessas circunstâncias falar em direito à saúde?Furedi exemplifica que, em um boletim de divulgação médica,

especialistas afirmam que a paixão amorosa agora é uma doença ge-nuína que precisa receber atenção especial e ser diagnosticada antesque seja tarde demais. Nas revistas de divulgação científica é que es-tão aparecendo casos assim, e os estímulos estão nos outdoors de to-das as cidades importantes do mundo: “disfunção erétil agora tem so-lução, consulte seu médico”; “como você pode ser esbelta tanto quan-to a modelo ao lado perdendo peso com rapidez, procure um especia-lista”. Já quase não há preocupação se o sexo na adolescência é praze-roso ou psíquico e moralmente adequado; se feito com uso de preser-vativo, “tudo bem”.

Pesquisa publicada na revista americana Ilustração Médica

mostra que a probabilidade de um paciente obter do seu médico o re-médio que deseja, mesmo que não seja o mais indicado, aumenta

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quando o cliente pede por influência da propaganda. Os médicospesquisados dizem: “afinal, nós também queremos deixar os pacien-tes felizes”.

O uso de drogas para tratar distúrbio de hiperatividade por deficit

de atenção, uma nova doença, cresceu mais de 50% de 2000 a 2004,na faixa de 20 a 44 anos. No entanto, não há nenhuma preocupaçãosistemática de identificar por que as pessoas estão mais desatentas oumais impotentes.

Mais de 400 milhões de dólares de propagandas gastos desde2004 colocaram o Viagra e seus concorrentes entre as drogas demaior venda nos EUA. Mas sete anos após o enorme sucesso do lan-çamento, sua curva de vendas começa a cair. Parte disso é atribuída aoalerta dos médicos que relacionam o uso da droga com formas rarasde cegueira. Assim, na esperança de aumentar as vendas, a Pfizer vailançar novas campanhas, e diz seu diretor de marketing: “achamosque é uma oportunidade para expandir nosso mercado. A propagandavai incentivar homens mais jovens a tomar o remédio; além disso, hácrescentes acusações de manipulações de pareceres especializadossobre efeitos positivos e negativos de drogas por parte da indústria”.No caso famoso, o New England Journal of Medicine acusou a Merckde alterar dados dos resultados de testes clínicos importantes para di-minuir o peso dos riscos às doenças do coração. Finalmente, pesquisafeita pela revista científica britânica Nature também revelou que vá-rios especialistas médicos que recomendam as regras de prescriçãodos medicamentos recebem pagamentos da indústria farmacêutica.

Direito a saúde, direito a informação correta, direito a que tipo desaúde, direito ao quê?

Essa medicina tecnocientífica transformou o nascimento de umacriança, de uma função fisiológica, para a qual o organismo da mulheresteve desde sempre preparado, a um evento fundamentalmente ci-rúrgico-hospitalar.

Como lembra Iaconelli, quando o corpo humano passa a ser con-siderado incapaz e há necessidades de constantes correções dos seusdesvios biológicos, a maternidade é vista como fábrica parturiente,como máquina, e o bebê, como produto.

O parto transformado em evento cirúrgico vê a mulher meramen-te como recipiente a ser esvaziado. Os índices de cesarianas no Brasil,

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quando comparado com as recomendações da OMC, é de mais de trêsou duas vezes e meia.

Winnicott, famoso psicanalista, dizia que os médicos são muito ne-cessários quando algo dá errado, mas eles não são especialistas nas ques-tões relativas a intimidades vitais, tanto para a mãe quanto para o bebê,que precisam apenas de recursos ambientais que estimulem a confiançada mãe em si própria, oposto ao que faz o aparato médico-cirúrgico.

Arrogância e falta de abertura para com técnicas alternativas éuma característica comum da medicina contemporânea. Só muito re-centemente as normas hospitalares reconheceram que crianças sarammais depressa em ambiente hospitalar quando suas mães podem ficarcom elas, coisas que as mães estavam cansadas de saber. Enquantoisso, hospitais da periferia, carentes de recursos, substituem comenorme vantagem as caríssimas invasivas e frias encubadoras pelastécnicas milenares da “mãe-canguru”.

Quanto ao direito a uma morte digna, novas técnicas de manuten-ção de vida artificializada foram desenvolvidas e agridem o senso co-mum. Há um novo reinado das UTIs; é a morte cercada pelos familia-res. Aspirações atávicas da humanidade desaparecem quase por com-pleto, os doentes atuais morrem mais sós e mais lentamente, sedadospara suportar agressões de tubos e agulhas, enquanto as famílias fi-cam mais pobres. A reação da sociedade mal começa a ser sentida nasações jurídicas, tentando garantir o direito do doente de determinar deque forma quer morrer.

Jean Luc Nancy, famoso filósofo francês, morto recentemente,fez um relato filosófico do drama do seu transplante cardíaco e dasconseqüências dos recursos para evitar a rejeição: “meu novo coraçãoera um estrangeiro. A intrusão de um corpo estranho no meu pensa-mento”. A experiência trágica de Nancy começou com ele incorpo-rando como um pedaço de si a morte de outro ser. Dele recebeu um ór-gão tão íntimo, transformado e reciclado como uma peça de reposiçãoem uma espécie de rito de sacrifício de outro. A possibilidade de rejei-ção instalou nele uma condição de “duplo estrangeiro”: de um lado, oórgão transplantado, e, de outro, seu organismo lutando para rejei-tá-lo, enquanto sua vida dependia irreversivelmente da capacidade deenganar o próprio corpo, baixando brutalmente as defesas imunológi-cas por mecanismos químicos.

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Nancy sobreviveu ao transplante, morreu após uma década deluta contra um linfoma produzido pelos efeitos dos remédios contrarejeição. O câncer que emergiu foi um novo estrangeiro ameaçandosua integridade. Isso exigiu novas intrusões violentas de quimiotera-pia, radioterapia, mutilações cirúrgicas, próteses etc.: “eu acabei pornão ser mais que um fio tênue de dor em dor, de estrangeiro em estran-geiro, conduzido a um regime sem fim de intrusão, a um sentimentogeral de não poder ser mais dissociado de uma bateria de medidas, ob-servações químicas institucionais e simbólicas”. Para Nancy, valeu apena viver mais alguns anos nesses termos?

Para os médicos, para as empresas e os fabricantes desses medi-camentos certamente sim, é uma bela experiência. E para ele, valeu?

“Eu fui reduzido a um andróide de ficção científica, uma espéciede morto-vivo, como me disse um dia meu filho: nós somos partes,como semelhantes meus, cada vez mais numerosos do começo deuma mutação.” A medicina contemporânea gera um imenso exércitode mortos-vivos que perambulam pelos ambulatórios e vivem presosa tubos de UTIs.

Ninguém é eterno, é preciso perguntar a todos os pacientes nessacondição se ainda lhes interessa viver, se a qualidade de vida que le-vam valem a pena. Esse é o direito derradeiro, uma escolha que só oindivíduo em causa pode fazer; nem a equipe médica mais qualificadapode assumir esse direito.

Que avaliação retrospectiva nossa civilização fará em alguns mo-mentos futuros sobre a eugenia liberal, regulada pelo lucro e pelas leisde mercado? Terá sido um progresso ou uma aventura trágica?

A visão neoliberal do desenvolvimento das biociências está lon-ge dessas preocupações; para ela reconhecimento é redenção, é sóocorre em ambiente de ampla liberdade, devendo a sociedade assumirtodos os riscos.

Especialistas hoje revelam sua consternação pelo fato de que osdiscursos atuais sobre tecnologia genética, incluindo investigação comcélulas-troncos, teria esquecido totalmente o debate inacabado sobre atragédia da energia nuclear transformada em bomba atômica. Se a des-graça ocorrer, será tarde demais, só restando um Oppenheimer arre-pendido bradando aos céus que as mãos dos cientistas se mancharamde sangue com Hiroshima e Nagasaki, como ocorreu naquela época.

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Habermas tem clamado no deserto para fazer compreender as eli-tes contemporâneas e as poderosas corporações globais que a progra-mação genética estreita consideravelmente o espaço da liberdade doshomens.

Entende-se que o homem cortado geneticamente sob medida edestilado a partir de programas pode perder aquilo que parecia a Kanto critério decisivo para diferenciar o homem do mundo das coisas e daanimalidade: a dignidade.

A carta dos direitos fundamentais da União Européia, proclama-da em Nice, prevê a proibição de práticas eugênicas que vigiem a se-leção de pessoas e a clonagem reprodutiva de seres humanos, masessa não é a tendência prevalecente nem nos EUA, nem em vários paí-ses. A pesquisa continua a avançar rapidamente, alimentada pelosimensos interesses das indústrias farmacêuticas.

A exigência do mercado é de que haja total liberdade de pesquisadiante de qualquer chance realista. Os riscos incontroláveis e imensosde alterações genéticas e de defeitos físicos e mentais são deixados “aDeus dará”. Seria necessário separar uma eugenia defensiva de outraagressiva, mas esses limites são poucos definidos e é difícil imporfronteiras precisas.

As atuais fronteiras são ditadas meramente por forças de prefe-rência do mercado. Que efeito terão na autocompreensão da nossa es-pécie os implantes de chips e a nanotecnologia, que prepara a fusão dohomem à máquina? Já se prometem microrrobôs capazes de circularpelo corpo humano, unindo-se aos tecidos orgânicos para deter pro-cessos de envelhecimento e estimular funções do cérebro. Preten-de-se superar aquilo que se chama “limitações do hardware huma-no”, enchendo-o de próteses destinadas a aumentar o rendimento e ainteligência.

Para onde esse processo nos conduzirá? Que direitos do homemele pode afetar?

É essa a direção a que a humanidade aspira como valor futuro, ouela está sendo imposta como resultado de uma ciência posta a serviçoda acumulação de lucros?

Os defensores da eugenia liberal tentam demonstrar que sob oponto de vista moral não existe diferença considerável entre a eugeniae a educação: se programas de treinamento e administração de cresci-

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mento podem ser decididos pelos pais aos filhos, por que não inter-venções genéticas? A questão central é que a liberdade dos pais nãopode colidir com os direitos éticos dos filhos.

Quais os impactos na estrutura física de um indivíduo em cresci-mento ao saber mais tarde que, irreversivelmente, o seu design foi fei-to por uma outra pessoa? Como se sentirá um adolescente que é ho-mem mas desejaria ser mulher ao saber que é homem porque isso lhefoi imposto geneticamente pelos seus pais? Alguém impôs a ele essasrestrições de características irreversíveis e inapeláveis sem consul-tá-lo, e nem poderia ter feito.

Mas, para vários importantes cientistas, a ameaça mais grave àhumanidade nesse início de século XXI é o ataque sem trégua ao meioambiente decorrente da lógica, da produção global e da direção dosvetores tecnológicos, contidos no atual conceito de progresso.

Está em jogo o direito das gerações futuras de ter um habitat quelhes permita existirem. A biodiversidade do planeta está sendo corro-ída e variedades geneticamente valiosas, destruídas, antes que possa-mos catalogá-las.

Em apenas 50 anos as novas tecnologias de desenvolvimento in-dustrial alteraram muito mais profunda e rapidamente os tênues equi-líbrios dos ecossistemas que sustentam a vida da Terra do que emtodo o período anterior. Nesse período, a quantidade de dióxido decarbono na atmosfera, que havia declinado lentamente na maior parteda história terrestre, elevou-se a uma velocidade assustadora.

Além disso, o planeta foi se tornando um imenso emissor de on-das eletromagnéticas, produtos das múltiplas transmissões de rádio,televisão, telefone celular, radar... Vejam as antenas da Avenida Pau-lista, cujas conseqüências exatas sobre o meio ambiente e sobre a saú-de humana estão longe de serem pesquisadas e determinadas. E euduvido que haverá muitos incentivos para essas pesquisas, salvo nocaso de uma catástrofe. Os demógrafos prevêem que a populaçãomundial vai continuar crescendo até 2050, quando atingirá algo entreoito ou nove bilhões de pessoas. Já sabemos que será impossível atoda essa massa humana aspirar a um padrão de vida médio, sequerequivalente à renda média dos países.

Ao analisar o Purchase Power Party, a renda per capita da Chinae da Índia, a média delas é de aproximadamente 2.800 dólares por

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ano, e a renda per capita média do Brasil e México gira em torno de7.000 dólares. Se só a Índia e a China conseguirem atingir a renda per

capita média do Brasil e México, e, portanto, crescendo 4.000 dólarespor ano, uma vez que a população chinesa e indiana é de 2,5 bilhões,nós teremos 9 trilhões adicionais de PIB só para essa acomodação,quase o PIB americano.

A Terra está longe de ter recursos naturais sequer para esse movi-mento de China e Índia terem renda per capita parecida com as doBrasil e do México, para não pensar em Europa e EUA. A RevoluçãoIndustrial foi um marco da mudança da tendência, quando começou aqueimar pesadamente carvão e óleo, produzindo os gases do efeitoestufa.

Só no último século, como é sabido, a concentração de gás carbô-nico subiu quase 50% e a temperatura média do planeta elevou-se umgrau. Um quarto das terras cultiváveis está degradada desde 1960; umquinto das florestas tropicais desapareceu. O princípio da responsabi-lidade de Hans Jonas exige que se renuncie às ações que incluem ris-cos de colocar em perigo a vida humana futura. É um princípio mini-malista. No mínimo isto: existem riscos de poder não haver uma gera-ção futura.

O direito humano fundamental de longo prazo é o da existênciacomo espécie. O que fazer?

O direito à água já não existe mais, a água não é mais um bem pú-blico, a água se compra engarrafada. A minha casa é uma das últimasdo bairro do Boaçava que ainda tem uma torneira sem portão. Toda noi-te tem marca de água no chão; alguém precisou beber. Todas as outrascasas já têm um portão. Portanto, já não têm mais a torneira de água.Aquela que, durante séculos, décadas, todos bebiam quando passavam,acabou; não existe mais a água; ela não é mais um bem público. E o ar, eo direito ao ar respirável? A poluição é variável crítica, seja pelo aque-cimento global ou do clima, seja pelas doenças que causa.

The British Heart Foundation conduziu pesquisas provando quebasta uma hora pedalando em “neotráfego” para aumentar significati-vamente os riscos de doença cardíaca. Eu mandei essa pesquisa paraJosé Serra quando era prefeito, pois surgiu uma notícia de que se pre-tendia fazer ciclovias perto das marginais. Ainda bem que isso nãoprogrediu. Após seis horas, danos permanentes podem ser causados

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nos vasos sangüíneos. Depois de seis horas de bicicleta, as pedaladasse tornam menos flexíveis. Ainda assim, nós vemos nossos pobres ci-dadãos tentando ter uma vida saudável pedalando pela cidade, peloIbirapuera e pela USP.

Os índices de aborto também aumentam com a poluição, porqueo fluxo arterial da placenta diminui. Dados do banco de sêmen doHospital Albert Einsten – pelo menos, quem sabe esses dados moti-vem alguns – confirmam que a concentração de espermatozóides nosêmen dos paulistas caiu um terço nos últimos 10 anos.

Entre as causas prováveis, está o consumo de produtos industria-lizados, estresse, poluição, medicamentos, produtos para queda decabelos, exposições à radiação, agrotóxicos, BCP, aquela películaque nós embalamos os alimentos antes de ir para o microondas. O quenós vamos fazer? E as demais toxinas da vida moderna: “se correr obicho pega, se ficar o bicho come”? É consenso que se trata de umproblema mundial.

Já se sabe que o fator ambiental muda o modo como os genes fun-cionam. Para complicar ainda mais, nas metrópoles de baixa renda, onível médio de emissão por veículo particular é bem maior do que nasricas. Baixo controle, veículos antigos, não-utilização de catalisado-res e motocicletas. No entanto, sublime ironia, nossa sociedade glo-bal estruturou-se de tal forma que a rapidez e a velocidade das nossasdecisões implica que os motoboys sejam a profissão dos jovens quemais cresce no Brasil e em várias partes do mundo. E nós ainda recla-mamos deles.

O controle dos danos ambientais tornou-se muito difícil, dada aliberdade quase absoluta que as corporações assumiram na escolha ecriação dos produtos e serviços, transformando-os em objetos de de-sejo aos consumidores para manter viva a lógica da acumulação.

Alguém já perguntou a qualquer um de nós se queríamos o telefo-ne celular há 20 anos? Seríamos todos muito menos felizes se o tele-fone celular não existisse e se continuassem os telefones fixos? Noentanto, como se não bastasse, tornam-se sucata aqueles que não vãopara a África; sucata de aparelhos celulares com todos os seu compo-nentes e resíduos químicos etc.

Na conferência internacional Rio-92, sob a mira dos ambientalis-tas pela primeira vez, empresas e governo passavam a considerar parâ-

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metros ambientais em suas variáveis de planejamento. No entanto,para além do marketing politicamente correto, aquele mesmo marke-

ting que criou agora a chamada “empresa socialmente correta” e fazcom que as empresas produzam “maravilhosos balanços sociais”, gas-tando nas páginas de jornais muito mais do que gastam na creche ou naescola da esquina – e certamente colocando no balanço social até déci-mo terceiro e férias, como acontece em quase todas –, continua ocor-rendo grave e progressivo aumento da degradação ambiental.

O departamento de energia dos EUA anunciou que o país bateuseu recorde de emissão de gases e de efeito estufa em 2004, quase odobro da média anual de 1990. Não estou aqui criticando as grandescorporações, pois creio que elas não têm num sistema capitalista ob-jetivo de promoção social ou questão ambiental; isso é dever do Esta-do e da sociedade. O Estado e a sociedade é que deveriam se impor àscorporações, fiscalizar e cobrar regras rígidas e condições de desen-volvimento tecnológico que as obrigassem a cumprir determinadosparâmetros e sociais. É uma absoluta ilusão imaginar que as empresastenham vocação social ou vocação politicamente correta. Não fazparte da natureza das empresas na lógica capitalista.

E quanto ao direito à locomoção, o método objetivo das políticase guerras atuais converteu-se em manter os caminhos livres para a cir-culação de mercadorias, serviços e para as chamadas elites nômades,enquanto continua impedido o livre trânsito de trabalhadores dos paí-ses pobres para os ricos. A incorporação dos 10 países do leste da Eu-ropa tem uma cláusula dizendo que o tráfego de pessoas e trabalhado-res só será possível daqui a cinco ou sete anos, e ainda por cota e espe-cialidade, até dentro da União Européia. Compromissos envolvendocondições de vida das populações periféricas saíram totalmente dosradares das elites globais.

Leveza e flexibilidade das elites viajando “sem carga sólida”,como diria Bauman, apenas com valises de mão, é agora o maior beme símbolo de poder. A desintegração da trama das responsabilidadessociais e o desmoronamento das agências de ação coletiva fazem par-te desse “alívio de carga sólida” exigido pelas elites de maior e cons-tante fluidez, fonte principal de sua força e invencibilidade.

Para concluir então, na era da liberdade do consumidor, homens emulheres não têm mais a quem culpar por seus fracassos e frustra-

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ções, e certamente não encontram consolo adequado nos seus apare-lhos eletrônicos ou nos telefones celulares se não conseguem traba-lho. E porque não aprenderam as técnicas para passar nas entrevistas,ou são relapsos, ou não sabem fazer amigos e influenciar pessoas, ounão souberam inventar uma atividade informal – afinal, emprego in-formal, por definição, é aquele que inventamos; por que você não in-venta o seu?

Como diz Bauman, existe uma desagradável “mosca de impotên-cia na saborosa sopa da liberdade, cozida na onda da individualiza-ção”. Essa impotência resulta tanto mais odiosa e ofensiva em vistado poder que a liberdade deveria nos conferir.

Não pense que a Internet tem alguma chance de melhorar esseproblema. As realidades virtuais não substituem as crenças reais.Nela se entra com muita facilidade para logo em seguida se perceberapenas ilusão de intimidade e simulacro de comunidade. Os espaçospúblicos estão cheios de pessoas zanzando com telefones celulares,falando sozinhas em voz alta, cegas às outras ao seu redor, todas co-nectadas.

A reflexão está em extinção, usamos todo o nosso tempo para ob-sessivamente saltarmos ao primeiro toque do celular, ou verificarmosobsessivamente as caixas de mensagens, à cata de alguém de algumlugar do mundo que talvez queira falar conosco. Para o discurso hege-mônico, no entanto, isso é o avanço acelerado do progresso: o encana-dor, o eletricista com o celular pré-pago evidentemente na esquina.Enquanto isso, sob o pretexto de defendermos os ataques externosdos excluídos e pervertidos, colocamos películas escuras nos vidrosdos carros para podermos praticar novamente nossas pequenas trans-gressões sem sermos reconhecidos em profunda solidão. Nem os defora nos enxergam, nem fazem um sinal de paz.

Manter uma visão crítica sobre a direção do progresso é estaratento à precarização dos direitos humanos no sentido mais amplo; épreciso captar o verdadeiro sentido de realidade. Só a partir daí a con-dição do sujeito da história pode se manifestar. O significado das in-venções e da atividade científica só aparece quando há sua construçãocom o objetivo histórico.

Leonardo da Vinci esperava que o avião fosse capaz de buscar aneve nas altas montanhas e trazê-la para refrescar as cidades sufoca-

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das pelo verão. Está em seus escritos. Os bombardeios de hoje são aantítese da utopia de Leonardo. É inútil tentar atribuir inocência à téc-nica. Ela pode servir a vários senhores, à guerra e à paz, depende dadireção que a sociedade lhe dá.

A tentativa de compatibilizar as decisões da corrente das opçõesdo capital visando a seu máximo retorno com as efetivas necessidadesda civilização é um progresso de avanços e retrocessos, ganhos e per-das. Embalados pelas novas realidades, assistimos hoje a um mundourbano, social e eletrônico cada vez mais reencantado com as fantasi-as de pertencimento a redes, à comunicação plena em tempo real, àcompactação digital infinita de dados, som, imagem e iPods. Expan-são cerebral, com a implantação de chips e transformações genéticasà la carte.

Diante disso, quedamos-nos maravilhados pela sedução da tele-visão de plasma, do celular. Se não formos capazes de exercitarmos acrítica com força e autonomia necessárias, parece claro que podemosestar dando passos largos em direção a um quadro civilizacional quepode significar uma ruptura da humanidade com suas responsabilida-des de auto-sobrevivência, como cultura e espécie.

O progresso, assim como hoje é caracterizado nos discursos he-gemônicos da parte dominante das elites, não é muito mais um mitorenovado de um aparato ideológico interessado em nos convencer deque a história tem um destino certo e glorioso que depende muitomais da omissão embevecida de multidões do que da vigorosa ação dasociedade e da crítica dos seus intelectuais.

Fiz aqui uma síntese muito rápida de questões muito complexasque envolvem aquilo que eu imagino serem os novos desafios dos di-reitos humanos na era da globalização. Para aqueles que querem ar-gumentos mais bem aprofundados, sugiro a leitura do meu livro O

mito do progresso, no qual desenvolvo isso de uma maneira um pou-co mais profunda.

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II.5. Multiculturalismo, globalizaçãoe direitos humanos

Palestra de 9.6.2006

Juana Kweitel*

Acho superimportante fazer parte desta conversa, pois aANDHEP proporciona uma criação de rede de professores de direitoshumanos no Brasil. No ano passado não podemos participar, masacho muito importante estar aqui, saber qual é a discussão, fazer partedessa discussão e também a oportunidade de conversar com vocês so-bre o que é o trabalho do Conectas.

Creio que todos receberam a revista Sur. Farei uma pequena apre-sentação institucional, porque acho que poucos conhecem o Conec-tas, e é uma oportunidade de criar novas pontes.

O Conectas é uma organização internacional de direitos humanoscom sede aqui em São Paulo. Ele tem a missão de fortalecer o movi-mento de direitos humanos do Hemisfério Sul e também fortalecer ointercâmbio de ativistas e acadêmicos, além destes com a Nações Uni-das. O Conectas nasceu em 2001, na área internacional de direitos hu-manos, em um encontro de formação para ativistas, jovens ativistas dedireitos humanos, que acontece todos os anos aqui em São Paulo e é de-dicado a ativistas de direitos humanos do Hemisfério Sul. Um pouco denossa missão e marca é tentar criar essa idéia de “anúncio global”.

Deve ser apontado que o Conectas tem várias particularidades,além do trabalho com ativistas jovens do Hemisfério Sul. Há espaço

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* Coordenador do Programa Sul-Global da Organização Internacional de Direitos Humanos –Conectas.

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para todos, para quem fala ou não inglês, e tem a particularidade de nãoser só para advogados. Acho também que isso é outra particularidadedo Conectas: não ser uma organização jurídica, mas multidisciplinar,com a finalidade de criar pontes entre ativistas de distintos humanos esobretudo pessoas que trazem distintos temas. É uma espécie de coló-quio que traz, por exemplo, o movimento dos direitos da mulher paradiscutir com o ambiental; possibilita contatos com experiências da cul-tura indígena etc. Eu participei dois anos e saí do colóquio percebendopelo menos a importância da luta do outro. Isso é um pouco da idéia de“conectar”, além de publicar a revista Sur, conectar diferentes lutas.

E do colóquio nasceu a Rede Sul, a Rede Universitária de Direi-tos Humanos – uma rede de professores e professoras de direitos hu-manos de diversos países do Hemisfério Sul que participam do coló-quio. São mais de 40 países agora, e a idéia da rede é dar voz, facilitare promover o trabalho dos professores de direitos humanos do Hemis-fério Sul. Um dos grandes focos de nossa ação é tentar fazer mais co-nhecido o trabalho desses professores, e por isso acho que todo mun-do recebeu a revista Sur deste mês. A revista é um esforço gigantepara dar um espaço para que esses professores do Hemisfério Sul pos-sam publicar. Eu falo do esforço gigante porque são muito poucos osque fazem a revista, que é publicada duas vezes por ano em inglês,português, espanhol, estando integralmente on-line. Acho que quemjá estudou no exterior percebeu que quando se está nas grandes uni-versidades é possível o acesso à base de dados onde estão os artigos ea produção intelectual do mundo inteiro, e quando você volta, nãotem mais a senha para entrar na base de dados, fica-se sem acesso.

É, então, parte da mudança da revista Sur é que ela estará integral-mente on-line e a partir do número seguinte. Além disso, ela pode serfotocopiada também integralmente. Estamos fazendo com os autoresum convênio de direitos autorais diferente, que permite que todomundo possa xerocar a revista para utilizar em aulas e também tradu-zir. Então, são modelos de direitos autorais que procuram promover oconhecimento, e não a proteção do conhecimento.

Ainda sobre a revista Sur, acho importante todo mundo saber queestamos recebendo artigos para o número cinco até o final de junho.Então, estão todos convidados a escrever. O processo editorial é ex-tremamente transparente e supersério. Depois que os artigos são rece-

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bidos, o editor faz uma primeira leitura, mas todos os artigos vão paradois peritos do conselho editorial fora do Conectas. Eles vão sem onome do autor, e assim estamos conseguindo um processo de elabora-ção da revista realmente transparente e sério.

Ainda há dificuldade de conseguir artigos da África e da Ásia.Então, se vocês têm contato com professores desses países, por favor,convidem-nos a escrever, porque precisamos ampliar essa comunida-de que divulga sua produção na revista. A idéia principal é, além dedar voz a professores do Sul, trazer um olhar novo para alguns temasantigos. Nossa sensação é de que a discussão dos direitos humanosnão tem uma crítica sendo aprofundada sobre alguns dos temas. Qua-se que repetimos alguns dogmas sem nos atrevermos a discutir com ooutro. Então, artigos críticos que discutam coisas que são quase luga-res-comuns são bem-vindos, mas também artigos críticos mais ino-vadores.

Vocês verão que foram publicados vários artigos sobre comérciointernacional e direitos humanos, que é um tema novo, mas tambémhá muitos outros que não conhecemos. Portanto, também convida-mos vocês a escreverem não só artigos jurídicos, pois até mesmo arti-gos muito jurídicos não têm passado no filtro do conselho editorial. Aidéia é termos uma discussão mais ampla e multidisciplinar.

Agora começarei com o tema de hoje. Foi extremamente difícilpensar como realmente conectar as idéias grandiosas do multicultura-lismo, globalização e direitos humanos. Quero começar por discutiralgumas das conseqüências da globalização para depois pensar comoas Nações Unidas têm recebido essas conseqüências, mas especial-mente como o sistema global de direitos humanos tem tentado acom-panhá-las.

Para começar, vou dar exemplo da vida cotidiana, situações queestamos enfrentando ajudam a pensar essa questão, pois às vezes po-de-se pensar que multiculturalismo é uma palavra muito “grande” eimpossível aprender. O primeiro exemplo é a Bolívia. Talvez seja umcaso muito particular, mas é um bom exemplo para pensar no multi-culturalismo. Tirando de lado a questão da Petrobras e o fato de estar-mos no Brasil, é bom lembrar que a pesquisa sobre o Índice de Desen-volvimento Humano de 2004 indicou que em torno de 76% dos boli-vianos são mestiços, e só em 2005 a Bolívia elegeu o primeiro presi-

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dente descendente de Aimaras. Evo Morales não fala nenhuma daslínguas indígenas, não foi formado em uma família indígena, mas é oprimeiro que descende de Aimaras, reconhece e levanta a questão in-dígena como um eixo de sua campanha.

Ao mesmo tempo, no Equador, fala-se de uma cisão que aqui nãoé muito discutida: foi criado em 1997 um partido político chamadoPachacuti, um partido político indígena que tem sido crucial na vidapolítica do Estado do Equador nos últimos anos. Esses movimentos,na Bolívia e no Equador, estão realmente ligados a redes globais e or-ganizações internacionais que não são movimentos necessariamentelocais ou nacionais. Acho que esses dois elementos talvez não sejam,mas nos dão a impressão de que estamos presenciando uma reemer-gência, uma reaparição da questão étnica, como um reclamo de umanova forma de convivência intercultural. É curioso que a Bolívia te-nha elegido um presidente indígena, o que creio ser um fator do exem-plo de que a globalização às vezes não é suficientemente estudada emnível local.

Agora, no nível global, um outro exemplo que eu queria trazer eque é muito mais geral é a idéia de como a liberação do comércio temacelerado o intercâmbio de bens na economia global. Nesse caso, parao impacto nos direitos humanos tem sido discutida longamente a ques-tão do acesso aos medicamentos. Sei que hoje já ninguém esquece,quando pensa em direitos humanos e comércio internacional, do im-pacto que o acesso aos medicamentos teve no acordo tríplice. A ques-tão da patente foi muito clara, e também está claro para todos nós que asregras do livre-comércio, as regras da OMC, têm tido um impacto ne-gativo no direito à saúde e na possibilidade de os Estados criarem polí-ticas de saúde pública. Então, gostaria de trazer outro exemplo, menosconhecido, no qual estive trabalhando e que acho importante divulgar,simplificando também outros impactos da globalização.

Há pouco tempo, o Brasil foi demandado pela União Européia noâmbito da OMC, porque proibiu a importação de pneus, pneumáticos,usados ou reformados. A proibição tem duas razões: por um lado,porque, quando se importa um pneu usado, é passível de ser utilizadouma vez mais, mas depois ganha-se lixo, e é um lixo que não temcomo ser processado, não pode ser queimado. Pode ser utilizadocomo asfalto, mas com uma porcentagem muito pequena. Com isso,

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acaba-se importando lixo. A outra razão da proibição é que o pneu éum objeto no qual se concentra água, outro vetor de propagação dadengue. Então, o Brasil proibiu a importação de pneus usados por ra-zão da saúde pública e de proteção do meio ambiente.

Com isso, a União Européia demandou o Brasil na OMC, já que aproibição viola a regra de comércio – regras da OMC. Com isso, se oBrasil perde essa disputa, e tem muitas possibilidades de perdê-la (eunão sou muito otimista na solução desse caso), será obrigado a impor-tar muitas toneladas, em torno de 103 toneladas, a maioria da UniãoEuropéia. Não sei como o Brasil vai processar todo esse lixo, porquenão está preparado para fazê-lo. Esse é outro exemplo de como as re-gras do livre-comércio, que são associadas à globalização, têm em-placado na política nacional dos Estados. Creio que esse caso é umexemplo fácil de ver, na vida cotidiana, um embalo que conhecemos eque pode ser um resultado das regras internacionais. Então, chego auma pergunta: para vocês, é isso a globalização?

Aqui cabe uma definição da globalização do professor ManuelCastels. Ele diz:

“o termo globalização se refere ao fato de que vivemos em sociedadescujas funções centrais são determinadas por processos globais articuladosem tempo real, e a tecnologia da comunicação, de transporte, os meios de co-municação globalmente inter-relacionados, além da criação de Internet e deoutras redes de informática são a espinha dorsal desse processo de interde-pendência global; embora não tenha sido criado pela tecnologia, é por ela in-termediado”.

Creio que a idéia de processos de comunicação em tempo realnormalmente faz parte dos elementos centrais da idéia da globaliza-ção, e nesse ponto eu queria sistematizar cinco conseqüências princi-pais que os dois primeiros exemplos trazem.

Por um lado, no exemplo da Bolívia e do Equador, presenciamosa aparição de novos fatores étnicos: a reaparição da questão identitá-ria como um componente central das lutas políticas. Acho que a rea-parição da questão étnica traz uma mudança forte na idéia da cidada-nia. Em países como a Argentina, as formas clássicas de representa-ção não comportam mais as lutas atuais, e acho que um pouco dissoestá acontecendo também no Equador, e por isso acaba aparecendo

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um partido político que levanta a questão da cidadania indígena comoum eixo central. Agora, na medida em que aparecem novas formas departicipação mais preocupadas com a questão étnica, será necessáriocriar novas formas de inter-relação, formas que reconheçam autono-mia a essas comunidades, que seja realmente respeitada a liberdadereligiosa, reconhecendo novos tipos de pluralismo jurídico.

Acho superinteressante o relatório do PNUD de 2004, que anali-sa essa questão, e realmente recomendo a leitura, porque traz elemen-tos para pensar como conectar a globalização ao reconhecimento des-sas novas identidades étnicas. Uma primeira coisa da globalização é areaparição de valores étnicos. Outra coisa é aparição e a importânciadas redes. Acho que às vezes parece simples pensar que a Internet mu-dou nossa vida e nossa forma de nos comunicarmos, mas realmentehá movimentos globais que há 10 anos seriam impossíveis de se pen-sar. Creio que o Fórum da Justiça Mundial é um exemplo. Esse lemaque fica na nossa cabeça, de que um “outro é mundo possível”. Acampanha do Jubileu 2000 pelo perdão da dívida dos países mais po-bres é um outro exemplo. Mas há muitas outras redes transnacionaisque não são redes à moda antiga, com centros etc. Elas são totalmenteflexíveis, têm momentos de maior força, muitas vezes não se encon-tram, e depois voltam a ser passivas. Essas redes são só uma conse-qüência, mas entender como elas transformam as conseqüências daglobalização é um fenômeno novo.

Agora, o exemplo da discussão sobre os acordos medicinais e aquestão dos pneus põe em evidência a perda do poder dos Estados.Tem havido, na verdade, em função de um aumento da força das re-gras de liberalização do comércio, uma perda da percepção de qual é

o papel do Estado nacional. No caso dos medicamentos, o Brasil temlimites, só que vai poder decidir no Congresso porque aceitou certasregras na OMC no caso dos pneus. É muito possível que a lei a seraprovada não gere nenhum valor perante uma decisão do órgão na so-lução de disputa da OMC, e isso tem gerado certo desconcerto sobrequal o papel da política nacional, dos partidos políticos e da cidadanialocal nessa discussões.

As duas últimas conseqüências são muito óbvias. A primeira é deque na vida cotidiana temos presenciado um crescimento das empre-sas multinacionais. Isso é algo muito evidente, o que também tem dei-

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xado o Estado nacional um pouco desorientado quanto ao seu papel.No Brasil, isso é um pouco menos evidente, mas imagine situaçõesnos países da África, em países em que grandes companhias como aShell têm mais poder, mais dinheiro e mais recursos do que os Esta-dos nacionais, e ainda não temos formas de controlar o poder dessasempresas. Nós tínhamos criado no âmbito dos direitos humanos for-mas de controlar o poder dos Estados, não para controlar o poder dasempresas.

Por último, e mais evidente como conseqüência da globalização eque precisamos lembrar, é uma crise de eqüidade. Temos visto paísesdo Norte cada vez mais ricos e países do Sul cada vez mais pobres, e,no interior de nossos países, não sei no caso do Brasil, mas de outros,como na Argentina, há um crescimento econômico que não traz maiorcrescimento interno. Parece que a globalização em conjunto tem pro-duzido mais iniqüidades, tanto entre os países quanto no interior decada um deles.

Agora, contrariamente a muitos outros, e ainda nesse tópico, tal-vez porque sou muito pessimista, creio que a globalização é um pro-cesso que não podemos reverter. Não vamos conseguir voltar a tercomo grande âmbito da maioria das decisões a idéia da soberania na-cional como eixo da nossa política. Mas penso que é necessário acharformas de controlar a idéia de domesticar esse processo. Por isso,uma tentativa é identificar quais são as conseqüências.

Creio que as Nações Unidas, durante os anos 1990, foram pegasum pouco de surpresa pelo processo da globalização. Foi na Cúpulado Milênio que se retomou o protagonismo nas Nações Unidas peran-te esse processo, tentando dar respostas à globalização, quando sepercebeu que o mecanismo dessa organização mundial estava per-dendo poder perante outros mecanismos, como, por exemplo, aOMC, que tem se transformado em um mito, em que os governos sepreocupam por levar seus melhores diplomatas para defender suasposições, enquanto as Nações Unidas ficavam um pouco em segundolugar nesses anos. Creio que tem grande força o trabalho do secretá-rio-geral, Koffi Annan, por recolocar as Nações Unidas no centro dadiscussão na Conferência do Milênio do ano 2000.

A Declaração do Milênio é como uma refundação dos valores cen-trais das Nações Unidas, trazendo um maior número de chefes de Esta-

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do para a discussão, para reformular e ratificar velhos compromissos.Não traz compromissos novos, mas tentou colocar outra vez as NaçõesUnidas no centro. Na Conferência do Milênio foram desenvolvidas al-gumas ferramentas para tentar fazer frente àquelas conseqüências quecomentei. Os objetivos de desenvolvimento do milênio são esforçosenormes por tentarem criar uma ferramenta que permita medir o avan-ço do desenvolvimento e por tentarem criar obrigações claras ao Nortepara o desenvolvimento do Sul. É uma idéia nova, o oitavo objetivo domilênio, e quando falo no reforço para algo novo, realmente trago essaidéia de que é possível medir o avanço.

Pelo menos para a discussão dos direitos humanos é uma idéianova, e acho que não nos conformamos com a idéia de falar que esta-mos indo melhor, pois ainda há uma população que está em uma situa-ção muito grave, mas o desafio dos políticos nesse momento é tentaravaliar se os países estão fazendo o que eles têm de fazer. No entanto,pelo menos nas comunidades internas, os direitos humanos e os obje-tivos têm enfrentado alguma dificuldade para convencer o público.

Uma outra ferramenta que o secretário-geral colocou para fazerfrente a esse desafio global é a idéia de um compromisso global dasempresas com alguns princípios básicos de respeito aos direitos hu-manos, ao meio ambiente e aos direitos trabalhistas, em um enfoqueparticular, puramente voluntário. Creio que foi a primeira vez que asNações Unidas se colocaram a discutir seus próprios valores comoexigência às empresas, apontando de que maneira elas têm de se colo-car como parte desse compromisso.

Contudo, não há absolutismo nos direitos humanos. Creio quedemorou muito para a maquinaria e o sistema de direitos humanostentar se adequar aos novos desafios da globalização. Sem dúvida, aCorte Penal Internacional é um grande passo, mas a maquinaria geral,esse grande órgão que conhecemos, a Comissão de Direitos Huma-nos, o mecanismo tratado, não havia tentado até agora se modificarperante mudanças grandes como essas no fato social, em que as coi-sas estão sendo decididas não seguindo da maneira como foi desen-volvida desde 1948, mas tentando modificar a estrutura.

E essa modificação aconteceu muito recentemente. Em 15 demarço de 2002, a Assembléia Geral das Nações Unidas decidiu modi-ficar a estrutura de direitos humanos no sistema global. Vocês sabem

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que os compromissos dos Estados com as Nações Unidas são avalia-dos pela Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, aquelacomissão integrada por 53 Estados que se reúnem em Genebra umavez por ano. Era um ato político, quando quem se representava eramos Estados, os diplomatas, e esse era um âmbito extremamente criti-cado. O comentário geral é que era muito político, sendo os Estadosque faziam parte da Comissão justamente os que mais violavam os di-reitos humanos, porque assim tinham um âmbito no qual se prote-giam e evitavam que críticas contra eles chegassem ao público.

A reforma das Nações Unidas no âmbito dos direitos humanosque chegou agora é a eliminação daquela Comissão de Direitos Hu-manos que se criticava por ser muito política e por dominar a discus-são sobre os direitos humanos. É a criação de um órgão novo, o Con-

selho de Direitos Humanos. Esse conselho, que foi criado em marçode 2006, se reuniu pela primeira vez em 19 de junho de 2006. Essenovo Conselho traz algumas mudanças, e eu realmente acho que éuma oportunidade para que a estrutura dos direitos humanos se adapteaos novos tempos, já que há muita coisa para ser definida. Claro quepode ser um âmbito que acabe sendo igual ao anterior, mas a idéia éque não seja, pois ainda tem muita coisa para ser feita.

Quero contar para vocês o que já foi decidido e o que ainda nãofoi decidido, no qual podemos ter alguma influência e voz. Nessenovo Conselho de Direitos Humanos, a principal mudança estruturalé um pouco menor. Antes a comissão era composta por 53 Esta-dos-membros; já a nova tem 47. Esse conselho não depende mais doConselho Econômico e Social, pois é um órgão da “família geral”.Isso de alguma forma fez subir a hierarquia dos direitos humanos den-tro da estrutura das Nações Unidas, já que não é mais um órgão subsi-diário do Conselho Econômico, mas um Conselho de Assembléia Ge-ral no Órgão Superior das Nações Unidas.

Esse novo Conselho vai se reunir muito mais que a comissão.Esta se reunia uma vez por ano, e só. O novo conselho vai se reunirpelo menos três vezes ao ano, em Genebra também. Mas a idéia é ter apossibilidade de se reunir extraordinariamente com a maior facilida-de. A velha comissão também tinha a possibilidade de se reunir extra-ordinariamente, mas isso não aconteceu nunca. A esperança é queessa nova estrutura possa ser estável nas situações de crise.

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Agora, a principal mudança, pelo menos em um caminho na ori-gem, é que Estados que violem os direitos humanos vão poder ser ex-pulsos do novo Conselho. Esse era um mecanismo que não existia.No começo a Comissão era centrada sistematicamente, e alguns paí-ses eram claramente violadores sistemáticos dos direitos humanos.Porém, as discussões sobre essas violações eram feitas a portas fecha-das, além de não haver formas de expulsar esses países da comissão;então, eles estavam sempre se protegendo. Um novo conselho nascecom a nova idéia de que esse país não pode ficar sentado no órgão quecontrola o respeito aos direitos humanos no mundo e ao mesmo tem-po violar sistematicamente esses direitos. Com isso, a solução da cria-ção do Conselho tem a previsão de poder expulsar membros que vio-lam sistematicamente os direitos humanos.

Até agora é o que foi decidido. Todos sabem que o Conselho foicriado com um voto contra dos EUA, o qual cria uma situação difícil,mas a Corte Penal Internacional tem demonstrado que é um órgãouniversal, e pode funcionar apesar da oposição dos EUA. Os Estadosestão negociando agora como esse Conselho vai trabalhar. Não sesabe ainda quais serão os mecanismos do Conselho, sua agenda detrabalho etc. Muitas coisas ainda deverão ser decididas.

Quero focar em três temas que ainda não foram decididos e quesão os mais importantes para fazer com que esse Conselho seja útil ounão para a proteção dos direitos humanos. O primeiro é a questão doque fazer com os velhos mecanismos da Comissão. Havia antes aque-le sistema dos relatórios. Acho que nenhum país foi mais visitado etido relatórios do que o Brasil. Aqui tivemos a visita de Nigel Rodneyno relatório sobre tortura, relatório sobre a independência do Judiciá-rio, execuções sumárias e defensores dos direitos humanos pelo me-nos. Todos esses mecanismos especiais da Comissão de Direitos Hu-manos. Eles podiam receber denúncias, fazer relatórios anuais e visi-tas. Ainda não está claro como todos esses mecanismos serão repro-cessados no Conselho.

O interesse das organizações da sociedade civil é que os mecanis-mos se conservem, porque eles têm demonstrado efetividade paraavançar as discussões e de alguma forma para avaliar a situação dospaíses. E como não há uma posição clara de como se vai decidir, aproposta que está hoje na mesa é que, quando o novo Conselho se reu-

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nir daqui a 10 dias, eles vão estender um mandato do relatório por umano, porque ninguém sabe o que será ainda decidido depois disso.

Então, acho que todo mundo deveria ficar de olho e fazer pro-postas, porque, por um lado, é verdade que o mecanismo tem se es-tendido demais. Na minha posição, tem-se, por exemplo, um relató-rio sobre a independência ao Judiciário que claramente é necessário,além de outros relatórios sobre translado de resíduos em fronteirasx, outros sobre educação, educação de crianças... São mais de 30 re-latórios, e, por isso, acho que é possível que eles passem por um pro-cesso que pode seguramente ser chamado de racionalização. De-ve-se dar a isso uma maior sistematização, mas alguns deles comcerteza têm de ser protegidos, porque ainda têm se mostrado um me-canismo efetivo de proteção.

O ponto mais quente da negociação: decidiu-se que deverá haverum mecanismo de prevenção universal dos direitos humanos. Atéagora, o que havia era um item (9), no qual os Estados discutiam a si-tuação dos direitos humanos em outros Estados. Nesse item, em que,por exemplo, se permitia que se discutisse a situação dos direitos hu-manos no Zimbábue – que é um tema que o Conectas tem trabalhado–, era o único mecanismo de constrangimento global por violação aosdireitos humanos. No momento, era um constrangimento leve, pornão ter sanções econômicas nem exército, mas era o único mecanis-mo, ainda que pelo qual os Estados tentavam se proteger. Por isso,quem violava os direitos humanos tentava estar na comissão, então apossibilidade de perder esse mecanismo de controle de supervisão dedireitos humanos nos Estados particulares é preocupante.

A decisão é que, em vez de supervisionar um país ou outro, ha-verá um relatório global sobre a situação dos direitos humanos nomundo, mas ninguém sabe como o relatório será feito, se quem iráfazê-lo são os próprios Estados, ou se será produzido por especialis-tas; se vão ser avaliados todos os Estados em todos os anos ou só al-guns; se são somente os que integraram o Conselho ou não etc. Umponto que creio ser extremamente preocupante é se esse relatórioglobal trabalhará todos os direitos ou só alguns, porque o Alto Co-missariado dos Direitos Humanos, que trabalhava com direitos es-pecíficos, está no processo de criar um mecanismo do relatório glo-bal que não é o do Conselho.

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Então, o relatório global que Alto Comissariado vai fazer é umaferramenta importante, mas não avançará na discussão, e imaginoque eles manterão a escolha de relatórios de direitos específicos, oque continuará a não funcionar como um termômetro do que estáacontecendo no mundo. Assim, o relatório que o Conselho terá de fa-zer deve permitir avaliar situações diferentes, pois são diferentes paí-ses: nos EUA tratar da questão da tortura, em outros países, outraquestão, e assim por diante. Nossa posição, que tem de estar na Mesa,é que o relatório do Conselho deveria ser feito por um órgão integral-mente composto por especialistas, não pelos Estados, com especialis-tas no formato similar ao dos Comitês dos Tratados. Agora, é certoque isso implica recriar um Comitê a mais, mas deve-se avaliar comoesse Comitê dialoga com os demais Comitês dos Tratados, para nãocriar obrigações a mais aos Estados e elaborar relatórios que ninguémacaba lendo.

Por último, ainda não está claro qual será a participação da socie-dade civil no novo Conselho. É claro que o secretário-geral foi quemcriou o plano especial para a participação da sociedade civil das Na-ções Unidas; por isso, imagino que a participação da sociedade civilnão diminuirá em relação à participação que tinha na Comissão deDireitos Humanos. Isso ainda não está no papel; ainda não se sabecomo essa organização se dará: quanto tempo as organizações terãopara falar, se ainda vão falar sempre no último momento, pois, naComissão, a sociedade civil organizada só podia falar quando todomundo já tinha ido embora. Ou seja, vamos rediscutir a ordem emque nossas organizações poderão falar. Esse é um tema que está ab-solutamente em aberto, porque não temos ainda regras para um ór-gão que depende da Assembléia Geral. É um tema no qual ainda sepodem fazer propostas.

Eu acho que a experiência da criação do novo Conselho de Direi-tos Humanos é um bom exemplo, e devemos pensar em novos, por-que ainda podemos discutir nacionalmente as questões que o Brasilvai levar para o âmbito internacional. Há muita coisa para ser feita, ese a idéia é recriar uma estrutura de direitos humanos realmente efici-ente e que dê respostas àqueles desafios da globalização, é precisoopinar, é preciso apresentar questões como: Qual vai ser a participa-ção da sociedade civil? Qual vai ser o mecanismo de supervisão?

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Qual vai ser o papel dos relatórios especiais? São todas discussõesque ainda estão abertas, mas o Conselho terá um ano para decidir mui-tas delas. Então, para quem trabalha com direitos humanos é um mo-mento crucial para tentar influir e fazer com que quem esteja na ma-quinaria dos direitos humanos esteja à altura dos desafios que a globa-lização apresenta.

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III

EDUCAÇÃO, ABANDONO

E DIREITOS HUMANOS

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III.1. A formação para os direitos humanos: umanova perspectiva para o ensino jurídico?

Fernanda Rangel Schuler*

A discussão sobre a questão dos direitos humanos está muito emevidência, particularmente em função das situações de injustiça insti-tucionalizada e da criminalidade cotidiana, por um lado, e do avançodos movimentos sociais, que lutam pelo estabelecimento da cidada-nia ativa e igualdade socioeconômica e política, por outro. A violaçãosistemática aos direitos humanos em nosso País, em todas as áreas, éincompatível com qualquer projeto de desenvolvimento nacional e decidadania democrática.

Os direitos humanos surgem como narrativa histórica produzidapor diversos intelectuais franceses no século XVIII, dentre eles Espi-noza, Locke, Montesquieu, Rousseau, época em que eclodem asgrandes revoluções burguesas. Os direitos humanos foram construí-dos na formação da sociedade moderna, no contexto da RevoluçãoFrancesa, da Revolução Industrial, cujas conquistas imprimiram umanova visão dos direitos do indivíduo e do cidadão, culminando com aDeclaração Universal dos Direitos Humanos (1948), promulgadapela Organização das Nações Unidas. Nascem não só para evitar atro-cidades, mas para a promoção da paz.

Hoje, temos uma legislação bastante avançada em relação aos di-reitos humanos. O direito interno já incorporou o conteúdo e os avan-

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* Advogada, especialista em Educação pela UFPE, técnica em assuntos educacionais do MEC.

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ços contidos em vários instrumentos internacionais existentes, tantono sistema global como no regional, de proteção e defesa dos direitoshumanos, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos Humanos,aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezem-bro de 1948, dos Pactos Internacionais de 1966, sobre direitos civis epolíticos, e sobre direitos econômicos, sociais e culturais.

No tocante aos planos nacionais, podemos mencionar o PlanoNacional de Educação em Direitos Humanos, lançado no dia 10 dedezembro de 2003, na gestão do governo Lula; o Plano Nacional paraa Erradicação do Trabalho Escravo, o Programa Nacional dos Direi-tos Humanos, dentre outros. Há de se considerar, entretanto, que mui-tos desses avanços ainda esperam por ser materializados na prática.

Conforme acentua Comparato (2003, p. 65):

“o conjunto de direitos sociais acha-se hoje, em todo o mundo, severa-mente abalado pela hegemonia da chamada política neoliberal, que nadamais é do que um retrocesso ao capitalismo vigorante em meados do séculoXIX. Criou-se, na verdade, uma situação de exclusão social de populaçõesinteiras (...)”.

Em face das disparidades e injustiças sociais, acentuadas pelaglobalização econômica do mundo contemporâneo, novas formas desolidariedade entre os cidadãos vêm se desenvolvendo.

O discurso que vem sendo proposto por diversos atores da socie-dade (organizações não governamentais, associações, movimentos),no atual contexto sociopolítico, contempla o eixo para uma políticaeducacional emancipatória que tem como princípios o combate à dis-criminação, a promoção de igualdade entre as pessoas, o fortaleci-mento dos canais de participação popular, o combate ao trabalho es-cravo, a proteção aos direitos das crianças, adolescentes, homosse-xuais, afro-descendentes, mulheres, idosos e pessoas portadoras dedeficiência, bem como o aperfeiçoamento dos meios para a apresen-tação das denúncias de violação aos direitos humanos, o conhecimen-to dos direitos fundamentais, o respeito à pluralidade e à diversidadesexual, étnica, racial, cultural, de gênero e de crenças religiosas.

Nessa perspectiva, é mister destacar a importância da reflexão so-bre os direitos humanos nas universidades, em particular, nos cursosjurídicos, recompondo também através do resgate de seu desenvolvi-

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mento histórico o seu nível político de resistência ao abuso de poder. Éassim que Ihering (2003, p. 27) define que “A vida do direito é a luta, aluta de povos, de governos, de classes, de indivíduos. (...) O direito éum labor contínuo, não apenas dos governantes, mas de todo o povo.”

Dessa forma, pode-se argumentar que a universidade e, no nossocaso, os cursos de Direito devem se constituir em um espaço de refle-xão-ação, com importantes impactos para a transformação da realida-de social. Isso porque as formas de organização social, a questão dorespeito aos direitos humanos, a questão da democracia estão postaspara todos os segmentos políticos e ideológicos.

Em face desse contexto é que podemos ressaltar alguns aspectosrelativos aos cursos jurídicos, visto que, segundo Dornelles (1989, p.119), “as Escolas de Direito são o lugar privilegiado – não o único, noentanto – de criação, produção, reprodução e divulgação do saber ju-rídico”, com vistas a uma formação que leve os indivíduos a exerce-rem uma prática diferenciada na sociedade em que vivem.

Os cursos de Direito não podem ficar restritos a uma exacerbaçãodogmática que cultue os códigos, as leis específicas, os regulamen-tos; fechados em uma cultura positivista, normativa, que está voltadapara a manutenção do status quo, uma vez que a lei também pode serinstrumento para promover mudanças.

Para Chauí (2003, p. 1), a universidade é uma organização sociale como tal não pode passar alheia às mudanças e transformações so-ciais, econômicas e políticas que permeiam as relações humanas nonosso século. Por esse raciocínio Chauí destaca que:

“A partir das revoluções sociais do século XX e com as lutas sociais epolíticas desencadeadas a partir delas a educação e a cultura passaram a serconcebidas como constitutivas da cidadania e, portanto, como direitos doscidadãos, fazendo com que, além da vocação republicana, a universidade setornasse também uma instituição social inseparável da idéia de democracia ede democratização do saber: seja para realizar essa idéia, seja para opor-se aela, no correr do século XX a instituição universitária não pôde furtar-se à re-ferência à democracia como uma idéia reguladora.” (2003, p. 1)

Nesse sentido, reforça-se a idéia do direito como um processo di-nâmico, cuja criação, interpretação e aplicação não podem estar des-vinculadas da realidade social.

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Dentro desse contexto, é mister apresentar as novas diretrizes daspolíticas para os cursos superiores e, em especial, para o ensino jurídi-co, contidas no Parecer CNE/CES no 146, aprovado em 3 de abril de2002, homologado em 9.5.2002 e publicado no Diário Oficial daUnião em 13.5.2002.

Curso de Graduação em Direito

• Perfil desejado do formando

Quanto ao perfil desejado, o curso de Direito deverá proporcio-nar ao graduando uma sólida formação geral e humanística, com a ca-pacidade de análise e articulação de conceitos e argumentos, de inter-pretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, aliada auma postura reflexiva e visão crítica que fomente a capacidade de tra-balho em equipe, favoreça a aptidão para a aprendizagem autônoma edinâmica, além da qualificação para a vida, o trabalho e o desenvolvi-mento da cidadania.

• Competências e habilidades

O Curso de Graduação em Direito deve possibilitar a formaçãodo profissional do Direito que revele, pelo menos, as seguintes habili-dades:

– leitura, compreensão e elaboração de textos, atos e documen-tos jurídicos ou normativos, com a devida utilização das nor-mas técnico-jurídicas;

– interpretação e aplicação do direito;

– pesquisa e utilização da legislação, da jurisprudência, da dou-trina e de outras fontes do direito;

– adequada atuação técnico-jurídica, em diferentes instâncias,administrativas ou judiciais, com a devida utilização de pro-cessos, atos e procedimentos;

– correta utilização da terminologia jurídica ou da ciência do di-reito;

– utilização de raciocínio jurídico, de argumentação, de persua-são e de reflexão crítica;

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– julgamento e tomada de decisões;

– domínio de tecnologias e métodos para permanente compreen-são e aplicação do direito.

• Conteúdos curriculares

Os Cursos de Graduação em Direito deverão contemplar, emseus projetos pedagógicos e em sua organização curricular, conteú-dos que atendam aos seguintes eixos interligados de formação:

I – conteúdos de formação fundamental, que têm por objetivo in-tegrar o estudante no campo do direito, estabelecendo ainda as rela-ções do direito com outras áreas do saber, abrangendo estudos que en-volvam a ciência política (com teoria geral do Estado), a economia, asociologia jurídica, a filosofia e a psicologia aplicada ao direito e aética geral e profissional;

II – conteúdos de formação profissional, abrangendo, além doenfoque dogmático, o conhecimento e a aplicação do direito, obser-vadas as peculiaridades dos diversos ramos do direito, de qualquernatureza, estudados sistematicamente e contextualizados segundo aevolução da ciência jurídica e sua aplicação às mudanças sociais, eco-nômicas, políticas e culturais do Brasil e suas harmônicas relações in-ternacionais;

III – conteúdos de formação prática, que objetivam a integraçãoentre a prática e os conteúdos teóricos desenvolvidos nos demais ei-xos, especialmente nas atividades relacionadas com o estágio curri-cular durante o qual a prática jurídica revele o desempenho do perfilprofissional desejado, com a devida utilização da ciência jurídica edas normas técnico-jurídicas.

Como podemos observar, o perfil desejado para os alunos egres-sos em Direito aponta para uma formação que os tornem sincroniza-dos a uma prática voltada para a dimensão ética, jurídica, política e ci-dadã. Nesse sentido, faz-se necessário ressaltar a importância da in-corporação pelos cursos de Direito da temática dos direitos humanose da cidadania, na perspectiva da formação de atores capazes de atuarnos distintos espaços sociais através de uma prática consciente, críti-ca e militante.

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A universidade, como instituição republicana, democrática, au-tônoma, crítica, não pode prescindir de uma reflexão que tenha suacentralidade na dignidade dos direitos humanos, visando a contribuirmais efetivamente para a inversão de uma nova ordem.

Em relação às propostas para as instituições de ensino superiorsobre a temática dos direitos humanos, podemos destacar a oferta dedisciplina em direitos humanos e cidadania nos cursos de Direito, nofinal da década de 1980, bem como em outros cursos de graduação epós-graduação.

Vale destacar, segundo a professora Aída Monteiro (2000, p. 51), a“criação na Universidade de São Paulo, em 1997, da Cátedra Unescode Educação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância”,o que impulsionou o oferecimento de cursos regulares aos alunos dasdiversas licenciaturas, ministrados pela Faculdade de Educação.

Não podemos deixar de mencionar, no contexto das políticas deeducação superior, algumas linhas de atuação que o Plano Nacionalde Educação em Direitos Humanos, já anteriormente referido, esta-belece como diretrizes a serem implementadas pelas universidadesno campo dos direitos humanos:

“na área do ensino, as atividades acadêmicas devem estar voltadas paraa formação de uma cultura nacional baseada nos direitos humanos comotema transversal, criando programas interdisciplinares específicos nos cur-sos de graduação e de pós-graduação; ao nível da pesquisa, deve ser incenti-vada a criação de linhas interdisciplinares e interinstitucionais relacionadasao tema dos direitos humanos, com apoio dos organismos de fomento; nocampo da extensão universitária, devem ser desenvolvidos programas para aformação de professores de diferentes redes de ensino, assim como demaisagentes de educação em direitos humanos em nível local, regional e nacio-nal, de modo a configurar uma cultura educativa nesta área”. (2003, p. 24)

É de fundamental importância para as universidades do País intei-ro, especialmente as ligadas ao ensino jurídico, criar centros de refle-xão acadêmica sobre os direitos humanos, estimular a incorporaçãoda disciplina de direitos humanos aos currículos dos cursos de gradua-ção; estimular a criação de cursos de pós-graduação em direitos hu-manos em todos os níveis, desde a especialização, passando pelomestrado até o doutorado; criar linhas de pesquisa, desenvolver meto-dologias, propostas de disciplina, conteúdo programático, no intuito

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de desenvolver políticas de ensino superior voltadas para a imple-mentação do tema direitos humanos e cidadania.

A questão da democracia, como a questão dos direitos humanos,está posta para todos os segmentos sociais, políticos e ideológicos.

A democracia, como regime político baseado na soberania popu-lar com total respeito aos direitos humanos, não pode mais ser conce-bida de forma redutiva, e a universidade precisa resgatar seu caráterdemocrático, socialmente atuante, crítico, pluralista, criador.

Conforme explicita Dornelles:

“A aproximação crescente de uma nova intelectualidade junto às forçaspopulares, assim como o desenvolvimento dos movimentos sociais nos últi-mos anos demonstram a importância de a universidade assumir o seu papelde crítica aos valores sociais dominantes, em uma tentativa de produção deum novo conhecimento vinculado a uma nova prática social. Este novo co-nhecimento deve incorporar não apenas o direcionamento institucional, in-troduzido a partir da redefinição do papel da universidade, como tambémtraduzir novas propostas produzidas pelos estudantes, e pela própria socie-dade. Este repensar crítico sobre a universidade e sobre os cursos de Direitodeve, assim, englobar os diferentes atores sociais no questionamento de suatradicional função de formação das elites do poder.” (1989, p. 106)

É nesse sentido jurídico-político que é imprescindível repensar aquestão dos direitos humanos em nossos dias. Segundo Souliers,apud Vieira (1989, p. 137):

“A finalidade dos direitos do homem não é resolver todos os problemaspostos em sociedade, é impedir que eles sejam enfocados sem os homens eresolvidos contra eles. Os direitos do homem são de essência política. Elesparticipam da política mas não são de toda a política; eles têm justamente porobjeto impedir que a política não seja um todo monolítico, inteiramente con-fundido com o poder. Eles pertencem aos homens, não aos Estados, não aosaparelhos de Estado. São os meios de resistência ao poder e de intervençãona política própria a fazer obstáculos à dominação total do Estado.”

Como mencionado anteriormente, os direitos humanos são direi-tos históricos, ou seja, “nascidos em certas circunstâncias, caracteri-zadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes,e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vezpor todas” (Bobbio, 1992, p. 5).

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A política dos direitos humanos dentro do cenário das políticaspúblicas, em especial das políticas educacionais, possui um impor-tante papel na luta pela minimização da criminalidade, da violência,da miséria, das violações aos direitos humanos. E aí a extrema impor-tância dos profissionais do direito. Nesse sentido, as Faculdades deDireito precisam repensar seus conteúdos e currículos; os professoresnecessitam rever sua didática; as universidades devem promover e ar-ticular pesquisas em relação às políticas dos direitos humanos; o tra-balho de extensão universitária precisa voltar-se não apenas para asprocuradorias etc., mas para diversos atores, como conselhos, cura-dorias, movimentos rurais e urbanos; professores e alunos precisamse engajar nos espaços políticos de intervenção social, prestar traba-lho de assistência jurídico-política às entidades, às comunidades ca-rentes.

É bem verdade que o reconhecimento dos direitos humanos so-mente passou da esfera nacional para a internacional após a SegundaGuerra Mundial. Entretanto, cada vez mais o tema dos direitos huma-nos passa a ser pauta de discussões de pesquisadores, políticos e ou-tros agentes sociais, nos debates internacionais, em seminários de es-tudo e em conferências governamentais. O reconhecimento e a prote-ção dos direitos do homem estão na base das constituições democráti-cas modernas.

“A busca pela paz não pode avançar sem o pleno reconhecimento e pro-teção aos direitos humanos, acima de cada Estado. Direitos do homem, de-mocracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histó-rico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia;sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacíficados conflitos.” (Bobbio, 1992, p. 1)

O esforço de constituição de um novo saber crítico que denunciea visão asséptica, jurisdicista e pretensamente neutra do discurso jurí-dico tradicional objetivaria criar uma consciência participativa nosprocessos decisórios, possibilitando uma nova relação entre a técnicajurídica e a prática política. Do contrário viveremos sempre em umaatividade cíclica de reprodução das injustiças sociais.

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Bibliografia

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.BRASIL. Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Plano Nacio-

nal de Educação em Direitos Humanos. Brasília: Secretaria Especial dosDireitos Humanos/Ministério da Educação, 2003.

BRASIL. Parecer CNE/CES 146, aprovado em 3 de abril de 2002. Homolo-gado em 9.5.2002 e publicado no Diário Oficial da União em 13.5.2002.Ministério da Educação e Cultura. Disponível em: <www.mec.gov.br>,2004.

CHAUÍ, Marilena. A universidade pública sob nova perspectiva. Conferên-cia de abertura da 26a Reunião Anual da ANPED. Poços de Caldas/MG,5 de outubro de 2003. Revista Brasileira de Educação, n. 24,set./out./nov./dez. 2003.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos huma-

nos. São Paulo: Saraiva, 2003.DORNELLES, João Ricardo W. O ensino jurídico e os direitos humanos no

Brasil. In: GOFFREDO, Gustavo S. de; DORNELLES, J. R. W. et al.Direitos humanos: um debate necessário. São Paulo: Brasiliense, 1989.

IHERING, Rudolf von. A luta pelo direito. São Paulo: Revista dos Tribunais,2003.

SILVA, Aída Maria Monteiro. Escola pública e a formação da cidadania:possibilidades e limites. Tese de Doutorado. São Paulo: Faculdade deEducação da USP, 2000.

VIEIRA, José Ribas. Estado de direito e ao acesso à justiça: uma contribui-ção para o debate dos direitos humanos no Brasil. In: GOFFREDO, Gus-tavo S. de; DORNELLES, J. R. W. et al. Direitos humanos: um debatenecessário. São Paulo: Brasiliense, 1989.

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III.2. Educação em direitos humanos:esboço de reflexão conceitual*

Paulo César Carbonari**

“A educação deve orientar-se para o pleno desenvolvimento dapersonalidade humana e do sentido de sua dignidade, e deve forta-lecer o respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades funda-mentais.”

Pidesc, art. 13, § 1o (ONU, 1966)

A educação é um direito humano, assim como educar para os (ouem) direitos humanos e educar com direitos humanos é direito huma-no. É o que diz o texto do art. 13, § 1o, do Pidesc, que anotamos emepígrafe. Somente isso já daria uma boa conversa. Todavia, a especi-ficidade do tema que nos é proposto pretende identificar desafios.

Cada ser humano é sujeito de direitos na relação com outros sujei-tos de direitos. A relação é a marca substantiva do humano. Daí que sefaz sujeito de direitos com outros humanos, na interação, no reconhe-cimento, na alteridade. Relação é presença, é reconhecimento, que éconstrução. O outro é que põe o eu, de tal sorte que a subjetividade é,antes, intersubjetividade. A consciência, como presença crítica, évida que vive e ajuda a viver. Relações que não alimentam o reconhe-

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* Apresentado no II Encontro Anual da ANDHEP. São Paulo, 7 a 9 de junho de 2006, no GT“Educação para os Direitos Humanos”.** Mestre em Filosofia (UFG/GO), coordenador do Curso de Especialização em Direitos Hu-manos (IFIBE) e professor de filosofia (IFIBE), coordenador nacional de Formação do Movi-mento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), membro do Comitê Nacional de Educação emDireitos Humanos da SEDH/PR representando o MNDH.

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cimento dos distintos em comunhão é não-relação, pseudo-relação,ajuntamento, “amnésia antropológica”. Daí que, mais que uma dispo-sição do eu, a relação é efetivação do encontro de alteridades. Ser hu-mano, humanizar-se e humanizar é diferenciar-se, ser outro, abrir-seà alteridade. É assim que o sentido se faz humano e o humano ganhasentido. A indiferença é a morte do humano e da humanidade que hána gente. Se não se nasce pronto, também a vida não apronta. Viver é,acima de tudo, busca permanente e encontro com os outros, com o hu-mano que se faz reconhecimento.

Educar e educar-se em direitos humanos é humanizar-se e preten-der humanizar as pessoas e as relações. Isso porque os processos deeducação em direitos humanos tomam a cada humano a partir de den-tro e por dentro, em relação com os outros. Ora, educar em direitoshumanos é promover a ampliação das condições concretas de vivên-cia da humanidade. Nesse sentido, a educação em direitos humanos,mais do que um evento, é um processo de formação permanente, deafirmação dos seres humanos como seres em dignidade e direitos e daconstrução de uma nova cultura dos direitos humanos (nova institu-cionalidade e nova subjetividade). Esse é o sentido profundo da edu-cação em direitos humanos.

Falar de educação em direitos humanos abre para seus dois com-ponentes substantivos do enunciado: o sentido de direitos humanos eo sentido de educação. Passemos a considerar brevemente cada umdeles para, ao final, concluirmos com desdobramentos sobre educa-ção em direitos humanos.

1. Uma certa noção de direitos humanos

Direitos humanos é um conceito polissêmico, controverso e es-truturante. É polissêmico, pois, por mais que tenha gerado acordos econsensos (como na Conferência de Viena), isso não lhe dá um senti-do único. É controverso, pois abre espaços de discussão e debate emgeral polêmicos. É estruturante, pois diz respeito a questões de fundoque tocam a vida de todos e de cada um.

Ademais, compreender direitos humanos é fazê-lo no seio de umcerto contexto. Aquele no qual estamos é uma sociedade que insiste

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em diminuir os direitos, em fazer entender os direitos como serviçosou como bens de consumo. Chamamos isso de um processo de mer-

cantilização crescente da vida e dos direitos. Ora, se esse é o traço es-truturante da situação concreta que marca de forma dramática a con-juntura contemporânea, pensar direitos humanos é pôr em questão omodelo de desenvolvimento e o modelo de democracia (sem abrirmão dela). Sem que possamos e sejamos capazes de articular de for-ma estreita e profunda direitos humanos, democracia e desenvolvi-mento, dificilmente faremos frente à lógica perversa de exclusão e dedesigualdade crescente, vergonhosamente crescente.1

Nesse contexto vicejam noções comuns de direitos humanos. Sãonoções fragmentadas, estagnadoras e elitistas de direitos humanosque distanciam a vigência cotidiana dos direitos humanos na vida detodas e de cada pessoa.2

As posições fragmentadas entendem que existem direitos de maiorimportância e direitos de menor importância; direitos de primeira ca-tegoria e direitos de segunda categoria; direitos líquidos e certos e di-reitos incertos ou quase impossíveis de serem realizados. Essa posi-ção confunde a integralidade e a interdependência dos direitos com anecessidade de estratégias diferenciadas de realização, com a neces-sidade de estabelecer prioridades na ação.

As posições estagnadoras de direitos humanos trabalham a idéiade que direitos humanos – e também quem atua com eles – se confun-dem com a defesa de “bandidos e marginais”, em um extremo, e, emoutro, que direitos humanos conformam uma idéia tão positiva e tãofantástica que é síntese do que de mais belo a humanidade produziu.Nos dois extremos é estagnadora porque, pelas duas pontas, imobili-za: seja porque tocar no assunto compromete negativamente, sejaporque tocar na idéia a “estraga”.

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1 Apesar de a Síntese dos Indicadores Sociais 2003, divulgada pelo IBGE em 23 de fevereiro de2005, informar sobre a redução da desigualdade em conseqüência da queda generalizada de ren-da no Brasil. Disponível em: <www.ibge.gov.br>.2 Para um aprofundamento ver: Carbonari, Paulo César. A construção de um sistema nacional

de direitos humanos. In: Assembléia Legislativa Gaúcha. Comissão de Cidadania e DireitosHumanos. Relatório Azul 2004: garantias e violações dos direitos humanos. Edição comemora-tiva de 10 anos. Porto Alegre: Corag, 2004. p. 344-369.

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As visões elitistas entendem direitos humanos como assunto paragente muito bem iniciada, para técnicos, para especialistas. É óbvioque direitos humanos é assunto para especialistas. Reduzi-los a isso éque é o problema, já que distancia os direitos do cidadão mais co-mum, que é sujeito de direitos humanos exatamente na situação e nacondição em que se encontra.

Essas posições, em geral levam a uma atuação pontual, residual,

socorrista e burocrática em direitos humanos, distanciando a possi-bilidade de atuação integral (que implica promoção, proteção e repa-ração dos direitos humanos), e também afasta o comprometimento doEstado (através de políticas públicas pautadas pelos direitos huma-nos), da sociedade civil (organizada e participante de forma autôno-ma e independente), da comunidade internacional (no sentido amplo)e de cada pessoa (em sentido específico). Em suma, essas posiçõesdescomprometem.

As práticas socorristas e pontuais são aquelas que se lembram dedireitos humanos quando alguma tragédia assolou alguém ou um gru-po social. É claro que os direitos humanos precisam estar presentesnessas situações, mas não só. Essa postura prática esquece-se de queos direitos humanos dizem respeito ao conjunto das condições devida, inclusive e especialmente à criação de condições para que sejamevitadas as violações e a vida das pessoas seja promovida ao máximo,sem admitir retrocessos.

As posturas práticas que tratam direitos humanos de forma resi-dual ou burocrática dão mais ênfase à correção do procedimento doque ao mérito do assunto, em geral como forma de protelá-lo ou de fa-zê-lo sem que esteja no núcleo central da decisão e da ação. Esse tipode posicionamento esquiva-se de afirmar a importância fundamentalde fortalecer a organização independente da sociedade civil e, aomesmo tempo, também de avançar no comprometimento do Estadocomo agente de direitos humanos. É fato que o Estado é visto comoum grande violador, mas isso não o escusa de ser um agente realiza-dor dos direitos humanos. Esse tipo de postura abre mão da necessi-dade de estabelecer espaços de interação entre a sociedade civil e opoder público, na perspectiva de espaços de participação direta e real-mente pública, o que somente é possível com o fortalecimento da au-tonomia da sociedade civil e um alto grau de organização cidadã.

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Passemos agora a um segundo momento, no qual procuraremossituar as raízes de uma compreensão de direitos humanos. Para tal,entendemos necessário localizar o assunto na problemática que semostra no tensionamento, em linhas gerais, entre uma posição que ge-nericamente poderíamos chamar de naturalista, em contraste com ou-tra, que se reivindica como histórico-crítica. Evidentemente que, comisso, não esgotamos a gama de variações possíveis.

Uma posição naturalista advoga que os direitos estão estribadosem uma certa noção natural de dignidade humana que lhe dá base delegitimidade, não podendo os direitos, em nenhuma hipótese, consa-grar alternativas que venham contra ela. Tende, em geral, a compreen-der que há um conteúdo definido na noção de dignidade que não podeser suplantado pelos direitos. Os direitos são expressões sociais demecanismos para proteger esses conteúdos – inerentes à natureza hu-mana – no jogo do poder e das relações sociais. Adequado a essa pos-tura, o liberalismo soube operar a noção de indivíduo como sujeito dedireitos formalmente garantidos em um sistema do direito. Assim,máximas como a da igualdade formal diante da lei e a noção de liber-dade negativa (limitada à liberdade do outro) consagram uma idéia deque direitos humanos são os direitos de cada um, (absolutamente) in-dependente dos direitos dos outros, de todos os outros – aliás, o outroé visto quase como o “inimigo” do “meu” direito.3

Uma posição alternativa postula que direitos humanos são constru-ção histórica, assim como é histórica a construção da dignidade huma-na. Entende que o núcleo conceitual dos direitos humanos radica nabusca de realização de condições para que a dignidade humana sejaefetiva na vida de cada pessoa, ao mesmo tempo que é reconhecidacomo valor universal. A dignidade não é um dado natural ou um bem(pessoal ou social). A dignidade é a construção de reconhecimento e,portanto, luta permanente contra a exploração, o domínio, a vitimiza-

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3 Em grande medida o pensamento filosófico clássico grego e, sobretudo, o medieval são ex-pressões dessa posição. Modernamente, esse posicionamento aparece claro nos contratualistasem geral e, sobretudo, em John Locke, o fundador do liberalismo, para quem os direitos naturais(à liberdade, à segurança e à propriedade privada) são derivados da lei natural e, portanto, ante-riores à formação do Estado, a este cabendo não mais do que reconhecê-los e protegê-los. Umaexposição sintética e bem enfocada do tema pode ser encontrada, entre outros, em Dias, MariaClara. Os direitos sociais básicos. Uma investigação filosófica da questão dos direitos huma-

nos. Porto Alegre: Edipucrs, 2004.

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ção, a exclusão. É luta permanente pela emancipação, profundamenteligada a todas as lutas libertárias construídas ao longo dos séculos pelosoprimidos para abrir caminhos e construir pontes de maior humanida-de. Carrega a marca da contradição e da busca de sínteses históricas quepossam vir a realizá-la como efetividade na vida de todos e todas. Emconseqüência, o estabelecimento dos direitos humanos em instrumen-tos normativos (legais e jurídicos) é sempre precário, pois, mesmo quepossa significar avanço importante na geração de condições para suaefetivação, também pode significar seu estreitamento, já que se dá nosmarcos da institucionalidade disponível que, em geral, não está cons-truída na lógica dos direitos humanos. Contraditoriamente, toda lutapela institucionalização dos direitos gera condições, instrumentos emecanismos para que possam ser exigidos publicamente, mas tambémtende a enfraquecer a força constitutiva da dignidade humana comoprocesso permanente de geração de novos conteúdos e de alargamentopermanente do seu sentido. Ademais, a positivação dos direitos nãosignifica, por si só, garantia de sua efetivação, mesmo que suanão-positivação os deixe ainda em maior dificuldade, já que não dota-ria a sociedade de condições públicas de ação.4

Entendemos, em suma, que a noção de direitos humanos tem umaunidade normativa interna que se funda na dignidade igual/diversa

de cada ser humano como sujeito moral, jurídico, político e social.

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4 Podem ser inscritas nesta segunda posições muito diversas entre si. Para citar alguns exem-plos: a) para Hannah Arendt, os direitos são construção histórica, não são um dado, mas umconstruído (cf. Arendt, Hannah. A condição humana. Tradução Roberto Raposo. 9. ed. Rio deJaneiro: Forense Universitária, 1999); b) para Jürgen Habermas, os direitos são fruto de um pro-cesso de legitimação que preserva positivamente uma tensão entre a faticidade do direito positi-vo e sua validade mediante uma reconstrução do direito pela via da teoria da ação comunicativa(cf. Habermas, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução F. B. Siebe-neichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. 2v.); c) para Enrique Dussel, os direitos hu-manos são construção a partir das vítimas, ou seja, daqueles que têm sido física, simbólica e eco-nomicamente violentados, que podem construir novas relações éticas, políticas e econômicasna sociedade (cf. Dussel, Enrique. Ética de la liberación en la edad de la globalización y de la

exclusión. Madri: Trotta, 1998. Há tradução pela Editora Vozes). Do mesmo autor ver Hacia

uma filosofia política crítica. Bilbao: Desclée, 2001; d) para Boaventura de Sousa Santos, tra-ta-se de construir uma posição multicultural de direitos humanos (cf. entre outros, o texto San-tos, Boaventura de Sousa (Org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismocultural. Porto: Afrontamento, 2004. Para um desenho de outras posições, consultar, entre ou-tros: Gustin, Miracy B. S. Das necessidades humanas aos direitos. Ensaio de sociologia e filo-

sofia do direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1999.

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Essa unidade normativa abre-se tanto à orientação da construção dosarranjos históricos para sua efetivação e para a crítica daqueles arran-jos que não caminham concretamente na perspectiva de sua efetiva-ção, quanto à reconstrução permanente da própria noção de dignidadecomo conteúdo construído na dinâmica de sua efetivação.5

Por isso, direitos humanos estão sendo gestados permanentemen-te pelos diversos sujeitos sociais em sua diversidade. Aquilo que restareconhecido nos textos legislativos, nas convenções, nos pactos, nostratados é a síntese possível, circunstanciada, ao momento histórico,mas que se constitui em parâmetro, em referência, fundamental, mes-mo não sendo o fim último da luta em direitos humanos. A construçãodos direitos humanos se faz todo dia, se faz nas lutas concretas, se faznos processos históricos que afirmam e inovam direitos a todo tempo.A concepção histórica de direitos humanos reconhece que a raiz detodas as lutas, todas as idéias e de uma concepção contemporânea dedireitos humanos não está no arcabouço jurídico, não está no status

quo que os reconhece por algum motivo ou porque não tinha comonão reconhecê-los. A raiz dos direitos humanos está nas lutas emanci-patórias e libertárias do povo, dos homens e mulheres que as fizeram econtinuam fazendo ao longo dos séculos. Ali está a fonte principalpara dizer o sentido dos direitos humanos.

2. Uma certa noção de educação

Estamos, mais uma vez, diante de uma noção controversa, e nãonos interessa percorrer os caminhos de uma teoria da educação. Inte-ressa-nos, sim, construir uma noção de educação que possa servir demediação na construção dos direitos humanos.

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5 Esse posicionamento abre-se de maneira mais construtiva para uma compreensão da universa-lidade, da indivisibilidade e da interdependência dos diversos direitos humanos, bem como parasua estreita relação com os processos de democracia e de desenvolvimento, assim como foramconsagrados consensualmente pela comunidade das Nações Unidas durante a II ConferênciaMundial dos Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1993 (cf. ONU. Declaração e progra-

ma de ação. Disponível em: <www.un.org> ou em Alves, José A. Lindgren. Os direitos huma-

nos como tema global. São Paulo: Perspectiva/Fundação Alexandre de Gusmão, 1994. Parauma exposição detalhada dessa leitura, conferir, entre outros: Trindade, Antônio A. Cançado.Tratado de direito internacional dos direitos humanos. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor,1997. v. I, II e III; e Piovesan, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional.5. ed. São Paulo: Max Limonad, 2002.

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A educação de que estamos falando é aquela centrada na humani-zação integral do ser humano. Centrar-se na humanização do humanoimplica reconhecer que o ser humano se faz em um processo históricorelacional (confronto, conflito, construção, consenso, consolidação)com os semelhantes, situado sempre em um dado contexto ambientale cultural, também moldado nesse mesmo processo, mas transcen-dente a ele como busca de sua transformação. Implica, também, odesdobramento de tarefas, derivadas dessa processualidade, vistoque, mais do que se centrar no humano, os processos históricos têmprivilegiado grupos, classes e nações.

Processos educacionais desse tipo estão cientes de que a inteligên-cia, o conhecimento, o saber e a ação não são dádiva ou acaso da sorte.Antes, sabem-nos resultantes da interação humana, em processos dia-lógicos (e até telúricos) de aprendizagens diversas. A educação é, aci-ma de tudo, relação, porque nasce de uma atitude constitutiva funda-mental do humano, que é seu ser relacional. Ela está na e constitui avida humana desde seu início, sendo-lhe co-genética. Os humanos edu-cam-se e educam, aprendem e ensinam, ao longo de toda a sua existên-cia. A educação, por isso, não é apenas um agregado de conteúdos for-malizados como parte de um momento específico e especial, a escola –é processo permanente de construção de conteúdos, competências eatitudes. Por isso, falar de educação permanente é redundante.

A escola é um lugar social no qual se estabelecem relações educa-tivas específicas e fundamentais para a formação do humano. Mas elanão é o único lugar, talvez não seja – hoje em dia – sequer o mais de-terminante. Como lugar de educação, a escola abre acesso ao conhe-cimento humano, mas não o esgota. É a vida educativa, formada e for-jada nos mais diversos espaços educacionais, que sela aprendizagens.Nesse sentido, para que a escola seja um espaço educativo também háde ser relacional. Escola fechada, conteúdos fechados, currículos fe-chados são a morte da educação e apequenam o humano. Em nossotempo, no qual já se avançou muito no acesso à escola – mesmo queainda se tenha de caminhar muito para que efetivamente seja univer-sal –, o grande desafio é exatamente este: fazer da escola um espaçode qualidade relacional, para que seja um espaço efetivamente deeducação.

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Assim, educação é mais do que soma de conteúdos ou disponibi-lização de bons equipamentos – necessários para subsidiar os proces-sos educativos; é, sobretudo, a construção de tempos e espaços queproporcionem a interação, o reconhecimento, a humanização. Porisso, educação que não humaniza, que não se abre e abre à relação équalquer coisa, menos educação.

3. Balizas para uma noção de educação em direitoshumanos

Postas as bases substantivas de educação em direitos humanos,passamos a extrair algumas balizas que possam orientar uma certa no-ção de educação em direitos humanos. Começamos por apresentar al-gumas de suas características fundamentais. A educação em direitoshumanos é:

1. permanente, continuada e global, porque educar em direitoshumanos é, acima de tudo, formar sujeitos de direitos (singulares euniversais/diversos e iguais) em relação. Por isso, certamente não seaprendem direitos humanos – constroem-se direitos humanos comoparte do amplo processo formativo que marca a vida educativa doshumanos. A escola pode ajudar a construir atitudes que subsidiem aeducação em direitos humanos, mas não é suficiente para dar contadela. Educação em direitos humanos é construir posicionamentos,atitudes, ações, mais do que o domínio de conteúdos e de recursosmetodológicos;

2. vocacionada à mudança, porque a educação em direitos huma-nos tem compromisso com a superação de todas as formas e situaçõesde violação, de naturalização das violações, de esquecimento das vio-lações. Quer promover sujeitos capazes de reconhecimento da alteri-dade. Afinal, direitos humanos são, acima de tudo, reconhecimentodos seres humanos como sujeitos em dignidade – na diversidade e nauniversalidade;

3. promoção de uma nova cultura de direitos, porque o núcleo for-te da educação em direitos humanos é a construção de uma nova ética ede uma nova (inter)subjetividade, de uma nova política e de uma novainstitucionalidade. A educação em direitos humanos faz-se como e na

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prática de abertura de espaços para essa nova cultura em um tempo queparece insistir em não abrir lugar para a dignidade humana.

A pergunta que se põe nesse contexto é: há uma pedagogia ade-quada à educação em direitos humanos? Em grandes linhas, pode-sedizer que é aquela capaz de conjugar: a) aprendizagem reflexiva e crí-tica, pelo acesso ao saber acumulado historicamente pela humanida-de e sua reconstrução a partir das vivências; b) aprimoramento da sen-sibilidade (artística e estética), para perceber, promover e produzir nae com a diversidade, como congraçamento; c) capacidade de acolhi-mento, cuidado e solidariedade no reconhecimento do outro, especial-mente o mais fraco; d) postura de indignação ante todas as formas deinjustiça e disposição forte para a sua superação – não somente puniti-va; e) disposição à co-responsabilidade solidária na garantia das con-dições de promoção da vida de/para todos. Assim, pauta-se pela aber-tura, pela diversidade e pela posição articuladora das diversas dimen-sões relacionais do sujeito humano de direitos (singularidade, parti-cularidade e universalidade),6 como proximidade. Nisso entendemosconsistir a pedagogia da educação em direitos humanos, uma pedago-gia do diálogo-indignação-responsabilidade-solidariedade.

Os desdobramentos-chaves dessa noção passam por diversos as-pectos que pautam o processo educativo como relação. Alguns delessão os seguintes:

1. construção da/na participação, articulando diferentes níveis eprocessos, sejam os de participação ativa (os sujeitos participam daexecução de uma atividade, é a mais difundida e a que implica menorcompromisso pessoal); consultiva (cada sujeito assume suas deci-sões, opinando e manifestando sua posição a fim de subsidiar decisõescomuns); ou decisória (os sujeitos tomam decisões comprometidascom as conseqüências que podem gerar);

2. trabalhar permanentemente o conflito e sua resolução, vistoque o conflito está no núcleo essencial da vida social e política, sendodeterminante para o processo de humanização não sua eliminação,mas a maneira como se lida com ele. Daí a capacidade de construirmediações pela realização de alianças e parcerias no sentido da reso-

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6 Para aprofundamento dessa noção ver: Carbonari, Paulo César. Direitos humanos: uma refle-xão acerca da justificação e da realização. In: Carbonari, Paulo César; Kujawa, Henrique. Direi-

tos humanos desde Passo Fundo. Passo Fundo: CDHPF, 2004. p. 89-109.

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lução pacífica e construtiva dos conflitos para além das regras do

jogo (da maioria, da criminalização, da violência);3. abrir janelas, lidando com urgências e persistências, até por-

que, muitas vezes, a urgência para desenvolver todos os temas e resol-ver todos os problemas com os quais se convive faz com que eles se-jam enfrentados de maneira descontextualizada. Desenvolver umaampla sensibilidade e capacidade de leitura da realidade, compreen-dendo-a, antes de tudo, como construção de sentido feita pela açãohumana, mais do que soma de situações ou fatos estanques, na qual asurgências e as persistências ganhem sentido, é o desafio;

4. construir sistematicamente leituras críticas e criativas, subsí-dio para a vivência da independência em relação a qualquer situaçãoou posição. A construção da independência exige reconstruir o senti-do de autonomia na perspectiva relacional, capaz de dar suporte à in-dignação e à solidariedade que enfrentam violações, indiferenças eesquecimentos. Em outras palavras, educação em direitos humanos éconstrução de posicionamento – não subsiste neutralidade nela;

5. abertura à universalidade (no plural), porque a diversidade écondição fundamental do humano e exige não somente respeito (outolerância), exige ser tomada como componente substantivo da ação,conjugada à capacidade de universalizar posições e soluções, “com-por” as pluralidades, enfrentar os corporativismos e os privatismos,explicitar o diverso para gerar “visibilidade” aos diversos sujeitos;

6. promoção de condições de efetivação dos direitos, já que a rea-lização dos direitos humanos é mais do que demandar passivamente;é, acima de tudo, comprometer-se com a promoção das condiçõesconcretas adequadas à sua efetivação, identificando claramente res-ponsabilidades, exigindo-as e exercitando-as, com meios próprios,aprimorando os diversos instrumentos disponíveis para realizá-las.Em outras palavras, a educação em direitos humanos implica cons-truir ações consistentes, responsáveis e integrais – é política na suaexcelência.

4. Encerrando a exposição para continuar o debate...

Esperamos ter suscitado muitas perguntas. Até porque, o móbilecentral de qualquer processo educativo é a pergunta que inquieta e

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põe em marcha a busca de alternativas para resolvê-las e de argumen-tos para justificar as escolhas feitas, além de exigir posicionamento eresposta prática.

Aprender é essencialmente recriar conhecimento como ação,como atitude e como compromisso ético com a criação de tempos eespaços que efetivamente se abram à realização da dignidade humanae de todos os direitos de todos os seres humanos.

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III.3. Uma experiência de educação através do lazer:estudo de caso em São Benedito

Raimunda Luzia de Brito*

1. Introdução

Comunidade de São Benedito

A comunidade de São Benedito foi um dos elementos a me im-pulsionarem à busca de mais conhecimento. Sentimos que pouco sa-bíamos sobre negritude, questão racial, identidade e auto-estima donegro, militância no movimento negro e modos de se combaterem ese enfrentarem o preconceito, a discriminação e o racismo.

O relato que faremos a seguir é uma experiência desenvolvidanessa comunidade. Foi também uma experiência positiva de práticado método dialético.

Nos altos escalões governamentais ainda encontramos pareceresem que os assessores teimam em afirmar que não existe racismo noPaís, daí não poderem atacar as discussões, os projetos de leis, porqueaqui há uma perfeita harmonia racial e ética. Pior cego é o que nãoquer ver. Mas, há de se abrir uma discussão ampla para que mudançaspossam ocorrer. Os processos judiciais contra a discriminação esbar-ram na sentença de juízes e desembargadores que afirmam que cha-mar uma colega de seção de “galinha de macumba” é apenas um ex-cesso de ímpeto e não uma discriminação, chamar uma pessoa de“macaco” é um gesto carinhoso.

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* MsC em Serviço Social.

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Sentimos que o Governo tem de assumir que há discriminação eabrir um amplo debate sem mascaramentos, com honestidade.

Já em pleno século XXI e terceiro milênio, as pessoas deverão tera “humanidade” de discutir abertamente esse problema, que vem des-de o século XVI, porque o negro ainda não é considerado cidadão ple-no no Brasil. É evidente que há uma dúzia de negros que são aceitos(com restrições), mas, e a grande massa do povo negro?

Ainda segundo o professor Dr. Kabengelê Munanga: “Pelé con-seguiu ser respeitado, venceu vários obstáculos, tornou-se um ídolo.Mas sua ascensão tem limites. Hoje, por mais que quisesse, não seriaeleito presidente da República.”1 Hoje, segundo o padrão vigente, oque é diferente é inferior.

E é nesse contexto que iniciamos o trabalho na comunidade deSão Benedito, em Campo Grande/MS.

2. Desenvolvimento da experiência

Nossa experiência teve início em 1987, quando o atual deputadofederal Eurídio Ben-Hur Ferreira, então presidente do Grupo Traba-lho e Estudos Zumbi (Grupo TEZ) e do Centro de Defesa dos Direitosda Pessoa Humana “Marçal de Souza – Tupã I” (CDDH), procurou aFaculdade de Serviço Social de Campo Grande (Fasso) da então Fa-culdades Unidas Católicas de Mato Grosso (FUCMT) para solicitarum trabalho na comunidade de São Benedito.

A Faculdade aceitou o chamado e foi à comunidade conhecer ocampo. Foram realizadas três reuniões com a liderança local e defini-do que o trabalho se realizaria com criança e adolescente. Era maio de1987. Durante mais de dois meses nada aconteceu. Ficamos entãocom o senso do dever não cumprido. Mais uma promessa e, dessa vez,em uma comunidade negra. Resolvemos assumir e retornamos sozi-nha à comunidade.

Iniciamos o diálogo com a liderança e marcamos uma reuniãocom crianças e adolescentes de nove a 16 anos. Três adolescentes seapresentaram para fazer os convites. No dia marcado compareceram

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1 Racismo, esta luta é de todos. Raça Brasil, São Paulo: Símbolo, ano 5, n. 50, p. 14, out. 2000.

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12 convidados, sendo cinco da família do Sr. Michel (Sérgio Antônioda Silva), a maior liderança local no momento. Era final de julho de1987.

Na reunião, explicamo-lhes que conhecíamos a comunidade des-de que tínhamos cinco anos e estranhávamos que 48 anos depois ne-nhum morador havia concluído o segundo grau. Perguntamo-lhes:“estão satisfeitos com a maneira que vivem?” e “querem mudar essasituação?”, e dissemos que a mudança iria depender do “como” en-frentarem a vida. Falamos do trabalho que pretendíamos desenvol-ver, mas que só daria certo se eles quisessem e se dedicassem ao projeto– a nossa proposta era “Educação Através do Lazer”, ou seja, brincan-do se aprenderia a viver e a se defender –, e que o objetivo maior era ocrescimento do grupo e o individual, o enfrentamento das dificulda-des que existiam e as que viessem a surgir na vida de cada um e quetudo se resolveria em grupo, e que seriam eles que diriam o que ecomo tudo seria desenvolvido.

Queríamos desenvolver uma proposta essencialmente dialética,em que o usuário é que diria o que fazer, desde o planejamento até aexecução (o como e o porquê).

Inicialmente, seis estagiários se apresentaram. Para eles, não foifácil desenvolver o projeto, porque estavam acostumados a só execu-tar, sem ter participação no planejamento, pressupondo que lá não se-riam eles “os que dariam as cartas”. A exigência que fizemos é que te-riam de vestir a camisa do projeto, se interessar e ler sobre a “saga”dos negros. Não poderiam ser racistas.

Fizemos uma reunião com o grupo de estagiários antes de apre-sentá-los ao grupo de ação. Falamos sobre: preconceito, discrimina-ção e racismo; a vinda do negro para o Brasil e como o negro se en-contra hoje.

No primeiro momento, o do planejamento, reunimos o grupo decrianças, adolescentes e os estagiários (as primeiras reuniões foramembaixo de uma das mangueiras da casa do Sr. Michel). Explicamosao grupo que planejar é pensar o que se vai fazer e que, na nossa vida,nada poderia ser feito sem planejamento, porque isso nos indicaria ocaminho para chegarmos ao final, e que o sucesso dependeria do queescolhêssemos e de como pretendíamos desenvolver o caminho, re-duzindo ao mínimo as chances de insucesso.

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O grupo decidiu que iria convidar mais “gente” antes de planejar,porque agora já podiam dizer mais “coisas” aos outros. Era tudo in-formal. Só ficou decidido que as reuniões seriam todos os sábados apartir das 12:30h, e não se demarcou o horário final.

No sábado seguinte vieram 15, sendo mais crianças (de ambos ossexos). Iniciamos o planejamento. Eles disseram que eu é que teria dedizer, porque a comunidade fora escolhida para trabalharmos (nós eos estagiários) o que pensávamos. O objetivo deles era ter um melhorlugar na sociedade e como (a metodologia) fariam isso. Colocamos aproposta de se educar brincando, eles acharam engraçado e “interes-sante”. Escolheram o tipo de brincadeiras que queriam dentro do es-paço físico que a comunidade oferecia: voleibol, queimada e outrasbrincadeiras de quadra e brincadeiras de salão. Perguntaram se pode-riam ter festas e ganhar presentes, afirmamos que sim. Informamostambém que poderiam programar dois passeios por ano, só não pode-ríamos dizer onde seriam com muita antecedência (tivemos de expli-car que isso significava muito tempo antes de fazer ou de realizar) eque a cada dois meses, ou quando eles sentissem necessidade, pode-ríamos rever o planejamento. Alguns pontos importantes no projetoforam:

• análise, pelo grupo, de todos os boletins escolares cada vez quesaíssem as notas;

• criação de regras, pelo grupo, de participação nos passeios;

• cuidado com a higiene pessoal para estarem no grupo (banhotomado e roupa limpa, mesmo sendo velhinha);

• o comportamento de cada um no grupo;

• discussão dos problemas domésticos trazidos para o grupo;

• palestras sobre os assuntos que eles quisessem;

• visita à sua casa, quando se fizesse necessário.

Sabíamos que para o trabalho ser mais completo teríamos de en-volver a família. Os estagiários cobraram, mas não quiseram se com-prometer com a continuidade do trabalho nas férias e não abrimosessa área, porque seria mais o domingo na responsabilidade da assis-

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tente social, o que significaria não ficar nem um dia livre para sua fa-mília. Preferimos ficar na assessoria à Associação de Moradores e ir àcomunidade, aos domingos, sempre que houvesse necessidade.

Era uma festa todos os sábados. As brincadeiras fluíam, as notasestavam melhorando e as crianças e os adolescentes, mais felizes.Também servíamos um pequeno lanche de Qsuco e bolachas, que, àsvezes, era a única refeição para algumas crianças. De vez em quandoservíamos arroz carreteiro e/ou macarrão com molho.

No segundo mês, já estávamos com 30 crianças e adolescentes,sendo cinco da vizinhança. No final do primeiro semestre o grupo jáestava entrosado e com 50 crianças e adolescentes (cerca de 30 crian-ças e 20 adolescentes).

Foram realizadas quatro palestras no período, abordando os se-guintes assuntos:

• a educação como base da formação de crianças e adolescentes;

• a higiene pessoal como base da saúde e de uma vida saudável;

• a droga como prejuízo à vida das pessoas e de como ter cuida-do com pessoas que ficam ricas muito depressa;

• a partilha como modo de bem-viver.

As palestras foram feitas por nós. Em todas houve muitos questi-onamentos. Eram perguntas muito simples. A maior preocupaçãoevidenciada era sobre o álcool. Segundo eles havia muita bebida emcasa, e por que não podiam beber? Explicamos que o álcool enfraque-cia a parte de dentro do corpo, trazia doenças, e devolvemos a pergun-ta: “O que vocês acham do comportamento de um bêbado?” Todos ospresentes falaram o que achavam e todas as respostas confirmaram anegatividade do álcool.

Em setembro, distribuímos balas e doces no dia próximo ao 27(dia de Cosme e Damião) e, no mês de outubro, a Fundação Nacionaldo Bem-estar do Menor (Funabem) ofereceu o bolo, de 30 quilos, eganhamos os refrigerantes para o Dia da Criança. A festa foi muitoboa. Os adolescentes ajudaram a servir e a Sra. Maura Jorge da Silva,da comunidade, que foi sempre uma grande aliada, colaborou muito.Ela tem dois filhos no grupo.

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No final do semestre, fizemos a reunião de avaliação. O grupoelogiou as reuniões (para eles reunião é quando param as brincadeirase se sentam para discutir um assunto e, se em três finais de semana nãohouvesse reunião, havia cobrança). Foi cobrado o passeio, que ficoumarcado para o “finalzinho” do semestre, na casa da empresária IranyCaovilla. Agilizamos a condução, a anfitriã preparou um almoço e oque mais os deslumbrou foram a piscina e a casa. Era a primeira vezque adentravam uma casa classe A como convidados, e ficaram bem àvontade. Comeram muito, acredito que a equipe da dona da casa rece-bia, pela primeira vez, visitantes que nunca haviam visto aquele tipode comida e que talvez não tivessem outra oportunidade; por isso,aproveitaram. Comeram e comeram e, apesar de nossos pedidos, caí-ram na piscina logo em seguida.

No encerramento do ano, pedimos aos nossos amigos que nosajudassem a comprar os presentes. Conseguimos. Não foram os quequeríamos, mas cada um ganhou “o seu”.

Algumas mães, em outubro, nos disseram que não deixavam seusfilhos participarem do grupo porque os devotos de São Benedito leva-vam presentes no Dia da Criança e no Natal sem que eles precisassemter trabalho. E o trabalho a que elas aludiam era dar banho e trocarroupas nos filhos pequenos, porque os grandes faziam isso sozinhos eprecisavam só da autorização da mãe, porque, quando voltavam, esta-vam sujos (os que brincavam no campo de futebol).

Em 1988, ao retornarmos, em fevereiro, o grupo se reuniu para oplanejamento do ano. Eles voltaram a analisar a fala das mães que nãodeixavam os filhos participarem do grupo e disseram que eles, por es-tarem mais educados, não conseguiam disputar os presentes que eramjogados pelos devotos. Analisamos com eles a importância do pre-sente recebido no grupo, que era uma conquista deles e vinha embru-lhado para cada um, individual, era deles e, mesmo quem não podiaestar presente, recebia o seu, por merecimento. Merecia porque haviaparticipado, e no grupo iria ser sempre assim.

Ao planejar as atividades, apresentaram-se os itens do planeja-mento anterior e mais o comprometimento com o grupo, a responsa-bilidade de estar em um grupo e tê-lo como sua defesa. Aí eles come-çaram a discutir o ser negro e o quanto é bonito e gostoso ser negro. ETia Eva? Quem foi? Quem é Tia Eva na sua vida? Vamos procurar sa-ber quem foi e quem é ela?

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Chamamos um morador mais antigo para nos contar a vida da TiaEva.

No final de 1988, o grupo decidiu que se chamaria AssociaçãoCriança Esperança.

E as atividades continuavam.Mas, por que as reuniões? As palestras? Os jogos? As brincadei-

ras? Os passeios?As reuniões se constituíram no maior instrumento do projeto.

Nelas os membros do grupo se desnudavam como pessoas: amores,ódios, esperanças. E como aqueles pequenos falavam de amores –do que gostavam, do que queriam ser, dos pais, irmãos, sobrinhos,primos... Mas, e deles próprios? Na televisão era a Xuxa, a Angélicae a Mara. Cadê a referência? Cadê o negro nas telas da TV? Então setrabalham os mais próximos: Dr. Aleixo Paraguassu Neto, Dra. Ma-rilza Lúcia Fortes, Dr. Francisco Gerardo de Souza (todos juízes dedireito), Sra. Irany P. Caovilla (empresária e devota de São Benedi-to), professora Cleidevana Maria Socorro de Oliveira Chagas (Clei-de), e nós, como professora, advogada e assistente social, Dr. Eurí-dio Ben-Hur Ferreira (advogado e deputado federal), Sr. CarlosAdalberto P. Porto (professor de História), Sr. Paulo Roberto Para-guassu (empresário), Dr. Alair F. das Neves (delegado de Polícia).Mas faltava o negro na mídia.

A mídia é a grande formadora de opinião. Ela aumenta, diminuiou acaba com a auto-estima de uma criança e até de um adulto.

O ódio – às vezes por si mesmo, por não se ver e se sentir um nada,um ninguém. Na mídia, a criança e o adolescente negro, quando mui-to, eram alguém, nunca um indivíduo. Na escola, nas brincadeiras, osprofessores que não eram formados para entender a criança negraacabavam fortalecendo a sua inferioridade, como, por exemplo: colo-cando o estudante não-negro como policial e o estudante negro comoo bandido; o estudante não-negro como o médico e o negro como obaleado. São sutilezas que, às vezes, escapam aos educadores, mas quereafirmam no negro o sentimento de inferioridade e leva uma criança a“se odiar”, a não esperar nada da vida, e o grupo servia para reforçar agraça, a inteligência e a beleza do negro. O grupo tinha como meta acriança se amar, se respeitar, se querer. Era uma elevação da auto-estima. Era o se aceitar, o amor a si mesmo. Era responder à pergunta:

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“Quem sou eu?” – Eu sou uma criança inteligente, bonita, com umnome e que vou ser um vencedor(a).

As esperanças – acreditando em si, ter a certeza de que vai vencerna vida.

Sobre as palestras – sempre com um tema que viesse a reforçar asua individualidade, como uma pessoa de cor diferente, mas com amesma inteligência do não-negro e com um nome e um sobrenomeque o faz ser único, ser importante para si e para o mundo.

Os jogos, as brincadeiras – em que crianças e adolescentes quei-mavam calorias, negatividades e ganhavam companheirismo, respei-to a si e ao próximo, vivência coletiva, condição de programar ativi-dades que os levavam a crescer e a aprender a partilhar e a aceitar a re-primenda do grupo, quando seu comportamento fugia aos critériosque eles (inclusive) montaram.

Era o lazer educando.Os passeios – que tinham o objetivo de levá-los a um “mundo di-

ferente” do seu habitual. Era em casa de negros bem-sucedidos e denão-negros aliados, como no caso da então deputada estadual Marile-ne Moraes Coimbra. Quando o Dr. Alair foi diretor geral de PolíciaCivil, levou o grupo a participar de todas as atividades que eram ofe-recidas ao policial civil e à sua família. Assim, foram à Fazenda Ran-charia e ao Carnaval no Clube União dos Sargentos (onde usaram fan-tasias cedidas pela empresária Irany Caovilla). Entendíamos que seprecisa conhecer para se aspirar. Como programar uma vida melhorconhecendo apenas as três ruas da comunidade? Nos cinco anos emque o grupo existiu foram vários os passeios, inclusive revivendo asraízes, indo conhecer a localidade de Furnas do Dionísio, comunida-de quilombola que poucos conheciam.

Além da discussão das notas, também a do aspecto pessoal eramuito importante, e eles aprendiam isso. Aprendiam a se valorizarnos detalhes, e aí entrava a higiene corporal, visual e do seu ambiente.Discutíamos desde o banho às roupas íntimas e o odor do corpo sujo,que homem também cheira mal, se não se higienizar. É um cheiro di-ferente do cheiro da mulher. Também a importância de lavar as mãosantes de comer e/ou de mexer com comida e se lavar antes e depois deusar o banheiro para evitar problemas nas áreas íntimas e também nasáreas internas e externas do corpo.

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Em 1990, o grupo chegou a ter 107 membros. As crianças comdois anos queriam vir para o grupo. Em 1991, reduzimos para 70 o nú-mero de participantes para adequá-los às nossas condições. As reu-niões foram divididas por grupo etário. Era um grupo grande, e não sepodia dialogar com todos os participantes ao mesmo tempo.

Quanto ao espaço físico que utilizávamos, era o do campinho defutebol (hoje não existe mais porque eram lotes e os donos já construí-ram), o salão comunitário para as reuniões e os ensaios de dança, osdegraus da porta da igreja (Igrejinha de São Benedito). O salão nãoera liberado para nós. Forçávamos o uso nos ensaios de dança e nosdias de chuva. Quando se fazia comida (arroz carreteiro, macarrãocom molho), usávamos o fogão do salão; nos outros dias até o gelo eralevado por nós. A comunidade recebia, aceitava, mas não se incluíano projeto. Acreditamos que esse fato ocorria porque não trabalháva-mos as famílias, pela nossa falta de disponibilidade de tempo.

Quanto aos presentes e refrigerantes, pedíamos aos nossos ami-gos pessoais e, com o dinheiro arrecadado, a partir de 1988, fazíamosas compras em outras cidades. Nunca nosso ônibus foi parado, senãocomo explicar aquela quantidade de brinquedos? Seria difícil acredi-tar que não eram para comércio. Mas cremos no poder de Deus e deseus mensageiros. Assim, os presentes se tornaram de melhor quali-dade, porque entendíamos que quem participava o ano inteiro comsol, frio e garoa merecia um bom presente. O Centro Brasileiro para aInfância e a Adolescência (CBIA), que sucedeu à Funabem, colabo-rava sempre com o bolo e a presença.

No período de cinco anos e meio, desenvolvemos as atividades nacomunidade de São Benedito. Foi um período em que não se via crian-ça e adolescente bebendo, usando drogas e, apesar de não dizermosexplicitamente palavras negativas sobre prostituição, mães solteiras,valorizávamos a união duradoura e com amor.

Após o período citado iniciamos o processo de paralisação dasatividades do grupo. Como havíamos perdido o cargo de chefia quetínhamos no Governo estadual, tornou-se difícil a aquisição de brin-quedos, de jogos e do lanche para o grupo. Não tendo outras colabora-ções, optamos por parar, com muita tristeza, porque aquelas criançaseram parte da nossa vida.

Uma criança de sete anos, quando o seu pai disse que o nosso tra-balho não iria fazer falta, discordou e lhe perguntou se ele não tinha

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observado que quase todo mundo passava de ano e que não tinha maismenina tendo filho sem pai, depois que a Raimunda tinha vindo com ogrupo.

3. Segunda etapa

Em 2003 retomamos o trabalho com outras crianças e adolescen-tes, a convite da comunidade, acrescentando na proposta inicial o des-vendar de um novo olhar.

A comunidade já possui asfalto, ônibus, posto de saúde, escolaestadual e creche. Os antigos participantes já são adultos, vários cur-sam o ensino superior, há uma banda de música, um coral litúrgico eum cursinho pré-vestibular coordenado pelos jovens. É importanteobservarmos que houve uma mudança no local. A participação nomeio tem uma nova dimensão, estão em busca de crescimento organi-zado, não aceitam mais o status quo anterior. Nas reuniões da associa-ção já discutem novas propostas de ação.

Com nosso público-alvo estamos utilizando o espaço físico da es-cola, e como contrapartida colaboramos com o reforço escolar.

Os estagiários são dos cursos de: Serviço Social, Pedagogia, Geo-grafia, História, Administração de Imóveis, Comunicação, Turismo eEducação Física. Com novos estagiários e o espaço da escola, o de-senvolvimento das atividades se dá no período vespertino dos sába-dos. As brincadeiras (jogos de salão, dança, vôlei, basquete e futebolde salão) ocorrem no primeiro período, no intervalo tem o lanche,agora mais farto, e enquanto comem tocamos uma música lenta, paraem seguida fazermos a discussão de algum tema que lhes tenha cha-mado a atenção durante a semana. Discutimos as propagandas da te-levisão levando-os a questionar onde é evidenciado racismo e onde onegro se apresenta em situação de igualdade. É importante a noção deidentificação das situações da vida real com a ficção. Discutem-setambém as novelas e tudo o que passa na telinha.

Ganhamos livros de histórias e os distribuímos. Foi questionadopor que não havia negros em destaque, e quando apareciam era em si-tuação desfavorável (nunca como príncipe, médico, autoridade, massó como bandido ou muito subalterno). Outra fonte de discussão foicom relação à identidade. Distribuímos, no Natal, bonecas negras

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(muito bonitas) para as meninas, e o grupo todo discutiu a vantagemda existência desses brinquedos e como se pareciam com elas (as me-ninas). Explicamos que esse fato se chama referência, e que há nomundo meninas bonitas negras e brancas. Questionaram por que natelevisão isso não ocorre, o que nos levou a discutir a escravidão ecomo o povo negro foi marginalizado ao chegar ao Brasil, e também o13 de Maio, mas que depende de cada um de nós lutar para mudar essequadro. A luta é também fazer com que as pessoas não-negras se aper-cebam de que têm de mudar o seu olhar e concordarem em socializar oque até hoje negaram ao negro.

O nosso trabalho faz parte das ações afirmativas. Nosso objetivomaior é termos jovens e adultos saudáveis, íntegros e capacitadospara a vida em sociedade, e que a desigualdade que as estatísticasapontam seja diminuída até desaparecer.

É claro que, para que a igualdade aconteça, ainda teremos um lap-so de tempo de cerca de 50 anos. Acreditamos que aí teremos negrosnos diversos escalões da vida pública e da vida privada no País.

4. Considerações finais

No decorrer do trabalho procuramos reforçar a auto-estima decrianças e adolescentes por meio da valorização pessoal e do olharcrítico ao seu redor.

Discutíamos com os membros do grupo o que é importante no serhumano e o que eles possuíam (ser gente, estudar, amar-se, valori-zar-se, sentir-se belo(a), conhecer suas raízes, sua identidade e ter ini-ciativa...).

O 13 de Maio, que deveria ter transformado o escravo em ho-mem/mulher livre e cidadão(ã) responsável, não alcançou esse objeti-vo porque não se preparou para a grande mudança entre os brancos eos negros. Era impossível que após quase 400 anos de escravidão osbrancos passassem a ver os negros como “gente” e que os negros nãose sentissem inferiores perante o “senhor”. Ainda se encontravam si-tuações interétnicas, que só tinham sentido no período escravagista,vigendo até há bem pouco tempo, como a proibição da entrada de ne-gros nos elevadores sociais e nas entradas sociais de alguns edifícios,restaurantes, hotéis, entre outras.

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As universidades ainda discutem timidamente o tema.Nós, como militante do movimento negro e membro da Acade-

mia, entendemos que ainda há muito a ser feito quanto à inserção ple-na do negro na vida social e profissional brasileira.

Em 2005 demos uma nova parada por motivo de saúde, mas con-tinuamos a participar da vida da comunidade com palestras, visitasaos que estão com problemas e orientação aos que solicitam.

O trabalho desenvolvido, além de um resgate da essência da his-tória da comunidade, fez com que o pequeno grupo aprendesse a con-vivência para uma sociedade maior. Aprenderam também que nãobasta criticar, têm de estar juntos e iniciar o aprendizado da participa-ção buscando sua inserção na direção da vida do local onde residem,para daí alçarem novos vôos na comunidade maior que é a cidade, oEstado e o País.

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SOUZA, Neuza Santos. Tornar-se negro. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

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IV

HISTÓRIA, ESQUECIMENTO

E DIREITOS HUMANOS

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IV.1. A internacionalização dos direitos humanos:evolução histórica

Ana Paula Martins Amaral*

Preliminarmente, cumpre fazer uma distinção entre a história dosdireitos humanos, que, segundo alguns doutrinadores, possui suasorigens na Antigüidade Clássica, entre os sofistas e estóicos, e o direi-to internacional dos direitos humanos, que teria início com a Declara-ção Universal dos Direitos Humanos, de 1948, sob os auspícios da en-tão recém-criada Organização das Nações Unidas.

Há divergência entre os doutrinadores sobre o marco inicial dosdireitos humanos. Alguns, a exemplo de Canotilho, vão buscar suasorigens na Antigüidade Clássica, passando pela doutrina cristã, che-gando então à Carta Magna e à Declaração dos Direitos do Homem,na Revolução Francesa e Declaração do Bom Povo da Virgínia.1 Ou-tros autores colocam como marco inicial o Egito e a Mesopotâmia, noterceiro milênio antes de Cristo, citando o Código de Hamurabi.2

Durante a Idade Média surge a concepção tomista dos direitos na-turais. Gilmar Ferreira Mendes destaca que na obra de Santo Tomásde Aquino o ser humano é a obra mais importante de toda criação di-

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* Doutora em Direito das Relações Econômicas Internacionais pela Pontifícia UniversidadeCatólica de São Paulo. Professora nos cursos de Direito e Relações Internacionais.1 Canotilho, J. J. Direito constitucional, cit. p. 500.2 “O Código de Hamurabi (1690 a.C.) talvez seja a primeira codificação a consagrar rol de direi-tos comuns a todos os homens, tais como a vida, a propriedade, a honra, a dignidade, a família,prevendo igualmente a supremacia das leis em relação aos governantes” (Moraes, Alexandrede. Direitos humanos fundamentais: teoria geral. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 24).

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vina, com isso titular de um direito natural, decorrente do fato de tersido criado à imagem e semelhança de Deus.3

Outros autores, como Cyfer,4 acentuam que os direitos humanosencontram seu fundamento no universalismo ético da filosofia grega,resgatado na era moderna por Kant e Rousseau, que teriam influencia-do profundamente o primeiro documento de direitos humanos que le-gitimou o referido universalismo ético: a Declaração dos Direitos doHomem e do Cidadão, proclamada durante a Revolução Francesa.

Outra interpretação dos direitos humanos pode ser encontrada emKant, considerada como a terceira fase evolutiva dos direitos huma-nos, sendo a primeira a filosofia antiga, a segunda a filosofia escolás-tica e a terceira fortemente baseada na influência estóica e cristã. Emsua obra Fundamentos da metafísica dos costumes, Kant afirma que ohomem é um valor em si, e sua dignidade inerente e absoluta derivado fato de que cada ser humano é único e insubstituível, não podendoser valorado como objeto de troca.5

Entretanto, durante os séculos que se seguiram, as relações de po-der encontravam-se baseadas exclusivamente no livre-arbítrio dosEstados, situação que somente foi alterada no século XX, após a Se-gunda Grande Guerra, com a criação de organizações internacionais,como a ONU e suas instituições especializadas, e com a proliferaçãode tratados internacionais de direitos humanos.

Comparando-se os mecanismos de proteção atuais aos existenteshá 100 ou 200 anos, percebe-se a evolução do direito que veio a sechamar direito internacional dos direitos humanos. Naquele períodoinexistiam órgãos internacionais de implementação, e a capacidadeprocessual na ordem internacional não era reconhecida no indivíduo,pois o direito internacional baseava-se tão-somente nas relações inte-restatais.6

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3 Mendes, Gilmar Ferreira; Coelho, Inocêncio M.; Branco, Paulo G. G. Hermenêutica constitu-

cional e direitos fundamentais. p. 105.4 Cyfer, Ingrid. Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial(1965). In: Almeida, Guilherme; Perrone-Moisés, Claudia. Direito internacional dos direitos

humanos. São Paulo: Atlas, 2002. p. 26.5 Kant, Immanuel. Fundamento da metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo: MartinClaret, 2002. p. 58-59.6 Trindade, Antonio Augusto Cançado. Tratado, cit. p. 32.

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Cumpre ainda ressaltar que, apesar da evolução ocorrida, as deci-sões continuam recaindo sob o controle estatal. No entanto, a socieda-de civil se organiza a cada dia, bem como há a participação cada vezmais atuante do cidadão em Estados democráticos, influenciando as-sim no processo decisório.

A respeito do século XX, o historiador Eric Hobsbawm, em suaobra Era dos extremos – o breve século XX, retrata o período compre-endido entre a Primeira Grande Guerra até o colapso da URSS. Afir-ma o autor que nunca, em tão curto espaço de tempo, tantas transfor-mações ocorreram; nesse século cunhou-se o termo genocídio e posi-tivaram-se os crimes contra a humanidade.

Hobsbawm chama o período entre guerras da era da catástrofe, e1914 inaugura a era do massacre, que se encerra com o final da Segun-da Guerra Mundial. No período posterior seguiram-se 25 ou 30 anos deextraordinário crescimento e transformação social, que nas palavras dohistoriador “provavelmente mudaram de maneira mais profunda a so-ciedade humana que qualquer outro período de brevidade compará-vel”, sendo por isso chamada de era de ouro. A última parte do séculoXX, aproximadamente no início dos anos 1970, apresenta-se como umperíodo de decomposição, incerteza e crise, chegando-se ao final do sé-culo a um período desconhecido e problemático.7

Hannah Arendt coloca que a Segunda Grande Guerra representouuma ruptura dos direitos humanos, com a banalização do mal, a des-cartabilidade e as execuções em massa, sendo necessária, nas pala-vras de Celso Lafer, uma reconstrução dos direitos humanos.

Nesse processo, dá-se início, imediatamente após os conflitos, auma verdadeira internacionalização dos direitos humanos: na Carta daONU, na Declaração Universal dos Direitos Humanos e em outros do-cumentos; com os tratados internacionais; com a criação de dezenas deOrganizações Internacionais interestatais, regionais e universais; comas organizações não governamentais e a sociedade civil organizada,que buscam a proteção de crianças, mulheres, portadores de necessida-des especiais, feridos, vulneráveis e do ser humano como um todo.8

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7 Hobsbwam, Eric. A era dos extremos: o breve século XX 1914-1991. 2. ed. São Paulo: Compa-nhia das Letras, 1995. p. 15.8 Lafer, Celso. Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo:Paz e Terra, 2003.

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Uma nova dimensão no direito internacional com acriação da Organização das Nações Unidas

A criação da ONU9 ocorreu em um momento especial, no térmi-no da Segunda Grande Guerra. A Liga ou Sociedade das Nações nãohavia alcançado seu objetivo – evitar a guerra –, e os Estados tinhamconsciência da necessidade de regras claras a serem respeitadas portodos, a fim de evitar um novo confronto em escala global. Os aliadosnesse momento histórico também compreenderam que não poderiamaniquilar completamente os países do Eixo, pois isso poderia trazer asmesmas conseqüências do Tratado de Versalhes. Era, assim, necessá-ria a construção de uma nova ordem global com a criação de Organis-mos que pudessem auxiliar nesse intento.

Além da Carta da ONU, foi celebrado, em 1944, o acordo de Bre-ton Woods, que visava a reorganizar a economia mundial, com a cria-ção do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e da Orga-nização Internacional do Comércio, não chegando esta última a seconcretizar.10

O fenômeno da descartabilidade do ser humano, presente na Ale-manha nazista, a presença de refugiados, apátridas, a realidade do ge-nocídio, enfim, o horror da guerra despertaram a atenção do mundopara a criação de um novo direito baseado nos direitos humanos.11

Essa idéia está presente já no preâmbulo da Carta da ONU, quan-do declara solenemente que:

“Nós os povos das Nações Unidas resolvidos a preservar as geraçõesvindouras do flagelo da guerra, que, por duas vezes, no espaço da nossa vida,trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitosfundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, assimcomo das nações grandes e pequenas...”

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9 Em 26 de junho de 1945 foi assinada em São Francisco a Carta das Nações Unidas. A Carta foiaprovada por praticamente a totalidade de Estados independentes à época, cerca de 50 Estados.10 O Senado americano não aprovou a criação da Organização Internacional do Comércio(OIC), e em seu lugar foram realizados diversos acordos gerais de comércio conhecidos sob asigla Gatt. Somente em 1995, com o final da Rodada Uruguai, foi finalmente aprovada a criaçãode uma nova organização mundial ligada ao comércio, a “World Trade Organization”, ou aOrganização Mundial do Comércio.11 Lafer, Celso. Resistência e realizabilidade da tutela dos direitos humanos no plano internacio-nal no limiar do século XXI. In: Amaral Junior, Alberto; Perrone-Moisés, Claudia (Org.). O cin-

qüentenário da Declaração dos Direitos do Homem. São Paulo: Edusp, 1999. p. 446.

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Os arts. 13 e 55 estabelecem direitos civis, mas o preâmbulo esta-belece o compromisso de promoção do progresso econômico e socialde todos os povos.

Segundo Hannah Arendt, o “direito a ter direitos” somente pode-ria efetivar-se com a tutela internacional homologadora do ponto devista de uma razão abrangente da humanidade. Acerca do tema, CelsoLafer sintetiza o pensamento da autora:

“É justamente para garantir que o dado da existência seja reconhecido enão resulte apenas do imponderável da amizade, da simpatia ou do amor noestado da natureza, que os direitos são necessários. É por essa razão queHannah Arendt realça, a partir dos problemas jurídicos suscitados pelo tota-litarismo, que o primeiro direito humano é o direito a ter direitos. Isto signifi-ca pertencer, pelo vínculo da cidadania, a algum tipo de comunidade juridi-camente organizada e viver numa estrutura onde é julgado por ações e opi-niões, por obra do principio da legalidade.”12

Exemplo dessa transformação pela qual passa o sistema envol-vendo direitos humanos na esfera internacional apresenta-se no reco-nhecimento dos direitos à paz, ao desenvolvimento e ao meio ambi-ente como direitos humanos, sendo os mesmos objetos de inúmerasconvenções e tratados internacionais, especialmente no decorrer daúltima década do século XX.

Acerca do direito à paz, Fabio Konder Comparato destaca que aSegunda Guerra Mundial deixou um saldo de milhões de mortos, amaior parte de civis, e provocou o surgimento de cerca de 40 milhõesde pessoas deslocadas, forçada ou voluntariamente, dos países ondeviviam em meados de 1939, além do desenvolvimento de armamen-tos nucleares, que colocaram em risco a vida na Terra. Com isso, sur-giu uma consciência mundial de que a sobrevivência da humanidade

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12 Lafer, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Han-nah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988: “Num mundo único a cidadania, comobase para o direito a ter direitos e como condição para um indivíduo beneficiar-se do princípioda legalidade, evitando-se dessa maneira o surgimento de um novo ‘Estado totalitário de nature-za’, não pode ser examinada apenas no âmbito interno de uma comunidade política. Em verda-de, só pode ser assegurada por um acordo da comitas gentium, pois este primeiro direito huma-no, como todos os demais que dele derivam, só pode existir, observa Hannah Arendt em artigopublicado em 1949, por meio de acordo e garantias mútuas, pois não se trata de algo dado, masconstruído, e este construído, no caso, requer um entendimento de alcance internacional.”

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exigia a reorganização das relações internacionais e o respeito à dig-nidade humana.13

O direito ao desenvolvimento, especificamente consideradocomo direito humano, foi defendido em 1971 por Keba M’Baye e nomesmo ano por Juan Antonio Carillo, sendo reconhecido, já em 1977,pela Comissão de Direitos Humanos da ONU, e, em 1981, a Assem-bléia Geral, por meio da Resolução no 38/124, declarou ser o direitoao desenvolvimento um direito humano.14

Posteriormente, em 1986, a Resolução no 41/128 da AssembléiaGeral da ONU aprovou a “Declaração do Direito ao Desenvolvimen-to”, e, em 1995, ocorreu em Copenhague, sob os auspícios das Na-ções Unidas, a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Social, quecontou com a participação de representantes de praticamente todos osEstados, além de Organizações Não Governamentais e jornalistasque atuaram como observadores.

O art. 1o da Declaração dispõe de maneira clara ser o direito aodesenvolvimento um direito inalienável do homem em virtude doqual todo ser humano e todos os povos podem participar e contribuirpara o desenvolvimento econômico, social, cultural e político, noqual todos os direitos do homem e todas as liberdades fundamentaispossam ser plenamente realizados, para que o ser humano possa be-neficiar-se do desenvolvimento.

No início da década de 1990, o Programa das Nações Unidas parao Desenvolvimento passou a utilizar o IDH, ou Índice de Desenvolvi-mento Humano, tendo como parâmetros, além do PIB, a longevidadee a educação.15 Ainda durante essa década foram realizadas diversasconferências sob a coordenação das Nações Unidas, incluindo a Con-ferência de Monterrey sobre Financiamento ao Desenvolvimento16 e

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13 Comparato, Fábio Konder. Afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed. rev. e ampl. SãoPaulo: Saraiva, 2004. p. 209.14 Silva,GuilhermeAmorimCamposda.Direitoaodesenvolvimento.SãoPaulo:Método,2004.p.40.15 O IDH é uma forma inovadora de medição do desenvolvimento, a partir da identificação detrês dimensões básicas relacionadas ao ser humano: (i) sua longevidade e, portanto, seu acesso àalimentação adequada, abrigo, saneamento básico e saúde; (ii) suas possibilidades de educaçãoe acesso ao conhecimento e à informação; e (iii) o acesso aos meios para uma vida digna, atravésda provisão de uma renda decente.16 Relatório da Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento,Monterrey. México, 18-22 de março de 2002 (United Nations Publication, n. E.02.II.A.7), cap.I, resolução 1, anexo.

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a Conferência Ministerial de Doha, promovida pela OrganizaçãoMundial do Comércio.

Em 2002 foi realizada em Joanesburgo a Conferência Mundialsobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, da qual resul-tou a Declaração de Joanesburgo sobre Desenvolvimento Sustentá-vel, ocasião em que os Estados assumiram a responsabilidade coleti-va de fazer avançar e fortalecer os pilares interdependentes e que sesustentam mutuamente do desenvolvimento sustentável – desenvol-vimento econômico, desenvolvimento social e proteção ambiental –nos âmbitos local, nacional, regional e global.17 Trata-se de uma de-claração, não havendo vínculo jurídico com força, como um tratadoratificado, mas exprime o compromisso moral e os objetivos que per-meiam as relações internacionais relativas ao tema.

A história e o reconhecimento do direito internacional apresen-tam uma evolução, sinalizando a transformação da visão interestatalpara uma visão antropocêntrica, que veio a se cristalizar na positiva-ção do direito internacional dos direitos humanos. O caminho, toda-via, se apresenta tortuoso, com avanços e retrocessos no respeito aosdireitos humanos. Contudo, a humanidade se transforma a cada dia,com o surgimento de novos direitos que vão se cristalizando, apresen-tando-se como uma expansão do corpus juris dos direitos humanos, eestes enriquecem e interagem com os direitos anteriores, em um pro-cesso dinâmico e complexo.

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17 Relatório da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, Estocolmo,5-16 de junho de 1972 (United Nations Publication, n. E.73.II.A.14 e corrigendum), cap. I.

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IV.2. As dificuldades para a implementaçãodos direitos humanos

Palestra de 8.6.2006

Dalmo de Abreu Dallari*

Caros amigos presentes, é um prazer muito grande estar aqui, e euquero agradecer aos organizadores a honra e a gentileza do convite.

O tema posto – as dificuldades para a situação de direitos humanos– é extremamente amplo e são muitas as dificuldades. É uma variaçãoenorme em função até do direito que se quer efetivar. Eu vou procurarem uma síntese necessária suscitar algumas questões, tomando porbase muitas das minhas próprias experiências. Eu começaria dizendoque o principal obstáculo ainda está na incompreensão, que é, em gran-de parte, filha da ignorância; é uma compreensão errada, distorcida, in-completa do que são direitos humanos. E eu tenho verificado isso in-clusive entre defensores dos direitos humanos, e que às vezes ficam en-curralados porque recebem uma crítica e não têm resposta para dar.

Ainda há poucos dias aconteceu isso em uma palestra cujo assun-to era direitos humanos. Todos que estavam lá eram interessados, eum estudante da Universidade de São Paulo, absolutamente angustia-do na saída, queria falar comigo: “Mas o que eu falo quando me co-bram a questão das vítimas? Eu não tenho resposta para dar.” Ele tam-bém achava que o problema era nas vítimas. Então há de fato uma in-compreensão, e às vezes não se trata bem de incompreensão, são pes-soas que realmente são contrárias por uma série de razões.

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* Professor emérito da Faculdade de Direito da USP.

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Vou rapidamente relembrar um pouco o começo da nossa luta pe-los direitos humanos, só para nos situarmos e percebemos a diversida-de das resistências e como elas têm se colocado. Porque na verdade nóscomeçamos – eu posso falar nós porque participei desse começo – a fa-lar de direitos humanos no Brasil durante o período da Ditadura Mili-tar. Foi o momento de prisões arbitrárias, torturas, desaparecimento depessoas, e eu tive então a oportunidade de ser presidente da ComissãoJustiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo. Não conhecia, não tinhatido nunca um relacionamento pessoal com o cardeal Paulo EvaristoArns, e um dia recebi um recado através de um colega, amigo, FábioComparato, dizendo que o cardeal gostaria de conversar comigo. Aí fuilá, e ele disse que havia conversado com o papa Paulo VI – Dom Eva-risto tinha um relacionamento pessoal com o papa – e ele havia concor-dado em criar uma Comissão Justiça e Paz em São Paulo.

A Comissão Justiça e Paz nasceu no Vaticano, e a idéia básica eraa correção das injustiças existentes no mundo, e um trabalho sobretu-do nos chamados, então, países subdesenvolvidos, que depois ganha-ram o rótulo mais simpático “em desenvolvimento”. A idéia era essa,partindo de algumas colocações que já se encontram no próprio Gró-cio, quando fala na justiça como pressuposto da paz. Isso depois foireafirmando pelo Concílio Vaticano II; há uma oração muito bonitado papa João XXIII, em que ele diz textualmente isto: “justiça é onovo nome da paz”. E aí, então, um trabalho no sentido da correçãodas injustiças. E a idéia era ter uma Comissão Justiça e Paz em cadapaís, fazendo com que houvesse um diálogo entre o país que necessitade apoio e outro, que pode dar o apoio. Assim, por exemplo: a Comis-são Justiça e Paz da França dialogar com a Justiça e Paz no Brasil. Eno Brasil foi criada essa Comissão com sede no Rio de Janeiro. A pre-sidência foi designada ao professor Candido Mendes, e iniciou-se otrabalho.

Dali a pouco veio o Golpe Militar, e em São Paulo uma ação vio-lenta, entre outras razões, porque aqui o movimento sindical era maisforte. E aconteceu aquilo que na velha tradição brasileira costumaacontecer: você não sabe o que fazer, a quem pedir proteção, vai sequeixar para o bispo. E as pessoas foram ao pé da letra se “queixarpara o bispo”, foram procurar Dom Paulo Evaristo Arns. E ele, então,querendo dar apoio, imaginando o que fazer, e pelo conhecimento

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que tinha dos objetivos da Justiça e Paz, pediu a Paulo VI que abrisseuma exceção, que criasse no Brasil outra Comissão Justiça e Paz, por-que a do Rio de Janeiro tinha uma visão muito eclesial, tradicionalis-ta, tanto que houve, apesar de um bom relacionamento de amizade,divergências de orientação. A Comissão do Rio de Janeiro achavaque não devíamos criticar os militares e que eles fariam um bom en-tendimento e iriam dialogar. Mas nós tínhamos outra visão e outra ex-periência; realmente as coisas eram muito violentas.

Mas estou recuperando esse dado porque vou falar em uma dasresistências. O Golpe Militar foi dado porque havia uma mobilizaçãosindical muito intensa, estava se falando muito em justiça social e ha-via um temor das elites paulistas quanto a esse movimento. A Federa-ção das Indústrias estava resistindo a ameaças de greve. Mas foi nesseambiente que foi dado o Golpe Militar. Foi para evitar que crescesseessa força social que reivindicava justiça social em última análise. Eentão se deu o Golpe, e uma das peculiaridades daquele momento eraque muitos desses líderes sindicais eram comunistas. Não era a maio-ria, de maneira alguma. Eu tive muito contato pessoal, pois fui a váriossindicatos na ocasião; até tive uma participação curiosa, quando já aofinal da minha condição de estudante fui ao sindicato dos metalúrgi-cos, que não era dirigido por comunistas, e celebramos uma aliançaoperário-estudantil. Uma dessas coisas assim, que o jovem faz. Entãofiz um discurso e dei uma caneta para o presidente do sindicato, quefez um discurso e me deu um martelo, para simbolizar a união operá-rio-estudantil. Depois fomos juntos – ainda era o governo JuscelinoKubistcheck no Rio de Janeiro – ao presidente da República pedir ocongelamento dos preços. Tenho uma boa lembrança de ter sido rece-bido muito cordialmente pelo Juscelino Kubistcheck; de discutir como presidente da República o problema do congelamento dos preços.Estudante meio atrevido, mas, de qualquer maneira, fazia parte.

Depois então veio o governo Goulart. A movimentação sindical,o sindicalismo do ABC, da indústria automobilística, ganharam for-ça, e houve um momento em que se estava falando na hipótese de umagreve geral. Mas a essa altura já a situação estava se deteriorando,porque as elites econômicas estavam muito assustadas. Assim, vai sesomando uma série de fatores, e um dado que é importante lembrar é aRevolução Cubana em 1959. Isso é importante lembrar porque a vitó-

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ria de Cuba é um marco, e o fim da União Soviética é outro, e são doisfatos que têm muita importância na questão dos direitos humanos.Então Cuba, de certo modo, estimulou a movimentação, mas tambémassustou. Imaginava-se que se aqueles operários não fossem contidoshaveria uma revolução comunista no Brasil, e aqui está então o pri-meiro ponto: a idéia de que reivindicação social era uma tese comu-nista. Eu mesmo vivi muito essa coisa, fui inclusive preso.

Eu conheci dois presidentes da República no mundo quando está-vamos na cadeia como presos. Um deles foi o Lula, porque eu tinhaescrito um artigo contra a intervenção do sindicato – mas ainda nãoconhecia o Lula –, e me convidaram para ir ao sindicato dos metalúr-gicos em São Bernardo explicar o que fazer para resistir a uma inter-venção. Eu compareci e disse que a saída seria entrar com um manda-do de segurança, pela inconstitucionalidade de uma intervenção, edepois me perguntaram se eu aceitaria ser o advogado do sindicatonesse caso. Aceitei e entrei com a medida, mas, poucos dias antes queo juiz decidisse, durante a noite, prenderam todos os líderes metalúr-gicos e de manhã foram à minha casa às seis horas da manhã. Toca-ram a campainha, e era um grupo fortemente armado; policiais dizen-do que teriam vindo para convidar-me a acompanhá-los – um dessesconvites que não podemos recusar –, então fui, e foi assim que conhe-ci o Lula, dentro da cadeia.

Depois, em uma missão à Indonésia, soube que Xanana Gusmão,o líder do Timor, estava preso em Jacarta, e eu era chefe de uma mis-são da ONU. Éramos quatro advogados, e eu conversei com o minis-tro da Justiça e pedi autorização para fazer uma visita ao Xanana, e eleme deu. Então fui encontrar o Xanana, que hoje é presidente da Repú-blica. Ou seja, se algum de vocês quiser ser algum dia presidente daRepública, recolha-se preso e me chame para visitar, porque há umaboa chance.

Pois bem, o que eu queria ressaltar é isso. A primeira grande re-sistência aos direitos humanos partiu dessa identificação dos direitoshumanos com o comunismo. Eu mesmo, quando já era professor li-vre-docente da Faculdade de Direito de São Paulo, fui proibido de daraulas, proibido por uma decisão formal da Congregação, e o argu-mento utilizado foi o de que eu era um comunista perigoso, estava in-troduzindo a subversão na Faculdade de Direito e era uma má influên-

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cia sobre os estudantes. Estudei a situação e descobri que a decisãoera absolutamente ilegal e inclusive contrária ao estatuto da universi-dade, que estabelece como uns dos direitos do livre-docente o de mi-nistrar cursos. Com isso, escrevi um recurso ao Conselho Universitá-rio e fui entregar ao diretor da Faculdade de Direito, professor LuizEulálio Vidigal, que me recebeu bem e cordialmente, pois tinha sidomeu professor e eu o respeitava muito. Mas ele disse: “Olha, se vocêinsistir nisso, eu vou ser obrigado a encaminhar, e com esse recursovocê estará declarando guerra aos catedráticos, o que acabará comsua carreira.” Mas eu disse a ele que um professor que não pode daraula não tem mais carreira, não teria mais o que perder.

Insistindo no encaminhamento, dias depois o diretor me disseque havia conversado com os professores e eles concordaram que eupoderia dar aulas. Mas com uma condição: só no curso noturno, por-que são os alunos pobres; não é a elite que mandará no País. A eliteestá no curso da manhã, e sobre eles é perigoso exercer influência.Agora, à noite, é todo mundo pobre mesmo, eles vão ser empregadosde alguém, então não tem nenhuma importância.

Mas vejam aí a resistência. Vem daí a primeira identificação, que,para muita gente, ainda não foi superada; quer dizer, direitos huma-nos são vistos como pregação de comunismo, e isso é muito explora-do. Defensores dos direitos humanos são comunistas e/ou defensoresdo comunismo; põem em risco a propriedade e a liberdade individual;isso tudo é uma resistência que existe. Então precisamos estar cons-cientes disso para, nos escritos, nas falas, nas palestras, enfrentarmostambém essa questão, falar a respeito disso e acentuar direitos huma-nos com pregação humanista; seja comunista ou anticomunista, issonão vem ao caso. Não é aí que a questão se coloca; e isso, para nós,para quem já está trabalhando, pode parecer coisa simples e ingênua,mas não é, pois eu mesmo muitas vezes senti esse tipo de resistência.

Eu fui convidado a falar para um grupo de mulheres, todas deuma entidade que existe em São Paulo; mulheres de grandes empresá-rios, e que querem fazer um trabalho social, mas que me colocaramessa questão várias vezes. Elas têm problemas inclusive perante osseus maridos, porque lhes dizem: “como é que você vai ajudar essescomunistas?” Então é bom saber que esse tipo de resistência existe.Posteriormente, essas coisas avançaram e acabou o regime militar, e

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sendo já difícil sustentar isso ou manter só essa argumentação huma-nista, aparece a argumentação de que direitos humanos é proteção decriminosos. Esse é o segundo grande argumento que tive de enfrentar.

Essa argumentação de que os direitos humanos são formas de de-fesa de criminosos ainda é muito viva. Agora mesmo, quando aconte-ceram essas coisas em São Paulo (ataques de maio de 2006), em gran-

de parte alimentadas pela imprensa – houve um grande teatro televisi-vo que simulou entrevistas. E mais, nós, de um grupo que trabalha nadefesa dos direitos humanos, preparamos um texto manifestando anossa solidariedade aos policiais e às suas famílias que tinham sidovítimas, dizendo que entendíamos que deveriam ser feitas uma rigo-rosa investigação e uma rigorosa punição nos limites da lei.

Colocamos exatamente nesses termos, mas nenhum jornal publi-cou o nosso texto, porque não convinha, pois seria dar outra imagemdos defensores dos direitos humanos, de que eles também estão con-tra a violência, eles também são capazes de ser a favor da polícia. Tal-vez isso fosse estragar o argumento de que a defesa dos direitos hu-manos é a favor de criminosos, já que a nossa nota não era a favor doscriminosos, mas da polícia. E nós fizemos várias tentativas, inclusiveatravés de jornalistas amigos, jornalistas que foram meus alunos, masnão houve possibilidade, não saiu porque simplesmente não convém.Então, isso também é bom saber e perceber, que são resistências quenão se explicitam, que ocorrem nos subterrâneos, mas que estão pre-sentes.

Inclusive posso dizer também, com base na experiência pessoal,que há, sim, nas redações uma espécie de censura, sem dúvida algu-ma. Antigamente eu publicava artigos com muita facilidade, mas de-pois de um tempo comecei a receber uma hora depois documentos porfax agradecendo a remessa do meu artigo, mas que não seria publica-do por falta de espaço; e a falta de espaço é eterna.

Ultimamente, por uma série de mudanças que ocorreram, recebio convite da Gazeta Mercantil e do Jornal do Brasil para publicar ar-tigos. Então agora estou publicando toda semana. São jornais de cir-culação muito menor, mas de qualquer maneira é um espaço, e esta éuma coisa que eu coloco também: temos de aproveitar todo o espaçoque nos derem. Aliás, durante a Ditadura Militar eu tive essa expe-riência; eu já sofri censura, também não podia mais publicar em qual-

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quer meio, e comecei a publicar artigos no pequeno jornal da Associa-ção dos Oficiais de Justiça. Somente aí não era censurado, pois o pre-sidente da Associação tinha sido meu aluno e tomava uma posiçãomuito boa, corajosa, e conseguiu meios para que o jornal dele circu-lasse pelo Brasil inteiro. Só que a censura não sabia, e felizmente paranós, pois a censura é muito burra, muito limitada. A censura via so-mente a grande imprensa, mas a pequena imprensa teve um papeltambém grande.

Então, são algumas questões que eu acho importantes para perce-bermos o tipo de resistência que existe agora. Uma outra resistênciavem daqueles que têm uma convicção sobre a qual eu até tenho às ve-zes, falando brincando, mas não é bem brincadeira; é verdade: aque-les que dizem que direitos humanos são para os “humanos direitos”,digo que eles erram; eles queriam dizer direitos humanos para “osmanos da direita”. Não é para “os manos direitos”, é para “os manosda direita”.

Isso nós encontramos inclusive em juristas na universidade, porexemplo, quando discuto com meu eminente colega, professor de Di-reito Constitucional, catedrático, colocando a questão da justiciabilida-de, sabendo que ele é muito apegado a esse argumento; ele diz que nãoseria possível, perguntando, em relação ao direito à saúde: “Como éque eu posso entrar com uma ação judicial para o juiz garantir que eunão vou ficar doente?” É claro que não sabe nada do assunto, não sabequal é o conceito de saúde e não percebe que é muito mais amplo do queisso; e que é judiciável, sim. Já temos inúmeras decisões judiciais naárea da saúde, por exemplo, garantindo internação em hospitais, acessoa medicamentos e muito mais que isso, se eu tomar por base o conceitode saúde que foi fixado – e curioso que isso foi feito antes mesmo daDeclaração Universal, no quadro da criação da ONU, quando se criou aOrganização Mundial de Saúde. Pela definição nesse documento deconstituição da ONU, que ainda existe, a saúde é conceituada como“estado do bem-estar físico, mental e social”. Eu mesmo tenho utiliza-do muito isso, porque posso colocar a própria condição de moradia nodireito da saúde, que é o estado de completo bem-estar físico, mental esocial. As condições do transporte urbano também têm muito a ver coma saúde. Então, havendo a compreensão correta dos direitos, abrem-sepossibilidades muito mais amplas.

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Mas é claro que certas pessoas, como esse meu colega, se apegamao argumento da falta de justiciabilidade dos direitos humanos, poissão ligados a grandes grupos econômicos. Isso acontece em grandesgrupos empresariais, que se opõem a qualquer tipo de concessão, uti-lizando ainda a idéia de direitos humanos às vezes como “coisa de co-munista” e outras vezes como ajuda a criminosos, ou outras vezes di-zendo que é uma fantasia.

Ainda há poucos dias eu participei de uma discussão assim, naqual um eminente colega jurista até chegou a dizer: “Vocês fizeram [eeu nem fui constituinte, claro que atuei bastante, fiz lobbies, estive naconstituinte etc.] uma Constituição muito bonitinha, mas aquilo éfantasia; não é prático...” É fantasia se os juristas não deixarem apli-car; se não, é realmente fantasia. Então existe esse tipo de resistência,e sobre isso eu quero falar um pouco.

Eu mencionei a questão da União Soviética, a queda da União So-viética, a queda do muro de Berlim, o desmoronamento da União So-viética em 1991. Eu próprio, através das entidades das quais partici-po, verifiquei uma mudança no sentido de aumento da resistência aosdireitos humanos e às reivindicações por direitos humanos. E a razãopela qual houve muita concessão durante a Guerra Fria era o medo do“perigo comunista”. Ou seja, pensou-se: “Vou conceder alguma coi-sa porque senão vai explodir e vou perder tudo, então é melhor darmais direitos trabalhistas, é melhor eu participar de uma fundação quevai dar alguma assistência a crianças abandonadas etc.”

E aí surgiram muitas ONGs, que na verdade tinham essa inspira-ção; é preciso dar alguma coisa para aliviar as tensões, que senão vemuma explosão, e o perigo comunista está aí. Mas quando ocorreu ofim da União Soviética, houve um retrocesso, e não é por acaso que aínasce o neoliberalismo. “Por que razão vou dar alguma coisa?”, – euouvi isso de um empresário há bem poucos dias – quer dizer, “eu pagoa escola do meu filho, por que tenho de pagar a escola do filho do meuempregado, já que dou um salário para meu empregado? Caso contrá-rio eu estaria dando dois salários para ele, e isso não é justo”.

Usa-se muito esse tipo de argumentação, mas com uma tranqüili-dade de quem não tem mais medo; de quem acha que o período comu-nista acabou. Então, agora, por que fazer concessões? Já que se faziamconcessões antes contra a própria vontade, mas da forma “dou os anéis

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para não perder os dedos”. Então, dá-se alguma coisa e aliviam-secom isso as tensões. Cria-se inclusive uma boa imagem: “eu sou ami-go dos pobres, amigo da justiça social e com isso estou preservan-do...”. Mas agora eles desapareceram com o período comunista, então“por que continuar fazendo concessões? Não vou fazer mais”. E issoestá muito evidente, como também cresceu na grande imprensa a te-mática contrária aos direitos humanos.

É um dos meus problemas com a imprensa; pois vivo dizendo quea grande imprensa lembra muito a grande empresa. Não é por acaso,quer dizer, é um empreendimento. Eu tive esse tipo de experiênciatambém, e dizem: “olha, tal grupo de empresários não quer mais quepubliquemos seus artigos”. É o peso do poder econômico, então esseproblema não existe, e quando lembramos a diferenciação que se fez,já no momento da criação dos pactos de direitos humanos, entre os di-reitos civis e os políticos, direitos econômicos, sociais e culturais,percebe-se claramente uma resistência muito maior aos direitos eco-nômicos, sociais e culturais.

Em um pequeno livro, pequeno, mas muito importante, LindgrenAlves faz essa colocação. Ele participou dessa discussão em que aidéia inicial era a de que teve um único pacto de direitos humanos.Depois, os países capitalistas disseram “não, nós achamos que dandoos direitos civis e políticos estão criadas as condições para que cadaum busque seus direitos, então não vamos dar mais do que isso”. E aidéia básica é de que direitos civis e políticos não exigem investimen-tos do Estado e, em conseqüência, não exigem uma tributação maior,então é bom que se perceba bem isso.

O grande problema da resistência aos direitos econômicos, so-ciais e culturais é que, para a satisfação desses direitos, o Estado pre-cisa gastar, precisa fazer investimento, precisa de dinheiro. E de ondeele vai tirar esse dinheiro? Basicamente dos tributos e da tributação.Ainda há poucos dias fui falar em uma entidade ligada a empresários,e inclusive os advogados que me convidaram são advogados de gran-des empresas, e eu atrevidamente falei claramente a respeito disso.Disse: “na verdade o grande problema de vocês é que não querem pa-gar imposto”. Aliás, o grande problema de não pagar imposto é tradi-ção na humanidade em grande parte.

Em grande parte, a criação dos Estados Unidos da América foi fei-ta pelo excesso de tributação da Inglaterra sobre as colônias, como no

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movimento da Inconfidência Mineira, problema dos direitos dos “quin-tos dos infernos”. E é atualmente essa obsessão antitributação – etambém faço um pouco de ironia dizendo isto: quando leio as declara-ções dos grandes empresários brasileiros, fico com muita pena; tenhoaté vontade de pôr a mão no bolso e dar alguma coisa para eles, poisparece que estão todos na miséria. Esse excesso de carga tributária,“coitado do empresário”.

Acho que há alguma deficiência de informação; por exemplo, aDaslu é a butique mais cara do mundo. Acho que são as mulheres dosoperários que compram lá, ou então as mulheres dos funcionários dauniversidade, porque os empresários estão “todos pobres”. Então nãohá de ser as mulheres dos empresários, e ainda há poucos dias um co-lega advogado me contava que trabalha em uma concessionária deautomóveis, e que existe fila para receber os automóveis de alto luxo.E quem é que está nessa fila? Deve ser o porteiro da universidade, ooperário. “É óbvio que são”, pois estão ganhando muito dinheiro, massão resistentes a fazer qualquer concessão.* Não é por acaso que de-pois do fim da União Soviética nós tivemos essa experiência.

O governo Fernando Henrique Cardoso foi claramente neoliberal.Só o governo Fernando Henrique Cardoso fez 35 emendas à Constitui-ção, e se examinarmos o teor das emendas, vamos ver que foi no senti-do da abertura econômica, quer dizer, abriu-se a economia às multina-cionais e praticaram-se as privatizações, entregou-se de presente umenorme e fundamental patrimônio brasileiro a empresas, e fez-se aqui-lo que sinicamente se chamou de flexibilização dos direitos, “flexibili-zação” da legislação trabalhista.

Por exemplo, o Brasil era signatário de uma convenção da OITque proibia a dispensa sem justa causa, e Fernando Henrique Cardosodenunciou essa convenção e retirou o Brasil do acordo, para permitira dispensa injustificada. Isso é “flexibilização” dos direitos? Na ver-dade, é uma investida da sociedade mais rica, e a essa altura os direi-tos humanos passam então a ser alvo de mais ataques; e também não épor acaso que a partir daí cresce a afirmação reiterada de que direitoshumanos são defesa do crime, são defesa do criminoso.

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* Nota do Organizador: Deve-se destacar o caráter irônico da fala do professor Dalmo Dallarineste parágrafo. Decidiu-se por mantê-lo intacto para que o leitor possa experienciar a astúciade seu raciocínio e a sofisticação lingüística de sua argumentação.

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Na verdade, estão à busca de argumentos para a resistência.Então é um quadro em que há idas e vindas, e as resistências são pormotivos diversos. Mas o que acontece é que sempre tive muito bomrelacionamento com os estudantes, com movimentos sociais, e, porcausa de um livro que publiquei sobre o Judiciário, O poder dos juí-

zes, tenho também muito bom relacionamento com o Judiciário, ecom o Ministério Público a mesma coisa.

Por causa disso recebo muitos convites e faço o possível paraaceitar. E é aquela coisa: se me convidarem para falar sobre direitoshumanos em um terreiro de Umbanda, eu vou. Onde for possível euvou, escrevo quando possível. Acho muito necessário falar, e não épor acaso que esta lá na Bíblia: o começo era o verbo e do verbo vemtudo mais. Quer dizer, o ser humano é um ser muito inteligente e raci-onal. Por mais resistente que seja, a palavra é a maneira de estabelecerum diálogo e de reduzir pelo menos as resistências.

Então, acho muito importante não perder qualquer oportunidadeque se dê para falar sobre o assunto. E que eu queria dizer afinal e comtudo isso, com todas as resistências, sou otimista, e não um otimistatipo “Poliana”, mas otimista pelas coisas que tenho visto e ouvido.

E inclusive há poucos dias também fui falar a um grupo de jorna-listas e perguntei por que publicavam somente sobre tragédias, vio-lências e brutalidades quando há tanta coisa boa acontecendo no Bra-sil, e a resposta que um deles me deu foi “coisa boa não é notícia”. Eeu disse, “coisa boa não é notícia se vocês não souberem dar a notí-cia”, pois as pessoas querem coisas boas, sim; elas querem se sentirdesafogadas, aliviadas; as pessoas ficarão felizes se souberem que oBrasil está caminhando no sentido da criação de uma sociedade semviolências, então publique.

Eu até dei como exemplo um movimento muito bonito que existena cidade de Erechim – vou citar Erechim, mas poderia citar Maceió,Ilhéus e outras, muitos lugares onde essas coisas estão acontecendo;em João Pessoa, inclusive, há grupos muito bons. Erechim me im-pressionou muito, pois era uma cidade basicamente agrícola e come-çou a se industrializar. Mas, com o começo da industrialização, co-meçaram a chegar muitos migrantes em Erechim, e entre eles muitagente pobre, gente sem nenhuma perspectiva, mas também algunsaproveitadores da situação.

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Então, começaram a ocorrer furtos que não aconteciam antes, e areação da população foi fantástica: tudo partiu de um grupo que tinhauma entidade que cuidava dos direitos da criança e do adolescente,mas eles discutiram e chegaram à conclusão de que a melhor coisa se-ria envolver toda a população em um movimento que foi chamado deMovimento pela Paz, e diziam: “queremos a paz em Erechim”.Assim, acabaram envolvendo os médicos, empresários, advogados,mas também os operários e funcionários públicos, professores, e hojeé um movimento permanente. Uma vez por ano eles têm a “semana dapaz”, mas o movimento é permanente. Então, quando acontece algumfato anormal, é feita a comunicação ao grupo e eles vão saber por queaconteceu, qual foi a verdadeira causa, o que fazer para que não se re-pita a violência, e isso com um resultado muito positivo.

Coisas desse tipo estão acontecendo em muitas partes do Brasil, eisso não aparece no noticiário. Eu sou otimista, mas sou realmente oti-mista de pé no chão. Segunda de manhã fui para o Mato Grosso do Sulfalar na Universidade de Campo Grande, depois tomei um carro para irfalar na Católica de Dourado, e até aconteceu uma coisa muito curiosano meio do caminho, porque lá não chegava o avião. Estávamos indode carro quando fomos bloqueados por plantadores de soja, por fazen-deiros plantadores de soja. Em seguida eu até publiquei um artigo di-zendo que, se fossem sem-terras, logo viria a polícia – talvez não che-gasse à violência de Eldorado dos Carajás –, e então agiriam violenta-mente para desobstruir a estrada, afinal, “é o direito de locomoção”. Elogo viria também alguém do Ministério Público, dizendo “aí está aformação de quadrilha. Essa gente é perigosa”, e possivelmente o juizdecretaria a prisão dos líderes, que são “extremamente perigosos”.

Mas não, eram fazendeiros com tratores monumentais; eu nuncatinha visto tratores tão imensos, de alto luxo, bloqueando a estrada,simplesmente. Mas então nesse caso pode? Não é ilegal? Tudo bem?Eu publiquei dois artigos a respeito disso, acho que isso é bom denun-ciar, é bom ver, contar etc. Isso está acontecendo, mas volto a dizer:meu ponto básico é que sou otimista e acredito no contato e na pala-vra. Mas sei que sou um otimista de pé no chão, e temos de aproveitartodas as oportunidades para dizermos alguma coisa.

A última coisa que quero contar a vocês é que fiz um artigo para oJornal do Brasil e outro para a Gazeta Mercantil. Fui convidado a ir

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ao Rio de Janeiro, para falar em um seminário sobre energia e desen-volvimento, e eram todos presidentes: de Furnas e de muitas outrasgrandes empresas, produtores de energia elétrica. Eu não era presi-dente de nada, mas já que me deram a oportunidade, fiz uma coloca-ção que deve ter feito alguns tremerem nas bases. Eu disse: “no mun-do moderno, a energia elétrica é necessidade essencial”. Então, quan-do eu disse isso, todos ficaram muito felizes porque eles são produto-res de energia elétrica. Mas também disse: “uma conseqüência disso éque é um direito humano receber energia elétrica”.

Portanto, é absolutamente contra os diretos humanos o corte deenergia elétrica porque uma família não pode pagar a conta. É comoproibir uma pessoa de se alimentar. Quer dizer, a família não pagoupor não poder, mas a sociedade criou a necessidade. Então, para con-servar o alimento, para que aquela família não tenha alimento estra-gado, ela precisa ter uma pequena geladeira, mas precisa da ilumina-ção, até para que as pessoas conversem, convivam para receber infor-mação etc. Nas famílias mais pobres as pessoas estudam à noite, é co-mum, e isso pressupõe energia elétrica. Então, a energia elétrica é ne-cessidade essencial, assim como o alimento, assim como a moradia.Assim, comecei a levantar a questão, e falei depois sobre esse assuntoem uma reunião do Ministério Público. Fui à Bahia e depois ao MatoGrosso do Sul, e depois ao Ceará e a Juazeiro do Norte falar em umareunião do Ministério Público, e foi ótimo, porque deu para falar so-bre todas essas coisas.

Então, venho cobrando do Ministério Público uma iniciativa, e aíse enquadram dentro da questão as resistências aos direitos econômi-cos, sociais e culturais, o que pressupõe políticas públicas. Quer di-zer, o Brasil aderiu a um pacto de direitos econômicos, sociais e cultu-rais, e nós os colocamos na Constituição. Mas os direitos econômi-cos, sociais e culturais, o próprio pacto diz que são direitos de realiza-ção progressiva; não vai se dar casa para todo mundo do dia para a noi-te, mas tenho de tomar iniciativas que conduzam nessa linha, nessaorientação, e daí a exigência de políticas públicas.

O que estou cobrando dos meus amigos do Ministério Público éque, se o governador não previu no orçamento verbas para o atendi-mento progressivo desses direitos, esse governador está agindo ile-galmente, ele deve perder o cargo. Então, gostaria que o Ministério

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Público propusesse uma ação contra o governador; ficarei realizadoquando isso acontecer, e estou cobrando. São resistências várias, mastemos um instrumental muito bom para trabalhar, já que grande partedo Judiciário brasileiro também está sensibilizado, e o Ministério Pú-blico, a mesma coisa. E acho que, mais ainda, com o andamento da so-ciedade, com as entidades comunitárias, podemos avançar sem dúvi-da alguma, e é indispensável para nós que já estamos convencidos deque os direitos humanos são exigência da Justiça, exigência da digni-dade humana. Mantenhamos o nosso otimismo, nossa coragem, nos-sa disposição de luta, porque estamos avançando, e com a nossa de-terminação esse avanço será ainda mais rápido.

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IV.3. Constituição, direitos humanos e JustiçaPalestra de 9.6.2006

Gilberto Bercovici*

Gostaria de saldar a todos e dizer que é uma satisfação poder estaraqui hoje, discutindo sobre o sistema de direitos humanos, em parti-cular a relação de direitos humanos, Constituição e Justiça.

E, na verdade, falar em direitos humanos e Constituição, no fun-do, é falar de praticamente tudo. Porque a própria idéia de Constitui-ção, dos fundamentos da nação moderna, é a garantia dos direitos emprimeiro momento individuais, e a partir do século XIX, início do sé-culo XX, também os demais direitos chamados sociais e coletivos(segunda geração de direitos que exige uma atuação constante doEstado no sentido de sua implementação).

Mas, na verdade, creio que a maior vinculação essencial que sedeve pensar em relação à Constituição e os direitos humanos diz res-peito também à sua vinculação com o movimento das idéias políticase com o movimento político como o processo de juridificação dascondições de transformação das constituições em apenas mais umanorma de hierarquia superior, mas exclusivamente uma norma quepode de certa maneira contribuir para a não-concretização de todasaquelas promessas de políticas – de efetivação de direitos humanos –presentes nos textos constitucionais, especialmente a partir dopós-Segunda Guerra Mundial.

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* Livre-docente, professor associado do Departamento de Direito Econômico e Financeiro daFaculdade de Direito da Universidade de São Paulo, é coordenador da área de Direito da Capes.

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Quando se encerra a Segunda Guerra Mundial, elaboram-se no-vas constituições a partir de 1945, na Europa e na América Latina, enos países que vão se descolonizando, ou seja, nos independentes(das potências européias). Neles se percebem, no primeiro momento,a ampliação dos direitos políticos e o conteúdo material dos direitossociais, de tal maneira que torna aquele período pós-Segunda GuerraMundial uma época de emancipação da humanidade, quando a rei-vindicação pela democracia econômica social chega ao seu momentomais elevado, mas ainda longe da promessa de uma verdadeira eman-cipação econômica e social.

No entanto, pode-se hoje perceber que, apesar de um avanço, os 30anos de consenso keynesiano na realidade se tornaram uma exceção naprópria história do capitalismo. O que se pensou como uma reforma deevolução do sistema na verdade foi uma exceção na história do sistema.O que se vive hoje nesse Estado que abandona os direitos fundamen-tais, abandona as políticas públicas em busca de garantia para o capitalprivado, é a regra, e não a exceção do sistema capitalista.

As próprias constituições sociais, aquelas que são elaboradas logoapós a Segunda Guerra Mundial, que garantem todas as declarações dedireitos, serão apenas parcialmente cumpridas. O núcleo emancipató-rio dessas constituições na prática foi suspenso, mas isso só vai se tor-nar perceptível a partir da década de 1970, com a nova crise econômica,com a grande depressão mundial na qual nos encontramos até hoje, emque a contra-revolução conservadora ou neoliberal mostrará toda a suagarra e não se limitará mais a suspender ou bloquear as cláusulas sociaisdas constituições, mais sim buscar a sua própria extirpação formal dotexto constitucional. E daí o discurso da desconstitucionalização, erra-dicação da Constituição das normas vinculadas aos direitos, particular-mente aos direitos sociais e coletivos.

Isso tem uma explicação, talvez ligada ao que ocorreu nas demo-cracias constitucionais no pós-guerra. Há um historiador do direitodas instituições na Itália, Maurizio Fioravante, que tem uma explica-ção muito interessante para tentar entender por que em um momentoque a emancipação era o caminho ela é suspensa, tendo hoje revertidoesse processo.

Fioravante diz que, quando se elaboraram essas constituições de-mocráticas no pós-Segunda Guerra, e que na América Latina vão ser

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elaboradas também depois do interregno das ditaduras militares, quan-do se teve a redemocratização, no mesmo espírito de inclusão de eman-cipação, que é o caso da nossa atual Constituição de 1988, os elabora-dores dessa Constituição pensaram que quem iria concretizar o seuconteúdo e efetuar seus direitos eram os partidos políticos. O partidopolítico era um grande ator. Era ele que deveria organizar e politizar opovo, conduzindo-o dentro dos poderes constitutivos. Particularmenteno Poder Legislativo, o partido político seria aquele que conseguiriapropiciar a conciliação entre poder constituinte e os poderes constituí-dos, e conseguiria efetivar uma política constitucional, ou seja, umapolítica de lealdade aos dispositivos previstos na Constituição.

A todo tempo fala-se em política constitucional, e que a crise des-se papel dos partidos políticos é a crise no fundo do próprio constitu-cionalismo social, quando o partido político corresponde a essa pre-tensão nas constituições.

Essa tarefa que as constituições lhes ofereciam na realidade aca-bou levando o modelo a uma crise. Com o declínio dessa concepção in-tensamente política de atuação da Constituição, os partidos políticos, oParlamento, de uma maneira geral, cada vez mais perdem espaço comoatores privilegiados no discurso e da prática constitucional. A tendên-cia, então, será a de emancipação da Constituição dos pressupostos daunidade política. Isso vai se dar de duas maneiras: ou pela tentativa dese assegurar a função diretiva da Constituição, com a aplicação do âm-bito constitucional sem qualquer preocupação com as possibilidadespolíticas de realização das promessas constitucionais, o fenômeno daConstituição dirigente, ou, de maneira inversa, com a Constituição de-mocrática atenuando a sua concepção de Constituição política, refor-mando cada vez mais a visão da Constituição como uma mera normasuprema, abrindo o espaço constitucional para um outro poder que to-mará a Constituição nas mãos e se arrogará o papel de deter o monopó-lio da concretização constitucional: os tribunais constitucionais. Isso sedará a partir de uma série de mudanças, inclusive na maneira de enten-der qual o significado das normas constitucionais, especialmente dasnormas que prevêem e garantem os direitos fundamentais.

As normas ditas “de princípio”, ou então as malfadadas “normasprogramáticas”, nada mais são do que uma abertura, fazendo com quea doutrina jurídica trabalhe a jurisdicionalização da Constituição.

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Essas normas, que em princípio tinham como objetivo garantir e evi-tar a violação de direitos, servirão para justificar a intervenção dos tri-bunais constitucionais na política do cotidiano de concretização dasconstituições.

O que se percebe cada vez mais é uma defesa da doutrina jurídicado tribunal constitucional como o grande ator, como aquele que nãosó pode como deve limitar a esfera de atuação do legislador, impedin-do que a Constituição seja entendida como também um instrumentopolítico, com esse papel acentuado dos tribunais que decidem sozi-nhos sobre o conteúdo da Constituição.

Geralmente, acaba-se mantendo a suspensão da Constituição,seja pela formalização extrema do texto constitucional, seja pela utili-zação de doutrinas, como a da norma programática, que juridicamen-te é uma ótima desculpa para não se concretizarem os direitos funda-mentais. É a norma que não vale, norma programática. Não é à toa queesse discurso da norma programática, que vem do debate italiano dopós-guerra, chegando ao Brasil na década de 1960 pela obra do pro-fessor José Afonso da Silva, será propagado de maneira muito fácil,muito eficiente, tanto que até hoje boa parte das decisões judiciais so-bre direitos, especialmente sobre direitos sociais, determina os direi-tos à saúde, à educação, à habitação ou qualquer que seja o direito so-cial; a norma programática não vale. É norma jurídica que realmentegera efeitos, mas na prática não vale.

Aqui se percebe, então, essa usurpação de funções políticas pelostribunais, que não necessariamente garante a ampliação de direitos.Pelo contrário: pelo histórico, não se garante até hoje, o que vem re-duzindo a esfera do debate público, da pressão social, da pressão polí-tica sobre as políticas necessárias para a implementação dos direitosfundamentais.

No fundo essa questão acaba gerando alguns problemas, não sóem termos de aplicação dos direitos fundamentais, de concretizaçãode todos aqueles programas, de direitos individuais, políticos, civis,sociais, difusos, coletivos, presentes nas constituições modernas, mastambém acaba influenciando o próprio debate da relação entre Cons-tituição e democracia.

As transformações dos tribunais constitucionais em atores hege-mônicos acabam, de certa maneira, deixando para escanteio o Parla-

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mento, os partidos políticos e os movimentos sociais. O que ocorre apartir disso? Ocorre uma relação cada vez mais distante entre Consti-tuição e política democrática. Quanto mais a Constituição se torna ob-jeto exclusivo de interpretação de um tribunal, mais a política demo-crática e partidária abandona o terreno da Constituição. A Constituiçãopode se libertar do poder constituinte, mas a recíproca é que a políticatambém se desvincula das finalidades constitucionais estabelecidas.

Como o próprio Maurizio Fioravante atesta, uma Constituiçãoque afirma a sua supremacia exclusivamente pela via jurisdicionalcorresponde a uma política que tenta se desenvolver livremente dosparâmetros constitucionais, reduzindo o texto constitucional a merolimite formal externo à ação dos atores políticos, a uma Constituiçãoliberta da política. O risco de uma política liberta da Constituição é areação a esse processo. É o que vemos hoje: o desprestígio dos parti-dos políticos, dos movimentos sociais, da política democrática, inclu-sive na concretização dos direitos fundamentais. O Judiciário não é oúnico ator a poder ter de decidir essas questões. É óbvio que por elepassam questões fundamentais, e é lógico que ninguém tira questõesdo Poder Judiciário, mas ele não resolverá políticas públicas, não vaitrabalhar na implementação de direitos fundamentais. O Poder Judi-ciário não é o salvador da República. Aliás, a República que tem deser salva e ver seu Judiciário como seu salvador é uma República queestá à beira do um colapso.

Se tem um poder que é o menos republicano de todos é justamen-te o Poder Judiciário, e o que menos ligações tem com o controle de-mocrático. Então, deve-se repensar o papel da política dos partidospolíticos; repensar o papel dos movimentos sociais na implementa-ção do programa constitucional.

Eu entendo que hoje nosso primeiro desafio na área jurídica, daciência política, de defesa dos direitos humanos, é a questão de achar-mos que basta garantir o que está previsto formalmente no direitoconstitucional e o problema está resolvido, sob pena de cairmos na-quele tão famoso e tão vasto de significação novo fenômeno culturalno Brasil, que é o do instrumentalismo. Basta a solução estar previstana lei que o assunto está resolvido. Então o Brasil tem direito à saúde,educação, habitação. O Brasil é uma sociedade livre, justa e igualitá-ria, porque tudo isso está previsto no texto constitucional.

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A Constituição sozinha não faz nada, a Constituição não concre-tiza direitos. A Constituição serve para quê? Para instrumentalizar aação política, a ação social, colocar as diretrizes, colocar a finalidadeque o povo brasileiro escolheu em Assembléia Constituinte naquelemomento histórico, que foi no final da década de 1980.

Pensar em concretizar a Constituição é pensar em uma políticaconstitucional, e essa política constitucional não será resolvida na es-fera dos tribunais, mas na esfera da democracia.

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IV.4. Movimento dos direitos humanosem São Paulo: desafios e perspectivas

Gorete Marques*

Antes do período da redemocratização brasileira, não é possívelencontrar a temática dos direitos humanos na agenda pública brasilei-ra. Essa reivindicação emergiu dos movimentos de direitos humanosdo período de abertura política da década de 1980.

A noção de direitos foi central no debate político durante o pro-cesso de democratização da sociedade brasileira e apresentou diver-sos significados em determinados momentos históricos. A ditaduratrouxe a urgência da criação de novos meios de participação popularno destino do País.

A defesa dos direitos humanos associou-se à campanha da anistiapolítica, ao fim da censura, ao fim das torturas aos presos políticos e àcampanha das diretas. A defesa dos direitos humanos significou umareivindicação democrática central no processo da abertura política,defendida por amplos setores da sociedade.

A violação de direitos cometida pelo governo ditatorial impulsio-nou o surgimento de organizações que atuavam em defesa dos direi-tos humanos e pela implementação da democracia formal. Elas de-sempenharam importante papel de resistência em face das arbitrarie-dades promovidas pelo regime militar.

Conforme Francisco de Oliveira (1997), as organizações surgemcomo um dado novo da complexidade social, um lugar de onde, no

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* Mestranda em Sociologia pela Universidade de São Paulo.

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período em que surgiram e no contexto em que estavam inseridas, re-presentaram uma força mobilizadora. É nesse contexto de mudanças,em que existe a perspectiva de construção de uma democracia basea-da no respeito à dignidade e à vida humana, que a sociedade se organi-za e os movimentos sociais emergem fortalecidos. As mobilizações eos movimentos sociais expandiram-se e consolidaram-se durante oprocesso de transição democrática, adquirindo características co-muns e diferenciadas, conforme a sua prática social e política (Sader,1987, p. 7). Apesar da pluralidade desses movimentos, eles comparti-lharam do mesmo ideal de construção de uma nova democracia, basea-da na descentralização do poder e na força popular. Em sua diversida-de, eles lutavam para garantir sua autonomia e compunham o que sepode chamar de um “campo político popular e democrático” .

Nessa nova conjuntura, surgiram evidentes diferenças estruturaisentre os movimentos sociais – e muitos não conseguiam transcenderos interesses específicos dos setores sociais que os apoiavam – e asONGs – que, por sua própria constituição, dispunham de maior liber-dade para agir segundo sua própria noção de interesse público (Mu-çouçah, 1995).

Segundo Pinheiro e Sader (1985), “o processo de democratizaçãocolocou para a sociedade o problema do lugar dos direitos humanos,do controle da polícia e do conjunto dos órgãos repressivos, que fun-damentaram as ações ditatoriais”. As entidades de direitos humanosprotestavam contra a violência policial, a tortura e os maus-tratos co-metidos por agentes do Estado contra pessoas privadas de liberdade(Caldeira, 1991, p. 164).

A mudança de regime político e a volta das eleições não alteraramas práticas arbitrárias dos agentes dos órgãos repressivos do Estadoem relação aos grupos mais vulneráveis da população. Sobre a demo-cracia, prevaleceu um sistema autoritário, incrustado especialmentenas instituições de controle da violência e do crime (Pinheiro, 1991).

Ao longo da década de 1980, o processo de redemocratização nãosignificou o fim de práticas autoritárias e de violações de direitos. Acontinuidade da violência policial, da atuação dos grupos de extermí-nio e esquadrões da morte, das torturas praticadas em instituições fe-chadas, das execuções arbitrárias e dos desaparecimentos demons-trou claramente que o sistema de violações ainda era existente.

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A situação das prisões era o retrato da realidade típica do períododa ditadura. Nessas instituições permanecia o padrão de tortura e maus-tratos; superlotação; precárias condições de habitabilidade; deficiên-cias nos serviços de atendimento ao preso; insuficiência dos progra-mas de trabalho, educação, lazer; baixa qualificação dos funcionáriosadministrativos e de segurança; baixos salários; corrupção; violênciaentre presos; rebeliões e mortes (Adorno, 1991).

Essas violações jamais foram objeto de atenção do Governo, daimprensa ou da sociedade, já que os torturados eram “presos comuns”.A visibilidade dessa prática ocorreu somente após a denúncia dos ex-cessos praticados pelo aparato repressivo durante o regime militarcontra aqueles que resistiam à ditadura, em sua maioria originários daclasse média urbana: estudantes, intelectuais, políticos, jornalistas(Caldeira, 1991).

Preocupados com essa continuidade de violações por parte dosagentes do Estado, os defensores dos direitos humanos passaram adenunciar sistematicamente a tortura e os maus-tratos praticados con-tra pessoas pobres. Ou seja, passada a fase da luta pelo fim da ditaduramilitar e pela reconstrução democrática no Brasil, agora o desafio dasorganizações de direitos humanos era denunciar a violência policial,a atuação dos grupos de extermínio e esquadrões da morte, as torturaspraticadas em instituições fechadas, as execuções arbitrárias cometi-das contra a população de uma forma geral.

Basicamente, foram quatro os atores que se articularam em públi-co em defesa dos direitos humanos aos prisioneiros comuns em SãoPaulo: a Igreja católica; os centros e comissões de defesa dos direitoshumanos, muitos ligados à Igreja; os partidos e grupos de cen-tro-esquerda; e representantes do governo de Franco Montoro doPMDB, no início dos anos 1980 (Caldeira, 1991, p. 164-165).

É importante destacar o papel da Igreja, tanto nos movimentossociais – com a organização popular, baseada principalmente na “Teo-logia da Libertação” e na formação das Comunidades Eclesiais deBase (CEBs) – como nos movimentos de defesa dos direitos humanos– com a organização de centros de direitos humanos. Muitas organi-zações de defesa dos direitos humanos no Brasil tiveram sua origemna Igreja. No caso de São Paulo, podemos citar a Comissão Justiça ePaz e o Centro Santos Dias de Direitos Humanos.

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Mas não foi apenas da Igreja que surgiram as organizações de di-reitos humanos. Algumas foram formadas a partir da reunião de pes-soas que apresentavam uma identificação com a causa. Esse foi ocaso da Comissão Teotônio Vilela (CTV), composta por um grupo demembros bastante heterogêneo de advogados, artistas, psiquiatras,personalidades políticas, intelectuais, representantes da Igreja católi-ca e profissionais liberais.

As organizações de defesa dos direitos humanos apresentavamdiversos desafios, não apenas o de combater e denunciar as violaçõescometidas por agentes do Estado, mas também o de rebater os discur-sos produzidos contra os direitos humanos, baseados na idéia de que adefesa dos direitos humanos era defesa de “privilégio de bandidos”(Caldeira, 1991).

O desdobramento do que se reivindicava para os prisioneiros po-líticos no período da ditadura originou a argumentação em defesa dosdireitos humanos para prisioneiros comuns. Entretanto, os resultadosda defesa dos direitos humanitários do preso comum foram totalmen-te diferentes. Se a denúncia de tortura e prisões ilegais dos prisionei-ros políticos em nome dos direitos humanos ajudou a derrubar o regi-me militar, a denúncia das mesmas irregularidades e a defesa dos di-reitos humanos dos presos comuns serviram para abalar aquelas mes-mas instituições e as pessoas que haviam articulado as duas campa-nhas (Caldeira, 1991).

Diferentemente dos presos políticos, os “prisioneiros comuns”eram pessoas pobres, vítimas de toda uma série de preconceitos e dis-criminações na sociedade brasileira, que tinham cometido algum tipode crime. Os presos não tinham meios de se mobilizarem ou se orga-nizarem para reivindicar direitos, dada a condição de restrita cidada-nia em que se encontravam. Foi preciso, conforme Caldeira (1991),que outros grupos com legitimidade social (religiosos e juristas, porexemplo) emprestassem o seu prestígio e reivindicassem pelos pri-sioneiros.

O imaginário popular, influenciado pelo discurso da direita, pas-sou a associar a defesa dos direitos humanos de prisioneiros comuns àdefesa de “privilégios de bandidos”. Apesar de as atividades das or-ganizações de defesa dos direitos humanos abrangerem a defesa dosdireitos das minorias socialmente marginalizadas, os defensores

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eram classificados como “defensores de criminosos”, ficando próxi-mo da acusação de que eram defensores do crime (Dallari, 1998).

Mais de 20 anos depois, as organizações de direitos humanosconseguiram introduzir na agenda política brasileira o tema dos direi-tos humanos. Criou-se, em nível federal, um Conselho de Defesa dosDireitos da Pessoa Humana (CDDPH), em 1985, e a Secretaria Espe-cial de Direitos Humanos, originada da Secretaria de Estado de Direi-tos Humanos, em 1999, no âmbito do Ministério da Justiça. Em diver-sos Estados e Municípios estão sendo criados conselhos e comissõesde direitos humanos, no âmbito dos Poderes Executivo e Legislativo.Tem-se uma agenda anual de conferências de direitos humanos, emníveis regionais, estaduais e federal.

Além disso, essas organizações também tiveram um papel funda-mental na tarefa de pressionar o Governo brasileiro a ratificar tratadose pactos internacionais de direitos humanos.

Apesar de tantos avanços, os desafios permanecem. As violaçõesde direitos humanos continuam acontecendo cotidianamente e a po-pulação ainda reproduz o discurso de que defesa dos direitos huma-nos é defesa dos direitos dos “bandidos”. Ainda não foi possível às or-ganizações de direitos humanos desconstruírem esse discurso, tãopresente no imaginário popular. Esse pode ser um dos grandes desa-fios dessas organizações, já que, sem o apoio popular, muitas vezes,as lutas e reivindicações ficam enfraquecidas, o que aumenta as pos-sibilidades de maiores violações ocorrerem. O apoio de parte da po-pulação à diminuição da maioridade penal, a penas mais severas e ameios de torná-las mais cruéis, tais como o Regime de Disciplina Di-ferenciado (RDD), presentes nas penitenciárias, até a defesa da penade morte, são exemplos desse grande desafio.

Talvez a inserção do tema dos direitos humanos nos parâmetroscurriculares seja um dos caminhos mais importantes para que a popu-lação tenha acesso a uma informação não deturpada acerca dos direi-tos humanos.

O movimento de direitos humanos continua seguindo sua luta,enfrentando desafios, utilizando todos os mecanismos possíveis paraa efetiva proteção dos direitos humanos. Talvez seja o momento depensar em como dialogar com a sociedade, como inserir na mídia e naeducação o tema dos direitos humanos.

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IV.5. A constituição dos direitoshumanos e da justiça

Palestra de 9.6.2006

Luciano M. Maia*

Na verdade, essa expressão do título do painel, “A constituiçãodos direitos humanos e da justiça”, permite que você faça mil viagens.A primeira viagem que se faz é que quando nós, seres humanos, luta-mos para ter uma Constituição, foi para conseguir limitar o poder, e,como diz Thomas Paine, a Constituição é mais do que um documentosolene, é um ato de um povo constituindo um governo, um ato de umpovo dizendo como quer se governar, como quer se organizar em so-ciedade. É um ato de um povo que entrega fatia de poder para alguns,mas não entrega a autoridade de onde deriva aquele poder.

É nesse sentido que a Constituição ao longo do tempo estruturououtros movimentos importantes, como repartição dos poderes, teoriadas garantias, incorporando direitos sociais etc.

Mas, fundamentalmente, era isso, laicismo, um movimento laico.O Estado é uma coisa, a Igreja é outra. Separação de poderes, direitosfundamentais, textos escritos em que se pudesse com clareza limitar oexercício do poder – e eram características dessa época as grandes de-clarações do século XVIII; a declaração francesa de 1789 é a mais co-nhecida, mas, antes disso, em 1776, quando os americanos foram pro-

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* Procurador regional da República e professor da Faculdade de Direito da Universidade Fede-ral da Paraíba.

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clamar a independência, houve a famosa Declaração do Bom Povo daVirgínia, em que se diz que é direito natural de todos os seres huma-nos que nasçam livres e iguais, o direito, entre outros, da busca da feli-cidade. Vejam que coisa linda, a busca da felicidade como um direitonatural humano e universal.

Isso foi então cristalizando a idéia de direitos para além daquelaspessoas que estavam nos Estados; a união daquelas pessoas que esta-vam na França, o que foi se estendendo a todo ser humano, a toda pes-soa humana pela sua mera condição de humanidade.

Foi isso que o francês fez em 1789. Em seguida a isso, as constitui-ções que vieram começaram a registrar esses documentos.

A primeira, de 1787, nos EUA, não reconhece de início os direi-tos, e é um detalhe interessante. Não é porque não reconhecesse os di-reitos. É porque já se dizia que eles eram naturais, então não dependiade o Estado reconhecê-los, por isso não precisou proclamar. Mas,quando veio o francês em 1791 e os colocou, os americanos começa-ram a fazer suas emendas, 1, 2, 3, 4 até a 14, colocando os direitos fun-damentais na sua Constituição.

Houve, então, uma espécie de mimetismo, e todos os outros Esta-dos, porque queriam ser considerados civilizados e progressistas, co-meçaram a ter documentos escritos a que chamaram de Constituição,iniciando um reconhecimento desses direitos individuais, civis e po-líticos. Foi assim na Constituição de cada país no começo do séculoXIX.

O Brasil teve em 1824 uma Constituição, de início, fruto de umaAssembléia Constituinte, mas depois, por um golpe de caneta do im-perador, a Constituição foi outorgada, porque o constituinte achavaque poderia escrever uma Constituição, enquanto o imperador man-dava que ele se lembrasse que o poder da constituinte derivava da ca-neta dele, imperador, que era quem tinha convocado; coisa da “orga-nização do Brasil”, que ainda estava nessa fase de desenvolvimento.Mas o certo é que se consolidou universalmente a idéia de que todoEstado-nação devia se organizar em torno de uma Constituição, re-gistrando as funções, os modos de exercício do poder do Estado, limi-tando esses modos e garantindo os direitos.

Mas o que acontece é o seguinte – algo interessante tratado peloprofessor Domingos Mariano: o curioso é que, mesmo esses Estados

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constitucionais, que tinham os direitos fundamentais garantidos, sen-tiram-se, com alguns dirigentes, acima do bem ou do mal, podendopela sua própria vontade revogar o que estava na Constituição, o queterminou acontecendo em grandes desastres, como na Segunda Guer-ra Mundial. Os alemães, por exemplo, têm uma das constituições maisavançadas do mundo – vocês se recordam que, quando estudamos aincorporação dos direitos sociais, vemos a Constituição de Weimar,na Alemanha, de 1919, e a Constituição italiana que, já havia se cons-tituído. São esses Estados, exatamente esses Estados que se sentemno direito de dizer que aqueles seus nacionais não são mais nacionais,são apátridas, não têm mais direitos e podem ser excluídos do rol dosseres humanos. Puderam, então, excluir do rol aquelas pessoas aquem se reconhecia a dignidade essencial.

Foi esse o momento, em razão da catástrofe, do desastre, da heca-tombe, da descida moral mais terrível que a humanidade já fez, a hu-manidade mais tecnicamente desenvolvida. Imagine a Alemanha dosgrandes compositores clássicos, dos grandes escritores, dos grandestreatrólogos. Pois é, é essa mesma Alemanha, capaz de fazer extraor-dinários avanços em todas as áreas, que no campo moral fez opçõespela destruição da pessoa humana. E dizendo que “não, esse sobreno-me não é alemão autêntico. Ele não se chama nem Hans, nem Fritz,então, portanto, não terá direito de ser reconhecido como alemão. Eledaqui por diante não tem mais pátria, não tem o direito de invocar oestatuto dos alemães e, como conseqüência, podem ser tirados seusbens, seu nome, sua casa, sua família. Pode ser confinado em umcampo, pode-se tirar sua vida”.

Eichman, que foi preso na Argentina e condenado em Israel. “Errao Brasil, que é absolutamente probo do ponto de vista da racionalida-de do uso do dinheiro público”: “Está muito caro matar esses judeuscom tiros, precisamos racionalizar, estamos jogando do contribuintedinheiro fora.” Fez-se uma licitação, e ganhou quem ofereceu gásmais barato, que matava limpo e não poluía a atmosfera. Ou seja, esseconceito de racionalidade, essa racionalidade funcional no TerceiroReich era absolutamente irracional, porque esquecia da dignidade dooutro, a dignidade da pessoa humana. E foi nesse momento que o di-reito internacional dos direitos humanos disse: “espera aí, a matériado respeito da dignidade da pessoa humana não pode ficar confinada

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apenas ao seu direito constitucional. A dignidade da pessoa humana eo respeito da pessoa humana interessam à paz mundial”. É o tema dopatrimônio coletivo da humanidade que, portanto, passará a ser obje-to de estudo do direito internacional dos direitos humanos. E foi umolhar sobre a vítima que trouxe o direito internacional dos direitos hu-manos, que começou a ser incorporado, modificou as constituições eelas começaram a incorporar em seus textos esse direito.

E o Brasil fez isso na sua Constituição de 1988, como nunca se ti-nha feito antes, nem nunca se fez. Depois, incorporou um rol imensode direitos, e ainda mais. Disse: “Olha, vocês pensam que está tudoaí? Não está, não. Além desses que estão aí, há ainda os direitos pre-vistos nos tratados internacionais de direitos humanos, que estão in-corporados em nossa Constituição.” A nossa Constituição, como nos-so constituinte, tinha os olhos lançados para o futuro, porque é lá quemoram as esperanças. Mas o nosso jurídico tinha os olhos voltadospara o passado, porque é lá que ele tinha suas “certezazinhas”, suas“segurançazinhas”, e começou então a interpretar a Constituição comos olhos no passado. E, como conseqüência prática, têm-se as “nor-mas programáticas”. Ora, isso é “programa de índio”. “Não vou fazerprograma nenhum.” O direito internacional dos direitos humanos dis-se: “Olha, é o seguinte: as normas estabelecem para vocês obrigações.Primeiro de reconhecer, segundo de respeitar, depois de proteger edepois de implementar para vocês se desincubirem dessas obriga-ções. Vocês têm de, algumas vezes, adotar medidas, são as obriga-ções de conduta; mas, além de adotar medidas, estabelecer políticaspúblicas, estabelecer orçamento, organizar serviço do Estado, vocêstêm obrigação de resultado.”

Quer-se medir o resultado e verificar se as suas políticas estãofuncionando, e nós temos os exemplos da absoluta aferição da justicia-

bilidade dessas políticas públicas sociais. Ora, o salário mínimo queestá na Constituição, você pode exigir. O direito do trabalhador à horaextra é direito social, você pode exigir judicialmente, e também umdireito, caso entre sete e 14 anos, à matrícula na escola. Só depende daexistência física de alguém que precise estar em sala de aula. Portan-to, o Estado é obrigado a colocar uma carteira na escola para queaquela criança estude. Então há justiciabilidade dos direitos huma-nos. Sabemos que, sim, exige-se orçamento; sabemos que, sim, exi-

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ge-se planejamento; sabemos também que não é nenhuma varinha decondão que transforma de um momento para outro. Existe progressi-vidade, mas o que é progressividade?

Hoje, mais do que ontem e menos do que amanhã, para que seconsiga realizar progressivamente – e deve-se dizer o seguinte:“identifiquei o problema, quantifiquei sua dimensão e digo que inter-virei de determinada forma, de modo que em cinco ou 10 anos haveráuma transformação radical e esse quadro será diferente”. Isso é o quese chamam políticas públicas, com a capacidade de mensuração dainversão social e a mensuração dos resultados, ou seja, os direitos hu-manos ajudaram tremendamente na realização prática de direitosconstitucionais e fundamentais.

Mas, o que o jurista clássico tradicional fica dizendo? Olha, direi-tos fundamentais são os que estão na Constituição. Os outros são di-reitos humanos previstos em tratados internacionais, e o tratado temcaráter de norma ordinária. E alguns complementam até com certosarcasmo: “norma tão ordinária que não vale a pena se aplicar”. Masnão é assim que deve ser o Brasil. Quando se compromete com os tra-tados internacionais, aceita-se fazer parte de uma sociedade interna-cional e, nesse sentido, aceita-se jurisdição internacional, submete-seao sistema de monitoramento das Nações Unidas, ao Comitê contra aTortura na temática da tortura, ao Comitê de Direitos Humanos na te-mática do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, ao Comitêsobre os Direitos das Crianças na temática da convenção específica,ao Comitê para Eliminação da Discriminação contra a Mulher na te-mática dessa convenção específica, e também se submete ao SistemaInteramericano dos Direitos Humanos.

A Comissão de Direitos Humanos e a Corte Interamericana deDireitos Humanos têm examinado situações no Brasil e proclamadodecisões contra o nosso País. Decisões que são vinculantes, que obri-gam o Estado brasileiro a obedecer e cumprir essas decisões, dentreas quais a decisão de respeitar os tratados internacionais e fazer comque sua Constituição respeite os tratados internacionais. O Supremodiz diferente, diz que ele interpreta um tratado à luz da Constituição,já tendo tido caso de proclamar inconstitucionais algumas normas detratados. É daí que o Brasil agora responde perante os órgãos interna-cionais de monitoramento por essa decisão.

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Houve então um esforço de tentar modificar nossa Constituição,para dizer que os tratados internacionais de direitos humanos que tive-rem sido incorporados do mesmo modo que as emendas constitucio-nais ganham a eficácia de norma constitucional. Parecia que havia seresolvido o problema, mas se terminou agravando-o. A professora Flá-via Piovesan e alguns outros sustentam que a Emenda no 45, em vez decorrigir o erro anterior, amplificou esse erro, porque faz com que vocêsuponha que terá de passar de novo todos os tratados que o Brasil já as-sinou para que possam ganhar força constitucional, ao passo que naverdade só precisava o Supremo Tribunal Federal entender que os direi-tos humanos previstos nos tratados têm a mesma dignidade essencialdos direitos humanos previstos nos seus direitos fundamentais.

E o que isso tem a ver com a justiça? Não mais que o sentido queCanotilho diz, que uma Constituição não é só uma norma dotada desuperlegalidade, ela é essencialmente uma norma dotada de intensi-

dade de justiça insubstituível. A norma constitucional é justiça pura

e, portanto, não é toda norma que tem força normativa constitucionalque pode ser assim chamada. Se ela for injusta, se não tiver na sua es-sência conteúdo de justiça, para Canotilho, não pode ser chamada denorma constitucional, não na sua substância. Então, o que é que re-centemente a emenda constitucional veio dizer a todos nós? Veio di-zer que não só a justiça no sentido abstrato, mas a justiça que apelida-mos vulgarmente de Poder Judiciário, sim, vincula-se ao cumprimen-to das obrigações internacionais de direitos humanos; sim, o Judiciá-rio pode também ser acusado de graves violações aos direitos huma-nos quando não for capaz de ter integridade suficiente de fazer falar odireito para calar as injustiças. Quando o Judiciário criminosamentese omite, ou mais criminosamente age contra os direitos humanos, édele a responsabilidade direta pela grave violação a esses direitos, ehouve então pela Emenda Constitucional no 45 a possibilidade do quese chama federalização das graves violações aos direitos humanos.Vulgarmente se diz “federalização dos crimes contra os direitos hu-manos”. A Constituição não resgata “crime”, não se limita a crime,fala em grave violação dos direitos humanos.

Os juristas constitucionais dizem: “é mais uma expressão vaga”.Como se a Constituição não fosse cheia de conceitos abertos a serempreenchidos pela realidade social. Mas onde você vai localizar esses

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conceitos? O que é uma grave violação aos direitos humanos previs-tos em tratados internacionais? Primeiro, vá aos tratados internacio-nais saber quais são os direitos humanos; segundo, veja de acordocom a jurisprudência daqueles órgãos de monitoramento quais são assituações previstas como graves violações; terceiro, entenda no Siste-ma Internacional quando é que eles aceitam a jurisdição internacio-nal, porque eles não querem nem em Genebra, nem em Washington,nem em São José da Costa Rica substituir o juiz de Bauru ou o juiz deCarapateira no interior da Paraíba.

Para receber um caso no qual tenha havido violação a direitos hu-manos, não é o próprio Poder Judiciário no local que tem de se organi-zar, mas tem de se organizar de acordo com o modo de distribuição dejustiça em uma sociedade democrática de direito. Se o Esta-do-membro não respeitar um julgamento justo ou se comportar deuma maneira que revele não ter capacidade ou não ter vontade de pu-nir uma grave violação aos direitos humanos, aí, sim, você está dianteda situação que faz sair da esfera de atribuição daquele julgador. Ouseja, tanto no plano micro, de juiz de um Estado para um juiz federal,quanto no plano macro, para um juiz nacional, para um juiz internaci-onal, é preciso demonstrar a falta de vontade ou a falta de capacidadepara combater as graves violações aos direitos humanos, para quevocê tenha justificada a jurisdição que é chamada de subsidiária com-

plementar.Há, portanto, um intenso diálogo entre direitos humanos, Consti-

tuição e Justiça, porque, de um lado, a Constituição deve incorporarna sua essência o ideal de justiça e deve incorporar nos seus preceitosos preceitos dos direitos internacionais, dos direitos humanos. Poroutro lado, direitos humanos significando um direito inato de cadahomem ou mulher, branco, preto, índio, cigano, quilombola, estran-geiro, nacional, africano, americano, portador de necessidades espe-ciais, sejam eles como forem, visto na sua dignidade essência de pes-soa humana, estes têm o direito de serem vistos como iguais e, comotais, serem merecedores do mesmo respeito e da mesma proteção. Porisso, Constituição, direitos humanos e Justiça estão ligados como asmesmas partes de um corpo e, portanto, ajudando na organização deum Estado democrático de direito, a ser democrático e ser de direito.

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IV.6. Direito, democracia e direitos humanosPalestra de 9.6.2006

Renato Janine Ribeiro*

As questões que vou colocar dizem respeito a três pontos: os direi-tos humanos, a democracia e, de certa forma, a república. Mesmo quefaçamos a discriminação entre as três gerações de direitos humanos,distinção essa introduzida por Marshall há aproximadamente 60anos, e agora uma quarta geração de direitos mais difusos, que talvezdigam respeito ao universo, à natureza, a tendência na definição de di-reitos humanos talvez ainda esteja bastante marcada pela origem queimpõe titularidade desses direitos a indivíduos.

Isso é visível no caso de direitos civis e em boa medida dos polí-ticos. No caso de direitos sociais, já há dificuldades. Se pensarmos em di-reitos para além do humano, poder-se-ia pensar a quarta geração de direi-tos já um pouco nesse horizonte. Entretanto, há complicações, pois oque quer dizer direitos “para além do humano”? Quando se discute aquestão da ecologia, por exemplo, há duas maneiras de se pensarem osdireitos: ao se preservar o mico-leão-dourado, tratar-se-ia de um direitohumano, de se ter um meio ambiente diversificado, ao considerarmosque titulares de direitos são sempre sujeitos humanos, o que é uma fortetradição do direito. Essa é a razão para se preservar o mico-leão-dou-rado. No entanto, essa não me parece uma razão muito forte, por quequal o bem, qual a vantagem, qual o diferencial que faz a preservaçãodo mico ou do que quer que seja em relação à sua supressão?

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* Professor titular de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo e diretor da Capes.

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Uma outra possibilidade que tem sido aventada nos últimos anosé a idéia de que os animais também são titulares de direitos e, por ex-tensão, alguns sugerem que a própria natureza seria titular de direitos.Isso é muito complicado, porque, se estabelecermos os animais comotitulares de direitos, o grande recorte necessário é: eles são titularescomo indivíduos ou como espécies? Voltando ao mico-leão-dourado,trata-se de preservar cada mico-leão-dourado ou de assegurar a pre-servação da espécie mico-leão-dourado? Se dissermos que cada indi-víduo animal é titular de direitos obviamente não humanos, mas dedireitos da vida etc., a própria sobrevivência da nossa espécie entraum pouco em risco, porque nos alimentamos de animais.

Vocês vêem como isso é problemático? Desde algum tempo, osfilmes da Disney tratam muito de evitar que um animal coma outro. Éo caso de “Procurando Nemo”. Seria o caso de nós, então, tubarões,decidirmos não comer peixes porque se pensa que é uma coisa absur-da, errada. Ora, peixes – e um amigo meu dizia, da mesma forma queos professores universitários não morrem de velhice – são comidos,são devorados.

Então, há uma questão até curiosa, quando levamos a discussão aesse ambiente de “direito”, extremamente bem-intencionado. Eu ten-deria mais a pensar que os direitos da natureza dizem respeito mais àsespécies do que aos indivíduos, ainda que, em algum sentido, a pala-vra “direito” remeta a indivíduo, sendo difícil separá-los por comple-to. Em um outro exemplo, quando se produz uma ova de peixes, umnúmero de possíveis, futuros grandes peixes é enorme. Mas não é quea maior parte vai ser exterminada; simplesmente não vai sobreviver.Então, o que é a preservação da espécie? Para levarmos isso ao extre-mo, podemos pensar naquele grande número em uma preocupaçãoque já houve muito no clero católico, de era um número enorme de es-permatozóides que morria a cada cópula, ainda que dela saísse umagravidez. Mas ao pensar que apenas um espermatozóide geraria avida, haveria então um desperdício gigantesco de espermatozóides.São, portanto, várias formas de se colocar uma primeira questão.

Os direitos humanos se expandiram. Estão indo para uma esferaque está para além do humano, e a base para os direitos humanos emlarga medida ainda é um sujeito que possa ser identificado. Disso,tem-se o problema de quando nós passamos dos direitos humanos aos

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possíveis “direitos da biosfera”, caso a quarta geração seja algo as-sim, direito de a natureza ser preservada, por exemplo. O nosso para-digma para pensar isso teria de mudar por completo. Não dá simples-mente para dizer que uma espécie natural, ou a biodiversidade natu-ral, é titular de direitos humanos. Isso exigiria uma redefinição.

Mas, deixando de lado a questão da chamada “quarta geração”, oproblema de quando os direitos humanos passam a ser importantes éque eles, por um lado, vão compor um ingrediente central da democra-cia moderna, e, por outro, colocam em xeque a idéia de democracia.

Se fizermos uma distinção entre a democracia moderna e a anti-ga, começaremos por dizer que a democracia antiga tem um “a mais”que falta à democracia moderna. A democracia antiga era direta e ademocracia moderna, representativa. É difícil sustentar, embora al-guns autores o façam, que haja uma superioridade da democracia re-presentativa sobre a direta. De um modo geral, Atenas, que seria ogrande locus e o grande mito da democracia direta, aparece como sen-do uma espécie de local ideal, perfeito, onde a política se desenvolveuda melhor forma possível. Tudo o que teríamos feito depois seriamremendos, ou, mesmo que houvesse ganhos, haveria uma decadênciana passagem da democracia direta à representativa. Disso parte umareivindicação dos últimos anos, de novas formas de democracia dire-ta que em alguns lugares até se implantaram, como em muitos Muni-cípios de vários Estados norte-americanos, além de sistematicamentepraticada na Suíça.

No Brasil, já foram praticados, no caso, dois plebiscitos, ambossobre questões a meu ver menores, o que também é uma coisa proble-mática, porque acaba fazendo com que outras questões mais relevan-tes não sejam levadas ao voto popular, mas somente questões de im-pacto e quase ridículas, como a forma republicana, ou questões de im-pacto muito pequeno, como a proibição de vendas de armas legal-mente.

Mas, de qualquer forma, a linha principal nossa hoje é a democra-cia representativa. Isso representa um certo downsize, uma certa redu-ção de importância em relação a políticas antigas. Em compensação, ademocracia moderna pode se gabar de um grande feito, o advento dosdireitos humanos. Eles não estavam presentes na democracia antiga.Em Atenas, a idéia de que houvesse direitos contra a Assembléia não

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existia. A Assembléia podia fazer o que quisesse, podia tomar qualquerdecisão. Não havia limite para as decisões, tanto que uma das medidasao alcance da Assembléia Popular era o ostracismo, ou seja, o voto peloqual, sem nenhuma motivação dada, sem nenhuma justificativa, al-guém podia ser expulso, banido de Atenas, por um certo período.Quem leu os Diálogos de Platão, em que se trata dos momentos finaisde Sócrates, vê um momento em que ele se recusa a fugir de Atenas esalvar a vida porque diz que em cidade não viverá.

Para o grego antigo, a cidade era a tal ponto importante que o ba-nimento representava uma espécie de sentença de morte, apenas soboutra forma, e, no entanto, a Assembléia de Atenas podia decidir issosem limitação. A única limitação era uma medida que permitia que osproponentes de uma decisão tomada fossem processados, julgados econdenados em uma futura Assembléia, caso se considerasse que adecisão havia sido injusta e inadequada. No entanto, essa limitaçãoera provavelmente para evitar que algumas pessoas propusessem coi-sas muito exageradas.

Mas essa limitação não estava na ordem dos direitos humanos.Ela não significava que a Assembléia não pudesse invadir o espaço

dos “direitos humanos”; que não pudesse condenar alguém sem moti-vação; que tivesse de preservar a propriedade; que tivesse de assegu-rar a igualdade do sexo, ou nada que consideramos hoje serem direi-tos humanos.

Então, nós temos um paradoxo: por um lado, uma Assembléiaque exerce, como talvez em lugar nenhum, a demo-cracia, o poder dopovo (o demos) está lá reunido diretamente, e vota diretamente e tomadecisões; e, por outro, uma Assembléia que não reconhece os direitoshumanos dos quais seria titular cada um dos membros desse povo.Isso faz pensar na liberdade antiga como sendo coletiva e na liberdademoderna como sendo individual, basicamente.

Quando temos as revoluções notáveis dos séculos XVII e XVIII,a Inglesa, em 1688, e a Americana, em 1776, com uma declaração dedireitos um pouco posterior, e a Francesa, com a declaração em 1789,o que se passa a ter são princípios declarados naturais, um direito na-tural que pode até evocar Deus, mas de qualquer forma edita o ser aoque remete a própria natureza humana. E esses direitos não podem deforma alguma ser violados, sob pena de deslegitimar o Estado.

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Então surge uma limitação ao poder do Estado de uma ordem dedireitos naturais da pessoa. O Estado pode ou não ser consideradouma criação humana, várias dessas constituições serão consideradascriações humanas; o povo se reúne e contrata a criação do Estado,mas os direitos humanos são considerados precedê-lo no tempo e, so-bretudo, na legitimidade.

Esse é um movimento crescente. Se olharmos as constituiçõesbrasileiras anteriores e a atual, os direitos humanos estavam no fim daConstituição de 1946: falava-se dos três poderes, de diversos temas, esomente no art. 140 ela elencava os direitos humanos. A Constituiçãoatual, depois de alguns artigos basicamente “programáticos”, que di-zem para que serve o Brasil, ao que visa o Brasil e quais são suas me-tas, fala dos direitos humanos no art. 5o. Ou seja, os direitos humanosprecedem a enunciação da mecânica dos poderes. Os próprios pode-res podem ser entendidos como instrumentais no sentido da realiza-ção dos primeiros artigos, dos que declaram que o Brasil é uma Repú-blica, que é democrática, que visa à integração latino-americana, à re-dução da desigualdade social e que tem específicos direitos indivi-duais e sociais. Pode-se até argumentar que o restante, a definição dostrês poderes, o sistema tributário etc., deveria estar subordinado a es-ses artigos, que são mais ou menos programáticos, mas em larga me-dida não totalmente, pois são auto-aplicáveis, como a proibição dapena de morte.

Há um artigo muito curioso que diz que se o Congresso não votaruma lei efetivando um direito previsto na Constituição, que é o man-dado de injunção, o Supremo Tribunal Federal não poderá tomar ne-nhuma medida porque o Congresso ainda não o regulamentou, o queé pelo menos ridículo.

Agora a questão é restrita, e o máximo que o Supremo faz é darciência ao Congresso de que é omisso, e de que a omissão é inconsti-tucional, portanto, “legisle”. O Brasil é um País em que, ao fazer a lei,depois é necessário fazer uma nova lei para que se cumpra a primeira.É uma cadeia de normas que, enfim, vai ao infinito. Mas, de qualquerforma, o interessante crescimento dos direitos humanos é que elespassam a definir uma espécie de ética pública de nossos dias.

Se não discutirmos onde está a ética em nosso tempo – e, é claro, aética privada é uma questão um pouco diferente, pois se trata das rela-

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ções pessoais entre marido e mulher etc. –, mais e mais a ética públicaestará ditada por uma legislação voltada aos direitos humanos. No en-tanto, na “lei da palmada”, que está para ser votada no Congresso, queproíbe os pais de exercerem castigos físicos sobre os filhos ou casti-gos físicos duros, ou algo relacionado a isso, entra em parte a ética pri-vada também, o que quer dizer que uma relação ainda hoje vista comoprivada, que trata do que o pai faz, deve estar dentro de limites quenão impliquem danos físicos permanentes ao filho, mas ao que estátolerado por pertencer à esfera da domesticidade.

Portanto, uma ética privada acabará sendo em algum momentolegislada em termos de ética pública. Então passaremos a ter uma éti-ca pública que basicamente é dos direitos humanos. Creio que esse éum dos maiores elogios, uma das maiores avaliações que podemos fa-zer hoje da importância dos direitos humanos. Quer dizer, os direitoshumanos passam a constituir um forte elemento da ética na vida so-cial, o que, por sua vez, também não é pouco, pois estamos em um pe-ríodo em que a vida social está sendo muito questionada em termos deética.

Há hoje uma pergunta muito séria sobre o que é ética na política,na vida social etc., até porque parece que se chegou ao nível de nãomais aceitação de condutas pouco éticas, sociais ou políticas. Então,temos inúmeros espaços nos quais esses elementos éticos e outros dedireitos humanos não se impõem: o que são os Procons, por exemplo,se não institutos de direitos e de defesa do consumidor, uma adminis-tração da repartição municipal ou estadual de defesa do direito doconsumidor? O que é uma delegacia ou promotoria de defesa do con-sumidor senão a idéia de princípios éticos que devem nortear as leis?

É muito interessante ver como a lei de certa forma vai seguindoum dos fatores que determinam a criação e a adoção de novas leis, e arevogação de antigas leis é questão que diz respeito à ética. Por exem-plo: eu não sabia que a tortura um dia foi legalizada no Brasil – pelomenos a tortura de homens livres; mas as leis que permitiam tratar atortura ou punir a tortura eram muito fracas. Hoje nós temos leis maisprecisas, que distinguem tortura praticada pelo agente do Estado, porexemplo, do simples ato de violência praticado por um particular con-tra outro. O assédio sexual, por exemplo: durante muito tempo foialgo que se praticou, mas há alguns anos se tornou primeiro conduta

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social condenável, e depois uma conduta proibida em legislação mu-nicipal. Se não me engano, Porto Alegre talvez tenha sido a primeira ci-dade que adotou uma lei pela qual um estabelecimento perderia o alva-rá caso o assédio sexual fosse praticado pela direção sobre o funcioná-rio, ou pelos próprios funcionários. E somente então deve vir a lei.

Por outro lado, certas leis deixam de fazer parte do código, primei-ro do aplicado e segundo até mesmo do existente há muitos anos. Porexemplo: o antigo preceito do Código Civil, segundo o qual o deflora-mento da mulher, se ignorado do marido, constitui razão suficientepara anulação do casamento, desde que requerida essa anulação noprazo de 10 dias, há muito tempo deixou de ser praticado. Não creioque alguém no Brasil tenha pedido a anulação do casamento nas últi-mas décadas com base nisso.

O adultério deixando de ser crime. No atual Governo, agora hámuito tempo, digamos que raramente prosperava um flagrante deadultério a ponto de levar para a cadeia um homem ou uma mulher en-volvido nisso. Adultério era muito mais utilizado para segurar o jogona separação de bens, para uma finalidade civil, do que para uma fina-lidade criminal.

Então existem mudanças que são éticas que, por sua vez, não que-rem dizer, creio eu, que o adultério passe a ser valorizado pela socie-dade atual. Não creio que seja isso que a revogação do adultério comocrime signifique. Significa que, pelo menos, a sociedade deixa de sepreocupar com essa questão e passa a considerá-la de foro íntimo. Ouso de drogas provavelmente dentro de algum tempo vai passar paraesse nível. São várias considerações que entram na discussão de sevale a pena a sociedade se ocupar com essas questões.

A discussão, por exemplo, se a lei pode impedir que uma pessoaadulta faça mal a si própria. Quer dizer, a nossa lei não mais pune a ten-tativa de suicídio. Houve lei que punia: a lei inglesa até um tempo atráspunia com pena de morte a tentativa de suicídio. A nossa lei, não.

Isso é curioso do ponto de vista imediato. É interessante que osestudos da sociologia do suicídio mostram que o suicídio é uma coisae que a tentativa de suicídio é exatamente oposta. O suicídio é cometi-do em certos dias da semana, a tentativa de suicídio, em outros, os ho-rários dos dias são diferentes, e os sexos que os praticam também sãoimportantes.

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As mulheres tentam mais o suicídio do que os homens. A propor-ção é que a cada três tentativas, duas são de mulheres e uma de homem.E o meio que elas utilizam em geral é o veneno. Os homens são o con-trário, os atos são mais consumados e o meio que utilizam é a arma defogo. Isso faz supor que a tentativa de suicídio não é um suicídio “nãobem-sucedido”, mas que é um ato e o suicídio é outro, e o que os agen-tes visam a coisas totalmente diferentes. Quer dizer que, provavelmen-te, quem tenta suicídio quer chamar a atenção, o que não é muito elo-gioso para as mulheres. E quem se suicida realmente está querendo pôrfim a uma vida, embora haja sempre o risco de dar errado.

Dei esse exemplo porque, se houve uma lei inglesa que durantebastante tempo teve vigor na punição da tentativa de suicídio, existeuma discussão hoje importante que essa pessoa pode ser proibida porlei ou impedida de alguma forma pela ação do Estado de fazer mal a siprópria. É o grande argumento de quem defende a publicidade do ta-baco, até mesmo gente que eu respeito, como Miguel Reale Júnior.

Defendem a propaganda do tabaco considerando que se a pessoaquiser fazer mal a si própria quem deve impedi-la? E o grande argu-mento contra é de quem diz que a pessoa, apesar de ser um sujeito li-beral, iluminista, e que do exercício no livre gozo da sua razão esco-lhe se quer ou não fumar diante de uma propaganda, não sabe do nú-mero enorme de produtos químicos que são colocados para gerar de-pendência.

É uma discussão interessante às vezes pensar a questão penal ouem certa questão no sentido civil, em função dos valores que estão sen-do colocados em jogo. Isso também está em mudança o tempo todo.

São todas discussões que provavelmente vão prosperar sempre, oque torna muito interessante a discussão do direito à luz dos valoresque estão em jogo, o que enfatiza que a nossa ética pública, em largamedida, é ética dos direitos humanos. Porém, essa ética estabeleceuma série de limitações ao poder do Estado, que ora sucede que a de-mocracia literalmente é o poder do povo, pois é o Estado no qual opovo manda. Se pensarmos nas três formas clássicas gregas de poderque se definem pelo número daqueles que o exercem, temos a monar-quia, a aristocracia e a democracia.

Em dois casos aparece a cracia, ou seja, poder, e em um caso apa-rece arquia, que estaria mais ligada ao “arquiprincípio”, mas não há

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uma diferença básica. O interessante está na primeira prática da pala-vra: monarquia é descritivo – “monus”, ou “um”. Aristocracia se refe-re ao poder exercido por um grupo maior do que um e menor do quetodos; refere-se ao governo dos “melhores”, daqueles que têm “are-

te”, ou “excelência”. É um governo de elite, mas de uma elite que éconsiderada como sendo a mais competente, mais capaz.

Então é o primeiro critério: o número. O segundo é a qualidade,os melhores, e o terceiro é o povo, a totalidade: “demos”. Então, tem-se na democracia o poder do povo. Ora, se pensarmos nessa linha, oque fica muito interessante é que esse exercício do poder no Estado,na medida de um mundo que se democratiza, passa a ser exercido nãonecessariamente pelo povo diretamente, mas por representantes elei-tos do povo. Mas, ao mesmo tempo, o poder desse Estado se torna me-nor do que nos tempos monárquicos ou aristocráticos.

No Estado democrático, em princípio e constitucionalmente pelomenos, há menos poderes sobre os membros do que haveria em umregime ditatorial. Isso foi muito visível no final da ditadura no Brasil,pois, na medida em que ela terminava, vários direitos ou poderes queseriam do Estado brasileiro, que passava a ser um Estado democráti-co, foram retirados e sumindo. Isso traz um problema sério, porquesignifica uma série de limitações ao poder do Estado.

Vou concentrar os direitos humanos em um só, o direito de pro-priedade. No momento em que ele é considerado um direito humano,quando entra no art. 5o da Constituição, que faz parte das CláusulasPétreas, significa uma limitação séria. Por exemplo, um partido socia-lista que propugne dentro das formas da lei a socialização dos meiosde produção, ou o fim da propriedade privada, será um partido que namelhor das hipóteses não poderá cumprir o que está prometendo e napior poderá até ser fechado por defender um princípio que vai contra aConstituição. Mais ainda, ele está defendendo um princípio que nãosó contraria a Constituição, mas que dela não pode ser retirado por seruma Cláusula Pétrea.

Gosto muito da questão colocada por Fábio Comparato, que con-trapõe que o direito de propriedade, que é o direito que assegura àpropriedade dos atuais proprietários um direito à propriedade, é tam-bém o que assegura aos que não são proprietários que acessem oumesmo legitimem as ações do Movimento Sem-Terra. Não estou fa-

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lando do vandalismo do MST, mas das ações do Movimento Sem-Terra.

Mas, ainda assim, nós temos direitos humanos que vão construin-do uma série de barreiras ao poder do Estado democrático e que nãoeram barreiras do Estado aristocrático ou monárquico. As CláusulasPétreas, no que se referem ao sistema tributário, são interpretadas àsvezes de maneira muito flexível, muito variável pelos tribunais, poispodem impedir seriamente uma política econômica diferente, umapolítica social distinta da dominante.

Então, passa-se a ter um conjunto de direitos humanos que servemcomo barreiras ao poder do Estado democrático. É nesse sentido que euperguntei se os direitos humanos ameaçariam a democracia. Não have-ria uma certa escalada de direitos humanos que poderia limitar o Estadoa ponto de ele ficar incapaz de cumprir com suas tarefas?

Se quisermos discutir a política brasileira atual, poderemos darexemplos disso, exemplos de atos de que uma determinada política,ainda que apoiada popularmente, ainda que podendo trazer resultadosbenéficos, é limitada ou barrada em função de algum tipo de direitoconsagrado na Constituição ou nas leis.

Isso tudo é passível de muita controvérsia, muita interpretação,apesar de não estar muito perto da questão. A verticalização diz que oTSE está na lei eleitoral. Não é espantoso que os legisladores votemuma lei sem perceber o que ela quer dizer? E não é espantoso que o tri-bunal, ao invés de ler os debates, os relatórios, as exposições, os moti-vos que ensejavam a produção da lei, decida simplesmente por sua lei-tura? E, sobretudo, não é revoltante que uma lei, fundamental para oexercício da cidadania, seja vazada em termos que não são compreen-síveis por qualquer cidadão?!

Confesso que há toda uma parte da legislação que pode ser alvode uma abordagem mais técnica, mas aquilo que diz respeito ao cerneda cidadania e do exercício democrático deveria ser muito claro, lím-pido e jamais estar na dependência da interpretação arbitrária de umtribunal. Então nós tivemos há quatro anos uma norma que foi fixadano período das eleições, ficando agravada, quando ao mesmo tempo otribunal diz que o Legislativo não pode modificar as regras. Quer di-zer, o Legislativo não pode, mas o Judiciário pode, quando a razão denão modificar as regras, no fundo, é garantir uma estabilidade.

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A razão não é formal: um poder pode e o outro não. Razão é razãode conteúdo: é 12 meses antes das eleições, os partidos, os candida-tos, os cidadãos precisam ter segurança sobre o que vai acontecer.Não temos mais nenhuma segurança; não sabemos mais nos Estadoscomo as coisas vão se desenvolver, como vai ser a propaganda eleito-ral; não temos mais idéia; especialmente depois que esse grupo de ilu-minados (STF) decidiu mais uma vez mudar a legislação brasileirasem mudar a legislação – esse é um exemplo, e apesar de eu dizer queisso não estava muito ligado à questão, tem uma ligação sim, porque adefesa dos direitos humanos em larga medida acaba sendo praticadapelo Judiciário ou pelo Ministério Público e, nesse sentido, o papel doLegislativo e dos Poderes Executivos acaba sendo de certa forma sub-sidiário.

Quem tem tido um papel extremamente importante na políticabrasileira é o Ministério Público. Eu diria, aliás, que o fenômeno nor-te-americano da judicialização da política, ou seja, da substituiçãodos atores eleitos pelos atores juízes na definição de regras básicas,como o direito ao aborto, a desagregração e por um tempo a suspen-são da pena de morte, ocorre de forma semelhante no Brasil, mas há,sim, aqui, sobretudo, o que chamaria eu, se vocês permitissem a ex-pressão, de uma “MP-ização” da política.

Existe um papel do Ministério Público, que é o órgão efetivamen-te ativo na proposta de novos critérios, novas medidas, limitações, eque o Judiciário defere ou indefere. Mas essa idéia de que o Judiciáriotem o papel proativo acho que não vale tanto no Brasil. Quando mui-to, ele acolhe medidas, e não estou dizendo que todas as medidas doMinistério Público sejam positivas. Acho que são vários os equívo-cos; há várias medidas que podem até ser necessárias, mas que podemgerar problemas sérios.

A intervenção do Ministério Público na CTNBio me parece algomuito duvidoso, pois mostra que um órgão tem importância muitosignificativa nas definições novas, dando possibilidade de o Brasilacompanhar as novas tecnologias, pois passa a ter acompanhamentode alguém que vai estar muito mais preocupado com a forma do quecom o conteúdo. Mas, de qualquer modo, é um fenômeno importantee limita o poder do Estado democrático. Então, passamos a ter uma si-tuação curiosa: a nossa democracia, em larga medida, tem um fator

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importante para os direitos humanos, mas, por outro lado, o poder dodemos se enfraqueceu. Isso ocorre por várias razões, mas, ficando namais próxima, o “demos” já tem diante de si o fato de que um conjuntode leis pode mudar, porém não está ao alcance do povo fazê-lo.

Não é um consenso absoluto na França, por exemplo, a existênciade um Tribunal Constitucional, porque o país entendia que o TribunalConstitucional estaria acima das magistraturas eleitas, e ele poderiareverter as decisões da Câmara dos Deputados, órgão do Supremo.Portanto, não havia um tribunal que pudesse declarar inconstitucionalum ato legislativo ou do governo. Isso traz, por sua vez, um problemasério, porque quem garante então que a Constituição está sendo apli-cada se não há um tribunal?

Com De Gaulle, houve a criação de um Tribunal Constitucional.Isso é até curioso para os nossos padrões, porque ele tem nove mem-bros nomeados por mandato de nove anos, sendo um terço nomeadopelo presidente, um terço pelo presidente do Senado e um terço pelopresidente da Assembléia, sem referendo de nenhum órgão. Cada umdesses três indivíduos nomeia três, os quais, por sua vez, têm mandatopor três anos.

Então, é um Tribunal Constitucional que em princípio equilibra,mas que somente desde os anos 1970 passou a ter uma amplidãomaior de julgar. Antes eram muito poucos os que podiam acionar ainconstitucionalidade de uma lei. Foi a partir de aproximadamente1975 que se deu aos partidos com uma bancada de determinado nú-mero o direito de acionar a inconstitucionalidade de uma lei. Antesdisso, para fazer esse pedido era preciso que o governo o fizesse, oque é paradoxal.

Mesmo assim o sistema francês tem certas restrições: só se podepedir a inconstitucionalidade de uma lei no período imediatamenteposterior à aprovação dela. Isso é contestado por toda uma tendência,pois, por enquanto, até onde é sabido, não é permitido contestar aconstitucionalidade de uma lei já existente, já incorporada no ordena-mento jurídico.

Pode-se ver, então, que o sistema nosso de um tribunal que pode,como o tribunal norte-americano, rever leis antigas etc. não é um siste-ma óbvio; não é um sistema que vigora em toda parte. E ele tem umproblema, que é o custo disso para a prática propriamente democrática.

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O que quero colocar é o seguinte: a relação entre a democracia eos direitos humanos não é uma relação harmônica necessariamente.Pode ser uma relação tensa. Não vejo como temos uma democraciahoje sem o respeito aos direitos humanos, mas não vejo tambémcomo afirmar que simplesmente enriquecemos o direito, a democra-cia grega, com o aporte moderno do reconhecimento dos direitos dosindivíduos e de coletividades. As duas coisas podem se contrapor, ese contrapõem na medida exata em que os direitos humanos são limi-tes às soberanias dos Estados. Talvez o cerne seja este; seja estipularque o Estado soberano conheça, porém, certos limites, certas proibi-ções que não pode violar. E havendo essas proibições que não estão aseu alcance, que não pode infringir, passa o Estado a ter de respeitarcertos direitos, cuja dimensão é indefinida.

Quando o ministro Tarso Genro disse que temos de redefinir o di-reito adquirido, fazendo, de certa forma, menção ao ex-ministro Bres-ser Pereira, é um pouco essa questão. E qual a extensão do direito ad-quirido? Sou professor da Universidade de São Paulo há bem mais doque cinco anos. Vamos dizer que estou me aproximando do momentochamado “aposentadoria”. No entanto, eu poderia ter me aposentadono ano passado. Há uma mudança constitucional pela qual o Governopassado me fez trabalhar mais cinco anos porque foi entendido quenão era um direito adquirido, mas uma expectativa de direito. Com-plicado. Não é obvio que seja um caso ou que seja outro; nada garanteque às vésperas do dia em que vou me aposentar não surja uma outramudança constitucional me dando mais cinco, 10, 20 anos de traba-lho. Quando se trabalha com algo que se gosta, isso não é desespera-dor, mas é um elemento complicado.

Então, há uma série de elementos que dizem respeito ao universo,vamos dizer, regido pelos tribunais. Talvez seja o caso da ordem dosdireitos humanos, que passam a ter uma ambigüidade muito grandequando falamos de democracia, de dizer qual a limitação do poder de-mocrático, quer dizer, o poder democrático violado, os direitos indi-viduais.

O direito adquirido, no caso, pode ter sido violado, dependendodo sentido que se dê a esse termo. Por outro lado, é muito pouco pro-vável que um dia possamos eleger um governo com base na atualConstituição que promova, por exemplo, a expropriação da proprie-

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dade privada, dos meios de produção, ou da grande propriedade im-produtiva etc.

Ficamos, portanto, em uma situação extremamente delicada. Issopode ainda ser acentuado, se lembrarmos que nunca o mundo viveutanta democracia quanto hoje. Quer dizer, nunca tantas pessoas, emtermos numéricos ou proporcionais, tiveram direito de voto e uma sé-rie de direitos a ele anexados: direito de expressar livremente sua opi-nião, de organizar partidos, de divergir de quem está no poder etc.Mesmo que levemos em conta que um bom número de Estados hojeexistentes pratica políticas extremamente autoritárias e que neles aseleições são relativamente falsas, como em várias repúblicas que sur-giram da Ásia Central ou ex-União Soviética, mesmo que aceitemosessa ressalva, o fato é que vivemos hoje uma liberdade de escolhamaior que em outros tempos.

E, no entanto, o governante que escolhemos com maior liberdadeque em outros tempos tem menos poder que em outros tempos paraimplementar uma política que nós exigimos. Se, por exemplo, eleger-mos um governante que se propõe fazer certas políticas, sabemos queisso não vai dar certo. Está cada vez mais que fora do caminho a redu-ção do deficit público, em razão da privatização, da demissão de fun-cionários, da redução das políticas sociais e políticas compensatórias.Ao invés de políticas universais, está cada vez mais claro que é extre-mamente difícil sair desse caminho. Isso, independentemente de nos-sa simpatia pessoal, torna a opção política muito difícil.

A opção política deveria ser de larga variedade. Para termos de-mocracia, não basta o povo votar, é importante que ele possa escolherefetivamente entre dois valores. Eu diria que o essencial em uma elei-ção é a escolha de valores, não a escolha de pessoas. A escolha de va-lores é inteiramente legítima: se eu for de esquerda, vou querer umaprefeita, um governador ou um presidente que utilize uma parte do di-nheiro público para programas sociais e que, eventualmente, aumentea tributação para reduzir a desigualdade social e apostar em progra-mas sociais de saúde, educação etc. Por outro lado, se eu for de direita,mas democrático, é perfeitamente legítimo que considere que, em vezde programas sociais para acudir o desempregado, reduza-se a tribu-tação das empresas para que elas gerem mais empregos, que, por suavez, darão aos seus empregados a possibilidade de escolherem em

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que querem gastar o dinheiro, se em educação, se em saúde ou se “emfarra”. São duas posições legítimas.

Não acho que uma delas seja mais correta que a outra. Tenho mi-nha preferência por uma delas, que não é nítida, mas não significa queconsidere errada a outra política. O que considero ruim é que nossasdiscussões políticas muito raramente passam por essas questões. Demodo geral, a nossa discussão política toca em uma nota só: a corrup-ção. Quer dizer, acusa-se o governante, que discorda de ser corrupto,e com isso elimina-se a necessidade de um programa. No ano 2000, ocandidato da direita era considerado por uma vasta parte da popula-ção como corrupto. Quer dizer, então, qual era o projeto dele, se é quehavia um projeto? Isso não foi discutido.

Em 2004, elegeu-se um prefeito praticamente sem programa emSão Paulo. O que ele iria fazer? O que prometeu fazer, além de certaforma continuar o que sua antecessora fazia? Mudar algumas coisasnão dá. Então, passamos a ter uma situação que é muito delicada: nosdois casos o argumento de corrupção foi fortemente contra o candida-to derrotado. E esse argumento, que geralmente é não provado, acabasendo de certa forma um argumento default da política brasileira.Quer dizer, toda vez que queremos criticar alguém no Brasil, falamosda corrupção.

Um governo pode fazer um desastre no país, não pela corrupção,mas por escolhas equivocadas. Pode fazer escolhas de boa-fé. Nãoacredito que, necessariamente, quem adota uma política neoliberal nãose preocupe com o social; longe disso. Pode ser que uma política dessastraga equívocos, custos altos, independentemente de trazer qualquerlucro indevido aos bolsos das pessoas. Então temos aí outra limitaçãoao alcance democrático: para termos democracia, precisamos ter nãoapenas eleições livres, liberdade de expressão etc., coisa que temos,mas precisaremos ter um sistema no qual seja possível contrapor políti-cas diferentes, opostas e respeitadas, se possível respeitáveis. Seria ne-cessário isso, e seria necessário deslocar um pouco para segundo planoa discussão de quem é mais competente ou quem é mais honesto, queacaba sendo nossa discussão. Quem será o prefeito/presidente maiscompetente, quem será o prefeito/presidente mais honesto, que é umadiscussão que deveria ser puramente instrumental. Se o prefeito ou ogovernador é desonesto, dê-se um jeito de retirá-lo, de condená-lo.

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Dê-se também um jeito de manter a escolha popular, do valor queela encarna. Esse assunto é muito importante, levado em conta o queaconteceu na América Latina nos últimos anos. Houve mais de meiadúzia de chefes de Estados que foram destituídos do poder sem ser pe-las vias eleitorais. Foi o que aconteceu com De LaRua na Argentina,dois presidentes da Bolívia, se não estou enganado, um presidente doBrasil. Apenas Chaves diminuiu esse número, pois houve um plebis-cito. Mas, se não tivesse havido o plebiscito, se a Constituição vene-zuelana não previsse o plebiscito, é possível que Chaves se somasse aesse número de destituídos por um clamor difuso, por uma série de re-clamações e talvez até por ações de tribunal de parlamento mas quenão expressam a vontade popular.

Esse número elevado indica também que não necessariamente to-dos esses políticos violaram a lei ou fizeram algo que merecesse aperda do poder. Indica muito mais claramente que esses políticos nãotiveram condições, dadas as circunstâncias econômicas e sociais, derealizar suas promessas de campanha. E a maneira pela qual a socie-dade conseguiu se livrar de cada um deles foi encontrando uma saída,e uma saída jurídica, que não conseguiu encontrar no caso do presi-dente do Peru, detentor de menos de 10% de popularidade e que estáencerrando o mandato, mas que outros países encontraram. Então,esse é outro ponto que é muito inquietante, quer dizer, em que medidanossa valorização dos direitos humanos não vem junto com certa des-valorização nossa do que é o poder do povo?

Um segundo ponto que também tem a sua importância, e talvezapimente a discussão, é se efetivamente temos “demos” e “cracia”.Creio que esses dois termos que definem a democracia entraram emxeque faz algum tempo.

“Demos”, quando falamos em grego, não há diferença entre o ter-mo “atenienses” e “povo de Atenas”. Em português há; quando se fa-lam “os paulistas”, está-se a referir às pessoas que moram, nasceram evivem em São Paulo. Refiro-me a uma população, mas não lhe estouatribuindo a condição de sujeito político de forma alguma. Talvez emum caso ou em outro eu lhe atribua essa qualidade; ao falar “o povopaulista” ou “o povo brasileiro” é diferente. Esse aspecto é curioso,pois em Atenas, no grego, o coletivo é um sujeito político, enquanto,para nós, o coletivo não é necessariamente um sujeito político. Elepode ser simplesmente uma soma de indivíduos.

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Só temos então essa bifurcação, isso torna muito problemática aexistência de um povo, de um demos. Para o grego é um dado; o de-

mos são atenienses. São excluídos as mulheres, os escravos, os es-trangeiros e os descendentes de estrangeiros. Muitos ficam de fora,mas em princípio resta um volume respeitável, que são os cidadãosformadores do “povo de Atenas”.

Para nós, as relações que constituíram o povo foram se tornandomuito frouxas. Vamos ainda tomar um ponto em Atenas. Qual a prin-cipal ação em Atenas? Quer dizer, existe governo em Atenas? A ri-gor, não. Algumas magistraturas são providas geralmente por sorteio,e encargos são distribuídos na maior parte por sorteio, com exceçãodos encargos dos encargos, vinculados à guerra, que são preenchidospor eleição. Praticamente todos os outros são por sorteio.

O que está por trás disso? Que a eleição escolhe os melhores e osorteio escolhe qualquer um!

Ou seja, qualquer ateniense pode exercer qualquer função públi-ca, com exceção – porque eles não são loucos por completo – da con-dição de uma guerra.

E quais são essas funções públicas que cada um vai exercer? Sãofunções muito variadas, mas as principais dizem respeito às festas re-ligiosas. Então, o sorteio acaba estabelecendo certas magistraturas,sim. O próprio Sócrates ocupa uma, mas a maior parte do sorteioabrange quem vai participar das festas religiosas de Atenas. Equiva-lente para nós seriam organizações nas quais a principal tarefa seriasortear quem vai cuidar do Carnaval do Rio, por exemplo. Ao invésde o Rio se preocupar com um enorme aparato burocrático, teria basi-camente esse sorteio como função.

Então, estamos lidando com um mundo em que os valores, aconstituição do poder são totalmente diferentes. Agora, esse demos

pulsa com um só coração, ou em princípio pulsa assim. Esse demos

tem uma coesão, uma participação. Nós não temos mais isso. Os nos-sos laços se esgarçam a tal ponto que não existe mais a possibilidadede falar no demos paulistano, paulista ou brasileiro. O que podemoster como vínculos fortes são os de grupo.

Paul Veyne comentou uma vez com muita oportunidade que,para entender o cidadão da República Antiga, devemos pensar no mi-litante do partido moderno. Eu proponho inverter essa frase e dizer

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que, para entendermos o militante partidário de hoje, devemos pensarque ele é um cidadão antigo no mundo moderno, o que talvez seja umpouco maldoso da minha parte, mas indica certos elementos que estãomuito presentes na militância.

O militante do partido político, sobretudo de esquerda, porquehoje é raro ter militante de partido político que não seja de esquerda –ou melhor, militante de partido político de direita tende geralmente aofascismo; mas, continuando, o militante de partido político hoje éaquele que estabelece uma série de vínculos bastante fortes com pes-soas que pensam como ele, construindo, por um lado, uma sociedadeextremamente forte, um laço muito forte, mas um laço social que écom um semelhante a ele.

Eu sou membro de conselho, daqueles conselhos de revistas quenunca se reúnem, da revista Teoria e Debate, do PT do Estado de SãoPaulo. Na única reunião que eu fui, aliás, faz uns 10 anos, houve umapessoa que se levantou, um conselheiro, e falou: “Acho que essa re-vista deveria discutir mais a cultura petista, por exemplo, o modo pe-tista de amar.” Eu fiquei absolutamente encantado, o que pode ser “omodo petista de amar”? Se alguém tiver alguma sugestão, enfim,mandem para a mesa, para o Palácio, ou para algum lugar assim.Enfim, há um “amor petista”, um “amor tucano”, um “amor PFL”?Não sei, acho extremamente difícil afirmarmos uma coisa dessas. Éclaro que ele deveria ter uma idéia, um petista no amor seria maisigualitário com a mulher do que alguém do PFL, ACemista, que tal-vez fossem mais autoritários. Mas que ele falou uma aberração, elefalou.

Agora, isso indica onde e para onde se desloca o demos. O demos

são o demos do povo, o povo como um todo. “Nós, o povo”, da Cons-tituição americana. Mas passa a haver um demos petista, por exem-plo. São aqueles que se reconhecem entre os petistas, como me disseuma vez uma deputada do PT que encontrei em uma festa. Eu pergun-tei o que ela estava fazendo e ela falou: “estou ‘PTsando’”. Então,constrói-se um certo vínculo; pode ser esse e pode ser qualquer outro.Estou dando exemplo partidário, mas pode ser um exemplo de culturanegra, de freqüentação de bar gay, de pessoas que de alguma formapegam um elemento identitário que as aproximam e hipostasiam isso.Eu ouvi dizer que em uma época havia um posto da zona leste onde se

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reuniam proprietários de Dodge Dart. É um carro que saiu de linha hámuito tempo. Então felizes os donos de Dodge Dart que cuidam comesmero de seus carros. Enfim, pulem-no, fazem-no funcionar. Man-têm o motor. Todos os sábados à tarde costumavam se reunir nesse lu-gar. Se eles, além dessa reunião, forem ver os mesmos filmes, casa-rem-se com o mesmo tipo de mulher etc., podemos chamar a forma-ção desse grupo de um certo “gueto” auto-assumido, mas que em lar-ga medida herda as características do antigo demos.

Então, passamos a ter uma coisa curiosa, que é a inexistência dodemos como tal e a criação de vários, que eu chamaria subdemoi, de-

moi sendo plural de demos, vários povos. Passa-se a ter na sociedadevários que se comportam com elos extremamente intensos, mas quenão conseguem se universalizar e nem têm por meta se universalizar.Podem ser grupos religiosos também.

Isso coloca em questão a existência do demos. O que é uma deci-são democrática? Seria uma decisão formada pelo conjunto? Mas seno povo como conjunto há aqueles que se organizam como “subpo-vos” e aqueles que não fazem, é complicado. Por exemplo, para nós cer-tamente é inteiramente legítimo e apoiaremos a criação de associa-ções feministas ou associações de defesa de direitos de gays etc., masprovavelmente para nós uma associação de defesa de direitos do ho-mem entendido como “macho” ou do heterossexual poderá causarum certo incômodo. Ou seja, a construção de subpovos não é umaconstrução que cabe à sociedade como um todo. Nem todos têm amesma legitimidade para ser “subpovo”, porque não veríamos comos mesmos olhos a criação de um grupo de defesa de heterossexuais.Bom, primeiro porque não estão ameaçados, o que pode ser umaquestão muito subjetiva, já que dependendo de onde eles andarem po-dem efetivamente ser ameaçados. Mas, sobretudo, porque parece fal-tar uma legitimidade a essa defesa, uma vez que os heterossexuais sãomaioria, os que até hoje ditaram as regras.

Agora, isso estabelece também que se o demos se pulverizar emsubpovos, nem todo mundo caberá em um deles. Muita gente nemcabe. Não é que não esteja, não cabe, há gente que está excluída disso.Isso torna muito complicada a questão da democracia. Na prática,pode significar o seguinte: eu faço uma assembléia, grupos se organi-zam, vão a essa assembléia organizados, outros não. O jogo não é lim-

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po, quer dizer, os grupos organizados acabam levando geralmente avitória.

Cracia – a palavra “poder” perdeu muito do seu alcance. Qual opoder que tem um Estado moderno? Essa é uma questão muito con-troversa, porque alguns dirão que têm um poder enorme, porque po-dem destruir o mundo, invadir países sem prova. Na verdade há um,talvez dois países no mundo hoje que correspondem aos traços tradi-cionais da soberania: os EUA e talvez a China.

Soberania, tal como está definida em texto, não vale para o restodo mundo. A Inglaterra não tem soberania nesse nível, o Brasil nãotem, a Europa está construindo uma União Européia que tem um novomodelo de soberania, mas a maior parte das soberanias são muito fra-cas. Então, nessa altura, o que significa o poder do povo? O quanto elepode fazer? Até onde vai o alcance das decisões dele, porque a decep-ção tão grande com os eleitos é uma decepção mundial, não é só da-qui. Quem votou em Bush, ao invés de ter um presidente isolacionis-

ta, passou a ter um presidente fortemente intervencionista. Como ficaessa questão?

As questões são bastante difíceis e fazem com que haja certo en-fraquecimento da democracia e ao mesmo tempo um fortalecimentodos direitos humanos. É basicamente essa questão que eu queria colo-car para vocês, uma questão sobretudo de debate. Os direitos huma-nos parecem viver uma época, não digo áurea, porque estão longe deser realizados, certamente é preciso apresentar muitas discussões decasos e de situações em que eles estejam calcados aos pés, e temos delutar contra isso de maneira muito forte, e ao mesmo tempo é impor-tante definir uma relação entre direitos humanos e democracia que osdesantagonize, que faça com que os dois caminhem na mesma dire-ção ou colaborem, mas sem ignorar a tensão que existe entre eles epensando muito em quais são esses direitos.

Para concluir, estamos em uma fase em que os direitos humanosvivem uma expansão. Parafraseando uma passagem de Nietzsche emPara além do bem e do mal: depois das “faculdades kantianas”, os fra-des do mosteiro tibetano começam a procurar “faculdades” atrás dosarbustos e em tudo o que era lugar, para enriquecer a filosofia. Parece-mos ter hoje a geração de novos direitos humanos quase ano a ano. AConferência das Nações Unidas sobre o Habitat propôs em Istambul,

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há alguns anos, um direito humano à moradia. O Brasil apoiou essedireito humano, mas acho que não passou porque os Estados Unidosforam contra, com um argumento que é muito interessante para dis-tinguir as nossas duas sociedades: eles disseram que se aprovassemesses direitos humanos à moradia teriam de adotar políticas públicasde concessão e fornecimento de moradia a todo mundo, inclusive aquem não tem moradia.

Obviamente, o Brasil, que tinha acabado de incluir esse direito naConstituição, fez uma emenda em 1998 incluindo-o. Ainda assim,não se preocupou em absoluto com um detalhe desses, como fizeramos norte-americanos. Quer dizer, o fato de colocarmos isso no textonão implica de forma alguma que devemos cogitar de praticar efetiva-mente isso.

Mas, note-se, se existe a expansão dos direitos humanos e se exis-te certa limitação do que o poder eleito pelo povo pode fazer, eis queestá em larga medida amarrado pelo bom senso de ordem de seus su-cedâneos. Isso coloca questões sérias sobre a efetividade dos direitoshumanos, pois, na medida em que podemos torná-los efetivos semcertas políticas de Estado – direitos humanos como proteção em facedo Estados –, há outros que necessitam delas.

Sem políticas de Estado, como se podem assegurar, por exemplo,os direitos sociais? E sem política de Estado, como em certos lugaresvão se assegurar a igualdade dos sexos, o respeito à orientação sexual?Em suma, se há um enfraquecimento do Estado, os direitos humanoscorrem risco de virar um ambiente que não chegaria a ser o da guerrade todos contra todos, mas que seria de que quem tem força e cacifepara afirmar seus direitos, afirma-os, e quem não tem, não tem, o queé também um tanto preocupante.

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V

INCLUSÃO, EXCLUSÃO

E DIREITOS HUMANOS

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V.1. A via de mão-dupla da cidadania:a imposição de direitos sociais

para a concessão de direitos econômicos*

Ivanilda Figueiredo**

O Brasil adotou um amplo programa de transferência condicionalde renda, denominado Bolsa Família. Tal programa segue na esteiradas recomendações atualmente emanadas pelo Banco Mundial,1 quetem feito com que diversos países latino-americanos, como Argenti-na, Chile, México, criem políticas similares, e com que tais países es-tejam em constante intercâmbio de informações sobre seus sistemas.2

Essa política pública brasileira contempla mais de 11 milhões depessoas cadastradas por terem renda per capita inferior a R$ 120,00reais mensais. Vale ressaltar que, como o programa é direcionado àfamília, e não ao indivíduo, o benefício atinge hoje mais 30 milhõesde pessoas.

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* Este texto contém o resumo de algumas das idéias trabalhadas no segundo capítulo do livro daautora Políticas públicas e a realização de direitos sociais. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2006.** Associada da ANDHEP a partir de maio de 2006, doutoranda em Direito Constitucional pelaPUC-Rio, mestre em Direito Constitucional pela UFPE e professora licenciada da Faculdade deDireito de Caruaru.1 Lavinas, Lena. Universalizando direitos. Observatório da Cidadania, n. 67, p. 67, 2004. Dis-ponível em: <www.socialwatch.org/es/informeImpreso/pdfs/panorbrasileiroe2004_bra.pdf>.Acesso em: 20 jan. 2006.2 Seminário Internacional sobre Bolsa Família, nov. 2005. Disponível em: <www.mds.gov.br>.Acesso em: 1o dez. 2005.

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Uma das principais características do programa brasileiro e dosseus pares latinos, com exceção da Argentina, é sua desvinculação daprestação de um trabalho. Os contemplados recebem o valor pecuniá-rio meramente em virtude de sua situação de pobreza. A vinculaçãoou não a um posto de trabalho não está entre os requisitos para habili-tação.3

Por outro lado, tais programas exigem o controle da freqüêncialetiva das crianças em idade escolar e da saúde de toda a família. Tra-ta-se do que se denominada no Brasil condicionalidades, às quais asfamílias estão atreladas para se beneficiarem de tal política.

As condicionalidades são, portanto, contraprestações sociais im-postas às famílias em situação de pobreza. Acontece que elas são, emverdade, direitos sociais dos quais o Estado passa a obrigar as pessoasa desfrutarem. Por isso, parece bastante importante questionar se oEstado detém legitimidade para compelir as pessoas a esse desfrutecomo requisito para a concessão de um direito econômico por vezesligado intrinsecamente à própria sobrevivência dos indivíduos (famí-lias em situação de miséria recebem inclusive um valor maior, pois seassume que essas pessoas não têm nem mesmo capacidade para ali-mentar-se e a sua família com segurança).

As contraprestações exigidas são, especificamente: manter as crian-ças entre sete e 16 anos com freqüência escolar assídua, realizar exa-mes pré-natais, vacinar a prole de acordo com os prazos e intervalos ar-bitrados pelo Ministério da Saúde no cartão de vacinação, participar deprogramas de segurança alimentar e receber os agentes de saúde.

Ora, o comprometimento com a saúde, a educação e a nutriçãodas crianças e adolescentes é uma responsabilidade da família, da so-ciedade e do Estado, de acordo com o disposto na Constituição Fede-ral.4 Além disso, são contraprestações que podem ser exigidas de pes-soas pertencentes a qualquer classe social.

Há formas universais de transferência de rendas exaltadas porrespeitados autores que admitem a imposição de certos direitos, comoa de enviar os filhos à escola, destacando que seria justo ajudar os pais

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3 Silva, Maria Ozanira da Silva e; Yazbek, Maria Carmelita; Giovanni. Geraldo de. A política

brasileira no século XXI: a prevalência dos programas de transferência de renda. São Paulo:Cortez, 2004. p. 36.4 Vide Título VIII da Constituição Federal de 1988.

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a custear a educação dos filhos e também que tal condicionalidade éexigível de ricos e pobres.5

Os direitos fundamentais são dotados de uma dupla dimensão emrelação ao Estado, podendo exigir ações e omissões conforme suaconjuntura de concreção e o fator de realidade disponível.6 Tambémse admite o efeito irradiador dessas prerrogativas, que obriga os parti-culares a “participarem” de sua efetivação.7 Admitindo-se ipsis

litteris a indisponibilidade desses direitos, também se estaria impon-do um efeito intracorpóreo, fazendo com que os indivíduos se com-prometessem a respeitar, mesmo contra vontade, os próprios direitos.Seria essa imposição válida?

Há uma crença popular de que ninguém melhor do que a própriapessoa para defender as próprias prerrogativas. Todavia, embora pa-reça lógico, não é sempre aplicável. Veja-se o exemplo dos 15 per-nambucanos que venderam, voluntariamente, parte do próprio corpo(um dos rins) por estarem necessitando de dinheiro.8

De acordo com Amartya Sen, as pessoas não são totalmente li-vres se não tiverem tido as garantias mínimas à qualidade de vida, e osatuais contemplados de programas de renda mínima são pessoas po-bres que, pela escassez de renda e falhas nas políticas públicas, não ti-veram acesso a essas prerrogativas. Assim, parece ser preciso consi-derar que:

“uma abordagem de justiça que se concentra em liberdades substanti-vas inescapavelmente enfoca a condição de agente e o juízo dos indivíduos;eles não podem ser vistos meramente como pacientes a quem o processo dedesenvolvimento concederá direitos. Adultos responsáveis têm de ser in-cumbidos de seu próprio bem-estar; cabe a eles decidir como usar suas capa-cidades. Mas, as capacidades que uma pessoa realmente possui (e não ape-nas desfruta em teoria) dependem da natureza das disposições sociais, as

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5 Lavinas, Lena. Política social universal para igualdade de gênero. Disponível em:<www.rits.org.br>. Acesso em: 22 jul. 2005.6 Alexy, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução Ernesto Garzón Valdés.Madri: Centro de Estúdios Constitucionales, 2002. p. 247-266.7 Idem. Ibidem. p. 506.8 TJPE. Ação Penal no 2004.83.00.1511-2, 13a Vara da Justiça Federal de Pernambuco. Decisãoabsolutória publicada no Diário da Justiça de 7.10.2004. Disponível em: <www.jfpe.gov.br/principal.html>. Acesso em: 25 mar. 2005.

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quais podem ser cruciais para as liberdades individuais. E dessa responsabi-lidade o Estado e a sociedade não podem escapar”.9

Dessa forma, o autor, ao colocar certas liberdades formais, comoo direito de escolha, na dependência da efetivação de direitos sociais,ainda que não diretamente, ratifica a possibilidade de se impor o des-frute dos direitos sociais.

As políticas públicas em prol da educação, da saúde e da seguran-ça alimentar podem garantir que os contemplados não estão receben-do o valor e se mantendo pobres para continuar a percebê-lo, pois seestaria estimulando a cidadania, a ambição por uma vida ainda me-lhor, a consciência através da educação, além de se estar evitando aperpetuação de doenças através do direito à saúde e garantindo que osvalores outorgados estão sendo despendidos em melhores condiçõesalimentícias, com programas de segurança alimentar.

Para melhor ilustrar esse ponto é preciso rememorar que o Brasilpossui um histórico de programas sociais com características marca-damente assistenciais no pior sentido do vocábulo: eram assistenciaispor serem paternalistas. Não visavam ao empoderamento dos benefi-ciários, mas ao alívio do sofrimento das pessoas em situação de penú-ria sem a transmutação de sua situação. As exceções a essa realidadeforam sempre pontuais.10 No entanto, com a elevação das transferên-cias condicionais de renda à categoria de uma das principais políticaspúblicas, em âmbito federal, direcionadas a lutar pelo fim da pobreza,a expectativa é a mudança desse panorama.

É necessário, também, lembrar que uma política pública para er-radicar a pobreza tem de visualizá-la através de um contexto multidi-mensional, que vai além da escassez de recurso. Ela precisa ter emconta que pobreza não é só uma condição ou situação, é também “umfenômeno herdado, na qual os pobres vão reproduzindo os problemase a pobreza dos outros. (...) O pobre vê-se como alguém, que, reco-nhecendo suas carências básicas, não está, quase sempre, em situaçãode superar a sua privação”.11

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9 Sen, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução Laura Teixeira Motta. São Paulo:Companhia das Letras, 2000. p. 326-327.10 Carvalho, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: 4. ed. Civili-zação Brasileira, 2003. p. 59.11 Lima, Marcos Costa. Raízes da miséria no Brasil: da senzala à favela. In: Benvenuto Jr.,Jayme (Org.). Extrema pobreza no Brasil. São Paulo: Loyola, 2002. p. 36-37.

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A freqüência escolar é sintomática dessa realidade de descréditona possibilidade de vencer a situação de pobreza. É provado que háuma relação entre o nível de escolaridade dos pais e dos filhos. Quan-to maior for a escolaridade dos genitores, maior tende a ser a da pro-le.12 Contingente considerável de pais de núcleos familiares pobresabdicou dos próprios estudos e dentre os motivos para o abandonoestá em não confiar que a escolaridade contribuiria para sua melhoriade vida. A tendência é que essas pessoas não se sintam estimuladas aincentivar os filhos a ir à escola.

É lógico que a famosa má qualidade do serviço público, as defi-ciências estruturais e a distância das escolas das residências, especial-mente no meio rural, bem como a renda derivada do trabalho infantiltambém são fatores a influenciar a não-imposição da obrigação de acriança freqüentar a escola, e são fenômenos a serem combatidos.Entretanto, mesmo que uma educação de qualidade estivesse assegu-rada, ela de nada adiantaria se persistisse a mentalidade de que o in-cremento da escolaridade não é interessante ao pobre.

Quando da redação da dissertação de mestrado da autora, esta re-alizou uma pesquisa empírica com aplicação de questionários, naqual ouviu 317 mulheres beneficiadas pelo Bolsa Família (por deter-minação legal as mulheres detêm titularidade preferencial do benefí-cio, o que faz com que mais de 90% das pessoas cadastradas sejam dosexo feminino). As entrevistadas residiam em seis cidades do Estadode Pernambuco. As cidades foram selecionadas por serem localiza-das em uma das três regiões geográficas mais marcantes do Estado(Região Metropolitana, Agreste e Sertão) e por estarem situadascomo os Municípios de pior ou melhor IDH da localidade,13 respecti-vamente: Região Metropolitana – melhor: Paulista; pior: Araçoiaba;Agreste – melhor: Caruaru; pior: Caetés; e Sertão – melhor: Triunfo;pior: Manari.

Vê-se pelas respostas dadas à pergunta 10 do questionário que onúmero de crianças entre sete e 14 anos não matriculadas na escolaentre todas as famílias entrevistadas é baixo, apenas 21 delas (9,2%).

247

12 Ferro, Andréa Rodrigues. Avaliação do impacto dos programas de Bolsa Escola no Brasil.p. 27. Disponível em: <www.periodicoscapes.gov.br>. Acesso em: 22 nov. 2005.13 Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Atlas de Desenvolvimento Humano.Disponível em: <www.pnud.org.br>. Acesso em: 3 maio 2005.

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248

Todos os seus filhos entre 0 e 14 anosvão à escola?

Sim;90,80%

Não; 9,20%

Sim

Não

Fonte: Pesquisa própria (maio/jun. 2005).Número de respostas válidas: 228 (207, Sim; e 21, Não).

O que você considera um bom motivopara seu filho faltar à escola?

94,90%

2,80%

2,30% Doença

Trabalho em casa

Não deixo queeles faltem

Fonte: Pesquisa própria (maio/jun. 2005).Número de respostas válidas: 217 (206, D; 6, T; 5, N).

Page 261: Livro  Direitos Humanos Século XXI

Apenas 12 mães, correspondentes a 3,8% das respostas válidas,disseram não controlar a freqüência escolar dos filhos, e somente seisdisseram que existência de trabalho em casa era motivo para a criançanão ir à escola, preferindo a maior parte delas (206 mulheres, 94,9%) aalternativa que indicava ser doença o único motivo válido para faltas.

Extrai-se do cruzamento dos dados um controle intenso da fre-qüência, só excepcionado pela falta derivada de doença. As informa-ções trazidas pela pesquisa podem à primeira vista aparentar estaremem contradição com o afirmado linhas antes, que a baixa escolaridadedos pais leva a uma menor preocupação com a escolaridade dos fi-lhos. No entanto, é preciso expor que durante a pesquisa se identifi-cou uma idéia subjacente, em alguns casos, a assumida preocupaçãocom a escolaridade dos rebentos. Quando as mães respondiam à ques-tão, destacavam que as crianças sem estudar não estavam cadastradasentre as beneficiárias do Bolsa Escola. Disso se supõe que elas queriamjustificar estar cumprindo com as condicionalidades impostas, mas,ao mesmo tempo, indica que o fato de receber o benefício faz com queas mães controlem, com maior rigidez, a freqüência e ratifica que nemsempre há uma consciência da necessidade de se fazerem as criançasestudarem.14

Essa realidade tende a se reverter com o prolongamento do pro-grama, já que os filhos hoje obrigados a freqüentar a escola serão ospais de amanhã. Enquanto essa consciência não se desenvolve, a im-posição de freqüência escolar é imprescindível e deve continuar mes-mo com a expansão do programa.

De acordo com Pochman, o Município de São Paulo acopla aosbenefícios pecuniários e às contraprestações sociais cursos de Forma-ção Cidadã, que contribuem para o fortalecimento da cidadania doscontemplados, colocando-os em perspectivas diversas,15 fazendo-osvalorizar a escolaridade das crianças e a considerá-la prioritária parao futuro das mesmas.16

A despeito disso, o último levantamento acerca da freqüência es-colar das crianças pertencentes às famílias contempladas indica que,

249

14 Ferro, Andréa Rodrigues. Avaliação do impacto dos programas de Bolsa Escola no Brasil.p. 27. Disponível em: <www.periodicoscapes.gov.br>. Acesso em: 22 nov. 2005.15 Pochman, Marcio (Org.). Políticas de inclusão social. São Paulo: Cortez, 2004. p. 79.16 Idem. Ibidem. p .76.

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em 24.965 famílias (0,31% do total), há ao menos uma criança comfreqüência abaixo do esperado, e é no Estado de São Paulo onde se en-contra o maior contingente: 8.823 famílias (1,08% do total).17 Em ter-mos percentuais, o número de famílias detectadas como não cumpri-doras da contraprestação relativa à educação é baixo. Ainda assim,não deixa de ser um problema a ser sanado e que não se extinguirácom a mera punição das famílias.

Por força do clamor social derivado de denúncias de não-cum-primento das condições pela mídia, o Governo Federal recrudesceu afiscalização quando impôs prazos trimestrais fixos ao Municípiospara apresentação do controle da freqüência escolar das crianças.18 Ométodo de punição consiste em etapas conseqüentes a serem impingi-das a cada vez que uma criança de uma determinada família figura nalista dos “desobedientes”: advertência por escrito, suspensão do be-nefício por um mês com pagamento em dobro no mês seguinte, inter-rupção do benefício por 60 dias com o retorno do pagamento apósesse prazo, nova interrupção do beneficio e, aos renitentes, cancela-mento do benefício.

As quatro etapas anteriores à imposição da penalidade mais gravo-sa dão a aparência de brandura ao sistema, o que poderia torná-lo alvode crítica pelos mais circunspectos tendentes a considerar qualquerdeslize dos beneficiários como prova de desídia. Entretanto, uma visãomultidimensional da pobreza considera, inclusive, as limitações so-ciais e psicológicas derivadas dessa condição. Por isso, as punições ini-ciais são flexíveis, justamente, porque o objetivo não é excluir as famí-lias do benefício, pelo contrário, o intuito é convencê-las, por meioscoercitivos disponíveis, a cumprir com as condicionalidades.

A intenção do programa, de facilitar o empoderamento dos indi-víduos, para ser concretizada, precisa mais do que coagir os contem-plados, é necessário escutá-los 19 e levar-lhes acompanhamento psi-

250

17 Angélico, Fabiano. Projeto reforça requisitos do Bolsa Família. Disponível em:<www.pnud.org.br/pobreza_desigualdade/reportagens/index.php?id01=1721&lay=pde>.Acesso em: 13 jan. 2006.18 ASCOM/MDS. Patrus Ananias faz palestra para procuradores de justiça sobre controle do

Bolsa Família. Disponível em: <www.mds.gov.br>. Acesso em: 5 fev. 2006.19 Romano, Jorge O.; Antunes, Marta. Introdução ao debate sobre empoderamento e direitos nocombate à pobreza. In: Romano, Jorge O.; Antunes, Marta (Orgs.). Empoderamento e direitos

no combate à pobreza. p. 6. Disponível em: <www.actionaid.org.br>. Acesso em: 20 dez. 2005.

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cossocial, capaz de melhor gerir a inserção social dessas famílias.Com fulcro nesse entendimento, o gestor de condicionalidades doBolsa Família anunciou que foi lançado nos primeiros meses de 2006projeto-piloto de realização do acompanhamento das famílias atravésde profissionais especializados.20

Logicamente, não adianta obrigar os cidadãos a enviarem seus fi-lhos para a escola com o intuito de receberem o beneficio ao final domês, e as crianças serem submetidas a professores despreparados, fal-ta de condições estruturais, em suma, a um ensino de má qualidade.Não adianta os pais serem obrigados a cuidar da própria saúde e da deseus filhos em hospitais lotados, com filas gigantescas, ou agentes desaúde que visitam a comunidade esporadicamente. Nem tampouco éválido, como já destacado, encaminhar os cidadãos a empregos indig-nos ou com pagamentos incompatíveis com a função e a dignidade dotrabalhador.

As condições impostas por sistemas de redistribuição de renda,se visam a acoplar à renda distribuída outros direitos sociais efetiva-dores das liberdades dos cidadãos, são legítimas, mas não valem porsi mesmas; necessitam de condições estruturais para operarem e nãofuncionam se a educação e a saúde outorgadas forem apenas uma fic-ção de direito para ludibriar os contemplados e a opinião pública.Assim, é coerente com a teoria de justiça de Sen a imposição de certosdireitos sociais, contanto que todos eles levem os cidadãos a um au-mento da liberdade.

Porém, é preciso destacar que os direitos humanos, os valores daigualdade, liberdade e fraternidade ou quaisquer outros parâmetrosque sejam erigidos como norte das sociedades e das condutas sociaisnão se tornam reais pelo simples fato de serem anunciados, nem tam-pouco por serem impostos às pessoas como se fosse necessário ades-trá-las a uma conduta condizente com os parâmetros sociais e o respei-to a si próprias. Quando se admite a imposição de direitos sociais nãose está a defender o dirigismo da vida dos pobres como se estes pudes-sem ser considerados parte de uma massa sem rumo que deve ser con-duzida. Está-se, sim, reconhecendo que, se “a igualdade não é um

251

20 Angélico, Fabiano. Projeto reforça requisitos do Bolsa Família. Disponível em:<www.pnud.org.br/pobreza_desigualdade/reportagens/index.php?id01=1721&lay=pde>.Acesso em: 13 jan. 2006.

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dado, ela é um construído, elaborado convencionalmente pela açãoconjunta dos homens através da organização da comunidade políti-ca”.21 É preciso proporcionar a sua construção através de ações edu-cativas condizentes com o acréscimo da liberdade dos cidadãos.

É imperioso que as escolas tenham uma perspectiva pedagógicalibertadora e um ensino de qualidade, que os agentes de saúde dialo-guem com os moradores para despertar neles a consciência da vanta-gem das práticas preventivas às doenças, que os programas de segu-rança alimentar levem em conta as realidades locais.

Pessoas com dinheiro suficiente para se alimentar sadiamente seentopem de junk food não só porque têm pressa, mas porque a propa-ganda consumista as incentiva a comprar diversos produtos prejudi-ciais à saúde nos supermercados, restaurantes e lanchonetes.22 Acon-tece que essa publicidade não é restrita, ela também atinge os pobres.Então, não adianta simplesmente bater-lhes à porta, ensinando-os afazerem pudim de casca de banana, ou qualquer outra iguaria com ali-mentos antes descartados, mas que possuem nutrientes essenciais epodem servir-lhes. As políticas públicas não podem erigir a dignida-de do ser humano como um valor inefável, é imperioso consideraressa tal dignidade no máximo de espectros possíveis. Ora, o reaprovei-tamento de cascas, folhas, talos dos alimentos não é, em si, algo preju-dicial, não é isso. Mas o que se pretende demonstrar é que tais incenti-vos têm de estar conectados à realidade, têm de considerar o senti-mento das pessoas ao serem instadas ao reaproveitamento, não sepode, de forma alguma, lhes passar a idéia de que, por serem pobres,devem se alimentar daquilo que as outras famílias têm a possibilidadede descartar. Ou se estará, mais uma vez, construindo uma políticapública assistencialista.

As práticas educativas, sejam relacionadas à saúde, ao alimen-tar-se, ou ao próprio desenvolvimento da educação formal, precisamlevar em conta a dignidade dos ouvintes, o ambiente social e históricono qual estão insertos. Não é porque os pobres não têm recursos que

252

21 Lafer, Celso. A reconstrução dos direitos humanos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.p. 150.22 Valente, Flávio Luiz Schieck. O direito humano à alimentação. In: Lima Jr., JaymeBenvenuto (Org.). Extrema pobreza no Brasil. São Paulo: Loyola, 2002.

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se tornam imunes aos apelos da sociedade consumista.23 Eles são tãoatingidos pelas artimanhas do incentivo ao consumo desenfreadocomo qualquer outro e, por isso, tantas vezes realizam escolhas inin-teligíveis à primeira vista. No Brasil, o telefone móvel se tornou umsímbolo de inserção social, um item de primeira necessidade ao “ci-dadão participativo”. Assim, muitos indivíduos pobres preferem ab-dicar de itens alimentares para ter um celular.24

O que se pretende expressar é que as políticas públicas não devemvisualizar seus beneficiários como inativos receptores. Pelo contrá-rio, é imprescindível a tais programas ter a perspectiva de gerar o em-poderamento dos indivíduos, ou seja, fornecer condições para que aspessoas possam “usar seus recursos econômicos, sociais, políticos eculturais para atuar com responsabilidade no espaço público na defe-sa de seus direitos, influenciando as ações do Estado na distribuiçãodos serviços e recursos públicos”.25 O empoderamento é a participa-ção consciente a ser construída através do desfrute aos direitos e deuma prática libertadora. Como bem expressa Paulo Freire:

“desde o começo da luta pela humanização, pela superação da contradi-ção opressor-oprimidos, é preciso que eles (os oprimidos) se convençam queessa luta exige deles, a partir do momento que a aceitam, a sua responsabili-dade total. É que esta luta não se justifica apenas em que passem a ter liberda-de para comer, mas ‘liberdade para criar e construir, para admirar e aventu-rar-se’. Tal liberdade requer que o indivíduo seja ativo e responsável, não umescravo, nem uma peça bem alimentada de uma máquina”.26

Nem tampouco um autômato, que envia sua prole a uma escola naqual ela aprende apenas a soletrar palavras, e não a lhes decodificar ossentidos, ou alguém que retira a água parada dos repositórios não paraevitar a dengue, mas para se escusar da reclamação do agente de saú-

253

23 Freire, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. p. 67.24 Spitz, C. Classe E possui 40% dos celulares pré-pagos brasileiros, diz pesquisa. Disponívelem: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u102655.shtml>. Acesso em: 12 abr.2005.25 Romano, Jorge O.; Antunes, Marta. Introdução ao debate sobre empoderamento e direitos nocombate à pobreza. In: Romano, Jorge O.; Antunes, Marta (Orgs.). Empoderamento e direitos

no combate à pobreza. p. 6. Disponível em: <www.actizonaid.org.br>. Acesso em: 20 dez.2005.26 Freire, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. p. 62.

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de. O Estado brasileiro tem por obrigação constitucional construiruma sociedade livre, justa e solidária (art. 3o, inc. I, da CF), mas, paraisso, não pode se converter em um messias que leva a salvação àsmassas populares, pois

“adesão conquistada não é adesão, porque é aderência do conquistadoao conquistador através da prescrição das opções deste àquele. A adesão ver-dadeira é a coincidência livre de opções. Não pode verificar-se a não ser naintercomunicação dos homens mediatizados pela realidade.27 O objetivo daação dialógica está em proporcionar que os oprimidos, reconhecendo o por-quê e como de sua aderência, exerçam um ato de adesão à práxis verdadeirade transformação da realidade injusta”.28

Os direitos sociais, ao serem impostos, podem gerar tanto adesãoquanto aderência, a depender do modo de condução da política tenden-te a concretizá-los. Por isso, é importante trazer a lume que, quando oEstado obriga os cidadãos a cuidarem de sua saúde, a enviarem suascrianças à escola, a buscarem um emprego, não está apenas criandouma obrigação para esses indivíduos, mas também se obrigando a pres-tar os tais serviços necessários a um sistema educacional e de saúde dequalidade, ao favorecimento de oportunidades de trabalho, à fiscaliza-ção da adequação dos trabalhos ofertados às normas trabalhistas.

Para se engendrar realização da justiça social é preciso que os di-reitos sociais prestacionais sejam concedidos pelo Estado da melhorforma possível, pois só assim são capazes de serem facilitadores doprocesso de empoderamento, que transforma os cidadãos em prota-gonistas de suas próprias vidas e os torna capazes de desenvolver suacondição de agentes.

Os programas governamentais, quando se revestem de uma auraassistencialista, são barreiras ao empoderamento. Quando se dissi-mulam de programas autonomizantes, mas submetem os beneficiá-rios a um sistema de saúde falido, a uma educação de má qualidade, aum mercado de trabalho no qual as pessoas são empregadas em regi-me análogo à servidão, são também um empecilho ao empoderamen-to e de forma ainda mais cruel, pois transmitem às próprias pessoasbeneficiadas e ao resto da sociedade que se essas tais contempladas

254

27 Idem. Ibidem. p. 193.28 Idem. Ibidem. p. 200.

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não conseguem empoderar-se é por uma deficiência delas. Se o Esta-do não pode empoderar, ele pode, sim, criar um ambiente favorável aessa construção pessoal.29 Para erguer esse espaço tem a faculdade, emuitas vezes até necessita, da imposição dos direitos sociais, mas es-tes têm de obedecer à moldura delineada (qualidade mais fortaleci-mento da autonomia individual).

Em uma sociedade ideal, todos teriam condições dignas de vida eviveriam em um ambiente favorável à formação de seu espírito críticoe suas aptidões, mas não se tem como construir do zero uma socieda-de e edificá-la assim. Por isso, é preciso conduzir o Estado em direçãoà modificação de certas estruturas sociais, para, ao menos, obter-se aextinção da pobreza em sua concepção multidimensional, ou seja,não apenas como escassez de recursos, mas também como carências eprivações palpáveis, ou não que direcionam e, por vezes, estagnam avida dos seres humanos. É necessário despertar nos próprios indiví-duos sua capacidade de agente, e isso pode ser realizado por meio deum “projeto alternativo que permita a expansão das liberdades subs-tantivas e instrumentais das pessoas. Ou seja, um projeto em aberto,orientado para as pessoas como agentes e que respeita a diversidadehumana e a liberdade de escolha”.30

“Os fins e os meios do desenvolvimento exigem que a perspectiva da li-berdade seja colocada no centro do palco. Nessa perspectiva, as pessoas têmde ser vistas como ativamente envolvidas dada a oportunidade na conforma-ção de seu próprio destino e não apenas como beneficiárias passivas dos frutosde engenhosos programas de desenvolvimento. O Estado e a sociedade têmpapéis amplos no fortalecimento e na proteção das capacidades humanas.”31

Se o intuito é expandir as liberdades substantivas das pessoas, épreciso fortalecer suas liberdades políticas através dos mecanismos

255

29 Romano, Jorge O.; Antunes, Marta. Introdução ao debate sobre empoderamento e direitos nocombate à pobreza. In: Romano, Jorge O.; Antunes, Marta (Orgs.). Empoderamento e direitos no

combate à pobreza. p. 13. Disponível em: <www.actionaid.org.br>. Acesso em: 20 dez. 2005.30 Romano, Jorge O. Empoderamento: recuperando a questão do poder no combate à pobreza.In: Romano, Jorge O.; Antunes, Marta (Orgs.). Empoderamento e direitos no combate à pobre-

za. p. 18. Disponível em: <www.actionaid.org.br>. Acesso em: 20 dez. 2005.31 Antunes, Marta. O caminho do empoderamento: articulando as noções de desenvolvimento,pobreza e empoderamento. In: Romano, Jorge O.; Antunes, Marta (Orgs.). Empoderamento e

direitos no combate à pobreza. p. 96. Disponível em: <www.actionaid.org.br>. Acesso em: 20dez. 2005.

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eleitorais e do monitoramento e fiscalização das políticas públicas;ampliar as facilidades econômicas dos indivíduos por meio do acessodireto à pecúnia ou de outros recursos; gerar oportunidades sociaispara uma vida saudável, com educação de qualidade e garantia de ou-tros direitos sociais; assegurar a transparência na versação das finan-ças e dos programas estatais e dispor de uma rede de segurança prote-tora.32 Todas essas exigências são indispensáveis “ao empoderamen-to desses atores (beneficiários dos programas) e suas organizações lo-cais para que estes possam ter vez e voz nas três esferas de atuação:Estado, mercado e sociedade civil”.33

Por fim, é preciso lembrar que os direitos fundamentais são inter-dependentes. Direitos civis, políticos, sociais e econômicos, para setornarem reais, precisam ser considerados conjuntamente. Por isso,quando se exige dos cidadãos estarem quites com certas condicionali-dades que nada mais são do que direitos sociais para assim se outorgaraos mesmos o acesso a um certo direito econômico, deve-se estar obje-tivando também a ampliação dos direitos civis e políticos dos mesmos.

Diante de tudo isso, parece um caminho coerente retomar o títulopara afirmar que os direitos sociais podem ser cominados, mas paraisso devem obedecer a certos parâmetros. O primeiro deles é que asprerrogativas impostas pelo Poder Público devem visar ao beneficia-mento do próprio beneficiário e ter por fim a ampliação de sua liber-dade (e de sua família). O outro, que segue diretamente o título, se re-fere ao fato de que o Estado precisa prestar os direitos com eficiência,para assim ter a possibilidade de exigir o seu desfrute pelos cidadãos.

Bibliografia

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256

32 Idem. Ibidem.In: Romano, Jorge O.; Antunes, Marta (Orgs.). Empoderamento e direitos no

combate à pobreza. p. 95-96. Disponível em: <www.actionaid.org.br>. Acesso em: 20 dez.2005.33 Romano, Jorge O. Empoderamento: recuperando a questão do poder no combate à pobreza.In: Romano, Jorge O.; Antunes, Marta (Orgs.). Empoderamento e direitos no combate à

pobreza. p. 20. Disponível em: <www.actionaid.org.br>. Acesso em: 20 dez. 2005.

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V.2. Advocacia popular e os direitosdos carentes: a experiência do Empas-OAB

Paulo Henriques da Fonseca*

A experiência compilada nas ações patrocinadas pelo EscritórioModelo da Prática Advocatícia Afrânio Neves Mello – Empas – daOAB, Ordem dos Advogados do Brasil, subseção de Sousa, Paraíba,é aqui tratada nos aspectos descritivos e qualitativos, por faltarem da-dos estatísticos mais precisos. Quando se recebeu a comunicação doevento anual da ANDHEP, não havia mais possibilidade de um le-vantamento preciso que se exige no caso de um evento dessa impor-tância. Mas isso não retira a possibilidade de um relato a portar contri-buição na consolidação de uma responsabilidade social na área dasprestações jurídicas.

O serviço do Empas-OAB é gratuito e prestado há seis anos, emmodernas instalações na sede da subseção da OAB em Sousa, Paraí-ba. O grupo de 12 estagiários selecionados a partir do sexto períodovem do quadro discente do Centro de Ciências Jurídicas e Sociais –CCJS, Campus de Sousa, da Universidade Federal de Campina Gran-de – UFCG. Também bacharéis em Direito, em menor número, parti-cipam do grupo, enquanto se preparam para o exame de Ordem. O pe-ríodo de estágio é de dois anos renováveis uma vez.

O serviço funciona em convênios com a Defensoria Pública Esta-dual e o CCJS-UFCG, para efeitos de ingresso das petições iniciais no

259

* Mestrando em Direitos Humanos no PPGCJ-UFPB, bolsista da Fundação Ford/Carlos Cha-gas e advogado.

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Foro local e validação da prática advocatícia do Empas como estágiocurricular, respectivamente. Advogados locais do quadro da Ordemcoordenam e supervisionam a prestação do serviço, que é prestadocom base no Estatuto da OAB, Lei no 8.906/1994, arts. 3o, §§ 2o e 9o, eno Código de Ética e Disciplina da OAB.

A modalidade de prestação jurídica divide-se em administrativa ejudicial, prevalecendo esta última. As causas de baixo valor econômi-co ou devido ao estado de carência das partes não interessam aos es-critórios particulares, mas já há uma divulgação do serviço pelos be-neficiários que vem provocando novas procuras. A priorização da de-manda judicial se dá por conta de chegarem ao Empas-OAB pessoasvitimadas por sucessivas negações de direitos especialmente na áreada seguridade, família e relações de consumo, quando não há espaçopara acertos extrajudiciais. Caso mais freqüente é da Fazenda Públi-ca, que restringe os poderes negociais de seus representantes em juí-zo, não havendo margem para solução extrajudicial.

Fazendo um caminho que vai do diagnóstico sumário da situaçãodos beneficiários, do serviço propriamente dito e dos desafios e obs-táculos mais comuns no patrocínio judicial dos carentes, passandopelo diálogo com as teorias e outros relatos de experiências, bus-car-se-á contribuir com a promoção dos direitos humanos. O envolvi-mento ético e profissional com a promoção da cidadania e busca desatisfação jurídica se põe como base para a valorização das experiên-cias de estágio jurídico profissional e acadêmico. Este último é obri-gatório nos cursos jurídicos, conforme a Resolução no 9/2004 doConselho Nacional de Educação. Os beneficiários serão chamadosclientes por mera convenção que facilite a construção do texto.

1. Exclusão social e os meios de acesso à justiça

Sob a denominação exclusão jurídica se podem captar as verten-tes específicas da exclusão mais ampla. Em uma sociedade democrá-tica com amplo rol de direitos (sociais, principalmente no caso desserelato) subjetivos, a exigibilidade administrativa e judicial dos mes-mos passa a integrar a própria cidadania e constitui-se em importantesubstrato formador da subjetividade e da confiança nas instituições,garantia de sua legitimidade. No processo judicial a dialética exclu-

260

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são-inclusão se revela, bem como as posturas morais e subjetivas doscarentes quanto ao funcionamento da justiça institucional.

1.1. A exclusão social e os clientes: aspectos mais verificados

A primeira delas encontra-se em Serge Paugam (1993), com seuconceito de “desqualificação social” do carente condenado a não terdireitos. Em muitos relatos, os clientes falam que foram “desafiados”por funcionários burocratas, como se o exercício de um direito fosseum acinte.1 Ainda de acordo com Paugam, a perda progressiva de vín-culos sociais deixa o carente cada vez mais isolado – e aí notamos adificuldade de arrolar testemunhas2 (apesar da solidariedade que emtese se postula para as classes populares) – e sujeito a inclusões mar-ginais e precárias, como o socorro a programas sociais e seus benefí-cios irrisórios.

Robert Castel (1995), que discorda do conceito de exclusão, pre-fere falar de inscrições sociais pouco significativas. Elas tendem a serfornecidas aos excluídos, que assim podem perder ou renunciar à bus-ca de inclusões significativas, o trabalho sendo, para Castel, a maisimportante delas. Os carentes sabem que processo judicial é uma ins-crição fortemente significativa, dada a carga de poder simbólico ereal que carrega, e por isso valorizam os serviços do Empas-OAB en-quanto lhes proporciona essa possibilidade impensável antes.

1.1.1. Falta de provas documentais

A falta de documentos revela a espontaneidade do cotidiano doscarentes, especialmente os vindo das zonas rurais. A estrutura formaldo processo, que necessita de subsídios probatórios para autuação, re-vela essa lacuna. São poucos os que têm um mínimo de insumos do-cumental-formais para ensejar o manejo de técnicas processuais refe-rentes aos mandatos de segurança, cautelares, tutelas antecipadas etc.

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1 Registre-se que, na região sertaneja, o funcionalismo público constitui um segmento das eliteslocais, identificando-se com a ideologia patrimonialista e conservadorismo por múltiplos vín-culos sociais (parentesco, renda etc.).2 Dificuldades principais são deixar o trabalho, os filhos em casa sozinhos, a casa fechada, dis-tâncias grandes etc.

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Muitos “papéis velhos” são jogados fora, pois é da percepção media-na dos clientes que só “coisa nova” serve para alguma coisa, talvezresquício da alienação forçada quanto à memória do passado (só aselites se documentam, pois têm passado significativo!?) com a ideo-logia do consumo de novidades. Não raro entregam os documentosque são extraviados por despachantes, perdidos etc.

O fato da exclusão afeta até a prova dessa condição. De sorte que,em primeira instância, os juízes se valem da notoriedade e do contatodireto com a parte para aferir-lhe, pelo biótipo e atitudes, o fato da ca-rência, relevante para uma série de benefícios processuais. Os tribu-nais superiores em geral têm considerado o estado de carência alega-do em primeira instância dizendo não proceder mais em instância re-cursal o reexame probatório. As mulheres pobres chefes de famíliasão as mais afetadas, pois se não têm união conjugal regular não têm adocumentação do cônjuge. Assim, na condição do exercício de traba-lho rural em regime de economia familiar, por exemplo, ficam as mu-lheres solteiras sem provas para sustentar sua alegação. Os homenstêm mais chancelas documentais; por exemplo, ao enfrentarem o alis-tamento militar, se vêem instados a regularizar toda a vida civil e polí-tica: identidade, título de eleitor.

1.1.2. Domicílio e localização

A localização em domicílio é outra faceta. A exclusão e fragiliza-ção afetam a dimensão domiciliar necessária para o atendimento judi-cial de duas formas: a distância e dificuldade de deslocamento dosque têm moradia e a constante mudança de endereço dos que não têmmoradia própria. Junte-se isso ao que Cappelletti e Garth (1988, p.38) dizem: nas “sociedades em que ricos e pobres vivem separados,pode haver barreiras tanto geográficas quanto culturais entre os po-bres e os advogados”. Há ainda os casos em que os clientes, sendo dazona rural, indicaram endereços urbanos na documentação fragili-zando os direitos baseados na condição rurícola. Marcacini (2003),em relato de experiência, cita o caso de locais em que os Correios nãochegam. Além disso coloca a falta de informações e percepção basilardos próprios direitos, a submissão à autotutela da outra parte, bastan-do ver muitos carimbos em um papel para vê-lo como oficial e exato.

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Os espaços públicos estatais, como os do Judiciário, vão ficandoinóspitos e proibitivos.

Para os carentes, a falta de vestimenta adequada para as audiên-cias, a imponência dos ambientes judiciais e a estranheza dos seus ha-bitantes os intimidam, diz Cappelletti e Garth (1988). Bauman (1999)trata do crescimento dos espaços vazios e dos não-espaços, zonas cin-zentas em geral degradadas cujos estigmas passam para os habitantes.Corinne M. Davis (apud Ribeiro; Strozemberg, 2001, p. 125-152)descreve a importância da localização no caso da administração dassoluções judiciais, quando, no Rio de Janeiro, do deslocamento de umJuizado Especial Cível da favela da Rocinha para a Barra da Tijuca.Com o aumento da distância e a falta de familiaridade com os servido-res, o número de casos caiu vertiginosamente, fazendo ver que a loca-lização mais próxima de casa facilita o acesso.

1.1.3. A linguagem hermética

Por ocasião de sua posse como presidente do STF – Supremo Tri-bunal Federal –, a ministra Ellen Gracie, a respeito do acesso à justiça,falou da decisão efetiva dada em tempo razoável e compreensível àspartes, pois o juiz, ao sentenciar, não o faz para a academia ou para asrevistas jurídicas especializadas. O destinatário das decisões judiciaisé a pessoa que se vale do Judiciário.3 Boaventura Sousa Santos, entre-vistado por Soares Nunes (2005, p. 234), diz ser a linguagem

“(...) instrumento de poder, a língua é também instrumento de exclusão.É através dela que se operam as exclusões sociais. (...)

E mesmo o que na língua se apresenta como o mais inocentemente neu-tro, pode produzir exclusão. No caso de terminologias técnicas, a sua funçãoinstrumental é evidente. Mas elas também têm uma função social: servempara unir o grupo que as usa e, em corolário dessa ligação, a de excluir quemé estranho ao grupo. Longe de ser secundária, esta função social de coesãopode sobrepor-se à função técnica”.

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3 Discurso de posse da ministra Ellen Gracie na Presidência do STF – Supremo Tribunal Fede-ral, em 27.4.2006.

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O processo, por sua vez, dentro dos moldes formais e regradosque opera, pelos ritos em que se move (ou não se move) e até pela lin-guagem em que se veicula, permanece inacessível aos mais carentes emesmo ao cidadão comum.4 Essa faceta da exclusão é importante, pois,ao impedir a cognição comum e afastar a compreensão da pessoa quan-to aos meios e formas que seu direito adquire, esta mais facilmente re-nuncia, abandona. Casos houve no atendimento do Empas-OAB emque o cliente intimado, rebelando-se contra a intimação (termo queparece indicar “o que não tem razão”), deixou de comparecer e desis-tir da ação.

1.1.4. “Coisa pobre para pobre”

A expressão é usada por Pedro Demo (2003), ao definir a menta-lidade que predomina na sociedade e no Estado nos programas em fa-vor do carente gerada pela política social minimalista e residualista.Para esse autor, o problema não é primeiramente a pobreza em si, masa pobreza com que a pobreza é tratada. No cotidiano do Empas-OAB,a qualidade das petições com a busca de emprego de uma apurada re-dação e fundamentação contrastava com outras práticas de assistên-cia jurídica, baseadas na idéia de “coisa pobre para pobre”.

A exclusão social afeta inclusive os modos de prestação de servi-ços tornados precários e assim consentidos. Não foram poucas as ve-zes em que profissionais, estando já devidamente ajuizadas as ações,procuravam os clientes para que substabelecessem as ações. Infeliz-mente isso acontecia porque o acompanhamento processual ficavaprejudicado, visto que, com as férias acadêmicas e as greves, os esta-giários voltavam para seus lugares de origem.

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4 Os operadores do direito sabem da estupefação das pessoas diante da linguagem forense quan-do, por exemplo, o advogado vibra com a decisão do judicial que proclama a “irresponsabilida-de” do seu cliente. Certa vez ingressei com uma ação “cominatória” em favor de uma Associa-ção de Irrigantes e houve uma confusão em uma das assembléias da mesma: uns diziam que erauma ação “comunitária”, que o advogado não sabia escrever.

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Quadro I – Desafios e competências necessárias

Cliente – Desafios Estagiária(o) Competências

Domicílio Endereços incertos, moradiasdistantes, falta deformalização (água, luz,IPTU...)

Localizar bem, ajuda naformalização dos dados,produzir situações ad hoc:compras...

Provas Falta de documentos,destruição, mais carências nasmulheres, crianças e jovens

Ver fichas de escolas,internações em hospitais,cautelares de produção deprovas

Atitudes docliente

Renúncia fácil, desconfiançada Justiça, extremos deansiedade e abandono da ação

Orientar e esclarecer quantoaos direitos e à importânciadeles explicar a Justiça

Patrocínio Gratuito, dificuldades noscustos, assédio parasubstabelecimentos

Juntar declaração degratuidade ao processo,aplicar todas as técnicashábeis na ação

Bem jurídico Direitos sociais, urgentes ealimentares

Fundamentar na legislaçãoespecial

Conhecimento Pouco ou nenhum, direito =dever

Atitude educativa: tornarcompreensível

1.2. O estágio profissional e o curricular

Para entender a prestação dos serviços do Empas-OAB, que com-bina o estágio profissional e o curricular, é válido analisar a modali-dade corporativa de estágio de que trata a Lei no 8.906/1994, art. 9o,§§ 3o e 4o. Diz o dispositivo legal em comento, no seu início: “Art. 9o

Para inscrição como estagiário é necessário: I – preencher os requisi-tos mencionados nos incisos I, III, V, VI e VII do art. 8o; II – ter sidoadmitido em estágio profissional de advocacia.” Ora, o art. 8o ventila-do traz o rol de requisitos necessários para a inscrição como advoga-do. A inscrição como estagiário exige, por exemplo, “não exercer ati-vidade incompatível com a advocacia” (art. 8o, inc. V). Por isso, o dis-cente que a exerça não tem direito ao estágio profissional corporativocom fins de inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil. Assim sen-do, para esse aluno deverá haver um estágio cuja disciplina, finalida-des e sistemática sejam situadas além das disposições da OAB e as-

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sim assumidas pelos cursos jurídicos, como parte de sua responsabili-dade institucional.

Soa um tanto exorbitante o disposto do art. 9o, § 3o, do Estatuto daOAB, que preleciona: “§ 3o O aluno de curso jurídico que exerça ati-vidade incompatível com a advocacia pode freqüentar o estágio mi-nistrado pela respectiva instituição de ensino superior, para fins deaprendizagem, vedada a inscrição na OAB.” Em todo caso, o próprioEstatuto da OAB reconhece a existência de dois tipos de estágio: umcom fins de inscrição na Ordem, outro para aprendizagem: “Art. 9o

(...) § 4o O estágio profissional poderá ser cumprido por bacharel emDireito que queira se inscrever na Ordem.” Outro indicador legal dadistinção: ao passo que o estágio e prática acadêmicos tenham de seprocessar durante o curso jurídico, a modalidade profissional de está-gio da OAB pode ser realizada por pessoa já titulada como bacharel.

Os marcos legislativos tratam o estágio como áreas de contato,zonas de fronteira, mas ao mesmo tempo distintas. A formação para acidadania ultrapassa em amplitude e ao mesmo tempo integra a for-mação acadêmica, que por sua vez o faz com a profissionalização. ALei no 6.494/1977, que trata dos estágios de estudantes de estabeleci-mento de ensino superior e profissionalizante, diz: “Art. 2o O estágio,independentemente do aspecto profissionalizante, direto e específi-co, poderá assumir a forma de atividades de extensão, mediante a par-ticipação do estudante em empreendimentos ou projetos de interessesocial” (grifo nosso). Assim, a modalidade de inserção social dos es-tágios ultrapassa e incorpora a profissionalização como um seu ele-mento nuclear, mas não único e absorvente.

Outro elemento que suscita a distinção entre aquela prática cor-porativa de estágio e a curricular é quanto à disposição do Código deÉtica e Disciplina da OAB, (art. 22, parágrafo único), que elenca en-tre os deveres do advogado “VII – aconselhar o cliente a não ingressarem aventura judicial”. A inovação da prática jurídica ou estágio curri-cular em direito muitas vezes está em ousar (sapere aude!, diz Kantquanto à autonomização da pessoa no seu projeto de emancipação). Otempo específico da academia é exatamente de ousar, não propria-mente abusar das soluções que envolvam outros atores da vida insti-tucional (a aventura judicial). Mas não pode ser uma rendição a umapostura medianamente ética.

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O perfil do formando, componente teleológico a ser consideradono projeto pedagógico, sofre em sua densificação com a liquidez dacompreensão do papel e da natureza da profissão advocatícia. Ao mes-mo tempo em que esta se liga a uma função eminentemente pública, ada administração da justiça (CF/1988, art. 133), o exercício da profis-são é múnus privado. As disposições corporativas do estatuto profissio-nal, ao acentuar muito as prerrogativas e reservas funcionais em favordo profissional da advocacia, terminam por acentuar ainda mais essecaráter privado e compromete o exercício da advocacia no espaço pú-blico e político. Daí ser mais uma vez necessário acentuar o caráter daformação acadêmica, especialmente regida por princípios jurídicos deordem pública e uma responsabilidade social mais manifesta.

A reflexão sobre esse ponto é mais concernente às orientações te-leológicas das instituições e suas respectivas missões, sem nenhumjuízo (des)valorativo: surge uma distinção entre o direito instituído einstituinte. É o que Radbruch (2004, p. 145) distingue ao identificarque: “Justiça e segurança jurídica marcam o homem de direito demodo distinto ou contrastante: a justiça está apta a alicerçar a condutasuprapositiva e progressista em relação ao direito, e a segurança jurí-dica, por sua vez, determina uma conduta positiva e conservadora.”

O Empas-OAB se enquadra bem na confluência dessas duas mo-dalidades, inclusive unindo valores de uma e de outra, embora possarenovar-se com novos aspectos de criticidade e reformulação contí-nua de suas metas e métodos. Inclusive a fixação de um quadro de in-dicadores para que venha traduzir para a sua práxis a tríade ensi-no-pesquisa-extensão, uma vez que serve a um eixo de formação pro-fissional supletivamente à universidade.

Sem querer tornar mais complexa ainda a disciplina jurídica dosestágios, a Lei no 6.494/1977, que disciplina os estágios, apõe uma sé-rie de outros requisitos não previstos na Lei no 8.906/1994, como aproibição de estágio com particulares pessoas físicas (profissionaisliberais), que o estágio se caracteriza pelo fato de simultaneamente oestagiário está ligado a uma instituição de ensino (art. 1o, § 1o) e queesta é parte interveniente no processo de planejamento, execução,acompanhamento e avaliação dos estágios (art. 1o, § 3o), bem como fi-xação do regime da prestação, horário e jornada (art. 5o, parágrafoúnico).

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Urge distinguir, para evitar que os estágios sejam pura imitaçãoda práxis profissional. Horkheimer, citado por Reale (1991, p. 847)ao denunciar a instrumentalização da razão diz que uma manifestaçãodisso é o mimetismo, arcaico expediente biológico, segundo ele.

Quadro II – Comparativo entre os estágios enfocados

Estágio Curricular Estágio Profissionalizante – OAB

Legislação educacional, Resolução no

09/2004-CNE e Lei no 6.494/1977Lei no 8.906/1994 e Código de Ética eDisciplina da OAB

Responsabilidade/supervisão das IES.Serviço público

Responsabilidade do advogadoacompanhante. Liberal

Restrita a estudantes matriculados nasPráticas Jurídicas

Aberto a estudantes (últimos anos docurso) e bacharéis5

Predominantemente em NPJ da própriaIES

Em NPJ, escritórios particulares eórgãos credenciados

Fins: Projeto Pedagógico da IES –habilidades/competências

Código de Ética e Disciplina e ingressona Ordem

2. As ações do Empas-OAB

Em vista da diversidade de problemas, as ações do estágio sãoorientadas para cobrir uma vasta gama de modalidades de prestaçãodo serviço jurídico, a fim de que sejam mobilizadas competências ehabilidades mais plurais, variadas, adequadas ao ineditismo das ques-tões que se apresentam aos que atuam na área jurídica.

No caso bem particular do Empas-OAB, há uma preferência pe-las ações judiciais, uma vez que os casos que se apresentam deman-dam esse tipo de tutela. Mas se elenquem as alternativas.

2.1. Orientação jurídica e mediação

Tais modalidades são de grande valia: substituir uma opção pelalitigiosidade por uma outra de composição de interesses e pacificaçãode conflitos e educar, informar quanto aos direitos. Esta segunda mo-dalidade é praticada no Empas-OAB; a primeira, não.

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5 No Estatuto da OAB há uma restrição ao estudante que exerça atividade incompatível com aadvocacia.

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O aspecto marcadamente litigioso do processo civil está em cho-que com a paz e a concórdia que se perdem às vezes para sempre notranscorrer da lide. Para o carente, esse aspecto do processo é marca-damente incômodo, dado o modo convivial familiar6 e comunal, demútuas tramas e redes de dependência em que ele vive. Para o caren-te, o caráter duelístico do processo é algo não cotidiano, estranho,mesmo no Sertão bravio e rústico.

Um interessante trabalho de promoção de direitos por vias nego-ciais e mediação, apresentado no artigo de Alex Ferreira Magalhães,7

ilustra suficientemente bem o acesso à Justiça pelos mais carentes (otrabalho é desenvolvido nas favelas do Rio), a distância e desconfian-ça entre população e Judiciário (mesmo os Juizados Especiais), as ca-racterísticas da relação dos carentes com os advogados e estagiários eas motivações para fazê-lo. Quanto à Justiça, o problema das custasnão é o principal obstáculo, mas o universo estranho e hostil a um pri-meiro coup d’oeil. Os carentes buscam aliados nos advogados e esta-giários, pessoas que os compreendam, e não defesa de direitos ouconscientização sobre os mesmos. A chamada conscientização de di-reitos tem muito pouco resultado, segundo o articulista. As motiva-ções para a busca do “Balcão de Direitos” (nome do projeto) é mais“(...) um socorro num momento extremo”8 e um favor. É um sujeitonecessitado e sem altivez e não um sujeito livre e cidadão que buscaassistência. Diz o autor que

“(...) os favelados seguiam entendendo que a terra por eles ocupadas,não obstante lhes fosse fundamental, não representava um direito, mas nãopassava do plano da necessidade, (...) algo não garantido, que não tem comoser resgatado, ‘buscado’ (...). A ‘necessidade’ configura um ‘menos’ em re-lação ao direito, este sim algo ‘forte’”.9 (grifo nosso)

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6 Tanto é assim que a própria jurisprudência e a lei já contemplam situações como “economia fa-miliar”, dentre outros institutos que consideram a convivência “gregária” dos carentes. A ino-vação trazida pelo Estatuto da Cidade quanto à nova modalidade de usucapião coletivo de habi-tações também coletivas é outro fato legal a indicar uma mudança na ideologia do direito legis-lado.7 Apud Ribeiro; Strozemberg, 2001. p. 153-166.8 Idem. Ibidem. p. 158.9 Idem. Ibidem. p. 158.

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O acesso do carente – e do cidadão em geral – ao processo judicialnão pode ser a única via de efetivação da satisfação jurídica. Isso parececlaro. Diversos autores, inconformados com a lentidão e emperramen-to do Judiciário, propugnam um acesso “social” aos benefícios da or-dem jurídica justa, passando ao largo da via judicial. Diz Bezerra(2001, p. 136-137) que “o processo tem, sobretudo, função política noEstado Social”. E para isso o autor citado, invocando exatamente omandamento constitucional do pleno acesso a uma tutela justa, diz paranão “esquecer das formas extraprocessuais de acesso, quiçá mais con-dizentes com a realidade social”.10 Libertando o acesso à justiça damera pretensão/satisfação individual, continua o mesmo autor (p. 137):

“Nesse passo, a visão social de acesso ao processo e à justiça, já que oprocesso judicial não é a única via de acesso à justiça, nem mesmo a preferí-vel, é a de que os mecanismos utilizados devem servir de meio pacificadorde conflitos.”

O que mais poderia se aproximar do tipo de atuação que se praticano Empas-OAB e em outras experiências é fortalecer os vínculos eprocedimentos funcionais em parcerias. Isso viria permitir que a solu-ção administrativa das questões, muito mais céleres que as delongasjudiciais, passassem a um primeiro plano no caso das demandas porbenefícios da seguridade social. Mas isso passa por acertos entre ato-res políticos talvez não tão interessados precisamente em alargar aconcessão de benefícios.

As várias formas de solução e prevenção de litígios enriquecem odireito e já são exercitadas, ou pelos ultra-incluídos, que utilizam a ar-bitragem e mediação nas relações jurídicas internacionalizadas, evi-tando a lentidão do Judiciário e os prejuízos dela decorrentes, ou pe-los excluídos, que utilizam formas marginais de composição pela leido mais forte. Em todo caso, as diversas ordens normativas que vão seinserindo alternativamente ao direito oficial postulam a apreciaçãoindividual de seu caso, muitas vezes prescindindo de um conteúdopróprio de justiça, o que é um sinal preocupante a motivar ainda maisas reformas do Judiciário.

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10 Idem. Ibidem. p. 136.

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2.2. Os processos coletivos e os individuais

O exercício liberal das profissões jurídicas privou-as de uma açãopública e mais efetiva titularizando as coletividades. As restrições efalta de amparo legal para as ações coletivas prejudicam o trabalho doEmpas-OAB, que patrocina mais causas individuais e também homo-gêneas. A modalidade dos processos coletivos traz a indubitável van-tagem da mobilização e empoderamento mais perceptível. Os atendi-mentos individuais, no entanto, resgatam a pessoa de uma tão-somen-te vinculação geral a uma categoria ou condição social.

Os processos judiciais coletivos, que em 2005 celebraram os 20anos da ação civil pública, manejados pelo Ministério Público e ou-tros legitimados pela Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985, formam umgrande avanço em direção de um direito processual coletivo. Reite-rando uma leitura transdisciplinar desse fato dos processos e deman-das coletivos por direitos, voltamos a Bauman (2001, p. 41-42). Este.comentando Claus Offe, diz que o fenômeno da ação coletiva é umasaída pela força do número dos carentes, que, não tendo força indivi-dual, se unem para realizar seus intentos. Isso no quadro da primeiramodernidade, na qual ainda havia interesses comuns, que Baumandiz não haver mais na modernidade “líquida” em que se vive atual-mente. Na primeira modernidade,

“(...) as privações se somavam, por assim dizer; e, uma vez somadas,congelavam-se em ‘interesses comuns’ e eram vistas como tratáveis apenascomo um remédio coletivo. O ‘coletivismo’ foi a primeira opção de estraté-gia para aqueles situados na ponta receptora da individualização mas incapa-zes de se auto-afirmar enquanto indivíduos se limitados a seus próprios re-cursos individuais, claramente inadequados”.11

Ele reputa remota tal possibilidade. Situa essa negação dos pro-cessos coletivos (e aí se inserem os que demandam direitos, inseridosnos processos sociais mais complexos).

A tessitura do processo ainda é o processo individual (cf. art 1o,parágrafo único, da Lei no 7.347/1985: se os beneficiários de umaação podem ser individualizados, é vedada a ação civil pública). Oslitisconsórcios ativos são tratados restritivamente na disciplina do

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11 Idem. Ibidem. p. 42.

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processo civil (cf. alteração do art. 253 do Código de Processo Civilpela Lei no 10.358/2001). Isso tem um valor, muito claro, apesar dodemérito de se ligar a uma conjuntura individualista do direito oci-dental liberal e burguês: possibilitar a apreciação do caso concreto in-dividual.

O valor de uma pacificação social pela linha média de satisfaçãoda sociedade em sua demanda pelo justo não contraria a apreciação decasos particulares (até porque mesmo as vias extraprocessuais de so-lução de conflitos não podem deles fugir), pois é no caso particularque se mostram muitas das violações dos direitos e o choque de inte-resses. Bourdieu (2003), ao distinguir a “miséria de posição” da “mi-séria de condição”, ajuda a fundamentar o argumento deste trabalhoquanto ao não-abandono da via judicial e do processo, com o argu-mento do cientista social. A pobreza, a condição do carente não podee nem deve ocultar, na vastidão diluída de uma abstração conceitualou ocultação ideológico-militante, as demandas localizadas e parti-culares. É a distinção outra que faz Bourdieu (2003, p. 13) quanto àgrande e à pequena miséria:

“Estabelecer a grande miséria como medida exclusiva de todas as misé-rias é proibir-se de ‘perceber’ e compreender toda uma parte de sofrimentoscaracterísticos de uma ordem social que tem, sem dúvida, feito recuar a gran-de miséria (menos, todavia, do que se diz com freqüência) mas, que, diferen-ciando-se, tem multiplicado os espaços sociais (campos e subcampos espe-cializados), que têm oferecido condições favoráveis a um desenvolvimentoda pequena miséria.”

Decorre daí, ao nosso ver, a revalorização do tratamento judicialdas questões de direito que irrompem na vida dos carentes, não obs-tante o respeito pelas lutas coletivas e do que se poderia chamar direi-tos homogêneos dos carentes. O processo judicial ainda permite oresgate do valor do carente não como um número diluído em umacondição sócio-econômico-política que se universaliza e de modocrônico, mas como um indivíduo, um caso concreto e particular. Sobesse fundamento é que se realça, mais uma vez, o direito do carente aoprocesso judicial, como um bem jurídico e social que não pode ser ne-gado pois é, se não o único, o atual principal meio de apreciação deseu caso particular, da privação específica por que passa como indiví-duo ou grupo.

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Quadro III – Tipologia básica da prestação de serviço jurídico

Gracioso:Orientação/Administrativo

ContenciosoIndividual

Contencioso Coletivo

Não-resistência ao direitopostulado

Direito resistido ouviolado

Direito resistido ouviolado

Habilidades técnicas Habilidadestécnico-jurídicas

Mobiliza habilidadesjurídico-políticas

Circunscrito:cliente/administração

Envolvente: OAB,Fórum, D.P.

Abrangente: sociedade,MCS etc.

Instrumentos atépré-formatados

Petições adequadas àprestação

Múltiplos meios,inclusive judicial

Bem utilizado no Empas Muito utilizado noEmpas

Não utilizado no Empas

3. Dificuldades e perspectivas

O processo civil no ordenamento jurídico e político, premissa ne-cessária no presente trabalho, é regulado pelo interesse público, que,para manter os espaços de liberdade individual, concentra a legitimi-dade da força e da coação no Estado. Mesmo que o direito materialseja de interesse privado, o processo que viabiliza o reconhecimento,proteção e efetivação desse direito é público.

Por sua vez, as dificuldades mobilizam um tão grande número dehabilidades e competências que a prática jurídica forma e define umbom profissional. Além do estímulo profissional e capacitação nastécnicas processuais em juízo, a formação ética e a responsabilidadesocial logram propor um profissional qualificado e adaptado às ne-cessidades e urgências da vida cotidiana daqueles que são os potenciaisconsumidores de serviço jurídico.

3.1. Um silêncio eloqüente

Tomando o aspecto social e político do processo, pode-se fazeruma primeira incursão: não há menção expressa ao “carente” – a op-ção terminológica deste trabalho – no Código de Processo Civil. Bas-ta se tomar a letra do Código respectivo em uma exegese gramaticalliminar.

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No Código Civil, ao enriquecimento ilícito, com o nome técnicode “enriquecimento sem causa” (arts. 884 e 885), não existe o oposto“empobrecimento sem causa”, embora se depreenda do primeiro aexistência do segundo. No Código de Processo Civil, Lei no 5.869, de11 de janeiro de 1973, em nenhum momento o carente, como tal, é ex-pressamente mencionado. A pobreza como termo também não apare-ce. No Código Civil, Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, apareceuma vez o termo pobreza (na dispensa da taxa de casamento), e os ca-rentes, como termo nas disposições referentes aos codicilos e esmolascomo disposições de última vontade. É estranho que uma condiçãotão necessitada de tutela jurídica seja silenciada.

É bem certo que não aparecem os termos rico e riqueza, mas noCódigo Civil aparece o termo bens, muito vinculado ao fato socioeco-nômico da riqueza, aparecendo 315 vezes. No Código de ProcessoCivil, aparece 262 vezes o termo. Isso sem contar com as ocorrênciasdo termo coisa, no sentido de bens. Em suma, a falta de menção explí-cita ou o silêncio sobre a realidade da pobreza traz o inconveniente deesta ser tratada mais nas leis sociais e administrativas, fora de umaambiência cidadã do processo e leis civis.

3.2. Como defender o autor que tem razão

No Código de Processo Civil, diversos dispositivos acenam paraa pertinência dessa antecipação do mérito, esse “prejulgamento”quanto a uma parte que tem razão – art. 404: “É lícito à parte inocenteprovar com testemunhas.” Pela própria natureza do serviço doEmpas-OAB, os serviços são buscados pelo cliente, que no processoé o autor que tem razão.

Inicialmente, ter-se-á como válida liminarmente a constatação deque o carente no processo figura predominantemente como o “autorque tem razão”, expressão emprestada do douto Marinoni, um arautoda efetividade e celeridade do processo. Trata-se daquele que, tendo odireito agredido ou negado, tem o ônus de acionar a Justiça institu-cional e esperar o evolver dela, com evidente prejuízo inicial ao seudireito ou pretensão.

Essa opção liminar tem razão de ser quando adotada uma perti-nente apreciação em sede da história e da sociologia jurídica (com

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amparo nos dados da estatística judiciária), pelas quais se podemadiantar os prejuízos históricos dos carentes – nesse caso coletiva-mente, os “empobrecidos” – pelos processos sociais, políticos e espe-cialmente econômicos perversos. As relações jurídico-processuaisenvolvendo partes hipossuficientes, tirante as atinentes ao direito defamília em ambas, podem compartilhar o mesmo status social e eco-nômico; no processo civil, os carentes aparecem como autores, na pos-tulação de direitos previdenciários, de consumo, vizinhança (paraisso fica aberta a possibilidade de um trabalho estatístico), dentre ou-tros. Esse “autor que tem razão”, que comparece perante o juízo cível,muitas vezes pelos meios precários da assistência judiciária, umasemi-inércia a seu serviço.

Embora a ciência jurídica, especialmente aquela que busca na rea-lidade dos fatos os dados para a sua elaboração, também aceite que oautor é aquele que busca o direito com uma certa razão inicial, é razoá-vel que essa presunção do carente como o “autor que tem razão” encon-tre dificuldades, dado o caráter abstrato que tem a ciência processual,principalmente quando se invocam aqueles institutos processuais ga-rantistas e sua interpretação liberal tradicional.12 Por isso, Ramos Jú-nior (2000, p. 32) adverte contra a antecipação de tutela e efetividadeda prestação ao autor (que tem razão) com risco de prejuízo para o di-reito do réu: “é privilegiar, sem fundamento nas garantias processuaiscontidas na Constituição Federal, as supostas prerrogativas do reque-rente”. Isso, para o autor citado, subverteria a administração da justiçacomo princípio para o vencedor e vencido, simultaneamente.

3.3. O tempo corre contra quem tem razão

Uma das principais dificuldades da prestação do Empas-OAB équanto, no aspecto temporal, à prestação contínua do serviço, dadasas naturais descontinuidades das turmas. Também quanto à demorano tramitar dos processos, quando são questões de cunho alimentar.

Desviando-se da mais óbvia dificuldade quanto aos prazos judi-ciais, o réu “que não tem razão” no sistema atual é totalmente bene-

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12 As dificuldades para a proposição de uma ação são tantas, especialmente quanto ao ônus pro-batório que se impõe ao autor, que há essa presunção tênue de que o que entra em juízo tem umarazão para fazê-lo.

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ficiado,13 pois aufere todas as graças decorrentes da demora do processo,podendo inclusive, pela sua relação moral e jurídica com o bem da vidadele pleiteado, vir pô-lo a perder, fazendo zombar da Justiça, ao frus-trar-lhe a eficácia do provimento final, como atestam muitos autores.

O processo, quanto ao tempo, se gere por diversos dispositivos doCPC, e dentre os fulgurantes está o art. 125, inc. I, que dá ao juiz a in-cumbência de zelar pela “rápida solução do litígio”. O art. 130 doCPC e mais recentemente a reforma do art. 273, dentre outros, eleva-ram a um nível mais alto a urgência do resgate de uma celeridademaior e até uma sumariedade nas tutelas de urgência e antecipadas,antes alvo de muita suspeita. A Emenda Constitucional no 45 veminovar nesse tema.

Em matéria fática trazida ao processo, ao autor que tem razão seimpõe o ônus psíquico da insatisfação do seu direito, e, quando este écarente, as urgências que lhe cercam a vida são maiores, bem como aperda da titularidade do tempo (mesmo o desempregado administra otempo de modo “deficitário”) com a submissão a horários e expedien-tes de trabalho, demora nas locomoções e tudo mais.14 A privação dodireito afeta-lhe mais decididamente a vida e mesmo a sobrevivênciadigna e a física.

As demandas propostas pelos carentes na área cível em geral sãode baixo valor, pois estão em proporção com os seus negócios jurídi-cos. Estranhamente, as indenizações por danos morais evocam a “im-portância” e as funções do que foi prejudicado. As ações de cunho ali-mentar ou as que envolvem verbas devidas pelas políticas sociais eprevidenciárias exigem provas contemporâneas aos fatos, e aí o tem-po e a informalidade da vida do necessitado se conjugam para tornardifícil seu direito: o carente é aquele que não se prepara nem se armapara o processo, produzindo provas ou registrando eventos que ex-pressam a lesão de seus direitos.

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13 Cite-se a esse respeito a atual disciplina probatória. Não seria o correto, em se considerandojuridicamente o fato do litigante carente, adotar as teorias combinadas de Bentham e Laband,que estipulam caber a prova à parte mais apta a produzi-la, determinado isso caso a caso pelojuiz? Cf. Pacífico, 2000. p. 84.14 Para o carente, a deficiência na representação judicial e a falta de estrutura dos órgãos deassistência judiciária acarretam o descumprimento de prazos e do conteúdo das diligências, eassim os processos se arrastam entre sucessivos despachos e suas reiterações ou são fatalmenteatingidos pela extinção sem julgamento de mérito.

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A esse respeito é a lição de Cappelletti (1988, p. 76): “a duraçãoexcessiva é fonte de injustiça social, porque o grau de resistência docarente é menor que o grau de resistência do rico; esse último, e não oprimeiro, pode normalmente esperar sem grave dano uma justiça len-ta”. Melhor ainda se o rico é o réu sem razão. Ou a Fazenda Pública.

4. Concluindo

A advocacia popular começa não propriamente com o estágio ju-rídico, mas ele é um meio privilegiado. O conhecimento dos linea-mentos normativos desse meio ajuda a entender a missão e a finalida-de. Mas é propriamente a ação, que, segundo Arendt (2004), é sempreeminentemente política, que faz a advocacia popular nos estágios ju-rídicos ser um meio de concretização da justiça e formação de habili-dades estratégicas.

O Empas-OAB de Sousa, Paraíba, certamente contribui para, deum lado, propiciar o acesso de qualidade à justiça institucional, e, deoutro, desenvolver e ampliar a formação dos estagiários ali atuantes.Claro que aspectos bem delineados da orientação profissional liberalperpassam o seu horizonte de finalidades e estrutura, mas isso se inse-re coerentemente dentro de seu papel institucional, cabendo à institui-ção de ensino realizar o que por sua vez lhe cabe.

Acentue-se o levantamento direto de diversas situações e proble-mas que se colocam dificultosos para o acesso do pobre à Justiça. Elesdesafiam os repertórios jurídicos, mas sobretudo permitem umatranscendência em direção ao sociológico, ao histórico e ao econômi-co. A prática real, além de vetor de inclusão social, lastreado na res-ponsabilidade social da entidade de classe dos advogados, induz a umaprimoramento técnico e científico da atividade da advocacia estraté-gica, aquela que se pauta em desafios aceitos e bem conduzidos.

O diferencial final deste trabalho é o foco na pessoa assistida. Otratamento judicial dos casos concretos estabelece um contato que sealonga e permite uma interação maior, a permitir uma educação paraos direitos, o que na advocacia privada fica mais difícil fazer.

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V.3. Direitos humanos dos pobres:entre a violação e a exclusão

Paulo Henriques da Fonseca*

1. Introdução

Este trabalho parte de preocupação quanto à democratização/po-pularização dos direitos humanos, sempre em risco de ser um discur-so apropriado pelas hegemonias, seja dos Estados, mercados ou gru-pos e minorias fortemente identitárias. O estranhamento das pessoascomuns perante o manuseio retórico dos direitos humanos, o precon-ceito que a população em geral vota aos direitos humanos, como “di-reitos de bandidos”, conforme preocupação de Nancy Cardia (1995),devem ocupar e tensionar o estudo desses direitos na universidade.Maria R. Kehl (2004), descrevendo a ira das pessoas quanto à idéia dedireito para presos, como se a um segmento social se pudessem sus-pender a dignidade e garantias mínimas de vida, mostra a dimensãopassional que cerca a retórica dos direitos humanos.

Há uma hibrys de sentimentos desconexos em torno do tema, queremete a posição diversa os diferentes atores na fruição desses direi-tos (“e pras vítimas, não têm direitos humanos não!?”). Essa hibrys évista por Bobbio (1992) na mistura1 de direitos, exigências e aspira-

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* Mestrando em Direitos Humanos do PPGCJ-UFPB, bolsista da Fundação Ford/Carlos Cha-gas e advogado.1 Hohfeld (1995) vê na expressão “direito” muitos sentidos: imunidade, competência, privilé-gio, daí a perplexidade popular sobre direito “de bandidos” ter a ver com as teorias do direito;não é mero senso comum “ignorante”.

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ções; aparece, no caso concreto dos direitos humanos, na imprecisãoque cerca os domínios da violação dos direitos e da exclusão social.Diante da novidade que a universalização e a multiplicação dos direi-tos geram, é necessário ver como as idéias liberais, como a igualdade,a liberdade e a dignidade, são manuseadas pelos diversos atores. Ahibrys de uma exploração inclusiva e de uma liberdade exclusiva(esta palavra nos dois sentidos: no de uma liberdade que é só de umsegmento e contra outros segmentos sociais) aparece na história dosdireitos humanos. Ante o horror da exclusão contemporânea, muitosprefeririam poder ser ainda explorados, dentro da dinâmica social doindustrialismo moderno.

Apesar da proximidade que se quer dar à exclusão e violação,dois pilares da temática dos direitos humanos, elas, em um esforço devulgarização positiva desses direitos, devem ser trabalhadas de modobem distinto, pois impactam muito distintamente a opinião comumdas pessoas: as violações são mais sensíveis por sua evidência. Já asexclusões precisam se legitimar cognitivamente, especialmenteaquelas mais sujeitas a uma naturalização, como a exclusão digital ouo desemprego estrutural e crônico. A violação ressalta a vítima e oagressor, embora haja níveis diferenciados em que ocorre, afetando asua percepção social. A exclusão mostra mais os “autoculpados”, osincapazes de se manterem incluídos, apesar do melhor dos mundospossível proporcionado pela generosa aventura liberal-democrática-industrial. Os impactos das violações e exclusões na esfera da subjeti-vidade estão sendo bem pesquisados pela psicologia.

As diferenças de acesso à Justiça no caso das violações ou das ex-clusões revelam também as suas arquiteturas bem distintas. Obser-va-se igualmente que a resposta do direito no caso das violações temsido mais visível na sua (in)eficácia do que no caso de superação dasexclusões: neste último caso os direitos sociais parecem um primopobre dos direitos civis e políticos. O garantismo jurídico supera demuito ainda a impostação de um direito que sirva às mudanças, à pro-moção de direitos. Uma “geração” dos direitos humanos guarda cum-plicidade com isso.

Pelo método analítico-comparativo, propõe-se confrontar viola-ção e exclusão com o cotidiano das expectativas e percepções comunsdos diversos atores no cenário dos direitos humanos e as idéias-forçaque movem as nossas instituições, os seus princípios fundamentais.

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Não se vai fazer uma análise dos conceitos em si mesmos; ultrapassaa singeleza deste trabalho. Isso tudo na perspectiva do pobre, o natu-ral candidato a todas as violações e exclusões, também o protagonistados direitos humanos. Tudo de modo a servir melhor a uma perfor-

mance comunicativa dos direitos humanos que, guardados os limites,sirva mais de provocação teórica e diálogo entre a militância e a pes-quisa em direitos humanos.

2. Violação e exclusão: algumas distinções

Uma maior clareza dos contornos de cada uma delas diz respeitodiretamente à legitimidade, aceitação e “apetecibilidade” dos direitoshumanos. Uma tarefa então da universidade, ao adotar a temática dosdireitos humanos para dentro de seu quadro de “regulação” do saber, éconferir a esses direitos uma base de compreensão que permita, porexemplo, harmonizar e dar uma inteligibilidade comum ao que agoraainda aparece tão (in)distinto: as violações e as exclusões. Isso diz res-peito ao fundamento interpretativo e operativo dos direitos humanos eà necessidade de legitimá-los em nível científico. É razoavelmente cien-tífico que um mesmo ente de razão, no caso o conceito de alguns doselementos nucleares desses direitos, não pode servir como base a duasou mais práticas e visões contraditórias ou dissonantes. Aplique-se omesmo, com desconto, às relações entre os conceitos focados: violaçãoe exclusão podem ter pontos de partida e chegada bem diversos.

Drawin (2004, p. 45), chamando a atenção para um hiato que senota crescente entre o discurso retórico universal dos direitos huma-nos montado em princípios filosóficos e as ações concretas dos gru-pos atuantes, evoca o papel da sistematização. A renúncia a um trata-mento crítico, a rendição a um realismo cínico que aposta na confliti-vidade e triunfo final das forças sociais a substituir o direito pelo po-der são dois dos desafios a quem quer tenha se decidido pelos direitoshumanos. Nessa opção funesta, a violação mais que a exclusão é mo-tor de mudança social, pois em uma cultura e cotidiano de perplexida-de com a ampla repercussão dada pelos meios de comunicação e in-formação de massa não há uma percepção imediata e comum de queas duas situações são momentos de um mesmo eixo, que é a condiçãohumana degradada e sempre ameaçada por novas degradações. Por

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isso, uma ocupação de terras pelo MST é mais visível por ser violaçãoa um direito, o de propriedade. Difícil essa ocupação ser compreendi-da com uma saída possível para um quadro crônico de exclusão socialgerada pela concentração fundiária.

Entra também a dialética da tensão entre a esfera público-políticae a privado-moral na análise comparativa da violação-exclusão. A vio-lação corresponde melhor à privatização e individuação das questões,sua subsunção como sentimento de revolta, de comoção. A força daviolação se dá com a intimidade fragilizada e exposta ao público tantoda vítima quanto do violador, e libera de pensar e agir na esfera públi-ca de um modo mais político. Zygmunt Bauman (2000, p. 17 e segs.),em brilhante ensaio, analisa o episódio de Sidney Cooke, um pedófiloque, ao ser libertado e voltar para casa, deu uma causa pública, umamotivação comunitária para as pessoas unirem-se em um protesto naInglaterra.

Outro evento interessante foi quando em São Paulo um tratoristadesobedeceu a uma ordem judicial de demolição contra uma mulherpobre. O episódio foi assumido na esfera do sentimento moral, deuma violação ao direito de moradia (e da intimidade do lar), não fa-zendo ponte para discussão mais ampla e de outro nível: a questão douso do solo urbano e da moradia. Quando uma favela é consumidapelo fogo, o nível de adesão sentimental é bem menor, restando a no-tícia e talvez um ou outro julgamento moral dos favelados.

Na dinâmica do direito, visível já na Constituição, as proteçõescontra violações e ameaças de violações2 são muito mais identificá-veis na tópica das leis. O mesmo não acontece com os que visam a im-plementar o combate à exclusão. Por exemplo, um fundo constitucio-nal que serviria a essa finalidade não sustenta ações de combate e er-radicação da pobreza, pois os recursos previstos viriam da taxaçãodas grandes fortunas,3 ainda não legislada.

Em síntese, sem querer de modo algum ontologizar as distinções,devem-se esclarecê-las, pois fazem entre si um jogo relacional que in-teressa ao tema dos direitos humanos.

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2 O art. 5o, incs. XXXV, XXXVI e XXXVII, da Constituição Federal enuncia os mais clássicosdeles.3 O art. 153, inc. VII, prevê essa modalidade tributária na competência da União ainda não im-plantada.

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As violações e exclusões, repita-se, são momentos ou irrupçõesem um mesmo eixo de degradação da condição humana, mas se ex-pressam de modo diferenciado, e tal diferença se impõe a uma apreci-ação sistemática no estudo dos direitos humanos.

Quadro I – Visualizando elementos de umadiferenciação possível

Violação Exclusão

Pólo passivo Vítima – importante:identificada. Qualidadereconhecida: sofrimento

Culpado – dificuldade atéestatística deidentificar/quantificar osexcluídos

Pólo ativo Identificável: violador eagente

Mal identificado:mercado, tecnologia

Ação causal Ostensiva: comissiva ou(–) omissiva. Nexo maisevidente causa-efeito

Camuflada e naturalizada:basta a mera omissão ouindiferença

Tutela estatal Justicialização, controle epolícia

Políticas públicas: só aspossíveis

Direitos afetados Civis e políticos maistipicidade (penal)

Sociais: mais ideaisjurídicos e sociais

Percepção subjetiva Sentem-se a violação eintencionalidade

Naturalização eautoculpabilização

Interesse/divulgação Fatos impactantes,“furos” jornalísticos

Mais para o Estado,Academia, ONGs, NMS

Ocorrências históricasmarcantes

Holocausto judeu:racismo explosivo ehistórico. Atoresdefinidos. Dramático

Fome: África. Povostribais anônimos.Abandono. Situação(racismo) crônica

3. Acesso à Justiça e inclusão social: uma base para osdireitos humanos

A democratização de uma cultura dos direitos humanos, ou umavisão de mundo rights based approach, passa pela consideração dasituação que já é emblemática da falta de acesso à Justiça como ex-pressão do deficit de inclusão social. Isso já mereceu a atenção de mui-

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tos pesquisadores e a abordagem sob várias dimensões como se apre-senta a exclusão/inclusão defeituosa. A quantidade de nuanças emque essa falta de acesso à Justiça se revela, indo do pouco conheci-mento dos direitos por uma parcela considerável da população, pas-sando pelos altos custos e inefetividade do Judiciário, até o desenhoou arquitetura social que se funda na desigual e injusta distribuiçãodos bens, revela uma insuficiência instrumental do direito em lidarcom uma questão fulcral.

Passa o tema também por uma naturalização da desigualdade,dos jogos lingüísticos, para manter as assimetrias sociais e até a coop-tação do tema para dentro dos esquemas comportados da Academia,criando um “mercado”, o dos pesquisadores da exclusão social e doacesso à Justiça. Proporciona ainda, inclusive, ao mundo jurídico eacadêmico de modo geral, a ocasião para um exercício da criticidade,enquanto se conservam as práticas internas ultraconvencionais de se-letividade, de exclusão, de negação de direitos. Um novo senso co-mum em relação à temática dos direitos humanos permitirá uma cres-cente compreensão destes em termos de harmonizações atualmentenecessárias: como podem servir tais direitos ao mesmo tempo à hege-monia e à contra-hegemonia, às vítimas e aos algozes, à emancipaçãoe à regulação, à militância concreta e às razões universalizadas? Oudevem servir para isso?

Diante de uma opção pela publicização e democratização da te-mática dos direitos humanos,4 um tratamento meramente jurídico daquestão dos direitos humanos não mais se sustenta, e daí o desafiopara os estudos superiores nessa temática: construir um saber (maisum) especializado, com corpus científico e racionalidade bem argu-mentada, mais uma “enteléquia”, ou abrir-se epistemicamente comouma plataforma trans e multidisciplinar na abordagem das violaçõese exclusões. Assim se poderia, por exemplo, proporcionar um diálogocom a militância em direitos humanos e os estudos aprofundados nes-sa área temática.

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4 Boaventura de Sousa Santos, no conjunto de sua valiosa obra, acentua a necessidade de movi-mentos contra-hegemônicos que se comuniquem a partir de uma base comum, as “zonas de con-tato”. Isso de modo a formar um novo “senso comum”. A temática dos direitos humanos, peloseu caráter amplo, põe essa possibilidade.

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3.1. Direitos humanos como zona de contato transdisciplinar

Não se pode mais isolar o tratamento teórico dos direitos huma-nos das demais ciências que configuram o quadro de conhecimentos ecompetências na atualidade. E os estudos em nível de Pós-graduaçãoem Direitos Humanos devem abrir-se à competência trans e multidis-ciplinar para adentrar a realidade das violações e das exclusões.5 Se-não, será retirar-lhe um parâmetro de diagnóstico imprescindível paraa sua construção como um saber.

A relação epistêmica entre o direito e as demais ciências do ho-mem torna-se mais forte na exigência de um tratamento científico eeficaz de certas questões, e há vozes no próprio mundo do direito,como Lumia (2003), que chegam a afirmar que o conteúdo do direito,a matéria jurídica, se acha disseminado por vários outros saberes, napluralidade das ciências que têm nas relações sociais (e nisso o direi-to) seu objeto. Transponha-se essa observação para o campo dos di-reitos humanos e isso se amplia exponencialmente. Ficam justifica-dos a fortiori um diálogo, uma interface entre as diversas disciplinasdo saber que comportam o social, o político, o jurídico, o lingüísticocomunicacional etc.

Neusa Guareschi (2003), relacionando psicologia e direito, porexemplo, situa a relação na universalidade dos direitos humanos e naconsideração da alteridade e diferença que vão aparecendo nos sujei-tos. Ainda coloca a situação em que a psicologia, influenciando a for-mulação de políticas públicas, opera as distinções de esfera pública eesfera privada e o campo de abrangência dessas políticas. A autora ci-tada repete que as classificações de comportamentos e condutas embases essencialistas e sob normas sociais universais podem deixar osdireitos “menos humanos”, e cita o exemplo da pesquisa de Hoenisch(2002) sobre o uso de conceitos de psicologia nos laudos periciaispara mudança de regime penitenciário. A referida pesquisa encontrouo emprego “irregular” e equivocado de termos psicológicos reduzi-dos a chavões eugênicos e racistas, baseados nas teorias da degene-

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5 Por exemplo, a, em tese, competência do direito diante das violações não se repete quando dasexclusões. Já a sociologia e a psicologia possuem instrumental teórico mais hábil para detectar aexclusão. Também a economia, apesar das críticas quanto aos indicadores econométricos e es-tatísticos empregados, mobiliza essa competência.

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rescência. Vê-se aí uma ponte entre violação e exclusão: a subjetivi-dade singular e diferenciada não contemplada em sua expectativa desatisfação. Nesse ponto surge outro elemento diferencial.

Ainda Neusa Guareschi (2003) encontra outra interface entre di-reitos humanos, ciências sociais e psicologia quando adentra a di-mensão da intencionalidade estatal ao formular políticas públicas. Aracionalidade do Estado, que é nutrida sabidamente pelas ciênciasnão tão emancipatórias (embora o conjunto multidisciplinar delas opossa ser), a partir de conceitos gerais e abstratos, só considera os tra-ços essencialistas dos destinatários daquelas políticas, não deixandoespaço para as considerações das demandas alternativas e necessida-des diferenciadas. A heterogeneidade dos sujeitos não é considerada,em princípio, apesar dos esforços dos teóricos das políticas públicas acolocarem: “Os aspectos pertinentes à ética individual e institucionalno contexto da gestão efetiva e integrada de políticas públicas sãoconsubstanciados em termos da consciência ética em nível individuale da consciência ética em nível coletivo”, diz Farias Neto (2004, p. 19).Esse autor da área da economia vincula ao desenvolvimento sustentá-vel o empenho ético dos atores envolvidos nas políticas públicas, su-perando a concepção como ato de Estado só vinculado ao conjuntonormativo instituidor.

O isolamento do direito como ciência, em nome de uma purezaconceitual e epistemológica (e daí em decorrência como prática ecomo práxis), é tentação sempre freqüente a incidir no que Capra(2002) denuncia no instigante livro Ponto de mutação: a falência e es-clerose do pensar pela desarmonia entre as dimensões do yin e yang

no Ocidente (ainda cartesiano),6 a dificuldade de romper os monoli-tismos (pseudo)científicos no tratamento da realidade, opondo a em-piria e a teoria, o prático e o crítico. O projeto da modernidade quantoao saber exigiu que este, em um primeiro momento, se autonomizasseda pura contemplação para ganhar, como ciência, um caráter inter-ventivo, experimental e de observação.

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6 Segundo o autor supracitado, exemplificando uma dessas desarmonias, por analogia aplicávelà vivência do direito como teoria e prática, “o hábito de evitar as questões sociais na teoria eco-nômica está intimamente relacionado com a impressionante incapacidade dos economistas deadotarem uma perspectiva ecológica” (Capra, 2002, p. 216). O “econômico” sendo o Yang e o“ecológico” o Yin, na dialética de Capra.

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3.2. Pobreza e direitos humanos: saberes competentes e etapas

de formação

A pobreza é uma categoria nuclear da inclusão social (e seu pardialético, da exclusão) e do acesso à Justiça. Seu conceito, no entanto,é problemático, dizem Salama e Destremeau (1999). Cada pobreza évivida de modo singular7 pelo titular hipossuficiente de direitos. Cadauma delas se apresenta como um caso concreto, pois a fatalidade doprocesso social e histórico de “individualização”, segundo Bauman(2001, p. 44), sociólogo polonês, leva a uma situação atual em quenão é possível o retorno puro e simples às lutas coletivas: as questões,os desejos e as necessidades individuais não podem mais ser simples-mente “somados” em uma “causa comum”. A violação, mais que aexclusão, põe à mostra a causa comum.

Essa abordagem, de certo modo desolada e talvez ambientada emum contexto social e cultural primeiro-mundista, deve ser considera-da, mesmo que esse processo de individualização tenha forjado umasociedade ou cultura de direitos que não mais guardem interfaces deindivíduo para indivíduo. Mas o caso concreto e singular não precisaser marcado de tal imiscibilidade, como parece postular Bauman(2001). Pierre Bourdieu, no conjunto de sua obra, recupera para o ní-vel da pesquisa social a riqueza do caso concreto, as possibilidades deuniversalização do que é relevante nele. Todas as privações têm umtraço de comunhão entre si, cujo valor é realçado pelo discurso cientí-fico; porém, o discurso descritivo sobre o caso concreto, e não descri-tivo somente, mas o declaratório e constitutivo de direitos, representauma conquista simbólica de altíssima relevância.

Nos campos meramente jurídico, econômico, sociológico, psico-lógico, dentre outros, a conceituação do pobre, dos destinatários emgênero e por excelência do conjunto dos direitos humanos é extrema-mente difícil. Mas a violação o revela e a exclusão o naturaliza, diluin-do a força da sua presença ostensiva, especialmente em sociedadescomo a brasileira. É uma trágica negação do princípio em que in cla-

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7 Mesmo que isso não seja negação de que nos planos estatístico, sociológico, político, legal,dentre outros, seja legítimo tratamento teórico e científico da pobreza. Mas ao Judiciário, noprocesso, vai o caso concreto.

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ris, cessat interpretatio.8 É necessária essa clarificação para um ope-rar mais eficiente dos direitos humanos e sua democratização, sua as-sunção em cultura geral. A segmentação do fenômeno da pobreza emuma dúzia de hipossuficiências distintas faz com que o espetáculo daviolação revele uma solidariedade ao conceito.

Como os direitos humanos aparecem com nitidez nos casos dasexclusões e, mais ainda, das violações, parece muito verdadeiro o quediz Ken Booth, citado por Lima Júnior (2002), que a universalidade,no caso dos direitos humanos, se dá ao focar as comunidades de viti-mados. Os human rights se definem, no dizer de Lima Júnior (2002,p. 35), pelos human wrongs, cujo “foco é na vítima, naquele que sofreviolência”. Os direitos humanos, não obstante a crítica de seu elitismo(cf. Rabenhorst, 2001, p. 38), fornecem um campo apropriado paraum conceito de carente, superando os relativismos radicais que fazemdiluir a importância dos destinatários dos direitos humanos em umamiríade de segmentos sociais identitários, com um sério prejuízo paraa sua inteligibilidade pelo conjunto maior das pessoas. O risco é a ra-zão científica se apropriar e cooptar o conceito de direitos humanos,regulando-o para a não-emancipação, ao esconder as vítimas e, as-sim, revitimizá-las.

Levado por essas motivações iniciais e elegendo uma situaçãoreal de grande relevância na prática diária dos militantes dos direitos,o fato da pobreza – ou, tomado no seu concreto, o pobre – é o que sepretende sinalizar neste artigo. Decerto que não é tarefa fácil fazer in-teragir a ciência “pura” do direito com a situação da pobreza. Indo daconceituação do pobre, das várias nuanças que envolvem o tema dapobreza e do pobre, isso enseja uma postulação prática, ou seja, o lu-gar do pobre como sujeito de direitos, à luz das recentes possibilida-des teóricas, doutrinárias e políticas nascidas com a nova Constitui-ção de 1988 e dos tratados e convenções internacionais de direitos hu-manos aos quais o Brasil adere.

Tais possibilidades, por sua vez, são tributárias de uma evoluçãono saber jurídico em que as novas teses de uma “discriminação positi-va” desconstroem o conceito clássico de igualdade entre os titularesde direitos e obrigações, acendendo um debate crítico e produtivo

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8 Tradução “na evidência, cessa a interpretação”, da filosofia clássica e realista.

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inovador sobre as titularidades.9 Rawls (2002), propondo uma novateoria da justiça, em que resgata aspectos do contratualismo clássico,inova-o em vista de uma compreensão da justiça como eqüidade, su-perando a isonomia formal que tanto prejudica o pobre como parte noprocesso civil, embora sua doutrina acerca da justiça ainda tenha so-frido as reservas de Habermas (2002), descrente quanto a um contra-tualismo fundante do direito. A exclusão se serve mais dessa onda dadiscriminação positiva e das chamadas “ações afirmativas”, emboracom fraco papel dos segmentos sociais beneficiados, a desmerecer atese do contrato.

No que diz respeito ao eixo violação-exclusão em se tratando desegmentos sociais desempoderados, como os pobres/pobreza, gênerocomum para todas as exclusões e candidatos potenciais a todas as vio-lações, qualquer contratualismo que retire responsabilidade do Esta-do e desautorize os atores coletivos e transindividuais nas pactuaçõessocial e política com base em direitos deve ser tratado com reservasem uma lógica de emancipação.

Um ponto de passagem obrigatório na elaboração científica que sequeira sólida para qualquer estudo jurídico teórico, crítico ou prático éa consideração da ascensão dos direitos humanos, especialmente namanifestação positiva na Constituição sob a forma dos direitos funda-mentais. Isso porque a “politicidade”10 das opções do constituinte – tro-cada pelo mais fácil da formalidade, no processo civil – ante as situa-ções sociais, políticas, econômicas e as opções históricas e ideológicasaparece de modo não só fulgurante como eficaz e cogente na Carta Po-lítica. É, pois, nesta que se devem buscar os argumentos sistêmicos ina-fastáveis para embasar uma politicidade e eticidade do direito em que,sob o prisma unilateral das “garantias” formais, do status negativus,não se obstrua ou dificulte o acesso à Justiça e ao processo justo e efeti-vo, tanto para as violações quanto para as exclusões.

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9 Os processos coletivos, a defesa de direitos difusos, coletivos e homogêneos, embora a neces-sitar de mais empenho científico processual, já é uma realidade. A Lei da Ação Civil Pública e oEstatuto do Consumidor revelam essa tendência de superação da feição duelística do processojudicial civil.10 Ronald Dworkin (2001) trabalha esse aspecto da politicidade do direito e da justiça (institu-cional) no concreto do sistema anglo-saxônico do case law, nas decisões políticas dos juízes. Euma decisão política não necessariamente popular e “eleitoral”.

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Quadro II – Direitos fundamentais: modulações

Politicidades Substantivas Formalidades Adjetivas

Redução das desigualdades Igualdades reconhecidas perante a lei

Acesso à Justiça célere e efetiva Inafastabilidade da apreciação judicial

Promoção do bem de todos Reserva legal: “ninguém será obrigadoa fazer...”

Direito à informação de qualidade –boa impressão

Liberdade de expressão e depensamento

Acesso, permanência e progressão naeducação

Liberdade de aprender, ensinar váriaspedagogias

Trabalho como direito social eoportunidade

Liberdade no exercício das profissões eofícios

Exclusão: consentida Violação: sentida

Isso porque é na Carta Política que aparecem os vieses históricos,filosóficos e teóricos que triunfam na visão de mundo e na construçãoda matriz identitária dos sujeitos e das sociedades. No caso muito es-pecífico do presente trabalho, a consideração da violação-exclusãocomo momentos na mesma linha axial passa pela análise da ideologialiberal burguesa individualista, que predominou nas primeiras for-mulações dos direitos humanos. Isso que influenciou o constituciona-lismo e toda a gama de demandas históricas que aquela ideologia en-sejou pode ser retomado quando se nota que as violações devem sercombatidas, mais para garantir a segurança, ordem e legitimidade, aopasso que as exclusões devem ser consideradas, mas mantendo-se in-tacta a posição patrimonial conquistada pelo indivíduo. Expurga-seassim o risco de medidas redistributivas muito custosas para as elites.

E isso operando com restrições à tutela estatal e prejuízos na pres-tação jurisdicional, em nome de uma segurança jurídica “ordinária”.Assumindo o ponto de vista e a perspectiva dos carentes, no concretoe sistemático do incremento de uma cultura baseada em direitos hu-manos, valores e teses como a igualdade, a liberdade e a dignidade

humana mostram-se problemáticos, parciais e insuficientes. Em rela-ção ao momento político, cultural e histórico em que foram gestadosou assumidos pela razão pensante, não respondem às necessidadesconcretas dos despossuídos reais.

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Quadro III – Diálogo de conceitos em vistadas expectativas comuns

Violação Exclusão

Igualdade Consideração isonômica dasvítimas entre si e dosagentes violadores também.Não ter dois pesos e duasmedidas

Não essencialista, considerar acondição desigual nas políticaspúblicas. Foco também nasdiferenças, se elas levam àdesigualdade

Liberdade Liberdade: não um bemprivado, mas social ecoletivo. Promoção > defesa

A ser construída em suas basesmínimas. Emancipação eempoderamento que libere o Estado

Dignidade Satisfação da vítima e dasociedade

Consideração da pessoa além daestatística

Uma hipótese inquietante quanto à ambiência histórico-ideo-lógica liberal e burguesa dos direitos é que estes nascem ligados aoideal e luta pela liberdade. Colocando-se na perspectiva do pobre,essa conexão direito-liberdade é ao menos secundária, estando emum mundo deslocado dele. Para o pobre concreto e histórico, a neces-

sidade e não tanto a liberdade é que aflora como motivação principal.Diante da justiça institucional, o pobre busca não tanto o bem da liber-dade, mas vencer as necessidades que se tornaram insuportáveis. Osdireitos são “concessões” ou, menos ainda, “favores”. Nesse ambien-te, inicialmente de luta pela liberdade e segurança, claro que grandetendência será a guarda contra as violações. Estas serão transferidaspara a vida privada, e quando produzidas em grande escala, segundo aordem industrial nascente, serão naturalizadas em exclusão, que his-toricamente ainda não produziu uma onda de direitos humanos: foi aexploração, sim, essa ancestral da exclusão, que produziu as condi-ções que deram nos direitos de solidariedade, os de segunda geração.

Especialmente coerente essa visão se, analisando os direitos sociaissujeitos a contingenciamentos de orçamento e opção discricionáriados governantes, eles ingressam como bens jurídicos marginais na es-fera de cidadania mitigada dos pobres.

Para uma compreensão de uma efetivação dos direitos humanos,para os pobres a tríade necessidade-celeridade-satisfação deveria serinstrumentada em um processo que, diante da lógica das urgênciasalimentares, por exemplo, incrementasse a disciplina cautelar.

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3.3. A legislação social e sua efetividade

A hipossuficiência, a carência material, a desvantagem econômi-ca e social de certos indivíduos e grupos têm sido consideradas peloordenamento jurídico mediante a florescente (mas de certo modo in-frutífera) legislação social. A exuberância de leis sociais e as hesita-ções formais do processo, cada vez mais autônomo, do direito mate-rial produzem um estranhamento e uma esterilidade decisória. O po-vo tem a viva impressão de que ganha mas não leva. Só quando sofreuma violação (em especial nos seus direitos adquiridos) é que se podevaler dos inúmeros aparatos legais e processuais postos à disposiçãoda manutenção do status quo. As exclusões naturalizadas se aliam fa-cilmente à ordinariedade do processo lento.

A legislação social deveria estar muito próxima dos direitos hu-manos, mas opera-se um distanciamento, na medida em que estes fo-ram gerados a partir das diversas violações coletivas. Especialmentena história recente, foi-se tomando consciência de um traço comumde dignidade que estava sendo desconsiderado. Já a legislação socialnasce, não se nega, de pressões, mas também, e sobretudo, de uma ne-cessidade de pacificação, de relegitimação do Estado e mesmo de co-locação exitosa de recursos para maximizar um novo ciclo de acumu-lação. As leis trabalhistas, por exemplo, cumpriram esse papel histó-rico de substituir uma acumulação agrícola por outra industrial.11

Os direitos humanos nascem embalados de uma politicidade quefalta à legislação social e mesmo que justifica precisamente a tutelaestatal protetiva, a cidadania regulada de que fala Wanderley dosSantos. Na regulação social se pretendem ocultar as tensões tão-so-mente no exato limite de sua conflitividade, que se extravasa da natu-ralização crônica.

Os elementos de tensão são diversos, e aqui se desvia da incômodadiscussão sobre os compromissos históricos e pragmáticos do Estadocom certos estamentos sociais privilegiados. Mas não se pode deixar depelo menos supor liminarmente que a configuração dos sistemas deprestação de serviços e distribuição dos bens, materiais e imateriais,reais e simbólicos (às vezes mais valiosos que os reais), apresenta par-

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11 No caso brasileiro um pacto indústria-agricultura alterou isso: a não-regulação trabalhista dasrelações no campo, por Getúlio Vargas, mostra que as duas formas de acumulação podem coe-xistir, até certo tempo.

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cialidades que não podem ser creditadas a uma pretensa “natureza”mesma das coisas. No caso das violações, por exemplo, o modelo puni-tivo do Estado tende a se legitimar, reduzindo o papel da vítima, quetem duas alternativas: sofrer calada ou, ao provocar o Estado (caso daação penal), ser silenciada pela expoliação de seu sofrimento tornadopúblico, pois o Estado se assume como titular em substituição à vítima.Isso, mesmo quando o violador é agente seu. No caso da exclusão e sualegislação social, em que o pólo passivo da obrigação é o próprio Esta-do, este se exime por diversos meios, desde as prerrogativas da Fazen-da Pública, até porque irrisórios montantes dos benefícios possíveis de-sestimulam que se pugne por eles judicialmente.

No texto constitucional, por exemplo, aparece como a imediata apli-cabilidade das normas garantistas, das abstenções estatais e a necessi-dade de mediação da regulamentação legal para os direitos sociais, asprestações positivas e onerosas para o Estado. Ou seja, para a garantiae manutenção do status quo, a disposição constitucional opera-seimediatamente, mas para promover ações e situações em prol dos ca-rentes, um acervo legal regulamentar complexo é invocado. São asnefastas normas “programáticas” e de efeito “contido” tão vergasta-das pela moderna doutrina constitucional.

No conjunto dos direitos fundamentais (direitos humanos consti-tucionalizados) como momento de máxima solenização da distribui-ção dos direitos é que esses valores fundantes da ordem jurídica e so-cial do moderno Estado democrático afetam de modo ostensivo a hi-possuficiência, no concreto do pobre. Teorias como a que põe o sujei-to de direito como o homem de iniciativa e caráter autônomo, o apegomítico a formas estereotipadas de isonomia, fazem do direito um veí-culo legitimador de um status quo que bem pouco tem a ver com o di-reito como justiça.

Uma tarefa irrenunciável é a de trazer para a discussão funda-mentos teóricos que marcam o pensamento social e econômico recen-tes com suas produções. Isso porque a contemporaneidade oupós-modernidade12 tem afetado todas as instâncias da vida social, in-

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12 O fenômeno, ainda que não sedimentado, da pós-modernidade, seu irracionalismo e descons-trução dos padrões da chamada “modernidade” afetam o direito. Pensamentos como os de Fou-cault, Deleuze, Lyotard, negadores da facticidade, da razão e denunciadores de suas relaçõescom o poder, podem dar em um novo irracionalismo conformista, no parecer de Sérgio PauloRouanet (2004).

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dividual e coletiva, ora acentuando aspectos antes secundários, oraopondo novas leituras aos fenômenos sociais e econômicos. Vem-serompendo com as teorias e “narrativas” que se tinham como totais ehegemônicas, como, por exemplo, a do poder emancipatório da mo-dernidade, a contingência e transitoriedade da pobreza, dentre outras.

A novidade assustadora de certos fenômenos econômicos (a hi-perconcentração crônica de bens e riquezas), políticos (hegemonia“qualitativa” e cultural da democracia), culturais e filosóficos (o re-conhecimento da pluralidade e multidimensionalidade dos fatos e fe-nômenos, superando as conceituações estritas e redutoras) não podeser deixada de lado na reflexão dos direitos humanos. Se as bases teó-ricas para o estudo das violações estão mais consolidadas, no caso dasexclusões, não. A implementação de direitos humanos diante dessadualidade é de justiça material, substantiva, que se fala na Constitui-ção: por exemplo, pelo princípio constitucional do amplo acesso àJustiça combinado com o outro da inafastabilidade da apreciação ju-dicial13 das lesões e ameaça de lesão, resulta na necessidade moral epolítica de efetivar os meios que tornem a jurisdição acessível a to-dos, seja na violação, seja na exclusão.

E no quadro atual, gerado talvez em decorrência da generosidadedemocrática da Constituição, em que muitos direitos viraram leis,ampliou-se assim a exigibilidade judicial dos mesmos. Isso sem que oEstado tivesse se preparado estruturalmente. O acesso à ordem jurídi-ca e ao processo justo poderá só se efetivar, no caso da implementa-ção de direitos sociais superadores da exclusão, mediante o passo se-guinte àquele da transformação do direito em lei: a decisão judicial, alei geral especificada para o caso concreto. Quando o sentimento so-cial diante da exclusão tiver a mesma profundidade e contornos dosque cercam as violações, haverá uma cultura de direitos humanoscomo algo universal e indivisível.

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13Cf. o art. 5o, inc. XXXV: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaçaa direito”. No caso perseguido no presente trabalho, só essa “prestação negativa” é insuficiente,por isso tem de ser lida no conjunto constitucional protetivo e afirmativo de direitos e dos princí-pios fundamentais do Título I.

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4. Considerações conclusivas

Em um contexto em que pelo menos idealmente se prestigia tantoa assunção dos direitos e da democracia, a possibilidade de efetivaçãodos direitos por parte de qualquer pessoa, faz valer a o que diz MauroCappelletti e Bryant Garth (1988, p. 7): “O acesso à justiça pode, por-tanto, ser encarado como requisito fundamental – o mais básico dosdireitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário quepretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos.” Dissose dessume que uma caracterização suficiente dos direitos dos pobrespassa pela distinção entre aqueles nascidos das violações e aquelessurgidos das políticas de superação das exclusões. Como o Estado esua administração da justiça não podem ou não devem ser deixadosde lado na proteção e implementação dos direitos, perceber os filtroshermenêuticos do ordenamento jurídico e suas limitações para de-nunciá-los e criar alternativas é tarefa da Academia no tocante aos di-reitos humanos, bem como da militância em torno da implementação.Um nível global e outro local de implementação.

É de se perceber que as idéias-força geradas na história do consti-tucionalismo recente, de cunho garantista e mantenedor do status, in-terferem na visão dos direitos humanos, nas limitações, potencialida-des e preconceitos que cercam este. E os pobres, não dispondo dosmesmos recursos de emancipação e de individuação dos incluídos,mais facilmente assumem para si a visão hegemônica. E o fazem por-que muitas vezes a sua condição concreta e histórica não é levada emconta, e suas necessidades são quantificadas e homogeneizadas paragerarem políticas públicas que lhes oferecem resíduos da produçãosocial de riquezas.

A universalização dos direitos humanos não significa a sua ho-mogeneização, e a indivisibilidade não significa que não haja distin-ções entre as diversas “camadas” em que se organizam ou se imple-mentam esses direitos. A universalização e a indivisibilidade, bandi-das em um primeiro momento, a depender do contexto menos favorá-vel da implementação dos direitos humanos, podem legitimar a ex-clusão. Já as conquistas paulatinas podem ter o condão de garantirpara si um status jurídico e político mais protegido das violações. Asdistinções em um dado nível da luta pela implementação dos direitosnão podem ser esquecidas.

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Um aspecto claro dessa desconsideração é o tratamento por igualque se dá às violações e às exclusões, como se entrassem no campo deconhecimento e das percepções dos pobres do mesmo jeito. Há o sur-gimento de uma cooptação do discurso dos direitos humanos e sociaispor grupos identitários de forte mobilização e agendamento político,ou seja, grupos capazes de pressões e de obter conquistas. E isso jun-tamente com a ideologia garantista de um direito por superar esse hia-to entre ela e as práticas concretas das militâncias. Os horizontes jurí-dicos possíveis dentro da democracia e do direito assim podem comu-nicar os direitos humanos em uma melhor performance, abrindo-o àpossibilidade de ser efetivamente o conteúdo de uma cultura rights

based approach.

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Page 309: Livro  Direitos Humanos Século XXI

V.4. A inclusão pelo simbólico: linguagem,dominação e transformação

Vitor Souza Lima Blotta*

O presente artigo pode ser dividido em três partes, para fins de cla-reza e objetividade da argumentação e para gerar o necessário embatede idéias em sua comunicação:

1a parte – A importância da linguagem simbólica e a apropriaçãoda produção simbólica da realidade pelo poder político, desde a IdadeMédia até o que se denomina hoje sociedade do espetáculo.

2a parte – Os efeitos sociopolíticos e psicológicos gerados na so-ciedade em função da concentração e da elitização da produção sim-bólica, em especial a violência.

3a parte – Políticas de retomada e de descentralização da produ-ção simbólica da realidade para a diminuição da violência e da crimi-nalidade e como alternativas aos movimentos de transformação e deinclusão sociais.

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* Mestrando do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito daUniversidade de São Paulo e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP).

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1. Introdução

“A injustiça social corrói as estruturas sociais e, na carência do Estadode direito, a linguagem de reivindicação pós-moderna é a violência.”

Eduardo Bittar1

A epígrafe deste texto, dita no dia seguinte ao “toque de recolherconsensual” em que se viram a capital e outras cidades do Estado deSão Paulo, diante das rebeliões em presídios e ataques às instituiçõescivis no fatídico dia 15 de maio de 2006, pode servir como perguntade abertura da discussão: por que a linguagem de reivindicação socialatual é a violência?

Para tanto, procurar-se-á identificar os fatores que levam à faltade alternativas para o desenvolvimento do processo político, sendo aviolência aparentemente a única solução, presente tanto nas práticasde facções criminosas como na resposta do Estado e em discursos rea-cionários da sociedade civil.

A hipótese: a maioria da população foi expulsa dos espaços deprodução simbólica da realidade, concentrados nas mãos do poderpolítico no decorrer do processo histórico, e, com isso, perdeu-se acapacidade de utilização da linguagem simbólica para a inclusão so-cial e para a transformação da sociedade.

A possível alternativa: o incentivo à comunicação comunitária; aabertura de novos espaços de discussão política, de produção artísticae de educação não formal para reverter esse quadro e dar à população“armas simbólicas” que substituam a violência e promovam a inclu-são social.

Antes de tudo, deve-se deixar claro que os objetivos deste estudonão retiram a suma importância ou trabalham em exclusão dos pro-gramas de inclusão social materiais, que buscam o provimento dasnecessidades básicas de vida da população, mas devem operar, sim,em conjunto com essas iniciativas, como políticas correlacionais e

complementares para o desenvolvimento da dignidade social.

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1 Comentário em suas aulas da disciplina “Direito e Pós-modernidade”, ministradas no curso dePós-graduação em Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo(segundo semestre de 2005) e em discussão por meio de conferência eletrônica (chat) em15.5.2006.

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2. Linguagem simbólica e poder:noções e desenvolvimento histórico

Este artigo não se pretende um tratado de semiótica. A noção delinguagem simbólica assume aqui uma função socioantropológica,encarada como dimensão constituinte do ser humano, e sem a qual, oupela repressão da qual, a pessoa humana deixa de desenvolver a pleni-tude de seu ser. Nesse sentido, devido à essência social do indivíduo,2

padece desse mesmo mal a sociedade como um todo. Esse paraleloindivíduo-sociedade será desenvolvido com mais profundidade àfrente, mas pretende-se implícito em todas as reflexões do trabalho.

Segundo o professor Alaôr Caffé Alves, o que distingue o ser hu-mano dos animais é sua capacidade de simbolização, o uso da lingua-gem para simbolizar e interpretar o mundo por meio de objetos quesão exteriores ao próprio homem, como a natureza, a qual ele trans-forma e, com isso, transforma a si mesmo.3

Para Erich Fromm, a linguagem simbólica é a faculdade “por meioda qual exprimimos experiências interiores como se fossem experiên-cias sensoriais (...) é uma língua onde o mundo exterior é um símbolodo mundo interior, um símbolo de nossas almas e de nossas mentes”.4

O psicanalista da Escola de Frankfurt faz uma divisão entre símbo-los convencionais, acidentais e universais, graduando-os em termos deimediatidade da compreensão ou de coincidência do símbolo com o ob-jeto simbolizado,5 questão que só será tratada mais à frente no estudo.

A intenção inicial é, portanto, anunciar a linguagem simbólicacomo a característica e a capacidade do homem de produzir cultura,de interferir na superestrutura social,6 ou na esfera de produção sim-bólica da realidade. Essa esfera é apresentada por Pierre Bourdieu

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2 Aristóteles. Política. Tradução Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 14.3 Aulas do professor Alaôr Caffé Alves na disciplina “Direito, Estado e Estrutura Social”, docurso de Pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (primeiro se-mestre de 2006). Para mais no tema da linguagem como consciência prática e como essência so-cial do homem, cf. Aron, Raymond. O marxismo de Marx. Tradução Jorge Bastos. São Paulo:Arx, 2003. p. 216-217.4 Fromm, Erich. A linguagem esquecida: uma introdução ao entendimento dos sonhos, contosde fadas e mitos. Tradução Octavio Alves Velho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1964. p. 18.5 Idem. Ibidem. p. 18-25.6 Imprescindível para a noção do caráter essencialmente dialético entre infraestrutura e superes-trutura, forças de produção e relações de produção, ideologia e condições materiais de produ-

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como o espaço no qual se exerce o poder simbólico, definido por elecomo “o poder de construção da realidade que tende a estabeleceruma ordem gnoseológica: o sentido imediato do mundo”.7

Diz-se justamente “esfera” ou poder de “construção” pelo caráterestrutural desse poder, ou dessa linguagem simbólica. Bourdieu tra-balha também as noções de sistema simbólico ou de campo de produ-

ção simbólica, justamente para identificá-los como estruturantes dasrelações sociais e tão determinantes da estrutura social quanto as con-dições materiais de produção.8

Assim, a linguagem simbólica se apresenta não somente comoum caráter constituinte do ser humano, das relações sociais e da estru-tura social, mas também como um instrumento de reprodução e depossível transformação dos mesmos.9

Dimensionadas a natureza e a importância da linguagem simbóli-ca, faz-se necessário agora um rápido relato histórico de sua expro-priação dos povos e comunidades e sua concentração e elitização pelocontínuo processo de centralização do poder.

Ao trabalhar a “transformação do mito10 em religião”,11 Bourdieurefere-se ao processo de concentração da produção simbólica pela Igrejana Idade Média, com a imposição do cristianismo, a adaptação da culturagreco-romana pela metafísica cristã e a eliminação dos hereges.12

300

ção, na obra de Marx, e de suas divisões meramente analíticas para o entendimento da estruturasocial como um todo, cf. Alves, Alaôr C. Estado e ideologia: aparência e realidade. São Paulo:Brasiliense. 1987, especialmente nas p. 96 e 172-173.7 Bourdieu, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz. Lisboa: Difel, 1989. p. 9.8 “Os sistemas ideológicos que os especialistas produzem para a luta pelo monopólio da produ-ção ideológica legítima – e por meio dessa luta –, sendo instrumentos de dominação estruturan-tes pois que estão estruturados, reproduzem sob forma irreconhecível, por intermédio da homo-

logia entre o campo de produção ideológica e o campo das classes sociais, a estrutura do cam-

po das classes sociais” (Idem. Ibidem. p. 12. grifos nossos).9 Nesse sentido, Bourdieu ainda coloca o poder simbólico como: “(..) poder de constituir o dadopela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e,deste modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo” (Idem. Ibidem. p. 14).10 Para aprofundamento na importante questão do mito e a atual substituição de seu caráterpré-científico ou meramente estético para uma função filosófica e teológica, cf. Fromm, Erich.A linguagem esquecida: uma introdução ao entendimento dos sonhos, contos de fadas e mitos.Tradução Octavio Alves Velho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1964. p. 142-143.11 Bourdieu. Op. cit. p. 12-13.12 Para aprofundamento na política simbólica da Igreja Católica na Idade Média, são de grandevalia os relatos do romance histórico O nome da rosa, de Umberto Eco (Rio de Janeiro: NovaFronteira, 1983), especialmente nas passagens das p. 99-105 (debate no scriptorium) e na “nonado terceiro dia” (p. 229-244).

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Nesse processo, há a constituição de produtores simbólicos espe-cializados em discursos e ritos religiosos, ou uma divisão do trabalho

religioso. Com isso, há uma conseqüente divisão do trabalho social ea criação de classes sociais, o que representa, com não menos impor-tância, um desapossamento dos laicos dos instrumentos de produçãosimbólica.13

Fábio Konder Comparato trabalha o processo histórico de con-centração do poder simbólico sob o conceito de legitimidade. Ao di-zer que não bastam para a afirmação e manutenção do poder somenteos recursos militares e econômicos, anuncia o caráter bilateral da do-minação, que pressupõe mando de uns e obediência de outros.14 Alu-dindo a Weber, diz que essa obediência requer uma técnica de legiti-

mação, pois

“Nenhum titular de dominação (...) pode satisfazer-se com o fato puro esimples da obediência de seus subordinados. Todos eles procuram sempreinculcar na consciência dos sujeitos passivos a convicção da legitimidade daordem social na qual estão inseridos.”15

Já nas monarquias absolutistas do Renascimento, os teólogos ecanonistas foram substituídos pelos juristas da corte, quando os reiscomeçaram a buscar mais poder político em detrimento do poder daIgreja.16

A reforma protestante, com sua influência na futura elaboração dasliberdades individuais e dos direitos de resistência à opressão, apesarde fundamentar-se em uma ordem metafísica e em pensadores religio-sos, deu subsídios para o aumento progressivo de intelectuais17 com afunção de promover a legitimação daquela ordem social de então.

301

13 Idem. Ibidem.14 Comparato, F. K. A democratização dos meios de comunicação de massa. In: Bucci, E.(Org.). A TV aos 50. Criticando a televisão brasileira no seu cinqüentenário. São Paulo:Fundação Perseu Abramo, 2000. p. 182-183.15 Idem. Ibidem. p. 185-186.16Idem. Ibidem. p. 187.17 Aqui o conceito de “intelectual” e principalmente de “intelectual orgânico” não pode passar àmargem da obra de Antonio Gramsci, em especial os seis volumes de seus grandiosos Cadernos

do cárcere (1929-1935). Comparato cita obra que resume as teses de Gramsci: Gerratana,Valentino. Gli intellettuali e l’organizzazione della cultura. Roma: Editori Reuniti, 1977. Idem.

Ibidem. p. 186-188.

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De Jean Bodin, Maquiavel e Thomas Hobbes aos teóricos da Re-volução Francesa, como Voltaire e Sieyès, esses teóricos foram se di-versificando com a divisão do trabalho intelectual promovido pelasubstituição da burguesia mercantil pela industrial. Tornam-se, en-tão, “intelectuais orgânicos”, pois cada um, em sua particular área deconhecimento, empenha-se em demonstrar “a excelência do sistemaeconômico capitalista”,18 legitimando o poder político exercido ago-ra em um Estado de direito.

Assim, o mesmo avanço tecnológico que deu combustão à Revo-lução Industrial começou a desprezar os juristas, sociólogos, econo-mistas, jornalistas, historiadores e outros ideólogos, que viram suavalorização ser gradativamente transferida para os meios de comuni-cação de massa do século XX.

3. A sociedade do espetáculo

Sociedade de massa, sociedade do consumo, sociedade de con-trole, sociedade do conhecimento ou sociedade da informação: mui-tas são as terminologias empregadas para caracterizar a sociedade dopós-guerra e seus desdobramentos na atualidade. Uma teoria que pre-tende englobar todas essas e tem sido estudo recente de especialistasem comunicação social, política, semiótica e psicanálise é a teoria doespetáculo, formulada por Guy Debord em sua obra A sociedade do

espetáculo, de 1967.Para Debord, vive-se hoje em uma sociedade em que as ativida-

des concretas estão sendo cada vez mais substituídas por relaçõescom as imagens colocadas em circulação no mercado pelo modo deprodução capitalista. “A vida direta pela representação.”19

Uma espécie de adaptação da teoria da indústria cultural, deAdorno, aos efeitos da segunda Revolução Industrial, A sociedade do

espetáculo é um conjunto de 221 teses curtas e impactantes.20 Na

302

18 Idem. Ibidem. p. 188.19 Debord, Guy. A sociedade do espetáculo (1967), seguido de Comentários sobre a sociedade

do espetáculo (1988). Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.Tese 1. p. 13.20 Para uma análise de conteúdo e forma da obra A sociedade do espetáculo e suas relações coma obra de Theodor Adorno, cf. Bucci, E.; Kehl, Maria Rita. Videologias: ensaios sobre televisão.São Paulo: Boitempo, 2004 (Estado de Sítio). Especialmente o ensaio “O espetáculo como meiode subjetivação”, p. 43-62, escrito por Maria Rita Kehl.

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quarta assertiva, Debord atesta: “O Espetáculo é uma relação socialmediada por imagens.”21 “O Espetáculo é o capital em tal grau de acu-mulação que ele se torna imagem.”22 Se Marx disse que o capitalismoé uma relação social mediada por bens, o espetáculo demonstra que ocapital conseguiu realizar sua maior proeza: transformar-se em ima-gem, faceta que o dissimula mais do que nunca.

Transformado em imagem, o capital promove a totalização doprocesso de alienação do trabalhador.23 Ao deslumbrar-se com asimagens que lhe são dispostas (e aqui o termo “dispor” fica bem em-pregado, pois se relaciona com um dispositivo, uma ordem, como di-ria Foucault, sem possibilidade de resposta senão passiva aceitação),o trabalhador aliena-se ainda mais de sua exploração econômica ecultural, enquanto se identifica com os símbolos e as possibilidadesde consumo que lhes são oferecidos.

Os revisores de Debord dizem que o espetáculo é a consumaçãototal do fetichismo da mercadoria24 e a realização plena da expropria-ção do ser humano do produto de seu trabalho. Isso se dá no momentoem que se transforma em potencial consumidor.25 Segundo Bucci,isso acontece porque o trabalhador explorado supre essa perda doproduto de seu trabalho e permite o desnivelamento entre o valor dotempo em que emprega seu serviço e o que ganha (mais-valia) com asrepresentações culturais que lhe são oferecidas pela mídia,26 de formacada vez mais inconsciente.

Assim, na sociedade do espetáculo, o ser humano não só ficouimpossibilitado de possuir e vender o produto concreto de seu traba-lho, mas também se distanciou ainda mais da produção simbólica darealidade. O homem comum não mais cria cultura, ele só a consome,enquanto aquele que produz conteúdo nos meios de comunicação de

303

21 Debord, Guy. Op. cit. Tese 4. p. 14.22 Idem. Ibidem. Tese 34. p. 25.23 Idem. Ibidem. Teses 26 e 29. p. 22-23.24 Kehl, Maria R. Muito além do espetáculo. In: Novaes, Adauto. Muito além do espetáculo. SãoPaulo: Senac, 2005. p. 238.25 Kehl, Maria R. O espetáculo como meio de subjetivação. In: Bucci, E.; Kehl, Maria Rita.Videologias: ensaios sobre televisão. São Paulo: Boitempo, 2004.26 Bucci, E. O espetáculo e a mercadoria como signo. In: Novaes, Adauto. Muito além do

espetáculo. São Paulo: Senac, 2005. p. 223.

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massa tem sua criação imediatamente apropriada pela lógica do capi-tal e pelos instrumentos de legitimação do poder.27

O espetáculo, assim como a lógica do capitalismo, opera pela eli-minação do diálogo,28 e por isso a expropriação da produção simbóli-ca, até mesmo dos intelectuais orgânicos, que ainda mantinham certoespaço e capacidade para crítica e resistência.29

Junto à centralização da deliberação política em Poderes Executi-vos “inchados”, mesmo em democracias parlamentaristas, há umprocesso de privatização do espaço público, com a criação dos gran-des conglomerados de mídia e seus agenda setting, ou calendários deatividades culturais que buscam “compensar” a população pelo seuafastamento da produção simbólica da realidade.30

Mas, o que essa nova ordem social tem a ver com a onda de violên-cia citada no início deste artigo, e que, não só no Brasil, macula todas aspolíticas de efetivação dos direitos humanos? Essa ordem social não con-seguiu justamente “adocicar e utilizar”31 de forma plena o ser huma-no, tornando-o um instrumento de seu funcionamento e legitimação?

É aqui que reside o perigo da teoria do espetáculo. Por sua lógica,as ondas de violência e de criminalidade que desafiam os poderes ins-tituídos e geram um temor generalizado na população, ou a própriacrise de legitimidade na qual se encontram as instituições políticas,32

deveriam representar simples “acidentes de percurso”, ou tropeçosadministráveis do sistema capitalista. No entanto, quando o sistemapolítico revela, como o fez em 15 de maio de 2006, uma insuficiêncianão só física, mas também informacional, na tarefa de manter a sensa-

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27 Kehl, Maria R. Op. cit. p. 243. Sobre a incorporação pela indústria do entretenimento dos mo-vimentos de resistência cultural ou de contracultura, tento como exemplo o movimento de liber-tação sexual ocorrido nos EUA nos anos 1960 e 1970, cf. Foucault, M. Microfísica do poder.Organização e tradução Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979. Cf. também: Foucault,M. História da sexualidade. São Paulo: Graal, 1985. v 3.28 Essa é uma das teses fundamentais deste artigo, e será trabalhada na última parte.29Hardt, M.; Negri, A. Empire. 7. ed. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2001. p. 24.30 Comparato. Op. cit. p. 191-192.31 O binômio “docilidade-utilidade” é colocado por Michel Foucault em sua obra Microfísica

do poder. Cf. Foucault, M. Microfísica do poder. Organização e tradução Roberto Machado.Rio de Janeiro: Graal, 1979.32 Sobre a crise dos cânones da modernidade e das instituições políticas que têm nesse períodohistórico seu berço, cf. Bittar, E. C. B. O direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 2005.

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ção de segurança da população em sua rotina de produção diária, ape-sar de seu caráter conjuntural, o momento tem em si um reflexo dos li-mites estruturais desse sistema.

Apesar das supostas ligações do crime organizado atual com ospresos políticos da Ditadura Militar, entre os quais se aventa um pro-cesso de educação e treinamento para técnicas de guerrilha, tão bemretratado no longa-metragem “Quase Dois Irmãos”,33 toda a raciona-lidade que se manifesta na coordenação e na operacionalidade dosataques não satisfaz as razões por trás do uso da violência, que requeruma análise de outra ordem.

4. A lógica da violência: do indivíduo para a sociedade

Em relação ao aumento da violência nas relações internacionais,marcado especialmente, mas não unicamente, pelas guerras do séculoXX e pela associação dessas práticas com o aumento da tecnologia ecom a necessidade de instrumentalização e afirmação do poder,34

abordagens da lingüística e da psicologia podem oferecer novos olha-res sobre o fenômeno da violência e apresentar algumas alternativaspara sua diminuição.

No profundo texto de Bento Prado Jr., “A força da voz e a violên-cia das coisas”, que apresenta o Ensaio sobre a origem das línguas, deRousseau,35 o filósofo da Universidade de São Paulo trabalha a apro-ximação da linguagem com a violência. Ao citar Nietzsche, em suaGenealogia da moral, o autor aponta que a violência pode ser vistacomo o “último termo da história”, pois, quando ela se realiza, todo odiscurso cai por terra e a verdade da linguagem é revelada: sua tentati-va de dissimular a “pura vontade de poder”.36

Nesse sentido, a violência ganha um status de “pureza”, pois é umalinguagem que quer, no “exercício já sempre presente da força contra seuprimeiro movimento”, no “uso da Natureza contra a Ordem que a co-

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33 Direção: Lúcia Murat. 2005.34 Bittar, E. C. B. O direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.cap. 5.3.2, p. 336-343.35 Campinas: Unicamp, 1998.36 Prado Júnior, Bento. A força da voz e a violência das coisas. In: Rousseau, J. J. Ensaio sobre a

origem das línguas. Tradução Fulvia M. L. Moretto. 2. ed. Campinas: Unicamp, 2003. p. 16.

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manda”, anular-se como linguagem.37 Simplificando: a violência é umalinguagem sem meios, ela une o meio com a mensagem. A violência,mais do que qualquer outra linguagem, faz-se entender por si mesma.

Essa noção de violência se aproxima da idéia de linguagem sim-bólica universal apresentada por Erich Fromm, pois, diferentementedos símbolos convencionais (escrita, cores, código Morse etc.) e dosacidentais (em que a identificação com o símbolo varia de acordocom a experiência pessoal de cada sujeito, como a memória), a vio-lência torna “intrínseca a relação do símbolo e do simbolizado”.38 Osímbolo seria (no caso de uma violência fortuita) a violação da esferade outrem, causando-lhe prejuízo, e o simbolizado, a vontade de cau-sar esse prejuízo.

Fromm não fala da violência como um exemplo de linguagemsimbólica universal. Ele cita o choro, que reflete um estado de triste-za, ou o enrubescimento, em um estado de raiva. No entanto, a uni-versalidade desses atos é ainda questionável. Não se pode chorar dealegria, ou enrubescer-se por vergonha? A violência, por outro lado,independe até mesmo da vontade de se violentar, como nos casos deimprudência, negligência ou imperícia. Com isso, tendo em vista auniversalidade simbólica da violência, sua dispensabilidade demeios lingüísticos ou volitivos para se realizar e sua eficiência em“passar a mensagem”, pode-se dizer que, lingüisticamente, a vio-lência seduz.

Esse viés lingüístico da análise da violência pode também ser ex-traído de reflexões de Maria Rita Kehl sobre Hannah Arendt, paraquem, ao estudar as origens do autoritarismo, o momento do“não-pensamento”, ou o “(...) vazio de pensamento, é condição paraque se possa produzir alguma coisa parecida com o mal absoluto (...)”;não o mal com o qual todos estão acostumados, mas simplesmente a su-perfluidade ou a banalização de nossa “condição humana”.39

Esse “vazio de pensamento” estaria ligado à não-racionalidade;como extra-vasão do instinto animalesco do ser humano (como a cate-goria “trabalho”, em Arendt; tanto o animal quanto o homem são capa-

306

37 Idem. Ibidem.38 Fromm, Erich. Op. cit. p. 20-23.39 Kehl. Televisão e violência do imaginário. In: Bucci; Kehl (Orgs.). Videologias: ensaiossobre televisão, 2004. p. 91.

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zes de matar para saciar sua fome) sem qualquer mediação por aquiloque o distingue dos animais: o pensamento, que leva à política.40

E a psicologia diz o mesmo. Ao desenvolver sua teoria dos arquéti-

pos,41 C. G. Jung deu grande importância para dois que convencionoudenominar persona e sombra. A persona seria o conjunto de ideais deconduta social que se espera de um indivíduo. Por algum tempo a pes-soa pode se identificar com essa persona, mas nenhuma “pessoa podecaber dentro dos moldes determinados pela consciência coletiva”.42

A partir do momento em que o indivíduo começa a desenvolversua personalidade, ele se vê desprendendo-se dessa persona e reco-nhecendo características mais obscuras de sua personalidade, impul-sos, instintos e outras facetas que a sociedade culturalmente repri-me,43 como a violência. Todas essas características obscuras insta-lam-se, assim, no arquétipo da sombra, visto como o inconscientepessoal ou coletivo. Com isso, há naturalmente uma associação doque se instala na sombra com o “lado ruim” das pessoas,44 como opraguejar, o ócio, a promiscuidade, o maldizer e as capacidades deroubar, odiar, violentar, matar etc.

Em outras palavras, associa-se a sombra com o “mal”, ou com aforma arquetípica do mal, que também é reprimida e, quando levada àprática, insurge sob a forma quase “satânica” dos assassinatos a san-gue-frio, da guerra, do terrorismo, de outras atrocidades que horrori-zam e ao mesmo tempo fascinam a sociedade e são tão bem trabalha-das pela mídia.45

Esse fascínio, por tocar impulsos reprimidos do ser humano, juntoao poder simbólico da violência, que também seduz, associa-se tam-

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40 Idem. Ibidem.41 Os arquétipos seriam, resumidamente, padrões de estruturação da personalidade comparti-lhados coletivamente (presentes no inconsciente coletivo), sempre constituídos de pares opos-tos. Cf. Reis, Alberto O. et al. Teorias da personalidade em Freud, Reich e Jung. São Paulo:Editora Pedagógica e Universitária, 1984.42 Idem. Ibidem. p. 148.43 Idem. Ibidem.44 E é justamente essa uma das formas de se entrar em contato conscientemente com a sombra,projetando inconscientemente suas características em outras pessoas.45 Sanford, John A. Mal: o lado sombrio da realidade. São Paulo: Paulinas, 1988. p. 131. Paraestudos sobre o uso da violência pela mídia, cf. Kehl, Maria R. Televisão e violência doimaginário. In: Bucci, E.; Kehl, Maria Rita. Videologias: ensaios sobre televisão. São Paulo:Boitempo, 2004 (Estado de Sítio).

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bém à “carga energética” da sombra. Jung explica que a sombra “con-tém a vida não vivida46” e, por isso, entrar em contato, na prática, comela “é como receber a infusão de energia nova”. Ele também coloca queo indivíduo torna-se aquilo que ele faz, no sentido de que, na prática rei-terada e intencional de se fazer o mal, é possível que o indivíduo sejapossuído por esse mal, pois uma das características dos arquétipos é ade “se apossar do ego”, ou da dimensão consciente do ser humano.47

Dessa análise, pode-se entender um pouco mais o poder de sedu-ção da violência e que não adianta reprimir seus impulsos demasiada-mente, pois eles podem, uma hora ou outra, emergir com um ímpetobrutal.48 Mas também colocá-los em prática pode ser ainda mais peri-goso, pois sua reiteração tende a aumentar ainda mais a violência.

Qual seria, então, a solução? Jung explica que uma forma saudá-vel de se lidar com os arquétipos é a de tomar consciência deles, deentendê-los e de permitir um “livre fluxo da energia psíquica” entre eles,fazendo a ligação entre o consciente e o inconsciente e construindo,com isso, uma personalidade mais completa.49

Esse livre fluxo de energia psíquica tomará eventualmente for-mas concretas, mas, para que não incorpore literalmente a negativida-de de alguns lados indesejados da personalidade, ele deve ser direcio-nado para outras formas de expressão que não a ganância, a maldadeou a violência. Para Jung, pertencer a uma “calorosa e receptiva co-munidade humana”50 seria um dos caminhos. Outro caminho seria ode transformar aquele impulso em um símbolo exterior a si mesmo,de uma carta ou conversa,51 até uma obra estética.52

308

46 Sanford, John. Op. cit. p. 130.47 Idem. Ibidem. p. 131-132.48 Nesse sentido, Sanford diz: “A pior coisa a ser feita em relação ao mal é apaziguá-lo. Quandoa Inglaterra de Chamberlain quis apaziguar o mal na Alemanha de Hitler, o mal simplesmenteaumentou. Até no nível familiar isto é verdade. Apaziguar uma criança turbulenta e exigentesimplesmente alimenta e fortalece as qualidades negativas da criança” (Sanford, John. Op. cit.p. 138-139).49 Reis, Alberto O. et al. Teorias da personalidade em Freud, Reich e Jung. São Paulo: EditoraPedagógica e Universitária, 1984. p. 135 e 150.50 Sanford, John. Op. cit. p. 139.51 E aqui Sanford fala da psicologia, necessariamente uma relação dialogal, como outraalternativa, além da religião. Idem. Ibidem. p. 141.52 Sanford, John. Parceiros invisíveis: o masculino e o feminino dentro de cada um de nós. SãoPaulo: Paulus, 2002.

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E é nesse momento que se pede permissão para uma analogia ou-sada: se um indivíduo é um microcosmo da sociedade e se essa socie-

dade, como um todo, é composta por indivíduos que, além de inseri-dos e interligados pelas condições e relações materiais do sistema deprodução capitalista, estão sujeitos a todos os processos psíquicos e

formas lingüísticas aqui apresentadas, tem-se que a análise feita an-teriormente para um indivíduo pode ser ponderada também sob a óti-

ca da sociedade como um todo.

Desse raciocínio, pode-se concluir que, se há um alto índice deviolência na sociedade, significa que, psicologicamente, ela não estáencontrando formas de lidar com sua “sombra coletiva”, pois reprime

as manifestações de violência com aumento de penas e maior isola-mento para os criminosos, junto à imposição de uma “persona” cadavez mais sufocante.

As conseqüências disso já foram citadas teoricamente neste arti-go, mas os fatos não as negam. Não que se esteja advogando a soltura

de presos ou nenhuma repressão às suas atitudes, mas os princípiosda ressocialização e da dignidade do preso devem encontrar formasde saírem da lei penal e dos tratados de direitos humanos e incidiremna prática, e, de forma não menos importante, para conter o perigogerminal de discursos e práticas fascistas.

E é também das alternativas para se lidar com os arquétipos dasombra e da persona que podem surgir propostas no âmbito da socie-dade. As sugestões de uma “calorosa e receptiva comunidade huma-na” e outras formas de expressão, como uma carta, uma conversa oumanifestação artística, seus respectivos veículos no âmbito social po-dem ser, respectivamente, e no necessário locus da comunidade, a

educação não formal e a comunicação comunitária.

5. A lógica contra-hegemônica da comunidade

É certo que todo o desenvolvimento do capitalismo e da socieda-de burguesa se dá com o surgimento da propriedade privada em opo-sição à propriedade comunal e à propriedade fundiária. Ou seja, aforma pela qual se dá o desenvolvimento do modo de produção capi-

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talista requer necessariamente, pela lógica do materialismo históri-co-dialético, o atrofiamento de formas anteriores a ele.53

Da mesma forma, as concepções ideológicas que decorrem dessalógica de desenvolvimento, como o racionalismo, o individualismo,o universalismo, o cientificismo e outros princípios que inspiraram asdeclarações de direitos do século XVIII, opõem-se às suas formas an-teriores, em especial à metafísica religiosa e ao tradicionalismo. Esseprocesso de desencantamento do mundo é trabalhado por Jürgen Ha-bermas, ao citar Weber e suas reflexões sobre a modernidade:

“À medida que o cotidiano foi tomado por esta racionalização cultural esocial, dissolveram-se também as formas de vida tradicionais, que no inícioda modernidade se diferenciaram principalmente em função das corpora-ções de ofício. (...) o mundo da vida racionalizado é caracterizado antes porum relacionamento reflexivo com tradições que perderam sua espontanei-

dade natural; (...) enfim, por modelos de socialização que se dirigem à for-mação de identidades abstratas do eu e que forçam a individualização dosadolescentes.”54

Diante desse fenômeno que, como já foi colocado anteriormente,associou-se aos processos de centralização dos espaços de produçãosimbólica da realidade e de privatização do espaço público, pode-senotar uma lógica de oposição ao associativismo comunitário, especial-mente em termos de produção simbólica, mas não unicamente.

Dessa constatação, torna-se possível compreender que a discri-minação da cultura popular, a falta de incentivo aos programas de co-municação comunitária e educação não formal, os inúmeros obstácu-los do Poder Público em autorizar o funcionamento de rádios comuni-tárias (sem mencionar sua criminalização) e a própria dificuldade dosmembros das comunidades em participar e apoiar essas iniciativas

310

53 Como bem colocou Marx: “O chamado desenvolvimento histórico repousa em geral sobre ofato de a última forma considerar as formas passadas como etapas que levam a seu próprio graude desenvolvimento (...). Como, além disso, a própria sociedade burguesa é apenas uma forma

opositiva do desenvolvimento, certas relações pertencentes a formas anteriores nela só pode-

rão ser novamente encontradas quando completamente atrofiadas, ou mesmo disfarçadas; por

exemplo, a propriedade comunal” (Marx, Karl. Introdução. In: Para a crítica à economia polí-

tica. São Paulo: Abril Cultural, 1982. p. 18 e 17. grifos nossos).54 Habermas, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.p. 4 (grifos nossos).

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decorrem não somente de convicções pessoais de qualquer indivíduo,mas de uma lógica interna à estrutura do sistema social que não per-mite seu desenvolvimento, justamente por reproduzir-se com meca-nismos que operam em oposição a essas iniciativas.

Estudos de programas de comunicação comunitária e educaçãonão formal em comunidades carentes demonstram que esses espaçosde produção simbólica obedecem à lógica do diálogo, pois, por teremrestrições espaciais, permitem a proximidade e a participação de to-dos de forma equânime. Todos podem publicar um artigo, poema ouqualquer produção artística no jornal comunitário. Todos podem par-ticipar dos programas da rádio de seu bairro e falar sobre coisas queinteressam aos seus pares. Todos podem opinar com liberdade em umcurso de educação não formal, porque sua característica é justamentea de quebrar as relações de hierarquia entre professor e aluno.55

Os efeitos desse tipo de retomada de espaços de produção simbó-lica são: a elevação da auto-estima, a consciência crítica a respeito doque é veiculado nas grandes mídias, a valorização dos aspectos locaisde cada região, a disposição das pessoas com menos dificuldade deaprendizado em ajudar os que têm mais, a visibilidade da expressãoartística ou política dos indivíduos da comunidade, entre outros bene-fícios.56

Em outros termos, essas práticas permitem um tipo de relaciona-mento simbólico que os meios de comunicação de massa não com-portam, por sua unilateralidade informacional. Essa relação é a de al-

teridade, a relação do eu com o outro, pois se dá entre semelhantes,com limitações e qualidades como qualquer pessoa. E aqui o outro

aparece com letra minúscula, pois se opõe ao Outro, estrutura psico-lógica que representa aquele que sabe sobre o sujeito, aquele que de-

termina como o sujeito deve ser, como um Deus, sem possibilidadede diálogo. E é justamente essa relação que se tem com o Outro a de-senvolvida com os meios de comunicação de massa.57

311

55 Carnicel, Amarildo. O jornal comunitário e a educação não-formal: experiências e reflexões.In: Fuser, Bruno (Org.). Comunicação alternativa: cenários e perspectivas. Campinas: Publica-ções CMU (Unicamp)/PUC-Campinas, 2005.56 Idem. Ibidem. p. 71-73.57 Kehl, Maria R. O espetáculo como meio de subjetivação. In: Bucci, E.; Kehl, Maria Rita.Videologias: ensaios sobre televisão. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 95-100. (Estado de Sítio).

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Com isso, tem-se que não somente as comunidades menos privi-legiadas em termos econômicos carecem de espaços de produçãosimbólica. Aquelas mais abastadas têm mais acesso à informação,mas justamente por esse fato estão ainda mais imersas na relaçãoeu-Outro do que as comunidades com menor acesso. Há ainda menosdiálogo na elite, e isso explica as iniciativas de valorização da culturapopular surgirem das comunidades menos abastadas.

É por essa razão que se pretende advogar a abertura desses espaçosde produção simbólica em todas as comunidades, apesar de sua rendaou localização geográfica. E esses meios não devem substituir os meiosdominantes, a educação formal ou as grandes mídias, mas sim comple-mentá-los em suas deficiências,58 que foram aqui relatadas.

A tarefa será difícil, por todas as questões estruturais enumeradasneste estudo. Ações concretas de pressão às instituições devem coin-cidir com programas de conscientização da importância dessas novasalternativas.

Se a criminalidade e a violência seduzem, as alternativas devemseduzir mais ainda. Será um confronto entre violência e arte, crime ediálogo, verdade incontestável e reconhecimento das diferenças, e aspolíticas de direitos humanos devem operar no incentivo e na institu-cionalização desses direitos à comunicação, em face da lógica da do-minação.

Por fim, cede-se espaço a algumas vozes do PCC:

“O mais importante de tudo, na relação entre o Estado e as facções, é odiálogo. Temos que dialogar. Afinal, somos todos seres humanos, que temosinteresses humanos, pensamos, sabemos conversar.”59

“O PCC está crescendo muito. A gente não sabe onde vai parar isso. Há orisco de se chegar a uma verdadeira guerra com o tempo. Há necessidade dasautoridades, do pessoal do sistema, conversar mais com a gente. Porque a gen-te, levado às vezes pela emoção, acaba fazendo as coisas sem pensar muito nasconseqüências. Então há necessidade de alguém orientar a gente e dizer que,se a gente puser a mão aqui ou ali, vai acabar ‘queimando a mão’.”60

312

58 Carnicel, Amarildo. Op. cit. p. 48 e 51.59 Falas extraídas do artigo “Só o diálogo pode superar onda de violência”, de Alvino Augustode Sá, professor de Direito, psicólogo aposentado e membro do Ibccrim. Folha de S. Paulo, 17maio 2006. Caderno Cotidiano, p. C5.60 Idem. Ibidem.

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314

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VI

JUSTIÇA, INJUSTIÇA

E DIREITOS HUMANOS

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VI.1. A justiciabilidade dos direitos humanos noTribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

José Ricardo Cunha*

Alexandre Garrido da Silva**

Lívia Fernandes França***

Joanna Vieira Noronha****

1. Introdução

Os direitos humanos consistem no principal instrumento de defe-sa, garantia e promoção das liberdades públicas e das condições ma-teriais fundamentais para uma vida humana digna. A implementaçãode ações estratégicas que contribuam para a ampliação da efetividadedos direitos humanos na esfera judiciária requer, em primeiro lugar, a

317

* Professor da Faculdade de Direito da Uerj e da FGV, doutor em Direito pela UFSC, coordena-dor do Grupo de Pesquisa intitulado “Direitos humanos no Tribunal de Justiça do Estado do Riode Janeiro: concepção, formação e aplicação”, integrado por professores, pós-graduandos egraduandos da Uerj, UFRJ, PUC-Rio e Ucam. O elenco de pesquisadores vinculados ao presen-te grupo pode ser consultado no diretório CNPq dos grupos de pesquisa no Brasil. A pesquisa foicontemplada com o apoio institucional da Faperj. A apresentação completa dos dados pesquisa-dos, dos respectivos gráficos e das tabelas contendo as regressões multinomiais encontra-se dis-ponível no terceiro número da Revista Internacional de Direitos Humanos – Sur. Disponívelem: <www.surjournal.org>.** Professor substituto na Faculdade de Direito da Uerj e da Faculdade Nacional de Direito daUFRJ, pesquisador em Direito da FGV, mestrando em Direito Público pela Uerj.*** Diretora-presidente da ONG Consciência Cidadã, mestranda em Teoria do Estado e DireitoConstitucional pela PUC-Rio.**** Graduanda e monitora em Direito na Uerj.

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pesquisa e a análise de como os magistrados concebem e aplicam asnormativas internacionais sobre direitos humanos, em especial aque-las que salvaguardam e promovem os direitos econômicos, sociais eculturais.

Nesse sentido, a pesquisa intitulada “Direitos humanos no Tribu-nal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: concepção, aplicação eformação” tem como principal objetivo investigar, com o auxílio dametodologia estatística, o grau de efetivação ou justiciabilidade dosdireitos humanos consagrados em tratados internacionais na presta-ção da tutela jurisdicional.

Em regra, os livros e os artigos sobre os direitos humanos abor-dam a temática principalmente no plano teórico, discutindo a delimi-tação conceitual, a interpretação, o conteúdo e a fundamentação oulegitimação dos direitos humanos e fundamentais. A escassa produ-ção de pesquisas e estudos empíricos que envolvam o Poder Judiciá-rio, em especial sobre o tema dos direitos humanos, faz com que asidéias sobre a efetividade dos mesmos no Brasil sejam formadas combase em opiniões doutrinárias isoladas. Nesse sentido, a realização depesquisas que utilizem ferramentas e métodos de análise estatísticacientificamente reconhecidos em muito pode contribuir para o conhe-cimento – e a crítica – do discurso e da práxis judiciais sobre a efetivi-dade dos direitos humanos.

A pesquisa em tela almeja, a partir de um preliminar estudo sobreo background teórico acerca do tema,1 investigar relevantes questõesrelacionadas às características pessoais do magistrado, assim comosua formação escolar e universitária, com especial ênfase no estudodos direitos humanos. Objetiva, outrossim, investigar sua concepçãoteórica sobre a aplicabilidade dos direitos humanos e o conhecimento

318

1 Os seguintes autores constituíram as principais referências teóricas para a elaboração da pre-sente pesquisa: Alexy, Robert. Teoria del discurso y derechos humanos. Tradução e introduçãoLuis Villar Borda. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1995; Comparato, Fábio Kon-der. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1999; Faria, José Eduar-do. Justiça e Poder Judiciário ou a virtude confronta a instituição. Dossiê judiciário. Revista

USP, São Paulo, n. 21, 1994; Nino, Carlos Santiago. Ética y derechos humanos: um ensayo defundamentación. Buenos Aires: Astrea, 1989; Perelman, Chaïm. Ética e direito. Tradução Ma-ria E. Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996; Luño, Antonio Enrique Pérez. Derechos huma-

nos, Estado de derecho y constitución. Madri: Tecnos, 1999; São Paulo (Estado). ProcuradoriaGeral do Estado. Grupo de Trabalho de Direitos Humanos. Direitos humanos: construção da li-berdade e da igualdade. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, 2000.

Page 331: Livro  Direitos Humanos Século XXI

sobre o funcionamento dos sistemas internacionais de proteção daONU e da OEA, além do grau de utilização específica nos casos con-cretos das normas internacionais sobre direitos humanos.

As respostas consignadas pelos juízes nos questionários aplica-dos pelos pesquisadores na primeira instância da Comarca da Capitaldo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro permitiram aferir ograu de utilização das principais normativas internacionais de prote-ção dos direitos humanos – que integram o corpus normativo do direi-to internacional dos direitos humanos – na fundamentação de suas de-cisões judiciais. Foi também possível investigar a concepção teórica eo conhecimento específico que possuem ou não nessa temática.

O presente artigo apresentará, em primeiro lugar, os objetivos e ametodologia da pesquisa em tela, atentando para a análise do questio-nário e do relevo teórico e empírico das indagações por ele formula-das aos magistrados. Em seguida, serão apresentadas a análise explo-ratória dos principais dados coligidos e a aplicação do modelo de re-gressão logística multinomial aos mesmos.

2. Metodologia e objetivos da pesquisa

A presente pesquisa, em sua dimensão empírica, tem os seguintesobjetivos:

1. elaborar um instrumento de pesquisa – um questionário estru-turado – e aplicá-lo aos juízes e desembargadores integrantes, respec-tivamente, da primeira e da segunda instâncias da Comarca da Capitaldo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro;

2. aferir o grau de justiciabilidade das normativas internacionaissobre direitos humanos a partir das respostas consignadas pelos juí-zes e desembargadores nos questionários;

3. investigar o conhecimento e a concepção teórica sobre os direi-tos humanos formulada pelos juízes e desembargadores, bem como aformação geral e específica que possuem ou não nessa matéria;

4. verificar se ocorre e, em caso afirmativo, com que freqüênciadá-se a utilização das principais convenções, pactos e declarações in-ternacionais sobre direitos humanos – principalmente no âmbito dossistemas internacionais de proteção da ONU e da OEA – na funda-mentação ou motivação das decisões judiciais.

319

Page 332: Livro  Direitos Humanos Século XXI

O trabalho de pesquisa foi estruturado no sentido de proporcionarsubsídios para uma avaliação da efetivação dos direitos humanos noâmbito do Poder Judiciário. Nesse sentido, a investigação recaiu sobreas condições objetivas para a concretização da efetivação supramencio-nada. Tais condições, explicitadas nas indagações contidas no questio-nário, referem-se às características pessoais e sociais do magistrado,sua formação escolar e universitária, sua participação política em mo-vimentos ou instituições de defesa dos direitos humanos, sua concep-ção teórica sobre o tema, assim como sua prática jurídica cotidiana.

Considerando-se a diversidade de possibilidades metodológicasno tocante à realização de tal avaliação, o indicador de efetivação ado-tado foi a utilização de uma ou mais normativas internacionais de pro-teção dos direitos humanos para a fundamentação das sentenças profe-ridas. Foram escolhidas 11 normativas, todas mencionadas exaustiva-mente no questionário.2 Em seguida, foram formuladas as hipótesesde que as condições supramencionadas – perfil do magistrado, forma-ção acadêmica e concepção sobre o tema, entre outras – são determi-nantes para a utilização das normativas internacionais de proteçãodos direitos humanos e, portanto, variáveis significativas para a efeti-vação dos direitos humanos no âmbito do Tribunal de Justiça do Esta-do do Rio de Janeiro.

Embora haja fontes confiáveis de dados para o estudo das carac-terísticas dos juízes, isso não ocorre em relação aos demais elementosmencionados. Sendo assim, foi necessário que os dados fossem cole-tados diretamente em fonte primária, ou seja, por meio de entrevistasdiretas com os juízes.3 Optou-se pela Comarca da Capital, por ser esta

320

2 São elas: 1. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; 2. Pacto Internacional sobreDireitos Econômicos, Sociais e Culturais; 3. Convenção Americana de Direitos Humanos; 4.Protocolo de San Salvador; 5. Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discrimi-nação Racial (ONU); 6. Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminaçãocontra a Mulher (ONU); 7. Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mu-lher (ONU); 8. Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanasou Degradantes (ONU); 9. Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura; 10. Con-venção sobre os Direitos da Criança (ONU); 11. Convenção Interamericana para a Eliminaçãode Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência. As conven-ções, os pactos e o protocolo supramencionados foram regularmente incorporados ao ordena-mento jurídico pátrio por intermédio de seus respectivos decretos legislativos e executivos.3 A entrevista foi realizada, sempre que possível, com o juiz titular da vara. Em caso de impossi-bilidade, entrevistou-se o juiz substituto. No caso de impossibilidade ou recusa de ambos, con-siderou-se como “não-resposta”.

Page 333: Livro  Direitos Humanos Século XXI

a mais representativa do Estado, a que possui um maior fluxo de pro-cessos, como também a de maior diversidade temática.

A pesquisa divide-se em três fases: a primeira, já concluída, foidesenvolvida junto à primeira instância do TJERJ. Nessa fase, a cole-ta dos dados foi realizada no período de janeiro a maio de 2004, quan-do foi possível visitar 2254 das 244 varas cadastradas. Em razão deinúmeras recusas explícitas (e também tácitas) dos juízes em receberos pesquisadores ou mesmo preencher o questionário, não foi possí-vel obter informações em 50% das varas. No entanto, considerandoque as varas para as quais não foi obtida resposta ao questionário es-tão distribuídas aleatoriamente, ou seja, não há concentração de“não-resposta” em nenhum tipo de vara, assim como não houve, tam-bém, perda de unidade informante nas varas únicas, as respostas obti-das são representativas do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Ja-neiro, exceto para os fóruns regionais de Campo Grande e Santa Cruz.

A segunda fase da pesquisa, ainda em curso, teve início no pri-meiro semestre de 2005 e está sendo desenvolvida junto à segundainstância da Comarca da Capital do TJERJ. Esta é composta por 18Câmaras Cíveis e oito Câmaras Criminais. Os questionários foramaplicados aos desembargadores entre os meses de agosto e dezembrode 2005, mas somente 39 dos 130 questionários aplicados retornaramdevidamente preenchidos pelos magistrados. Em razão da elevadataxa de “não-resposta” verificada nessa fase da pesquisa, os dados ob-tidos prestam-se apenas a uma análise exploratória, restando prejudi-cada a realização de inferências que resultem em assertivas acerca dapráxis judicial sobre os direitos humanos no âmbito da segunda ins-tância do TJERJ como um todo. O questionário estruturado, salvo al-gumas pequenas correções, é idêntico àquele aplicado na primeirainstância do TJERJ.

A terceira e última fase da pesquisa consistirá no cotejo dos re-sultados obtidos nas duas fases anteriores para identificar as variáveiscomuns que condicionam de modo significativo a efetividade dos di-reitos humanos na tutela jurisdicional dos magistrados no âmbito doTribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

321

4 Não foi possível, em razão de limitações inesperadas, realizar o trabalho de pesquisa nos fó-runs regionais de Campo Grande (11 varas) e Santa Cruz (oito varas).

Page 334: Livro  Direitos Humanos Século XXI

Apresentaremos, neste momento, os principais resultados obti-dos na primeira fase da pesquisa, após a aplicação do método estatís-tico de regressão logística multinomial aos dados coligidos na primeirainstância do TJERJ.

3. Apresentação e análise regressiva dos resultadosobtidos na primeira fase da pesquisa

3.1. Perfil dos juízes entrevistados

Foram entrevistados 104 juízes integrantes das 109 varas do Tri-bunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, pois cinco deles esta-vam acumulando duas varas cada. Algumas de suas característicasgerais – sexo e cor ou raça – são mostradas a seguir.

O Poder Judiciário, como instituição social, ainda reflete umapredominância masculina nas relações de poder. Pode-se perceberque a maioria dos juízes é homem, totalizando um percentual de 60%.No entanto, já se pode notar uma significativa aproximação entre osdois percentuais, pois historicamente a distância entre ambos semprerevelou-se maior. As instituições jurídicas, políticas e sociais vêm se“feminizando” ao longo dos anos, devido à participação mais intensada mulher no mundo do trabalho, na vida social e política do País, as-sim como na comunidade acadêmica. Esse fenômeno é mais bem vi-sualizado nos juízos de primeira instância, nos quais os recém-juízesirão iniciar o exercício de suas funções judicantes.

322

Sexo do Juiz

Homem60%

Mulher40%

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Os percentuais mais impressionantes – porém não surpreenden-tes – são os relativos à cor ou raça dos magistrados, apresentados nafigura anterior. Os autodeclarados brancos encerram 86% do total dejuízes. Isso confirma a existência de uma intensa exclusão da popula-ção negra/parda do mercado de trabalho qualificado, inclusive jurí-dico, visto que, segundo o Censo 2000, os negros5 e pardos represen-tam 44,6% da população brasileira.

3.2. Concepção teórica sobre os direitos humanos

Ao serem questionados sobre qual seria a natureza jurídica dosdireitos humanos, 7,6% dos juízes afirmaram serem “valores semaplicabilidade efetiva”. Para outros 34,3%, constituiriam “princípiosaplicados na falta de regra específica”; e para 54,3%, configurariam“regras plenamente aplicáveis”. É importante ressaltar como cerca de7% dos juízes concebem os direitos humanos apenas como valoressem nenhuma força jurídica, mesmo após todos os esforços jurídicose políticos de afirmação de tais direitos. Com entendimento relativa-mente semelhante encontram-se os 34,3% dos juízes que acreditam

323

Indígena1%

Branca86%

NR 2%

Parda11%

Qual é a sua Cor ou Raça?

5 O IBGE adota a categoria preto em vez de negro. Para a aplicação na pesquisa foi feita a substi-tuição do termo, mantendo-se na íntegra as demais categorias adotadas pelo órgão oficial.

Page 336: Livro  Direitos Humanos Século XXI

que os direitos humanos são princípios que possuem caráter subsidiá-rio, podendo ser aplicados apenas diante da ausência de norma espe-cífica. Para esses juízes, qualquer ponderação com norma mais espe-cífica, inclusive com conteúdo antagônico, levaria à não-aplicaçãodas normas de direitos humanos. Porém, a posição majoritária reve-lou uma forte concepção normativa de direitos humanos, pois mais de50% dos juízes concebem os direitos humanos como regras plena-mente aplicáveis.

Também uma minoria de magistrados, cabe destacar, acreditaque o Poder Judiciário não deve interferir no sentido de promover aefetivação dos direitos de segunda geração, justificando não caber aesse Poder a implementação de políticas públicas. Outros, ainda,acreditam que a tutela desses direitos é de competência dos demaisPoderes da República, ou que tal aplicação resultaria no fenômeno dojuiz-legislador. Porém, a ampla maioria dos magistrados (79%) de-fende a aplicação complementar dos direitos econômicos e sociais edos direitos civis e políticos. Além disso, consideram que mesmoaqueles direitos que impõem uma atuação estatal devem ser judicial-mente tutelados. Essa ampla parcela da magistratura entrevistada,aproximadamente 80%, portanto, atribui aos direitos humanos, pelomenos teoricamente, a condição de normas plenamente aplicáveis econsidera que mesmo aquelas que venham a interferir no orçamentoestatal devem ser garantidas por meio das decisões judiciais.

No plano discursivo ou teórico é possível concluir no sentido deuma concepção bastante favorável à força normativa dos direitos hu-manos internacionalmente consagrados e regularmente incorporadosao direito pátrio, inclusive dos direitos econômicos, sociais e cultu-rais. Outra questão é a efetividade ou não de tais direitos na resoluçãodos conflitos submetidos à análise e decisão do Poder Judiciário.

3.3. (Des)conhecimento dos Sistemas de Proteção Internacional

dos Direitos Humanos

É digno de nota o fato de que, segundo os dados coligidos, os ma-gistrados, em sua grande maioria, desconhecem a arquitetura institu-cional criada para a proteção e promoção dos direitos humanos nosâmbitos da ONU e OEA. Indagados acerca de seus conhecimentos

324

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sobre o funcionamento dos Sistemas de Proteção da ONU e da OEA,obtiveram-se os seguintes percentuais: 59% conhecem superficial-

mente como funcionam os Sistemas de Proteção Internacional; 20%não sabem como funcionam os Sistemas de Proteção e apenas 16%afirmam conhecê-los. Considerando-se os percentuais mais altos,correspondendo o primeiro a um conhecimento superficial e o segun-do a um desconhecimento dos sistemas supracitados, temos que 79%

dos magistrados não estão suficientemente informados sobre a arqui-tetura institucional dos Sistemas de Proteção Internacional dos Direi-tos Humanos da ONU e da OEA.

O desconhecimento dos Sistemas de Proteção Internacional dosDireitos Humanos apresenta-se como um importante obstáculo à ple-na efetivação dos direitos dessa natureza no cotidiano do Poder Judi-ciário. E isso porque o desconhecimento do funcionamento de taisSistemas de Proteção mostra-se intimamente ligado à ausência deuma cultura jurídica que confira a merecida importância teórica eprática ao tema, assim como à não-aplicação das normativas relativasaos direitos humanos.

Perguntados, em seguida, se possuíam conhecimento sobre as de-cisões das cortes internacionais de proteção dos direitos humanos,obteve-se o seguinte percentual: 56% responderam que eventualmen-

te possuem tais informações; 21% responderam que raramente; 13%responderam que freqüentemente; e 10%, que nunca obtiveram infor-mações acerca de tais decisões.

325

Sabe como funcionam os Sistemas de ProteçãoInternacional dos Direitos Humanos da ONU

e da OEA?

Apenassuperficialmente

59%

Sim17%

NR5%

Não19%

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Não há dúvida de que um percentual de apenas 13% para os ma-gistrados que freqüentemente têm acesso ao conteúdo de tais deci-sões é muito reduzido para uma profusão real de uma cultura dos di-reitos humanos no seio do Poder Judiciário. Quando questionados so-bre o auxílio e o enriquecimento argumentativo que essas decisõespoderiam produzir nas suas sentenças, obteve-se o seguinte resulta-do: 50% disseram que sim, 41% disseram que talvez e 9% responde-ram que não. Assim, podemos concluir que poucos conhecem o con-teúdo dessas decisões, mas a maioria acredita que seria relevante esseconhecimento. Acreditamos que seria muito importante a institucio-nalização de canais de divulgação, no âmbito do Tribunal de Justiça,das decisões das cortes internacionais de direitos humanos, inclusivecomo parte de um processo mais amplo que busque uma maior efeti-vidade e aplicabilidade de tais direitos.

3.4. Análise regressiva dos dados

A opção metodológica pela utilização de modelos de regressãologística multinomial como ferramentas para subsidiar a análise dosdados está relacionada à sua aplicabilidade em testes de hipótese.Estes, por sua vez, são importantes para averiguar se a efetivação dosdireitos humanos no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro éinfluenciada ou não de modo significativo pelas condições objetivas– que são as variáveis estudadas pela pesquisa – apresentadas anteri-ormente, quais sejam: o perfil do magistrado, sua formação escolar eacadêmica, tipo de vara em que atua, sua concepção teórica sobre otema, o conhecimento ou não do funcionamento dos Sistemas ONU eOEA, entre outras.

Para o ajuste dos modelos logísticos multinomiais – que foramaplicados de modo sucessivo até serem alcançadas as variáveis maissignificativas para o grau de efetivação das normativas internacionaissobre direitos humanos – foi utilizada como variável resposta uma in-dicadora do uso de tais normativas6 na fundamentação das sentençasproferidas pelos magistrados. Tal variável foi construída a partir dasrespostas “freqüentemente”, “raramente” ou “não utilizo” dada a cada

326

6 Confira a nota no 2.

Page 339: Livro  Direitos Humanos Século XXI

uma das 11 normativas utilizadas na pesquisa. A variável indicadorafoi considerada “freqüentemente” quando havia tal resposta em pelomenos uma das normativas mencionadas. Considerou-se “raramen-te” quando não havia nenhuma resposta igual a “freqüentemente” epelo menos uma igual a “raramente”. A resposta “não utilizo” foi as-sociada sempre que havia tal resposta para todas as normativas men-cionadas.

O procedimento utilizado para a modelagem dos dados consistiuem aplicar sucessivos testes de hipótese acerca da contribuição decada variável explicativa para o poder de explicação do modelo, emum nível de 5% de significância. As variáveis consideradas significa-tivas, no nível fixado, foram utilizadas na composição de um únicomodelo, e novos testes de hipóteses foram aplicados.

Por fim, excluindo-se as variáveis que juntamente com as demaisnão contribuíam significativamente para o poder de explicação domodelo, foi obtido o modelo final ajustado e integrado pelas seguin-tes variáveis: a) tipo de vara; b) cor ou raça; e c) conhecimento sobre ofuncionamento dos Sistemas ONU e OEA.

3.4.1. Tipo de vara

Após a análise regressiva dos dados coligidos, podemos concluirno sentido de que é fundamental levar em consideração o tipo de varaem que o juiz atua, pois a matéria tratada encontra-se relacionada, demaneira direta ou inversa, com a aplicabilidade de algumas das nor-mativas mencionadas anteriormente. Na Tabela 1 a seguir, os tipos devara estão ordenados de maneira decrescente segundo sua contribui-ção para a utilização das normativas internacionais na fundamenta-ção das decisões judiciais.

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Tabela 1 – Valores estimados dos parâmetros e respectivoserros-padrão

Análise dos Parâmetros Estimados

Parâmetro Nível Estimativa Erro-padrão

Tipo de vara Criminal 0.1605 0.9656

Outros tipos de vara 0.0000 0.0000

Família –0.7936 0.9862

Órfãos e sucessões –0.9415 13.765

Cível –11.184 0.8695

Fazenda Pública –11.484 12.206

É possível afirmar, após a leitura dos resultados, que a probabili-dade de que as normativas internacionais sejam utilizadas freqüente-mente na fundamentação das sentenças é maior quando se trata devara criminal. No outro extremo estão as varas cível e de Fazenda Pú-blica, como aquelas cujo nível de utilização das normativas internacio-nais sobre direitos humanos na fundamentação das sentenças é me-nor. É curioso como o Estado (Fazenda Pública) e as relações patri-moniais entre particulares (cível) parecem permanecer incólumes àsinvestidas igualitárias decorrentes da garantia dos direitos humanos.

No âmbito das varas cíveis ainda é predominante uma tradiçãoprivatista, que ignora a eficácia horizontal dos direitos fundamentaisno seio das relações sociais de cunho privado. Entre os extremos es-tão as varas da infância e da juventude, as varas únicas de execuçãopenal, de auditoria militar, de registros públicos, de família e de ór-fãos e sucessões, cujas chances de que as normativas sejam utilizadasvão diminuindo gradualmente nessa ordem.

3.4.2. Cor ou raça

A cor ou a raça dos magistrados, consoante a Tabela 2, está orde-nada de maneira decrescente segundo sua contribuição para a utiliza-ção das normativas internacionais sobre direitos humanos na funda-mentação das sentenças judiciais.

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Page 341: Livro  Direitos Humanos Século XXI

Tabela 2 – Valores estimados dos parâmetros e respectivoserros-padrão

Análise dos Parâmetros Estimados

Parâmetro Nível Estimativa Erro-padrão

Cor ou raça Parda 14.457 17.588

Não informou 0.0000 0.0000

Indígena –0.9477 23.034

Branca –16.863 15.914

Observa-se que a cor ou raça associada à maior probabilidade deque as normativas internacionais sobre direitos humanos sejam utili-zadas freqüentemente é a parda. Em outro pólo, a cor ou raça branca éa que tem a maior probabilidade de que as normativas sobre direitoshumanos nunca sejam utilizadas. Tomando por base a categoria queagrega os casos em que o juiz não quis informar a sua cor ou raça(“não informada”), a indígena também apresentou reduzida probabi-lidade de utilização freqüente das normativas internacionais na fun-damentação das sentenças judiciais.

A elevada probabilidade de que os juízes pardos utilizem as nor-mativas internacionais de proteção dos direitos humanos na funda-mentação das sentenças pode estar associada à maior preocupaçãocom a matéria, conformada ao longo da história de exclusão socialsofrida por esse grupo social. Mesmo sendo o Brasil um país com asegunda maior população de afro-descendentes, estes encon-tram-se, em sua maioria, em situação de inferioridade social e eco-nômica.

O discurso que afirma que as pessoas consideradas pardas encon-tram-se econômica e socialmente incluídas, ou seja, de que não existeexclusão por razões étnicas ou raciais em nosso País, não revela o queocorre na prática. A presença de pessoas pardas ou negras em cargosde chefia, em universidades e outras posições socialmente valoriza-das, inclusive jurídicas, é ainda muito reduzida. Apesar de constituí-rem um grupo minoritário no TJERJ, o conjunto dos magistrados au-todeclarados pardos mostra uma ação diferenciada, compatível com oentendimento de que as normativas internacionais de proteção dos di-reitos humanos são grandes aliadas para a garantia da dignidade hu-

329

Page 342: Livro  Direitos Humanos Século XXI

mana e superação das desigualdades socioeconômicas historicamen-te presentes em nosso País.

3.4.3. Conhecimento dos Sistemas ONU e OEA

A efetividade de qualquer direito está necessariamente ligada aoinstrumental disponível à sua proteção, o que significa dizer que nãobasta apenas o reconhecimento jurídico de um determinado direito,mas também a criação de todo um arcabouço institucional que possi-bilite ao cidadão recorrer ao Poder Judiciário no caso de violação ouameaça ao seu direito. Com os direitos humanos o raciocínio é o mes-mo. Junto às declarações de direitos revela-se indispensável a cons-trução de mecanismos que possibilitem a efetivação e a proteção dosdireitos declarados. Em síntese, há a necessidade de um sistema insti-tucional de proteção de tais direitos.

O desconhecimento do funcionamento dos Sistemas de ProteçãoInternacional dos Direitos Humanos da ONU e da OEA apresenta-secomo um grande obstáculo à plena efetivação de tais direitos no coti-diano do nosso Poder Judiciário. Pode-se concluir, também, que odesconhecimento dos Sistemas de Proteção supracitados é, na verda-de, parte de um desconhecimento maior, que tem como objeto toda atemática dos direitos humanos. Na Tabela 3 a seguir, o nível de co-nhecimento dos Sistemas de Proteção Internacional dos Direitos Hu-manos da ONU e da OEA está ordenado de maneira decrescente se-gundo sua contribuição para a utilização das normativas internacio-nais na fundamentação das decisões judiciais.

Tabela 3 – Valores estimados dos parâmetros e respectivoserros-padrão

Análise dos Parâmetros Estimados

Parâmetro Nível Estimativa Erro-padrão

ONU e OEA Sim 21.475 13.346

Apenas superficialmente 14.382 11.866

Não informou 0.0000 0.0000

Não -0.2025 13.468

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Page 343: Livro  Direitos Humanos Século XXI

Os resultados da pesquisa demonstram que o desconhecimentodos Sistemas de Proteção influencia diretamente a não-aplicação dasnormativas internacionais sobre direitos humanos. O aludido desco-nhecimento, repita-se, acaba revelando um desconhecimento maisamplo da temática dos direitos humanos, inclusive sobre a existência,conteúdo e interpretação das normativas internacionais citadas napesquisa, culminando tal processo na ausência ou raridade na utiliza-ção de qualquer normativa internacional sobre direitos humanos noscasos concretos. O desconhecimento das normativas internacionaisde proteção aos direitos humanos é, evidentemente, um entrave a sersuperado na busca de uma maior efetividade de tais direitos no âmbitodo Poder Judiciário fluminense.

5. Considerações finais

Ao lado da identificação empírica – e não apenas teórica – dasinúmeras variáveis que influenciam o juiz para que ele utilize ou nãouma ou mais normativas internacionais de proteção dos direitos hu-manos na fundamentação das suas sentenças, revela-se de grande im-portância a definição das três variáveis principais: cor ou raça, tipo

de vara e o conhecimento do sistema de proteção da ONU e OEA.Estas, por sua vez, constituem os fatores preponderantes para o maiorou menor grau de justiciabilidade dos direitos humanos na prática co-tidiana dos magistrados no TJERJ.

Definir analiticamente qual a dimensão da contribuição indivi-dual de cada variável para a justiciabilidade dos direitos humanosconstitui conditio sine qua non para a elaboração e proposição deações estratégicas socialmente eficazes que visem a aumentar o usode tais normativas pelo Poder Judiciário. Nesse sentido, podem serdesenvolvidas ações direcionadas especialmente aos magistradosbrancos, assim como aos juízes que integram as varas cíveis e de Fa-zenda Pública no TJERJ. O conteúdo de tais ações estratégicas, indu-bitavelmente, deve versar sobre a arquitetônica institucional e o cor-

pus jurídico-normativo que conformam o direito internacional dos di-reitos humanos, pois o seu desconhecimento condiciona uma menor

efetividade das normativas internacionais sobre direitos humanos nocotidiano da atividade jurisdicional.

331

Page 344: Livro  Direitos Humanos Século XXI

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Page 346: Livro  Direitos Humanos Século XXI

VI.2. Entre a realidade e a realização:consciência de direitos e acesso à justiça

em comunidades urbanas carentes*

Núcleo de Direitos Humanos do Departamento de Direito,

PUC-Rio

1. Caracterização do problema

A partir da Constituição de 1988, tivemos reformas processuaisimportantes no sentido de ampliar o acesso à Justiça, como a previsãode novas formas de defesa judicial coletiva, o aprimoramento dos Jui-zados Especiais Cíveis, a disseminação das tutelas de urgência e aampliação da lista dos atos de litigância de má-fé. Ainda assim, mui-tos desafios sérios estão a esperar por uma solução. De acordo com asconclusões da pesquisa “Exclusão Jurídica” (Pibic/CNPq),1 realizadaem 2003, no âmbito do Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio,existem três obstáculos para a efetiva realização do acesso à Justiçaem sentido amplo: a ignorância jurídica, a assistência deficiente e amorosidade do Poder Judiciário. Essa situação-problema tem contri-buído para minar a confiança do cidadão no Poder Judiciário e no sis-tema democrático.

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* Projeto realizado pelo Núcleo de Direitos Humanos do Departamento de Direito da PUC-Rio.Participantes: Florian Fabian Hoffmann, Ronaldo Eduardo Cramer Veiga, Rachel Herdy deBarros Francisco, Teresa Robichez; Projeto Balcão de Direitos, Viva-Rio: Adriana Botafogo,Rodolfo Noronha; Consultora: Ângela Mendonça (CPDOC, FGV-Rio).1 Cramer, Ronaldo. Exclusão jurídica: acesso à justiça no contexto brasileiro. Revista Direito,

Estado e Sociedade, Rio de Janeiro: PUC-Rio; Departamento de Direito, Núcleo de DireitosHumanos, volume especial, n. 22-23, jan./dez. 2003.

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Acredita-se que uma correta abordagem do problema do acesso àJustiça demanda a adoção de uma perspectiva mais ampla, de manei-ra a abarcar, para além das inovações promovidas pelo Estado desde1988, outras iniciativas de caráter não estatal. Por mais que os novosinstitutos sejam uma resposta ao problema, o Poder Judiciário não seencontra preparado para lidar com o grande número de demandas quelhe são dirigidas diariamente e, por vezes, sequer toma conhecimentode uma série de conflitos sociais que permanecem sem resposta. Valeacrescentar ainda a existência de conflitos, sobretudo nas comunida-des urbanas carentes, com relação a direitos ainda não tutelados peloordenamento jurídico, como o “direito de laje”. Um recurso ao Judi-ciário, nesses casos, pouco adiantaria para a obtenção concreta de jus-tiça. É preciso construir uma “ponte” capaz de conduzir os conflitossociais reais à efetiva obtenção de justiça, seja por meio do próprioPoder Judiciário, mediante reformas processuais, seja por meio dapromoção de mecanismos alternativos de solução de disputas, como aprática de mediação que ocorre nos chamados “Balcões de Direitos”,uma iniciativa não estatal.

As três dificuldades aludidas devem ser analisadas de maneira con-junta. O que se busca é uma concepção ampla do acesso à Justiça, corre-tamente entendido como a promoção tanto do conhecimento sobre os di-reitos como dos meios efetivos para reivindicá-los. Daí a identificaçãode elementos subjetivos e objetivos envolvidos no tema do acesso à Jus-tiça, como se verá na parte metodológica desta proposta. A hipótese detrabalho afirma que os mecanismos não estatais de promoção do acesso àJustiça, cujo caso exemplar é o Projeto Balcão de Direitos, desenvolvemuma consciência de direitos e, nessa medida, ampliam o acesso à Justiçano sentido amplo. Isso porque, nesses mecanismos, as próprias pessoas/partes litigantes são estimuladas a identificar a questão controversa e aencontrar uma solução adequada para a disputa.

2. Objetivos

Os objetivos desta pesquisa podem ser desdobrados de acordocom as duas chaves de análise identificadas: uma focada na dimensãosubjetiva (I), que busca analisar a consciência de direitos por parte decidadãos membros de comunidades urbanas carentes; outra, na di-

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mensão objetiva (II), que pretende analisar a promoção do acesso àJustiça por agências estatais e não estatais. A seguir segue um elencodos objetivos conforme as dimensões aludidas:

I – Dimensão subjetiva

• Elaboração de um arcabouço teórico para a conceituação doque significa “consciência dos direitos”.

• Estudo do conhecimento por parte dos membros da comunidadeurbana carente sobre a existência de agências estatais e não esta-tais e a percepção dos direitos suscetíveis de serem pleiteados.

• Estudo da credibilidade e da confiança dos cidadãos de comu-nidades urbanas carentes usuários dos serviços de Justiça esta-tais e não estatais.

• Mapeamento da dinâmica de interação entre membros da co-munidade urbana carente e agências estatais e não estatais.

• Determinação do impacto posterior da utilização dessas açõesna construção de identidades e sociabilidades nessas mesmascomunidades.

II – Dimensão objetiva

• Levantamento das agências estatais e não estatais de promo-ção do acesso à Justiça e determinação das características emfunção da eficácia e da adequação: natureza jurídica, localida-de, âmbito do serviço prestado, entre outras.

• Mapeamento dos recursos humanos e materiais das agênciasestatais e não estatais.

• Determinação dos mecanismos utilizados para a resolução doconflito, através de uma perspectiva criativa e inovadora.

• Levantamento do volume de processos por agência; númerode advogados, conciliadores e mediadores envolvidos; dura-ção das demandas.

• Análise da sustentabilidade financeira e independência opera-cional das agências estatais e não estatais e indicação das expe-riências de excelência mediante a criação de indicadores dedesempenho.

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3. Metodologia e estratégia de ação

De acordo com a caracterização inicial do problema e os objeti-vos traçados, a presente proposta de pesquisa busca uma estratégia deação que acredita que uma abordagem adequada do tema requer aconsideração das dimensões subjetivas (I) e objetivas (II) que possi-bilitam ao cidadão o efetivo acesso à Justiça. Essa divisão metodoló-gica busca lidar com o fato de que a dificuldade por parte dos morado-res de comunidades urbanas carentes em acessar a Justiça surge tantoda inexistência de condições subjetivas capazes de identificar a exis-tência de um conflito a ser caracterizado como uma questão de direi-to, como da falta de agentes orientadores e promotores da resoluçãoda disputa. Esses dois aspectos se encontram de fato imbricados, umavez que a garantia dos meios para o indivíduo pleitear o direito e solu-cionar o conflito social de nada vale se o mesmo não os (re)conhece.

Assim, em termos metodológicos, a pesquisa desdobra-se emduas chaves de análise: no plano subjetivo, avalia-se a consciência dedireitos dos cidadãos moradores de comunidades urbanas carentes(dimensão I); no plano objetivo, seriam avaliados, de um lado, osmeios estatais (dimensão IIa), de outro, os meios não estatais (dimen-são IIb) de promoção do acesso à Justiça.

De forma a dar conta de políticas públicas e privadas de promo-ção do acesso à Justiça, identificamos duas iniciativas: uma pública –os Juizados Especiais Cíveis (JEC), instituídos pelo Estado brasileiroem 1995 –; outra privada – o Balcão de Direitos, criado pela organiza-ção não governamental Viva-Rio. Vale notar que esse duplo enfoquena análise da dimensão objetiva, de modo a abarcar tanto as agênciasestatais como as não estatais de promoção do acesso à Justiça, procu-ra dar conta das diversas modalidades de ampliação da cidadania comespecificidades próprias relevantes para a questão da consciência dedireitos.

Adotamos a técnica de estudo de caso. O critério de escolha da co-munidade urbana carente objeto de pesquisa levará em consideraçãodois elementos essenciais: de um lado, a atuação já consolidada do Pro-jeto Balcão de Direitos; de outro, o grande número de demandas impe-tradas no Juizado Especial Cível da mesma circunscrição. Diante des-ses elementos, a Rocinha desponta como a comunidade mais indicada,pois é nessa localidade que o Projeto Balcão de Direitos encontra-se em

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estágio mais avançado e que se constata igualmente um grande númerode demandas no Juizado Especial Cível competente.

A investigação envolve basicamente quatro etapas: (I) pesquisabibliográfica; (II) pesquisa empírica; (IIII) análise do material levan-tado; e (IV) divulgação dos resultados obtidos, conforme o cronogra-ma a seguir.

Na primeira etapa (1), buscar-se-á realizar uma revisão crítica daliteratura sobre o tema. Considerando a perspectiva ampla sobre oacesso à Justiça e, portanto, as diferentes dimensões de análise identi-ficadas, buscar-se-á recorrer a estudos de caráter interdisciplinar. Aliteratura, pois, não se restringirá aos estudos jurídicos e políticos, jáamplamente conhecidos, mas recorrerá igualmente a contribuiçõesoriundas da sociologia, da psicologia e da pedagogia para fins deconstrução de uma teoria mais compreensiva.

A etapa empírica (2), como se pode observar no cronograma an-terior, será realizada no decorrer de sete meses após o levantamentobibliográfico. No que concerne à dimensão objetiva (IIa e IIb), bus-car-se-á o acompanhamento dos meios estatais e não estatais de reso-lução de conflitos de acordo com os objetivos traçados e a opção pelametodologia do estudo de casos. Dessa forma, tendo em vista a con-centração da pesquisa na Rocinha, como comunidade urbana carente,pela conveniência dos critérios indicados, serão investigados, de umlado, o XXIV Juizado Especial Cível (Barra da Tijuca), que atende àsdemandas provenientes dessa localidade, e, de outro, o Projeto Bal-cão de Direitos, Núcleo Rocinha. Já no que concerne à dimensão sub-jetiva (I), e considerando ainda os objetivos traçados, serão realizadasentrevistas com as partes conflitantes antes e depois da resolução.

A etapa posterior à empírica consiste na análise do material le-vantado (3), tarefa que se pretende realizar em um período de três me-ses. Nessa fase, será feita uma comparação entre os meios estatal enão estatal no tocante à efetiva promoção do acesso à Justiça e à cria-ção de uma consciência de direitos. Para tanto, serão confrontados osresultados obtidos na fase empírica com as proposições teóricas fun-damentais, ou seja, as etapas 1 e 2.

A última fase consiste na divulgação dos resultados obtidos atra-vés dos meios acadêmicos tradicionais, como a realização de seminá-rio científico, a publicação de artigos em periódicos devidamente cre-

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denciados (ISSN) e com ampla circulação no território nacional, aelaboração de obra coletiva devidamente registrada (ISBN) e a cria-ção de uma espécie de relatório como documento capaz de direcionarpolíticas públicas e privadas de promoção ou ampliação do acesso àJustiça em comunidades urbanas carentes.

4. Resultados esperados

De maneira geral, os principais resultados esperados com estapesquisa são:

• Contribuir para uma avaliação crítica de iniciativas públicas eprivadas de conscientização e promoção do acesso à Justiçacom referência a cidadãos membros de comunidades urbanascarentes. Acredita-se que uma melhor compreensão das expe-riências nesse campo poderá auxiliar o planejamento e o funcio-namento de ações futuras.

• Aprofundar o debate teórico sobre a temática na universidadecom vistas a possibilitar um estudo compreensivo da realidadeda questão examinada.

• Propiciar o diálogo entre o meio acadêmico, a sociedade civilorganizada e o Governo.

• Disponibilizar dados mediante a criação de uma plataformapara a realização de estudos críticos sobre o tema da pesquisa,a ser consultada, sobretudo, por tomadores de decisões e for-muladores de políticas públicas nos níveis local e nacional.

Especificamente, os resultados esperados são:

• Publicação de, pelo menos, três artigos em periódicos científi-cos altamente qualificados com ampla divulgação no meioacadêmico nacional, considerando as três dimensões da pes-quisa relacionadas: a dimensão subjetiva I (Consciência de Di-reitos); a dimensão objetiva IIa (Meios Estatais de Resoluçãode Conflitos); e a dimensão Objetiva IIb (Meios Não Estataisde Resolução de Conflitos). A instituição responsável pelaexecução da pesquisa, o Núcleo de Direitos Humanos (NDH),pertence ao quadro estrutural do Departamento de Direito daPUC-Rio, o qual possui meio próprio de publicação, como o

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periódico científico Direito, Estado e Sociedade, ISSN1516-6104, com periodicidade semestral. Além disso, o pró-prio Núcleo de Direitos Humanos do Departamento de Direitopossui uma revista eletrônica, o Boletim NDH, veiculada nasua página da Internet e atualizada anualmente com os resulta-dos das investigações dos grupos de trabalho.

• Publicação de obra coletiva, preferencialmente através da Edi-tora PUC-Rio, com a contribuição dos participantes da inves-tigação.

• Publicação em mídia impressa e eletrônica de relatório de pes-quisa com conclusões diretivas com vistas a orientar políticaspúblicas e privadas de promoção do acesso à Justiça e amplia-ção da consciência de direitos em comunidades carentes.

• Realização de seminário científico na Pontifícia UniversidadeCatólica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) para a divulgação dosresultados e do percurso metodológico da investigação e dis-cussão do relatório final a ser encaminhado para as agênciaspúblicas e privadas.

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VI.3. O projeto moderno e a crise da razão:que justiça?

Wilson Levy*

Resumo: A proposta do presente texto é apresentar uma reflexãointerdisciplinar sobre a crise do projeto filosófico da modernidade.Assenta seus fundamentos em referenciais da chamada pós-mo-dernidade, como, por exemplo, Gilles Lipovetsky e Boaventura deSousa Santos, e na crítica de autores como Sérgio Paulo Rouanet eMax Horkheimer. O objetivo é discutir de que forma a crise da razão,inserida na crise da modernidade, compreende uma influência à criseda justiça. A metodologia consistirá na análise de textos e fragmentosdos referidos autores. Espera-se, como resultado, apontar os elemen-tos da crise da modernidade que estão presentes na crise do que se en-tende por justiça.

“Talvez a mais grave e imperdoável [confusão] é a incapacidade de sedistinguir, no discurso sobre os intelectuais, o plano do ser do plano do deverser, a postura descritiva da postura prescritiva, o momento da análise do mo-mento da proposta (...). A passagem de um plano a outro ocorre muitas vezesde modo inconsciente, tanto que o juízo negativo sobre a inteira categoriadepende unicamente da constatação de que, de fato, os intelectuais de quem

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* Graduando em Direito pela PUC-Campinas, membro do grupo de pesquisa CNPq “Ética e Justi-ça”, ao qual se vincula esta pesquisa, bolsista de iniciação científica do Pibic-CNPq, sob a orienta-ção do professor Dr. Luiz Paulo Rouanet. O grupo se vincula ao Programa de Mestrado em Filoso-fia da PUC-Campinas. Associado da ANDHEP (Associação Nacional de Direitos Humanos, Pes-quisa e Pós-graduação) e da ABEDi (Associação Brasileira de Ensino do Direito).

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observamos o comportamento não desempenham a função que deveriam de-sempenhar segundo o modelo ideal. Mas apenas por isso deixam de ser inte-lectuais? A melhor prova dessa confusão é a distinção entre ‘verdadeiros’ e‘falsos’ intelectuais. Assim, será verdadeiro intelectual o revolucionário;falso o reacionário; verdadeiro aquele que se engaja; falso aquele que não seengaja e permanece fechado na torre de marfim.”1

Falar sobre a crise da modernidade exige a percepção da plurali-dade de perspectivas que compõem o mundo contemporâneo. Nãodeve ser, pois, um ato restrito à contemplação no gabinete, aos círcu-los acadêmicos, às rodas de conversa que surgem entre um congressoe outro: é um constante diálogo com a realidade, como construção es-paço-temporal, seja ela social, econômica ou política, da qual se ex-traem as noções empíricas que ilustram as discussões, e que por si sóexprimem a essência ambígua (universal? particular? emancipação?dominação? paz? barbárie?) dos tempos modernos.

Não se trata, portanto, de um debate fechado àqueles que muitasvezes permanecem encastelados na cátedra, postura que ora limita a so-cialização do conhecimento – e limitá-la é obstruir sua eficácia, pois élimitar a verdade –, ora se perde na abstração exagerada e na divagação,à custa de seu potencial transformador, o que o torna ininteligível, bu-rocrático, mecânico. Ser acessível na linguagem e não abrir mão da ex-periência sensível não significa abrir mão da razão e carecer de méto-do, imprescindível à construção dos juízos: o contrário, talvez, denotelatente inadequação. Ou seria inútil ao debate, por exemplo, a imagemde um menino albanês, na província autônoma de Kosovo, na Iugoslá-via do início dos anos 1990, em uma foto tirada por Sebastião Salgado?A complexidade de significados agregados da imagem decerto é tão re-levante quanto o conhecimento tal qual o concebemos.

É exatamente esse o propósito desta breve reflexão sobre os tem-pos em que vivemos. Não é possível entendê-los prescindindo do lia-me que há entre o que se vive e o que se pensa, o que se critica e o quese propõe, o que se constrói e o que resta esgotado. Cabe, portanto, umconvite a se debruçar sobre a barbárie de uma modernidade que pro-meteu paz e emancipação; sobre o que salta aos olhos, as chagas evi-dentes, para constatar a patologia e, quiçá, apontar para uma cura.

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1 Bobbio, Norberto. Os intelectuais e o poder. p. 13.

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O que discutir sobre o corpo enfermo da modernidade? Está mo-ribundo, em um mundo que desestimula a eutanásia – baseado nodogmatismo que ele próprio condenara em vida –, o que inflige doresinsuportáveis ao todo social que ele abarca? Ou pode ser salvo, aindaque à custa de graves seqüelas?

Deve seu órgão fundamental, a razão, ser extirpado, ou são possí-veis tratamentos alternativos? Ao menos se concorda que a doença seinstaurou.

E a Justiça, como fica em meio aos problemas, às dúvidas, aos ex-cessos, às deficiências, à apatia? Decretar o fim da modernidade seriaum convite à anomia, ou a lei objetiva, imparcial, fria, imposta verti-calmente para todos, continua sendo eficaz? Seria possível pensar emum paradigma alternativo?

Pretendo desenvolver, em um primeiro momento, a questão doprojeto da modernidade, do universalismo à objetividade das leis,abordando a crise da razão, cuja reflexão se insere na temática da crisedo paradigma moderno, mas é pontualmente mais relevante para aanálise que se pretende, da justiça social na contemporaneidade. Re-corro, para tanto, às reflexões de Sérgio Paulo Rouanet, que, não obs-tante ecoar o discurso da modernidade não esgotada, tem a sensibili-dade de reconhecer suas contradições; a Gilles Lipovetsky, teóricodos efeitos sociais da crise do projeto moderno; e a Max Horkheimer,cujos apontamentos a respeito da crise da razão compreenderam umaporte fundamental à confecção deste texto.

Em um segundo momento, é importante fazer apontamentos so-bre o conceito de justiça e da justiça em si inserida no mundo contem-porâneo, vista a partir de quem a opera, e amparado, entre outros, nasidéias de Boaventura de Sousa Santos. Por fim, pretendo sintetizar ospontos levantados em uma breve conclusão. Resta saber se esta terácomo propósito a necessidade de um novo modelo, entendendo o hojecomo uma fase de transição paradigmática – daí a pós-modernidade2

–, ou se será a modernidade não esgotada, revista a partir de si própria.

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2 O tema da pós-modernidade passa por um momento de debate e reflexão muito presente nomeio acadêmico, entre publicações de cientificidade questionável, sobretudo no direito, que to-mam de assalto o termo para designar as mais diversas (e equivocadas) abordagens. Para a com-preensão deste artigo, sugere-se a leitura dos textos do sociólogo português Boaventura de Sou-sa Santos, do texto de Kumar Krishan (Da sociedade pós-industrial à pós-moderna. Rio de Ja-

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1. A crise da razão

“A própria ciência moderna, que se constitui na base da experiênciasensível, da experimentação e do teste, com base na herança baconiana enewtoniana, negou qualquer possibilidade de comprometimento do cientis-ta com os mistérios da realidade. Somente valia o que estava provado, de quese podiam descartar as instituições e os sentimentos, as ideologias e as par-cialidades tendenciosas do cientista.”3

“Não esqueçamos que sob a capa de valores universais autorizados pelarazão foi de fato imposta a razão de uma raça, de um sexo, de uma classe so-cial.”4

Antes de dar início às reflexões sobre a crise do conceito de razão,é mister indicar que a constatação da patologia do projeto da moderni-dade resta inequívoca entre os que se propõem refletir sobre o assun-to. As diversas abordagens apontam para a constatação de que se tratade divergências meramente semânticas, de nomenclatura.

O momento que se vive, enquanto fase de transição paradigmáti-ca, não é muito diferente, pelo menos nos apontamentos das deficiên-cias do projeto moderno, da neomodernidade de Sérgio Paulo Roua-net, da hipermodernidade de Gilles Lipovetsky, da modernidade ina-

cabada de Jürgen Habermas ou mesmo da consagrada pós-moderni-

dade de Jean-François Lyotard. Insistir em uma discussão terminoló-gica é perder um tempo imprescindível para se debruçar sobre o qua-dro de profundas mudanças que se apresentam cotidianamente, deforma a entender o hoje e talvez o amanhã como algo além de meroexercício de futurologia.

Começo esta reflexão com uma afirmação: a vida do homem nãoé tão exata quanto parece. Não é possível, portanto, lidar com a miría-de de variáveis que compõem o homem e influenciam na deliberaçãoe na atuação social como elementos, x, y e z, inseridos em um plano deretas. Dessa forma, é oportuno colocar que a modernidade dos gran-

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neiro: Jorge Zahar, 1997), dos escritos do filósofo francês Gilles Lipovetsky e, evidentemente,de Jean-François Lyotard. Em contrapartida, é difícil discutir a modernidade sem um exame dofilósofo alemão Jürgen Habermas e de Sérgio Paulo Rouanet.3 Bittar, Eduardo C. B. Ética, educação, cidadania e direitos humanos. p. 32.4 Santos, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiên-cia. p. 30.

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des paradigmas, das grandes sistematizações, dos enquadramentos,das lógicas coletivas, da razão objetiva se consumou em um hoje queLipovetsky caracteriza como um momento de inversão:

“Chamamos de sociedade pós-moderna a inversão desta organização ca-racterizada pela dominância, no momento em que as sociedades ocidentaistendem cada vez mais a rejeitar as estruturas uniformes e a generalizar os siste-mas personalizados à base de solicitação, de opção, de comunicação, de infor-mação, de descentralização e de participação (...). Neste aspecto, a erapós-moderna não é, de maneira alguma, a era paroxística libidinal e impulsivado modernismo; nós pensaríamos de preferência o inverso: a tendência à hu-manização sob medida da sociedade, o desenvolvimento das estruturas fluidasmoduladas em função do indivíduo e dos seus desejos, a neutralização dosconflitos de classe, a dissipação do imaginário revolucionário, a apatia cres-cente, a dessubstaciação narcísica, o reinvestimento cool do passado.”5

Erodida a razão objetiva, desdobram-se os efeitos sintomáticosda pós-modernidade: a personalização, ante a coletividade, o reen-cantamento do mundo, ante a visão secular, a instrumentalidade darazão, subvertida a adequar meios a fins, a legitimação pela eficácia epelo desempenho, ante a emancipação pelo saber, a confusão e a per-da de referenciais valorativos, ante os modelos de conduta, as codifi-cações legais e as grandes estruturas normativas, a apatia, ante asenergias utópicas, o momento presente, ante o futuro, o hedonismo,ante a ética do trabalho.

Um ponto merece atenção especial. Sobre o reencantamento domundo, coloca Sérgio Paulo Rouanet:

“A autonomia intelectual, baseada na visão secular do mundo, está sen-do explodida pelo reencantamento do mundo, que repõe os duendes em cir-culação, organiza congressos de bruxas, associa-se ao guia Michelin para fa-cilitar peregrinações esotéricas a Santiago de Compostela e fornece horós-copos eletrônicos a texanos domiciliados no Tibet.”6

Tal reencantamento é sinal evidente de que a razão não ofereceu,ao menos para uma infinidade de almas, as respostas para as questõesda vida, para as frustrações e angústias do cotidiano, para os proble-

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5 Lipovetsky, Gilles. A era do vazio. p. 90.6 Rouanet, Sérgio Paulo. O mal-estar da modernidade. p. 10.

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mas das relações interpessoais, para a atuação social, em tal medidaque, não sendo mais possível se apegar exclusivamente a ela, o mun-do passou a apostar nas respostas vindas de entidades etéreas, noprêt-à-porter sincrético de elementos esotéricos, que, se não respon-dem nada, ao menos servem como amparo metafísico e psicológicopara a desorientação erigida no crepúsculo da modernidade. A explo-são editorial de livros de auto-ajuda e de motivação pessoal, dos maisvariados títulos, e o surgimento de seitas que prometem o emprego an-tes do Éden, o casamento antes da vida eterna, as benesses materiais(e o dízimo) antes do sagrado são igualmente sintomáticos do mundocontemporâneo.

Mesmo entre os defensores do projeto moderno, que reiterada-mente colocam seu não-esgotamento e sua capacidade de autocrítica,urgem reflexões que parecem estranhas ao que a própria modernida-de propôs em seu alvorecer. Não parece contraditório inserir o ele-mento religião na constituição do homem moderno, forjado exata-mente para crer na razão ante as estruturas dogmáticas de outrora?Não para Habermas, que coloca:

“Um ceticismo radical quanto à razão é, por princípio, estranho à tradi-ção católica. Mas o catolicismo teve dificuldade para lidar, até os anos 60 doséculo passado, com o pensamento secular do humanismo, do iluminismo edo liberalismo político. Assim, hoje novamente encontra ressonância o teo-rema de que uma modernidade contrita só pode ser auxiliada para fora de umbeco sem saída por meio de uma orientação religiosa dirigida para um pontode referência transcendental.”7

Elevada a imperativo na orientação das ações do homem, a razãoo prendeu a uma esfera sistêmica, burocrática e instrumental de apre-ensão, análise e atuação, das relações interpessoais às estruturas nor-mativas da vida em sociedade, de maneira aparentemente isenta. E,na medida em que, assoberbada pelas certezas da infalibilidade nasrespostas dos mistérios da natureza, excluiu toda e qualquer alterna-tiva, toda e qualquer perspectiva paralela de análise e condução dasdecisões nas diferentes esferas humanas, constituiu um dos mais efi-cientes e perversos artífices de dominação e poder. Discorre sobreisso Rouanet:

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7 Habermas, Jürgen. O cisma do século XXI. Folha de S. Paulo, São Paulo, 24 abr. 2005. Cader-no Mais!, p. 5.

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“Depois de Marx e Freud, não podemos mais aceitar a idéia de uma ra-zão soberana, livre de condicionamentos materiais e psíquicos. Depois deWeber, não há como ignorar a diferença entre uma razão substantiva, capazde pensar fins e valores, e uma razão instrumental, cuja competência se esgo-ta no ajustamento de meios a fins. Depois de Adorno, não é possível escamo-tear o lado repressivo da razão, a serviço de uma astúcia imemorial de domi-nação da natureza e sobre os homens. Depois de Foucault, não é lícito fecharos olhos ao entrelaçamento do saber e do poder. Precisamos de um raciona-lismo novo, fundado numa nova razão.”8

Mas, o que deu errado nesse ínterim, para que a razão, como úni-co atributo capaz de libertar o homem, fosse revestida de um carátermeramente instrumental? Seria o elemento poder, que povoa as refle-xões de Friedrich Nietzsche? Seria a crença em um fundamento dedominação e luta de classes, de caráter eminentemente econômico,como sugere Marx? Seria a opção por um modelo liberal, baseado noindivíduo, que em verdade se projeta na constituição de uma psique

de competição, potencializada na modernidade pelo discurso de legi-timação das ciências pelo desempenho e pela eficácia?

A resposta, talvez, leve em consideração todos esses pontos. Acrise da modernidade não é ela própria externa à modernidade. Osdesdobramentos das grandes teorias políticas que lhes são contempo-râneas, endossados em parte na razão, auto-referente quando defini-mos “ideologia”, decerto têm participação nesse processo, pois, damesma forma que o socialismo real do Leste Europeu se mostrou in-capaz de transformar integralmente as sociedades que adotaram seuspressupostos, o (neo)liberalismo, tanto nos principais eixos econômi-cos, políticos e militares do mundo, quanto – e principalmente – nospaíses periféricos, não parece ter sido um projeto digno de muita con-fiança. Da mesma forma, desconsiderar o elemento poder como parteda natureza do homem, como fundamento por excelência de suasações, foi um erro no qual os teóricos do projeto moderno parecem terincorrido com assombrosa freqüência.

Dessa forma, é possível colocar que a modernidade não atingiuseus objetivos. Entre excessos e deficiências, amalgamados nas di-mensões axiológica, política e econômica, o projeto moderno, queprometia libertar um mundo povoado por anjos e demônios, padres e

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8 Rouanet, Sérgio Paulo. Razões do Iluminismo. p. 12.

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nobres, transformou a razão, em sua face instrumental, em seu dog-ma; as elites econômicas, tipicamente liberais, em seus nobres; a idéiade universalidade de valores em seu fantasma, que ainda paira pelomundo encarnado na pretensão de direitos humanos universais, cujadiscussão será retomada no próximo ponto do texto.

O projeto moderno se transformou, assim, em um arremedo depromessas não cumpridas, ao mesmo tempo em que assistiu, atônito,à exacerbação inevitável daquilo que lhe era mais caro, a crença na in-falibilidade da ciência e da razão. A mesma razão que criou a Monali-

sa, a mesma razão libertadora que traria luz a um mundo de sombras,foi partícipe e atriz dos maiores morticínios de que se teve notícia nahistória e no século das tecnociências, ceifando vidas e condenando omundo a uma descrença sem precedentes nas respostas da ciência.

O mesmo século XX que diminuiu a distância entre os homensfoi o século em que mais pessoas morreram por efeito dos avançostecnológicos de caráter bélico. O século XX da televisão, do avião edo automóvel foi o mesmo século da bomba atômica, do agente laran-ja e do gás mostarda. O século XX do Projeto Genoma foi o mesmoséculo das drogas sintéticas e do controle clínico da depressão, sim-bolizado na pílula do Prozac. Tememos hoje tanto o cientista, e suacapacidade quase infinita de criar o caos, quanto temíamos, séculosatrás, os demônios que provocavam os homens crentes em Deus.

No campo da filosofia política, os grandes sistemas de organiza-ção social cuja origem está no projeto moderno, a saber, o socialismoe o liberalismo econômico, fizeram uma aposta que depois se com-provou equivocada na hipótese de uma razão objetiva que determi-nasse as escolhas e as condutas dos homens em sociedade. Nesse sen-tido, há nitidamente uma contradição entre o conceito de razão subje-tiva, subjacente no mundo contemporâneo, e o conceito de comuni-dade nacional e constituição política, fundamento do universalismo.

Os conceitos e princípios fundamentados na razão objetiva,como a idéia de justiça, igualdade, felicidade, democracia, se diluí-ram no universo de interesses pessoais e do microcosmo de gruposrestritos de poder que predominam na sociedade contemporânea. Talprocesso não veio acompanhado de uma fundamentação, de um com-promisso moral e ético. A moral e a ética, hodiernamente, parecemestar mais associadas a objetos místicos e esotéricos, portanto não

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sendo dignos de serem refletidos. Transformada em artífice análogoàqueles usados em um processo industrial e mecânico de apreensão,análise e produção do conhecimento, a razão restou como eficiente, eaparentemente imune a influências externas e paixões humanas, meiode viabilizar em larga escala as formas de domínio, cultural, político eeconômico, que nos são contemporâneas.

Nesse sentido, Max Horkheimer, da Escola de Frankfurt, apre-senta uma reflexão no sentido de colocar que o conhecimento técnico,fundamentado no pressuposto de uma racionalidade livre de elemen-tos externos, permitiu uma expansão do horizonte do pensamento hu-mano, mas, em contrapartida, teve suas nervuras maculadas por umprocesso de inflexão da oposição aos mecanismos de manipulação demassas, ao poder de imaginação e ao juízo dos fatos. O processo deavanço dos recursos técnicos da informação foi acompanhado poruma desumanização, cujo reflexo ameaça anular a finalidade do quese supõe ser seu próprio objetivo: a idéia de homem.

Esvaziado o conteúdo axiológico do mundo em nome do primadoda razão, primado que radicalizou profundamente as formas de apre-ensão da validade, surge como conseqüência o relativismo conceitualhabitualmente atribuído à pós-modernidade. Falar em belo e justo,nesse sistema altamente racionalizado, é tão vago quanto atribuir osconceitos de não-belo e injusto.

Na análise de Horkheimer, a razão não dirige a realidade social, ecoloca que hoje esse distanciamento está tão grande que resta expur-gada até mesmo do julgamento das ações e do modo de vida do ho-mem. Entregou-se, enfim, a uma perspectiva formal de sanção de in-teresses em conflito, abstraída de valores e consoante a condição deum paradigma em crise. As conseqüências dessa formalização, se-gundo Horkheimer:

“Justiça, igualdade, felicidade, tolerância, todos os conceitos que,como já disse, foram nos séculos precedentes julgados inerentes ou sancio-nados pela razão, perderam as suas raízes intelectuais. Ainda permanecemcomo objetivos e fins, mas não há mais uma força racional autorizada paraavaliá-los e ligá-los a uma realidade objetiva. Endossados por veneráveisdocumentos históricos, podem ainda gozar de certo prestígio, e alguns estãopresentes nas leis supremas dos maiores países. Contudo, falta-lhes a confir-mação da razão em seu sentido moderno.”9

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9 Horkheimer, Max. O eclipse da razão. 2002. p. 32.

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Assim, resta colocar que a razão foi incapaz, sozinha, de deliberarcom a segurança prevista no projeto moderno. É possível afirmar,portanto, que sua face instrumental, aquela que lhe foi mais proemi-nente e decerto mais consagrada, deu asas a injustiças, sistematizouperversidades, codificou interesses particulares, legitimou e univer-salizou muito da barbárie nos últimos séculos.

Como descreve o filósofo francês Gilles Lipovetsky,10 a pós-mo-dernidade é a representação simbólica das frustrações do homem mo-derno. Os velhos discursos emancipatórios consumaram-se em ex-cessos, como a explosão individualista, a afeição desmedida pelo he-donismo e a diversidade de culturas de butique, de orientação exclusi-vamente econômica. O Estado perdeu sua função regulatória e refe-rencial para as grandes corporações, que passaram a centralizar a pro-dução da cultura como expressão personalizada, individualizada,pocket, para indivíduos, pequenos grupos, “tribos” específicas.

Boaventura de Sousa Santos pontua que só a partir da modernida-de é possível transcender a modernidade. Portanto, a razão não deveser descartada como vetor da transformação, da mesma forma que após-modernidade, como apontam seus críticos, não é um convite àanomia. Não se trata de mero modismo acadêmico, e sim da constata-ção de uma nova situação fática e filosófica da qual não é possível fu-gir. Compreende um infantilismo negar a face patológica da moderni-dade, da mesma forma que é um infantilismo virar-se de costas paraela e esperar uma solução para seus problemas, estando essa solução,fundamentalmente, na própria modernidade, ainda que fragmentadae sem estar revestida desse sentido de finalidade.

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10 Nada é mais sintomático da crise do primado da razão do que a passagem: “Ninguém duvidade que, em muitos casos, a febre de compras seja uma compensação, uma maneira de conso-lar-se das desventuras da existência, de preencher a vacuidade do presente e do futuro... Na ver-dade, o que nutre a escala consumista é indubitavelmente tanto a angústia existencial quanto oprazer associado às mudanças, o desejo de intensificar e reintensificar o cotidiano” (Lipo-vetsky, Gilles. Os tempos hipermodernos. 2004. p. 79). Continua Lipovetsky: “A cultura hiper-moderna se caracteriza pelo enfraquecimento do poder regulador das instituições coletivas epela autonomização correlativa dos atores sociais em face das imposições de grupo, sejam dafamília, sejam da religião, sejam dos partidos políticos, sejam das culturas de classe. Assim, oindivíduo se mostra cada vez mais aberto e cambiante, fluido e socialmente independente. Masessa volatilidade significa muito mais a desestabilização do eu do que a afirmação triunfante deum indivíduo que é senhor de si mesmo. Testemunho disso é a marte montante de sintomas psi-cossomáticos, de distúrbios compulsivos, de depressões, de ansiedades, de tentativas de suicí-dio, para não falar do constante sentimento de insuficiência e autodepreciação” (Lipovetsky,Gilles. Os tempos hipermodernos. 2004, p. 83).

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É possível falar na modernidade como dissociada de contribui-ções? É evidente que não. Da mesma forma que a modernidade, atra-vés da racionalidade cognitivo-instrumental, cooptou o mercado e oEstado, inserindo-os em padrões, modelos, perfis, sistemas ordena-dos, através da especialização e da diferenciação técnico-científica;da mesma forma que legitimou o discurso do desempenho e da eficá-cia, acima de todos os outros discursos emancipatórios que a moder-nidade defendeu em seu palanque, o projeto moderno permitiu, aindaque através de efeito reverso, ou seja, como efeito colateral benéfico,que o conceito de comunidade permanecesse intacto, mesmo quemarginalizado. Esta resta, pois, como única alternativa aos descami-nhos da modernidade: a aposta no multiculturalismo e na pluralidadede elementos constitutivos do saber como contrapontos à hegemoniado pensamento ocidental.

2. Justiça?

“Reconhecer a diversidade encontrada em diferentes culturas é muitoimportante no mundo contemporâneo. Nossa compreensão da presença dadiversidade tende a ser um tanto prejudicada por um constante bombardeiode generalizações excessivamente simplificadas sobre a ‘civilização oci-dental’, os ‘valores orientais’, as ‘culturas africanas’ etc. Muitas dessas in-terpretações da história e da civilização não só são intelectualmente superfi-ciais, como também agravam as tendências divisoras do mundo em que vi-vemos.”11

Abordar o conceito de justiça e o entrelaçamento de seus pressu-postos com as peripécias da razão demanda primeiramente uma breverevisão histórica e conceitual. O que é justiça? Quais são os reflexosda crise da modernidade no campo da justiça social? Vivemos em ummundo justo? É possível falar em direitos humanos universais?

Antes de iniciar esta reflexão a respeito do tema justiça, cabe rea-lizar um breve estudo a respeito da formação daquele que o terá comosua finalidade por excelência. Quais são as perspectivas do ensino ju-rídico, sobretudo no âmbito nacional, e qual é a relação dessa opçãometodológica com os problemas verificados em sua forma operacio-

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11 Sen, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. p. 282.

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nal? Qual seria a solução, a alternativa ao que se coloca como um im-perativo sistemático de formação do jurista na contemporaneidade?

Curiosamente, ainda que a discussão seja contemporânea e apre-sente-se de forma acalorada, não resta muita dúvida quanto ao fato deo ensino jurídico no Brasil fazer parte de estruturas que ainda perten-cem a um universo pré-moderno, tal é o formalismo técnico e o arca-ísmo das relações pedagógicas entre alunos e professores.

Seguindo a tradição moderna de compactação de conteúdos e davisão de que o direito não está inserido no espaço e no tempo, a cultu-ra jurídica se apresenta como um referencial de respostas associativasrápidas, baseadas em vasta jurisprudência cuja relação se perde notempo, ainda que não esteja necessariamente vinculada a uma pers-pectiva histórica e social; é decodificadora, mas não interpretativa danorma, e adepta da mera subsunção dos fatos às normas; é temeráriadas ciências humanas, e quando muito as vê como apêndice, acessó-rio necessário na exata medida em que se vincula a discursos e pare-ceres.

Sobre a posição refratária à interdisciplinaridade e as conseqüên-cias disso no universo da pesquisa, como momento imprescindível naconstrução do conhecimento, dispõe Marcos Nobre:

“Pode-se dizer que os parcos contatos de teóricos do direito com espe-cialistas de outras disciplinas não podem ser contados como interdisciplina-ridade, já que, em lugar de autêntico debate e diálogo, com mudança de posi-cionamento e de opiniões, encontramos os teóricos do direito no mais dasvezes na posição de consultores e não de participantes efetivos de investiga-ções interdisciplinares. Seja como for, esse isolamento do direito como dis-ciplina pode ser uma das razões pelas quais não só a pesquisa como tambémo ensino jurídico não avançaram na mesma proporção verificada em outrasdisciplinas das ciências humanas, já que em uma universidade de modelohumboldtiano ensino e pesquisa não podem andar separados.”12

Seria essa uma constante contemporânea? De onde vem o apegoformalista no ensino do direito? Como aponta Eduardo C. B. Bittar,em uma caracterização histórica das Faculdades de Direito:

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12 Nobre, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em direito no Brasil. Revista Novos Estudos

do Cebrap, p.146, jul. 2003.

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“As aulas estavam profundamente concentradas na figura do professor,e, geralmente, despertavam pouco interesse e simpatia dos alunos. As gradescurriculares espelhavam a visão positivista de ciência que se possuía à épo-ca. A Academia de Direito era mais lembrada pelas vivências políticas, pelasexperiências acadêmico-juvenis, pelas leituras paralelas, pelas oportunida-des que gerava, pelas descobertas pessoais, pelas amizades e influências doque pelas próprias aulas e pelo próprio aprendizado.”13

O ensino jurídico, tal qual se estabelece hodiernamente, reproduze faz rodar por inércia as mesmas relações de poder implícitas no cor-po da sociedade, no qual o bacharel em Direito é antes doutor por de-creto (da época do Império!) do que por mérito.E qual é a conseqüên-cia disso, na vida do futuro operador do direito? Responde-nos o pro-fessor José Eduardo Faria:

“Preparado somente para lidar com questões rotineiras e triviais, nosplanos cível, comercial, penal, trabalhista, tributário e administrativo, portratar o sistema jurídico com um rigor lógico-formal tão intenso que inibe osmagistrados de adotar soluções fundadas em critérios de racionalidade subs-tantiva, o Judiciário se revela tradicionalmente hesitante diante das situa-ções não-rotineiras; hesitação essa que tende a aumentar à medida que, obri-gados a interpretar e aplicar os direitos humanos e sociais estabelecidos pelaConstituição, os juízes enfrentam o desafio de definir o sentido e o conteúdodas normas programáticas que expressam tais direitos ou de considerarcomo não-vinculante um dos núcleos centrais do próprio texto constitucio-nal. É aí, justamente, que se percebe como os direitos humanos e sociais,apesar de cantados em prosa e verso pelos defensores dos paradigmas jurídi-cos de natureza normativista e formalista, nem sempre são tornados efetivospor uma Justiça burocraticamente inepta, administrativa e processualmentesuperada; uma Justiça ineficiente diante dos novos tipos de conflito – princi-palmente os ‘conflitos-limite’ para a manutenção da integridade social; ouseja, os conflitos de caráter intergrupal, intercomunitário e interclassista;uma Justiça que, revelando-se incapaz de assegurar a efetividade dos direi-tos humanos e sociais, na prática acaba sendo conivente com sua sistemáticaviolação. É aí, igualmente, que se constata o enorme fosso entre os proble-mas sócio-econômicos e as leis em vigor.”14

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13 Bittar, Eduardo C. B. O direito na pós-modernidade. p. 378.14 Faria, José Eduardo. Ensaio do livro Direitos humanos, direitos sociais e justiça. p. 99. Fariatambém faz um quadro do ensino jurídico no Brasil, colocando que “a evolução histórica doPaís, com toda sua imensa gama de conflitos sociais, de problemas econômicos e de tensões po-líticas, mostra que, em matéria de ensino jurídico e de formação dos operadores do direito, nãohá mais como se confinar sua cultura técnico-profissional aos rígidos limites formalistas de uma

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Não é apropriado, portanto, desconsiderar os efeitos de um ensi-no que repercute mais na formação de uma patologia mental, imanen-te a demonstrações de prepotência e pretensa superioridade hierár-quica, do que na proposta de preparar os que optam pelo direito paralidar com a justiça. O festival de insensatez que varre tribunais, salasde aula, escritórios e livros é resultado direto disso. Exemplifica Le-nio Luiz Streck:

“Para demonstrar uma certa razão cínica que atravessa o imagináriodos juristas em terra brasilis, não surpreende que até há poucos anos algunstribunais, avalizados por renomados penalistas pátrios, ainda sustentavam,por exemplo, que o marido não podia ser sujeito ativo de estupro cometidocontra a esposa, por lhe caber o exercício regular de direito.”15

Finaliza bem Lênio Streck:

“A cultura calcada em manuais, muitos de duvidosa cientificidade, ain-da predomina na maioria das faculdades de Direito. Forma-se, assim, umimaginário que ‘simplifica’ o ensino jurídico, a partir da construção de stan-

dards e lugares-comuns, repetidos nas salas de aula e posteriormente nos fó-runs e tribunais. Essa cultura alicerça-se em casuísmos didáticos. O positi-vismo ainda é a regra. A dogmática jurídica trabalhada nas salas de aula (ereproduzida em boa parte dos manuais) considera o direito como sendo umamera racionalidade instrumental.”16

Nos tempos do primado da razão, que fundamenta inclusive umapretensa teoria pura do direito, baluarte iluminista no mundo jurídico,ainda se aposta nelas, as leis, como meio por excelência de se promo-ver justiça. Se tal constatação fosse de fato procedente, viveríamosem um dos países mais justos do mundo, reconhecendo-se os avançosconstitucionais de 1988 e todos os aspectos de vanguarda estabeleci-dos nas codificações legais e na estrutura normativa do Brasil. O quesalta aos olhos, porém, é exatamente o inverso.

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estrutura curricular excessivamente dogmática, na qual a autoridade do professor representasimbolicamente a autoridade da lei e o tom da aula magistral permite ao aluno adaptar-se à lin-guagem da autoridade. Evidentemente, não se trata de desprezar o conhecimento jurídico espe-cializado; trata-se, isto sim, de conciliá-lo com um saber mais amplo e profundo sobre a produ-ção, a função e as condições de aplicação do direito positivo” (Direitos humanos, direitos so-

ciais e justiça. p. 26).15 Streck, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. p. 84.16 Streck, Lenio. Op. cit. p. 82.

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Vivemos em um País em que a única coisa lógica é a perversidadedas relações sociais. Um País em que a concentração de renda criaabismos intransponíveis de desenvolvimento, perpetuando relaçõessociais herdadas do período colonial e impingindo, de forma cíclica, amanutenção de uma estrutura excludente e incompatível com a CartaMagna de 1988. Dados de 1991, do IBGE, mostram que cerca de30,7% das famílias brasileiras recebiam renda total inferior a dois sa-lários mínimos. No Nordeste essa proporção atingia 53%. Os 10%mais ricos no Brasil abarcavam 51,7% da renda, enquanto os 10%mais pobres ficavam somente com 0,7%. Cerca de 49,4% das pessoasocupadas não contribuíam para nenhum instituto de previdência so-cial. Dados mais recentes não alegram nem ao mais incorrigível oti-mista. Não há, portanto, que se falar em cidadania, que pressupõe suaprópria consciência, ou mesmo em justiça social e direitos humanos,por mais belo que seja o texto constitucional.

No entanto, não é apenas na origem que está o vício, para usar umjargão do mundo jurídico. O acesso à Justiça por si só compreende umbloqueio o qual os mais pobres têm muita dificuldade de superar, exa-tamente por passarem ao largo das inovações e facilidades modernas.Como elemento adicional na rede intrincada de problemas da Justiçana contemporaneidade, a partir de uma perspectiva operacional, estáo custo do acesso às estruturas judiciárias. Como descreve Boaventu-ra de Sousa Santos:

“A justiça civil é cara para os cidadãos em geral, mas revelam sobretu-do que a justiça civil é proporcionalmente mais cara para os cidadãos econo-micamente mais débeis. É que são eles fundamentalmente os protagonistas eos interessados nas ações de menor valor, e é nessas ações que a justiça é pro-porcionalmente mais cara, o que configura um fenômeno de dupla vitimiza-ção das classes populares face à administração da justiça.”17

Como se observa, a exclusão tange vários aspectos. Não se resu-me, no entanto, a problemas de ordem econômica: ela é geográfica,na medida em que está concentrada nos centros urbanos abastados,longe das periferias das grandes cidades. Como se observa, tais cons-tatações representam a exaustão de um modelo cujas característicassão fundamentalmente modernas.

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17 Santos,BoaventuradeSousa.PelamãodeAlice.Osocialeopolíticonapós-modernidade. p.168.

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Falar em liberdade, igualdade e fraternidade nesse tipo de cenárioé um luxo insidioso; é a visão de quem está contemplando, do lado defora, uma foto de Sebastião Salgado sobre as intermináveis crises defome na África. De forma muito oportuna pontua o filósofo SérgioPaulo Rouanet:

“A autonomia política é negada por ditaduras ou transformada numacoreografia eleitoral encenada de quatro em quatro anos. A autonomia eco-nômica é uma mentira sádica para os três terços do gênero humano que vi-vem em condições de pobreza absoluta.”18

Não é possível, portanto, oferecer uma solução para o problemada desigualdade social da forma obtusa na qual nossos legisladores seentregam a um processo contínuo de frenesi legislativo. Essa é umadas moléstias da estrutura de poder do Estado brasileiro contemporâ-neo, e de modo objetivo de um sem-número de nações, e está ligadadiretamente às promessas não cumpridas da modernidade. É a consta-tação de que as grandes codificações legais são resultado de uma épo-ca e de interesses, e não resolvem, automaticamente, os problemasque tratam de forma abstrata.

Discute Lênio Streck, sobre os reflexos dessa opção paradigmáti-ca no direito:

“A crise do modelo (modo de produção do direito) se instala justamenteporque a dogmática jurídica, em plena sociedade transmoderna [nota: per-cebe-se outro termo para designar uma pós-modernidade] e repleta de con-flitos transindividuais, continua trabalhando com a perspectiva de um direi-to cunhado para enfrentar conflitos interindividuais, bem nítidos em nossosCódigos (Civil, Comercial, Penal, Processual Penal e Processual Civil etc.).Esta é a crise de modelo (ou de modo de produção) de direito, dominante naspráticas jurídicas de nossos tribunais, fóruns e na doutrina.”19

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18 Rouanet, Sérgio Paulo. O mal-estar da modernidade. p. 10.19 Streck, Lenio. Hermenêutica jurídica e(m) crise. p. 36. No mesmo caminho, refletindo sobreo multiculturalismo, coloca Boaventura de Sousa Santos: “A sobrevivência do multiculturalis-mo em um mundo no qual o Estado reconhece, protege e pretende transformar todos os direitosem individuais é quase impossível. De fato, a construção do Estado contemporâneo e de seu di-reito foi marcada pelo individualismo jurídico ou pela transformação de um todo titular dedireito em um indivíduo. Assim foi feito com as empresas, as sociedades e com o próprio Estado;criou-se a ficção de que cada um deles era pessoa, chamada de jurídica ou moral, individual”(Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. p. 73).

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No entanto, não é preciso ficar no Brasil para perceber que os dis-cursos de emancipação e a promessa de justiça do projeto moderno es-tão mais próximos de ser considerados um engodo do que uma realida-de de fato. O mundo contemporâneo, do paraíso do consumo nor-te-americano aos países da África Subsaariana, parece materializar,com vozes, gritos, sangue e vidas, o espectro do morticínio impressonos rostos de milhões de homens e mulheres apartados do acesso à saú-de, saneamento básico e medicamentos. A globalização e suas expres-sões política, cultural e fundamentalmente econômica trouxeram maisdebilidade e dependência do que luz aos países do Sul. A ciência, quetanto evoluiu nos últimos séculos, mais por efeito das demandas béli-cas e do potencial econômico, não conseguiu dar profilaxia a doençascomo a malária, que arrebata milhões de seres humanos por ano, masnão pára de descobrir novas drogas contra a impotência sexual.

Ainda assim, não é difícil, hoje, ver intelectuais defendendo de for-ma ferrenha intervenções militares. Estaríamos sendo acometidos no-vamente pelo vírus do fardo do homem branco? Nossos valores são tãosuperiores assim? É razoável esquecer, ou pior, fingir que não, que nós,da civilização ocidental, iluminista, moderna, que se orgulha de umapretensa Declaração Universal dos Direitos do Homem, tivemos papelpreponderante na barbárie deliberada personificada na ocupação colo-nialista dessas mesmas civilizações que hoje acusamos de terroristas?Esquecemos das fronteiras artificialmente divididas, do domínio polí-tico, econômico e cultural, cujas conseqüências no corpo da sociedadeforam de tal magnitude que suprimiram hábitos e culturas?

De duas, uma: ou não fizemos o serviço direito, ou esse mesmoconjunto normativo-axiológico celebrado como estado da arte da mo-dernidade foi eficaz na exata medida em que servia de pretexto parase impor um arremedo de democracia de cima para baixo, à força,configurando um simulacro de ocidentalização cujo objetivo é bemconhecido.

Nesse sentido, é importante questionar até que ponto deve-se in-terferir na autodeterminação dos povos, com uma declaração de direi-tos excessivamente ocidental, quando as realidades culturais apon-tam para direções diversas. Indo além: será que a globalização, que“universalizou” diversos “direitos”, teve outra motivação que não aeconômica, suprimindo culturas e substituindo Grã-Bretanha por Co-

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ca-Cola e MTV como titulares do império onde o sol nunca se põe? Oque nos salva, talvez, seja a pluralidade de perspectivas que aindasubjaz no mundo contemporâneo.

A emergência de movimentos sociais como formas de preencheras lacunas criadas pela inoperância da ação do Estado centralizadormoderno, enquanto fenômeno pós-moderno, tem repercussões dire-tas no direito e na confecção de normas de eficácia social. As vozes dePorto Alegre, do Fórum Social Mundial, dos campos brasileiros, dosmovimentos antiglobalização, das comunidades eclesiais de base, de-nunciam o surgimento de novos atores sociais, cujo poder e raio deatuação não podem ser desconsiderados. Boaventura de Sousa Santosse alinha a essa constatação, colocando que, do ponto de vista socio-lógico – ponto epistemologicamente imprescindível à ciência jurídi-ca –, o Estado contemporâneo não tem mais o monopólio da produçãoe efetivação da justiça. Ou seja, o direito do Estado, positivado, obje-tivo, convive, na sociedade contemporânea, com outras formas de di-reito, do qual as expressões populares marginalizadas dos bolsões depobreza esquecidos pela lei fria das academias e dos tribunais são oexemplo mais simbólico e encontram mais repercussão na sociedadedo que as codificações tradicionais.

3. Considerações finais

“A simplicidade das leis constitui uma simplificação arbitrária da reali-dade que nos confina a um horizonte mínimo para além do qual outros co-nhecimentos da natureza, provavelmente mais ricos e com mais interessehumano, ficam por conhecer.”20

“Assim, em verdade, o que se pensa é que toda questão da cidadania en-contra-se profundamente enraizada na discussão de proteção dos direitosfundamentais da pessoa humana, na medida em que não se deve falar em ci-dadania se não puder se falar em acesso efetivo a direitos fundamentais dapessoa humana. Isso só será possível se então se quiser, de modo míope e ta-canho, assumir com a palavra cidadania algum sentido meramente formal,como a tradução de alguma coisa posta em leis ou em Constituição, no que seacredita como discurso abstrato, mas que não se coaduna com realidades epráticas sociais.”21

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20 Santos, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente contra o desperdício da experiên-

cia. p. 72.21 Bittar, Eduardo C. B. Ética, educação, cidadania e direitos humanos. p. 19.

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Ao final da exposição, voltam as perguntas que permearam o texto.Afinal, qual é a cara do porvir? Não se sabe, e nem se tenta adivinhar.Há apenas pistas, sinais, indicativos, cuja origem está no hoje. No en-tanto, alguns predicados, oportunamente levantados por Lipovetsky,aparecem quase que espontaneamente quando se pensa no momento detransição paradigmática pelo qual passamos: enfraquecimento da soci-edade, dos costumes, do indivíduo contemporâneo da era do consumode massa. Ruptura. Mutação. Nova forma de controle dos comporta-mentos. Diversificação. Flutuação sistemática da esfera privada, dascrenças e dos modos de agir. Nova fase na história do individualismoocidental. Privatização ampliada. Erosão das identidades sociais. Des-gaste ideológico e político. Desestabilização acelerada das personali-dades. Crepúsculo das energias utópicas. Abalos sem precedentes nosreferenciais valorativos de outrora. Crise da ciência. Crise da razão.

Emerge daí um indivíduo essencialmente indivíduo, descrente nofuturo e nas alternativas ideológicas de outrora, que se entrega ao mo-mento presente como se não houvesse o amanhã. Potencializado pelaexpansão desmedida dos meios de comunicação, afetado pela lógicado mercado, da superação e da competição, ele abraça tanto o hedo-nismo consumista quanto o mundo dos duendes e dos livros de au-to-ajuda, como muleta espiritual para as frustrações pelas quais passana velocidade com que se envia um e-mail.

Entre as várias deficiências do projeto moderno, faz-se necessá-rio anotar duas: a crença na razão e na ciência como elementos que li-bertariam o homem e promoveriam seu bem-estar e os grandes siste-mas, paradigmas e ordenamentos, de caráter objetivo, criados no es-teio da racionalidade. A primeira se mostrou presente mais em suaface instrumental, mecânica e acessória. Legitimou antes a lingua-gem do desempenho do que a linguagem da libertação. A segunda sediluiu na limitação da razão, não suportando a evidente presença deelementos como o poder, o interesse econômico personalizado emgrupos ou pessoas, as deficiências do Estado contemporâneo na efeti-vidade da lei objetiva, nas expressões paralelas de juridicidade e con-trole social.

Qual a repercussão dessa erosão quando se trata do tema justiça?Primeiramente, é importante refletir sobre quem opera a justiça.

Com os efeitos de um ensino hermético, exegético, formalista, positi-

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vista, povoado pelo pronome de prerrogativa do “distinto douto”, sur-ge um “cientista” mais afeito ao espetáculo circense de domínio dovernáculo, mais apegado ao poder e incapaz de dialogar com outrasáreas do saber do que preocupado em entender o todo social no qualestá inserido o direito para promover a transformação. Falta interdis-ciplinaridade, quando se questiona sobre as carências na formaçãocrítica do operador do direito.

Deriva disso o apego formalista que acredita piamente que é pos-sível resolver problemas sociais com a mesma lógica em que se (acre-dita que se) resolvem relações contratuais.

Afora isso, é nítido que o Estado contemporâneo, por diversas ra-zões, não consegue cumprir com os pressupostos enunciados em suaorigem iluminista, criando lacunas que são preenchidas pela socieda-de civil organizada, pelos movimentos sociais, pelos novos atoresque surgem e se legitimam a partir da representação de parcelas ex-cluídas da sociedade. Os códigos estão prontos, falta apenas torná-losfactíveis. As constituições positivadas descrevem um dever ser semproblemas, enquanto o que salta aos olhos é exatamente o inverso.Além da exclusão social, que limita o acesso à Justiça, cara, lenta eineficaz, convivem outros problemas, como a exclusão geográfica e aprópria estrutura normativa, que privilegia setores sociais em detri-mento do conjunto universal da sociedade.

No plano internacional, tal constatação encontra eco nas tentati-vas de ocidentalização do mundo através de uma Declaração Univer-sal de Direitos cuja finalidade repousa, especificamente, em um efei-to retórico de dominação e expansão capitalista, paralelo ao processocolonialista do qual os europeus parecem ter se esquecido.

Por fim, ante a declaração de que o mundo se pautaria em Liber-

dade, Igualdade e Fraternidade, raiz do Iluminismo, é possível afir-mar, diante de tudo o que se discutiu, diante da iminência de novostempos, de tempos que são tão pós-modernos quanto hipermodernose neomodernos, que o caminho cosmopolita, da pluralidade de pers-pectivas e costumes, do multiculturalismo, do respeito ao diferente,ao diálogo entre as culturas, sem grandes pretensões universalistas,deverá se pautar fundamentalmente nos pressupostos da liberdade,

diversidade e solidariedade.

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VII

MEIO AMBIENTE,

AMBIENTE-MEIO E DIREITOS

HUMANOS

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VII.1. Um estudo da Declaração do Milêniodas Nações Unidas: desenvolvimento sociale sustentabilidade ambiental como requisitospara a implementação dos direitos humanos

em nível global

Ana Paula Martins Amaral*

“No tendremos desarrollo sin seguridad, no tendremos seguridadsin desarrollo y no tendremos ninguna de las dos cosas si no se res-petan los derechos humanos. A menos que se promuevan todasesas causas, ninguna de ellas podrá triunfar.”

Kofi A. Annan

Resumo: Este trabalho visa a abordar aspectos contemplados naConferência do Milênio realizada no ano 2000 sob os auspícios da Or-ganização das Nações Unidas, que deu origem à Declaração do Milê-nio, em especial a relação necessariamente formada entre os direitoshumanos, o desenvolvimento social e a sustentabilidade ambiental,bem como a situação do Brasil em relação às metas do milênio.

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* Mestre e doutora em Direito das Relações Econômicas Internacionais pela PUC/SP; professo-ra universitária na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus Três Lagoas; coorde-nadora do projeto de extensão: “Questões atuais dos direitos humanos frente ao contexto daglobalização: uma abordagem teórica do direito internacional dos direitos humanos”.A Autora agradece a colaboração do professor Lucas Kouji Kinpara na leitura e revisão do texto.

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1. Introdução

A origem da consciência acerca dos direitos humanos e da suapreocupação em nível internacional aconteceu em momentos históri-cos distintos, tendo o primeiro ocorrido na Antigüidade Clássica.1

Essa preocupação teve início com a Declaração Universal dos Direi-tos Humanos, de 1948, sob os auspícios da recém-criada Organizaçãodas Nações Unidas.

A percepção da necessidade da criação de uma estrutura globalde proteção dos direitos humanos ocorreu em um momento em que ahumanidade encontrava-se estarrecida com os horrores perpetradosdurante a Segunda Grande Guerra, momento que representou, segun-do os ensinamentos de Hannah Arendt, a ruptura dos direitos huma-nos com a banalização do mal, a descartabilidade e as execuções emmassa.2

Sob tais circunstâncias, a preocupação com os direitos humanosamolda-se em um contexto global, especialmente com a adoção daDeclaração Universal dos Direitos Humanos e de um sem-número dedocumentos internacionais, com a criação de inúmeras organizaçõesinternacionais de âmbito regional e global, além de organizações nãogovernamentais com a participação da sociedade civil organizada.

Nas décadas seguintes à criação da ONU, vários tratados, decla-rações e conferências foram realizados tendo como tema os direitoshumanos sob determinados enfoques, tais como o direito da criança,do idoso, das pessoas portadoras de necessidades especiais, das mu-lheres, avançando a temas que se preocupam com o bem-estar daspessoas, bem como o das futuras gerações, tais como o direito aomeio ambiente e o direito ao desenvolvimento social.

É nesse contexto que este trabalho visa, de forma sintetizada, aabordar especificamente aspectos contemplados na Conferência do

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1 Há divergência entre os doutrinadores sobre o marco inicial dos direitos humanos. Alguns, aexemplo de Canotilho, vão buscar suas origens na Antigüidade Clássica, passando pela doutri-na cristã, chegando então à Carta Magna e à Declaração do Bom Povo da Virgínia (Canotilho, J.J. Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993). Celso Lafer, por sua vez lo-caliza as origens dos direitos humanos nas tradições judaico-cristã e estóica da civilização oci-dental (Lafer, Celso. A reconstrução dos direitos humanos – um diálogo com o pensamento de

Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1998).2 Lafer, Celso. Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder. 2. ed. ampl. São Paulo: Paz eTerra, 1988.

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Milênio realizada em 2000 sob os auspícios das Nações Unidas, quedeu origem à Declaração do Milênio, declaração essa que abordou osseguintes temas: Paz, Segurança e Desarmamento; Desenvolvimentoe Erradicação da Pobreza; Protegendo Nosso Ambiente Comum; Di-reitos Humanos, Democracia e Boa Governança; Protegendo os Vul-neráveis; Indo ao Encontro das Necessidades Especiais da África;Reforçando as Nações Unidas.

A Declaração do Milênio estabelece como valores fundamentaisàs relações internacionais no século XXI a liberdade, a igualdade, asolidariedade, a tolerância, o respeito pela natureza e a responsabili-dade compartilhada, sendo eles entendidos como:3

“Liberdade. Homens e mulheres têm o direito de viver suas vidas e criarsuas crianças com dignidade, livres de fome e do medo de violência, opres-são e injustiça. Democracia e governos participativos baseados na vontadedos povos melhor asseguram esses direitos.

Igualdade. A nenhum indivíduo e nenhuma nação deve ser negada aoportunidade de se beneficiar do desenvolvimento. Os direitos iguais eoportunidades de mulheres e homens devem ser assegurados.

Solidariedade. Desafios globais devem ser administrados de um modoque distribua custos e responsabilidades justamente de acordo com os prin-cípios básicos da igualdade e justiça social. Aqueles que sofrem, ou menosbeneficiados, merecem ajuda daqueles que mais se beneficiam.

Tolerância. Seres humanos devem se respeitar mutuamente, em toda asua diversidade de crenças, culturas e línguas. Diferenças entre sociedadesnão devem ser temidas ou reprimidas, mas compartilhadas como um preciosopatrimônio da humanidade. Uma cultura de paz e diálogo entre todas as civili-zações deve ser ativamente promovida.

Respeito pela natureza. Prudência deve ser mostrada na administraçãode todas as espécies vivas e recursos naturais, de acordo com os preceitos dedesenvolvimento sustentável. Somente dessa forma podem as riquezasimensuráveis dadas a nós pela natureza serem preservadas e passadas aosnossos descendentes. O atual insustentável padrão de produção e consumodeve ser mudado, para o interesse do nosso futuro bem-estar e de nossos des-cendentes.

Responsabilidades compartilhadas. Responsabilidade em administrara economia mundialmente e o desenvolvimento social, bem como tratadospara paz e segurança internacionais devem ser compartilhados entre as na-ções do mundo e devem ser exercitados multilateralmente. Como a mais uni-

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3 Declaração do Milênio. Disponível em: <http://www.pnud.org.br/odm/odm_vermelho.php#>. Acesso em: set. 2006.

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versal e mais representativa organização no mundo, as Nações Unidas de-vem cumprir esse papel central.”

Denota-se da leitura desses valores, que deverão reger as relaçõesinternacionais no início do novo milênio, a preocupação com ques-tões sociais e, em especial, com o desenvolvimento, o meio ambientee os direitos humanos. A Declaração assenta como princípios nortea-dores a reafirmação dos propósitos e os princípios da carta da ONU,bem como a busca da paz duradoura através da resolução pacífica dascontrovérsias baseada nos princípios de justiça e autodeterminaçãodos povos, respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais,sem qualquer distinção, e cooperação internacional na resolução deproblemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ouhumanitário.

Importa lembrar que em 1970 a Assembléia Geral da ONU ado-tou, por meio da Resolução no 2.625, a “Declaração Relativa aos Prin-cípios de Direito Internacional Regendo as Relações Amistosas e Co-operação entre Estados, Conforme a Carta da ONU”. Nela foramelencados sete princípios norteadores das relações amistosas entreEstados, a saber: proibição do uso ou ameaça da força; solução pacífi-ca das controvérsias; não-intervenção em assuntos internos dos Esta-dos; dever de cooperação internacional; igualdade de direitos e auto-determinação dos povos; igualdade soberana entre os Estados; eboa-fé no cumprimento das obrigações internacionais.4

É oportuno destacar que o princípio da proteção aos direitos hu-manos não foi sequer citado entre os sete princípios norteadores dodireito internacional; no entanto, decorridas três décadas, a Conferên-cia do Milênio enfatiza os direitos humanos, tanto na sua esfera indi-vidual quanto na social, relacionando esses direitos à paz, ao desen-volvimento social e à proteção ao meio ambiente.

A adoção pela Conferência do Milênio de oito objetivos a seremalcançados pelos países-membros das Nações Unidas até o ano 2015constitui um marco histórico, sendo oportuno relembrar que esses ob-jetivos se referem à erradicação da pobreza extrema e da fome com aredução à metade, entre 1990 e 2015, do percentual de pessoas cujos

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4 Trindade, Antonio Augusto Cançado. Princípios do direito internacional contemporâneo.Brasília: UnB, 1980.

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ingressos sejam inferiores a um dólar por dia; ao alcance da educaçãoprimária universal; à promoção da igualdade de gênero e promoçãoda mulher; à redução da mortalidade de crianças menores de cincoanos; à melhora da saúde materna; ao combate do HIV/Sida e outrasenfermidades, como a malária e a tuberculose; à garantia da sustenta-bilidade do meio ambiente; e, finalmente, ao fomento de uma aliançamundial para o desenvolvimento.

2. A importância do desenvolvimento social e daerradicação da pobreza para a implementação dosdireitos humanos

A Revolução Industrial ocorrida em meados do século XIX, coma produção em massa, o êxodo rural e o surgimento de uma nova reali-dade nas relações de empregos, alterou de forma radical a sociedade.Tal fenômeno se agravou com a revolução tecnológica ocorrida noséculo XX, que prescindiu de mão-de-obra em quantidade, exigindo,a cada dia que passa, maior conhecimento e especialização.

Em decorrência desses fatos, proliferaram em todo o planeta odesemprego e o subemprego, com milhões de pessoas vivendo naeconomia informal, sendo também cada vez mais crescente o abismoque separa os Estados ricos dos pobres.

A pobreza é apontada como um dos maiores problemas do séculoque se inicia, e compromete não apenas o nível de vida econômico,mas também o meio ambiente, a paz e a segurança internacionais.

Esse fato também é revelado pelo Relatório de DesenvolvimentoHumano, formulado anualmente sob os auspícios do PNUD, a partirde 1990, que traz um novo índice para a avaliação do desenvolvimen-to de um Estado. Ao lado do Produto Interno Bruto (PIB), baseado ex-clusivamente em dados econômicos, o PNUD adotou o Índice de De-senvolvimento Humano (IDH), baseado em três componentes distin-tos – indicadores de longevidade, educação e renda per capita. O IDHtem contribuído para uma análise e debate mais realista para o que sepode chamar de desenvolvimento que não se reflete exclusivamenteem dados econômicos.

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Em 1999, o Relatório do Desenvolvimento Humano do PNUDteve como tema a globalização e destacava que, se, por um lado, a glo-balização oferece grandes oportunidades para o progresso humano,por outro, ela cria novas ameaças à segurança humana tanto nos paí-ses ricos quanto nos pobres. As oportunidades e benefícios da globa-lização têm de ser partilhados muito mais amplamente. Ainda segun-do o referido Relatório, nos últimos anos da década de 1990, o quintoda população mundial que vive nos países de renda mais elevada ti-nha 86% do PIB mundial, e o quinto de menor renda, apenas 1%.5

A preocupação com o desenvolvimento e a erradicação da pobre-za foi tema específico da Conferência do Milênio, que lhe dedicou umcapítulo especial. Os Estados assumiram o compromisso de melhorara vida das pessoas submetidas a condições desumanas decorrentes daextrema pobreza.

Em relação aos direitos humanos, os Objetivos do Milênio são:reduzir à metade, até 2015, a proporção de povos do mundo cuja ren-da seja inferior a um dólar ao dia – cerca de um bilhão de pessoas, se-gundo dados do ano 2000 – e a proporção daqueles que sofrem defome, e até a mesma data reduzir à metade a proporção de pessoas quenão dispõem de água potável, além de assegurar o ensino fundamen-tal para meninos e meninas, combater as doenças que afligem a hu-manidade, em especial a Aids e a malária, e melhorar as condições devida de pelo menos 100 milhões de pessoas que vivem em favelas.

O alívio das dívidas para os países altamente pobres e endivida-dos é outro objetivo colocado, devendo estes se comprometer com aerradicação da pobreza. Nesse mesmo sentido, propõe-se a coopera-ção internacional, tanto interestatal quanto através de parcerias com osetor privado e com organizações da sociedade civil.

Em 2003, esse foi o tema do Relatório do desenvolvimento huma-

no elaborado pelo PNUD, tendo como título “Objetivos de desenvol-vimento do milênio: um pacto entre nações para pôr termo à pobrezahumana”.6 Segundo dados do PNUD, se o desenvolvimento prosse-

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5 PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Relatório do desenvolvimen-

to humano 1999. Lisboa : Trinova, 1999.6 PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Relatório do desenvol-

vimento humano 2003. Objetivos de desenvolvimento do milênio: um pacto entre as naçõespara pôr termo à pobreza humana. Queluz/Portugal: Mensagem, 2004. Disponível em:<www.pnud.org.br>. Acesso: maio 2006.

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guir no ritmo atual, a África Subsaariana somente atingirá os objeti-vos da pobreza em 2147 e, quanto à mortalidade infantil, em 2165, ouseja, quase dois séculos serão necessários para que a maioria de seushabitantes atinja condições mínimas de vida.7

Há, na comunidade internacional, 59 países de máxima e alta prio-ridade, nos quais a situação da população, ao invés de evoluir, tem re-gredido, tanto na esfera de desenvolvimento sustentável quanto naeconômica.

Em 2004 foi publicado um estudo das Nações Unidas em parceriacom a Organização Internacional do Trabalho, denominado “Fairglobalization” ou “Uma globalização justa”.8 Nesse documento aONU reconhece os benefícios da abertura comercial, sendo possívelum maior intercâmbio de bens, idéias e conhecimento; entretanto,ressalta o relatório, a pobreza cresceu em praticamente todo o mundo,especialmente na América Latina, África e Europa Oriental.

Como alternativas, o relatório propõe que o comércio mundial de-ve reduzir as barreiras que impedem o acesso de produtos prove-nientes de países em desenvolvimento, os investimentos diretos es-trangeiros precisam de uma nova regulamentação, priorizando o setorprodutivo, e, finalmente, o Sistema Financeiro Internacional deveprestar maior apoio ao crescimento global sustentável.

Publicado anualmente, o Informe dos Objetivos do Desenvolvi-mento do Milênio informa em sua edição de 2005 que a pobreza ex-trema continua sendo uma realidade cotidiana de mais de um bilhãode pessoas que sobrevivem com menos de um dólar por dia, e 800 mi-lhões de pessoas não consomem alimentação suficiente para satisfa-zer suas necessidades energéticas diárias, sendo as crianças as maisafetadas. Segundo dados do relatório, mais de uma quarta parte das

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7 PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Relatório do desenvolvimen-

to humano 2003. Objetivos de desenvolvimento do milênio: um pacto entre as nações para pôrtermo à pobreza humana. Queluz/Portugal: Mensagem, 2004. p. 23. Disponível em:<www.pnud.org.br>. Acesso em: maio 2006.8 OIT – Organização Internacional do Trabalho. A fair globalization. The role of the ILO World

Commission on the Social Dimension of Globalization Established by the ILO. Report of the

Director-General on the World Commission on the Social Dimension of Globalization.International Labour Office Geneva. Disponível em: <http://www.oit.org/public/english/ stan-dards/relm/ilc/ilc92/pdf/adhoc.pdf>. Acesso em: ago. 2006.

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crianças menores de cinco anos dos países em desenvolvimento sofrede desnutrição.9

O número de pessoas vivendo em situação de extrema pobrezadecresceu no âmbito global influenciado especialmente pelo cresci-mento econômico de países como a China e a Índia. No entanto, a si-tuação da África Subsaariana segue sendo extremamente alarmante,influenciada por fatores como a falta de investimentos e empregos,crise na agricultura e quadro endêmico formado por diversas enfer-midades que ceifam a cada ano milhões de vidas.

A Aids representa, na África, a principal causa de morte prematurae a quarta causa de morte em nível global. Em 2003, segundo dadosda ONU, somente na África Subsaariana havia mais de 4 milhões decrianças que perderam os pais em razão dessa doença e 12 milhões queperderam um ou ambos os pais pela mesma razão. De forma global,cerca de 15 milhões de crianças em regiões em desenvolvimento en-contram-se órfãs de um ou ambos os pais em decorrência do vírus HIV.A malária é outra enfermidade endêmica que afeta entre 350 e 500 mi-lhões de pessoas anualmente, causando a morte de cerca de 1 milhão depessoas por ano, 90% delas ocorrendo no continente africano.

O Informe sobre Desenvolvimento Humano de 2005 publicadopelo PNUD trata especificamente da desigualdade e desenvolvimen-to humano, abordando questões como a justiça social e a moralidade,a prioridade dos pobres, o crescimento, a eficiência e a forma comoessas questões afetam o desenvolvimento humano ao lado do comér-cio internacional e da segurança coletiva.

Os documentos, relatórios e informes oficiais oriundos de orga-nizações internacionais no âmbito das Nações Unidas, a exemplo daOIT, PNUD, UNCTAD e Pnuma, demonstram a relevância e a inter-dependência de questões como os direitos humanos, a pobreza e o de-senvolvimento humano e sua importância para o futuro das relaçõesinternacionais e da humanidade no século que se inicia.

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9 Na Internet: Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Brasil. Disponível em:<www.pnud.org.br/rdh/>. Acesso em: set. 2006.

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3. Direitos humanos e proteção ao meio ambiente

As condições de extrema pobreza na qual vivem bilhões de pes-soas em todo o mundo apresentam-se como um problema global,não apenas por questões éticas ou econômicas, podendo tal situaçãocomprometer o futuro da humanidade, sendo um dos pontos a seremanalisados a devastação do meio ambiente que ocorre em paísesmais pobres.

Importa destacar que países mais desenvolvidos enfrentam tam-bém problemas ambientais alarmantes, como altos índices de polui-ção, escassez de água potável, além de grandes quantidades de resí-duos e substâncias tóxicas provenientes de sua atividade industrial edos hábitos de consumo de sua população.

O Relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambien-te (Pnudma), denominado GEO-3 (Panorama Ambiental Global),aponta os principais problemas relativos à questão ambiental, nosquais se destacam a concentração de gás carbônico na atmosfera, acrescente escassez de água potável, a degradação dos solos por ero-são, a salinização, a poluição dos rios, lagos e mares, e o desmatamen-to, que traz como conseqüência a destruição da biodiversidade comtransformações no solo que dizimam a fauna e a flora em diversas re-giões do mundo.10

No decorrer da segunda metade do século XX, inúmeros tratadosforam celebrados, buscando minimizar ou frear a destruição do meioambiente, que se mostra a cada dia mais vulnerável à ação do homem.

A crise ambiental representa, para a segurança do Estado e até paraa sua sobrevivência, uma ameaça mais séria do que a possibilidade deum conflito bélico. Em certas áreas da África, Oriente Médio, Ásia eAmérica Latina, a deterioração do meio ambiente pode se tornar fontede inquietação política e tensão internacional. No entanto, a maioriados governos dos Estados afetados ainda gasta bem mais para protegerseus povos de exércitos invasores do que de desertos em expansão.11

O direito de cada pessoa em viver em um ambiente saudável quelhe permita sobreviver de forma digna dever ser considerado também

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10 Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nosso futuro comum. 2. ed.Rio de Janeiro: FGV, 1991. p. 339.11 Idem. Ibidem. p. 339.

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uma nova classe de direitos humanos, uma vez que, diante da destrui-ção do meio ambiente, a própria sobrevivência da espécie humana co-loca-se em risco.

Nesse particular é importante ressaltar que dentre os Objetivos doMilênio encontra-se a garantia da sustentabilidade do meio ambiente.A devastação ambiental encontra-se intrinsecamente ligada à questãoda pobreza nos países em desenvolvimento. A falta de acesso à águapotável e ao saneamento básico representa problemas que afetam tan-to a qualidade de vida, com a possibilidade de proliferação de doen-ças, quanto o equilíbrio ecológico e a preservação do ecossistema. Deacordo com o Relatório de Desenvolvimento do Milênio de 2005,metade do mundo em desenvolvimento não possui saneamento bási-co, com quase um bilhão de pessoas vivendo em favelas e barracos,em condições precárias de habitação.

Os países desenvolvidos, por sua vez, também contribuem para adegradação do meio ambiente, sendo responsáveis pelo consumo decombustíveis fósseis e pela emissão de gases poluentes, em especial odióxido de carbono, um dos responsáveis pelo aquecimento global.

A sustentabilidade do meio ambiente passa pela utilização racio-nal dos recursos naturais. A degradação do solo, a extinção de espé-cies animais e vegetais estão ocorrendo em um ritmo alarmante. Asmudanças climáticas estão provocando uma elevação do nível dosmares, com a possibilidade de inundações de regiões inteiras, bemcomo a diminuição da camada de ozônio.

As metas a serem alcançadas, segundo os Objetivos do Milênio,são: incorporar os princípios do desenvolvimento sustentável em po-líticas e em programas nacionais e reverter a perda dos recursos domeio ambiente; reduzir à metade até 2015 a porcentagem de pessoassem acesso sustentável à água potável e ao saneamento básico; me-lhorar significativamente até 2020 a vida de pelo menos 100 milhõesde habitantes de favelas.

Para que o meio ambiente seja preservado, em especial em re-giões mais pobres, faz-se necessário criar condições e programas paraque os povos que retiram sua subsistência dos recursos naturais,como florestas, rios e mares, tenham alternativas sustentáveis e pos-sam se beneficiar com a preservação do meio ambiente. Outra estraté-

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gia a ser adotada refere-se à educação e conscientização sobre a im-portância da preservação do meio ambiente.

É estreito o elo que une o direito ao meio ambiente saudável e odireito à vida, e em especial à dignidade humana, uma vez que ambosconstituem parte de um mesmo sistema, não jurídico ou social – cons-truído pelo homem –, mas natural, e, ao destruir o meio ambiente, ohomem poderá levar à destruição de sua própria espécie, ou ainda tor-nar sua existência ainda mais difícil e problemática.12

4. O Brasil e as metas de desenvolvimento do milênio

O Brasil, com uma população de aproximadamente 187 milhõesde habitantes e área de 8.547.404 km², possui PIB da ordem de 500 bi-lhões de dólares,13 sendo considerado uma das maiores economiasdentre os países em desenvolvimento; no entanto, apresenta alto graude desigualdade. Segundo o Relatório do desenvolvimento humano

publicado pelo PNUD,14 o Brasil alterna performances acima da mé-dia em alguns indicadores com desempenho preocupante em outroscasos, podendo ser enquadrado entre os países que precisam dar “altaprioridade” a alguns indicadores para atingir as metas do milênio em2015.

Entre os aspectos positivos, o País se destaca na eqüidade de gê-nero e no acesso ao ensino fundamental.15 Já no que se refere ao com-

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12 Fonte IBGE. Disponível em <http://www.ibge.gov.br/home/default.php>. Acesso em: set.2006.13 Relatório do desenvolvimento humano 2003. Disponível em: <www.undp.org/hdr2003>.Acesso em: maio 2006.14 “A igualdade de oportunidade entre os sexos é medida nas Metas do Milênio pela proporçãode meninas em relação ao número de meninos matriculados nos níveis de ensino fundamental emédio. O objetivo é que exista uma aluna do sexo feminino para cada aluno do sexo masculino.Isso se traduz em uma taxa de 100%. No caso brasileiro esse valor já é de 103%, indicando umamaior proporção de estudantes mulheres do que homens e o cumprimento antecipado da meta”(Relatório do desenvolvimento humano 2003. Disponível em: <www.undp.org/hdr2003>.Acesso em: maio 2006).15 “No que diz respeito ao combate à fome, o desempenho brasileiro vem sendo ligeiramente su-perior ao da média da América Latina e próximo ao do conjunto de países com Índice de Desen-volvimento Humano (IDH) médio. Os números até agora sugerem que o país tende a atingir ameta de, até 2015, reduzir à metade a proporção da população que sofre com esse problema. Se-gundo o Relatório, a porcentagem desnutrida da população brasileira caiu de 13% para 10% en-

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bate à fome16 e à mortalidade,17 enquadra-se na média latino-ameri-cana, apresentando, no entanto, desempenho preocupante no acessoao saneamento básico e no acesso à água potável.

A desigualdade social é uma realidade gritante na sociedade bra-sileira, sendo profundo o fosso que separa os ricos dos pobres. Entre ofinal da década de 1990 e o ano 2001, 9,9% dos brasileiros viviamcom o equivalente a menos de um dólar por dia.

A proteção ambiental também se apresenta como um desafio que oBrasil não tem conseguido superar. Em seu território encontra-se umarica biodiversidade que abrange a Floresta Amazônica, o Pantanal, oCerrado, a Mata Atlântica, somente para citar alguns de seus ecossiste-mas. No entanto, são comuns a prática de queimadas, o desmatamentoe a extração de madeiras, além do assoreamento e poluição de rios. Omeio ambiente urbano também é afetado com a falta de saneamento bá-sico, com grande parte da população urbana vivendo em favelas.

A região Norte do Brasil é a mais afetada, onde a pobreza cresceude 36%, em 1990, para 44%, em 2001, segundo dados oficiais doIBGE. A região Nordeste apresenta ainda baixos índices de desenvol-vimento humano.

Um outro aspecto que merece ser analisado refere-se às políticas pú-blicas que vêm sendo realizadas pelo Governo brasileiro.18 Trata-se de

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tre 1990 e 2001. A meta é que chegue a 7% até 2015” (Relatório do desenvolvimento humano

2003. Disponível em: <www.undp.org/hdr2003>. Acesso em: set. 2006).16 “Na dimensão da saúde, o indicador escolhido para estar no Relatório é a razão de mortes decrianças de até cinco anos de idade para cada mil nascidos vivos. O Brasil vem reduzindo essataxa praticamente no mesmo ritmo que a média dos países latino-americanos. Se seguir nesseritmo, os números sugerem que, até 2015, o país conseguirá reduzir em dois terços essa propor-ção. Em 1990, para cada mil partos bem-sucedidos, 60 crianças morriam antes de completarcinco anos de vida. Em 2001 esse número havia caído para 36. A meta para 2015 é que essasmortes não passem de 20 a cada mil nascidos vivos” (Relatório do desenvolvimento humano

2003. Disponível em: <www.undp.org/hdr2003>. Acesso em: set. 2006).17 Outros programas de combate à fome e à pobreza foram implantados no Brasil, como a Açãoda Cidadania contra a Fome e a Miséria e pela Vida, tendo como protagonista o sociólogo Her-bert de Souza. Durante o governo do presidente Itamar Franco (1992-1994) foi instituído o Con-sea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar), composto por representantes do governo e dasociedade civil, que se tornou um organismo de consulta e de coordenação das políticas gover-namentais no âmbito da segurança alimentar e combate à fome.18 A Comunidade Solidária foi criada em 1995 com o objetivo de mobilizar os recursos ecompetências de todos os setores da sociedade brasileira para ações concretas de combate àpobreza e à exclusão no Brasil. Suas iniciativas se alicerçam em cinco princípios básicos: ofortalecimento das capacidades de pessoas e comunidades para atuarem como agentes de seu

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projetos sociais implantados no País, como doação de cestas básicas comprodutos alimentícios, que foram distribuídas até 2001, e distribuição derecursos financeiros diretamente à população carente através de progra-mas como Bolsa Escola, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil,Vale Gás, que vigoraram durante o Governo do presidente FernandoHenrique Cardoso, além do Programa Comunidade Solidária.19

No Governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva esses pro-gramas foram unificados em 2003 pelo programa Bolsa Família, que,segundo dados de janeiro de 2006, beneficiava cerca de 8.644.202 fa-mílias.20 É inegável o alcance social desses programas, possibilitando

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autodesenvolvimento; o direcionamento dos projetos para as áreas geográficas e setores maispobres da população; a parceria entre múltiplos atores, públicos e privados, como estratégiapara ampliar os recursos investidos na área social; a descentralização e participação dacomunidade como condição para uma maior eficiência e sustentabilidade das ações; omonitoramento e avaliação para medir custos e resultados bem como facilitar a replicação dosprogramas em larga escala.Os principais programas de âmbito nacional desenvolvidos pela Comunidade Solidária são:Alfabetização Solidária, que já alfabetizou mais de 2 milhões e meio de jovens nos Municípiosmais pobres do País; Capacitação Solidária, que treinou mais de 100 mil jovens para o mercadode trabalho nas grandes regiões metropolitanas; Universidade Solidária, que mobilizouestudantes e professores universitários para ações de desenvolvimento social em nível local;Artesanato Solidário, de estímulo à organização de mulheres artesãs em cooperativas deprodução; Programa Voluntários de valorização do voluntariado como expressão de uma éticade solidariedade e participação cidadã.Disponível em: <http://www.portaldovoluntario.org.br/site/pagina.php?idconteudo=474>.Acesso em: out. 2006; <http://www.planalto.gov.br/publi_04/COLECAO/COMUNI.HTM>.Acesso em: out. 2006.19 O Programa Bolsa Família transfere aos beneficiários um valor fixo de R$ 50,00 para famíliascom renda mensal de até R$ 50,00 por pessoa, tenham elas prole ou não. Além desse valor fixo,as que têm filhos entre 0 e 15 anos terão um benefício variável, de R$ 15,00 por criança, sendocomputado o limite máximo de três filhos. Desse modo, somando-se os benefícios existentes, oBolsa Família distribui o montante máximo de até R$ 95,00 por família. Para aquelas com rendaper capita mensal superior a R$ 50,00 e menor ou igual a R$ 100,00 por indivíduo, o BolsaFamília deposita mensalmente o benefício variável de R$ 15,00 por filho com idade de 0 a 15anos até o limite de três benefícios. Fontes governamentais estimam que, em novembro de2005, o Programa Bolsa Família transferia em média R$ 65,00 por família. Em janeiro de 2006o programa beneficiava 8.644.202 famílias. In: Zimmermann, Clóvis Roberto. Os programassociais sob a ótica dos direitos humanos: o caso Bolsa Família do governo Lula no Brasil.Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo: Rede Universitária de DireitosHumanos, ano 3, n. 4, p. 158, 2006 [edição em português].20 Pobreza cai mais no Brasil que na América Latina, mas saneamento ainda é problema: estu-do divulgado pela Cepal aponta que na maioria dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio opaís avança em ritmo igual ou superior ao da região. Disponível em: <www.pnud.org.br>.Acesso em: set. 2006.

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que milhões de pessoas tenham renda que lhes permitam suprir suasnecessidades alimentares básicas. No entanto, é o caso de indagar seessas iniciativas conseguem solucionar os graves problemas sociaisou se a resposta não estaria na geração de novos empregos e investi-mento na educação, e financiamento de projetos de desenvolvimentolocal – ou seja, se essas atitudes teriam o caráter tão somente filantró-pico, sem atingir o cerne das causas que geram a pobreza e a fome.

Apesar dos avanços alcançados, o Brasil ainda está longe de atin-gir um nível de bem-estar social compatível com o seu nível de rique-za e potencial de desenvolvimento. Os governos recentes têm investi-do em políticas e programas sociais, no entanto faz-se necessária aadoção de um modelo de desenvolvimento includente e sustentável alongo prazo. Nesse aspecto, as metas de desenvolvimento do milêniotêm contribuído para vincular o Governo e a sociedade brasileira emtorno de um objetivo a ser alcançado até 2015.21

5. Considerações finais

Os desafios a serem enfrentados visando a um futuro melhor ou,especificamente, a um futuro em que a vida no planeta seja sustentávelpassam necessariamente pela proteção dos direitos humanos, preserva-ção do meio ambiente, desenvolvimento sustentável, desenvolvimento

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O Brasil, se mantiver o ritmo do período entre 1990 e 2004, deve conseguir atingir a primeirameta, considerada central nos Objetivos do Milênio, por guardar estreita relação com todas asdemais metas: reduzir à metade, entre 1990 e 2015, a proporção da população vivendo emextrema pobreza. Em 1990, 23,4% da população brasileira viviam abaixo da linha nacional deextrema pobreza; em 2004, essa proporção havia recuado para 14,2%. Para conseguir reduzir aporcentagem de 1990 pela metade ainda são necessários esforços adicionais, mas 78,3% dameta já foram cumpridos, aponta o relatório. Parte desse avanço, indica o documento, deve-se aprojetos sociais, como o Bolsa Escola e o Bolsa Família, apontados como um “dos exemplosmais bem-sucedidos de transferências condicionadas na região”. Na América Latina e noCaribe, o avanço tem sido mais lento: a região cumpriu apenas 34,2% da meta (a proporção delatino-americanos em situação de extrema pobreza passou de 22,5%, em 1990, para 18,6%, em2004). Fonte: PNUD. Disponível em: <http://www.pnud.org.br/pobreza_desigualdade/ repor-tagens/index.php?id01=1258&lay=pde>. Acesso em: out. 2006.21PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Relatório do desenvolvimen-

to humano 2006. Disponível em: <http://hdr.undp.org/hdr2006/report_pt.cfm>. Acesso em:out. 2006.

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humano, responsabilidade compartilhada e busca de soluções interes-tatais, contando inclusive com a participação da sociedade civil.

A Conferência do Milênio reflete um novo modo de ver o direitointernacional e as relações internacionais, ao reconhecer que as na-ções e os povos estão cada vez mais interconectados e interdependen-tes, colocando como princípios norteadores, ao lado da paz, da segu-rança e do desarmamento, o desenvolvimento social, a erradicação dapobreza, a proteção ao meio ambiente, a prevalência dos direitos hu-manos, a democracia e boa governança, e, em especial, a proteção dosvulneráveis, tendo como um dos pontos fundamentais o auxílio aocontinente africano.

Em relação aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, oBrasil está avançando mais rapidamente que a média da América La-tina e Caribe. O País já alcançou as metas relacionadas à educação egênero e está mais próximo de cumprir os objetivos de reduzir a mor-talidade infantil, aumentar o acesso à água potável e reduzir a pobrezapela metade. Em saneamento, porém, o desempenho brasileiro estáentre os piores da região. Segundo dados do Relatório do desenvolvi-

mento humano publicado pelo PNUD em 2006, o Brasil apresentoumelhoria na distribuição de renda, tendo, no entanto, ainda um dosmaiores índices de desigualdade de renda, encontrando-se em décimaposição no ranking em um total de 126 países analisados. O RDH de2006 destaca o programa Bolsa Família como um dos responsáveisdo avanço no Brasil. Esse programa tem feito transferência de rendapara 7 milhões de famílias que vivem na pobreza extrema ou modera-da, para ajudar na alimentação, saúde e educação, criando benefícioshoje e bases para o futuro.22

Para que haja desenvolvimento sustentável, há de se ter ao ladoda atuação estatal a participação da sociedade civil organizada, com aconsciência universal de que nosso planeta pertence às gerações futu-ras. “As gerações futuras não votam, não possuem valor político, nãotêm como se opor às nossas decisões, mas os efeitos das decisões atuaisestão rapidamente acabando com suas opções.”23

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22 Brundtland, Gro Harlem (Org.). Nosso futuro comum. Relatório da Comissão Mundial sobre

Meio Ambiente e Desenvolvimento. Rio de Janeiro: FGV, 1988.23 Torrado, J. Lima. El pensamiento único y su incidencia ideológica sobre el sistema de

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É complexa a tarefa que se coloca à frente da humanidade. Assis-tiu-se, ao longo do século XX que se encerrou, a momentos de totalviolação dos direitos humanos e também a seu reconhecimento noâmbito internacional. Concluímos com o ideal propugnado na Decla-ração de Viena, de que a promoção e proteção de todos os direitos hu-manos e liberdades fundamentais devem ser consideradas objetivosprioritários a serem observados de acordo com o princípio da coope-ração internacional, devendo a questão dos direitos humanos ser umapreocupação de toda a comunidade internacional.

A proteção do meio ambiente, o desenvolvimento humano e aprevalência dos direitos humanos são desafios que devem ser perse-guidos pela comunidade internacional. O fenômeno da globalizaçãoem suas diversas facetas pode ser um poderoso aliado para a melhoriada vida de bilhões de pessoas ou pode condená-las à extrema pobreza,privações e morte prematura. A globalização deve ser acompanhadade ética – eliminação da violação dos direitos humanos; equidade –,menor disparidade dentro e entre nações; inclusão – redução da mar-ginalização de pessoas e países; segurança humana – menos instabili-dade das sociedades e menos vulnerabilidade das pessoas; sustentabi-lidade – menos destruição ambiental; e desenvolvimento – menos po-breza e privação.

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VIII

ORDEM, VIOLÊNCIA E

DIREITOS HUMANOS

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VIII.1. Leituras possíveis de O processo, de FranzKafka, à luz da violência do Estado nos anos da

ditadura civil-militar brasileira

Eduardo Manoel de Brito*

O romance O processo é, sem dúvida, um dos grandes textos deFranz Kafka para o público culto brasileiro até o final dos anos 1990.O público no Brasil, além do acesso à obra literária, veio a ter a possi-bilidade de conhecer a trama kafkiana também em várias montagensteatrais e em duas produções cinematográficas,1 uma de Orson Wel-les, muito criticada por Otto Maria Carpeaux,2 por ser mais um exer-cício cinematográfico do diretor do que uma adaptação do romancekafkiano, e outra de Steven Soderbergh, já na primeira metade da dé-cada de 1990. Antes disso, em 1950, a companhia teatral francesa deJean-Louis Barrault encenou Le procès no Teatro Municipal de São

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* Doutor em Literatura Alemã pela Universidade de São Paulo (e como pesquisador doutorandona Universität Bielefeld – Alemanha, no ano 2005) com a tese: “Quando a ficção se confundecom a realidade: as obras ‘In der Strafkolonie’/‘A colônia penal’ e ‘Der Process’/‘O processo’como filtros receptivos da ditadura civil-militar brasileira”. Atualmente desenvolve a pesquisade pós-doutorado “A imagem da polícia na literatura brasileira”, no Núcleo de Estudos da Vio-lência da Universidade de São Paulo.1 A influência de obras não literárias sobre o conhecimento do autor Franz Kafka é comentadade maneira bem humorada no posfácio à edição crítica de Der Proceß, por Reiner Stach (cf.Stach, Reiner. “Das Gericht will nichts von Dir...” Über Kafkas Roman Der Proceß. In: Kafka,Franz. Der Proceß – Roman (in der Fassung der Handschrift). Frankfurt am Main: S. Fischer,1990. p. 287-296).2 Cf. Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo, 7.3.1964, p. 1.

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Paulo. A apresentação foi feita em francês e recebeu várias mençõeselogiosas da crítica jornalística.3 A partir dos anos 1990 e chegandoao início do século XXI, houve um programa especial de TV4 sobreautores consagrados que dedicou um episódio a Kafka e ao seu ro-mance mais conhecido. Contudo, pode-se afirmar que a influência daobra O processo de Franz Kafka fez-se sentir, durante os anos da dita-dura civil-militar, preponderantemente através das versões literáriastraduzidas e dos comentários feitos pelos críticos que se debruçaramsobre esse texto.

Sabe-se, por exemplo, que a primeira tradução brasileira do ro-mance, feita por Torrieri Guimarães a partir do francês, e não do ori-ginal alemão, foi inúmeras vezes reimpressa e reeditada. O tradutorgarante que não teve controle sobre as reimpressões: “Essas coisas oseditores não contam para não pagar mais direitos autorais nem nada.Mas foram feitas várias edições de todos os livros de Kafka.”5

Infelizmente não é possível resgatar o número de reimpressõesfeitas, mas o número das edições dessa tradução, bem como o surgi-mento de outras traduções são suficientes para aquilatar o interessedos brasileiros pelo texto durante os anos da ditadura civil-militar. Asedições e outras traduções foram as seguintes:6

a) Em 1964, tradução de Torrieri Guimarães, pela LivrariaExposição do Livro.

b) Em 1966, tradução de Torrieri Guimarães, pela Tecnoprint.c) Em 1969, tradução de Torrieri Guimarães, pela Hemus.

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3 Mariancic, Rita. “Jean-Louis Barrault no Brasil – o repertório de uma companhia – II – Teatrode idéias (‘Le Procès’ de Kafka)” (cf. O Estado de S. Paulo, 3.5.1950, p. 6)4 Em 2001, a TV Cultura de São Paulo exibiu uma série de programas que pretendia dissecar eexpor as obras dos principais literatos, pintores e artistas de modo geral da era moderna. Os pro-gramas já haviam sido veiculados pela TV paga e foram elaborados pela RM Associates, umaprodutora anglo-alemã. Kafka foi o segundo autor a merecer um programa. O programa sobreKafka, resumidamente, tratava da vida do autor e de algumas de suas obras, centrando em O

processo. A produção foi bem cuidada e contou com o auxílio de professores renomados e a in-terpretação de atores ingleses (cf. Folha de S. Paulo, Caderno Ilustrada, 13.12.2001, p. 5).5 Entrevista concedida em sua biblioteca particular, Praça da Árvore, São Paulo/SP, em28.3.2003.6 Santos, Maria Célia Ribeiro. Recepção de Kafka em São Paulo: corpus e primeiras interpreta-ções. Parte I – Processo Fapesp: 97/05934-7, 1998 (mimeo: Relatório Final de Iniciação Cientí-fica. Orientadora: Dra. Celeste H. M. Ribeiro de Sousa).

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d) Em 1971, tradução de Marques Rebêlo, pela Tecnoprint.e) Em 1975, tradução de Torrieri Guimarães, pela Abril.f) Em 1977, tradução de Manoel Paulo Ferreira e Syomara Caja-

do, pelo Círculo do Livro.g) Em 1979, tradução de Torrieri Guimarães, pela Abril.

Como é possível observar, as traduções de Torrieri Guimarãesperpassaram praticamente todo o período compreendido entre osanos 1964 e 1984, limites consensuais da ditadura civil-militar brasi-leira. O prestígio do tradutor pode ser medido, ainda, pelo fato de eleser o prefaciador da tradução assinada por Marques Rebêlo, de 1971.

Passando para a questão do uso do termo kafkiano no Brasil, se-gundo crê o tradutor Modesto Carone, sua utilização com uma cono-tação política teria se iniciado no final dos anos 1960 e começo dosanos 1970, para descrever a situação dos presos políticos brasileirospós-AI-5 (Ato Institucional no 5, que limitava sobremaneira a liberda-de política no Brasil):

Modesto Carone – “(...) tenha em mente o seguinte: durante a ditadura otermo foi usado com propriedade e às vezes abusivamente. Abusivamente égenérico, no fundo é o absurdo da vida”.

Eduardo – “Mas o senhor lembra de ter sido usado na universidade...”Modesto Carone – “(...) Mas eu acho que quando começaram a cassar

deputados etc., e aquelas coisas todas a partir de 68, muitos deles disseram:estou numa situação kafkiana. (...) Porque era o seguinte: estava sendo per-seguido, não sabia direito o porquê, né? Isso tem a ver com O processo, né?Mas quando... essa afirmação do Fernando Henrique... não tem um poder,acho que aí extrapolou.”

A imprensa jornalística paulistana não registra tal utilização dotermo nos anos 1960 e na primeira metade dos anos 1970, mas é no si-lêncio mesmo da imprensa que reside um aspecto, por assim dizer,kafkiano da situação política brasileira e da censura durante os anosmais pesados da ditadura civil-militar brasileira.

Já havia por parte do governo ditatorial instaurado em 1964 umcontrole sobre o que era produzido nos meios de comunicação e o sur-gimento de estratégias por parte dos intelectuais articulistas de algu-mas revistas e jornais para driblar a censura, conforme demonstrouStephanou:

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“Driblar a censura, falando da situação de outros países, constituía-seem um recurso bastante comum. Otto Maria Carpeaux, por exemplo, escre-vendo sobre a situação do Vietnã diante do imperialismo norte-americano,avisa, no título do artigo, que ‘Não se trata do Vietnã’. (...) O editorial da Re-

vista Civilização Brasileira, de março de 1966, anuncia as dificuldades ad-vindas do enfrentamento com o governo militar, denuncia censura e pressãoeconômica, sem citar em nenhum momento as palavras censura ou pressão

econômica. (...) Não podendo falar em censura, fala-se de silêncio. Assimcomo não podendo falar em repressão, fala-se de medo.”7

O controle do governo ditatorial sobre a imprensa fez-se notar,em especial no caso do jornal Folha de S. Paulo, por uma mudança deenfoque na forma de noticiar a censura do governo às obras literárias,teatrais e cinematográficas, pois até o ano 1968 o jornal mencionava amovimentação de artistas em defesa da liberdade de expressão e,quando alguma obra era censurada, havia debates em torno da ques-tão.8 A partir de 1969 a situação mudou drasticamente e os articulistas– quando o faziam – apenas mencionavam que determinada obra foracensurada.

A partir de então começam a surgir no jornal Folha de S. Paulo

artigos que refletem sobre a censura na União Soviética. É aí que en-tra, sintomaticamente, a obra de Franz Kafka. Em inúmeras ocasiões,articulistas do jornal Folha de S. Paulo escrevem artigos sobre a cen-sura feita pelo governo ditatorial soviético a inúmeros autores, e emcinco ocasiões a atenção recai sobre a obra de Franz Kafka.9 Essa crí-tica reiterada à censura soviética parece ser uma tentativa conscientede os articulistas do jornal, nas entrelinhas, levarem o público leitor arefletir sobre a censura imposta pelo governo ditatorial no Brasil. Poroutro lado, a menção a Franz Kafka, cujas obras são permeadas por si-

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7 Stephanou, Alexandre Ayub. Censura no regime militar e militarização das artes. Porto Ale-gre: Edipucrs, 2001. p. 272-273. Coleção História – 44. O texto de Carpeaux foi publicado em1966, conforme nota de rodapé da p. 272.8 Riquíssimos nesse sentido são os textos de Alceu Amoroso Lima, reiteradamente questionan-do a legitimidade do governo ditatorial e questionando os seus “sucessos”. Além disso, o articu-lista escreve textos lúcidos que mencionam a censura. Conferir os seus textos publicados no jor-nal Folha de S. Paulo, de 6 e 7.1.1966. Sobre as opções de Alceu de Amoroso Lima, há ainda umestudo biográfico e afetivo escrito por Otto Maria Carpeaux (cf. Carpeaux, Otto Maria. Alceu

Amoroso Lima. Rio de Janeiro: Graal, 1978.9 Cf. Folha de S. Paulo, Caderno Ilustrada, de 1.6.1973, 5.6.1974, 7.7.1974, 29.8.1974 e3.9.1974.

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tuações que poderiam encontrar ecos na sociedade brasileira, princi-palmente a partir do final dos anos 1960 e durante toda a década de1970,10 soa mais como um convite à sua leitura. Tal convite justifica-ria as várias reimpressões do mais célebre romance de Franz Kafka epermite levantar a hipótese de que os intelectuais brasileiros que seopuseram ao regime ditatorial leram o texto e, provavelmente, relacio-naram o que estava escrito com o que estava acontecendo nos anos dechumbo da política brasileira.

A obra tomada como referência para construir o adjetivo “kafkia-no” na cultura brasileira foi O processo, e a situação existencial porexcelência kafkiana é a vivenciada literariamente por Josef K. Dessemodo, segue-se a exposição de alguns aspectos do romance kafkianoque se identificam com a realidade vivenciada pelos presos e perse-guidos políticos no Brasil no final dos anos 1960 e na década de 1970a partir da tradução de Torrieri Guimarães,11 a versão mais comumnesses anos, conforme se demonstrou.

A primeira descrição que toca fulcralmente a realidade da ditadu-ra civil-militar brasileira é a detenção de Josef K. no primeiro capítulodo romance. A detenção de Josef K. acontece em uma manhã de pri-mavera na pensão onde se hospeda o protagonista. A narrativa é –como de resto boa parte do romance – extremamente irônica, e onon-sense da descrição parece apontar para o “realismo fantástico”.Contudo, a estrutura burocratizada que se faz perceber desde os pri-meiros contatos de Josef K. com o tribunal estaria bem calcada na rea-lidade vivenciada por Franz Kafka no seu trabalho em uma instituiçãosemi-estatal. Sendo assim, a descrição dos personagens e da situaçãoencontra eco em uma realidade concreta historicamente, e as reações

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10 Contudo, já no começo dos anos 1960, uma movimentação repleta de perseguições e medidaspunitivas questionáveis tomou corpo na estrutura militar, a mesma que estava organizando ogolpe de 1964. Vários militares das três forças sofreram vários processos, foram julgados e con-denados. E a razão, em muitos casos, era tão-somente ser contra a tomada de poder por parte dospróprios militares. Em outras palavras, o aparato repressivo do governo ditatorial, apesar deter-se manifestado de maneira mais explícita a partir de 1968, já estava em pleno funcionamentoentre os seus “iguais” (cf. Arquidiocese de São Paulo. Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes,1985. p. 118-124).11 Kafka, Franz. O processo. Prefácio e tradução Torrieri Guimarães. São Paulo: Livraria Expo-sição do Livro, 1964.

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do protagonista são verossímeis. No quadro a seguir retorna-se à si-tuação vivenciada por Josef K. e fazem-se alguns paralelos que pode-riam ser traçados com a realidade brasileira do final dos anos 1960 ecomeço dos anos 1970:

Situação Texto kafkiano Realidade brasileira

Detenção elocal dadetenção

Josef K. é surpreendido em seuquarto em uma manhã e recebeo comunicado de que está detidopor conta de um processoinstaurado contra ele, mas nadalhe é explicado sobre o crimeque ele cometera, nem o que eledeveria fazer a partir de entãopara intervir no próprioprocesso.

Nos autos mais completosregistrados entre 1964 e 1979,praticamente dois terços dosdetidos “foram presos antesmesmo da abertura do inquérito,comprovando que os órgãos desegurança, apesar de todo oarsenal de leis arbitrárias, à suadisposição, ainda se esmeravamem descumpri-las (...)”.12

(1969) “No dia 28 de janeiro de1969, fomos surpreendidos poruma caravana policialcomandada pelo torturador LuizSoares da Rocha.”13

(1970) “(...) o interrogado foisurpreendido na residência deseus pais por uma verdadeiracaravana policial (...)”.14

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12 Arquidiocese de São Paulo. Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 86.13 Idem. Ibidem. p. 79.14 Idem. Ibidem. p. 78.

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Caracteri-zação dosencarrega-dos peladetenção

Guardas subalternos edesinformados sobre o processo,apenas cumprindo um mandato.Eles não apresentam nenhumdocumento por escrito, nemestão vestidos com algum tipode farda que os identifique. Sãopessoas corruptíveis e capazesde pequenas infrações:apropriam-se do café-da-manhãdo detido e buscam obter asroupas de baixo de Josef K. pormeio de ameaças veladas.

(1971) “(...) ao ser preso em SãoPaulo, pela Oban/SP, foramrecolhidos objetos seus, entre osquais um rádio, um relógio depulso e um despertador, umamala com objetos de uso pessoale Cr$ 200,00 em dinheiro, sendoque, dessa quantia, foi entregueao interrogado Cr$ 50,00 (sic)(...)”.15

(1973) “(...) a depoenteestranhou a maneira pela [qualfoi] feita a sua detenção, altashoras da noite, por trêsindivíduos de aspecto marginal,sem nenhum mandado judicial(...)”.16

Caracteri-zação dodetido

Josef K. argumenta em inúmerasocasiões no romance que éinocente. O detido possuiendereço fixo, tem 30 anos, éfuncionário de um banco, epode, em suma, ser consideradouma pessoa de bem.

Entre 1964 e 1979:aproximadamente 88% doscondenados do sexo masculino e12% do sexo feminino; 38,9%com idade igual ou inferior a 25anos; maioria mora em capitais;predominantemente da classemédia (mais da metade haviaatingido a universidade); amaioria dos detidos militava emorganizações partidáriasproibidas, participação em açõesviolentas e alguns foram detidospor manifestações artísticascondenadas pelo regime.Finalmente, em 84% dos casoslevantados pelo projeto Brasil

Nunca Mais, nenhum juiz foicomunicado sobre a prisãoefetuada.17

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15 Idem. Ibidem. p. 81.16 Idem. Ibidem. p. 77.17 Cf. Idem. Ibidem. p. 87.

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É intenção, com esse quadro, demonstrar que a situação políticabrasileira do final dos anos 1960 e de boa parte dos anos 1970 possuialgo que poderia ser identificado com uma atmosfera kafkiana. Dessemodo, um intelectual brasileiro envolvido com a situação política erepressora do governo civil-militar poderia, ao ler o romance kafkia-no, encontrar ecos da narrativa nos acontecimentos funestos que sedesenrolavam no período. Além disso, trazendo à memória as váriasedições e reedições da obra (três edições durante os anos 1960 e qua-tro durante os anos 1970), é válido levantar a hipótese de que tal su-cesso editorial se dava tendo em vista a função social da obra, ou seja,a de permitir uma elaboração literária de alto nível daquilo que era si-lenciado nos textos escritos autorizados a circular.

O local da detenção de Josef K. possui vários paralelos com a situa-ção dos detidos brasileiros, pois em várias situações narradas no docu-mento Brasil: nunca mais a detenção se dá na casa dos condenados.

A caracterização dos encarregados pela detenção e do detidoaponta, em alguns aspectos, para a mesma situação histórica do perío-do: Josef K. não encontra em si nenhum crime ou pecado que justifi-que sua detenção e estranha a conformação geral dos detentores, tãopouco identificáveis como agentes da lei. Além disso, o narrador kaf-kiano faz questão de demarcar a desonestidade dos encarregados peladetenção, fato esse, inúmeras vezes, lembrado pelos presos brasilei-ros em seus depoimentos.

No seu conjunto, a situação das detenções durante os anos de di-tadura civil-militar no Brasil – no mais das vezes absolutamente arbi-trária – coaduna-se com a hipótese defendida pelo tradutor ModestoCarone, intelectual presente e atuante nos meios acadêmicos duranteos anos de chumbo da ditadura no Brasil. Segundo Carone, é possívelque o uso da expressão “situação kafkiana” tenha começado a se darno momento em que algumas pessoas eram detidas e, não encontran-do um termo que atualizasse lingüisticamente sua situação, volta-vam-se para a experiência literária vivida por Josef K. Desse modo,ainda que as traduções tenham sido uma conseqüência do valor literá-rio intrínseco do romance, as versões em português brasileiro de O

processo poderiam, diante dos vários apelos jornalísticos nas entreli-nhas do silenciamento imposto pela censura, estar sendo utilizadaspara dar forma e nome ao que não podia ser anunciado nas redes de rá-dio, televisão e nos meios escritos.

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Uma outra situação descrita no romance kafkiano e que pode sercolocada em paralelo com a realidade brasileira, principalmente apartir dos anos 1970, é a tortura em um quarto de despejos localizadono escritório no qual trabalha Josef K. Nas traduções constitutivas docorpus, a tortura dos dois funcionários do tribunal que teriam cometi-do infrações durante a detenção de Josef K. no primeiro capítulo estálocalizada no Capítulo Quinto. Torrieri Guimarães, por exemplo, tra-duz o título do capítulo – em alemão, “Der Prügler” – como “O açoita-dor”. A descrição da cena aponta para a ação na surdina, na qual aspessoas são torturadas longe dos olhos do mundo, em espaços infec-tos e, além disso, a dor física é acompanhada de humilhação e senti-mento de subserviência, já que os torturados são despidos. A tortura,contudo, não é resumida a um dia na vida das suas vítimas, mas se re-pete no dia seguinte sob as mesmas circunstâncias. No quadro a se-guir são relacionados o texto kafkiano (na tradução de Torrieri Gui-marães, já que foi prioritariamente nessa versão que os perseguidospelo regime civil-militar do final dos anos 1960 e da década de 1970leram O processo) e aspectos correlatos de torturas praticadas pormembros do Estado brasileiro:

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Ocorrência Texto kafkiano Realidade brasileira

O local datortura

“Quando (...) K. passava pelocorredor que separava o seuescritório da escadinhaprincipal (...) ouviu gemidosatrás de uma porta que elesempre julgara que era umquarto de despejos. (...) Juntoao umbral da porta estavamamontoados velhos papéisimpressos já fora de uso,tinteiros de barro cozidovirados e vazios. Na própriacâmara, porém, estavam de pétrês homens, encurvadosporque o teto era muito baixo.Iluminava esse espaço umavela posta sobre umaestante.”18

“(1973) (...) os policiaisdiziam que iam conduzir ocondenado a uma casachamada ‘Casa dos Horrores’;(...) lá chegando, o interrogadorealmente percebeu que acoisa era séria porque ouviugritos e gemidos; (...).”19

“(1973) (...) o interrogadoouviu os gritos e gemidosdaquelas pessoas que eramtorturadas, lá do depósito,onde se encontrava recolhido,no pavimento térreo dareferida casa de campo;(...).”20

18 Imprenta do texto de Torrieri Guimarães, p. 67: “Als K. (...) den Korridor passierte, der sein

Bureau von der Hauttreppe trennte (...) hörte er hinter einer Tür, hinter der er immer nur eine

Rumpelkammer vermutet hatte (...) Seufzer ausstoßen. (...) Unbrauchbare alte Drucksorten,

umfeworfene leere irdene Tintenflaschen lagben hinter der Schwelle. In der Kammer selbst

aber standen drei Männer, gebückt in dem niedrigen Raum. Eine auf einem Regal festgemachte

Kerze gab ihnen Licht” (Kafka, Franz. Der Proceß – Roman – Original Fassung. (KritischeAusgabe, herausgegeben von Malcon Pasley). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Ver-lag, 1999. p. 87).19 Arquidiocese de São Paulo. Brasil: nunca mais. p. 239.20 Idem. Ibidem. p. 240.

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A tortura e osinstrumentosutilizados

“(...) o terceiro tinha na mãouma vara para açoitá-los.”21

“– Já não espero mais – disseo açoitador, apanhando a varacom ambas as mãos paradescê-la sobre Franz,enquanto Willem, acocoradoem um canto, olhava afurtadelas sem atrever-sesequer a mover a cabeça.Então ergueu-se no ar o gritodado por Franz, gritoininterrupto e invariável; nãoparecia provir de um serhumano, porém de umamáquina martirizada; ressoouem todo o corredor; tinha deser ouvido em todo oedifício.”22

“(1970) O pau-de-araraconsiste numa barra de ferroque é atravessada entre ospunhos amarrados e a dobrado joelho, sendo o ‘conjunto’colocado entre duas mesas(...).”23

“(1970) O eletrochoque édado por um telefone decampanha do Exército (...).”24

“afogamento”25

“(1970) o interrogado sofreuespancamento com umcassetete de alumínio nasnádegas, até deixá-lo naquelelocal, em carne viva, (...)”26

“(1977) foi colocado nu emum ambiente de temperaturabaixíssima e dimensõesreduzidas.”27

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21 Imprenta do texto de Torrieri Guimarães, p. 68: “...der Dritte eine Rute in der Hand hielt, um

sie zu prügeln” (Kafka, Franz. Der Proceß. p. 87).22 Imprenta do texto de Torrieri Guimarães, p. 70: “>>Ich warte nicht mehr<<m sagte der Prü-

gler, faßte die Rute mit beiden Händen und hieb auf Franz ein, während Willem in einem Winkel

kauerte und heimlich zusah, ohen eine Kopfwendung zu wagen. Da erhob sich der Schrei, den

Franz ausstieß, ungeteilt und unveränderlich, er shien nicht von einem Menschen, sondern von

einem gemarterten Instrument zu stammen, der ganze Korridor tönnte von ihm, das ganze Haus

mußte es hören” (Kafka, Franz. Der Proceß. p. 91).23 Arquidiocese de São Paulo. Brasil: nunca mais. p. 34.24 Idem. Ibidem. p. 35.25 Idem. Ibidem. p. 36.26 Idem. Ibidem. p. 40.27 Idem. Ibidem. p. 37.

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Os torturados Dois guardas pertencentes aotribunal, ou seja, ao sistema.São pessoas conhecidas doprotagonista e poucovalorizadas dentro dahierarquia.

“A tortura foiindiscriminadamente aplicadano Brasil, indiferente à idade,sexo ou situação moral, físicae psicológica em que seencontravam as pessoassuspeitas de atividadessubversivas.”28

O torturador “(...) Olhando com maioratenção o açoitador, de pelebronzeada como a de ummarinheiro, que mostrava umrosto fresco e selvagem.”29

“Sabe-se que a tortura sópodia ser executada com rigore método, em condições muitoespeciais, por funcionáriosespecialmente treinados ouhabilitados (...).”30

“(1975: sobre interrogatório ea morte de Wladimir Herzog)(...) vimos também ointerrogador, que era umhomem de trinta e três a trintae cinco anos, com mais oumenos um metro e setenta ecinco de altura, uns 65 quilos,magro mas musculoso, cabelocastanho claro, olhoscastanhos apertados e umatatuagem de uma âncora naparte interna do antebraçoesquerdo, cobrindopraticamente todo oantebraço.”31

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28 Idem. Ibidem. p. 43.29 Imprenta do texto de Torrieri Guimarães, p. 69: “...und sah den Prügler genauer an, er war

braun gebrannt wie ein Matrose und hatte ein wildes frisches Gesicht” (Kafka, Franz. Der Pro-

ceß. p. 89).30 Martins Filho, João Roberto. A memória militar sobre a tortura. In: Teles, Janaína (Org.).Mortos e desaparecidos políticos: reparação ou impunidade?. São Paulo: Humani-tas/FFLCH/USP, 2001. p. 110.31 Arquidiocese de São Paulo. Brasil: nunca mais. p. 258.

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Alguns aspectos da tortura podem ser apreendidos na seguinte ci-tação:

“A tortura é um crime hediondo. Num local isolado, longe da vista e dosouvidos, homens empenham-se em destruir física e espiritualmente um pri-sioneiro indefeso, num processo que pode durar horas, dias, meses. Muitospresos morrem em silêncio. Outros confessam nomes; indicam endereçosque vão resultar em mais pessoas presas e torturadas. Outros, ainda, não ape-nas confessam como se tornam agentes duplos: retornam ao convívio deseus antigos companheiros para melhor traí-los. Esse é o caso do caboAnselmo.”32

Na concisão de um parágrafo, o excerto reproduzido inclui o lo-cal da tortura, a situação do torturado e alguma informação sobre otorturador. A tortura praticada com anuência do Estado brasileiro nosanos da ditadura civil-militar possui, conforme se mostrou, tambémparalelos com a literatura kafkiana. Novamente não se intenta com oquadro uma ilustração literária pura e simples, mas a demonstraçãode um possível viés de penetração do texto kafkiano traduzido nosanos de chumbo da ditadura brasileira.

O local da tortura, tanto na narrativa kafkiana quanto nas descri-ções históricas, é um canto escondido, protegido dos olhares conde-natórios de uma sociedade que segue seus dias como se nada estivesseacontecendo. Ou seja, há a percepção de que o que está sendo feitonão é – ao menos aos olhos das pessoas ditas de bem – moralmentecorreto. Os agentes fomentadores da tortura vão buscar lugares proi-bidos e que ficarão marcados como “casas de horrores”. Na narrativakafkiana, o lugar ficou tão contaminado por uma atmosfera negativaque Josef K. insiste com um dos seus subalternos que dêem um jeitona sujeira do local.

Por outro lado, o narrador kafkiano não se esmera na elaboraçãode instrumentos de tortura ou na descrição da própria tortura. Na ver-dade, o texto kafkiano expõe muito mais o patético da situação ao in-vés de descrever a violência do ato descrito. Os espancados sofremuma punição infantilizada, vergastados nas nádegas eles são maisdignos de palhoça do que propriamente de mobilização em prol dos

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32 Nehring, Marta. Carta aos torturados. In: Teles, Janaína (Org.). Mortos e desaparecidos polí-

ticos: reparação ou impunidade?. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001. p. 126.

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direitos dos condenados. Contudo, a condição à qual os condenadossão submetidos não soaria tão irônica se a situação descrita produzis-se ecos no momento histórico de quem a estivesse lendo. Assim, res-peitadas as dimensões, tanto quanto não se pode mais rir das narrati-vas irônicas kafkianas após o holocausto e outros horrores do séculoXX,33 torna-se difícil rir da narrativa kafkiana quando algo de suadescrição patética e agressiva encontra lugar no tempo e no espaço dequem as lê.

O argumento do torturador para justificar sua ação como tortura-dor é exemplar: “Estou encarregado de açoitar e açoito.”34

Não há espaço para algum tipo de reflexão moral por parte do tor-turador, pois a justificativa para sua ação é a ordem dada: ele é fiel àordem que vem de cima e, portanto, é um bom profissional. Tal argu-mento (também utilizado pelo criminoso de guerra e fiel seguidor dacartilha nazista Otto Adolf Eichmann) é hipócrita exatamente porque,se a ação fosse, de fato, um puro e simples cumprimento da profissão,não seriam necessários: a noite, os cantos escondidos e a destruiçãode provas sobre a tortura. É, portanto, no espaço da literatura – e, nocaso específico, da literatura kafkiana – que a ação humana, por maisque se qualifique de desumana, pode encontrar uma forma que permi-ta a sua representação reflexiva para que no silêncio e vagar do textolido as pessoas possam organizar o mundo à sua volta e dar nomespara o que, tantas vezes, insiste em seguir inominado.

O último aspecto que será apresentado, correlacionando a obra li-terária e o momento histórico brasileiro, corresponde exatamente àexecução do protagonista no último capítulo do romance, intituladoO fim.

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33 Sobre a impossibilidade histórica moderna de rir das obras de Franz Kafka, conferir o texto deRuy Coelho, publicado no suplemento Século Kafkiano do jornal Folha de S. Paulo (Coelho,Ruy. Kafka no mundo atual. Folha de S. Paulo, Folhetim: Século Kafkiano, 3.7.1983).34 Imprenta do texto de Torrieri Guimarães, p. 70: “>> (...) Ich bin zum Prügeln angestellt, also

prügle ich.<<” (Kafka, Franz. Der Proceß. p. 90).

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Ocorrência Texto kafkiano Realidade brasileira

Os executores Segundo a percepção de JosefK., os seus executorespareciam ser “velhos atores desegunda ordem” (p. 178), ouao considerar “o aspecto deseus pesados queixos duplos”,talvez fossem “tenores” (p.178); desinformados sobre oprocesso; não respondem anenhuma das dúvidas de K.

(1971) “(...) que o responsávelpor essas ocorrências é opróprio delegado do DOPS,que é o Dr. Silvestre; quesegundo Odijas lhe contouainda em vida (torturado emorto), existe um investigadorque é responsável por torturas;que esse investigador foi umdos torturadores de Odijas,chegando a bater no mesmoaté se cansar, segundo relatodo próprio Odijas (...)”.35

O local daexecução

“Desse modo saíramrapidamente da cidade que nadireção que tinham tomadoquase sem transição se unia aocampo. Atingiram umapequena pedreira abandonadae deserta em cujasproximidades se percebia umacasa de aparência aindainteiramente urbana. (...)Enquanto isso, o outro senhorprocurava na pedreira umlugar apropriado. (...) Era umlocal muito próximo à paredede exploração da pedreira, ehavia nele uma pedraarrancada dela.”36

(1974) “(...) foi conduzidopelos policiais e, de novo,com o capuz na cabeça, a umapropriedade fora desta cidade;que observou uma mudançade clima quando saiu doslimites da cidade (...)”.37

35 Arquidiocese de São Paulo. Brasil: nunca mais. p. 254.36 Imprenta do texto de Torrieri Guimarães, p. 180: “So kamen sie rasch aus der Stadt hinaus,

die sich in diser Richtung fast ohne Übergang an die Felder anschloß. Ein kleiner Steinbruch,

verlassen und öde, lag in der Nähe eines noch ganz städlichen Hauses (...) während der andere

Herr den Stinbruch nach irgendeiner passanden Stelle absuchte. (...) Es war nahe der Bruch-

wand, es lag dort ein losgebrochener Stein” (Kafka, Franz. Der Proceß. p. 239-240).37 Arquidiocese de São Paulo. Brasil: nunca mais. p. 240.

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A execução Josef K. é despido da jaqueta,do casaco e da camisa e écolocado com a cabeça sobrea pedra da execução.

“Depois um dos senhoresabriu o sobretudo e tirou deuma bainha, que pendia de umapertado cinturão posto sobreseu casaco, uma longa edelgada faca de fio duplo, decarniceiro (...).”38

“Mas as mãos de um dossenhores seguraram a gargantade K. enquanto o outro lheenterrava profundamente nocoração a faca e depois arevolvia duas vezes. Com osolhos vidrados conseguiu K.ainda ver como os senhores,mantendo-se muito próximosdiante de seu rosto eapoiando-se face a face,observavam o desenlace.Disse:

– Como um cachorro! – eracomo se a vergonha fossesobrevivê-lo.”39

(1969) “(...) que AntonioRoberto assistiu à morte deChael; (...) Charles Chael, quefoi chutado igual a um cão,cujo atestado de óbito registrasete costelas quebradas,hemorragia interna,hemorragias puntiformescerebrais, equimoses em todoo corpo”.40

Os mortos sob tortura tinhama causa mortis alterada paraacidentes de trânsito;complicações de saúde;alvejado em fuga durantetiroteio; resistência à voz deprisão.

Há, ainda, os casos dos“desaparecidos políticos”,cuja morte evidente écontestada pelos membros doregime civil-militar. Nessescasos, o sofrimentoperpetua-se após a morte nocotidiano dos familiares: “Aperpetuação do sofrimento,pela incerteza sobre o destinodo ente querido, é uma práticade tortura muito mais cruel doque o mais criativo dosengenhos humanos desuplício.”41

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38 Imprenta do texto de Torrieri Guimarães, p. 180: “Dann öffnete der eine Herr seinen Gehrock

und nahm aus einer Scheide, die an einem um die Weste gespannten Gürtel hing, ein langes

dünnes beiderseitig geschärftes Fleischermesser (...)” (Kafka, Franz. Der Proceß. p. 240-241).39 Imprenta do texto de Torrieri Guimarães, p. 181: “Aber an K.’s Gurgel legten sich die Hände

des einen Herrn, während der andere das Messer ihm ins Herz stieß und zweimal dort drehte.

Mit brechenden Augen sah noch K. wie nahe vor seinem Gesicht die Herren Wange an Wange

aneinandergelehnt die Entscheidung beobachten. >>Wie ein Hund!<< sagte er, es war, als

sollte die Scham ihn überleben” (Kafka, Franz. Der Proceß. p. 241).40 Arquidiocese de São Paulo. Brasil: nunca mais. p. 247-248.41 Idem. Ibidem. p. 260.

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O relatório Brasil: nunca mais fornece pouca informação sobreos executores, na maioria das vezes, as execuções registradas sãoconseqüências das torturas sofridas. Contudo, é possível qualificá-loscomo sendo: agentes da lei (policiais: investigadores e delegados);que torturam até o limite (por vezes suspendendo a tortura para o tor-turado continuar vivo e, mas tarde, voltar a ser torturado); são violen-tos nos métodos e agem em delegacias, departamentos oficiais(DOI-CODI) e casas afastadas dos centros urbanos.

Falar em morte desumana é uma metáfora quando se trata da mor-te de pessoas cuja consciência e reflexão sobre a dor sofrida afas-tam-nas da condição de animais. A reflexão final do protagonista, nomomento mesmo de sua morte, corresponde a uma construção meta-fórica em um texto que prima pela desmetaforização de metáforas. Oprotagonista não abre mão da sua condição humana e sua morte não éa de um bicho, mas a de um ser humano que sente ser tratado como umanimal. Tal reflexão de Josef K. vai encontrar ecos na discussão sobreo tratamento cruel e desumano que era dado aos prisioneiros políticosda época da ditadura civil-militar brasileira. E não só isso, pois o sur-gimento de Organizações Não Governamentais durante ou pós-dita-dura e centros de estudos – entre eles o Núcleo de Estudos da Violên-cia da Universidade de São Paulo – corresponde exatamente a umatentativa de trazer para a pauta do dia na sociedade brasileira o trata-mento dispensado aos condenados, inclusive nos dias de hoje.

A correlação entre os textos literário e histórico permite, ainda,uma reflexão sobre a execução pura e simples dos condenados, cujadescrição encontra ecos profundos nos grupos de extermínio surgidosnos anos 1960 no Brasil, organizados normalmente por agentespoliciais, conforme apontaram estudos do estudioso Hélio PereiraBicudo:

“O Esquadrão da Morte nasceu em São Paulo, no final dos anos 1960,mas o modelo difundiu-se por várias regiões, senão em todo o País. Foi insti-tuído como uma espécie de resposta da Polícia à violência popular, numa de-monstração pública de eficiência. Com o início de suas atividades, margina-lizados apareciam seviciados e mortos nas ‘quebradas’ da periferia da cida-de, trazendo no corpo cartazes com a ‘assinatura’ do grupo: uma caveira comdois fêmures cruzados.

(...)

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Houve, inclusive, uma espécie de ‘simbiose’ entre as atividades das po-lícias civis e militares. O Esquadrão da Morte foi uma iniciativa da PolíciaCivil. Porém a Polícia Militar assimilou essa experiência com incrível de-senvoltura, passando a matar marginais e criminosos. Para tanto contou como estímulo da impunidade, garantida até pela conivência ‘oficial’: durante aditadura militar, os julgamentos dos crimes de policiamento e no policia-mento, até então entregues à apreciação da Justiça comum, passaram para acompetência da Justiça Militar.”42

O texto de Bicudo também aponta para aquela simbiose entre opoder de julgar, o poder de fazer cumprir a lei e o poder de policiar,percebidos por Antonio Candido no seu artigo “A verdade da repres-são”,43 tanto no romance kafkiano quanto na organização moderna dapolícia, nas entrelinhas, brasileira.

Ali, nessa periferia tornada ambiente de trabalho dos fiéis guar-diões da ordem e da segurança nacional, como nos porões de tortura,distante da cidade, distante dos olhos e distante dos ouvidos dos cida-dãos de bem, os inimigos do Estado vão sendo eliminados paulatina-mente; também eles, com suas covas rasas, são tratados com um des-prezo que os dista moral e fisicamente dos animais. Também elesmorrem como cães.

Os quadros apresentados, com os comentários a eles agregados,apontam para uma relação explícita segundo nosso objetivo, ou seja,demonstrar o quanto o texto literário influenciou a percepção de umacamada do público letrado brasileiro nos anos de chumbo da ditaduramilitar e motivou edições e reedições dos textos kafkianos, em espe-cial as várias feitas do romance O processo. De fato, ao reproduzir-mos excertos do texto kafkiano ao lado de testemunhos da violentaação da polícia-justiça do Estado brasileiro, quisemos propor umaapropriação enviesada – mas plausível – do texto. Em outras palavras,quisemos contaminar nossos olhos neste começo do século XXI comfatos que se desenrolavam no final dos anos 1960 e nos anos 1970.Desse modo, o texto kafkiano empresta suas cores para ilustrar o pe-ríodo por nós abordado, bem como se torna ele mesmo um texto atra-

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42 Bicudo, Hélio Pereira. Violência: o Brasil cruel e sem maquiagem. São Paulo: Moderna,1994. p. 32-33.43Candido, Antonio. A verdade da repressão. In: Teresina etc. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.O texto reproduzido neste livro havia sido publicado em Opinião. 11:15-22, 1972.

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vessado por ecos de torturas, violências e murmúrios que nos subter-râneos de delegacias, nas periferias ermas e nas casas afastadas doscentros urbanos iam sendo orquestrados e silenciados por fiéis agen-tes contratados do regime ditatorial brasileiro.

Concluindo, pode-se afirmar que de tal forma deu-se uma apro-priação da obra kafkiana entre intelectuais brasileiros que Josef K. vaiencontrar paralelos com o poema José de Carlos Drummond deAndrade: dois Josés que se encontram em uma mesma terra, mas quevêm de universos diferentes, são associados e formam o personagembrasileiro. Aos dois, tornados um por conta do prenome, poder-se-iafazer a mesma pergunta: E agora, José? Uns tantos outros Josés, re-gistrados e batizados com outros nomes ou tornados Severinos nossertões de João Cabral de Mello, foram encontrar paralelos entre suasvidas e a vida do personagem kafkiano Josef K. E isso é de tal formaverdade que a imprensa vai abrasileirar o Josef kafkiano, colocando-oao lado dos Josés estropiados do sistema. Claro que as notas na im-prensa brasileira eram tímidas durante os anos de chumbo da ditaduracivil-militar (que limito entre os anos 1969 e 1976) e evidentes duran-te os anos de abertura democrática. O fundamental é que foi em cimado personagem literário descrito nas páginas de Franz Kafka queaquilo que permanecia inominado encontrou uma definição clara: si-tuação kafkiana.

Bibliografia

ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vo-zes, 1985. p. 118-124.

BICUDO, Hélio Pereira. Violência: o Brasil cruel e sem maquiagem. SãoPaulo: Moderna, 1994. p. 32-33.

CANDIDO, Antonio. A verdade da repressão. In: Teresina etc. Rio de Janei-ro: Paz e Terra, 1980. [O texto reproduzido neste livro havia sido publi-cado em Opinião. 11:15-22, 1972.]

CARPEAUX, Otto Maria. Alceu Amoroso Lima. Rio de Janeiro: Graal,1978.

KAFKA, Franz. Der Proceß – Roman (in der Fassung der Handschrift).Frankfurt am Main: S. Fischer, 1990.

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MARTINS FILHO, João Roberto. A memória militar sobre a tortura. In:TELES, Janaína (Org.). Mortos e desaparecidos políticos: reparação ouimpunidade?. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001. p. 110.

NEHRING, Marta. Carta aos torturados. In: TELES, Janaína (Org.). Mortos

e desaparecidos políticos: reparação ou impunidade?. São Paulo: Hu-manitas/FFLCH/USP, 2001. p. 126.

SANTOS, Maria Célia Ribeiro. Recepção de Kafka em São Paulo: corpus eprimeiras interpretações. Parte I – Processo Fapesp: 97/05934-7, 1998.[Mimeo: Relatório Final de Iniciação Científica, Orientadora: Dra. Ce-leste H. M. Ribeiro de Sousa.]

STACH, Reiner. “Das Gericht will nichts von Dir...” – Über Kafkas RomanDer Proceß. In: KAFKA, Franz. Der Proceß – Roman (in der Fassung

der Handschrift). Frankfurt am Main: S. Fischer, 1990. p. 287-296.STEPHANOU, Alexandre Ayub. Censura no regime militar e militarização

das artes. Porto Alegre: Edipucrs, 2001. p. 272-273. Coleção “História –44”. [O texto de Carpeaux foi publicado em 1966, conforme nota de ro-dapé da p. 272.]

Jornais consultados

Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo.

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VIII.2. A efetivação dos direitos humanose a Fundação Estadual do “Bem-Estar”

do Menor – Febem

Elisa Pires da Cruz*

Lidiane Mazzoni**

“Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamentos ou puni-ções cruéis, desumanas ou degradantes” (art. V da DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos de 10 de dezembro de 1948).

O tratamento desumano dado aos internos da Fundação Estadualdo Bem-Estar do Menor – Febem é patente, porém não oficial, e vemsendo alvo de discussões e intervenções de grupos nacionais e inter-nacionais.

A crise da Fundação é a pior dos últimos anos e se agrava cadavez mais em razão da falta de políticas públicas e de interesse da so-ciedade, “que só vê e se choca quando os adolescentes estão rebela-dos, desesperados e descontrolados”.1

A internação, que deveria considerar que os adolescentes, por esta-rem ainda em desenvolvimento físico, social e psicológico, necessitam

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* Graduanda em Direito pela PUC-Campinas, bolsista de iniciação científica e membro do gru-po de pesquisa CNPq “Ética e Justiça”.** Graduanda em Direito pela PUC-Campinas e membro do grupo de pesquisa “Cidadania eDireito”.1 Centro de Justiça Global et al. Destruindo o futuro – tortura na Febem. Disponível em:<http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/cavallaro/febemglobal.html>. Acesso em: 13maio 2006.

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de reintegração familiar e social e de tratamento, não tem alcançadosua finalidade. Ao contrário, ante as torturas, maus-tratos, mortes e re-beliões, tem contribuído para a transformação dos jovens infratores emfuturos criminosos.2 Isso para não dizer que a própria instituição está setransformando em um verdadeiro sistema penitenciário.

Segundo a Agência de Informação Frei Tito para a América Latina– Adital, familiares, entidades da sociedade civil e instituições religio-sas têm acompanhado nos últimos anos a crise permanente da Febemde São Paulo, principalmente as rebeliões, mortes de internos, torturas,maus-tratos, a proibição da entrada das organizações de direitos huma-nos nas unidades e as tentativas dos representantes do Estado de trans-ferir suas responsabilidades pela crise na instituição para a sociedadecivil. A Agência informa que nos últimos três anos 27 internos morre-ram dentro das unidades da Febem e “nenhum dos casos foi esclarecidopela instituição e ninguém foi punido. Torturas e maus-tratos tambémsão constantes, mas as punições são raríssimas já que existe uma cultu-ra de conivência com relação a essas práticas dentro da Febem, denun-cia o Movimento Nacional de Direitos Humanos”.3

A prática de abusos ganha espaço porque as unidades de interna-ção são instituições fechadas, o que dificulta o controle externo.

Com efeito, o monitoramento não é feito de forma objetiva e des-vinculada dos envolvidos nessa prática. Muitos dos abusos cometi-dos contra os internados sequer são conhecidos pelos órgãos respon-sáveis pela manutenção da dignidade humana dos adolescentes oupela sociedade.

A realidade em que vivem os adolescentes vem à tona somentequando ocorrem inspeções do Judiciário e do Ministério Público, jun-tamente com órgãos de defesa de direitos humanos e de crianças eadolescentes. Muitas vezes é nessas oportunidades que se encontramindícios de prática de tortura, maus-tratos, em flagrante violação à

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2 O criminoso, para Sérgio Salomão Shecaira, “é um ser histórico, real, complexo e enigmático.Embora seja, na maioria das vezes, um ser absolutamente normal, pode estar sujeito às influên-cias do meio” (Shecaira, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Revista dos Tribunais,2004. p. 49).3 Agência de Informação Frei Tito para a América Latina – Adital. Ato contra a Febem. Dispo-nível em: <http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=22085>. Acesso em: 19abr. 2006.

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Constituição Federal, ao Estatuto da Criança e do Adolescente e aostratados internacionais dos quais o Brasil faz parte.

Segundo artigo publicado na Revista Consultor Jurídico:

“(...) em inspeções judiciais realizadas por juízes, pelo Ministério Pú-blico e pelo Departamento de Execuções da Infância e Juventude – DEIJ, foiconstatada violação aos direitos fundamentais dos adolescentes internos.Segundo a juíza, os jovens não tinham atividades na Febem, ficando a maiorparte do tempo trancados em suas celas. Não existiam programas pedagógi-cos ou socioeducativos e a escolarização e os atendimentos psicossociaiseram precários. Além disso, os adolescentes reclamavam de agressões e tor-turas que seriam feitas pelos agentes da SAP – Secretaria de Assuntos Peni-tenciários e integrantes do GIR – Grupo de Intervenção Rápida”.4

Nas diversas vistorias realizadas em unidades da Febem são en-contrados equipamentos de tortura, como máquinas de choque, paus,barras de ferro, cabos de enxada, fios de cobre, correntes, entre ou-tros, e, segundo o relatório da Anistia Internacional:

“O espancamento de adolescentes é ocorrência freqüente, muitas vezesdurante a noite. Alguns monitores mantêm uma reserva de paus e barras deferro para esse fim. Após os espancamentos é comum os adolescentes seremobrigados a tomar banho frio a fim de limitar o aparecimento de hematomas”(AI, jul. 2000)5

Percebe-se que o Estado é um dos grandes responsáveis pela si-tuação que se expõe, mas não é o único. Mister que a sociedade (en-tenda-se, cada cidadão) tenha consciência do seu papel como forma-dora e componente de um Estado (democrático de direito).

A participação estatal é mais evidente e tem sido explorada commaior constância. O Estado, “destinado a assegurar o exercício dosdireitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, odesenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos deuma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada naharmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional,

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4 Pinheiro, Aline. Maus-tratos – Justiça determina afastamento de diretora da Febem. Revista

Consultor Jurídico, 15 set. 2005.5 Centro de Justiça Global et al. Destruindo o futuro – tortura na Febem. Disponível em:<http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/cavallaro/febemglobal.html>.

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com a solução pacífica das controvérsias”,6 é falho e sua atuação nãoestá a contento, havendo a necessidade de se repensar se ainda existeno Brasil um Estado democrático de direito. Nas palavras do profes-sor Eduardo Bittar, em artigo publicado pela Folha de S. Paulo em 20de maio de 2006, “apesar de um discurso racional falar em ordem e le-galidade, o subterrâneo social funciona de outra forma”.7

Mais um artigo publicado na Revista Consultor Jurídico8 comen-ta a problemática. O autor, Claudio Julio Tognolli, chama a atençãopara uma divulgação feita pela Anistia Internacional, entidade de di-reitos humanos, de um dossiê em que expressa sua preocupação comos altos níveis de assassinatos por parte de policiais, amplo uso da tor-tura e ataques contra os defensores de direitos humanos no Brasil.

A “Human Rights Watch” enviou uma carta ao governador Cláu-dio Lembo, em 11 de maio de 2006, em razão de uma representaçãoda Febem contra a senhora Conceição Paganele, presidente e funda-dora da Associação de Mães e Amigos de Crianças e Adolescentesem Risco – Amar, que estaria incitando uma recente rebelião em umaunidade de internação de adolescentes.

O documento traz que a senhora Paganele é uma de vários repre-sentantes de organizações não governamentais que regularmente vi-sitam as unidades de internação da Febem, de acordo com a políticagovernamental de permitir o monitoramento externo dessas unida-des, o que é extremamente importante à luz das freqüentes alegaçõesde abusos no interior das unidades de internação de adolescentes noBrasil. A “Human Rights Watch” demonstrou seu inconformismo emrelação à atitude dos dirigentes da Febem, que, ao invés de voltaremsua atenção para os problemas crônicos que alimentam rebeliões nasunidades de internação, optaram por apresentar uma representaçãocontra uma das mais proeminentes defensoras dos direitos dos ado-lescentes no País. A carta ainda informa que, em janeiro de 2005,

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6 Conforme disposto no Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil.7 Bittar, Eduardo. O terrorismo urbano: violência e desordem social. Folha de S. Paulo, 20 maio2006.8 Tognolli, Claudio Julio. País sob avaliação – Anistia Internacional condena “amplo uso datortura”. Revista Consultor Jurídico, 25 out. 2005.

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“juntamente com a Conectas Direitos Humanos, o Instituto Pró-Bono, oCentro pela Justiça e pelo Direito Internacional, a Justiça Global e o Movi-mento Nacional de Direitos Humanos, a Amar apresentou perante a ComissãoInteramericana de Direitos Humanos solicitação de medida cautelar para ga-rantir a vida e a integridade física e psíquica dos adolescentes na unidade de in-ternação 41 da Febem, no Complexo da Vila Maria, na Cidade de São Paulo.Estes grupos apresentaram a solicitação após uma sessão de tortura e maus-tratos, no dia 12 de janeiro, que resultou em ferimentos em 80 adolescentes naunidade, comprovados através de laudos do Instituto Médico Legal”.9

A situação da Febem foi reconhecida pela Corte Interamericanade Direitos Humanos, que em novembro de 2005

“adotou medidas provisionais ordenando ao Estado Brasileiro ‘queadote sem demora as medidas necessárias para impedir que os jovens inter-nos sejam submetidos a tratos cruéis, inumanos ou degradantes’ e ‘que in-vestigue os fatos que motivam a adoção das medidas provisórias, com o fimde identificar os responsáveis e impor-lhes as sanções correspondentes, in-cluindo as administrativas e disciplinares’”.10

E não se deve pensar em “Poder Executivo”, em especial, nessecaso, o Governo do Estado de São Paulo, somente quando se fala emEstado. O Legislativo e o Judiciário também têm suas parcelas de res-ponsabilidade. A atuação desses Poderes se dá na formulação da lei ena sua aplicação.

Um exemplo é a grande margem de escolha que o Estatuto da Crian-ça e do Adolescente defere ao magistrado da medida socioeducativaaplicável ao jovem infrator. “O que vemos diariamente nas decisõesjudiciais é que a discricionariedade abandona o território virtuoso daproteção da liberdade e se volta contra ela.”11

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9 Carta da Human Rights Watch ao governador Cláudio Lembo em 11 de maio de 2006 em razãode uma representação da Febem contra a Sra. Conceição Paganele, presidente e fundadora daAssociação de Mães e Amigos de Crianças e Adolescentes em Risco – Amar, que estariaincitando uma recente rebelião numa unidade de internação de adolescentes. Disponível em:<http://hrw.org/portuguese/docs/2006/05/11/brazil13363.htm>.10 Tognolli, Claudio Julio. Reputação em jogo – entidade de direitos humanos acusa dirigentesda Febem. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: <http://conjur.estadao.com.br>. Acessoem: 8 maio 2006.11 Frassetto, Flávio A. et al. O ECA, o Judiciário e as medidas socioeducativas. Boletim Ibccrim,ano 13, n. 155, p. 8, out. 2005.

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Mas também a sociedade é protagonista nessa problemática. Oscidadãos carecem da consciência de que são formadores do Estado egrandes agentes da concretização dos direitos humanos no País.

Bourdieu, citado por Aydil da Fonseca Prudente,12 “alerta para adificuldade do homem de perceber a natureza social e condicionadade seu pensamento, de seu intelecto, e de suas ações. O autor destacaque os esquemas de pensamento implantados desde cedo por um me-canismo de inculcação correspondem, mais ou menos, a um trabalhode introjeção gradual e imperceptível dos registros familiares e sociais,o que impede a conscientização desse caráter. A alienação, no entan-to, faz com que aquele que julga o ato do outro não assimile a idéia daexistência de qualquer relação do ato com fatores ambientais”. Nessaesteira, continua o autor, a sociedade atual é moldada “pelo pensa-mento do poder econômico burguês, seguindo a trilha do ‘bandidonaturalmente mau’, eximindo-nos dessa característica e ao mesmotempo enxergando-a apenas no outro, percebido, natural e grosseira-mente, como diferente de nós”.

Destarte, o Estado e os cidadãos, alinhados na efetivação dos di-reitos humanos, não podem mais ignorar o cenário de violência, maus-tratos e degradação do ser humano dentro da Febem. Mais grave ain-da é a situação, uma vez que se está tratando de adolescentes, jovenssem formação pessoal, cultural, social completa.

A primeira medida rumo a uma possível solução, por óbvio, é oreconhecimento de que o problema existe. Outras medidas imedia-tas podem e devem ser tomadas para minimizar o quadro atual,como manter os adolescentes em unidades próximas à sua família,desenvolver tratamentos para a reinserção social, oferecer assistên-cia médica, psicológica, utilizar a medida socioeducativa de inter-nação em casos estritamente necessários e respeitando a brevidade,entre outras.

No entanto, não se pode perder de vista que o problema da Febemnão necessita apenas de solução imediata, mas de um trabalho a longoprazo rumo à efetivação dos direitos humanos dentro da própria so-ciedade em que está inserida a Fundação.

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12 Prudente, Aydil da Fonseca. O massacre do Carandiru: o “coronel” que há em nós. Boletim

Ibccrim, ano 13, n. 161, p. 17, abr. 2006.

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É certo que os chamados “direitos humanos” já foram reconheci-dos, dispensando uma discussão ideológica e filosófica em busca daformação dessa concepção.

O conceito de direitos humanos, porém, ainda não está totalmen-te formado, sendo considerado, muitas vezes, como a consagração doprincípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Para o constitucionalista Alexandre de Moraes,13 o princípio dadignidade da pessoa humana se traduz no quanto segue:

“A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente àpessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente eresponsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito porparte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável quetodo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmen-te possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, massempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoasenquanto seres humanos.

(...)O princípio fundamental consagrado pela Constituição Federal da dig-

nidade da pessoa humana apresenta-se em uma dupla concepção. Primeira-mente, prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao próprioEstado, seja em relação aos demais indivíduos. Em segundo lugar, estabele-ce verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios se-melhantes.”

Há discussão acerca da melhor definição da expressão, entenden-do o professor Fábio Comparato,14 pautado na doutrina jurídica ale-mã, que existe um pleonasmo da expressão “direitos humanos” ou“direitos do homem”, tratando-se, afinal, “de algo inerente à própriacondição humana, sem ligação com particularidades determinadas deindivíduos ou grupos”.

Deixando essa questão de lado, o que se verifica atualmente éuma necessidade de efetivação, e essa etapa é política (não mais ideo-lógica), requerendo a participação do Estado juntamente com a socie-dade. E essa é a grande dificuldade no Brasil, pois os brasileiros ainda

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13 Moraes, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. SãoPaulo: Atlas, 2005. p. 128-129.14 Comparato, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva,2005. p. 57.

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não se desvincularam do conceito ultrapassado de cidadania, como amera “existência de direitos políticos completos e iguais”.15

O exercício da cidadania nos dias de hoje deve ser em busca daconcretização dos direitos fundamentais previstos na ConstituiçãoFederal, transformando a realidade para que seres humanos não pas-sem fome, tenham acesso à educação, saúde, saneamento básico, ouseja, tenham um mínimo de condições de sobrevivência e dignidade.

O que não se pode conceber é que “o princípio da dignidade dapessoa humana, em toda a sua inteireza, [tenha sido] levado, em cer-tas situações, para ‘local incerto e não sabido’”.16 A modificação daatual situação da Febem é uma forma de fazer valer esse exercício decidadania e efetivar o princípio constitucional da dignidade da pessoahumana, em uma verdadeira concretização dos direitos humanos.

Bibliografia

AGÊNCIA DE INFORMAÇÃO FREI TITO PARA A AMÉRICA LA-TINA – ADITAL. Ato contra a Febem. Disponível em:<http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=22085>.Acesso em: 19 abr. 2006.

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COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos huma-

nos. São Paulo: Saraiva, 2005.FRASSETTO, Flávio A. et al. O ECA, o Judiciário e as medidas socioeduca-

tivas. Boletim IBCCRIM, ano 13, n. 155, out. 2005.

416

15 Bittar, Eduardo C. B. Ética, educação, cidadania e direitos humanos: estudos filosóficosentre cosmopolitismo e responsabilidade social. São Paulo: Manole, 2004. p. 12.16 Rabelo, Francis de Oliveira. A coragem de transgredir a lei em busca do princípio dadignidade da pessoa humana – um grito do Judiciário mineiro. Boletim Ibccrim, ano 13, n. 157,p. 2, dez. 2005.

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MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação

constitucional. São Paulo: Atlas, 2005.PINHEIRO, Aline. Maus-tratos – Justiça determina afastamento de diretora

da Febem. Revista Consultor Jurídico, 15 set. 2005.PRUDENTE, Aydil da Fonseca. O massacre do Carandiru: o “coronel” que

há em nós. Boletim IBCCRIM, ano 13, n. 161, abr. 2006.RABELO, Francis de Oliveira. A coragem de transgredir a lei em busca do

princípio da dignidade da pessoa humana – um grito do Judiciário minei-ro. Boletim IBCCRIM, ano 13, n. 157, dez. 2005.

Relatório “Destruindo o futuro – tortura na Febem” – Disponível em:<http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/cavallaro/febemglo-bal.html>. Acesso em: 18 maio 2005.

SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Revista dos Tribu-nais, 2004.

TOGNOLLI, Claudio Julio. País sob avaliação – Anistia Internacional con-dena “amplo uso da tortura”. Revista Consultor Jurídico, 25 out. 2005.

_____. Reputação em jogo – entidade de direitos humanos acusa dirigentesda Febem. Revista Consultor Jurídico, 8 maio 2006.

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VIII.3. Os direitos humanos e seu subsolo disciplinar– uma leitura antifoucaldiana de Michel Foucault*

Luciano Oliveira**

1. O Brasil vive, neste início de novo século, uma curiosa tensão,no limite potencialmente perigoso para a própria democracia, entre, deum lado, uma consciência de cidadania talvez sem precedentes na nos-sa história, e, de outro, níveis exponenciais de violência que constituemgraves violações a certos direitos humanos fundamentais da população– como os direitos à vida e à segurança – e, assim, conspiram contra aconsolidação daquela consciência. Antes de prosseguir, convém escla-recer e explorar melhor, ainda que sucintamente, esse duplo movimen-to assimétrico. Detenho-me inicialmente no primeiro.

Um dos eventos mais significativos na cultura jurídica e política– senão mesmo da cultura tout court – do Brasil, nos últimos 30 anos(para usar um número “redondo”), foi o que podemos designar comouma renovação da noção de direito (Oliveira, 1996). A “redondeza”do número não é apenas um recurso estilístico. O marco inicial esco-lhido, o ano 1975, assinala o momento em que, com política de disten-

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* Este texto é a versão razoavelmente modificada da minha intervenção no I Encontro Nacional“Direitos Humanos no Século XXI”, realizado pela ANDHEP (Associação Nacional de Direi-tos Humanos – Pesquisa e Pós-graduação) no Rio de Janeiro em junho de 2005. Agradeço aoprofessor Giuseppe Tozzi, da Universidade Federal da Paraíba, a lembrança do meu nome paraparticipar do evento.** Professor dos Programas de Pós-graduação em Direito e em Ciência Política da Universida-de Federal de Pernambuco. Autor, entre outros, de Sua excelência o comissário e outros ensaios

de sociologia jurídica. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004.

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são do presidente Geisel, o tema dos direitos humanos deixa o peque-no círculo de religiosos e advogados encarregados da defesa dos pre-sos políticos e adentra a esfera pública. A morte tétrica e trágica deHerzog em outubro daquele ano é, nesse sentido, um marco históricoda maior importância.

Na seqüência dessa história, e sumarizando-a bastante, com o fimdo regime militar inúmeros militantes de esquerda abraçaram os va-lores da democracia e muitos deles tornaram-se militantes dos direi-tos humanos. Novos atores políticos, trazendo consigo uma nova lin-guagem – a linguagem dos direitos –, surgem em cena, reivindicandoo cumprimento de velhas promessas da democracia sempre posterga-das em um país como o Brasil: condições de vida digna, moradia,educação, saúde – enfim, o respeito aos direitos humanos na sua ver-são mais moderna, que inclui, ao lado dos direitos humanos da tradi-ção liberal clássica – entre os quais se incluem os direitos à vida e à se-gurança, também conhecidos como direitos humanos de primeira ge-ração –, os direitos sociais e econômicos da tradição socialista – tam-bém conhecidos como direitos humanos de segunda geração.

Nesse cenário de grandes acenos e esperanças, em que era legíti-mo esperar que o País finalmente ingressasse em uma fase nova derespeito aos direitos humanos mais elementares, não é, entretanto, oque tem acontecido: o tema dos direitos humanos, depois de uma ful-gurante e bem-sucedida aparição no cenário político brasileiro, chegaao início do século XXI, no Brasil, carregando consigo o incômodorótulo de “privilégios de bandidos”, para usar a conhecida expressãode Tereza Caldeira (1991) – rótulo que lhe foi colado pela mídia sen-sacionalista e por políticos populistas da nossa direita mais truculentae incorporado ao senso comum de uma boa parte da nossa opinião pú-blica. A questão é: como e por quê? Essas questões nos remetem aosegundo eixo do duplo movimento assimétrico que sugeri no iníciodesta reflexão.

Houve um tempo – não tão longínquo assim – em que circulavano imaginário dos defensores dos direitos humanos no Brasil, e comsobras de razões, a visão de um Estado violador desses direitos, de umlado, e de uma sociedade civil acuada, de outro. Permitindo-me umpequeno devaneio pela nossa melhor e mais significativa música po-pular, lembro que nos negros anos da ditadura Chico Buarque escre-

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veu uma canção, Acorda, Amor!, na qual, fazendo uma alusão aos de-saparecimentos de pessoas na mão da polícia política, clamava emuma inversão poética genial: “chame o ladrão / chame o ladrão”...Pois bem: o ladrão chegou. O ladrão, o assaltante, o estuprador, o tra-ficante, o seqüestrador... A lista é grande.

Daí aquela tensão assinalada no início: uma consciência de cida-dania e uma militância pelos direitos humanos exercendo-se em con-dições que são, objetivamente falando, duramente adversas. Não quea hostilidade de boa parte da opinião pública a esses militantes sejauma simples conseqüência da violência em seus níveis atuais. Longedisso, ela lhe antecede. Na verdade, essa hostilidade ao tema dos direi-tos humanos começou no instante em que os seus militantes, a partirdo momento em que já não havia prisioneiros políticos a defender,voltaram a sua atenção para os presos comuns, tradicionalmente tra-tados no Brasil com absoluto desprezo pelos seus direitos humanosmais elementares.

Criminosos verdadeiros, ou meros “suspeitos” assim identifica-dos pelos estereótipos de sempre em uma sociedade profundamenteinjusta e discriminatória como a nossa, esses presos comuns partilha-vam – partilham ainda – o mesmo fardo de serem pessoas de condiçãosocioeconômica desfavorável. Esse componente classista, inegavel-mente presente nas práticas repressivas das nossas forças policiaisdesde sempre, levou os seus críticos a enfatizar tal aspecto, levan-do-os por conseguinte a um nível explicativo situado nas profundezasda nossa formação histórico-social, dentro da qual os “desclassifica-dos” que saíam da linha sempre foram tratados na base da repressãofísica mais escancarada.

Adianto, para evitar mal-entendidos, que também subscrevo es-tas e outras percepções semelhantes sobre o problema da violação dosdireitos humanos das classes populares brasileiras. Gostaria apenas,situando-me em um nível menos estrutural – que, aliás, não exclui ooutro –, de introduzir nesta reflexão uma razão mais comezinha paratambém explicar a hostilidade atual ao tema dos direitos humanos noBrasil: o crescimento impressionante – no limite, insuportável – dosníveis de criminalidade violenta no País nos últimos anos. É por aíonde se insinua a questão que constitui o fulcro central desta minhareflexão, que é, na verdade, o primeiro subproduto de um projeto de

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pesquisa em andamento, uma espécie de work – espero – in pro-

gress...2. De um lado, vale continuar insistindo: malgrado todos os es-

forços feitos nos últimos anos no sentido de uma atuação menos vio-lenta da polícia, esta continua sendo uma instituição marcada por umdesempenho violador dos direitos mais comezinhos. Os justiçamen-tos sumários de delinqüentes ou meros suspeitos permanecem em ní-veis chocantes. Entre 1999 e 2003, por exemplo, no Estado do Rio deJaneiro, os números de civis mortos pela polícia aumentaram consis-tentemente a cada ano: segundo a revista Época (3.5.2004), eles fo-ram 289 em 1999 e 1.195 em 2003. Um inacreditável aumento demais de 400%! Da mesma forma, as cadeias brasileiras continuamsendo o horror que todos conhecem e que produzem as cenas literal-mente dantescas a cada rebelião de presos.

Mas, nem que seja por um mínimo de cuidado metodológico, nãose pode deixar de considerar que os números estratosféricos das exe-cuções policiais em uma cidade como o Rio de Janeiro podem tam-bém estar, por sua vez, relacionados à própria violência do banditis-mo nessa cidade. Provavelmente opera aí – reforçando e retroalimen-tando os fatores histórico-estruturais já mencionados – uma perversacircularidade causal: nos últimos tempos, postos policiais passaram aser atacados só por serem postos policiais, e agentes da polícia são àsvezes mortos pelo simples fato de serem funcionários da instituição.Em um clima a tal ponto degradado – de que o documentário Notícias

de uma guerra particular, de João Moreira Sales, é um bom exemplo–, há de se convir que muitas mortes perpetradas pela polícia podem,sim, ser vistas como uma espécie de vingança corporativa dos seusmembros. Mas a violência que nos assola não é exclusiva desses doissegmentos.

Na verdade, não nos defrontamos hoje em dia apenas com umavia de mão dupla: policiais matando bandidos, suspeitos e inocentes,de um lado; bandidos matando policiais, de outro. Diferentementedessa visão até certo ponto “confortável”, temos hoje algo próximode uma generalização do fenômeno da violência. Bandidos matam-seentre si em violentas disputas por pontos de tráfico de drogas, e assal-tantes são mortos por cidadãos cansados de serem por eles molesta-dos. Às vezes por interpostos “justiceiros” de atuação conhecida nas

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periferias das grandes cidades, às vezes diretamente por pessoas co-muns que se reúnem em sessões de linchamento – uma forma bárbarae primária de “justiça popular” que se exerce com relativa freqüêncianas nossas periferias, onde promotores e juízes armados do Código deProcesso Penal não chegam. O fenômeno, que já no início dos anos1980 chamava a atenção de pesquisadores voltados para o problemada violência no Brasil (Benevides e Fischer, 1983), adentra a décadaseguinte (Martins, 1991) e chega impávido ao terceiro milênio: “Co-munidade lincha três assaltantes” – era uma das manchetes de um dosgrandes jornais recifenses, passados menos de seis meses do novo sé-culo (Jornal do Commercio, 6.6.2000).

E por último e não menos importante, mas aparentemente apre-sentando uma outra lógica explicativa, temos o fato desnorteante deque quem mais mata no Brasil não é a polícia ou o traficante, mas o ci-dadão comum, envolvido muitas vezes em querelas com conhecidosque culminam em um assassinato cuja explicação repousa no lugarcomum do “motivo fútil”. É o crime como fato banal no sentido maisprofundo do termo. No Brasil como um todo, mesmo tendo as mortesligadas ao banditismo – sobretudo à questão do tráfico de drogas – as-sumido enormes proporções nos últimos anos, ainda assim levanta-mento recente feito pela organização Viva Rio concluía que cerca de“50% dos homicídios são cometidos por pessoas sem histórico crimi-nal e por motivos fúteis” (Jornal do Commercio, Recife, 24.5.2004).

Nesse quesito, o Brasil como um todo apresenta neste início deséculo uma performance quase inacreditável. Em um país em que nãohá um estado de conflagração armada declarada, cerca de 40 mil pes-soas foram assassinadas a tiros em 2002. Em outros termos que talvezdêem uma dimensão mais impactante dessa tragédia, isso quer dizer,segundo o mesmo levantamento da Viva Rio, que “11% dos homicí-dios do mundo ocorridos por arma de fogo acontecem no Brasil”. Co-mo se convive com isso? Ou seja: como vivem as pessoas em um paíscom índices de violência e de homicídio entre os maiores do mundo?Simplesmente vivem! É o inverso do chamado “paradoxo de Tocque-ville”. Para o nobre Alexis de Tocqueville – curiosamente um dosgrandes teóricos da democracia moderna –, “quanto mais um fenô-meno desagradável diminui, mais o que dele resta se torna insuportá-vel” – segundo a formulação que lhe dá Jean-Claude Chesnais (1981,

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p. 18). Inversamente poderíamos, com análoga lógica, sustentar a hi-pótese de que quanto mais um fenômeno desagradável aumenta oupersiste, mais ele se torna suportável. Em outros termos: como preci-sam continuar vivendo, as pessoas terminam desenvolvendo manei-ras de conviver com o que, em outras latitudes, pareceria insuportá-vel. A confirmação empírica – se bem que por vias transversas – doparadoxo tocquevilleano é fornecida pelo simples fato de as pessoascontinuarem vivendo em um país como o nosso, onde os números re-lativos a homicídios chegam a ser estonteantes.

Tendo em vista essa realidade, que perspectivas se abrem diantede nós? Uma delas é: nada acontece; ou: tudo continua como está. Aviolência continua nos patamares estratosféricos a que chegou e nóscontinuamos a ela nos adaptando. Como somos um povo dotado degrande senso de humor, terminamos até exorcizando-a com brinca-deiras. Um dia desses, na varanda de uma casa de praia de amigos declasse média, verifiquei, surpreso, a existência de uma pequena câ-mera de circuito interno de TV voltada para o portão de entrada, des-sas que hoje proliferam em lojas e edifícios. Só faltava a irritante ad-vertência: “Sorria, você está sendo filmado!” Intrigado, perguntei:“Isso funciona mesmo?” A resposta do meu interlocutor me fez rir:“Nada, isso é genérico.” Isso no nível micro. No nível macro, a socie-dade se adapta pelo viés de todo um importante setor da economia quese mobiliza para atender a nossas demandas por segurança. A crer-sena reportagem já referida (Jornal do Commercio, 24.5.2004), hojeem dia “a indústria do medo faz circular cerca de R$ 100 bilhões porano, 10% do PIB brasileiro”. É a confirmação a contrario do “parado-xo de Tocqueville”...

Com efeito, uma das conseqüências desse estado de coisas é aproliferação, no País, de uma verdadeira indústria da segurança pri-vada. Segundo a revista Carta Capital (19.2.2003), “o número de sol-dados privados triplicou nos últimos 10 anos. O País tem nas ruas umatropa de 913.269 vigilantes cadastrados, 21% desses com arma nocoldre, de acordo com levantamento realizado pela Polícia Federal”.Repetindo um padrão histórico da repressão policial tradicional noBrasil, esses “soldados” são também motivo de inquietação no quediz respeito à violação aos direitos humanos. Segundo o Relatório da

Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o Extermínio de Crianças

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e Adolescentes, realizado nos anos 1990, “em um universo pesquisa-do de 4.611 vítimas de homicídio que tinham até 17 anos, 52%” – in-forma a mesma revista – “foram mortas por vigilantes ilegais em ser-viços de segurança clandestinos”. Volta a pergunta: como se convivecom isso? Como se convivia no tempo pré-moderno e pré-democrá-tico, em que a segurança era assunto de quem podia pagar para tê-la. Éo que acontece hoje em dia entre nós.

Na verdade, o Brasil dá a impressão de estar mergulhando emuma espécie de “estado de natureza” de tipo hobbesiano! Exagero re-tórico? Nem um pouco. Utilizo a expressão em um sentido puramentetécnico, na medida em que uma descrição como a que farei em segui-da não está muito distante da maneira como as pessoas estão vivendosob o império de uma violência que parece não ter fim e que parececada vez maior e mais assustadora. A descrição é a seguinte:

“...tudo aquilo que é válido para um tempo de guerra, em que todo ho-mem é inimigo de todo homem, o mesmo é válido também para o tempo du-rante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode seroferecida por sua própria força e sua própria invenção”.

Isso é o “estado de natureza” conforme a concepção de ThomasHobbes (1974, p. 80). Dois traços lhe são essenciais: todos são poten-cialmente inimigos de todos e cada um se vira como pode para provera própria segurança. Um e outro traço estão presentes hoje em dia nasociedade brasileira, sobretudo nas suas grandes áreas metropolita-nas. Procedo, em seguida, a uma ilustração extraída da realidade queme está mais próxima: a cidade do Recife. O primeiro traço do “esta-do de natureza” hobbesiano, como vimos, é: todos são potencialmen-te inimigos. Ora, o recifense comum já não realiza o simples ato coti-diano de pegar um transporte coletivo sem ter medo de ser assaltado.A média de assaltos a ônibus na Grande Recife, em um levantamentorealizado em 2004 pelo Jornal do Commercio local (19.5.2004) – enão há nenhuma razão para crer que isso tenha diminuído –, era deseis por dia!

Daí o segundo traço da descrição hobbesiana: a segurança é ma-téria da competência de cada um. Nas grandes cidades, hoje em dia,exemplos que mostram como essa realidade está se banalizando sal-tam aos olhos: muros cada vez mais altos, vigilância eletrônica em

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simples casas residenciais, vigilantes nas ruas pagos pelos morado-res. Isso, que há alguns anos era exclusivo de alguns bairros ricos emcidades como o Rio de Janeiro, é hoje um fenômeno que pode ser en-contrado em qualquer bairro de classe média da cidade do Recife.Mas não só: nos bairros populares e periferias, não é raro nos defron-tarmos com pequenos estabelecimentos comerciais, quando não sim-ples biroscas, que se assemelham a verdadeiras jaulas: os comercian-tes, do lado de dentro, atendem os fregueses através de grades!

Não tem inteira razão, assim, o jornalista Mino Carta, ao criticar anossa “elite [que] ergue muralhas em torno das suas vivendas” (Carta

Capital, 15.6.2005, p. 20). Que ela está entrincheirada faz tempo éuma verdade sabida e que de certa forma apascenta o nosso senso crí-tico e a nossa boa consciência. Mas a verdade é que esse comporta-mento autodefensivo espraia-se por toda a sociedade, chegando até osseus estratos mais humildes. Afinal, os pobres são também normais! –e, igual aos ricos, costumam agir racionalmente... Permitindo-me aintromissão de uma nota pessoal, adianto que eu mesmo, todos os me-ses, contribuo com 15 reais para uma cota feita no meu prédio a fim depagarmos alguns rapazes musculosos que ficam na esquina da ruaonde moro com um vistoso colete onde está escrito em letras bem vi-síveis: “Segurança”! Sinto-me seguro? Mais ou menos...

3. É tendo em vista essa realidade – em que a violência ou suaameaça parece ter-se integrado na vida cotidiana de todo mundo – quegostaria de explorar como hipótese de trabalho a perspectiva de que,outra vez sem nenhum rompante retórico, estamos diante de um ver-dadeiro problema civilizacional. Isso dito, é tempo de juntar o que foiexposto a alguns elementos teóricos a fim de estabelecer mais clara-mente o cerne de minhas reflexões. Não se trata, esclareço logo, de pro-por, em uma fórmula mágica, a solução para o problema da violência noBrasil, ainda que um de seus pressupostos seja o de que a violência bra-sileira, como outras experiências históricas demonstram ser possível,possa um dia ser conduzida a níveis, por assim dizer, “normais”, parafalar como Durkheim. Trata-se, antes, de trazer ao campo de discus-são um approach não muito simpático entre nós. O que quero dizercom isso?

Antes de tentar entabular uma resposta, gostaria de lembrar –mesmo se toda analogia é, por princípio, “imperfeita” – que já houve

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experiências históricas análogas às que estamos passando. Refiro-meespecificamente – aludindo a uma região do mundo que nos é cultu-ralmente muito cara – ao fenômeno da violência na Europa nos albo-res da modernidade e de sua redução na época moderna, de que o livroHistória da violência, do francês Jean-Claude Chesnais (1981), é umbom exemplo. Em resumo, e simplificando bastante, o que nos dizChesnais? Que os baixos índices de violência e criminalidade experi-mentados pelos países ricos do Hemisfério Norte europeu é um fenô-meno que data apenas dos dois últimos séculos. Antes disso, a violên-cia como modo de resolução de conflitos constituía praticamente umcódigo normal de conduta. A civilidade, a urbanidade como regramais ou menos generalizada nas relações sociais é assim, em termoshistóricos, um fenômeno relativamente recente.

Por volta dessa época – fins do século XVIII e início do séculoXIX –, os chamados reformadores penais falavam insistentemente nanecessidade de ordenar uma sociedade cuja racionalidade toleravacada vez menos os vagabundos, mendigos e delinqüentes que povoa-vam os famosos “pátios dos milagres”. Era preciso deter o crescimen-to bruto da vadiagem e da delinqüência, subprodutos da desagregaçãodos equilíbrios tradicionais gerados pela industrialização nascentecom sua brutal “acumulação primitiva”, como diria Marx, e pela ur-banização intensa. Hoje falaríamos em globalização. Naquela épocae naquele contexto, o que aconteceu? Muitas coisas, tanto no planoinstitucional quanto no plano econômico propriamente dito. Exem-plos retirados da literatura sobre o assunto incluem tanto um enqua-dramento mais efetivo da população pobre pela via do trabalho e daescola quanto uma reformulação dos aparelhos de justiça, inclusivepoliciais, tornando-os mais efetivos e eficazes (Badinter, 1992).

Tudo isso nos remete, obviamente, a um outro autor, Michel Fou-cault, cujos leitores, no Brasil, são legião. É a ocasião, assim, de dizeralguma coisa sobre o subtítulo propositalmente provocador destas re-flexões: uma leitura antifoucaldiana* de Foucault. Por que a provoca-

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* Adoto, neste texto, o adjetivo “foucaldiano” em vez do usual “foucaultiano”, atento à adver-tência do ensaísta José Guilherme Merquior, prematuramente desaparecido. Segundo Merqui-or, aquela, e não esta, seria a forma correta, uma vez que “adjetivos formáveis a partir de nomescomo Foucault são tradicionalmente derivados da forma latina do substantivo: neste caso, de‘Foucaldus’, na mesma linha em que ‘cartesiano’ foi forjado como adjetivo relativo a ‘Cartesi-us’, isto é, Descartes” (revista Humanidades, UnB, n. 15). Adoto-o não exatamente por essas ra-

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ção? Porque creio ser instrutivo ler atentamente e levar a sério uma hi-pótese formulada – com outras intenções, é verdade – por MichelFoucault no seu clássico Vigiar e punir. A hipótese é a seguinte: “As‘Luzes’ que descobriram as liberdades inventaram também as disci-plinas”, com isso querendo dizer que “as disciplinas reais e corporaisconstituíram o subsolo das liberdades formais e jurídicas” (Foucault,1986, p. 195). Na leitura que faço dessa formulação, isso quer dizerque, subterraneamente ao gozo dos direitos civis e políticos, e tornan-do-os possíveis, funcionaram os famosos “dispositivos disciplina-res”, a saber: a escola, a fábrica, o hospital, o exército e as prisões.

Foucault não diz, no fundo, algo diverso do que dizem os outrosautores citados. Em outros termos, a “sociedade disciplinar” de Mi-chel Foucault pode ser considerada uma outra maneira de ver o queChesnais analisou em termos de “apaziguamento” da sociedade. Ou-tra maneira na medida em que, enquanto este último vê esse processocomo algo positivo, Foucault, mais pela ironia do que propriamentepela denúncia explícita – que ele, como fino escritor, reservava para asua militância –, promove uma das mais corrosivas críticas desse tipode sociedade, em cujo projeto ele via, essencialmente, a produção detrabalhadores dóceis. Ora, insinua-se aqui um curioso paradoxo. Fou-cault é, resolutamente, um crítico do que ele chama de “sociedade dis-ciplinar”. E nós, no Brasil, somos leitores muito passivos de Foucault.Logo, somos também críticos desse tipo de sociedade. Mas: e se foiela que permitiu a fruição das “liberdades formais e jurídicas”? – jus-tamente isso que estamos buscando?...

Não é a ocasião aqui de discutir os méritos da análise foucaldiana– de resto, enormes –, mas apenas assinalar a hiper-reverência comque ela costuma ser aceita e reproduzida entre nós. Reprodução acríti-ca, no meu modo de ver, na medida em que, diferentemente da Europado Hemisfério Norte, não temos aqui uma “sociedade disciplinar” –ou “apaziguada”, como quer Chesnais –, mas uma sociedade violen-ta! Uma sociedade onde nunca houve a universalização da escola,

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zões, mas por uma espécie de reconhecimento ao – que eu me lembre – único intelectual brasileirode peso a ter produzido uma crítica abrangente e sistemática da obra do filósofo francês, emMichel Foucault – ou o niilismo de cátedra (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985). Indepen-dentemente de concordarmos ou não com essa crítica, chama-me a atenção o fato de que as obje-ções levantadas por Merquior – nem que seja para rejeitá-las – nunca são levadas em conta pelaabundante produção acadêmica nacional inspirada em Foucault.

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onde os aparelhos da justiça são muito pouco eficazes, para dizer omínimo, e onde, finalmente, uma imensa força de trabalho, miserávele informal, não possibilitou – e possibilita cada vez menos – a consti-tuição de um mundo do trabalho hegemonicamente enquadrado pelodispositivo da fábrica.

Uma pergunta que se coloca é: ainda que fosse possível a consti-tuição de uma “sociedade disciplinar” entre nós, ela seria desejável?Boa pergunta, que não me atrevo a responder e apenas me contentoem formulá-la. Mas, ao formulá-la, permito-me fazer algumas consi-derações, digamos, “revisionistas”. Ei-las. A tradição cultural da nos-sa intelligentsia relegou a preocupação com a segurança, na melhordas hipóteses, a um tema menor; na pior, abandonou-a ao discursotruculento da direita. Daí a desconsideração das reflexões hobbesia-nas a respeito do medo da morte violenta como o fundamento do Esta-do; daí a absorção da crítica foucaldiana à sociedade disciplinar comose ela valesse, sem muitas mediações, para um país violento como oBrasil. É verdade que aqui estamos nos mexendo em um terreno aper-tado como um fio... A sociedade disciplinar que Foucault pinta, comseu séquito interminável de vigilância, controle e adestramento, é,francamente, sinistra. Mas – permitindo-me um neologismo – a “so-ciedade indisciplinar” que temos é, de outro lado, insuportável.

Ora, projetar a questão nesses termos é adotar algumas posturasque trafegam na contramão de certos lugares-comuns presentes noimaginário “emancipador” e mesmo “libertário” que permeia o pen-samento dos militantes dos direitos humanos. Refiro-me a dois desseslugares comuns. O primeiro diz respeito ao papel da figura históricado Estado e sua relação com os direitos que se quer proteger e ver efe-tivados. Estamos acostumados em um país como o Brasil – e, reco-nheço, com carradas de razões – a ver no ente estatal, aqui abordadona sua vertente repressiva, um grande violador de direitos. É preciso,se não rever, pelo menos repensarmos isso. É certo que, na nossa ex-periência histórica de sempre, o Estado brasileiro, sobretudo o seubraço policial, é uma organização marcada por uma grande ineficiên-cia e por perversões seculares (corrupção, violência etc.). Só que, fe-liz ou infelizmente, não existe, em contraposição, uma sociedade ci-vil necessariamente depositária de valores eticamente superiores aosque o Estado encarna. Ao contrário, como vimos, na sua ausência a

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própria população, desamparada, é capaz de perpetrar formas de “jus-tiça sumária” bem mais perversas do que aquelas previstas no seu ar-cabouço penal, de que os linchamentos são um bom e eloqüenteexemplo.

O segundo lugar-comum que precisa ser repensado pode ser for-mulado sob a forma de uma aparente provocação, mas ela é a decor-rência natural dos pressupostos teóricos que direcionam a minha pes-quisa a respeito de um “subsolo disciplinar” necessário ao gozo dosdireitos. A “provocação” é a seguinte: talvez a melhor forma de de-fender os direitos humanos, sempre e continuamente violados em umpaís como o Brasil, não seja defendê-los com mais ardor ainda! –como se a sua continuada violação fosse decorrência de um trabalhoineficiente dos seus militantes. Em termos menos provocadores, diriaque a maior eficácia dos direitos humanos não decorre apenas – talvezprincipalmente – de discursos e ações visando à sua proteção, mastambém – talvez sobretudo – da diminuição das condições que dãoorigem à sua violação. Seria o caso, então, de voltar ao que Foucaultchamou – lembram? – de “dispositivos” disciplinares, dos quais a fá-brica e a escola são, a meu ver, os mais importantes – mesmo se Vigiar

e punir não trata deles, e sim daquele que é certamente o mais obscuroe, na minha avaliação, o menos importante, a prisão.

Pensando na questão específica, mas tão crucial, da fábrica – valedizer, da constituição de um “mundo do trabalho” –, ponho-me umapergunta: nas condições atuais de precarização das relações de traba-lho promovida pela globalização e pela robotização – um fenômeno,aliás, que também atinge a Europa atualmente (Castels, 1995) –, umatal sociedade seria possível entre nós? Como sabem todos, vivemoshoje em dia em um contexto de desprestígio teórico das estruturas pú-blicas estatais. E, para o bem ou para o mal, na ausência de uma inter-venção desse tipo não será certamente o livre funcionamento das en-grenagens econômicas atualmente vigentes que irá resolver as terrí-veis questões que temos de encarar e enfrentar. Não são as leis domercado, por exemplo, que irão encontrar uma solução para o fato deque na cidade de São Paulo, já nos anos 1990, havia cerca de 50 milpessoas trabalhando para o narcotráfico, um número maior do que osempregados na indústria automobilística (Folha de S. Paulo,11.5.1997).

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Uma das questões cruciais talvez a questão crucial com que nosdefrontamos é: como, em um mundo em que a “fábrica” no sentido fí-sico da expressão está literalmente desaparecendo, fazer com que oseu sentido simbólico não se perca? Confesso que não digo essas coi-sas sem um pequeno “pinçamento no coração” se posso me permitiresse neologismo de inspiração gaulesa. Afinal, para voltar de novo aFoucault, com ele não aprendemos que a fábrica, o hospital e a escolase parecem com a prisão? A respeito da escola, aliás, um outro fran-cês, Bourdieu, tinha nos fornecido o julgamento definitivo ao mostrarpor A mais B, no célebre A reprodução, que ela preparava os filhosdos operários para serem operários e os filhos dos burgueses para se-rem burgueses...

Digamos que esses juízos permanecem teoricamente sustentá-veis. O problema é que, na prática, eles já não satisfazem, porque adura realidade dos pobres e miseráveis brasileiros de hoje parece nosensinar que há coisas piores do que a sociedade que esses autores cri-ticaram. É certamente desencantador dizer isso, mas não há como nãofazê-lo: pior do que ter de vender docilmente a força de trabalho é nãoachar ninguém que queira comprá-la... A fábrica e o hospital de Fou-cault são preferíveis a não ter trabalho nem assistência médica, damesma forma que é preferível estar na escola de Bourdieu a ser meni-no de rua, e assim por diante.

Para concluir, faço uma última e breve reflexão. A violência nos-sa de cada dia parece indicar, como já aventei, que estamos diante deum verdadeiro problema civilizacional. E que, diante dele, convématentarmos seriamente para a hipótese hobbesiana do “medo da morteviolenta” como o fundamento do Estado – que Hobbes, em uma ima-gem que se tornou clássica, comparou a um Leviatã, monstro bíblicode poder incontrastável que, em troca de segurança, assenhora-se detodo o poder, transformando-nos todos em súditos dóceis. Quanto aesse “monopólio da violência legítima”, tudo bem. O problema todo éque a figura do Leviatã, titular único de toda a soberania, exerce o po-der de forma absoluta, sem prestar contas a ninguém. Estão aí, emgerme, os pressupostos de um Estado totalitário. Quando penso nissotudo, pergunto-me se um dia não poderemos ceder à tentação de tro-car a nossa democracia pelas propostas de um demagogo qualquerdisposto a assumir o encargo de nos livrar da violência que nos atinge.

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Afinal, muitas pessoas devem se perguntar para que serve a liberdadeque têm se não se sentem seguras o bastante para exercerem, sem te-mor, o simples direito de tomar um ônibus...

Com efeito, problemas como desemprego, violência e inseguran-ça não são problemas menores. Eles são capazes de engendrar dramaspessoais e familiares terríveis. Mas, para além disso, são também ca-pazes de engendrar um clima favorável a tragédias coletivas. A expe-riência totalitária é uma delas. Gostaria aqui de lembrar um autor daEscola de Frankfurt, hoje um tanto esquecido, mas que foi nopós-guerra e até os anos 1960, inclusive no Brasil (boa parte da minhageração descobriu Marx e Freud lendo-o), um dos mais lidos ensaís-tas da época: refiro-me a Erich Fromm, especialmente a um de seus li-vros, O medo à liberdade, em que ele examina a influência que teve oproblema da insegurança na gestação do ovo da serpente que foi o na-zismo. Fromm, como muitos outros antes dele, observa que o homemmoderno, emancipado dos grilhões da sociedade pré-individualistaque simultaneamente lhe davam segurança e o cerceavam, não alcan-çou a liberdade na acepção positiva de realização do seu eu individu-al. E vê nessa insegurança uma “das razões para a fuga totalitária daliberdade” (Fromm, 1960, p. 10). O que ele diz em resumo é que o ho-mem, entregue ao desespero, está pronto a dele se livrar a qualquerpreço, inclusive ao preço da própria liberdade.

Foi o que fizeram os alemães dos anos 1930, que abdicaram dademocracia entregando seu destino nas mãos de um demagogo queprometia ódio tribal e pleno emprego – e que cumpriu, aliás, a duplapromessa, ainda que por pouco tempo. Refiro-me obviamente a Hi-tler. Entre nós, quando vejo o que se passa hoje em uma cidade que,apesar dos pesares, continua maravilhosa como o Rio de Janeiro, mepergunto se nossa sociedade não se entregaria de bom grado a um de-magogo prometendo segurança a qualquer preço, mesmo que estaseja a paz dos cemitérios ou o inferno dos campos de concentraçãopara os nossos miseráveis atulhados nos semáforos – para usar umaoutra imagem de Chico Buarque –, “atrapalhando o trânsito”...

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Bibliografia

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VIII.4. Manicômio judiciário:espaço de violações de direitos humanos

Ludmila Cerqueira Correia*

1. Introdução

A cultura existente no imaginário da sociedade e no modelo as-sistencial asilar/carcerário para o tratamento das pessoas com trans-tornos mentais é de exclusão, tanto nos hospitais psiquiátricos paraloucos(as)1 não infratores(as) como naqueles para loucos(as) infrato-res(as), onde é mais incisiva. Essa cultura evidencia a presença de umparadigma fundado na negação dos direitos humanos dos pacientespsiquiátricos.

A instituição psiquiátrica ainda mantém a mesma estrutura dedois séculos atrás, excluindo, segregando e cronificando a pessoacom transtornos mentais, majoritariamente das classes populares(Basaglia, 1985; Pessotti, 1996; Silva, 2001). Trata-se de um mundodo qual fazem parte milhares de seres humanos, confinados a umaexistência limitada, sem a observância do seu contexto social, acarre-tando, muitas vezes, a perda da sua identidade.

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* Advogada do Juspopuli – Escritório de Direitos Humanos, mestranda em Ciências Jurídicas,área de concentração em Direitos Humanos, pela Universidade Federal da Paraíba. Contato:[email protected] Essa terminologia “os(as)” é utilizada em todo o texto na perspectiva da igualdade de gênero,questão fundamental inserida na temática dos direitos humanos, com o objetivo de dar visibili-dade ao papel do gênero feminino como sujeito político.

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As práticas exercidas nos hospitais psiquiátricos brasileiros re-velam a tendência de um tratamento que legitima a exclusão dessaspessoas (Resende, 2001, p. 55; Silva, 2001, p. 5; Tundis, 2001, p. 10).Tais unidades de internação se configuram como espaços de segrega-ção e obscuridade (Basaglia, 1985, p. 108; Resende, 2001, p. 39).Dentre as unidades hospitalares criadas com o cunho segregacionistaencontram-se os manicômios judiciários, hoje denominados Hospi-tais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, para as pessoas com trans-tornos mentais que cometeram delitos. A ênfase dessa instituiçãohospitalar estava no processo de apartação social, descomprometidacom o cuidado à saúde e com a reinserção psicossocial.

O manicômio judiciário, com quase 100 anos de existência noPaís, ao constituir-se em uma instituição de custódia do “louco crimi-noso”, configura-se em um verdadeiro instrumento de repressão e se-gregação social. Trata-se de um local que limita e oprime.

A questão dos manicômios judiciários envolve aspectos éticos ede direitos humanos, fazendo-se necessária uma nova abordagem so-ciojurídica.

A estrutura manicomial se apresenta como desumana e ineficien-te por seus resultados desastrosos, constituindo-se em um lugar de so-frimento e dor, onde os(as) pacientes, sem direito à defesa, são sub-metidos a maus-tratos, privação de sua liberdade, de seu direito à ci-dadania e à participação social.

Assim, como o modelo assistencial dos manicômios judiciários ébaseado na exclusão e no isolamento, as violações de direitos humanosdas pessoas internadas nesses hospitais são uma constante. O(a) inter-no(a) é privado(a) de seus direitos, de sua liberdade pessoal, de seuspertences, de suas relações humanas por um tempo indeterminado.

Ademais, um fator que agrava tal situação é que as pessoas comtranstornos mentais são vistas como objetos e não como sujeitos dedireitos, reforçando a idéia de que devem se submeter a qualquer tipode intervenção ou tratamento, sem poder fazer nenhum questiona-mento.

Nessa perspectiva, o objetivo deste texto é propor uma reflexãoacerca das violações de direitos humanos cometidas contra as pessoascom transtornos mentais autoras de delitos custodiadas em manicô-mios judiciários no Brasil. Nesse diapasão, examina-se a condição de

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sujeito de direitos dessas pessoas e alguns instrumentos de proteçãodos seus direitos.

2. Hospital psiquiátrico: constituição de um espaço deseparação e exclusão

O manicômio surge no final do século XVIII como local para ser“tratada” a loucura, com ocultamento e exclusão, com vistas a uma“cura”, de acordo com a ordem fundada pelo médico francês PhilippePinel, a qual representa o marco inaugural da fundação da chamadamedicina mental ou psiquiatria. Este criou o primeiro método tera-pêutico para a loucura na modernidade, baseado em confinamentos,sangrias e purgativos, e, finalmente, consagrou o hospital psiquiátri-co – o conhecido hospício – como o lugar social dos loucos (Foucault,2004; Costa, 2003, p. 143; Resende, 2001, p. 25).

Ocorre que, desde o final da década de 1940, o modelo assisten-cial psiquiátrico difundido pelo mundo vem recebendo rigorosas crí-ticas em função do seu anacronismo e ineficácia. Ao lado disso, ocrescente clamor social causado pelas recorrentes denúncias de vio-lência e outras diversas formas de desrespeito aos direitos humanostem gerado uma consciência crescente acerca da importância de se lu-tar pelo direito à singularidade, à subjetividade e à diferença.

“Nessa perspectiva e na elaboração de ações abrangentes volta-das para a garantia a esses direitos”, afirma Costa (2003, p. 143), “ohospital psiquiátrico tornou-se um emblema da exclusão e seqüestroda cidadania e, até mesmo, da vida dos padecentes de transtornosmentais ao longo dos últimos duzentos anos”.

No Brasil, tal situação não foi diferente. O modelo manicomialfoi adotado pelo País como forma de assistência psiquiátrica a pes-soas com transtornos mentais.

O início da assistência psiquiátrica pública no Brasil data da se-gunda metade do século XIX. As pessoas que enlouqueciam e eramprovenientes das camadas sociais desfavorecidas eram recolhidas aosasilos, onde padeciam de maus-tratos. Sobre isso, Costa (2003, p.148) comenta: “ficavam presas por correntes em porões imundos pas-sando frio e fome, convivendo com insetos e roedores, dormindo napedra nua sobre dejetos, sem nenhuma esperança de liberdade”.

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Sem muita diferença dos tempos atuais, a sociedade do séculoXIX via no louco uma ameaça à segurança pública, e a maneira de li-dar com ele era o recolhimento aos asilos. Cabe salientar que essa ati-tude dirigida aos loucos, autorizada e legitimada pelo Estado pormeio de textos legais editados pelo imperador, tinha o objetivo deoferecer proteção à sociedade, enquanto mantinha os(as) loucos(as)reclusos(as). O Estado imperial, que deveria acolher, proteger e trataras pessoas com transtornos mentais, adotava como única medida a re-clusão, visando a proteger a sociedade.

Assim, a crescente pressão da população para o recolhimentodos(as) alienados(as) “inoportunos(as)” a um lugar de isolamento e oquestionamento de alguns médicos e intelectuais em face das condi-ções subumanas das instituições asilares fizeram com que o EstadoImperial determinasse a construção de um lugar específico com o ob-jetivo de tratá-los. Foi nesse contexto que foi criado o Hospício PedroII, inaugurado em 5.12.1852, na cidade do Rio de Janeiro. De formagradativa, esse modelo assistencial se desenvolveu e se ampliou emtodo o território nacional, consolidando e reproduzindo no solo brasi-leiro o hospital psiquiátrico europeu como o espaço socialmente pos-sível para a loucura.

Segundo Goffman (2003, p. 170-171), o manicômio configura-secomo uma “instituição total”, “pois o internado vive todos os aspec-tos de sua vida no edifício do hospital, em íntima companhia com ou-tras pessoas igualmente separadas do mundo mais amplo”. E é nessainstituição que as sociedades contemporâneas preservam suas preten-sões de controle e dominação.

Dentro dessa conjuntura estão inseridas, também, pessoas comtranstornos mentais que cometeram delitos, para as quais foram cria-dos os manicômios judiciários, denominados Hospitais de Custódia eTratamento Psiquiátrico, conforme prevê o Código Penal brasileironos seus arts. 96 e 97, e a Lei de Execução Penal no seu art. 99.

3. Constituição do manicômio judiciário no Brasil

A segregação de seres humanos em manicômios judiciários noBrasil é uma prática de quase 100 anos. Até a década de 1920, o Brasilnão possuía manicômios judiciários, vindo a implementá-los a partir

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do ano seguinte, quando já havia sido iniciada a discussão acerca dequal seria o destino institucional que deveriam ter indivíduos queeram considerados loucos e criminosos ao mesmo tempo. Desse mo-do, além dos hospitais psiquiátricos para pessoas com transtornosmentais, começam a funcionar no País os manicômios judiciáriospara receber e tratar os(as) ditos(as) loucos(as) criminosos(as).

Conforme afirma Carrara (1998, p. 148), “a idéia central é de que‘loucos perigosos ou que estivessem envolvidos com a justiça ou po-lícia’ deveriam ser separados dos alienados comuns, constituindo-seem objeto institucional distinto”.

Para alguns psiquiatras, à época, os ditos loucos criminosos deve-riam ter seu destino absolutamente desvinculado do Hospício Nacio-nal. Mais que um pavilhão em seu interior, seria necessária uma novainstituição. Aparece, então, a demanda por um “manicômio crimi-nal”, como já vinham sendo erguidos em outros países (Carrara,1998, p. 153 e 158).

Assim é que o ano 1903 marca o momento em que a construçãode manicômios judiciários se torna proposta oficial, na medida emque naquele ano foi editada uma lei especial (Decreto no 1.132, de22.12.1903) que determinou que cada Estado deveria reunir recursospara a construção de manicômios judiciários para recolher os “loucoscriminosos”. Então, em 1921 foi inaugurado o Manicômio Judiciáriodo Rio de Janeiro, primeira instituição do gênero no Brasil e na Amé-rica Latina.

De acordo com Carrara (1998, p. 125), o manicômio judiciáriobuscava uma espécie de “solução de compromisso”: ao apresentar-secomo prisão, respeitava a noção do indivíduo que, responsável porseus atos, deveria pagar pelos crimes cometidos; ao identificar-secom os hospitais e asilos, porém, satisfazia as interpretações patolo-gizantes e biodeterminantes do indivíduo. Criava, portanto, um lugarsocial específico para o encontro entre crime e loucura.

Desse modo, os manicômios judiciários apresentam uma estrutu-ra ambígua e contraditória; porém, são instituições predominante-mente custodiais, o que revela ainda mais a dupla exclusão que so-frem as pessoas com transtornos mentais autoras de delitos. Nessesentido, Costa (2003, p. 172), ao comentar as práticas das leis brasilei-ras que acabam confirmando a exclusão das pessoas com transtor-nos mentais, salienta:

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“Se tal não bastasse a completar o quadro crônico de exclusão e aban-dono dos portadores de transtorno mental, tal contexto se agrava sobrema-neira quando estes acumulam outra qualidade jurídica de exclusão, qualseja: a de violadores da ordem jurídico-penal e ingressam nos meandros daexecução penal. Neste caso, os poucos direitos que lhes são atribuídos desa-parecem.”

No que tange à legislação brasileira, o Código Penal de 1890 dis-punha que não são criminosos os que “por imbecilidade nativa ou en-fraquecimento senil forem absolutamente incapazes de imputação” e“os que se acharem em estado de completa privação dos sentidos e dainteligência no ato de cometer o crime”. E ainda preceituava que “osindivíduos isentos de culpabilidade em resultado de afecção mentalserão entregues às suas famílias ou recolhidos a hospitais de aliena-dos, se o seu estado mental assim exigir para a segurança do público”.

Cinqüenta anos depois, o Código Penal de 1940 instituiu o cha-mado sistema do “duplo binário”, que se caracterizava por comportardois tipos de reação penal: de um lado, a pena, medida segundo o graude culpabilidade do sujeito e a gravidade de seu ato; e, de outro, a me-dida de segurança, fundada na avaliação do grau de periculosidade doacusado. A medida de segurança deveria atingir os “loucos crimino-sos” e algumas outras classes de delinqüentes não alienados. Assim,havia a aplicação dupla de pena e medida de segurança.

Segundo Carrara (1998, p. 48):

“Incorporada à maioria dos códigos penais do Ocidente ao longo do sé-culo XX, a medida-de-segurança esteve na base da estruturação legal dos re-gimes políticos autoritários, pois permitia que, em várias situações, os direi-tos individuais fossem suprimidos frente ao que se julgava ser os interessesda sociedade ou do Estado.”

Com a Reforma Penal de 1984, foi adotado o sistema vicariante

ou monista: o fundamento da pena passa a ser exclusivamente a cul-pabilidade, enquanto a medida de segurança encontra justificativa so-mente na periculosidade aliada à incapacidade penal do agente. Apartir daí, a medida de segurança será aplicada apenas aos inimputá-veis, tendo tal instituto natureza preventiva, e não punitiva.

Acerca da periculosidade, Foucault (2003, p. 85) coloca que

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“a grande noção da criminologia e da penalidade em fins do século XIXfoi a escandalosa noção, em termos de teoria penal, de periculosidade. A no-ção de periculosidade significa que o indivíduo deve ser considerado pelasociedade ao nível de suas virtualidades e não ao nível de seus atos; não aonível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de com-portamento que elas representam”.

Assim, o conceito da periculosidade presumida justificou a cria-ção e a manutenção do instituto da medida de segurança como formade “proteger” a sociedade daquele que é perigoso a priori.

Nesse caso, Barros (1994, p. 182) destaca que:

“Quando a periculosidade é reconhecida como a única expressão possí-vel do sujeito, as múltiplas facetas de sua existência não encontram condi-ções para sua expressão, fator esse que, por ser essencialmente redutor, im-pede o equacionamento de suas necessidades.”

Ao se suspeitar que o indivíduo que praticou um ato delituosoapresenta algum transtorno mental, deve ser feita uma solicitação deexame médico-legal para que se avalie a imputabilidade com vistas àformação do Processo de Incidente de Insanidade Mental. Após a fi-nalização do exame de sanidade mental, este é remetido ao juiz, quepoderá acatar ou não o parecer dos peritos. Caso a insanidade mentaltenha sido argüida e o juiz acate o parecer, absolverá o acusado e apli-cará a medida de segurança, que tem tempo indeterminado e deveráser cumprida em um Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico,e o internamento do indivíduo em tal instituição se destina a tratamen-to (Cohen, 2006).

Desse modo, a medida de segurança surge como sendo uma penade caráter aflitivo. Em que pese ser ela “tratamento”, a estabilização doquadro de doença não marca o seu término. E, por basear-se no estadoperigoso, a medida de segurança possibilita uma segregação indeter-minada, pois se o laudo psiquiátrico concluir que não cessou a pericu-losidade do(a) paciente, este(a) deverá permanecer internado(a).

4. Violações de direitos humanos no manicômio judiciário

O que se percebe é que o Hospital de Custódia e Tratamento Psi-quiátrico assemelha-se a um verdadeiro “depósito”: a precariedade égeral, tanto na estrutura quanto no contingente humano-assistencial

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(muitos internos, poucos profissionais especializados). Ao afirmarque os hospitais de custódia, historicamente, não eram espaços paraintervenções terapêuticas, por medida de segurança para a sociedade,Kolker (Brasil, 2001, p. 56) conclui que “os ambientes dos hospitaisde custódia nunca foram terapêuticos”. Constata-se, assim, a falta deuma política intersetorial estruturada, por parte dos poderes públicos,voltada para os(as) internos(as).

Na administração dos manicômios judiciários, o Estado incorpo-ra a demanda punitivo-segregacionista produzida socialmente, vol-tando-se para os(as) internos(as) com uma estrutura alicerçada na vio-lência, amparada pelo medo, controladora e reprodutora da descon-fiança. A violação dos direitos humanos dos(as) internos(as) é umaconstante e vincula-se a um conjunto de causas. Entre elas, uma dasmais importantes é, sem dúvida, a idéia de que o abuso contra as víti-mas – internos(as) e, por isso, pessoas com transtornos mentais “in-fratoras” – não merece a atenção pública.

De acordo com Silva (2001, p. 5), “ao apresentar-se despido emsua crueldade violadora dos mais comezinhos dos direitos humanos,em relação ao hospital psiquiátrico não pairam grandes dúvidas acercadas suas funções e do seu funcionamento”. O autor afirma, ainda, que

“na sua identidade se constitui paralelamente, como elemento menor,uma sempre tênue justificação discursiva, sustentadora da sua suposta fun-ção terapêutica, que nunca foi capaz de se impor e reverter a sua verdadeiralógica e missão”.

Assim, falta de tratamento adequado; excessivo uso de medica-mentos; condições sanitárias precárias; maus-tratos; insalubridade;uso de quartos-fortes ou quartos individuais;2 falta de acesso à Justi-ça; reduzido número de profissionais e despreparo dos existentes; au-sência de mecanismos que preservem o vínculo com os familiares;

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2 Os quartos individuais têm cerca de 10 metros quadrados; não têm cama; em um dos cantos, háuma latrina daquele tipo em que a pessoa se agacha para usar; e o paciente fica completamentenu. Funcionam de forma parecida com as celas solitárias dos presídios convencionais, paraonde são enviadas as pessoas presas que apresentam mau comportamento. Nos hospitais psi-quiátricos comuns, sempre foram usados como castigo. No Brasil, eles foram formalmente ba-nidos por meio da Portaria no 224/1992 do Ministério da Saúde. De fato, foram eliminados noshospitais psiquiátricos, mas continuam sendo usados nos manicômios judiciários do País.

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pouca ou nenhuma informação sobre as ações penais nas quais figu-ram como réus; enfim, são exemplos das violações de direitos huma-nos ocorridas cotidianamente nos manicômios judiciários.

Outra questão que deve ser levada em conta nesta análise é o fatode alguns manicômios judiciários, como é o caso do Hospital de Cus-tódia e Tratamento da Bahia, terem sido construídos nas antigas de-pendências de penitenciárias, evidenciando não só seu compromissocom o complexo penitenciário como um todo, mas, também, a ambi-güidade que é a base de sua constituição.

Soma-se a essa realidade um tratamento puramente farmacológi-co, insuficiente e falho, caracterizado pelo baixo número de atendi-mentos feitos pelos médicos aos pacientes, o que pode ser verificadoa partir de uma simples análise de prontuários. Essa situação demons-tra a falta de uma política de saúde mental que atenda às reais necessi-dades e direitos das pessoas com transtornos mentais.

Os direitos humanos estão consagrados na Declaração Universaldos Direitos Humanos de 1948 e na Constituição Federal brasileira de1988, no seu art. 5o. De acordo com Piovesan (2004, p. 44), a referidaDeclaração “demarca a concepção inovadora de que os direitos hu-manos são universais”. E acrescenta que tal Declaração consagra que“os direitos humanos compõem uma unidade indivisível, interdepen-dente e inter-relacionada, na qual os direitos civis e políticos hão deser conjugados com os direitos econômicos, sociais e culturais”.

Nesse sentido, diversos direitos humanos das pessoas com trans-tornos mentais autoras de delitos, previstos em ambos os instrumen-tos, vêm sendo cotidianamente violados por aqueles que têm o deverlegal de garanti-los e protegê-los. A lista de abusos nos manicômios,em verdade, é infinita, e o resultado atenta não apenas contra os direi-tos e garantias individuais daqueles que foram submetidos ao cumpri-mento de medida de segurança, mas aos interesses maiores da própriasociedade, posto que os manicômios há muito transformaram-se emum dos mais importantes fatores no complexo processo de reprodu-ção da loucura.

É importante salientar, ainda, que tais pacientes fazem parte doschamados “grupos vulneráveis”. Nessa linha, cabe ressaltar questãotrazida por Lima Júnior (2001, p. 90), que pontua que “a vulnerabili-dade a violações de determinados grupos, portanto, combina as con-

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dições econômicas, sociais e culturais na perspectiva da determina-ção de limites que precisam ser ultrapassados no sentido do respeitoaos direitos humanos de forma abrangente”.

Além disso, o(a) interno(a) não é considerado(a) sujeito de di-reitos, mas mero objeto a ser manipulado na instituição manicomial.Ao reconhecer a titularidade de direitos da pessoa com transtornosmentais, vem à tona um aspecto importante: a visibilidade desse atorsocial.

Conforme afirma Basaglia (1985, p. 107):

“Analisando a situação do paciente internado num hospital psiquiátrico(...) podemos afirmar desde já que ele é, antes de mais nada, um homem semdireitos, submetido ao poder da instituição, à mercê, portanto, dos delegadosda sociedade (os médicos) que o afastou e excluiu.”

Nesse caso, faz-se necessária a construção de que os(as) inter-nos(as) dos manicômios judiciários são sujeitos de direitos, reconhe-cendo, também, que o acesso à Justiça e às políticas sociais sempre foirestrito e/ou inexistente a esses indivíduos.

Enfim, cabe ressaltar que se a privação de liberdade não pode serentendida como método de tratamento, e, portanto, essas instituiçõesjá deveriam ter seu fim anunciado, nada justifica a degradação e a vio-lação dos direitos humanos que continuam a acontecer nos manicô-mios judiciários.

5. Instrumentos de proteção e defesa dos direitoshumanos das pessoas com transtornos mentais

A Constituição Federal brasileira de 1988 prevê que o Brasilconstitui-se em um Estado democrático de direito e tem com um dosseus fundamentos a dignidade da pessoa humana. E, no seu art. 5o,elenca diversos direitos fundamentais, salientando que todos sãoiguais e garantindo aos brasileiros e aos estrangeiros residentes noPaís o direito à vida, à liberdade, à igualdade e à segurança. Nessesentido, todos os direitos ali previstos devem ser garantidos às pesso-as com transtornos mentais.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 contémuma série de princípios que também devem ser utilizados para prote-

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ger os direitos das pessoas com transtornos mentais. É o caso, porexemplo, do direito à liberdade, à igualdade, à não-discriminação, àvida e à segurança (arts. I, II e III). Além disso, não podem ser subme-tidas à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degra-dante (art. V).

Além da Constituição Federal e da Declaração Universal dos Di-reitos Humanos, é importante ressaltar a Resolução no 46/119 daOrganização das Nações Unidas (ONU). Essa resolução, aprovadapela Assembléia Geral da ONU em 17 de dezembro de 1991, versasobre a proteção de pessoas com transtornos mentais e a melhoria daassistência à saúde mental, constituindo-se em um marco no campodos direitos dessas pessoas.

Tal resolução teve origem nos anos 1970, quando a Comissão dosDireitos Humanos da ONU passou a examinar a questão do uso dapsiquiatria para fins de controle de dissidentes políticos. A preocupa-ção inicial era com os critérios diagnósticos que eram usados em cer-tos países; porém, o objetivo do trabalho ampliou-se para incluir oexame de formas de melhoria da assistência à saúde mental em geral.

Desse modo, a resolução foi aprovada por ser um imperativo éti-co à humanização da assistência à saúde mental e ao reconhecimentodos direitos de cidadania das pessoas acometidas de transtorno men-tal. Além disso, registre-se o esforço internacional no sentido da im-plantação da Reforma Psiquiátrica e a necessidade de adoção de nor-mas que estejam em consonância com esse movimento.

Ademais, no âmbito da legislação brasileira, faz-se necessário ci-tar a Lei no 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos daspessoas com transtornos mentais e a reformulação do modelo assis-tencial em saúde mental, refletindo os princípios da Reforma Psiquiá-trica,3 a qual apresenta um projeto que contempla mudanças signifi-cativas no sistema psiquiátrico.

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3 A Reforma Psiquiátrica vem tentando substituir o hospital psiquiátrico por uma rede de servi-ços diversificados, regionalizados e hierarquizados, orientada não exclusivamente para umamera supressão de sintomas, e sim para a efetiva recontextualização e reabilitação psicossocialda pessoa com um transtorno mental. Assim, apresenta como princípios: a centralidade da pro-teção dos direitos humanos e de cidadania das pessoas com transtornos mentais; a necessidadede construir redes de serviços que substituam os hospitais psiquiátricos; e a pactuação de açõespor parte dos diferentes atores sociais, a fim de melhorar o estado de saúde mental da população.

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As orientações dispostas no texto dessa lei subvertem a lógica dasinstituições totais inovando em diversos procedimentos e estabele-cendo os direitos das pessoas com transtornos mentais. Como afirmaCosta (2003, p. 173):

“Diuturnamente, alternativas de enfrentamento e transformação, bali-zadas na ética e nos direitos humanos, buscando a cidadania e recuperaçãodas garantias e direitos fundamentais dos portadores de transtornos mentais,são formuladas e acionadas. Neste percurso, torna-se cada vez mais relevan-te a atuação dos organismos da sociedade responsáveis por essa proteção egarantias constitucionalmente asseguradas.”

Saliente-se que, apesar de essa lei não se referir aos pacientes in-ternados nos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (mani-cômios judiciários), se as pessoas que estão internadas nesses hospi-tais possuem transtornos mentais, devem ter garantidos os direitosprevistos na referida legislação.

6. Considerações finais

O Estado, com a anuência do Judiciário e da medicina, com a cria-ção dos manicômios judiciários, estruturou a pior alternativa para aspessoas com transtornos mentais autoras de delitos, em clara violaçãodos direitos humanos, especialmente quando deixou deteriorar o seufuncionamento, não oferecendo sequer um tratamento digno de qual-quer ser humano.

A premente e inquestionável necessidade de novas formas de tra-tamento às pessoas com transtornos mentais autoras de crime devebuscar uma nova intervenção que supere o discurso legalista, que, apartir de uma visão de dominação e tutela, mantém milhares de pesso-as segregadas em manicômios judiciários. Assim, faz-se necessária asuperação da obscuridade das próprias instituições manicomiais, fimdo seu isolamento e superação dos elementos produtores de sofri-mento que as caracterizam.

A discussão acerca da violência, dos aspectos da exclusão, docerceamento da liberdade, dos maus-tratos, das práticas de tortura ede todas as ordens de abuso de poder nos manicômios brasileiros é

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fundamental para a luta pela garantia dos direitos humanos das pesso-as com transtornos mentais.

Desse modo, o discurso em favor da vida digna para todos, oscompromissos contra a desigualdade social e as injustiças e os pró-prios apelos voltados contra a violência devem se traduzir em políti-cas públicas capazes de alterar, de fato, a situação desses homens emulheres que, sob a guarda do Estado, encontram-se excluídos daprópria idéia de direito.

Nesse sentido, além de se estabelecer a qualidade dos serviçosprestados a essas pessoas, o respeito a seus direitos e a melhoria daqualidade de suas vidas, é fundamental estender os benefícios da Re-forma Psiquiátrica aos internos e egressos de manicômios judiciários.Ademais, são importantes o respeito e a valorização dessas pessoas ea determinação de reconhecê-las como sujeitos de direitos.

Por fim, é válido ressaltar a importância de uma reestruturação dosistema psiquiátrico em questão com base na proteção dos direitoshumanos daquelas pessoas.

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VIII.5. Cidadania e justiça social:palavras de ordem!!!

Um desabafo acerca das mazelas cotidianas!

Luiz Fernando C. P. do Amaral*

A calamidade verificada na cidade de São Paulo em maio de 2006impele-nos à reflexão franca, diria até despudorada, sobre o temaconcernente à justiça social. O que quer dizer esse conceito que é tãoamplamente elevado à condição de valor último, mas que nunca severifica na prática social hodierna?

Justiça social, segundo alguns doutrinadores jurídicos, consubs-tancia-se, em regra, no dever de governados e governantes lutarem emprol de um todo isonômico. Assim, justiça social é quase que estenderao menos as condições básicas para a consecução do objetivo último detoda a vida humana a todos os membros de dada sociedade, sem queisso possa prejudicar os indivíduos, mas, ao contrário, que os favoreça.Segundo Kant, o homem é fim em si mesmo, tendo por objetivo daexistência alcançar a felicidade almejada. Uma característica, indubi-tavelmente, é comum a toda à humanidade: a carência de felicidade e anecessidade de buscá-la. Ninguém busca ser infeliz, ninguém sonhacom o chorar, com o sofrer. Logo, a justiça social funciona ao menoscomo “piso vital mínimo” para que todos tenham as bases imprescindí-veis à consecução desse objetivo maior da natureza humana, observa-do o que preceitua o art. 6o da Constituição Federal de 1988.

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* Graduando em Direito pela Faculdade de Direito-FAAP, monitor da disciplina de Introduçãoao Estudo do Direito-I.

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No instante em que as revoluções liberais buscam acabar com osprivilégios estamentais, prontamente levantam o estandarte da liber-dade, igualdade e fraternidade. Entretanto, suplicam e bradam tais va-lores, inicialmente, a fim de incutir no coração dos homens a cons-ciência do que são de fato as prerrogativas da essência humana.Assim, no momento mais “romântico” do movimento revolucionáriofrancês de 1789, por exemplo, os valores são estabelecidos no intuitode demonstrar que ao homem sempre caberá a liberdade; todos serãoiguais com a abolição dos privilégios; e a fraternidade vigorará justa-mente em razão desse respeito que se deve à essência que nos unifor-miza como seres humanos.

Entretanto, no instante em que essas grandes idéias passam a sevincular às bases necessárias ao sistema capitalista, percebe-se fla-grante limitação na extensão desses princípios basilares. Assim, naConstituição francesa de 1795, excluídos os grandes líderes popula-res, a ala mais abastada não demorou a positivar a liberdade comomeio para a escolha e, conseqüentemente, para o consumo, bemcomo a igualdade só e somente perante as leis. A fraternidade sequerfoi mencionada. Afinal, aquele que se solidariza com o sofrimentoalheio acaba por se desviar da consecução de seus objetivos, umavez que despender energia para fim diverso é, na visão individualis-ta do sistema que privilegia o capital, perder parte da força necessá-ria à produção.

Não foi à toa que diversos pensadores à época desses movimen-tos liberais, sobremaneira durante a independência norte-americana,pontificaram acerca do caráter altamente mercantilista, individualistae da paixão pelo lucro desde logo percebida nessas manifestações. Ohomem começava a se apoiar em um ideal totalmente voltado à circu-lação e ao acúmulo de riquezas de ordem material.

Foi o movimento socialista que tentou dizimar a ausência de fra-ternidade que nos foi outorgada pelo liberalismo desmedido. O idealsocialista surgia, a priori, como a esperança para aqueles que se trans-formaram em pobres dejetos de um sistema que tanto privilegiava ocapital, olvidando-se da inquestionável relevância do ser humano.Nesse contexto, toda a ideologia voltada à defesa dos direitos huma-nos dos trabalhadores ganha força francamente anticapitalista. Damesma sorte, excelsos filósofos, como a brilhante Hannah Arendt,

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demonstram a situação insustentável de uma sociedade de trabalha-dores sem trabalho.

Como todos sabem, o socialismo fracassou. Não conseguiu sedu-zir em face da cooptação exercida por potências hegemônicas que tei-mam em tentar provar, por meio do imediatismo, que o luxo e o lucroeconômico são indispensáveis à consecução de objetivos humanos.Assim, começa-se a dar margem a um processo de fomento do consu-mo pelo consumo. Ou seja, consumimos para que nos tornemos livrese para demonstrar essa liberdade. A liberdade passa a ser percebida noinstante em que o sujeito se amolda às noções de adequação ao idealconsumista em voga. Passa-se a conceber a idéia de que “É” – no sen-tido de ser alguém – aquele que tem, ou, ainda pior, de que “É” aqueleque parece ter. A mera aparência ganha força de plena eficácia. We-ber, ao citar Franklin em seu livro A ética protestante e o espírito do

capitalismo, relativiza o valor das virtudes humanas, demonstrandoque em uma ideologia do capital a mera aparência de honestidade, porexemplo, bastaria à consecução de fins capitalistas, por assim dizer.Logo, a virtude inexistente, porém aparente, já basta à prática mer-cantil do capitalismo.

Ora, é exatamente nessa linha de evolução individualista que ahumanidade chega até os dias atuais. O homem, quando passa a sepreocupar única e exclusivamente com a esfera do “eu”, não só se es-quece do valor do “nós”, como se desvia da consecução da felicidadeprópria, vislumbrada, inclusive, no ideal positivo de realizar a felici-dade de outrem. Nesse sentido, ignora-se novamente o ideal kantiano,segundo o qual, ao se propiciar a felicidade do próximo, se constrói aprópria felicidade. Assim, vê-se um desenvolvimento às avessas, car-regado de ambição e cobiça, tendo por instrumento a maior qualidadedistintiva da espécie humana: a razão. A racionalidade permitiu aohomem chegar até o ponto atualmente visto em termos de avanço tec-nológico, mas não foi capaz de abrir os olhos do “bicho homem” paraa coletividade que o cercou durante todo o processo. Ou seja, enquan-to parcela da humanidade imprimia evolução à vida social, a maioriados entes sociais sequer recebia parte das benesses desse progresso,ficando, no mais das vezes, com todo o flagelo desse movimento. Ou-trossim, a ambição foi tão magnificente e, conseqüentemente, levadaa termo em virtude do amor pelo poder, que hoje analisamos a triste

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história de uma guerra que dizimou milhões de inocentes em prol dealgo tão medíocre: a supremacia de uma raça pura e rica que ignoravaa essência comum a todo e qualquer ser humano.

Não aprendemos com essas experiências e escutamos calados osnoticiários alertando da proliferação das mais diversas e odiosas for-mas de beligerância. Agüentamos pacificamente o que ocorre nomundo como se não nos dissesse respeito. Defendemos alianças emprol do comércio, mas não nos posicionamos diante de conflitos fla-grantemente injustos que ameaçam a vida de todos. Aplaudimos civi-lizações economicamente hegemônicas sem perceber quanto custouesse progresso e qual o prejuízo que todos têm para mantê-lo.

Nessa mesma esteira, aceitamos o cotidiano das grandes metró-poles sem nos perguntarmos “por quê?”. Lemos manchetes dignas deambientes hostis da Idade Média e sequer saímos do sofá, simples-mente dizendo: “que horror!”. Onde está nossa capacidade de indig-nação? Será que não está na hora de almejar poder deixar para trás oscondomínios de luxo altamente protegidos e os carros blindados, par-tindo para uma ação de reconstrução da cidadania de todos com baseno ideal de justiça social? Será mesmo mais fácil optar pela justifica-tiva descabida de que o criminoso é simplesmente alguém sem índo-le, aceitando restringir a própria liberdade, vivendo atrás de vidros àprova de balas e de muradas dignas dos burgos medievais? Não estána hora de olhar com olhos bem abertos a realidade triste por que pas-sam milhares de indivíduos relegados ao poder paralelo das mais di-versas ordens que substitui o Estado de direito?

Não são raras as pessoas que chegam a ponderar acerca da políti-ca de esterilização em massa, como se a majoração da criminalidadeestivesse diretamente relacionada com o número de indivíduos nasci-dos em tais condições precárias. Ou seja, atribui-se à esterilização ocaráter de medida de segurança pública, como se os genes desses me-nos favorecidos já estivessem contaminados pelas mazelas da crimi-nalidade. Será que tirar o direito de um indivíduo à descendência nãose aproxima das práticas da qual a humanidade se envergonha, leva-das a termo durante o nazismo? Como admitir a esterilização comomedida primeira e anterior, portanto, à adequação de todo o sistemade saúde pública e instrução de caráter educacional? Será que os aten-tados cometidos na cidade de São Paulo não servem para demonstrar

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a flagrante desordem institucional de nosso Estado? Recrudescer aspenas cominadas a determinados crimes é, em verdade, antecipar o“vestibular para o crime” de jovens ainda recuperáveis.

A formação de organizações criminosas no interior de presídios éprova de que o grau de organização de tais facções é extremamentealto. A ausência estatal permitiu que em um ambiente precipuamentevoltado à ressocialização fosse construída a primeira “faculdade daviolência”. Aliás, em tais estabelecimentos prisionais, o primeiropasso a dar margem a essas organizações é a insatisfação do presocom as condições lá encontradas. Como destituir a intenção de um de-tento de participar de tais facções se o Estado já deixa clara sua inca-pacidade de gerir o sistema, colocando-o em um ambiente deveras de-sumano? Não fica difícil notar que as condições para que potenciais lí-deres surjam já está decididamente demonstrada.

Vale, a título de exercício intelectual, refletir acerca da situaçãocaótica que viveríamos caso uma organização desse porte, com natu-reza criminosa, ao invés de simplesmente delinqüir, optasse por ins-truir a população e lutar pelo fim da desigualdade social. Nesse dia,não haveria nenhum tipo de barreira possível à consecução dos objeti-vos dessa massa de indignados e, diga-se de passagem, com legitimi-dade para a ação, embora haja flagrante ilegalidade na conduta. Nesseinstante, a propriedade privada inexistirá e os grandes detentores docapital restarão nos anais de um presente que se classificará comopassado distante.

Ora, um Estado de direito jamais poderá ser constituído em meioa tamanhas violações aos direitos humanos. Não há dúvida de que seinfringem os direitos humanos quando se nega a uma criança o direitoao estudo por inexistência de vagas em escola pública. Porém, não émenos verdade que essa mesma criança nesse estado estará muitomais suscetível a delinqüir e, se ao entrar no sistema prisional se depa-rar com o que aí está, inevitavelmente saíra “PhD” na prática do cri-me. Não é à toa que o indivíduo que conta em seu atestado de antece-dentes criminais com a condenação pela prática de furto, quando saida penitenciária logo evolui na “escola do crime”, sendo denunciadoe processado por roubo, e assim sucessivamente.

Os que hoje violam o direito à segurança de alguns ontem não ti-veram nenhum direito. Aliás, tiveram direitos, pois caso contrário

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não poderiam sentir o gosto amargo de vê-los tolhidos. Enquanto tan-tos perdiam sua dignidade ao se deparar com a fome, a sede, o desem-prego, a morte de um filho por inanição, outros municiavam suas mi-lícias a fim de exterminar de uma vez por todas esses “infelizes”.Assim, fica claro que ao invés de auxiliar os excluídos incluindo-osno seio social, os mais bem estabelecidos, em sua grande maioria, op-tam por defender-se, como se por meio da desigualdade social já esti-vesse declarada a guerra armada entre classes sociais. Ademais, o es-pírito fraternal só passa a existir na vida da maioria dos grandes capi-talistas, quando a “ajuda” pode ser alcunhada de “responsabilidadesocial”, atualmente em voga, que funciona, em verdade, como estra-tégia de marketing de grandes empresas.

Seria muito mais profícua a ajuda desses mesmos empresáriospor meio de lobbies junto ao Governo (o que tanto se faz para a majo-ração do lucro), a fim de destinar recursos ao fomento do desenvolvi-mento social, sob pena de a situação ficar insustentável a ponto de nãomais poder existir propriedade privada. O que a classe mais favoreci-da deve perceber é, justamente, a necessidade de dar um mínimo a to-dos que compõem a sociedade, sob pena de se criar mais desigualda-de. Como ocorreu com a taxação dos inativos – sem o que a Previdên-cia Social seria levada à bancarrota –, cabe à classe mais favorecidadar um pouco mais aos menos favorecidos, a fim de que se viabilize amanutenção da ordem social. Para aqueles que sustentam ter feito seupapel quando do pagamento de tributos, mas que tal verba sofre asmazelas da corrupção, lembremos o poder de coerção da indústriapara cobrar das autoridades políticas comportamento mais ilibado.Corrupção não é justificativa para falta de solidariedade. Aquele quevê o sofrimento de um ser humano sem se chocar desmerece a quali-dade de contar com o que há de mais belo na essência de nossa espé-cie. Observar um favelado passar fome não deve ser costume, rotinaou estatística. Antes, deve tratar-se de indignação.

Hodiernamente, essa política de exclusão do excedente cunhadopela “invisibilidade social” se baseia em duas hipóteses: a primeira éa penitenciária; a segunda, o IML. Como aquela se consubstanciou noQuartel General do crime organizado, conforme se explanou, restaesta, que deixará à posteridade a prova material de uma gente “semessência humana”, não por não serem humanos ou por serem menos

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importantes, ao contrário, por serem simplesmente desprovidos dascondições básicas de instrução e viabilidade da consecução de umavida digna. É como se existisse o decreto de execução daquele quenão tem condição de se manter. Assim, quando o Estado influi na eco-nomia e acaba criando altas taxas de desemprego, indiretamente, criaa “oficiosa” sentença de morte do sujeito, uma vez que deixou de serimportante ao convívio social, afinal, deixou de participar do grandegrupo de potenciais consumidores.

Ressalte-se, por derradeiro, que não se trata este relato de apoioou anuência à atuação do crime organizado durante maio de 2006. La-mento extremamente a morte de inúmeros policiais que estavam noexercício de seu dever e perderam suas vidas, estendendo meu senti-mento às suas famílias. O que se quer com todo o exposto é, justamen-te, demonstrar que o que tem sido observado é o meio mais apropria-do para chegar onde chegamos. Só a título de mais um tópico para re-flexão, vale dizer: a vida de um adolescente de 15 anos de idade daclasse mais abastada não pode ser valorizada nem acima nem abaixoda de um segurança particular pai de família. O que se observa, por-tanto, é a relativização dos sentimentos e dos valores inerentes à vidahumana. A impessoalidade ficou tão grande que, quando um soldadoamericano mata 200 pessoas em um só golpe no Iraque, esse mesmosoldado sequer consegue avistar o sofrimento que causou. Ao contrá-rio, esse militar restringe seu contato com a realidade a um monitorcolocado dentro do avião ou do tanque que pilota ou conduz, respecti-vamente. Faz-se necessário algum outro exemplo a fim de demons-trar o culto à violência dos dias atuais? Há dúvidas acerca da realidadetriste dessa nova cultura? Como ignorar o fato de a razão humana terse consubstanciado na maior arma contra os próprios homens?Enquanto isso, um Estado abalado sugere que o dever de bloquear si-nal de celular em presídios é das empresas que prestam o serviço, nãoadmitindo como atribuição do Estado o dever de zelar pelo que entraou sai das dependências do presídio.

Assim, enquanto não se abrirem os olhos à realidade que gritafora de nossas residências; enquanto se continuar a montar milíciaspara defender vidas abastadas em detrimento de outras vidas; en-quanto o paliativo for mais tentador que a solução definitiva; enquan-to a segurança pública se deixar sepultar pelos inúmeros lobbies da

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segurança privada, nada poderá ser feito. Está na hora de perceber queo problema cuja resolução tantos atribuem ao famigerado “Esqua-drão da Morte” será resolvido somente com uma política deCIDADANIA e JUSTIÇA SOCIAL!

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VIII.6. O conceito de polícia e a noção de segurançano contexto atual dos direitos humanos

Marcos Braga Júnior*

“As pequenas ordens que cinzelamos no mundo são frágeis, tem-porárias e tão arbitrárias e contingentes como suas alternativas.”

Zygmunt Bauman

1. A noção moderna de polícia e sua imagem negativa

A noção moderna de polícia se refere à instituição ou conjunto deinstituições encarregadas de promover a segurança interna da socie-dade civil, por meio de medidas preventivas e repressivas. Essa con-cepção, no entanto, tem origem relativamente recente – datando essesentido apenas do século XIX –, e é derivada de transformações mui-to gerais na organização política das sociedades ocidentais. Não obs-tante as medidas de defesa e vigilância pertençam a toda ordenaçãohumana, de forma inevitavelmente pragmática, a consideração des-ses expedientes em sua distribuição operatória e seus graus de intensi-dade segue correlatamente as diferenças de apreciação de sua neces-sidade e conveniência para a regularidade social, conforme os tempose sociedades. Nesse sentido, a representação da polícia como personi-ficação da força monopolizada e seu emprego sobre a massa humanaem turbação certamente apresentaram equivalentes em braços milita-res e civis, hoje como ontem, mas a amplitude de diretrizes e valoresque envolvem a trajetória do conceito de “polícia”, especificamente,

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* Doutorando em Direito pela USP.

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exorbita essa significação reduzida, que bem pode ser um dos fatoresde sua crise de atuação em tempos pós-modernos.

De todo modo, sua caracterização como corpo destacado e in-cumbido da pacificação social exclusivamente, constituindo um mo-delo tradicional para a sociedade moderna, é alvo de críticas recalci-trantes, em face dos problemas intrínsecos a toda sociedade, que têmhoje avultado vertiginosamente, como frutos da acelerada reprodu-ção material da vida humana tal como globalmente se pratica, dentreoutros: a) aumento populacional conflitante com a distribuição eco-nômica acentuadamente desigual, influindo na motivação da violên-cia urbana; b) desenvolvimento tecnológico, diminuindo distânciasna comunicação e nos transportes, bem como no alcance das ações deimpacto coletivo, possibilitando um dinamismo inaudito da práticacriminosa; c) esse mesmo desenvolvimento informacional e produti-vo equiparando o provimento da paz social ao serviço prestado no se-tor privado e elevando, igualmente pela intensificação da notícia, osníveis de cobrança e reprovação.1 Em vista disso, as instituições poli-ciais, não obstante suas investidas pontuais de reformulação burocrá-tica, reaparelhamento, revisão tática, por permanecerem inseridas emum paradigma de policiamento saturado e correspondente de um ide-al de sociedade em crise, sofrem a dupla via de censura: ora por suaincapacidade no combate ao crime, ora por seu excesso repressivo, naatuação que turva os objetivos de proteção ou que se inclina à guardade interesses dominantes ou escusos.

Em meio a esses processos de intensificação e transformação, aseu turno, a campanha pelo reconhecimento e especialmente pela rea-lização efetiva dos chamados direitos humanos em escala planetáriasegue ancorada nos recursos trazidos pelas modificações menciona-

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1 As mudanças do período contemporâneo, em sua velocidade, acarretam uma miríade de diag-nósticos possíveis e de sugestões de adaptação ou mudança; todavia, os efeitos materiais evi-dentes são identificados por todos, em especial no que tange à exorbitância do espaço socialpara o nível global e a intensificação dos problemas interacionais que geram a crise da esfera pú-blica. Cf. Bauman, Z. O mal-estar na pós-modernidade. Tradução Mário Gama. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 1998; Bauman, Z. Globalização: as conseqüências humanas. Tradução MarcusPenchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999; Bittar, E. O direito na pós-modernidade. Rio de Ja-neiro: Forense Universitária, 2005. Particularmente quanto ao reflexo dessas mudanças na vio-lência, cf. Bittar, E. Ética, educação cidadania e direitos humanos: estudos filosóficos entrecosmopolitismo e responsabilidade social. Barueri: Manole, 2004. p. 41-42.

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das, e defrontando as resistências encontradas, como a prática poli-cial, criando-se uma polarização que estigmatiza ambos como “de-fensores de bandidos”, de um lado, e promotores da truculência,agentes de opressão, de outro.2

Reconhecido o problema, a distância entre os pólos, bem como omelhor desempenho de suas atividades, é conquistada com algumasisoladas tentativas de conjugação de esforços, cuja composição re-quer em paralelo o entrosamento dos valores que os fundamentam etambém a alteração de seus próprios significados, enquanto termospersonificados, para permitir a compatibilidade simbólica. Quer-se,com isso, conferir à imagem dos direitos humanos uma dimensão quediga respeito à observância da necessidade de segurança, e ao traba-lho policial, um reforço da perspectiva de proteção ao verdadeiro des-tinatário de seu emprego, o cidadão, dotado dos direitos humanos aserem resguardados. Todavia, é de se perguntar se essa incompatibili-dade é própria de noções díspares em sua gênese – “polícia” comomonopólio da força para garantir o Estado e “direitos humanos” comoafirmação da dignidade dos indivíduos em face das carências de umavida desigual e das forças de exploração – ou se prezam, nos mean-dros de sua história, momentos de algum respaldo mútuo, circunstân-cias de alguma congruência de propósitos, que facilitariam seu ajustecontemporâneo menos pela reconstrução absoluta dos conceitos quepela recuperação de seus sentidos anteriormente aplicados. Essa tare-fa tem melhor desdobramento do lado da noção de polícia, uma vezque as reivindicações sobre direitos humanos, próprias de toda a mo-dernidade, reverberam investidas nesse intuito, ao passo que a com-preensão do conceito, ou conceitos em torno da polícia, margeia a for-mação da cultura moderna, sendo alvo de referida redução, ou mesmode superposição de outras interpretações, conforme a exigência práti-ca de articulação das forças no controle social.

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2 A visão distorcida dos direitos humanos, particularmente no Brasil, é bem caracterizada porBenedito Mariano e Hélio Bicudo, tendo em vista o fim da ditadura e, portanto, o fim da corres-pondência da luta pelos direitos humanos com os direitos políticos; uma revitalização do pensa-mento conservador seria responsável por essa imagem. Cf. Justiça, segurança e direitos huma-nos. In: Moser, C.; Rench, D. (Orgs.). Direitos humanos no Brasil: diagnósticos e perspectivas.Rio de Janeiro: Ceris/Mauad, 2004. p. 221. Cf. também Adorno, S. Insegurança versus direitoshumanos: entre a lei e a ordem. Tempo Social – Revista de Sociologia da USP, São Paulo11(2):131, fev. 2000.

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2. Polícia como integração dos indivíduos ao Estado

O desenvolvimento dessa noção de polícia e o cerne das necessi-dades a que responde integram a formação da civilização ocidental apartir do advento do Estado como ente político e do homem como ele-mento nuclear da sociedade sob sua égide. A emergência desse tipode ordenação pública somente tem lugar em período particular da his-tória do Ocidente, em que, especificamente, a ética e a política sofremum distanciamento nítido, e a evolução desta última ganha um domí-nio próprio.3 A formação do Estado como entendemos hoje surgeapenas com o afastamento de concepções que, de um modo geral,concentram-se na personificação do detentor do poder, o príncipe,com a estipulação de conselhos, orientações de conduta e exemplifi-cações de heróis antigos e suas virtudes, em obras chamadas de “es-pelho do príncipe” (specula principum).4 Somente com a mudança deperspectiva para a despersonalização do poder é que o Estado se er-gue, afinal, como estrutura independente. Destacado como entidadeespecífica nas relações de poder, o Estado há de ter, como todo ente,uma razão de ser, ou um modo de organização próprio. Como um fimem si mesmo, tem sua racionalidade voltada para seu desenvolvimen-to, para o aumento de suas forças, e a ação política no interior de seu do-mínio, ou seja, o governo, deve se coadunar para melhor compreender

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3 E, não raro, ruidosos protestos de “ética na política”, sempre que indivíduos em cargos públi-cos agem desonestamente, como se contaminassem a racionalidade política ou as instituiçõescom sua falta de ética.4 O feudalismo decai como modelo social com o desenvolvimento das cidades italianas e dosburgos continentais, em obediência a alterações comerciais, a mudanças nos conflitos bélicos ea melhoramentos tecnológicos de toda ordem. Nesse momento, no Renascimento, caracteriza-do por uma tendência à centralização do poder, segundo Michel Foucault, vigoram duas tradi-ções opostas sobre seu exercício: 1. a herança medieval da influência religiosa, que assegura suaatuação em respeito a leis naturais e divinas, perpetuando a fusão entre política e outras esferasda ordenação do comportamento como os costumes e a moral. Nesse âmbito teórico, cuida-se daeducação do governante como personalidade especial, portadora e representante de qualidadesnaturais e divinas, a quem cumpre ostentá-las com maestria; 2. a contestação direta da vertenteanterior, fruto da laicização do pensamento renascentista e da recuperação dos escritos antigos,com a análise das culturas grega e romana. Sob esse entendimento, o caráter da regência do po-der se restringe aos interesses do próprio regente, tendo em Maquiavel sua formulação. Cf. Fou-cault, M. A tecnologia política dos indivíduos. In: Ditos e escritos: ética, sexualidade, política.Organização Manoel Barros da Motta. Tradução Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbo-sa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. v. V, p. 305.

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essa racionalidade e colocá-la em prática. Os princípios gerais de ra-zão, o culto das virtudes e a aplicação judiciosa da prudência, todosrecursos voltados para a ação humana indistinta, já não sustentam aeficiência do governo, que requer um saber específico, concreto so-bre as características do Estado a se governar: são estudados de formacriteriosa sua extensão, sua geografia, seus recursos naturais e, igual-mente, seu povo, com o início da aritmética política, ou estatística.Assim, o Estado é teorizado em termos de “razão de Estado”.5

A dimensão individual, malgrado sem a importância do períodomoderno, pode ainda ser identificada na monarquia feudal, visto quesuas relações, propriamente jurídicas, conferiam ao território feiçãode propriedade, cuja concessão de permanência e obrigação de traba-lho tinham as formas do direito privado (posse de terra, cessão de uso,geração de frutos), regulando relações, por assim dizer, entre sujeitosde direito. No mesmo sentido, a função do regente era eminentementejudiciária, pois que a este cumpria tão-somente decidir conflitos gera-dos pela convivência dos súditos (ou sujeitos) e zelar pelo patrimô-nio, objeto e sustentáculo da relação de vassalagem. Nos reinos comdireta influência religiosa, o príncipe ou regente, como mandatáriodivino, cuidava da resolução das questões temporais, distribuindo ajustiça e a segurança necessárias para que os cristãos pudessem bus-car sua felicidade celeste, através do bem-viver (viver corretamente,segundo regras morais). Semelhante prestação era, contudo, descon-tínua em sua incidência, e muito embora as relações entre sujeitos de-notassem uma reserva conceitual à individualidade, o desnível entreos contraentes e a restrição a umas poucas relações de importância fa-ziam da distribuição de justiça e segurança claramente um mecanis-mo de manutenção estratégica do poder hegemônico, com aplicaçãono limite desse objetivo prático.6

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5 Essa expressão, utilizada indiscriminadamente nos specula principum, tornou-se conceito apartir dos escritos do italiano Giovanni Botero, que, no final do século XVI, dando ênfase aospreceitos administrativos e econômicos na orientação da arte de governar, definia-a como: “Umconhecimento perfeito dos meios através dos quais os Estados se constituem, se consolidam,subsistem e se desenvolvem.” Só posteriormente ela se tornou sinônimo de vilipêndio do direitopara ações de exceção. Cf. Senellart, M. Machiavélisme et raison d’État. Paris: PUF, 1989.p. 56-57.6A centralização da distribuição da justiça, como uma das estratégias de consolidação do podermonárquico, tanto quanto sua descrição em termos de excesso punitivo e descontinuidade é bemcaracterizada por Michel Foucault na terceira conferência de A verdade e as formas jurídicas.

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Com a falência das relações feudais por fatores como o conflitono campo e o aumento do banditismo, além da emergência dos burgose o surgimento do Estado moderno, o âmbito das ações individuaistorna-se objeto de sujeição pelo poder não apenas nos episódios de li-tígio ou de ameaça à instituição política. Em verdade, a consideraçãodos indivíduos em si mesmos, como sujeitos, é encoberta por sua ava-liação de conjunto, como povo, um dos elementos constituintes doEstado, a ser estudado e gerido para aumento das capacidades desteúltimo. Toda e qualquer atividade ou aspecto da vida humana (nasci-mento, saúde, fertilidade, higiene, conduta, trabalho, riqueza, morte),nesse ínterim, é objeto de atenção do Estado na medida em que podeimplicar utilidade política ou prejuízo. Para assegurar a utilidade po-lítica do povo, portanto, um número de ações estatais se faz necessá-rio, incidindo positivamente sobre a conduta dos homens, regulandomais diretamente atividades que outrora ficavam por sua própria con-ta, ou sob ordenações consuetudinárias e religiosas. Ações essas, arti-culadas segundo a racionalidade estatal, compondo técnicas especia-lizadas, nas quais influía a reunião de conhecimentos adquiridos pelaobservação dos elementos do Estado e pela aplicação mesma dessecontrole direto, compreendendo tais conhecimentos toda uma tecno-

logia política. A integração dos indivíduos à utilidade do Estado eraentão perpetrada pela ativação dessas técnicas, denominadas generi-camente “polícia”.

Na França, o termo usado era police, na Inglaterra, policy, e naPrússia, Polizei. Etimologicamente, a palavra “polícia” tem a mesmaraiz de “política”, ambas derivando de polis, termo grego para desig-nação da comunidade independente dos homens em cujo interior suaexistência é possível, abrangendo todos os quadrantes, culturais, on-tológicos, materiais. A herança lingüística e cultural greco-romanaassiste à incorporação de suas idéias no pensamento canônico e à re-cuperação de sua memória no Renascimento, trazendo à tona a deri-

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Tradução Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. 3. ed. Rio de Janeiro:Nau, 2002. p. 53-77; e na Primeira Parte de Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução Ra-quel Ramalhete. 27. ed. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 9-60. Interpretações de esquerda tendem aver nessa função a razão de ser objetiva do Estado, que se perpetua, porém hoje com maior enco-brimento ideológico. Cf. Alves, A. C. Estado e ideologia: aparência e realidade. São Paulo:Brasiliense, 1987. p. 171.

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vação dos conceitos antigos de boa constituição da polis. Assim, otermo Policey aparece em fins do século XV para se referir à boa or-dem da comunidade, necessária para a felicidade dos súditos, tantoem sua constatação efetiva quanto nas leis que a prescrevem, dentrode uma visão ainda medieval, em que o encarregado pela Policey, ouseja, o príncipe, deve atingi-la pela distribuição da justiça.7 A noçãode “boa ordem” vai permanecer na transformação conceitual e se-mântica que sofrerá a Policey, tanto quanto a perspectiva de felicida-de, todavia, voltadas não mais para a convivência dos súditos ou paraa tranqüilidade do príncipe: uma vez assimilados os indivíduos e ogovernante ao ente social maior, o Estado, aqueles objetivos passam ater este por primeiro destinatário, e da sua boa ordenação, da sua feli-cidade é que adviria a felicidade, em outros termos, o bem-estar dossúditos.

Com esse juízo de melhoria estatal, a prática da polícia nasce noseio da política efetiva, levada a cabo pelos Estados principescos esua iniciativa de inovação no governo dos indivíduos. Os antigos con-selhos de Estado são substituídos pelas “câmaras”, colegiados de fun-cionários encarregados de traçar diretrizes de organização a partir deuma investigação das condições materiais e das formas reais de exer-cício do poder dentro do Estado. Os saberes práticos adquiridos comessa atividade política fizeram-se substanciais para a modernizaçãode governos sucessivos, e a exigência de capacitação de funcionáriospara seu desempenho deu ensejo a doutrinas acadêmicas original-mente reunidas sob a disciplina intitulada “cameralística”– espéciede junção dos saberes investigativos constituintes da administração,da economia e de conhecimentos eruditos do direito –, posteriormen-te desmembrada na economia política, na ciência das finanças e naciência da administração, ou ciência da polícia (Polizeiwissens-

chaft). Johann Gottlob von Justi (1720-1771) é o teórico representati-vo dessa fase, cuja obra Grundsätze der Policey-Wissenschaft (Prin-

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7 Michel Senellart aponta o surgimento do termo por volta do século XV; Paoli Napoli, todavia,indica a utilização de “polícia” já em ordens reais francesas editadas no século XIV. Cf. Napoli,P. O discurso da polícia e da aritmética política (do século XVI ao século XVIII); e Senellart, M.A ciência da polícia e o Estado de bem-estar (Wohlfahrtstaat) na Alemanha. In: Caillé, A.; Laz-zarei, C.; Senellart, M. (Org.). História argumentada da filosofia moral e política: a felicidade eo útil. TraduçãoAlessandro Zir. São Leopoldo: Unisinos, 2003. p. 271 e 459, respectivamente.

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cípios de ciência da polícia) estabelece importante separação entrepolítica (die Politik) e polícia (die Polizei), duas noções até então in-distintas. Importante e curiosa, pois, ainda nos domínios do séculoXVIII, à polícia cabia a execução das ações positivas de estabeleci-mento da ordem, com o fomento dos recursos materiais e a regula-mentação das atividades dos homens imprescindíveis à sua felicida-de. Já à política restava o cumprimento das ações negativas, mormen-te de manutenção da segurança interna e externa do Estado. Essa dis-tinção sofreria uma inversão na passagem para o século seguinte.8

3. Estado de polícia versus Estado de direito

Das teorias sobre razão de Estado à sua versão mais centralizada,o absolutismo, a tendência de ordenação dos elementos do Estadoatingiu um limite crítico, desde a gênese do conceito na literatura cha-mada antimaquiavelista – contra o partidarismo do príncipe – até asua correspondência ao excesso de poder, simbolizando o despotis-mo. As teorias justificadoras tentam afastar a idéia de tirania pelaexaltação dos fins anteriormente legados à comunidade e seus mem-bros, agora orientados para o Estado como totalidade política na qualestariam inseridos e da qual extrairiam sua realização. Surge na Prús-sia a noção de Estado de bem-estar (Wohlfahrtsstaat), denominaçãousada com vistas à evidência desses fins, correspondendo igualmenteao Estado de polícia (Polizeisstaat). Essa justificação perfaz a tentati-va de assimilação da nova ordem política ao direito, caráter principaldas configurações precedentes e reduto teórico da justiça. O primeiroa definir precisamente o Estado de bem-estar foi o filósofo ChristianWolff (1679-1754), teórico do direito natural. Entre os contratualis-tas, que baseavam sua versão da sociedade civil em função da segu-rança (Hobbes, por exemplo), Wolff afirmava também o papel doEstado na promoção do bem-estar geral, para cuja definição o filóso-fo idealizou três condições: a segurança externa (securitas); a segu-rança interna (tranquilitas); e o conjunto dos meios para a satisfaçãodo que é necessário, do que é útil e do que é supérfluo na existência

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8 I dem. Ibidem. p. 460-468 e Foucault, M. A tecnologia política dos indivíduos. Op. cit.p. 314-316.

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humana (sufficientia vitae), patrocinadores da felicidade dos indiví-duos. É nessa nova organização política que as tais técnicas de inte-gração, as técnicas de polícia, são desenvolvidas com vistas ao alcan-ce desses fins. Para esses fins se voltam os teóricos da polícia, como opróprio Justi, que dá um passo a mais no pensamento cameralista, deexclusivo do desenvolvimento do Estado em direção à felicidade co-mum, compreendendo a realização tanto do Estado quanto de seusmembros – esta, por seu próprio empenho –, na perspectiva de queuma não pode se dar sem a outra.9

A teoria do Estado de polícia tem igualmente, já em seus princí-pios, uma autolimitação dos efeitos autoritários do intervencionismoestatal. A chamada boa ordem, critério geral de formação do Estadopolicial, dentro da teoria clássica, não extrapolaria o limiar da justiçaem face mesmo dos fins de bem-estar a que estivesse condicionada. Aobra de Wolff, por exemplo, determinaria o favorecimento estatal doaperfeiçoamento dos cidadãos unicamente pela disposição das condi-ções exteriores que facultariam esse aperfeiçoamento, sem o cons-trangimento para tanto. A prática, todavia, por meio dos imperativosde ordem, das imposições de regulamentação, abriria possibilidadesde excesso, de modo suficiente a desmentir as prevenções teóricas.Em virtude disso, ao fim do século XVIII, a crítica do despotismo an-teriormente dirigida contra a razão de Estado (por sua vez, crítica domaquiavelismo) vem fixar-se contra sua resposta histórica, o Estadode polícia, objetando a supressão da existência dos indivíduos comoresultado do propósito de instituição objetiva dos modos de alcancede sua felicidade. Motivando conflitos sucessivos de maior e menorescala, chegando ao cume de revoluções como a Gloriosa e a France-sa, o liberalismo opõe ao Estado de polícia o Estado de direito, comoestrutura política que se abstém do paternalismo absolutista e prega ofim da passividade dos súditos, proporcionando-lhes a liberdade tan-to de buscarem como de decidirem os critérios de seu bem-estar, tor-nando-se formalmente atores políticos, ou seja, cidadãos no sentidoclássico. Nessa visão, o Estado seria alvo de um reducionismo de suaatuação para os ditames de segurança, compreendendo esta também agarantia dos direitos individuais.

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9 Senellart, M. A ciência da polícia... Op. cit. p. 467.

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Nesse ponto, em que as técnicas de polícia tocam a história dos di-reitos humanos, a Polizei atém-se, então, unicamente à segurança,consideradas as ditas técnicas positivas de polícia como contrárias a es-ses direitos. Não obstante, a evolução da luta pelos direitos humanostem um revés nessa disparidade, com os desdobramentos funestos deum liberalismo radical – a Revolução Industrial, a crise de 1929 –, ouseja, com a falta daquelas condições que, posteriormente, viriam a fi-gurar como políticas sociais de proteção estatal (direitos trabalhistas,previdência social), na recuperação da noção de Estado de bem-estar.Os cidadãos, reconhecidos individualmente em sua capacidade políti-ca, não teriam condição de exercê-la sem o provimento coletivo dosmeios mínimos de subsistência e o reconhecimento de limites à explo-ração econômica. A expansão do conceito de cidadania, como exigên-cia para sua efetivação, prevê o implemento dessas medidas que, de iní-cio, devem ser conduzidas pelo Estado.10 Nessa reviravolta, exatamen-te pela raiz comum dessas prerrogativas estatais, a completa separaçãoentre positivas e negativas traduz grande dificuldade, sem olvido da in-ter-relação notória entre os meios de bem-estar promovidos satisfato-riamente pelo Estado (saúde, educação, emprego, cultura) e a seguran-ça interna. No dizer de Michel Senellart, muitos preceitos evidenciadospelo Estado de direito já se encontram presentes na formação do Estadode polícia, e muitos mecanismos postos em ação no Estado de políciase perpetuam na evolução do Estado de direito.11

Ao mesmo tempo, a formação da instituição específica responsá-vel pela segurança pública conhece diferentes caminhos, no curso damodernidade, dada a sempre exígua prestação do trinômio necessá-

rio-útil-supérfluo, do ponto de vista dos indivíduos. Michel Foucaultidentifica sua aparição pela necessidade de incremento da vigilância

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10 Eduardo Bittar chama a atenção para a oportunidade de um tratamento menos técnico e maispragmático do conceito de cidadania, postulando sua expansão de modo a incluir a possibilida-de de efetivação dos direitos humanos e uma postura mais ativa de participação política. Cf. Éti-

ca, educação cidadania e direitos humanos. Op. cit. p. 8-15. Igualmente, a interpretação atualdos direitos humanos, sobretudo a assinatura do Pacto Internacional de Direitos Econômicos,Sociais e Culturais, prevê a vinculação dos chamados direitos de liberdade política aos direitosde igualdade material, segundo o princípio da indivisibilidade dos direitos humanos. Cf. Carbo-nari, P. C. Situação dos direitos humanos no Brasil. In: Moser, C.; Rench, D. (Orgs.). Direitos

humanos no Brasil... Op. cit. p. 24-25.11 Senellart, M. A ciência da polícia... Op. cit. p. 458.

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quando da emergência do capitalismo industrial, por parte da classeburguesa, que precisava assegurar o domínio e a integridade de seupatrimônio, tornado móvel com as mercadorias; afora toda uma mo-dificação do sistema penal para a inibição de delitos dessa natureza,urgia conceber grupos de vigilância para guarnecer os lugares de es-toque e transporte, como armazéns e portos. De outra feita, diferentescamadas sociais, movidas por um interno interesse solidário, teriamarticulado, no intuito de sua própria proteção em face das demais emesmo em face do Estado, similares organismos de vigilância, comoa comunidade protestante wesleyana e as sociedades de defesa doscostumes, na Inglaterra. A funcionalidade desses organismos seriaentão absorvida pelo poder estatal, em vista de sua relativa eficiência,de modo a constituir então o conhecido órgão ou conjunto de órgãosresponsáveis pela vigilância e manutenção da ordem, pelo uso neces-sário e exclusivo da força, no oscilante processo de fortalecimen-to/enfraquecimento – melhor dizendo, de compactação – da figura es-tatal nos limites da questão da segurança pública.12

4. Crise da polícia moderna e emergência de outros atoresna efetivação da segurança

Desta feita, a redução do papel do Estado na organização social,embora um processo permeado de nuanças conforme cada sociedade,vem sustentando, até então, uma certa continuidade no monopólio daforça. Nas experiências de recuperação do bem-estar pela via do Esta-do social, a falência da proposta de seguridade13 denunciou ainda

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12 Foucault descreve o processo de formação da polícia na Inglaterra a partir do surgimento es-pontâneo de organizações de vigilância em um deslocamento de três níveis: um popular, repre-sentado por comunidades religiosas de assistência mútua e prevenção do alcoolismo, prostitui-ção, roubo, como forma de manter a ordem e impedir a incidência da justiça estatal, muito rigo-rosa; um aristocrata, composto de variadas sociedades de vigilância moral; e um de feição maiseconômica, compreendendo grupos armados de autodefesa. Cf. A verdade e as formas jurídi-

cas. Op. cit. p. 89-95.13 François Ewald aborda a questão do risco e importante noção de segurança social, e argumen-ta que o chamado Estado-providência não se mantém como uma tendência do Estado liberal ouum meio-termo entre este e o Estado totalitário, mas constitui verdadeiramente um tipo defini-do. Cf. Michel Foucault, a norma e o direito. Tradução. Antonio Fernando Cascais. 2. ed. Lis-boa: Veja, 2000. p. 201-207.

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mais expressamente a diminuição do poder do Estado como centrali-zador do poder social (econômico e cultural) em face das investidasglobalizantes, que em seu citado dinamismo rompem as fronteiras so-beranas e impõem um fluxo de relações gradativamente mais vincu-lante em termos supranacionais e indomável em nível local.14 Nessepasso, e considerando a mencionada relação direta entre a pacificaçãosocial no interior da organização política e as condições materiais derealização e exercício da cidadania, esse mesmo monopólio, em seucaráter de tranquilitas, já sofre o abalo de sua certeza em face da insu-ficiência de resposta no controle dos distúrbios civis.

Especialmente em sociedades como a brasileira, em que a pro-moção do bem-estar tanto quanto o desenvolvimento capitalista nãolograram atingir os resultados mínimos de sua proposta – deixan-do-nos, em certos aspectos, como lembra Eduardo Bittar, em umacondição de pré-modernidade –, bem como os efeitos perversos dapós-modernidade se manifestam com maior veemência,15 a escaladada violência encontra, dentro da oposição criminalidade versus polí-cia, uma circularidade que torna os agentes do crime organizado efe-tivas autoridades em seu espaço de atuação, com o provimento dasnecessidades dos indivíduos sob seu domínio (inclusive segurança),seu apoio legitimador em função disso, e com reconhecimento de seupoder hegemônico em seu perímetro, em substituição ao Estado dedireito. Em contrapartida, para equiparar-se no patamar da ofensiva,essa circularidade transforma os agentes policiais em uma facçãodeslocada da sociedade civil, exorbitando em sua prática de vigilân-cia e defesa para a agressão e o extermínio, em manifesta contradiçãoà racionalidade jurídica que a justifica, como forma – primeiramente– de se proteger, bem como de coibir e, afinal, revidar o avanço do cri-me.16 Em todo caso, nessa corrida (mais espiral que circular) rumo àequivalência de dois poderes, ainda mais significativo é, de um lado,

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14 Bauman, Z. Globalização... Op. cit. p. 73-84.15 Bittar, E. C. B. O direito na pós-modernidade. Op. cit. p. 218 e segs.16 Dizem Benedito Mariano e Hélio Bicudo: “Na década de 90, segundo dados da Ouvidoria daPolícia Militar do Estado de São Paulo (...), a PM de São Paulo foi responsável pela morte de7.087 pessoas (...). Nesse mesmo período, 153 policiais militares foram mortos em serviço, emconfronto com marginais. A tese comum dos comandos das PMs é a de que as mortes de civistêm como causa o ‘confronto com marginais’. É possível que nenhuma teoria de guerra consigajustificar essa tese” (Justiça, segurança e direitos humanos. Op. cit. p. 236).

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a pretensão criminosa de apropriação da racionalidade burocrática, apartir da imitação dos mecanismos e das formas lícitas de organiza-ção política,17 e, de outro, os indícios – ultrajantes em sua própriaidéia – de reconhecimento por parte do Poder Público de sua constitui-ção e representatividade, nas suspeitas de negociação entre autorida-des de ambos os lados, como se fossem missões diplomáticas.18

A promessa estatal de repressão a esse acesso endêmico de vio-lência (nas cada vez mais freqüentes rupturas do equilíbrio de forças)restringe-se, nos limites do paradigma moderno: ao acréscimo da pu-nição, ao recrudescimento da vigilância ostensiva e ao aumento dopotencial ofensivo da força pública, com relativo efeito imediato; po-rém não superando, a longo prazo, os patamares da mera justificaçãoideológica e concorrendo somente para a caracterização da políciacomo braço armado do Estado – configuração desde sempre presente,e de modo claro antes do advento da noção de cidadania.19

Em vista dessa deficiência, a sociedade em suas diferentes cama-das rearticula modos de garantir sua proteção, a despeito (e por vezescontra a) da força estatal. Assim como, nas circunstâncias atuais, oEstado nacional se vê comprimido ante as forças econômicas supra-nacionais e as demandas sociais locais e regionais, na questão da se-gurança, a força pública termina necessitando da e aceitando, em pa-ralelo à sua atividade, a incidência do setor privado na prestação deserviços de segurança, seja em inteira substituição a suas funções –excetuadas aquelas formalmente exclusivas – por empresas privadas;

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17 Caso típico é o chamado Primeiro Comando da Capital, ao qual se atribui o recente levante deataques a policiais, que também se intitula “Partido do Crime”, e é dotado de estatuto, com pre-visão nos seus três primeiros artigos dos valores de lealdade, solidariedade entre os integrantes eda luta pela liberdade, justiça e paz, e de um objetivo político definido: a luta contra a opressãodentro das prisões. Folha Online. Estatuto do PCC prevê rebeliões integradas. Disponível em:<http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u22521.shtml>. Acesso em: 20 maio2006.18 Com referência direta à reunião entre o reputado líder da facção e três representantes doGoverno de São Paulo: Terra Notícias. PCC confirma acordo com o governo; MP vai investi-gar. Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/brasil/guerraurbana/interna/0,,OI1008287-EI7061,00.html>. Acesso em: 20 maio 2006.19 A experiência brasileira, nesse sentido, é precisa, com a origem da força policial lastreada nasmilícias e ordenanças coloniais e nas forças do Império, que admitiam apenas os brancos livresnas primeiras e os cidadãos eleitores (proprietários de terra) na segunda. Essa imagem é aindareforçada pelo fortalecimento da polícia nos regimes ditatoriais do Estado Novo e de 1964. Cf.Bicudo, H.; Mariano, B. Justiça, segurança e direitos humanos. Op. cit. p. 224-227.

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seja em trabalhos de cooperação com essas empresas, lícitos e ilícitos,com a participação de policiais alternadamente no serviço público eno comercial; seja ainda na forma clandestina de grupos de vigilânciae justiceiros, fardados ou não. Afora a questão, em termos jurídicos,da responsabilidade pelos atos cometidos no exercício dessas ativida-des, resta indubitavelmente a reprodução da desigualdade social, nadiferenciada capacidade de aquisição dos serviços empresariais, comtoda a carga de cobrança por eficiência e qualidade regida por rela-ções de consumo, e em uma demanda crescente retroalimentada pelomedo; ou na dependência dos órgãos policiais, com suas reconheci-das dificuldades de serviço; ou, afinal, à mercê das iniciativas locaise/ou criminosas.20

Ora, não é mera coincidência a semelhança com a organização davigilância dos grupos sociais descrita por Foucault, antes de sua assi-milação pelo Estado moderno. Destarte, em se testemunhando nopresente a contestação do paradigma de centralidade, pela exposiçãode formas latentes de organização no meio social – sem entrar no mé-rito de sua presença constante, ou de sua emergência apenas quandodos sinais de falência estatal –, os grupos sociais têm toda a capacida-de de se arquitetarem em busca da satisfação de suas necessidades(sobretudo a segurança), possivelmente evitando os efeitos nefastosda violência imposta pela criminalidade e pela força policial, no âm-bito de sua oposição, e da exclusão de proteção em face da desigual-dade econômica. Para tanto, sua organização precisa combater a ten-dência de desagregação social decorrente do interesse individualistaou parcial e procurar contribuir, sem a submissão às leis de mercado,para a efetivação dos valores comuns que a literatura consagrou comoexpansão dos direitos humanos para além dos direitos políticos, cujoprovimento, como visto, esteve sempre previsto na racionalidade po-lítica moderna, e fora conceituado e empreendido pela complexa no-ção de polícia. A maioria desses, por assim dizer, direitos é trabalhadae promovida pelo conjunto de associações que compõem o chamadoterceiro setor – um espaço de mediação das relações humanas de

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20 Sobre a fragmentação social contemporânea e seu reflexo na estratificação setorial e espacialdo policiamento, cf. Johnston, L. Modernidade-tardia, governo e policiamento. In: Broudeur,J.-P. Como reconhecer um bom policiamento: problemas e temas. Tradução. Ana Luísa Amên-dola Pinheiro. São Paulo: Edusp, 2002. p. 233-243.

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modo direto, bem como entre as urgências da sociedade civil e as nor-mas do Estado. O número crescente de ONGs, instituições filantrópi-cas e associações sem fins lucrativos atesta sua viabilidade.21

Todavia, talvez o que de mais importante advenha dessa crise doEstado na pós-modernidade seja a imprescindibilidade da tomada deconsciência do indivíduo e da construção real de seu status de cida-dão, para além da simples designação que condiciona sua participa-ção política aos processos normatizados de representatividade. Comoaponta Fábio Freitas, a insuficiência desse vínculo meramente jurídi-co, não obstante sua importância, não preenche as expectativas deexercício da soberania, e sua difusão ideológica como totalidade dosignificado da cidadania obscurece as possibilidades de expansão dosdireitos por meio da participação social na formação de um espaçopúblico. Assim, faz-se premente uma ampliação da noção de cidada-nia, para reunir esse intuito de participação e facultar aquelas formasde mobilização independente.22

Ora, com essa diferente perspectiva, sem a supressão pelo Estadoda participação individual e coletiva de setores não hegemônicos da so-ciedade, cuida-se de decidir pela manutenção de suas prerrogativas, namedida em que seu papel, conquanto não exclusivista, continua signifi-cativo na regulação das relações sociais. Dotados de uma consciênciaampliada da imperatividade de participação no espaço público, faz-seprudente organizar-se não mais à revelia, ou contra o Estado, mas emcomunhão e complementaridade com os órgãos estatais, tanto na di-mensão do monitoramento quanto de interferência e constituição desuas ações e estruturas, como forma democrática de defesa dos valoressociais. Dentre estes, a questão da segurança implica a reinterpretaçãoda instituição policial menos como corpo destacado e gládio do poder

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21 Sobre essas diferentes entidades e sua interação, cf. Bittar, E. O direito na pós-modernidade.Op. cit. p. 272-284; IBGE. As fundações privadas e associações sem fins lucrativos no Brasil

– 2002. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/fasfil/default.shtm>. Acesso em: 10 nov. 2005.22 Na definição de uma “nova cidadania”, que compreenda o acesso ao espaço público comocondição a preservar e criar direitos, Freitas compara a condição de “estadania”, própria da socie-dade brasileira, caracterizada pela passividade dos cidadãos e pela espoliação dos bens coleti-vos por meio do Estado. Cf. Freitas, F. Para além da “estadania”: pensando a cidadania como ca-tegoria estratégica. In: Neves, P.; Rique, C.; Freitas, F. (Orgs.). Polícia e democracia: desafios àeducação em direitos humanos. Recife: Bagaço, 2002. p. 49-81.

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central e mais como âmbito do Poder Público integrado à defesa e àpromoção do abrangente conjunto de medidas de polícia – única viapara a reformulação efetiva de sua prática social.

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VIII.7. Polícia Militar e direitos humanos: “o sonoda razão produz monstros”

Ronilson de Souza Luiz*

Homero de Giorge Cerqueira**

“Do rio que tudo arrasta se diz violento, mas ninguém diz violentasas margens que o comprimem.”

Bertold Brecht

1. Introdução

O objetivo deste artigo é o de despertar um novo olhar para umcampo que tem sido, ainda que de maneira incipiente, priorizado porsetores que perceberam sua importância; trata-se do ensino, da for-mação e do currículo do Curso de Formação de Soldados da PolíciaMilitar. Em última análise, falaremos mais especialmente da UnidadeDidática – Direitos Humanos.

O texto é fruto de pesquisa finalizada visando a analisar o currícu-lo do Curso de Formação de Soldados da Polícia Militar do Estado deSão Paulo, quanto à sua prática e pertinência para atender às novas de-mandas da sociedade democrática.

Procuramos também contribuir para organizar um novo modelode grade curricular, considerando os dados obtidos em pesquisa fi-nanciada pelo Ministério da Justiça, por meio da Senasp (Secretaria

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* Mestre e doutorando no Programa de Educação-Currículo da PUC/SP, bolsista do CNPq.Contato: [email protected].** Mestrando no Programa de Educação-Currículo da PUC/SP, bolsista da Capes. Contato:[email protected].

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Nacional de Segurança Pública), concluída em 2005, com a temática“Valorização e formação profissional”.

O problema central foi investigar como realizar uma formação denovos policiais com visão preventiva privilegiada conciliando ensi-namentos para atuação em ambientes guiados pelo acaso, pela incer-teza e pelo risco, os quais não justificam qualquer desvio aos precei-tos legais, mormente os ligados aos direitos humanos.

O currículo oficial para todos os cursos da PMESP tem objetivosdefinidos por uma diretriz emanada da Delegacia Estadual, que segueas orientações do Decreto no 42.053, publicado no DOE no 148, de6.8.1997, buscando integração à educação nacional; seleção pelo mé-rito; profissionalização continuada e progressiva; avaliação integral,continuada e cumulativa; pluralismo pedagógico; e aprimoramentoconstante dos padrões éticos, morais, culturais e de eficiência.

A atividade policial, por ser essencial, emergencial e diuturna,necessita sobremaneira formular hipóteses, construir caminhos, to-mar decisões, tanto no plano individual quanto no coletivo, que é fun-damental para o exercício da função pública, daí a relevância da for-mação de profissionais para a educação policial que respeitem os di-reitos humanos.

Conforme Althusser (1985, p. 64):

“(...) contudo, neste concerto, há um aparelho ideológico de Estado quedesempenha incontestavelmente o papel dominante, embora nem sempre sepreste muita atenção à sua música: ela é de tal maneira silenciosa! Trata-seda Escola”.

Lidamos com a hipótese de que se a atividade policial é de caráterpreventivo, o atuar preventivamente é de caráter pedagógico/educa-cional, portanto, social e político.

2. Direitos humanos: contextos e normas

Os direitos humanos derivam da dignidade e valores inerentes àpessoa humana, e estes são universais, inalienáveis e igualitários. Issosignifica que são inerentes a cada ser humano, não podem ser tiradosou alienados por qualquer pessoa; todos têm os direitos humanos emigual medida, independente do critério de raça, cor, sexo, idioma, re-

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ligião, política ou outro tipo de opinião, nacionalidade ou origem so-cial, propriedade, nascimento ou outro status qualquer.

O direito dos direitos humanos opera precisamente em defesa daspessoas mais fracas, conforme salienta Flávia Piovesan (1996, p. 20):

“O direito dos direitos humanos não rege as relações entre iguais; operaprecisamente em defesa dos ostensivamente mais fracos. Nas relações entredesiguais, posiciona-se em favor dos mais necessitados de proteção. Nãobusca obter um equilíbrio abstrato entre as partes, mas remediar os efeitos dodesequilíbrio e das disparidades.”

Os direitos humanos são inalienáveis e não podem ser tirados denenhuma pessoa; isso significa que, quando um direito é expresso porum código ou instrumento legal, os limites ou fronteiras devem serdefinidos. Por exemplo, o direito à liberdade da pessoa pode ser limi-tado pelo exercício dos poderes legais de detenção ou prisão.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos e os dois Pactosdela decorrentes têm aplicação global. Os Pactos são obrigatórios aosEstados que os ratificaram, mas também existem tratados regionais,tais como: a Carta Africana de Direitos Humanos, a Convenção Ame-ricana de Direitos Humanos e a Convenção Européia de Direitos Hu-manos.

Os dois Pactos Internacionais (a Convenção Americana de Direi-tos Humanos e a Convenção Européia de Direitos Humanos) refe-rem-se a dois tipos diferentes de direitos humanos. São eles igual-mente importantes e relevantes para o trabalho policial militar. A ra-zão principal dos direitos humanos é lidar com um tipo específico deviolação: o abuso de poder pelo Estado, e aqui entra a figura-chave dopolicial militar. Assim, ocorrendo violação de um direito, haverá re-percussão nos demais.

O art. 5o da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ressal-tado em Viena (1993), assim se expressa: “Todos os direitos humanossão universais, interdependentes e inter-relacionados. A comunidadeinternacional deve tratar os direitos humanos globalmente de formajusta e eqüitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase.”

O processo de universalização dos direitos humanos permitiu aformação de um sistema normativo internacional de proteção dessesdireitos, que é o direito internacional dos direitos humanos. A matéria

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desses direitos deixa de ser de interesse restrito do Estado nacional epassa a ser da soberania centrada na cidadania universal, podendoformar-se sistemas regionais de proteção.

A demanda atual de quatro quintos da população mundial nãoaceita que um quinto continue construindo riqueza com base em suapobreza. Nesse contexto fala-se em liberdade substantiva como ele-mento inerente à vida humana, constituída por capacidades elementa-res para evitar privações como a fome, a subnutrição, a mortalidadeevitável, a mortalidade prematura, as associadas à educação, entreoutras. Essa discussão leva a reafirmar a interdependência existenteentre democracia, desenvolvimento e direitos humanos.

Norberto Bobbio, em suas teses, argumenta que o nosso século émarcado pela Era dos Direitos, e coloca em discussão a grande neces-sidade de protegê-los, uma vez garantidos nos ordenamentos. O juris-ta entende que a efetiva proteção dos direitos do homem está ligada aodesenvolvimento global da civilização humana.

Pela Declaração do Milênio, de setembro de 2000, até 2015, to-dos os 191 países-membros das Nações Unidas deverão ter-se empe-nhado para: erradicar a extrema pobreza e a fome, reduzindo pela me-tade o número de pessoas que vivem com menos de um dólar ao dia ousofrem de fome; conseguir que todas as crianças completem o cursoprimário escolar; promover a igualdade de gênero e o fortalecimentoda mulher; reduzir a mortalidade infantil; combater a Aids, a maláriae outras doenças; assegurar o desenvolvimento sustentável; integraros princípios de sustentabilidade nas políticas de desenvolvimento;reverter a perda de recursos ambientais; diminuir à metade a propor-ção de pessoas sem acesso à água potável; e, até 2020, melhorar a vidade pelo menos 100 milhões de pedintes.

3. Direitos humanos nos cursos da Polícia Militar doEstado de São Paulo

A relação entre polícia e direitos humanos está centrada nas no-ções de proteção e respeito, e pode ser uma relação muito positiva. Defato, é função da polícia a proteção dos direitos humanos, fazendoisso de maneira genérica, mantendo a ordem social, de modo que to-dos os direitos humanos de todas as categorias possam ser gozados.

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Quando há uma quebra na ordem social, a capacidade e a habili-dade do Estado em promover e proteger os direitos humanos são con-sideravelmente diminuídas ou destruídas. Ainda, é parcialmente pormeio da atividade policial que o Estado atinge suas obrigações legaisde proteger alguns direitos humanos específicos: o direito à vida, porexemplo. Em outras palavras, considerando que é função da polícia aproteção dos direitos humanos, o requisito de respeito a esses direitosafeta diretamente o modo como a polícia desempenha todas as suasfunções.

Violar os direitos humanos, desrespeitar as normas legais com opropósito de aplicar a lei não se consideram uma prática policial efi-ciente. Quando a polícia viola a lei com o intuito de aplicá-la, não

está reduzindo a criminalidade, está ampliando o seu índice.

No caso da formação, um exemplo da herança do regime militar(1964-1985) é a utilização do termo adestramento, que se mostra to-talmente inadequado para o ambiente escolar do século XXI. Porém,diz o art. 2o do Decreto no 42.053: “(...) 2) adestramento – atividadedestinada a exercitar o policial militar, individualmente e em equipe,desenvolvendo-lhe a habilidade para o desempenho das tarefas paraas quais já recebeu a adequada instrução”.

No que concerne à atividade policial, são requisitos de direitoshumanos: respeitar o direito à liberdade e à segurança da pessoa econduzir investigações de um crime de modo que o direito a um julga-mento justo seja assegurado.

Sobre o assunto, o Manual de Cidadania da Polícia Militar doEstado de São Paulo – PMESP (1998, p. 16) preceitua:

“Nos Estados democráticos, como o brasileiro, a cidadania vai além dodireito de escolha dos governantes ou do poder de ser escolhido governante.A plenitude da cidadania implica uma situação onde cada pessoa possa vivercom decência e dignidade, através de direitos e deveres estabelecidos pelasnecessidades e responsabilidades do Estado e das pessoas.”

Em São Paulo, a grade curricular do Curso de Formação de Ofi-ciais da Polícia Militar é composta pelas disciplinas da seguinte for-ma: 36% jurídicas; 28% instrumentais de Polícia Militar; 15% funda-mentais; 9% condicionamento físico; 7% administração; 5% institu-cionais.

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Um dos temas mais polêmicos, discutidos e pensados na área ju-rídica, no ramo do direito administrativo, é o que se refere ao poder depolícia. O Estado tem o poder de polícia e seu exercício se dá, no coti-diano, pelos membros da corporação policial.

Conforme destaca Pinheiro (1991, p. 52), sabe-se que:

“Quem faz a atribuição concreta da justiça, no enfrentamento do crimecomum, não é o juiz mas o agente penitenciário, os carcereiros; quem garan-te a segurança não são os corpos policiais considerados nas suas grandes es-tratégias (quando têm), ordenados e dentro dos seus regulamentos, mas a po-lícia civil nas delegacias e a polícia militar nas ruas.”

Nesse contexto, o maior desafio é definir da maneira mais clarapossível o que é poder de polícia e seus limites, no cotidiano, exercidopor indivíduos concretos, munidos de um poder de constrangimento.

Destacamos que a nova grade curricular para a formação de sol-dados, que são a maior parte dos agentes, ganhou mais 207 horas, pas-sando de 1.710 horas de curso para as atuais 1.927 horas, contemplan-do novas disciplinas e o aumento dos tempos de outras, como Educa-ção Física e Psicologia/Dinâmica de Grupo. Dentre as novas, cito aimportante e elogiada “Tutela Penal da Igualdade Racial”, que surgiujunto às UD (unidades didáticas) de Direitos Humanos.

Aplicamos questionário em 100 policiais, na graduação de solda-do, todos masculinos e tendo no máximo cinco anos de formado, edentre as perguntas uma tratava das disciplinas como gerenciamentode crises e técnicas não letais de intervenção policial, que são relacio-nadas diretamente com os preceitos universais de direitos humanos.

O questionamento feito aos policiais formados foi o seguinte: noseu dia-a-dia, disciplinas como gerenciamento de crises e técnicasnão letais de intervenção policial são de: muita aplicabilidade, poucaaplicabilidade, aplicabilidade moderada ou de nenhuma aplicabilida-de, tendo como respostas respectivamente: 2%, 16%, 30% e 42%.

Ao se considerar que, na mudança da grade curricular de2005/2006, a disciplina Dinâmica de Grupo, um apêndice da Psicolo-gia, teve sua carga dobrada, ou seja, passou de 20 horas-aula para 40horas-aula, demonstrou-se ser grande a necessidade do aporte psicoló-gico para a atividade policial, quer por conseqüência da globalização,quer pelo estresse crescente, em especial nos grandes centros urbanos.

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4. As escolas de formação de policias militares e a gradecurricular de direitos humanos

A escola do século XXI se preocupa com a formação do cidadãoreflexivo e participativo, em face das demandas da sociedade moder-na, e a inclusão escolar é uma proposta de igualdade de direitos eoportunidades educacionais para todos; portanto, o plano teórico daescola inclusiva requer a união dos nossos esforços.

Há muitas obras tratando dessa questão dos direitos humanos, oque mostra a sua importância para o êxito de toda atividade policial,na qual se confundem, como ensina Arendt (1994), “poder, força e vio-lência”.

Na prática cotidiana, o policial militar, como servidor público,tem, por exemplo, a prerrogativa de abordar, revistar, exigir docu-mentos, conduzir até distritos policiais para que se verifique a veraci-dade de identificações, acompanhar com veículo oficial (viatura) al-guém que se entende suspeito ou em atitude suspeita. Espera-se quetenha poderes muito bem definidos.

É preciso ter presentes as conseqüências dessa situação. Bobbio(2000, p. 43) lembra:

“(...) ‘quem controla os controladores?’ Se não conseguir encontraruma resposta adequada para esta pergunta, a democracia, como advento dogoverno visível, está perdida. Mais que de uma promessa não-cumprida, es-taríamos aqui diretamente diante de uma tendência contrária às premissas: atendência não ao máximo controle do poder por parte dos cidadãos, mas aomáximo controle dos súditos por parte do poder”.

Espera-se dos policiais, por isso, que sejam portadores de saberesque garantam a dignidade da pessoa humana, ao desempenharem suadelicada atividade, que, ainda na forma mais branda, será semprecoercitiva.

A explicação dada pela polícia para executar uma de suas prerro-gativas que, ainda hoje, é contestada é o que se denomina “fundadasuspeita”, que obriga a perguntar: qual o critério, qual a justificativa;quem é suspeito? Questões que, na formação policial-militar, reque-rem um currículo multicultural, a fim de que não apenas um único re-ferencial, um padrão único de sociedade, oriente as ações da polícia.

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Como escreve Canen (2002, p. 178):

“O multiculturalismo surge em meio a essas críticas a uma verdade úni-ca, a uma pretensa neutralidade da ciência. Busca respostas plurais para incor-porar a diversidade cultural e o desafio e preconceitos, nos diversos campos davida social, incluindo a educação. Procura pensar caminhos que possam cons-truir um ciência mais aberta a vozes de grupos culturais e étnicos plurais.”

A grade curricular em direitos humanos contempla um total de 73horas-aula, sendo dividida em direito da cidadania, ações afirmativase igualdade racial, e Estatuto da Criança e do Adolescente.

A Polícia Militar, braço armado do Estado, como único órgão pú-blico presente nos mais de 600 Municípios paulistas, tem papel deci-sivo no processo de atender às demandas multiculturais, preservandotodos os preceitos de direitos humanos.

Sacristán (2000, p. 32) ressalta que:

“O currículo, com tudo o que implica quanto a seus conteúdos e formasde desenvolvê-los, é um ponto central de referência na melhora da qualidadedo ensino, na mudança das condições da prática, no aperfeiçoamento dosprofessores, na renovação da instituição escolar em geral e nos projetos deinovação dos centros escolares.”

5. Considerações finais

A interdependência planetária e a globalização são dois dos fenô-menos mais importantes que estão atualmente em marcha e caracteri-zam o início do século XXI, que exigem, desde já, uma reflexão con-junta que ultrapasse os campos da educação e da cultura, para garantiro respeito aos direitos humanos.

A escola só pode ter êxito nessa tarefa se contribuir para a promo-ção e a integração dos grupos minoritários, mobilizando para isso ospróprios interessados. Conforme Delors (2003, p. 68):

“Cabe à educação fornecer às crianças e aos adultos as bases culturaisque lhes permitam decifrar, na medida do possível, as mudanças em curso. Oque supõe a capacidade de operar uma triagem na massa de informações, afim de melhor interpretá-las, e de reconstituir os acontecimentos inseridosem uma história de conjunto.”

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Devemos, portanto, combinar as vantagens de integração e o res-peito pelos direitos individuais, filhos dos direitos humanos.

Há necessidade de um novo professor ou instrutor para o ensinopolicial, que seja dotado de características bastante peculiares, e, aomesmo tempo, precisamos criar condições para que os professoreslidem com as mais complexas situações, tais como as desigualdadesétnico-raciais, sexuais e nos mais diversos contextos.

Acreditamos que quaisquer perspectivas reais de modificação doprocesso de formação passam pela sua ressignificação como institui-ção social, com alcance pedagógico, inclusive.

O esforço desprendido deve-se à crença de que, conforme Casali(apud Severino, 2001, p. 121):

“As obrigações éticas da convivência humana devem pautar-se nãoapenas por aquilo que já temos, já realizamos, já somos, mas também portudo aquilo que poderemos vir a ter, a realizar, a ser. Não é o dever-ser quefundamenta o poder-ser, mas o contrário: o poder-ser é que é fundamento úl-timo do dever. As nossas possibilidades (potencialidades) de ser são o hori-zonte último de nossos direitos e de nossos deveres. São partes da ética daconvivência.”

Propomos, por fim, pontos que podem ser levantados para darprosseguimento a investigações futuras: prescrever critérios maistécnicos e eficientes para que se possa exercer a atividade de instru-tor ou monitor da Unidade Didática de Direitos Humanos, pois sesabe da necessidade de novas competências para ser policial militar,dentre elas inteligência interpessoal e capacidade para resolução deconflitos.

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