Livro O Professor Refem

Embed Size (px)

Citation preview

1

O PROFESSOR REFMOUTRAS OBRAS DA AUTORA Encurtando a adolescncia Rampa (romance) O adolescente por ele mesmo Educar sem culpa Sem padecer no paraso Limites sem trauma Escola sem conflito Os direitos dos pais Diabetes sem medo A escola em Cuba (Editora Brasiliense) Tnia Zaguri O PROFESSOR REFM: para pais e professores entenderem porque fracassa a Educao no Brasil QUARTA EDIO EDITORA RECORD RIO DE JANEIRO SO PAULO 2006

2

Cip-Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Zagury, Tnia, 1949303p. o professor refm: para pais e professores entenderem porque fracassa a educao no Brasil / Tnia Zagury. quarta edio - Rio de Janeiro: Record, 2006. ISBN 85-01-07465-9 1. Educao - Brasil. 2. Avaliao educacional - Brasil. 3. Professores e alunos - Brasil. I. Ttulo. 06-0500 CDD- 370.981 CDU-37(81) Copyright 2006 by Tnia Zagury Capa: Renato Zagury Foto da autora: Rodrigo Lopes Direitos exclusivos desta edio reservados pela EDITORA RECORD LTDA. Rua Argentina 171 -Rio de Janeiro, RJ - 20921-380 - Tel.: 2585-2000 Impresso no Brasil ISBN 85-01-07465-9 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL: Caixa Postal 23.052 - Rio de Janeiro, RJ 29970 EDITORA afiliada Digitalizao: Vtor Chaves Correo: Marcilene Aparecida Alberton Ghisi Chaves Nota da corretora: Vrios dos grficos desta obra no puderam ser adaptados, porm, a leitura da mesma no fica prejudicada, pois todos os grficos e quadros, bem como as tabelas que no puderam ser colocadas, esto descritas, sendo analisadas pela autora. Aos professores que atuam nas salas de aula, heris annimos, que, com todas as incrveis dificuldades atuais, continuam sua luta diria por um Brasil melhor

3

Agradecimentos A todos os professores que, espontnea e entusiasmadamente, cederam preciosos minutos de seu escasso tempo para colaborar no estudo, agradeo a disponibilidade, a franqueza e honestidade com que formularam suas respostas, sem as quais no teria realizado esse objetivo. dra. Antonia Petrowa, doutora em Cincias da Comunicao pela USP e professora-adjunta da Faculdade de Educao da UFRJ, agradeo pela eficincia na validao de contedo do instrumento da pesquisa, mas especialmente pela amizade e carinho que nos une h tantos anos. dra. Maria de Jesus Mendes da Fonseca, Estatstica e pesquisadoraadjunta da Fundao Oswaldo Cruz, agradeo pela cientificidade e seriedade profissional com que validou tecnicamente o instrumento da pesquisa. dra. Zilda Knoploch, diretora-presidente da Enfoque Pesquisa e Consultoria de Marketing Ltda., bem como sua competente e solcita equipe, agradeo pelo eficiente tratamento dos dados estatsticos e, acima de tudo, pelo carinho e incentivo. s Secretarias Municipais de Educao (2002-4) dos municpios de Arax, em Minas Gerais; Belford Roxo, Araruama, Cabo Frio e Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, agradeo imensamente a disponibilidade e generoso empenho de suas eficientes e dedicadas equipes, no encaminhamento e aplicao da pesquisa em escolas da rede pblica. Ao Sinepe de Maring, Associao de Educao Catlica de Curitiba, Ulbra do Rio Grande do Sul e a todos os diretores e equipes tcnicopedaggicas das escolas e instituies que participaram do estudo (listadas ao final do livro), pela inestimvel boa vontade em organizar meus encontros com os docentes e, especialmente, pelo empenho para que tudo desse certo. Ao meu marido querido, companheiro de sempre, que me perdoou do tanto que o esqueci, por muitas e muitas horas seguidamente, nestes ltimos trs anos de trabalho, sem jamais reclamar (nem baixinho) e que teve, como sempre, a coragem de ser o primeiro a ler os originais deixando, em suas margens, pequenas mensagens crticas honestas, irnicas, mas sempre generosas, jias incalculavelmente valiosas Ao Nato, filho querido, agradeo pelas interminveis gargalhadas que me compele a dar e pela alegria que sempre o acompanha e me impedem de esquecer que a vida tambm feita para rir e brincar. Ao Beto, filho querido, agradeo por me manter antenada s mudanas no mundo dos jovens, a par dos "segredinhos" que alunos s contam a seus pares, e pela voz e violo, que, repentinamente, invadiam meu escritrio para me relaxar, deliciada, nas muitas vezes em que estive esgotada. Todos os que aqui citei e os que involuntariamente tenha cometido a

4 injustia de no citarme apoiaram tanto e sempre que s gratido seria pouco. Dedico-lhes acima de tudo meu afeto e amor.

Sumrio Introduo 5 Captulo 1 - Os mitos da escola moderna 11 Captulo 2 - Algumas consideraes pedaggicas sobre a histria da crise 17 Captulo 3 - Objetivo do estudo 30 Captulo 4 - Como foi feita a pesquisa 31 Captulo 5 - Perfil dos docentes entrevistados 32 Captulo 6 - Resultados e anlise do estudo 33 Tema 1 A progresso automtica 79 Tema 2 As trs maiores dificuldades em sala de aula 83 Tema 3 Percepo do professor em relao s suas propostas 111 Tema 4 O professor diante dos temas transversais 116 Tema 5 O professor diante de alguns pressupostos pedaggicos 137 Tema 6 Hbitos, habilidades e atitudes do professor 160 Tema 7 Conhecimento dos docentes sobre alguns tericos da rea educacional 164 Tema 8 Linhas pedaggicas predominantes nas escolas 171 Tema 9 Planejamento pedaggico 180 Tema 10 Tcnicas de ensino e recursos audiovisuais mais utilizados 189 Tema 11 Avaliao da aprendizagem 207 Captulo 7 - Consideraes finais....................................................................233 Anexo 1 - Metodologia utilizada para determinao do tamanho da amostra 251 Anexo 2 - Construo e validao do instrumento de pesquisa 255 Anexo 3 - Instrumento utilizado na pesquisa 259 Anexo 4 - Validao interna do instrumento de pesquisa 275 Anexo 5 - Locais onde foi feita a pesquisa 277 Anexo 6 - Perfil detalhado da amostra 281 Anexo 7 - Instituies onde foram aplicados os questionrios e profissionais responsveis 291 Anexo 8 - Referncias bibliogrficas 299

5

INTRODUO Anualmente avaliaes nacionais e internacionais evidenciam que o Brasil ainda no encontrou a frmula de o saber ser democraticamente distribudo entre todos. No Pisa-20031, avaliao internacional que abrange quarenta pases, o Brasil ficou em ltimo lugar em matemtica. No Rio de Janeiro, o Estadual 20062, mostrou, nos ltimos trs anos, decrscimo nos conceitos A e aumento nos conceitos E. Em 2004, apenas 3,6% dos alunos obtiveram A; em 2005, o ndice caiu para 1,71 %. Em 2006 foi ainda mais baixo: 1,33%. Conceitos E os mais baixos da escala cresceram: 41,1; 52,2 e 54,06%. A maior dificuldade detectada foi em relao interpretao de textos. preciso dizer mais? De quem a culpa? Especialistas debatem e analisam, mas as concluses divergem. Metodologia, excesso de contedos, anacronismo curricular, formas de avaliar as condies de vida da populao, desmotivao1

O Pisa (Programme for International Student Assessment) foi lanado pela OCDE, em 1997. Os resultados obtidos nesse estudo permitem monitorizar, de uma forma regular, os resultados dos sistemas educativos em termos do desempenho dos alunos, no contexto de um enquadramento conceitual aceito internacionalmente. O Pisa procura medir a capacidade dos jovens de 15 anos usarem os conhecimentos que tm de forma a enfrentar os desafios da vida real, em vez de simplesmente avaliar o domnio que detm sobre o contedo do seu currculo escolar. Exame de qualificao a que so submetidos os alunos que concluem o Ensino Mdio e a primeira etapa do exame vestibular para a UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e a UENF (Universidade Estadual de Nova Friburgo).2

6 docente e discente, interferncia da mdia, Internet etc. so apontados, por si e em conjunto, como causas da ineficincia em Educao. No nego. De fato, aqueles, e outros tantos, tm seu percentual de responsabilidade no processo. O problema que, com exceo de poucos estudos abrangentes como os exemplos de pesquisa acima citados , atribuem-se "culpas" quase sempre calcadas em opinies pessoais, impresses na verdade. Na maior parte das vezes, no se baseiam em estudos concretos que as fundamentem. Ou seja: "acha-se" muito, mas pesquisa-se pouco. Repetese e copia-se quase tudo: de ideias a livros, de hipteses a "teorias". Paulatinamente, de tanto ouvir tais afirmativas (categricas, em geral), muitas pessoas acabam acreditando. A repetio exaustiva e inconteste acaba dando ares de verdade ao que nem sempre representa toda a realidade. Quem no tem por hbito questionar ou investigar as informaes que recebe (origens e autores) comea a repetir o que ouviu. Muitos dos que falam sobre Educao (e que por vezes nunca deram aulas, por exemplo, no Ensino Bsico) o fazem com tal segurana e at com certo ar de superioridade, que inibem os que os escutam. Em geral, comeam assim: "todos sabem que..."; "como de conhecimento geral"... Quem os ouve, e no est embasado, acaba achando que um pressuposto incontestvel. E assim se criam mitos, modas e manias em Educao, que, como tal, prejudicam a caminhada segura em direo a um futuro de pas desenvolvido, alfabetizado e consciente. Para combater essa tendncia proponho, desde logo, trs pontos para constituir o fundamento do processo de anlise e avaliao em educao. Sem eles dificilmente corrigiremos os desvios, insucessos, influncias e contaminaes no desejadas na escola, como seu uso poltico, por exemplo: 1. Continuidade nas experincias e projetos pedaggicos iniciados: Independentemente de mudanas de governo, trmino de mandatos, substituio de chefias e cargos de direo. Em outras palavras: todo projeto a ser implementado teria que especificar o perodo mnimo de consecuo, longo o suficiente para que resultados mnimos pudessem ser observados. Antes de decorrido tal prazo, no poderia ser abortado ou interrompido, exceto se resultados negativos, fruto do acompanhamento (necessariamente presente durante todo o processo), fossem percebidos de forma inequvoca. 2. Acompanhamento e avaliao sistemticos e abrangentes de processo e de produto: Para permitir que distores, dificuldades, problemas e desvios fossem detectados a curto prazo, possibilitando correes imediatas. Projetos que implicassem em mudanas radicais, tanto em termos metodolgicos como estruturais, deveriam ser iniciados experimentalmente, em locais predefinidos, nunca em todo o pas de imediato. Tal medida traria conseqncias positivas imediatas como a reduo de perdas financeiras (malversao de verbas pblicas, muito freqente no Brasil), do desgaste emocional e do ceticismo que tomam conta dos profissionais envolvidos em projetos aos quais aderem e se dedicam, e que logo a seguir so

7 abandonados, a maioria das vezes sem explicaes tcnicas plausveis que sustentem tais decises. 3. Anlise final de resultados: Tendo em vista estender, suspender ou prorrogar o projeto, sempre, porm, tomando por base os dados revelados pelo projeto-piloto, fio condutor de decises sobre pertinncia, permanncia ou mudanas nos mesmos Eu sei, no mesmo nenhuma novidade! Por que ento no o fazemos ainda? S essa medida j diminuiria muito as decises tecnicamente inviveis e fadadas ao fracasso, que com freqncia acontecem no cenrio nacional, com conseqncias nefastas para a sociedade brasileira e para o indivduo em particular, que, ao final de anos de estudos (ou de freqncia escola), se percebe enganado, por estar inapto s exigncias da vida, da sociedade e do mercado de trabalho. Cada mudana que se coloca em prtica no sistema educacional implica em gastos financeiros e, no mnimo, horas e horas de trabalho por parte dos que participam do sistema. Para os professores em especial, representa tambm, muitas vezes, novos esforos e muita capacidade de adaptao. Particularmente no sistema pblico, no qual, concordem ou no, tm que aderir. E milhares, apesar das conhecidas dificuldades da profisso, esforam-se para aprender a nova modalidade, buscando acertar, embora nem sempre com xito. inconcebvel, portanto, que se suspenda e se perca todo um trabalho sem uma anlise aprofundada que justifique tal deciso. inaceitvel que mudanas que ainda no frutificaram porque no houve tempo para isso sejam de repente "jogadas no lixo", simplesmente porque algum com poder "caiu", o substituto "no gostou da ideia" ou no quis "dar razo" ao antecessor, ou ainda porque no era adepto da "mesma linha pedaggica". Faamos da educao uma cincia. Um trabalho que permanea acima e alm dos interesses pessoais, polticos ou partidrios. Em que no se manipulem dados, no se escamoteiem objetivos, nem se admita tergiversao. Este livro resultado de um estudo que visa a contribuir com dados concretos e anlise crtica, construdo a partir do olhar do professor sobre alguns dos problemas da escola brasileira na atualidade. Espero sinceramente que as propostas apresentadas no seu decorrer frutifiquem, no sentido de fazer novos e muitos adeptos causa do estudo cientfico e sistemtico das dificuldades, problemas e possibilidades de solues para a educao. Desde 1960, a educao no Brasil vem passando por sucessivas mudanas metodolgicas, tcnicas e estruturais, cada uma delas apresentada aos docentes como a mais apropriada para os problemas que afligiam e afligem o professor em sua sala de aula. Especialmente as mudanas nos mtodos, cada uma a seu turno, foram apresentadas a pais, professores, alunos e especialistas como capazes de resolver os problemas bsicos do ensino. Escola ativa, construtivista, crtico-social dos contedos, tecnicista, para citar apenas algumas das que conquistaram a simpatia e as esperanas de educadores. Paradoxalmente, porm, com tantas mudanas, s temos visto queda na qualidade da

8 educao que, alis, continua ladeira abaixo, como atestam os estudos que vm sendo feitos inclusive o Saeb 20013, do qual apresento pequeno extrato: Em 2003, dois anos depois, portanto, o mesmo sistema encontrou situao no menos grave. Alguns dados ajudam a ilustrar: Tabela: Resultado crtico e muito crtico: Quarta srie: *Portugus e leitura: 55,4%; *Matemtica: 51,6%. Oitava srie: *Portugus e leitura: 26,8%; *Matemtica: 57,1%. Terceiro ano do ensino mdio: *Portugus e leitura: 38,6%; *Matemtica: 68,8%. Fim da tabela. Ou seja, ao final da quarta srie do Ensino Fundamental, mais da metade dos alunos continua mal sabendo ler e fazer clculos matemticos bsicos. Ao final da oitava srie e do Ensino Mdio h uma pequena "melhora" muito, muito pequena, como se pode ver. A avaliao revelou que quase 40% dos alunos concluem o Ensino Bsico praticamente analfabetos e sem o domnio dos instrumentos mnimos necessrios para conseguir um emprego de contnuo (sem qualquer desprestgio classe, por favor!). Em Matemtica, pode-se observar que o percentual de resultados crticos e muito crticos s faz crescer at que o aluno conclua a Educao Bsica. A comparao entre os resultados da rede pblica e da particular tambm no pode deixar ningum feliz. O Saeb considera adequados (longe, portanto, de bom ou excelente) resultados acima de 300 pontos ao final da oitava srie. Ao final do Ensino Mdio, o parmetro fixado de 350 pontos em Portugus e acima de 375 em Matemtica. Resultados encontrados: ao final da oitava srie, nenhum dos trs sistemas de ensino (municipal, estadual e particular) atingiu o mnimo, exceo da rede privada e apenas em Matemtica ao final da oitava srie, em que se alcanou 304,3 pontos percentuais. Como diriam nossos alunos: "Passou raspando!!!!" O que pensar de tudo isso? Alguma coisa est errada ou no! Somos incompetentes, avessos s mudanas? De forma alguma. No possvel supor nem seria justo que todos os professores brasileiros tenham resolvido ensinar mal de propsito. Em qualquer categoria profissional h de fato alguns que poderamos considerar incompetentes, O Sistema Nacional de Avaliao da Educao Bsica detectou uma situao dramtica nas escolas das redes de ensino de todo o pas. Segundo dados de 2001, 59% das crianas da quarta srie, ou seja, com quatro anos de escolarizao, ainda eram analfabetas e, o que pior, a tendncia detectada foi de uma queda progressiva nos padres de rendimento escolar. Os dados projetam a existncia de cerca de 980 mil crianas na quarta srie do Ensino fundamental que no sabem ler (desempenho muito crtico) e mais de 1.600.000 que so capazes de ler apenas frases simples (desempenho crtico). JMEC, Inep. Sistema Nacional de Avaliao de Educao bsica.3

9 ineficientes ou at propositalmente relapsos. Acontece em todas as profisses. Agora, um contingente inteiro? Uma legio que ultrapassa hoje a casa de 2 milhes!!! No, certamente a culpa no pode ser deles! No em bloco! A prpria pedagogia moderna quem afirma: quando mais de metade dos alunos fracassa, o problema no do aluno e sim do sistema. No seria o mesmo caso? Se tantos professores no tm conseguido resolver em suas salas de aula a questo da qualidade, no se pode atribuir isso a algo como um "compl" orquestrado pelos que escolheram "ensinar" durante trinta anos! O problema deve situar-se, portanto, e partindo da mesma premissa pedaggica, no sistema. No estar a educao brasileira tomando rumos equivocados? Escolhendo, por exemplo, estratgias ou reformas educacionais sem embasar essas escolhas na realidade das salas de aula, do contexto, enfim? O que deu certo, o que deu errado? Por que funcionou e por que no funcionou? O que poderia ter feito funcionar? O que faltou para que funcionasse bem? So questes que temos de responder para sair do impasse em que nos encontramos. De nada adianta, a cada novo gestor, comear um novo modelo, e do zero... Porque, comeando do zero, poderemos sanar um dos equvocos antes cometidos, mas seguramente iniciaremos outros. Fatalismo? Desesperana? No, apenas realismo e experincia. J fizemos isso antes e vrias vezes. O que no se faz, e urge fazer, entre outras medidas, para evitar novos fracassos, ouvir o docente que est atuando nas salas de aula, antes de colocar em prtica novos projetos que afetam o trabalho (s vezes a vida, como vero a seguir) de cada um deles. E, quando falo em ouvir, ouvir, em escala representativa, buscando primeiro esclarecer a proposta, em seguida, discutir, analisar, saber o que pensam e como encaram, em termos concretos, aqueles que iro executar. Refiro-me especialmente a ouvir e escutar, porque s ouvir pouco e muito frustrante (em alguns casos at se tem ouvido, mas considerar o que foi colocado bem outra coisa, assim como outra coisa, ainda mais distante, faz-lo como rotina, com respeito profissional e levando em conta, de fato, o que foi dito). No se trata de pedir permisso nem de inverter a hierarquia, mas de investigar o que eles tm a dizer sobre as necessidades intrnsecas do projeto e a viabilidade de execuo. Como se poupariam problemas com isso! A comear pela reduo da desconfiana com que muitos profissionais hoje encaram quaisquer novas propostas. E por qu? Porque esto cansados! S isso! Cansados de tentar um outro modo de ensinar; de acatar uma nova lei ou exigncia; de se fundamentar na mais recente, importante e revolucionria teoria pedaggica (e que, com certeza, vai salvar a educao no Brasil); de fazer, com o maior esforo, na maior correria e sacrifcio, um curso superior que a lei imps e depois revogou4; de4

A Lei de Diretrizes e Bases em vigor (LDB 9394/96) estabeleceu em seus Artigos 62 e 87, 4: "At o fim da Dcada da Educao (dez/2006) somente sero admitidos professores habilitados em nvel superior ou formados por treinamento em servio. Em 20 de agosto de 2003 (seis anos e meio depois), porm, o Conselho Nacional de Educao publicou a

10 comear a trabalhar certos objetivos para os quais no se sentem aptos nem motivados e jamais supuseram viessem fazer parte do seu trabalho (pensem no que pode significar para, por exemplo, um professor de Matemtica, por escolha pessoal e vocao, voltado para nmeros, contas e operaes altamente abstratas, falando sobre preveno de doenas sexualmente transmissveis?). Ah, esto cansados, sim! No entanto, ainda assim, quando sabem e acreditam que so mudanas importantes, vo adiante, tentam, estudam, procuram fazer o melhor5 e a, quando j esto aprendendo, mais seguros e at gostando, simplesmente acaba! Por qu? Porque mudou o governo ou o secretrio ou o ministro?! No ignoro que no so todos os que verdadeiramente se empenham, mas muitos o fazem. A pesquisa confirmar o que afirmo, nos captulos que se seguem. Como esperar adeso em tais circunstncias e com tal histrico? Ao se decidirem as autoridades por qualquer tipo de mudana (estrutural, metodolgica etc), seria muito sensato no aplic-la a toda a populaoalvo. Porque, no Brasil, no se promove como rotina, como parte integrante e indissocivel do processo, avaliao dos mtodos e linhas em uso. No se analisam rotineiramente resultados, bons ou maus, do que se est utilizando no momento, antes de se promoverem novas trocas. Nem se tomam decises a partir da. Simplesmente se decreta o fim de uma era e o incio de outra. Quando se deseja realmente que um plano funcione, que d certo e tenha bons resultados, preciso ouvir quem vai executar. Mesmo que quem executa ainda no conhea a tcnica e faa um treinamento depois, ele est apto a pensar de um outro ponto de vista, um ngulo que quem planeja nem sempre percebe. assim em quase todas as profisses. Um engenheiro pode ouvir um mestre-de-obras e evitar inmeros transtornos, porque, embora com menor saber livresco, tem muitas vezes maior conhecimento prtico. Claro, o ideal seria que todos tivessem os dois, mas, como no assim a vida, quem quer ter sucesso no que faz d valor a todos os tipos de saberes e competncias. Os docentes esto evidentemente mais aptos a apontar os "ns" do sistema porque trabalham diretamente com os alunos. Infelizmente so vistos por muitos planejadores como "meros" executores. E, assim, as mudanas vo e vm, idealizadas ao sabor de simpatias pessoais, cada vez que nova equipe gestora (nas esferas federal, estadual ou municipal) Resoluo n 1, que, praticamente, revoga a exigncia acima: Art. 1o Os sistemas de ensino, de acordo com o quadro legal de referncia, devem respeitar em todos os atos praticados os direitos adquiridos e as prerrogativas profissionais conferidas por credenciais vlidas para o magistrio na educao infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental, de acordo com o disposto no art. 62 da Lei 9.394/96. primeiro Aos docentes da educao infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental ser oferecida formao em nvel mdio, na modalidade Normal at que todos os docentes do sistema possuam, no mnimo, essa credencial (grifos da autora).5

No ignoro que no so todos os que verdadeiramente se empenham, mas muitos o fazem. A pesquisa confirmar o que afirmo, nos captulos que se seguem.

11 assume o poder, ignorando o que j foi realizado, o que deu certo e o que falhou. Na verdade, essa talvez seja uma das grandes causas dos sucessivos fracassos a que assistimos nos ltimos anos. Sem levar em conta os prejuzos que a crescente frustrao causa quando domina professores, refns de uma situao na qual no se conseguem fazer ouvir como profissionais srios e capazes que so. Tenho cincia de que alguns dos vrios municpios em nosso pas fazem levantamentos junto s equipes docentes das escolas. Sei que alguns o fazem e em algumas situaes. No entanto, quantos desses estudos foram realmente considerados ao elaboraram-se novos projetos e mudanas? Poucas vezes o parecer docente encarado como deveria. O que os professores expressam, quando ouvidos, raramente fator decisivo para embasar decises/aes pedaggicas. Em outras palavras, algumas vezes at se ouve o professor, mas h certa reserva em relao s suas colocaes, que acabam consideradas, muitas vezes, como resistncia mudana ou como a opinio, digamos, de "quem no quer fazer e est inventando desculpas". Ns, especialistas, mesmo inconscientemente, tendemos a considerar conhecedores que somos das teorias (mestres, supervisores, coordenadores, doutores), que sabemos o que melhor para a educao. Parte disso at verdade, mas no podemos nem devemos deixar de considerar que: 1. especialistas "sabem mais teorias, mtodos, tcnicas etc.", mas os docentes, com toda a certeza, sabem mais da prtica, pelo menos enquanto esto lidando diretamente com os alunos, porque vivem as dificuldades, os sucessos e as barreiras na prpria pele, a cada dia, a cada hora e minuto da sua longa jornada diria, cada vez mais cheia de horas, minutos e segundos! Portanto, se no atentarmos de verdade s suas ponderaes, daremos continuidade desconstruo da indissolvel unio teoria/prtica, to defendida, alis, por todas as modernas linhas pedaggicas. Se, ao contrrio, analisarmos em conjunto as diretrizes, provavelmente nos surpreenderemos positivamente com a riqueza do que vamos encontrar. Ao fazer esse trabalho, por exemplo, descobri que os professores, em sua maioria apesar das dificuldades, m remunerao e presses, do aumento alucinante de tarefas, responsabilidades e objetivos da escola moderna, apesar de tudo , continuam dispostos e em busca de ensinar qualitativamente bem; 2. se j empreendemos, em poucas dcadas, tantas mudanas educacionais e a bem da verdade, ainda assim continuamos diante de um quadro de fracasso sem precedentes , no deveramos repensar se as solues para os problemas esto sendo tomadas adequadamente? As decises tm sido tomadas por um pequeno grupo que, num dado momento, ocupa os postos de mando no quadro educacional. Quem sabe no seria mais eficiente, partir do campo, para variar? Repito: no estou menosprezando o saber dos especialistas mas no seria hora de escutarmos realmente o que nos dizem os demais envolvidos no processo, antes de partir para a execuo de uma nova estratgia? Em Medicina, os tratamentos disponibilizados para uso comercial passam

12 antes por anos de testes. Primeiro em animais em laboratrio, depois em pequeno grupo, mais adiante em grupos maiores, e, apenas diante de resultados razoavelmente seguros, so testados em seres humanos. S ento so comercializados. Por que no fazer o mesmo em Educao? Certamente eliminaramos muitos fracassos. Antes de impor mudanas sistmicas ou metodolgicas que afetam todo o sistema, preciso investigar que experincias esto surtindo efeito concreto em classe, aperfeio-las se necessrio, implantar experimentalmente em um pequeno grupo de escolas at se ter alguma possibilidade de aferir a qualidade dos resultados , e, se vlidos, s ento utilizar em larga escala. Os docentes poderiam contribuir para levantar demandas que sempre surgem quando se altera alguma coisa na prtica. Seja em termos de infra-estrutura, necessidade de treinamento, espao fsico, etc. assegurando dessa forma alguma possibilidade de sucesso. Educao que se quer de resultados devia ser feita assim. Por que comear do zero sempre, e ao sabor de "modismos pedaggicos"? Nem seria preciso pesquisar muito. Anualmente instituies pblicas e privadas premiam experincias bem-sucedidas em Educao. J so muitas, graas aos esforos de docentes criativos. No precisamos inventar nem copiar nada por ora, pelo menos. S colher os frutos da sensibilidade de nossos melhores talentos. Antes de tudo, agir de modo cientfico e no por ensaio e erro. Afinal, j estamos no sculo XXI, e grande parte dos cidados desse nosso Brasil ainda no sabe ler nem contar. No podemos mais nos dar ao luxo de novos fracassos.

13 CAPTULO 1 Os mitos da escola moderna Ser professor nunca foi uma tarefa simples. Hoje, porm, novos elementos tornaram o trabalho docente ainda mais difcil. A disciplina parece ter-se tornado particularmente problemtica. Quando as escolas se regiam pelo Modelo Tradicional, o manejo de classe era, sem dvida, mais fcil. Afinal, o poder ficava todo concentrado nas mos do professor. Ao aluno cabia ficar quietinho, prestando ateno, e... se conseguisse, aprendendo. A teoria subjacente era: "quando o professor ensina, os alunos aprendem", ou seja, "aprender" era considerado conseqncia inevitvel do "ensinar". Antes que os mais apressados pensem que estou defendendo a volta ao modelo tradicional de ensino6, explico: o que estou afirmando que o exerccio autocrtico do poder , sem dvida, mais fcil de ser exercido do que administrar relaes democrticas. Vale lembrar que, a despeito do modelo de relaes interpessoais que predomine em classe, se o professor tiver bom domnio de contedo, conscincia profissional, desejo real de levar os alunos aprendizagem e razovel formao didtica, os resultados so, em geral, bons. Quem estudou h cerca de trinta anos teve professores mais ou menos como os acima descritos. O que no significou, obrigatoriamente, mau ensino. Pelo contrrio, do conhecimento de todos que a escola pblica, por exemplo, poca, era a escola de qualidade que os pais de classe mdia queriam para seus filhos. No se pode, pois, afirmar que a "boa"relao afetiva entre o professor e seus alunos que determina a qualidade do resultado educacional. Todos ns tivemos professores que pouco ou nada se relacionavam conosco sem que isso os transformasse em maus professores (no sentido de conduzir o processo da aprendizagem). E viceversa. Tambm conhecemos mestres, ontem e hoje, muito queridos pelos alunos, carinhosos, espirituosos (a aula, um riso s...), mas que, em matria de ensino, deixam muito a desejar. Em sntese, generalizar a esse respeito imprudente. bvio que, se pudermos juntar as duas coisas (boa relao afetiva e bom ensino), os resultados com certeza sero melhores. Mas nem sempre um relacionamento carinhoso e educado por parte do mestre conduz aprendizagem. No entanto, poucos so os profissionais que conseguem atualmente questionar determinados conceitos que circulam com desenvoltura e freqncia nos meios educacionais. Transformaram-se em mitos. Proponho, portanto, na contramo ao usual, que analisemos alguns, s para "esquentar" o debate. Mito7 1: O afeto e o carinho dos professores so elementos imprescindveis6

comum pessoas lerem pequena parte de um pargrafo e a partir da chegar a concluses no caso, no seriam um nem dois que de imediato suspeitariam fortemente de um "vis retrgrado" no meu texto... Por isso, caro leitor, calma! Leia todo o captulo, antes de formar uma opinio sobre o que estou propondo! Segundo Houaiss: fig. "construo mental de algo idealizado, sem comprovao prtica; ideia, esteretipo".7

14 para que o aluno aprenda. Desfazendo o mito: Afeto e carinho so sempre positivos, mas no determinam, por si ss, a aprendizagem. Alm disso, a afirmativa induz falsa ideia de que professor srio, introspectivo, que no externaliza sentimentos por caracterstica pessoal, no pode ser bom professor, o que seguramente uma inverdade. Outro aspecto negativo desse mito fazer o aluno acreditar que professor que no prioriza as relaes afetivas com o aluno, embora seja educado, um mau professor (mesmo que d aulas maravilhosas). Nesse contexto, se o aluno fracassa, a "culpa" do professor, que no soube fazer um bom relacionamento. Tive professores que me ensinaram muitssimo e com os quais a relao sempre foi formal, distante e at fria. Alguns jamais esqueci; foram marcantes na minha formao; seria inverdade dizer que o fracasso, caso ocorresse, teria sido culpa dessa frieza. Claro, sempre preferiremos os que aliem todas as qualidades (intelectuais e afetivas), mas impossvel aceitar determinadas generalizaes, pelo radicalismo que embutem. Por outro lado, na sala de aula dos modelos liberais, atualmente indicados como mais adequados (nem pensar em questionar isso, pelo amor de Deus!), tudo passvel de discusso, desde o contedo at a metodologia e a forma de avaliao; nela, a hierarquia de poder fica muito menos visvel, e para alguns estudantes tem sido compreendida como inexistente; nessa mesma sala, que alunos (e seus responsveis) se sentem com o direito de opinar (determinar?) "o que querem aprender", "o que gostam" e at como querem o que gostam. No por acaso que os professores se queixam, cada vez com mais veemncia, das dificuldades de motivar, de ter alunos interessados. Tornase tarefa muito difcil conciliar gostos, propostas e objetivos os mais variados. Chegar ao consenso numa turma pode, por vezes, tornar-se quase impossvel. Especialmente quando boa parte dos alunos, em particular adolescentes e pr-adolescentes muito mais interessados em "passar de ano" (se possvel com o mnimo de estudo, leituras e trabalho) do que aprender verdadeiramente, toma conscincia dessa possibilidade e a transforma num timo instrumento para o imediatismo e hedonismo que os caracterizam. Apoiados pela crtica contundente e largamente disseminada mas nem sempre verdadeira aos que so classificados como "maus professores" (os argumentos: do aulas "chatas", "fora da realidade", do "provas que estressam", "falam muito", "passam tarefas trabalhosas", entre outras), boa parte dos alunos, munidos desses "bons" pretextos para reclamar e por vezes encobrindo o motivo real (estudar nada ou muito pouco), na sua ingenuidade e falta de viso a longo prazo, tornam-se os mais prejudicados num processo cujo resultado todos ns conhecemos. Mito 2: Com um bom professor, os alunos aprendem sem fazer quaisquer esforos, a motivao surge, assim como a concentrao. Estudar ou fazer tarefas em casa torna-se praticamente desnecessrio. As aulas so to maravilhosas que todos aprendem com facilidade. Desfazendo o mito: claro que uma aula bem planejada, utilizando recursos metodolgicos e audiovisuais, com exerccios inteligentes e

15 desafiadores, extremamente mais motivadora, agiliza a aprendizagem, torna o aprender agradvel e de modo geral todo o processo fica facilitado. No entanto, ainda que saibamos que o trabalho do professor carece crescer nesse sentido tambm apenas isso no garante a aprendizagem. Tudo na vida, qualquer meta que se tenha, requer algum esforo para ser atingido. Ou muito esforo: depende do caso, do indivduo e do objetivo. Considero um srio dano fazer o aluno e sua famlia acreditarem que, quando o professor atua de forma metodologicamente moderna e adequada, todo aluno aprende como que por um passe de mgica. Sempre haver, tambm por parte do aluno, necessidade de dedicao e concentrao, de momentos de estudo individual para exercitar o que estudou, refletir para sedimentar conceitos e transferir aprendizagens. "Vender iluses" desse tipo s conduz o aluno a achar que tudo que se refere aprendizagem responsabilidade nica e exclusiva da escola e/ou do professor. Ele no precisa fazer nada, nenhum esforo, absolutamente nada, porque as "boas aulas" fazem tudo por ele. preciso que os alunos e a famlia voltem a acreditar e a perceber que h sempre necessidade de reciprocidade. Por melhor que seja a atuao do professor, ela jamais eliminar o fato de que o aluno parte ativa e integrante do processo e que dele depende uma cota de responsabilidade a ser dividida com a instituio. Era natural, com a informao globalizada e democratizada da atualidade, que famlia e sociedade tomassem cincia de alguns dos modernos conceitos de educao. No entanto, o que em princpio seria positivo, acabou se tornando um complicador a mais, porque muitas dessas pessoas confundiram o seu pequeno arsenal de informaes com domnio do saber. Sentem-se habilitadas, portanto, a julgar atitudes pedaggicas das escolas. Lendo artigos, superficialmente resumidos, ou ouvindo pequena e inexpressiva parte de uma teoria, passaram a fazer generalizaes equivocadas. Mal informadas, porm ansiosas por propiciar educao de qualidade aos filhos, passaram a criticar vigorosamente o trabalho das escolas. Se os comentrios nem sempre pertinentes so feitos diante dos filhos, a questo se agrava. Muitos deles passaram a questionar o professor em tudo ("se meu pai no confia, porque eu iria confiar"?). Ainda mais se a atitude docente contraria seus desejos imediatos a o que poderia ser contribuio para a melhoria do ensino, vira briga, imposio e desconfiana mtua. H casos em que pais e alunos tm razo, claro; o que preocupa o fato de que questionamentos legtimos vm assumindo a forma de confronto, processos e demandas judiciais o que com certeza em nada fortalece a qualidade da escola. Ao contrrio, leva a que profissionais habilitados e srios se sintam completamente inseguros e ameaados por pais e alunos, pela sociedade, por vezes at internamente pelo sistema, enfim , tornando-se verdadeiros refns de todo um contexto, que os fragiliza e mantm em permanente estresse. Especialmente porque e isso o mais triste esses desgastantes confrontos muitas vezes nada tm a ver com o incremento de saberes nem da qualidade do ensino. H famlias que apelam justia por motivos inacreditveis. Utilizando-se de brechas de artigos da legislao (inclusive do Estatuto da Criana e do Adolescente), longe de estarem lutando para que seus filhos aprendam

16 mais e melhor, visam, por exemplo, a suspender decises pedaggicas da instituio ou obter tratamento diferenciado para os filhos, suspenso de sanes ou at vantagens financeiras. Para exemplificar, transcrevo nota publicada recentemente na coluna "Informe Jurdico" do Jornal doSinepe-ERJ8, intitulada "Bolinho caro": A pretenso da me em realizar, nas dependncias do estabelecimento educacional, na seqncia do campeonato de futsal (atividade extracurricular), uma "festinha com o bolo, a pipoca, o suco e picols de fruta"que ela teria "prometido, anunciado e esperado" proporcionar ao seu filho e a recusa da escola em autorizar integralmente a pretenso da me, uma vez que somente foi autorizado que fosse levado o bolinho para cantar parabns para a criana ao trmino da atividade extracurricular, virou ao de indenizao por danos materiais e morais, j julgada improcedente. Mas ainda pode ter recurso. E a pergunta que no sai da cabea: escola casa de festas? No se trata de discutir a atitude da escola ou a pertinncia do desejo da me. O que importa acentuar o quanto situaes como a descrita incentivam uma atmosfera de desconfiana e confronto entre instituies que historicamente sempre foram aliadas e batalharam em prol dos mesmos objetivos educar, conscientizar, formar cidados9. No mesmo jornal, podemos ler adiante outra notcia que revela a extenso do problema (relao famlia-escola): Carteiro Mandar carta de cobrana por intermdio do aluno autoriza indenizao for danos morais. Aluno no carteiro. Use o correio e lembre-se de mandar a carta de cobrana em envelope fechado sem qualquer tipo de aluso que possa causar constrangimento ao destinatrio. Os dois casos foram publicados com o intuito de preservar, alertar e orientar as escolas contra possveis problemas jurdicos. Essa a situao. Como lidar com essa nova realidade, sem perder a autoconfiana, a segurana e a certeza de que podemos trabalhar conceitos e atitudes como igualdade de direitos e deveres? Ou de que todos devem seguir as regras estabelecidas pela sociedade (aqui representada pela escola)? Imaginemos um colgio com 2 mil alunos. Provavelmente a cada dia letivo haver um estudante aniversariando. Como seria atender singular ideia de comemorao que cada famlia idealizasse? Ao aprovarem e at incentivarem comemoraes, as escolas tm em vista desenvolver e estimular o afeto, a amizade, o carinho entre as crianas. Faz parte do processo de socializao, a aprendizagem da igualdade de oportunidades, o estmulo generosidade, em que homenagear aos que queremos bem um exemplo; no entanto, a instituio estabelece e precisa estabelecer regras para que esses eventos possam ser realizados por todos os alunos. Devem ser atividades simples, quase simblicas, sem com isso deixar de atender plenamente seu objetivo amiguinhos compartilham e se comprazem no aniversrio do colega. Assim, todos tenham mais ou menos recursos e pais mais ou menos criativos tero "o seu dia". Dessa maneira, evitam-se comparaes, excluses e ostentao. evidente que o primeiro exemplo desfaz qualquer possibilidade de se desenvolver a generosidade. No entanto, a cada dia, mais educadores relatam casos do gnero. A qualquer contrariedade se tomam medidas que, antes de mais8

9

Ano XIV, n 88, julho/agosto/setembro de 2005, p. 8 A esse respeito, ler Escola sem conflito Parceria com os pais, Record, 2003

17 nada, acabam inviabilizando o processo educacional. A ideia inicial de participao da comunidade na escola desvirtuou-se, transformada em presses que nada tm a ver com ao educacional. E que s fazem diminuir o espao de atuao da escola, transformando-a, a seu turno, tambm em refm do "cliente" (no caso da escola particular) ou de indivduos de tica questionvel, que, sabemos, infelizmente dominam em alguns casos parte das comunidades em que a escola est situada (em se tratando da rede pblica). Uns usam o poder do dinheiro, outros, o da fora fsica e do medo. Em qualquer um, a escola e os docentes tornam-se refns de uma situao na qual gradualmente Perdem espao para agir de forma educacional, com independncia e segurana. Mito 3: A participao da comunidade essencial qualidade do ensino. Desfazendo o mito: A participao da comunidade (famlia) importante para trazer informaes e inteirar-se das atividades que as escolas realizam, alm do acompanhamento do desempenho e atitudes dos filhos em relao aos estudos. Podem cooperar muitssimo quando fornecem suas impresses e ideias, assim como crticas e sugestes. No momento, porm, em que tal participao se reveste de carter impositivo, de confronto, manipulao ou luta por poder, jamais poder ser considerada positiva ou democrtica. comunidade cabe participar, sim, mas para fortalecer os princpios de igualdade de direitos, no para impor condies e jamais para obter vantagens para si ou para seus filhos. Quanto ao da justia, de advogados e dos Conselhos Tutelares, importante que analisem profundamente sua funo como mediadores em situaes de conflito. essencial que continuem cumprindo seu papel, evitando, porm, aes que inviabilizem ou inibam a atividade educativa e socializadora da escola, que precisa ter segurana e respaldo da sociedade, alm de ser respeitada e vista como instituio constituda de profissionais especializados, que, em sua maioria so os formadores dos cidados de amanh. A ideia de que uma turma na qual percentual expressivo de alunos apresenta baixo rendimento em um ou vrios componentes curriculares tem sempre como causa o trabalho ineficiente do professor pode at ter algum fundamento pedaggico. H algumas dcadas ningum pensaria assim. O aluno era sempre o culpado: no havia estudado o suficiente ou fora desatento. Posio sem dvida radical, injusta e incorreta. Hoje, felizmente, reconhece-se que a falha na aprendizagem tem em geral causas mltiplas, que podem estar no processo, na metodologia, na didtica inadequada do professor, na avaliao e tambm (por que no?), no prprio aluno. O leque se ampliou. Que bom por isso! Mas, por algum motivo indecifrvel, samos de um pensamento radical para cair em outro. Se h pouco todas as culpas recaam sobre o aluno, hoje muitos passaram a atribu-las todas ao professor. O que uma flagrante distoro. Se muitas vezes o problema se origina na forma pela qual a escola trabalha ou na ineficincia de determinado professor, em outras, at bem freqente, pode estar, sim, no aluno que em muitos casos no estuda, est desatento e desinteressado. Apontar o professor como nico responsvel pelos fracassos no ensino mascarar a realidade, especialmente quando isso ocorre sem uma anlise profunda e concreta

18 do processo desenvolvido. Ignorar que parte dos alunos por razes sociais ou pessoais10 no querem, no gostam de estudar, e muito menos de se esforar para aprender, igualmente ignorar que o ser humano mltiplo e que cada indivduo nico e reage diversamente aos estmulos recebidos. E ignorar tambm que muitas dessas variveis no podem ser superadas unicamente pelo trabalho do professor, por melhor que ele seja e por mais que trabalhe bem e se esforce muito. Mito 4: Se um percentual expressivo de alunos apresenta maus resultados, significa que o professor falhou. Desfazendo o mito: Claro que, com bons professores e boa infra-estrutura escolar, o percentual de alunos com chances de aprender e de ter resultados positivos cresce geometricamente, mesmo os que esto desestimulados. A generalizao, porm, sempre perigosa. No caso em questo, ignoram-se: a) a vida escolar pregressa dos alunos; b) trabalhos mal desenvolvidos em sries anteriores, que podem ter deixado lacunas de aprendizado extensas, por vezes no sanveis em um ano letivo apenas; c) a postura da famlia em relao escola (estudos comprovam que pais ausentes, displicentes e que no do limites em casa tm, percentualmente, filhos com mais baixo rendimento que os pais ativos, atentos e que acompanham de perto os estudos dos filhos); d) a disposio da criana ou do jovem para de fato "fazer a sua parte" (segundo modernos conceitos da Pedagogia, aprendizagem um processo interno que demanda atividade do aprendiz. No por outro motivo caiu por terra a ideia de que "se o professor ensina, o aluno aprende"; e) que aprender e ensinar so dois processos inter-relacionados, isto , um influencia o outro, sujeitos tambm a uma gama de fatores intervenientes (motivao pessoal, capacidade intelectual, percepo afetiva em relao a determinados componentes do currculo, situao emocional da famlia). Esses fatores incidem sobre ambos, docentes e alunos. Ao se analisar o fracasso escolar, preciso considerar toda a complexidade da questo. Simplific-la procurando culpado um apenas viso simplista ou que embute algum outro interesse. claro que existem muitos outros mitos no abordados. Com o tempo, todos eles foram se tornando axiomas que-como tal no se discutem. Surgiram ao longo das ltimas dcadas devido a distores involuntrias, falta de treinamento docente adequado, m prxis etc. Seria leviano tentar aventar as causas. Tampouco importa agora. Relevante refletir honestamente sobre a prtica que est sendo desenvolvida no sistema educacional brasileiro e sobre que construtos se erigem. E, luz da anlise, descobrir quais deles foram equvocos e quais Algumas causas sociais: abandono em casa, falta de limites, superproteo da famlia, excesso de estmulos mais atraentes na sociedade ou em casa, mordomias demais, dinheiro fcil, situaes de conflito graves, problemas de sade, uso de drogas, cansao Por trabalhar fora etc. Pessoais: imaturidade, agressividade, necessidade de auto-afir-mao, preguia, falta de fora de vontade, imediatismo, falta de compreenso quanto a importncia dos estudos, incapacidade de vencer dificuldades, dificuldade de concentrao etc.10

19 se revelaram teis. preciso que ns, educadores, no tenhamos medo de pensar e repensar a realidade em bases concretas. Nenhuma teoria pode ser mitificada, tornar-se inquestionvel. A reflexo e avaliao crticas sobre a relao teoria/prtica uma necessidade que precisa ser praticada sistematicamente. Ento sim, poderemos decidir com segurana sem esquecer jamais que qualidade de ensino tem relao inequvoca com qualidade do produto (me perdoem os que odeiam este termo). Neste trabalho, o termo pesquisa utilizado unicamente em referncia que se baseia na metodologia cientfica aplicvel s cincias humanas. Ficam excludas, portanto, as que se anunciam como tal, mas na verdade so meros "levantamentos" (por exemplo, uma nica pergunta, respondida em um encontro com pblico restrito e focal, cujas caractersticas sociais, culturais etc. no so nem ao menos definidas pode ter at algum valor, mas restrito, nunca generalizvel a todo um universo). Tambm ficam excludas as que no esclarecem que mtodos foram utilizados, qual a amostra e o universo, os objetivos, tipo de amostra, como se trabalharam os dados do ponto de vista estatstico etc. No incomum vermos pessoas afirmando "na pesquisa que fiz" e ponto final. No se encontra um trabalho publicado em revista especializada, indicaes bibliogrficas, dados estatsticos, caracterizao da clientela nada. Tambm est se tornando comum ouvirmos alguns profissionais anunciarem "ter criado uma teoria" sem explicitar o tipo de estudo ou ao menos as evidncias em que se baseiam. preciso que ns, educadores, saibamos exigir comprovao ou definio das condies em que certas colocaes so feitas, para podermos caminhar em direo cientificidade. Os poucos mitos que aqui expus visaram apenas a revelar a todos os interessados que, se de fato queremos resolver problemas educacionais, temos que nos munir da necessria iseno intelectual, de uma rgida disposio de no prejulgar, de nada predeterminar. Precisamos ter posturas mais cientficas, e, como se faz em qualquer cincia, pedir (exigir?) dos que defendem a adoo desta ou daquela nedida que esclaream em que se baseia sua escolha e quais as medidas necessrias para sua efetivao na prtica. Precisamos apoiar cada vez mais as respostas que buscamos em estudos de campo, pesquisas11 amplas e Neste trabalho, o termo pesquisa utilizado unicamente em referncia que se baseia na metodologia cientfica aplicvel s cincias humanas. Ficam excludas, portanto, as que se anunciam como tal, mas na verdade so meros "levantamentos" (por exemplo, uma nica pergunta, respondida em um encontro com pblico restrito e focal, cujas caractersticas sociais, culturais etc. no so nem ao menos definidas pode ter at algum valor, mas restrito, nunca generalizvel a todo um universo). Tambm ficam excludas as que no esclarecem que mtodos foram utilizados, qual a amostra e o universo, os objetivos, tipo de amostra, como se trabalharam os dados do ponto de vista estatstico etc. No incomum vermos pessoas afirmando "na pesquisa que fiz" e ponto final. No se encontra um trabalho publicado em revista especializada, indicaes bibliogrficas, dados estatsticos, caracterizao da clientela nada. Tambm est se tornando comum ouvirmos alguns profissionais anunciarem "ter criado uma teoria" sem explicitar o tipo de estudo ou ao menos as evidncias em que se baseiam. preciso que ns, educadores, saibamos exigir comprovao ou definio das condies em que certas colocaes so feitas, para podermos11

20 tecnicamente bem-feitas, o suficiente ao menos para permitir, com segurana mnima, a tomada de decises.

CAPTULO 2 Algumas consideraes pedaggicas sobre a histria da crise Analisar as causas do fracasso preocupao sobre a qual se debruam todos os que esto envolvidos com Educao e que desejam uma escola de qualidade. claro que so muitas, no apenas uma. Vou excluir, no entanto, causas macroeconmicas e sua correlao poltica, porque a maioria de ns as conhece de cor e salteado: falta de empenho e de vontade poltica, uso inadequado de verbas pblicas, precariedade de instalaes e infraestrutura, remunerao docente inqualificvel etc. Alm do mais, rotineira e ciclicamente, sabemos, elas voltam baila (e continuaro a voltar) sob a forma de discursos belssimos e inflamados, especialmente quando se aproximam eleies em quaisquer nveis... Quem sabe, um dia, no nos cheguem atravs de aes sincerase no de palavras que se desfazem ao vento depois... Vou, portanto, me ater a razes do fracasso sobre as quais podemos exercer uma ao efetiva e imediata. De tudo que relato e analiso a seguir, fui testemunha ocular; abracei, com esperana e entusiasmo, muitas das mudanas a que me referirei no decorrer do livro; de outras tantas desconfiei da eficcia, mas tentei aplicar sentindo na pele as dificuldades operacionais e por vezes at suas previsveis derrotas. Trabalhei e lutei nesse mister por mais de trinta anos. Ainda no desisti, que no sou de abandonar essa causa na qual creio muitssimo... Comecei em 1968, como professora alfabetizadora, depois fui supervisora e, finalmente na Universidade Federal do Rio de Janeiro, me dediquei formao de profissionais da educao. caminhar em direo cientificidade.

21 Acredito que trs fatores tcnicos tm contribudo para a queda da qualidade de ensino: 1. a m compreenso e distoro das novas linhas pedaggicas aplicadas devido escassez ou inexistncia de treinamento docente adequado, antes da implantao; 2. a falta de experimentao prvia em projetos-piloto, antes da implantao geral ao sistema; e 3. o raro acompanhamento de resultados de cada nova proposta implantada. Uma rpida (e incompleta) retrospectiva de como se introduziram mudanas no processo educacional brasileiro nos ltimos trinta e poucos anos pode ser til para que se entenda parte das razes do fracasso. Mudanas a toque de caixa Uma das piores conseqncias dos fatores anteriormente citados a grande insegurana que determinam no professor. Cada inovao sempre apresentada como a melhor e mais eficaz para os males que afligem a escola brasileira. assim sendo, cumpre coloc-la em prtica. De preferncia, logo. Ainda que trs anos depois aparea uma outra, que tambm apresentada como a melhor opo e que implique abandonar a anterior. Em torno de 1970, o modelo tradicional de ensino comeou a ser substitudo, embora lenta e timidamente, pelas ideias de John Dewey, Maria Montessori, Decroly, Paulo Freire, Ansio Teixeira, Piaget, Vigotski e tantos outros grandes nomes da Pedagogia. Suas teorias comeam a influenciar o iderio dos professores12. Da Escola Ativa, o "aprender a aprender" deixou marcas profundas. Ensinar contedo, de repente no mais to importante quanto independentizar o aluno. O "saber bancrio" rechaado e Paulo Freire surge com a alfabetizao comprometida com a conscincia poltica. O professor tem que jogar fora as listas de coletivos, feminino, plural de nomes compostos etc. A "decoreba" expurgada e bem-vinda a reflexo. A democratizao das relaes em classe tambm surge como desafio para professores que, at ento, haviam sido formados e trabalhavam como autoridades incontestveis. A Teoria da NoDiretividade, de Carl Rogers, alterou inequivocamente a relao professoraluno, trazendo o "modelo humanista" para a escola. Surge o facilitador" da aprendizagem, e subitamente o docente tem que compreender e assimilar que "ningum ensina nada a ningum". Assustado, angustiado, o professor se pergunta: "Meu Deus, tudo isso muito lindo, mas na prtica, o que significa, como que se faz?" A velocidade das transformaes sociais, tecnolgicas e relacionais intensa. Com isso, uma conhecida e muito utilizada tcnica de ensino podia ser condenada, banida, considerada "antiquada" de uma hora para outra. Os professores, atnitos, assistem derrocada de tudo ou quase12

Cabe ressaltar que todos os autores citados trouxeram sem dvida contribuies positivas aos conceitos educacionais, ao menos no plano terico.

22 tudo que aprenderam nos cursos de formao. A forma clssica de trabalhar "virada do avesso". O docente repentinamente se sente despido de todo o arsenal prtico conhecido e se v diante de uma quantidade enorme de ideias e formas de trabalhar em sala que preciso aprender. E rpido... Porque j foram aprovadas e j esto sendo utilizadas na escola!!! Muitas dessas teorias, que soam belssimas na letra do texto, parecem aos docentes verdadeiros enigmas na prtica. Em outras palavras, o professor se pergunta: Como transformar essas teorias, to ricas, to novas e to diferentes, em "fazer pedaggico"? Como atuar para ser um professor moderno, no tradicional, no ultrapassado? Como ensinar ao aluno o "aprender a aprender"? Como cumprir o programa que continuam a lhe cobrar, e, ao mesmo tempo, atender ao que o aluno gosta e quer fazer, que pode no ter nenhuma relao com o que a sociedade exige? Como fazer cumprir o "contrato de trabalho" preconizado por Rogers, numa sala de aula que abriga trinta, quarenta alunos; quarenta quereres diversos, quarenta opinies geradas por objetivos pessoais tambm diversos? Parte dos alunos est realmente interessada em aprender, mas outra boa parte (em especial se forem adolescentes movidos pelo hedonismo, pragmatismo e utilitarismo que hoje dominam a sociedade) quer mesmo namorar mais, conversar com os amigos e saber o mnimo possvel (com algumas excees, naturalmente). Todos, porm, julgando ser um direito inalienvel ser aprovado, passar de ano, formar-se (afinal "s professor ruim reprova aluno, no isso que andam dizendo por a?")... Como agir, ento? Como conciliar tantas mudanas e desafios novos, se as dificuldades mais simples no so sanadas, como turmas grandes e com poucas horas de aula, por exemplo? Como esclarecer suas prprias dvidas, sem parecer um profissional incompetente? E como atender s complexas tarefas de um currculo que, a cada ano, acrescido de novos desafios (por exemplo: como tratar com segurana e adequao o tema transversal "Preveno ao uso e abuso de drogas", se a realidade brasileira nos mostra que parte dos professores nem escreve corretamente? Ou se jamais teve contato, sequer visual, com a forma fsica do crack). Se deslocarmos o foco de nossa ateno dos grandes centros urbanos e nos voltarmos para os professores da rea rural ou da periferia das grandes cidades, a defasagem ser certamente ainda mais grave. A despeito do que preconizou a Lei de Diretrizes e Bases em 1996, ano de sua entrada em vigor, e que tambm marcou o incio da chamada Dcada da Educao, persistem no Brasil professores leigos; muitos no recebem um salrio mnimo mensalmente; outros lem e escrevem mal13. Mas, apesar de tudo isso, as autoridades esperam que o professor, assim, de uma hora para outra, aprenda assuntos que nunca foram sua escolha profissional; e tambm que, num passe de mgica, mude sua metodologia Reproduzo dois extratos de textos elaborados por docentes: "Comprei o sapato citado onze anos"; "Ele nem sabe quanto o adimiro"13

23 de ensino com entusiasmo e empenho (segurana ele vai buscar aonde?) e que colha muitos e melhores resultados , mesmo que essa nova forma de ensinar demande reformas fsicas que no aconteceram e verbas que no apareceram para adaptar a realidade de suas classes, lotadas, mal equipadas, s vezes mul-tisseriadas... Posturas desse tipo podem de fato melhorar a qualidade da Educao? o que sinceramente me pergunto. H real inteno de melhorar a Educao atuando dessa forma? Nas ltimas dcadas, autoridades educacionais vm adotando medidas que parecem ignorar (desconsiderar?) as condies reais de trabalho nas salas de aula. Se no ignoram, pior ainda, porque nada foi feito para que tais medidas dessem certo. Treinamento adequado e suficiente, previso e proviso de equipamentos, s para citar duas. Mas a mudana, ah! Essa implantada imediatamente... Por isso ainda que respaldadas do ponto de vista de teoria pedaggica "de ponta" , transformam-se em mais fracassos. Para que tivessem sucesso, deveriam ter sido precedidas mudanas na infra-estrutura e por treinamento srio aos docentes. Em resumo, o que temos visto acontecer : No Brasil, as mudanas educacionais tm sido "de papel", ocorrem na "lei". Mas l na sua sala de aula, o professor no recebe o treinamento de que necessita para efetivar com segurana o novo modelo. Muito menos chegam a ele os suportes necessrios de infra-estrutura fsica, material, ou os equipamentos que poderiam ao menos possibilitar alguma chance de sucesso. Relao professor-aluno, o afeto como mtodo Alm desse contexto de mudana metodolgica acelerada, as novas teorias tambm trouxeram alteraes profundas no que se refere relao professor-aluno que se supervalorizou. O bom professor "amigo" dos alunos. Pequena pausa para reflexo: Ser que um professor do "nosso tempo" de primrio, mesmo aqueles hoje considerados "antiquados" para os padres atuais, mas que nos ensinava com empenho, que era justo, respeitoso, dedicado, trabalhador, preocupado em fazer aprender ainda que srio e carrancudo no era nosso amigo? E o que afinal um "professor amigo"! No seria o que nos fez (e faz) aprender e bem? Ser amigo dos alunos passou a significar antes de tudo ser compreensivo e aceitar as diferenas individuais como algo definido e definitivo. A teoria pode no ter pretendido isso, mas, no nvel prtico, qualquer interveno em termos de controle de disciplina ou de avaliao (de comportamento e de saberes) atualmente entendida como ameaadora "boa relao". Os "melhores" professores passaram a ser aqueles cujos alunos "os adoram", no importa tanto se ensinam ou no. O importante compreender, entender as dificuldades, considerar seus problemas emocionais, sua classe social (dentro desse enfoque, alunos de classes menos favorecidas precisam ser compensados afetivamente, e no como deveria, superando deficincias de saberes que efetivamente impedem

24 seu progresso financeiro e social) e ajudar a super-los do ponto de vista emocional-afetivo. Professor torna-se, nesse contexto, sinnimo de "especialista em relaes humanas". Alis, "professor", ao que parece, termo que nem deve mais ser empregado. Sugere-se educador ou facilitador... Como se, mudando o nome, tudo o mais ficasse resolvido! E no fica basta ver nossos resultados! A ideia de entender as diferenas e dificuldades individuais perfeita. Desde que como educadores, professores, facilitadores ou que nome tenha , alm de aceitar as particularidades do indivduo, agssemos de forma efetiva para super-las, principalmente em termos de aprendizagem. S compreender muito pouco. S aceitar, tambm. preciso que a escola cumpra seu papel. Que , antes de tudo, preparar o aluno (e, por meio dele, a sociedade) para crescer intelectual, reflexiva e tecnicamente para poder enfrentar o mundo tal como ele se nos apresenta hoje, com todas as suas dificuldades de emprego, exigncias de qualidade etc.. Focar, nica ou prioritariamente, o aspecto emocional trabalho para psiclogos e terapeutas, no para quem tem compromisso com a qualidade da aprendizagem. Compreendidos nossos jovens tm que ser, sim, sem dvida, mas superando suas dificuldades de aprendizagem sempre. assim que o aluno precisa ser amparado. Acreditar no potencial do ser humano, na real capacidade de vencer e superar seus problemas e deficincias essencial para que o professor no se aliene do seu real objetivo... Reprovao, causa ou conseqncia? Intrinsecamente relacionada questo anterior, a forma de pensar a aprovao/reprovao de alunos merece destaque pelo foco que assumiu nas ltimas dcadas. Transcrevo a seguir dois pequenos textos, extrados de artigos publicados em revistas de educao, assinados por profissionais da rea (aos quais, fao questo de esclarecer, no estou criticando conceitualmente, e a quem dedico muito respeito). Como esses dois, poderiam ser centenas de outros, que continuamente vm sendo publicados, dentro desse mesmo enfoque. A seleo foi, portanto, aleatria, e o objetivo, levar o leitor a refletir sobre de que forma determinadas afirmativas, especialmente as categricas, vindas de formadores de opinio altamente qualificados, ressoam e modificam a prxis docente: O professor o nico profissional cujo fracasso atribudo, automaticamente, a suas vtimas: se o aluno no aprende porque no estudou e no por culpa do professor. Enquanto o professor tiver o poder de destruir o aluno mediante reprovao, o sistema escolar estar, fundamentalmente, corrompido pela coao irresistvel14. O papel do professor cuidar para que os que no escrevem to bem sejam mais cuidados do que aqueles que j escrevem bem. O que se faz, entretanto? Apenas se enaltece a competio, divulgando notas e prmios. Divulgamse resultados (avaliao classificatria) e nada se faz para oportunizar aos campbell, S. "Propsitos da avaliao da aprendizagem". In ABC Educativo, p. 27, ano 6, n 50, outubro de 2005.14

25 que precisam de ajuda para avanarem naquelas reas. Com certeza, esses que no escrevem bem, por exemplo, tambm so melhores em outros aspectos da escola ou da vida. Muitas vezes so jovens que tm que trabalhar para sustentar a famlia, so timos msicos, so excelentes jogadores de futebol. E a escola tende a desconsiderar essas reas como de menor valor. No so. Trata-se de pessoas diferentes, s isso... A comparao nociva em qualquer circunstncia, porque sempre crianas e jovens sairo perdendo com isso15. Importante ressaltar que ambos os textos se baseiam em modernos conceitos da rea de avaliao. No h, nas afirmativas, erros conceituais ou propsitos outros que no acertar o processo. Percebe-se (especialmente lendo-os na ntegra, o que recomendo) com o objetivo de esclarecer, informar, orientar o processo de avaliao que realmente ainda continua mal compreendido e mal executado em grande parte dos casos. O que me preocupa e me parece forte demais, da a importncia de se repensarso essas formas afirmativas e categricas com que se traduz a teoria "o professor, ao reprovar, destri o aluno"; "o sistema estar corrompido pela coao irresistvel" ou "a comparao nociva sempre" e sua repercusso na prtica pedaggica. imenso o nmero de especialistas que afirma ser a avaliao um recurso autoritrio, elitista, de manuteno do status quo, de submisso etc. Esse conceito, amplamente difundido, s verdadeiro se o professor utilizar de forma incorreta a avaliao. Porque nada bom ou mau em si. O uso que se faz dos objetos, das ideias, das palavras que pode ser bom ou mau, adequado ou inadequado, til ou nocivo. As afirmativas acima grifadas so, portanto, verdadeiras, porm apenas em parte... O rendimento do aluno de fato depende diretamente do trabalho docente. Se ele ensina bem, usa metodologia adequada, incentiva e cria oportunidades de reflexo, reviso e fixao, se h recuperao paralela sempre, em boa parte dos casos o aluno atinge os objetivos desejados. Em tese preciso deixar bem claro. Porque a aprendizagem no obedece a uma relao de causalidade inequvoca... A aprendizagem no depende apenas dos recursos de ensino, nem apenas do professor, mas tambm de muitas outras variveis... Condies de trabalho, remunerao adequada dos docentes, formao e atualizao dos professores, infraestrutura fsica, sem falar nas condies dos educandos. As afirmativas destacadas (sem demrito algum s autoras) esto, a meu ver, carregadas de imenso laivo psicologizante, que, de to imbricado no pensamento da maioria, se tornou nos nossos dias difcil at de ser percebido especialmente por quem ama ensinar e est imbudo dos melhores propsitos humansticos. Mas reafirmo: reprovao no destri aluno. Se isso fosse verdade, quantos de ns estaramos vivos e produtivos hoje? saudvel considerar, alm do mais, que o homem no apenas psique. tambm um ser social. Somos indivduos constitudos de capacidade de auto-superao, de caractersticas que nos diferenciam e que nos revelam mais complexos do que os textos citados sugerem. O ser humano capaz hoffmann, J. "Por uma mudana efetiva na avaliao". In Direcional Escolas, pp. 4-8, ano 1, n 9, outubro de 2005.15

26 de superar dificuldades inimaginveis. Sob incrvel tortura, resistir para salvar a vida de um amigo. Passando sede, fome, frio e necessidades terrveis, persistir, resistir e sobreviver, como ocorreu no Holocausto... capaz tambm de motivar-se, de estabelecer metas e objetivos de vida, de lutar com inesgotveis e insuspeitados recursos para satisfazer sbitas necessidades ou desejos, bem menos essenciais do que aqueles aos quais nos referimos acima... Na sociedade de consumo, no dia-a-dia dos nossos alunos, isso pode significar coisa bem diferente: juntar durante semanas ou meses um dinheirinho, fazer "bicos" para "ganhar um extra" at conseguir comprar um determinado tnis de determinada marca, cobiado por todos os jovens naquele momento. Como se v, as novas geraes so perfeitamente capazes de se superar e alcanar objetivos para os quais estejam motivadas. E que vo alm dos meramente constitudos pela ao do professor. So tambm capazes de reconhecer suas prprias responsabilidades (e irresponsabilidades), de decidir o que desejam ou no fazer. Trazem consigo, desde o nascimento, mecanismos inatos de reequilibrao face a dificuldades, assim como um equipamento cognitivo particular que determinar a forma peculiar e individual de reagir diante do sucesso ou do fracasso. Incentivado adequadamente, o jovem pode canalizar esse potencial para superar dificuldades de aprendizagem tambm, por que no? Bem, o leitor dir, isso que, se espera, o professor faa. Certo. Mas o aluno, com igual fora, tem que ter conscincia de que o saber, a aprendizagem, um trunfo para ele, aluno. Que tem que ter tanto empenho para alcanar esse propsito quanto tem para comprar o tnis "de marca"... Portanto, ao aceitarmos como verdade que "cabe ao professor despertar a motivao dos alunos" (e nesse caso fica implcita a ideia de que cabe unicamente ao professor, visto que nada mais se acrescenta premissa), restringimos e subestimamos a capacidade dos jovens no seu processo de independentizao, de responsabilizao social, assim como ignoramos o livre-arbtrio do qual somos todos dotados. A responsabilidade da aprendizagem tambm uma funo do aluno no apenas da escola ou do professor. Em funo disso, hoje, os alunos esperam que a performance do professor se assemelhe de um showman, uma espcie de mgico que os encante... Esperam tambm que em cada aula o mestre lhes apresente desafios, questes engraadas, divertidas e interessantssimas, alm de ter a capacidade de gerir os inmeros (e cada dia mais violentos) conflitos que ocorrem em sala, decorrentes da falta de limites e da violncia social. Esperam, alm do mais, que o professor consiga trabalhar integrando os contedos bsicos (leitura, escrita, clculos bsicos) e os temas transversais (Educao para o Trnsito, por exemplo!), porque sozinhos (tem muito profissional da rea escrevendo isso) os alunos, coitadinhos, no vo conseguir formar o todo... S no sabem, esses pobres alunos, formados e iludidos por essa viso idealizada do que seja "ensino moderno", que as condies de formao e de trabalho docentes no mudaram... E no sabem tambm que o que hoje criticado por alunos e por muitos renomados docentes como "contedos desinteressantes" poder a mdio prazo ser exigncia para que possam sobreviver

27 financeiramente sozinhos... Mas a gente no gosta e no quer ler, nem fazer redao, tudo na escola chato! Estudar Geografia, ento, nem pensar, no vamos viajar, nem nada, isso vai servir pra qu, meu... Esperam, acima de tudo, que o querido mestre coadune tudo isso com alguma frmula especial que os faa interessar-se pelo que est sendo desenvolvido na aula seja um contedo, uma habilidade ou uma nova competncia. Ento, se a aula no est to "maneira" como navegar na Internet, jogar um joguinho eletrnico na lan-house mais prxima de casa ento nesse caso... Me desculpem, t fora! Nada a ver com o que "eu gosto". Vou pra casa falar mal desse professor no meu blgui! Acho melhor... demais!!!! Antes de Freud, ningum era "destrudo" por uma nota ou por uma reprovao (nota zero, alis, expresso que causa grande comoo e repulsa nos meios educacionais. Em geral, quem avalia apenas por meio de provas e notas quase automaticamente passa a ser considerado "carta fora do baralho", professor antiquado, autoritrio, desconhecedor das modernas teorias de aprendizagem). bvio que ningum se sente feliz em ser reprovado ou em tirar zero, mas, se foi surpreendido com o gabarito que "pegou" de um coordenador mais distrado, ou se no estudou absolutamente nada o ano todo... Tem ou no que assumir as conseqncias dos seus atos? No defendemos hoje uma escola que d oportunidades iguais a todos? Ento o que estamos fazendo? Fingindo que o aluno aprendeu e deixando que ele progrida na numerao da srie? Est na quarta, na quinta, na oitava, mas no s no aprendeu a ler e escrever, como tambm no aprendeu a se esforar, a lutar pela vida e fazer jus ao direito educao que a lei lhe garante! assim que formamos cidados? Se, anos mais tarde, trabalhando num escritrio, fbrica ou em qualquer emprego, no produzir nada, o que ocorrer? Ser dispensado, demitido. Sem tirar nem pr. E o que estamos ensinando na escola de hoje? Que responder pelas suas aes "d" trauma? Que, se a aula no versa sobre um contedo fcil ou divertido ou de uso imediato, ele no precisa aprender, e tem direito de achar que o professor que no sabe trabalhar direito? Estamos formando nas novas geraes o conceito de que, na vida, as coisas vo ser fceis e divertidas sempre? Desacreditamos tanto na capacidade dos nossos jovens a ponto de os considerarmos incapazes de juntar, de reunir num todo, transferindo conhecimentos, que aprendem nas aulas de Geografia, Matemtica ou Literatura? Essa "facilitao" no seria o fator incapacitante? No menospreza o aluno? No superproteo? Se um aluno retido numa srie (aps uma avaliao justa, reitero), acreditamos mesmo que ele no tem reservas e foras internas, emocionais e cognitivas, que o capacitam a "encarar os amigos" que foram promovidos porque estudaram? Diz-se que hoje a escola deve desenvolver competncias (mais que ensinar "contedos" tem gente que usa o termo com repulsa, como se aprender contedo fosse algo desprezvel). Tudo bem. Gostaria que algum me convencesse de que desenvolver conscincia e responsabilidade sobre seu prprio desempenho no uma competncia alis, essencial nos dias de hoje...

28 O que faz de fato mal a injustia e a falta de oportunidade. Quer dizer, se o aluno aprendeu, atingiu os objetivos mnimos ou at bem mais, mas ainda assim foi reprovado, avaliado inadequadamente, a diferente. Ficar revoltado, com baixa auto-estima ou "traumatizado" nesse caso, sim perfeitamente possvel. Mas em que percentual isso ocorre nas nossas salas de aula16? Algum j fez alguma pesquisa sria, cientfica, a respeito? Em suma, tudo vai depender da forma pela qual o processo acontece antes, durante e ao final. Se o professor usou recursos metodolgicos adequados, fez avaliao contnua, deu vrias oportunidades de fixao e reviso de contedos, avaliou de novo, promoveu recuperao, enfim, deu de fato assistncia ao aluno, e ele, ainda assim, no atingiu os objetivos mnimos necessrios continuidade dos estudos nas sries seguintes nesse caso, reprovar no destri. O enfoque que se infiltrou na educao parece querer fazer crer que, de hora para outra, o homem perdeu todo o seu potencial de luta, de reao s dificuldades e s frustraes. como se tivesse se tornado incapaz de reagir a qualquer problema ou dificuldade. No modelo tradicional de ensino, em que o poder do professor era total (e a injustia, por isso mesmo, bem mais provvel), os educadores pareciam crer que os alunos eram esticos17. Agora, numa mudana de 180 graus, parecemos acreditar que somente por meio do hedonismo18 possvel aprender... Porque sempre tanto exagero, porque no ficarmos no equilibrado meio-termo aristotlico? Afinal, o que hoje a vida fora da escola? No h competio? As pessoas no so avaliadas? Os postos de trabalho esto a, s esperando as novas geraes assumi-los? Ao contrrio! Todos nos queixamos de que hoje a sobrevivncia trabalho, moradia, salrio est difcil. E todos (at boa parte dos grandes herdeiros de imprios financeiros tm que ter competncia) temos que viver essa realidade, concordemos com ela ou no! Podemos lutar, sim, para que a realidade mude, mas, enquanto isso no acontece, classe A e B no Brasil so os que tm renda familiar em torno de trs mil reais! E sabemos que so menos de 10% da populao... E as outras classes? Como julgar, diante dessa realidade, que a escola no tem como compromisso preparar os alunos para que tenham melhores chances na16

MEC, Inep, Pesquisa Nacional Qualidade da Educao. A Escola Pblica na Opinio dos Pais. Maio/2005: "Mais de 78,8% dos pais ou responsveis afirmaram que os filhos no costumam reclamar da forma como so avaliados na escola e deram nota mdia de 8,3 para a forma como os docentes julgam o desempenho dos alunos. Entretanto, 80,6% dos pais ou responsveis entrevistados concordam com a frase "o medo da reprovao faz os alunos estudarem mais" e para 58,3% "os trabalhos para complementar as notas fazem com que os alunos estudem menos". E, por fim, para 62,8%, "a aprovao no final do ano est muito fcil" 17 Denominao dada linha filosfica do grego Zeno de Cicio (340-264) e seus seguidores, que buscavam a impassibilidade em face da dor, da adversidade e do infortnio. 18 Filosofia que considera o prazer individual e imediato o nico bem possvel, princpio e fim da vida.

29 vida concreta, que existe l fora? Querer que o filho faa o curso superior na melhor universidade (em qualquer rea de conhecimento) no crime nenhum, realismo, amor... E a escola que trabalha com qualidade faz perfeitamente as duas coisas (que eu pessoalmente vejo como uma apenas): ensinar muito bem as competncias e saberes que a sociedade atual exige e formar cidados conscientes, solidrios no predadores sociais. Quem disse que uma coisa incompatvel com a outra? Quem que acha que h a alguma dicotomia? E baseado em que se fazem essas afirmativas? Pode ser potico imaginar uma escola em que os alunos riem do momento da entrada ao da sada; em que todos os docentes so incrivelmente criativos e imaginosos a ponto de o aluno "aprender brincando"; em que toda a equipe se rene uma vez por semana ou mais para planejar aulas integradas; em que todos os docentes tm tempo e condies de infraestrutura para, em vez de falar sobre vegetais, levar seus quarenta alunos ao Jardim Botnico para ver in loco cada folha, cada formato, cada raiz; uma escola tambm em que todos os colegas so legais, no h agressividade, nem grupinhos, nem bullying.... No h dvida; um sonho... e potico! Mas onde estamos agora no Brasil, falando da realidade! Somos um dos pases que mais tm analfabetos adultos, analfabetos jovens e... estudantes quase analfabetos! Somos um pas que ainda no levou a srio o propsito de educar sua gente. As medidas que tomam os governantes so por vezes risveis ou inacreditveis em suas contradies ideolgicas19 e at legais. Ento, como e por que pregar a implantao de formas de ensinar que nem nos pases mais ricos e com igualdade social existe ainda? Preparar para a vidaum dos objetivos inerentes escola moderna no inclui entre as competncias a serem desenvolvidas a capacidade de luta, de superao, de crescimento pessoal (luta tica, legal e transparente, bem esclarecido)? E ainda se condenam os pais e as escolas que "preparam para o vestibular"! Como se fosse um absurdo um pai querer dar ao filho melhores oportunidades no futuro! E ser que as escolas que preparam bem para o vestibular realmente ensinam mal? No formam cidados? Ser que sempre se tem que escolher entre uma coisa e outra? Por que no as duas? H muitas escolas que fazem as duas muito bem! As provas do vestibular de acesso s mais bem conceituadas universidades (pelos critrios do prprio MEC) so exatamente aquelas que medem o grau e a capacidade de o aluno refletir- analisar e avaliar, enfim, de transferir conhecimento! E essas no so certamente as que avaliam o conhecimento chamado de bancrio por Paulo Freire... Analisem algumas dessas provas! Esto disposio de quem queira, nos sites nos jornais educativos s procurar... Ento por que ser que somente no ensino bsico brasileiro crianas e jovens so considerados to indefesos, sem atributos, sem capacidade de vencer obstculos (estudar, prestar ateno, se concentrar, suar a camisa) Acredito que o leitor recorde no quero citar nomes que recentemente, no estado do Rio de Janeiro, se tentou proibir o ensino da lei da evoluo de Darwin...19

30 a ponto de no suportarem uma nota baixa ou uma sano educacional? Quem realmente no estudou nada, no estava nem a para prestar ateno, se envolvere esses existem tambm tero mais tarde, na vida em sociedade, capacidade de luta, caso forem ascendendo sem esforo algum at a oitava srie? Na hora de trabalhar, alguma empresa vai pensar na auto-estima dele? Ou na capacidade incrvel de fazer "embaixadinhas" ou de cantar bem? S se for esse o tipo de competncia requerida para a vaga... E somente nesse caso! Ao avaliar determinada habilidade por exemplo, fazer clculos matemticos simples envolvendo multiplicao , o professor tem que averiguar se essa habilidade (e no outra) foi adquirida por cada um de seus alunos. A partir da, tomar decises pedaggicas relacionadas (dar novos conceitos, rever os que no foram assimilados, explicar tudo de novo de outra forma etc.) No pode nesse momento pensar, ah, o Joo no acertou nenhum dos exerccios propostos, mas como ele timo para organizar as festas da turma, no posso dar a ele um conceito insatisfatrio. Pode sim! Simplesmente porque o fato que a despeito de outras capacidades que o Joo possua nesse aspecto especfico ele no logrou o que seria o mnimo desejvel. Tambm dentro da mesma linha (no competitiva nem destruidora), o docente pode dar conceitos altos "nota dez" aos que demonstraram dominar aquele contedo, competncia ou habilidade. Chama-se a isso "comparar"? No. Isso ser justo na avaliao daquele tpico. j em outro momento, quando for verificar outra competncia, por exemplo, capacidade de organizao de eventos, o Joo poder ter a sua "nota dez" ou o seu conceito excelente. E outros no se no tiverem boa performance. O que no se pode misturar alhos com bugalhos, porque em vez de estarmos sendo justos e fazendo uma avaliao mais completa e complexa (como se quer hoje), em pouco tempo ficaremos incapacitados para analisar ou julgar o crescimento dos alunos e o trabalho desenvolvido. Os dados colhidos no processo avaliativo, j que a isso que a avaliao moderna se prope (visualizar, concluir e analisar a situao para agir de forma a melhorar o processo e o produto), precisam ser analisados objetivamente! Dizer que nossas escolas s se preocupam com competio e comparao uma perigosa generalizao. A escola se preocupa com isso tambm, mas em parte. H vrias dcadas que o sentido de avaliar mudou, passando a englobar vrios aspectos20. Ainda assim, os resultados que o20

Modernamente se preconiza a avaliao de todo o processo de aprendizagem, e no apenas do produto ao fim dos trabalhos desenvolvidos. Considera-se imprescindvel englobar, alm das provas e testes usuais, a observao contnua do aluno individualmente no decorrer de todo o perodo de aulas. Na avaliao so considerados diversos atributos do desenvolvimento emocional, social e da inteligncia. Para tanto, o professor deve utilizar variados instrumentos, como fichas de observao para aferir habilidades e competncias; trabalhos individuais e de grupo; auto-avaliao etc. Para julgar adequadamente o desempenho dos alunos, devem ser considerados aspectos cognitivos, motores, afetivoemocionais, alm de habilidades sociais, como insero social e relacionamento pessoal.

31 MEC, Inep, Unesco e outras entidades vm colhendo como j mostramos no traduzem melhorias do ponto de vista qualitativo. Ignorar que, no Brasil, boa parte dos alunos que chegam ao professor, a cada incio de ano, est despreparada para o nvel em que se encontra (seja por falta de pr-requisitos, deficincias escolares anteriores, problemas familiares, sociais) desconhecer a realidade tanto da rede pblica quanto de parte da particular. No entanto, nesse exato momento que os docentes vm percebendo que h uma presso sutil s vezes, inequvoca em outras no sentido de diminuir o nmero de alunos com notas ou conceitos "baixos". No algo explcito, mas h uma percepo de que se deve evitar reprovar. Isso no que se refere ao ensino particular, porque na rede pblica a adoo do ensino por ciclos e a progresso continuada acabou com o problema nas primeiras sries pelo menos o da falta de vagas... Promover um aluno uma grande alegria para todo professor consciente, mas aprovar quem no alcanou os objetivos educacionais mnimos da srie angustiante. Porque um bom profissional sabe que est condenando essa criana ao fracasso maior o fracasso na vida. Estou exagerando? No. Hoje se exigem mais saber e competncia mesmo em profisses que em princpio no exigem grande formao. E o aluno sai da oitava srie mal sabendo preencher um formulrio?!... a isso que chamamos "assistir emocional e afetivamente"? Enquanto isso, na escola... "A reteno traumatiza o aluno", afirmam especialistas, sem, contudo, revelar em que estudos cientficos se baseiam, que comprovam a veracidade da relao. A renovao tambm apontada como principal responsvel pela evaso escolar. Pausa para reflexo: Por que o aluno abandona a escola? Por ter sido reprovado duas, trs vezes ou por no ter aprendido? Por que ficou com "baixa auto-estima" ou por perceber que, aps anos, continua sem saber ler, escrever, entender um grfico? Por estar "traumatizado" ou por ter perdido a esperana de progredir?Por ter sido reprovado ou porque precisa sobreviver, e dali, ele ja compreendeu, nada mais vir? Devolve-se a esperana a uma criana ou jovem entregando-lhe um certificado de concluso do Ensino Bsico, ainda que ele se perceba despreparado para lutar pela vida? O sistema de ciclos e a progresso continuada resolvem o problema da qualidade do ensino? Devolvem realmente a auto-estima ao aluno? A "progresso continuada" (Manobra poltico-administrativa, para melhorar o fluxo de vagas nas escolas pblicas. Poder algum leitor dizer: "Mas, Tnia, em muitos pases que tiveram excelentes resultados, Espanha e Coreia do Sul, por exemplo, adotou-se e adota-se a progresso continuada! Por que no pode dar certo no Brasil?". ) sem sua gmea siamesa -- aprendizagem de qualidade" faz o aluno recuperar a f na escola e em si prprio? Ou apenas ajuda a reconduzi-lo a sala de aula, agora com a garantia (aprenda ou no) de que finalizar o curso? Trata-se

32 de remdio ou placebo21? Essencial foi que se deu prioridade Educao Bsica, o que significou investimento financeiro macio e que chegou ao destino de fato... No Brasil se gasta onze vezes mais com Educao Superior do que com o Ensino Bsico! Nos pases citados, a relao de apenas o dobro. Alm dessa diferena fundamental, plano ainda do MEC investir, at final de 2006, 75% dos recursos financeiros de que dispe, inaugurando mais 35 universidades federais (ai de ns). Porque no se trata de apenas mudar a forma de progresso! Nesses pases, a progresso continuada foi apenas uma dentre toda uma srie de medidas, to ou mais importantes. A atual Lei de Diretrizes e Bases j fez nove anos! Est na pradolescncia! Estipula a obrigatoriedade da educao pr-escolar; o ensino fundamental com nove anos de durao; a formao em nvel superior dos docentes; o aumento gradual do nmero de horas dos alunos nas escolas (acabar com os trs turnos nas escolas pblicas, que reduz a jornada diria de aulas para trs horas e meia); a obrigatoriedade da recuperao paralela; entre outras excelentes propostas. A Dcada da Educao instituda pela LDB, em final de 2006... Temos uma lei timal Mas onde esto os resultados? O professor refm Final da histria. Repito com tristeza: professor hoje refm! Refm, primeiramente, da m qualidade de ensino que ele prprio recebeu. Afinal, tambm o professor comeou como aluno ou no? E, se a Educao Bsica de m qualidade (sendo otimista, h pelo menos duas dcadas), foi essa a qualidade de ensino que o professor recebeu. Bem ou mal, est formado. E logo comeou a trabalhar (Falta tanta coisa em educao, mas emprego das poucas que h de sobra...). Comea trabalhando em um colgio, mas, ganhando o que ganha, logo percebe que precisa de mais... Em pouco tempo est em outros dois e comea a correr sem parar, para poder cobrir suas necessidades um pouco mais dignamente; para no se atrasar; para corrigir as provas de tantos alunos... Est, pois, sobrecarregado. Mas, a cada dia, a cada ano, novos objetivos, novas metodologias, novas formas de avaliao vo surgindo. Ele est sem tempo at para corrigir Uma prova daquelas comuns, sabe, de mltipla escolha imagine avaliar qualitativamente! Tem quatrocentos alunos! V l saber qual qual, quem quem! Algum da coordenao explica numa reunio que o importante agora que os professores trabalhem em conjunto, integrando os componentes curriculares, fazendo com que o aluno participe mais etc. etc. etc. Ele at concorda teoricamente, o Mtodo de Projetos incrvel! Ele tambm acredita nisso mesmo! Mas a maioria no tem tempo para se reunir, outros no querem mais trabalho do que j tm. Como fazer ento? Por outro lado, boa parte dos professores no sabe ainda nem como planejar nem como executar o novo mtodo, afinal tiveram uma ou duas reunies (Forma farmacutica sem atividade, cujo aspecto idntico ao de outra farmacologicamente ativa. Holanda, A.B. Dicionrio virtual da lngua portuguesa, Sculo XXI)21

33 com as equipes das coordenadorias regionais para "conhecerem" o processo e mais nada, porque aprender mesmo outra coisa... Bem, ele tem que concordar: trabalhar com projetos pode at ser melhor em termos de resultados finais, mas que mais complexo do que fazer um plano de aula simples, l isso tambm verdade... Tem que planejar, integrar as atividades, desenvolver o processo e avaliar em conjunto! Seno, no funciona. Portanto, ainda que queira, no consegue e acaba fazendo do jeito que sabe do jeito que d, na verdade! Mas o professor consciente, aquele que trabalha de forma digna e produtiva (em Educao, como em qualquer rea, h quem no se preocupe com a qualidade do trabalho, assim como existem os que nem conscincia tm de suas deficincias, sejam metodolgicas ou de contedo), refm tambm de outras variveis, alm da formao deficiente que ele prprio recebeu. O professor refm tambm: do tempo de que necessita, mas de que no dispe, para superar deficincias bsicas de formao; das presses internas que sofre do sistema que o impulsiona a implementar tcnicas e mtodos que lhe exigem dedicao quase individual a cada aluno e que ele no consegue, porque no "d tempo"; da prpria conscincia que lhe revela sua impotncia para realizar uma avaliao qualitativa, tal qual se preconiza atualmente; dos alunos, que hoje o enfrentam e desafiam abertamente, em muitos casos; da famlia dos alunos, que perdeu a autoridade sobre os filhos e pressiona a escola para faz-lo em seu lugar; da sociedade, que volta e meia surpreende professores e gestores com medidas cautelares, mandados de segurana e processos... Outra pausa -para reflexo: D para imaginar, sem muito esforo, o que sente e pensa um professor em tal situao, no d? Imaginemos ento: A, em meio correria e presses do dia-a-dia, um aluno grita com ele, depois o ofende e desautoriza diante dos demais... Ele no responde, porque sabe que no deve, fala com cautela que tero um encontro na coordenao para reverem o ocorrido, mas o aluno sai da sala sem que ele autorize e ainda bate com a porta. A sua volta os demais jovens o encaram; h expectativa alguns com certa ironia no olhar, outros com pena... Ele continua a aula, mas fica deprimido, sentindo-se, meio assim, como dizer?