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Livro produzido no âmbito do projecto “A génese do jornalismo · Apêndice 1: Índices-resumo do Mercúrio Português 524 ... o Mercúrio apresenta como novidade em relação

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Livro produzido no mbito do projecto A gnese do jornalismo: Peridicos noticiosos do sculo XVII em Portugal e na Europa,

referncia PTDC/CCI-JOR/110038/2009, financiado pela Fundao para a Cincia e a Tecnologia, no mbito do Programa Operacional

Temtico Factores de Competitividade (COMPETE) do Quadro Comunitrio de Apoio III, comparticipado pelo fundo europeu FEDER.

Jorge Pedro Sousa (Org.), Maria do Carmo Castelo-Branco, Mrio Pinto,Cludio Moreira, Duarte Pernes, Eduardo Zilles Borba e Patrcia Teixeira.

Estudos sobre o MercrioPortugus (1663-1667).

Discurso e Contexto.

LabCom 2012

Livros LabComwww.livroslabcom.ubi.pt

Srie: Estudos em ComunicaoDireco: Antnio FidalgoCoordenao e Edio: Jorge Pedro SousaDesign da Capa: Eduardo Zilles BorbaPaginao: Jorge Pedro Sousa e Eduardo Zilles BorbaCovilh, Portugal, 2012.

ISBN: 978-989-654-099-9.

Ttulo: Estudos sobre o Mercrio Portugus (1663-1667). Discurso e Contexto.

Copyright Jorge Pedro Sousa (Coord.), Maria do Carmo Castelo-Branco, Mrio Pinto, Cludio Moreira, Duarte Pernes, Eduardo Zilles Borba e Patrcia Teixeira.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicao deve ser reproduzida, alojada em sistemas de troca de dados, ou transmitida, em qualquer formato ou por qualquer motivo, eletrnica, mecnica, fotocpia, gravao, e demais, sem a autorizao dos autores.

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AGRADECIMENTOS

Fundao Fernando Pessoa e Universidade Fernando Pessoa pelo apoio logstico e financeiro concedido a este projecto.

Ao CIMJ, pelo enquadramento. Ao LabCom da UBI, pela colaborao e pela confiana.

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ndicePRLOGO 1Jorge Pedro Sousa

CAPTULO 1: Conjuntura nacional e internacional no sculo XVII (1640-1667) 5Patrcia Teixeira

CAPTULO 2: Jornalismo e cultura impressa na segunda metade do sculo XVII 107Jorge Pedro Sousa (coolaborao de Eduardo Zilles Borba)

CAPTULO 3: Anlise formal e do discurso do Mercrio Portugus(1663-1667) 199Cludio Moreira e Duarte Pernes

CAPTULO 4: Anlise formal do Mercrio Portugus 359 Mrio Pinto

CAPTULO 5: Para o estudo da recepo ao Mercrio Portugus (1663-1667) 491 Maria do Carmo Castelo-Branco

APNDICES 523

Apndice 1: ndices-resumo do Mercrio Portugus 524Duarte Pernes e Cludio Moreira

Apndice 2: Cronologia 1663-1667 568Patrcia Teixeira

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PRLOGOublicado mensal e ininterruptamente entre 1663 e 1667, o Mer-crio Portugus foi o segundo peridico que, ao que se sabe, surgiu em territrio nacional. Sucedeu, por iniciativa do secre-

trio de estado Antnio de Sousa de Macedo, Gazeta alcunhada da Restaurao, cuja publicao tinha cessado em 1647. Redigido por ele at 1666, conseguiu ser publicado com rigorosa periodicidade mensal, um feito que a Gazeta s tinha logrado durante os primeiros meses de publicao (embora, em certos meses, tivesse sido quinzenal).

Embora ambos fossem o resultado da iniciativa privada de particu-lares, o Mercrio apresenta como novidade em relao Gazeta que publicava abundante informao do estrangeiro (na sua segunda fase, denominou-se mesmo Gazeta de Novas Fora do Reino), traduzida, so-bretudo, dos peridicos franceses o enfoque informativo no pas. A guerra da restaurao da independncia de Portugal, o governo de Cas-telo Melhor e o reinado do incapaz D. Afonso VI, ameaado interna e externamente, foram temas incontornveis. Mas semelhana da Gaze-ta, e tal como esta inspirado no modelo da Gazette de Renaudot, o Mer-crio colocou a informao ao servio da propaganda. Nesse sentido, o Mercrio foi um jornal de combate poltico, trabalhando simbolicamen-te para legitimar o rei e o seu governo e a guerra independentista travada contra Castela.

Uma das razes para esse facto encontra-se nas figuras dos promo-tores e redatores de ambos os peridicos. A Gazeta foi promovida e redigida por iniciativa de clrigos letrados envolvidos na causa da res-taurao da independncia do reino; o Mercrio resultou da iniciativa de um homem poltico que lutava, na corte e no pas, pelo triunfo do

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partido que defendia o soberano, a guerra e o governo de Castelo Melhor Antnio de Sousa de Macedo.

Este livro, o segundo a ser publicado no mbito do projeto A G-nese do Jornalismo: Peridicos Noticiosos em Portugal e na Europa (PTDC/CCI-JOR/110038/2009), tem por finalidade analisar formal e simbolicamente o discurso do Mercrio Portugus, inserindo ao mes-mo tempo o peridico no seu contexto. O primeiro captulo descre-ve, assim, o contexto histrico em que o Mercrio surgiu e evoluiu; o segundo captulo relembra o contexto comunicacional seiscentista; o terceiro, o quarto e o quinto captulos so aqueles que se debruam especificamente sobre o discurso do peridico.

Espera-se que esta obra agora publicada possa contribuir para o des-velamento da gnese do jornalismo ou, pelo menos, do periodismo em Portugal, situando devidamente o fenmeno no seu contexto na-cional e europeu.

Este livro registe-se, finalmente, em tom de alerta assumi-damente uma obra coletiva, elaborada por autores com diferentes ba-ckgrounds. O leitor encontrar, aqui, vrias formas de olhar para uma mesma realidade; vrios modos de a descrever e interpretar; vrias ma-neiras de reduzir as descries e interpretaes a escrito; vrios estilos, enfim. Trata-se, no entanto, de uma obra unida pelo tema central que a motiva o Mercrio Portugus. A pluralidade de abordagens e estilos apenas a enriquece.

Jorge Pedro SousaInvestigador-responsvelProjeto PTDC/CCI-JOR/110038/2009.

CAPTULO 1

Conjuntura nacional e internacional no sculo XVII (1640-1667)Patrcia Oliveira Teixeira1

sculo XVII viu surgir, em Portugal, a Gazeta da Restaurao e o Mercrio Portugus, publicaes que marcam o incio da im-prensa peridica neste pas. Durante grande parte deste sculo,

Portugal viveu sob o domnio de Espanha, tendo tido, neste perodo2, trs reis espanhis, Filipe I, Filipe II e Filipe III. Durante os trs reinados dos monarcas espanhis, a realidade poltica portuguesa sofreu modificaes decisivas.

S em 1640, com a ascenso ao trono de D. Joo I, se restaurou a independncia e o pas voltou a ser governado por um rei portugus. A Restaurao da Independncia, encabeada pela Casa de Bragana, s foi, no entanto, possvel, entre outras coisas, porque a Espanha, envolvida directamente na Guerra dos Trinta Anos, no teve capacidade de resposta imediata conspirao dos aristocratas portugueses que acabaria por re-por o meio ibrico, anterior a 1580, e porque Filipe III se vinha mostran-do incapaz de defender e manter o seu imprio comercial, o que, para os portugueses, era motivo suficiente para passar a considerar desnecessria a unio das duas Coroas (Labourdette, 2003, p. 290).

Assim que foi instaurado, o regime portugus independentista, sado da Restaurao, logo procedeu consolidao da sua posio. Para tal,

1 Doutoranda em Cincia da Informao Jornalismo, na Universidade Fernando Pessoa (Porto, Portugal). Bolseira de investigao da Fundao para a Cincia e a Tecnologia (FCT). Investigadora do Centro de Investigao Media e Jornalismo (CIMJ). Email: [email protected] 1580-1640.

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procurou reorganizar administrativa, econmica e militarmente o Reino, bem como desenvolver alianas com os principais inimigos da Espanha (Frana, Holanda, Sucia, Gr-Bretanha, etc.), de forma a ter, em caso de necessidade, apoios. Ao mesmo tempo, o novo regime iniciou vrias ofensivas diplomticas para legitimar o novo ocupante do trono, D. Joo IV. Tentou, tambm, retomar o controlo perdido de alguns dos territrios ultramarinos portugueses e conservar os que possua. De qualquer forma, numa Europa em acentuada transformao, adivinhava-se, j na primeira metade do sculo XVII, que os anos ureos de Portugal tinham ficado para trs. A Guerra da Restaurao, que se seguiu ao golpe de Estado, veio contribuir de forma decisiva para enfraquecer o pas, aps mais de um sculo de descobrimentos e conquistas que haviam feito a grandiosi-dade da nao.

A Europa seiscentista tambm viveu tempos de mudana, marcados por vrios conflitos, como a Guerra dos Trinta Anos ou a Guerra Civil Inglesa. No sculo em que o jornalismo lusfono comeou a dar os pri-meiros passos, sculo XVII, a histria da Europa acabou por marcar, tambm, de forma particular, a histria do jornalismo.

1. Portugal no sculo XVII

1.1. A Restaurao da Independncia

A Restaurao da Independncia, em 1640, veio colocar no trono de Portugal um rei portugus, D. Joo IV, depois de sessenta anos (1580-1640) de regime de monarquia dualista, em que as coroas dos dois pases couberam ambas a Filipe II, Filipe III e Filipe IV3, todos eles espanhis4.

3 Filipe I, Filipe II e Filipe III de Portugal4 Saraiva (1983, pp. 19 e 20) afirma que durante os trs reinados dos monarcas espanhis, a realidade poltica portuguesa sofrera modificaes decisivas, sendo as mais salientes o distanciamento da corte e o enfraquecimento do poder real que desse facto resultou. A essa situao material de ausncia acresciam os limites voluntariamente estabelecidos por Filipe II ao arbtrio da autoridade no reino de Portugal () [sendo que] tal situao [viria a ter] a maior importncia na evoluo poltica portuguesa, porque a primeira metade do sculo XVII, durante o qual se desenvolveu nas monarquias europeias o ab-solutismo, foi marcada em Portugal por uma espcie de congelamento dessa tendncia..

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Nos seus primrdios, o 1. de Dezembro foi, nas palavras de Ramos (2009, p. 296), um tpico golpe palaciano, perpetrado por um grupo de algumas dezenas de fidalgos, mas rapidamente se assumiu como algo mais, que viria a alterar definitivamente o rumo da nao. Lousada (2012, p. 29) corrobora esta ideia mas acrescenta que necessrio recuar a 1580, altura em que Filipe II agrega Portugal a Espanha, para melhor compreender a gnese deste golpe. Oliveira Marques (1973, p. 440) salienta que pro-clamar a separao fora, realmente, fcil, e que o mais difcil acabou por ser mant-la, o que custou vinte e oito anos de luta e provou ser tarefa muito mais rdua, at porque a Espanha5 estava decidida a defender a legitimidade do seu poder (Labourdette, 2003, p. 328). Mas esta separa-o tornara-se inevitvel, no s devido ao descontentamento que se vi-nha acentuando para com a governao espanhola, que Silva e Hespanha (1993, p. 24) apelidam de sentimento anticastelhano, mas tambm pelo exacerbar do sentido de nacionalidade que se vinha a fazer sentir e cres-cer, por entre os portugueses (Bourdon, 1973; Labourdette, 2003; Oli-veira Marques, 1973; Verssimo Serro, 1983).Valladares (2006, p. 33) acrescenta que a chamada Restaurao de Portugal comeou no mesmo dia em que Filipe II, cabea dos Habsburgos espanhis, decidiu reclamar os seus direitos ao trono vago do Portugal dos Avis..

De facto, Oliveira Marques (1973, p. 436) refere que parece no haver dvidas de que a ideia de nacionalidade esteve por trs da Restaurao da Independncia plena de Portugal. O autor acrescenta que os cinco s-culos de governo prprio permitiram que se fosse forjando e fortalecendo uma nao que rejeitava qualquer espcie de unio com o pas vizinho, at porque, para a maioria dos portugueses, os monarcas Habsburgos mais no eram que usurpadores, que vieram adquirir Portugal atravs de conquista e no de unio (Oliveira Marques, 1973, p. 436). Veloso (1933, p. 273) acrescenta que aliciante ou autoritria, a dominao castelhana nunca conseguiu apagar totalmente em Portugal a saudade da indepen-dncia.. Labourdette (2003, p. 313) adita que

5 O termo Espanha usado nesta obra para referir, de forma comum, o pas vizinho de Portugal, embora se saiba que, nesta poca, a Espanha ainda no existia como unidade poltica.

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o sentimento nacional era demasiado forte na alma lusitana para que um movimento favorvel independncia no surgisse contra aqueles que sempre haviam considerado seus inimigos hereditrios.

No obstante a justificao pelo seu enquadramento nacional6, a Res-taurao da Independncia portuguesa no deixa de ser explicada por vrias outras razes. Algumas dessas razes so culturais. Durante os sessenta anos de domnio espanhol, a castelhanizao cultural do pas avanou depressa. Muitos artistas e autores portugueses fixavam resi-dncia em Espanha, aceitando trabalhar segundo os padres espanhis e escrevendo na sua lngua. Isto levou a que se considere, erroneamente, segundo Oliveira Marques (1973, p. 437), que houve uma grande deca-dncia cultural, a partir de 1580, quando, na verdade, os melhores va-lores portugueses contribuam para a riqueza do mundo das artes e das letras do pas vizinho, Espanha, e para a magnificncia do sculo de ouro espanhol (Labourdette, 2003, p. 313). Alm do mais, muito do esplio cultural que existia em Portugal fora levado pelos reis espanhis para fora do pas, passando a residir nos diversos palcios de Espanha (Oliveira Marques, 1973, p. 437). O esquecimento votado cultura levou a que muitos intelectuais e escritores portugueses, como, por exemplo, Francisco Rodrigues Lobo ou frei Lus de Sousa, sabendo com per-tinncia que os seus esforos seriam vos sem a restaurao da inde-pendncia poltica, comeassem a reagir contra a perda de identidade nacional (Labourdette, 2003, p. 313).

Assim, tornava-se evidente que a falta de uma corte rgia, de acordo com o que conta Oliveira Marques (1973, p. 437),

6 Ramos (2009, p. 297) faz notar que em detrimento de uma leitura nacionalista domi-nante at h alguns anos, a historiografia recente tem acentuado em relao Restau-rao de 1640, especialmente quanto aos seus motivos e s suas etapas iniciais, a sua dimenso de restaurao constitucional. Mais do que o argumento de carcter nacional at porque no eram as naes que ento conferiam legitimidade aos reis , no gol-pe de Estado de 1640 ter pesado primacialmente a defesa das instituies tradicionais do reino, atacadas pelo reformismo do conde-duque de Olivares durante o reinado de Filipe IV (III de Portugal, 1621-1640), o qual teria posto em causa o estatuto do reino reconhecido na carta patente de 1582..

prejudicou a expanso cultural dentro das fronteiras nacionais, desenco-rajou o florescimento de talentos, localizou e ruralizou a cultura, confi-nando-a a pequenos ncleos em redor de alguns bispos e nobres mais abastados.

Tambm existiram razes econmicas a ladear a Restaurao da In-dependncia. Desde o incio do sculo XVII, que a situao portuguesa se vinha deteriorando, remando em sentido contrrio ao que era apregoa-do aquando da unio das duas naes7. Silva e Hespanha (1993, p. 22) relembram que a poca de ouro do pas j ia longe e que o perodo de dominao filipina havia sido um perodo de provao, a vrios nveis. A Rota do Cabo, que era o eixo da estrutura econmica do pas, deixou de constituir a fonte principal da prosperidade e das receitas e o trfico portugus entre Lisboa e a ndia reduzira-se a menos de um tero, desde 1580 (Oliveira Marques, 1973, p. 438). Explica o autor que as especiarias asiticas, o ouro africano e muitos outros produtos chegavam agora Europa tambm a bordo dos navios ingleses e, especialmente, holandeses (Oliveira Marques, 1973, p. 438). Alis, de 1580 a 1663, os portugueses (e tambm espanhis) estiveram em permanente conflito com a Holanda. Refere Labourdette (2003, p. 293) que

esta guerra era muito moderna, pois os seus desafios eram antes de mais econmicos: o cravo-da-ndia e a noz-moscada das Molucas, a canela de Ceilo, a pimenta do Malabar, a prata do Mxico, do Peru e do Japo, o ouro da Guin e do Monomotapa, o acar do Brasil e os escravos negros da frica Ocidental.

Os holandeses queriam, segundo Labourdette (2003, p. 294) fun-dar um imprio comercial custa dos portugueses. Em 1602, criaram a Companhia Holandesa das ndias Orientais8 e conseguiram, assim, me-

7 Labourdette (2003, p. 290) menciona que, nos primeiros anos de unio ibrica, os mercadores portugueses conheceram algumas vantagens, nomeadamente a possibilida-de de negociarem nas ndias de Castela.8 Afirma Rodrigues (1996, p. 231) que a fundao tanto desta companhia como, mais tarde, da sua congnere ocidental provocou uma perigosa inflexo no Atlntico por-tugus, com todas as consequncias da resultantes.

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lhorar a sua posio no Oriente e no negcio com os portugueses, mas provocaram desagrado nos espanhis que tentaram, de vrias formas, acabar com as relaes comerciais entre Portugal e a Holanda e outras provncias dos Pases Baixos (Labourdette, 2003, p. 295). Ao mesmo tempo, foram ocupando e tentando conquistar vrias dependncias por-tuguesas no Oriente e na frica Oriental, nomeadamente as que lhes traziam mais vantagens comercias9. Chegaram mesmo a ocupar, durante algum tempo, parte do Brasil, o que valeu duras crticas dos portugueses coroa, que acusavam de no estar a fazer o suficiente para defender esta possesso, alargando, assim, o fosso que se ia cavando entre as duas naes (Labourdette, 2003, p. 299).

J os ingleses consideravam Portugal, o seu comrcio e as suas pos-sesses um adversrio e uma presa de monta (Labourdette, 2003, p. 294), da que tenham empreendido vrios ataques, nomeadamente a na-vios portugueses, destinados a interceptar as suas linhas de comrcio. Os tratados de paz que foram sendo assinados, iam garantindo alguma tranquilidade, mas sabia-se que as possesses do Oriente nunca estavam seguras10.

Portugal via, assim, fugir-lhe o monoplio comercial, particularmente a partir de 1620, com graves consequncias econmicas para todas as classes sociais. Mesmo o trfico atlntico (de escravos, acar e tabaco) declinara, devido aos ataques de estrangeiros ao Brasil, s ndias Ociden-tais, costa ocidental africana e s rotas de navegao. Uma das dilign-cias tomadas para fazer frente queles que procuravam apoderar-se do imprio portugus, foi criar uma sociedade de comrcio que protegesse, essencialmente as colnias e o comrcio l realizado, tendo sido, ento,

9 Labourdette (2003, pp. 299 e 300) explica que as vitrias dos holandeses foram-se sucedendo pelo facto de, por um lado, estes terem recursos abundantes em dinheiro e em homens e um poder naval predominante e, por outro, porque os portugueses foram passivos e negligentes na defesa dos seus domnios. O autor diz ainda que Em tais condies de inferioridade, pode-se ficar quase espantado que os portugueses tenham conseguido conservar tantos domnios no ultramar.. Mas depois acrescenta que [os portugueses] tinham sobre os holandeses uma superioridade fundamental, a de uma presena secular e de um enraizamento dos seus nacionais. (2003, p. 300).10 Em 1622, Portugal perde Ormuz para os Persas, que conseguiram apoderar-se desta possesso graas ajuda dos ingleses (Labourdette, 2003, p. 295).

fundada, a Companhia das ndias, em 1628. No entanto, conta Labourdet-te (2003, p. 298) que a insuficincia de capitais concedidos pela Coroa e a ausncia de importantes investimentos privados fizeram-na ter um comeo incerto e condenaram-na a uma actividade algo decepcionante.. Valladares (2006, p. 43) remata, acrescentando que

a sabotagem poltica sofrida por esta Companhia, por parte do Conselho da Fazenda portugus que temia perder o controlo sobre o trfico no n-dico e por parte de Goa cujos mercadores se queixavam do regime de monoplio imposto por Madrid , aliada escassez de capitais privados, acabou por ditar o fracasso da iniciativa.

Valladares (2006, p. 41) refere que todos os territrios da coroa portu-guesa tinham motivos de queixa contra Madrid e que, desde o incio do sculo XVII vrios factores tinham vindo a contribuir para tal. Corteso (1933, p. 319), avaliando a situao do imprio portugus do Oriente, durante o perodo de governao espanhola, relata que este desaba subi-tamente, teatralmente, entre os anos de 1637 e 1641. E explica que esta

repentina catstrofe o desabamento quase global do edifcio gigantesco que havamos levantado sobre as plagas do ndico, acompanhado, alis, dum desmoronamento parcial, mas no menos temeroso, das colnias do Atlntico esta, sim, abre fosso largo entre o perodo do domnio caste-lhano e o da Restaurao, que se lhe segue.

Mas o autor assegura, tambm, e ao contrrio do que muitas vezes se pensa, que, durante o perodo filipino, no se deu uma decadncia total do Imprio ultramarino portugus, pois o que perdemos no Oriente, e mais concretamente no ndico oriental, ganhmos no Atlntico e em frica. (Corteso, 1933, p. 461).

No pas, as coisas no corriam melhor. Os produtores sofriam com a queda dos preos do trigo, do azeite, do carvo, etc. Esta crise, agra-vada com o aumento constante dos impostos, afectava essencialmente as classes mais baixas, cuja pobreza aumentava, aumentando, tambm, consecutivamente, o descontentamento com a situao11. Segundo La-

11 Labourdette (2003, pp. 307 e 308) faz referncia a uma srie de motins que foram

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bourdette (2003, p. 301) e Oliveira Marques (1973, p. 439), para a grande maioria dos portugueses da poca, a causa de todos estes males era nica e exclusivamente a Espanha, da que clamassem por uma soluo rapi-damente12. A prpria Espanha entrara numa crise econmica, no incio do sculo XVII (crise esta que se repercutia em Portugal), manifestando--se, nomeadamente, na quebra da produo da prata americana, a partir de 1620 (Labourdette, 2003, p. 293). O descontentamento sentido deu origem a vrios motins populares, um pouco por todo o pas, facilmen-te cobrados pelas autoridades, mas servindo para demonstrar s classes superiores que as populaes estavam dispostas e preparadas para um movimento mais amplo contra o governo espanhol. (Oliveira Marques, 1973, p. 439). Um desses motins aconteceu em vora, em 1637, tendo sido motivado pela cobrana de uma carga fiscal suplementar. Explica Saraiva (1983, p. 20) que, tendo sido o motivo directo da insurreio o agravamento da carga tributria, o que realmente provocou o desconten-tamento e posterior revolta foi mesmo a injustia que reconheciam a este imposto. A revolta depressa se estendeu a outros pontos do pas, o que foi compreendido por Labourdette (2003, pp. 317 e 318) como um sinal de alarme para Filipe IV, uma vez que o autor observa este acontecimento no apenas como uma revolta anti-fiscal ou um motim provocado pela fome, mas um movimento para a defesa dos privilgios e das liberdades

acontecendo sempre que se dava novo aumento de imposto. E questiona-se: seriam estes motins manifestaes de um sentimento patritico? Ou tratava-se simplesmente de revoltas fiscais que se inscreviam no movimento geral que atingiu toda a Europa oci-dental nesta primeira metade do sculo XVII? (Labourdette, 2003, p. 308). E, logo de seguida, responde: Que o exaspero fiscal tenha desencadeado perturbaes sociais, isso inegvel. As populaes, tendo a lider-las os procos, e gozando talvez da simpatia da fidalguia, acantonada nos seus solares de Entre Douro e Minho e de Trs-os-Montes, ata-caram acima de tudo os cobradores de impostos, e mesmo a grande nobreza, pois alguns dos seus membros procuravam fugir a esses impostos. Por outro lado, tambm evidente que em Portugal era uma autoridade estrangeira, ou considerada como tal, que exercia essa presso fiscal insuportvel. E essa presso exasperava o sentimento nacional, que alimentava ele prprio a revolta. (Labourdette, 2003, pp. 308 e 309).12 No entanto, Labourdette (2003, p. 301) assinala que com ou sem unio com a Espa-nha, as duas potncias comerciais protestantes teriam infalivelmente atacado as linhas de navegao e feitorias portuguesas e que as perdas maiores foram alis infligidas a Portugal depois da separao em 1640..

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de Portugal. Tambm Valladares (2006, p. 35) alude a este descontenta-mento geral que se ia sentindo. Costa (2004, p. 14) acrescenta que, tendo tido origem na revolta dos populares, o descontentamento no era apenas destes, mas tambm de vrios ilustres portugueses. Alis, Veloso (1933, p. 274) afirma que foi desde 1637 que a aspirao de independncia [comeou] a corporizar[-se] em atitudes bem definidas. Mas o duque de Bragana, D. Joo, achara o momento inoportuno para arriscadas aven-turas: no havia plano maduramente pensado, nem suficientes elementos de luta. A prudncia, alis justificada, ordenava-lhe que se alheasse do movimento..

Houve tambm, da parte da Frana, um apelo a que os portugueses se rebelassem contra os espanhis, com a promessa de que, se isso aconte-cesse, eles ofereceriam apoio diplomtico e militar a Portugal (Bourdon, 1973, p. 84; Oliveira Marques, 1973, p. 439; Ramos, 2009, p. 304; Ve-loso, 1933, p. 274). Veloso (1933, pp. 274 e 275) descreve como seria o apoio francs:

1.) o apoio francs consistiria simplesmente na conquista de todos os fortes que defendem a entrada do Tejo; 2.) a Frana enviaria foras de terra e mar um exrcito de 13.000 homens de infantaria e cavalaria e uma esquadra de 50 navios , que cooperariam com os portugueses no restabelecimento da independncia, nada exigindo o governo francs por este auxlio; 3.) a Frana auxiliaria Portugal na conquista de toda a Espa-nha, se os portugueses resolvessem empreend-la, e ficariam pertencendo a Portugal as terras conquistadas, mesmo as que fossem exclusivamente por franceses.

Diz Veloso (1933, p. 279) que o momento se mostrava propcio a qualquer ousada tentativa. As coisas corriam mal para a Espanha e o nmero de conjurados era j to elevado que tornava muito difcil man-ter em inviolvel segredo o que se tramava. De facto, estes estavam j organizados, segundo palavras de Veloso (1933, p. 273) num verdadeiro partido nacional13. Lousada (2012, p. 160), por sua vez, assevera que

13 O autor acrescenta que os principais orientadores deste partido nacional foram os jesutas. Consequentemente, certos acontecimentos, meramente fortuitos, alguns at insignificantes e ridculos, foram interpretados como profticos avisos de futura liberta-

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o acontecimento decisivo que impeliu os conjurados aco e tornou irreversvel o movimento que conduziria Restaurao da soberania por-tuguesa foi a sublevao da Catalunha, ocorrida em Junho de 1640.

Por todos estes motivos, a Restaurao da Independncia tornava-se, ento, inevitvel e bastava (ou bastou) uma fasca para que tudo in-cendiasse. (Labourdette, 2003, p. 321). O duque de Bragana, D. Joo, surgiu como chefe natural do conluio14, por cumprir com perfeio o papel de rei natural dos portugueses (Costa, 2004, p. 14). No entanto, e apesar de o duque representar, nas palavras de Labourdette (2003, p. 322), toda a legitimidade dinstica violada por Filipe II em 1580, a coroa de Espanha considerava-o uma personagem insignificante, que jamais arriscaria a sua tranquilidade numa conspirao contra o poder espanhol, ideia que saa reforada pelo facto de este estar casado com uma espanhola, D. Lusa de Gusmo (Labourdette, 2003, p. 322). No entanto, Veloso (1933, p. 280) afirma que esta ter tido grande influncia na resoluo do duque, uma vez que desejava, acima de tudo, ser rainha. O autor acrescenta que todos aqueles que cercavam o duque eram parti-drios da Restaurao (Veloso, 1933, p. 281).

Apesar de toda a agitao sua volta, D. Joo foi sempre agindo com alguma prudncia15, o que no encorajava os conspiradores e s em No-o; aproveitaram-se, com o mesmo fim, juzos de astrlogos, nacionais e estrangeiros. Assim se foi formando um corpo de doutrina, uma corrente ideolgica dia a dia mais caudalosa. (Veloso, 1933, p. 273).14 D. Joo era neto de D. Catarina, filha do infante D. Duarte, sua legtima herdeira e candidata em 1580 e, pelo lado paterno, estava ligado por bastardia dinastia de Avis, visto que descendia, em linha directa varonil, de D. Afonso, conde de Barcelos e primeiro duque de Bragana, filho natural do mestre de Avis, D. Joo I, e, mais impor-tante, de sua esposa, filha do heri nacional, o condestvel D. Nuno lvares Pereira (Labourdette, 2003, p. 322).15 Labourdette (2003, pp. 322 e 323) menciona que a historiografia liberal foi severa na apreciao que fez de D. Joo IV, pelo facto de este ter agido com prudncia e in-deciso, acusando-o, at, de cobardia e mesmo de ter sido rei contra vontade, e que ele s ter cedido com a ameaa da proclamao de uma repblica aristocrtica. Lousada (2012, p. 156) acrescenta que, no entanto, D. Joo IV nunca deixou de perceber a con-juntura peninsular, medindo o pulsar dos constrangimentos populares, ouvindo os an-seios do descontentamento nobilirquico ou dando esperana pregao dos Jesutas. A ponderao foi a atitude primordial do Duque, que soube acompanhar o evoluir dos acontecimentos internos e da conjuntura externa para, no momento certo, tomar conta

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vembro de 1640 que o duque d o seu apoio formal. Na manh de 1 de Dezembro desse mesmo ano, dia de sol, claro e sereno, parecendo que a prpria Natureza queria associar-se faanha que ia ser pratica-da (Veloso, 1933, p. 284), um grupo de nobres, dos quais Labourdette (2003, p. 323) destaca, por ter sido o mais activo, Joo Pinto Ribeiro, antigo juiz de fora, atacou o palcio real de Lisboa, prendeu a duquesa de Mntua16, e aclamou D. Joo como D. Joo IV, pondo fim a uma unio ibrica que durou sessenta anos17. O 1. de Dezembro resume-se assim, nas palavras de Costa (2004, p. 14) a uma revolta sem componente mi-litar significativa, sendo as poucas foras que poderiam resistir anuladas pela surpresa e pela falta de orientao.. Veloso (1933, p. 286) menciona que a revoluo triunfante substitura os governantes, mas todos os que desempenhavam funes pblicas de importncia acabaram por aderir nova ordem poltica.

D. Joo viria a entrar em Lisboa, dias mais tarde, a 5 de Dezembro e mesmo ainda antes da cerimnia de aclamao, conta Labourdette (2003, pp. 325 e 326) que comeou a trabalhar, tomando algumas medidas de maior urgncia: procurou assegurar a segurana militar do reino; criou um Conselho de Guerra, um Conselho da Fazenda; e procedeu recon-

dos destinos polticos do Reino, numa conduta algo contranatura secular tradio da Casa de Bragana..16 A duquesa de Mntua, ou Margarida de Sabia, era prima direita de Filipe IV e neta de Filipe II (logo descendente da dinastia de Avis), tendo exercido funes de vice--rainha, em Portugal. No entanto, segundo o estatuto de Tomar, esta teria de ser parente prxima (filha, irm ou sobrinha) do soberano reinante, para o poder representar, o que no acontecia. Mesmo assim, Filipe IV tornou-a encarregue do reino de Portugal, posio que ocupava, aquando da Restaurao da Independncia, no ano de 1640 (La-bourdette, 2003, p. 307).17 Labourdette (2003, p. 309) refere que, para grande parte da historiografia portuguesa do sculo XIX, a unio ibrica foi apenas uma longa noite de sessenta anos qual sucedeu a clara manh de 1640, mas que preciso atenuar essa opinio, pois, se at se pode julgar com certa severidade os ltimos vintes anos da dinastia filipina, preciso no esquecer que, a partir de finais do sculo XVI, Portugal conheceu um desenvolvi-mento acentuado em todos os sectores, bem como uma supremacia impressionante do Brasil. No entanto, Labourdette (2003, p. 309), citando Oliveira Marques (1986, p.), afirma que quaisquer que [fossem] os benefcios que o reino tenha [tido] devido que-le governo, no eram suficientes para fazer desaparecer a tradio de independncia a que 1580 pusera um fim, para muitos, no definitivo..

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ciliao nacional, permitindo que os nobres portugueses instalados na corte de Madrid regressassem ptria18. Lousada (2012, p. 173) acres-centa que, assim que subiu ao poder, D. Joo IV procurou governar com o apoio da Nao, concedendo privilgios e mercs aos vrios estratos sociais: a concesso de distino de ttulos nobilirquicos; manuteno da garantia da aco inquisitria; a possibilidade de o povo manifestar opinio atravs das Cortes; a permisso da actividade financeira dos cris-tos-novos. No entanto, Costa (2004, p. 23) refere que, aclamado D. Joo IV, a guerra era mesmo inevitvel.

So vrios os autores que referem que, provavelmente, Portugal s conseguiu a independncia, porque a Espanha se encontrava envolvida na Guerra dos Trinta Anos, levando a que Filipe IV tivesse em mos vrias empreitadas, nomeadamente a conservao dos seus domnios eu-ropeus e ultramarinos e o controlo do comrcio martimo no Atlntico e no ndico, a juntar ao conflito blico j referido e ainda a uma disputa in-terna, na Catalunha (Costa, 2004, p. 23; Oliveira Marques, 1973, p. 445; Ramos, 2009, pp. 299 e 300;Ribeiro, 1934b, p. 25; Valladares, 2006, p. 48). Assim, diz Costa (2004, p. 23), a questo da separao de Portugal pde ser adiada, pois problemas maiores e mais perigosos existiam e precisavam de ser resolvidos primeiramente.

1.2. Portugal restaurado

Perpetrado o golpe palaciano que restaurou a independncia, o pas viu-se a braos com a rdua tarefa de conseguir apoios para a sua causa e para legitimar a dinastia de Bragana. Referem Oliveira Marques (1973, p. 440) e Ramos (2009, p. 296) que, duas semanas aps a conspirao, toda a nao j sabia do sucedido e aceitavam com prontido o novo rei e a nova situao do pas. Prova de um assinalvel esforo de legitimao

18 Valladares (2006, p, 114) faz notar que, no entanto, a situao contrria tambm acontecia e que foram alguns os portugueses que estiveram exilados em Madrid ou que para l se mudaram, voluntariamente, sendo que h a registar duas grandes vagas: uma entre o final de 1640 e o princpio de 1641, em plena fase da consolidao da conjura dos Bragana; e depois de 1659, quando, na sequncia da paz dos Pirenus, Filipe IV ficou em posio para concentrar os seus exrcitos na luta contra Portugal.

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e difuso foi a grande campanha propagandstica que, logo em 1640, se comeou a fazer, tanto em plpitos, como em impressos (Ramos, 2009, p. 298). Um desses impressos foi a Gazeta da Restaurao (1640-1648) e, mais tarde, tambm o Mercrio Portugus (1663-1667). Valladares (2006, p. 275), no entanto, ressalva que apesar desta campanha que de imediato fez surgir uma legio de letrados que ps a sua pena ao servio da Restaurao, houve, tambm, muitos outros que se posicionaram ao lado de Filipe IV.

Era, tambm, necessrio mostrar a todos o novo monarca como al-gum que apenas reivindicara aquilo que lhe pertencia por direito legti-mo e, igualmente para isso, foram precisos vrios anos e vrias jogadas polticas19. Nogueira (1983, p. 369) refere que

A aclamao de D. Joo IV, mais do que simples mudana poltica no ti-tular da coroa, representara a escolha ou eleio do monarca por parte do povo, justificada teoricamente por argumentos antigos, como a quebra do juramento rgio em que os monarcas espanhis haviam incorrido merc da sua actuao, pelo acentuar do papel da nao na ideia de acordo com o go-vernante, donde lhe adviria legitimidade para intervir na sua escolha, ou, em formulaes mais acabadas, acentuando-se a pertena do poder ao povo, que o poderia transmitir e igualmente recuperar, se assim o entendesse.

No entanto, as opinies no eram unnimes relativamente a D. Joo IV (Labourdette, 2003, pp. 326 e 327; Oliveira Marques, 1973, p. 441 e 442; Peres, 1934a, p. 14). Refere Oliveira Marques (1973, p. 441 e 442) que as classes inferiores conservavam intacta a f nacionalista e ade-riram ao novo monarca sem qualquer hesitao, mas que a nobreza se mostrava mais hesitante e s parte dela (nomeadamente aquela de onde provera o ncleo revolucionrio) alinhava firmemente com o duque de Bragana. Entre os outros, alguns continuaram a servir o rei espanhol, outros esperaram para perceber qual seria o melhor lado, acabando por

19 Valladares (2006, p. 276) refere que os protagonistas do golpe, apesar de terem sua disposio um vasto arsenal de recursos para justificar aces de resistncia, sentiram alguma dificuldade em apresentar a sua revolta como um acto legtimo e honrado, pois o seu gesto, com as irregularidades de que enfermava, tornava-se difcil de encaixar num dos modelos ento correntes..

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ficar do lado de D. Joo IV. Peres (1934a, p. 14) menciona que alguns destes outros interpretavam talvez como sintoma de fraqueza a poltica de tolerncia adaptada por D. Joo IV. Porm, se assim pensavam, o futuro encarregar-se-ia de lhes mostrar que o monarca pronto a facilitar a via da reconciliao aos dbios, e at aos inimigos, no seria indeciso quando chegasse a hora de punir actos de rebeldia ou de traio. J os burgueses, a grande maioria apanhada de surpresa pela Restaurao da Independncia (Oliveira Marques, 1973, p. 442), ficaram expectantes, tendo acabado, a maior parte deles, por apoiar a causa portuguesa e at por financi-la. O clero tambm se encontrava dividido, nomeadamente as mais altas hierarquias. E este era um grupo com muita importncia, uma vez que, na poca, tinha enorme peso poltico (Hespanha, 1993a, p. 287). Mas de dentro deste grupo veio um forte apoio para a causa nacio-nalista, da parte dos Jesutas, tendo este servido, tambm, para o futuro poder e prestgio (Oliveira Marques, 1973, p. 442).

Mas no era apenas a nvel interno que a legitimao tinha de ser feita. Tambm importava que os outros pases reconhecessem D. Joo IV como o novo monarca de Portugal20. Ramos (2009, p. 306) resume a aco dos diplomatas portugueses nas diversas cortes europeias como tendo sido marcadas por mil e uma peripcias rocambolescas. Contu-do, prossegue o autor,

difcil fazer um balano negativo da actuao destes improvisados diplo-matas, visto que alcanaram o que era indiscutivelmente o seu principal ob-jectivo, ou seja, o reconhecimento internacional da autonomia portuguesa (Ramos, 2009, p. 306).

20 Lousada (2012, p. 218) divide a diplomacia da Restaurao em trs ciclos: em-baixadas da Restaurao (1641-42), com as quais se iniciaram os primeiros contactos nas chancelarias europeias inimigas da Monarquia Hispnica, com vista legitimao da Dinastia de Bragana, antes que uma nova ordem sada do fim da Guerra dos Trinta Anos o inviabilizasse; formao da rede diplomtica portuguesa (1642-57), sobres-saindo uma diplomacia de guerra, as misses especiais de dominicanos e jesutas e os acordos falhados ou mitigados em Inglaterra, Holanda, Sucia e Roma; reduo da rede diplomtica em tempo de guerra (1658-67), centrando o esforo na Holanda e, mais particularmente, em Inglaterra e na Frana.

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Verssimo Serro (1983, p. 4) aponta que a defesa da Restaurao foi feita em dois sentidos: a proteco militar das fronteiras e o envio de em-baixadores para as principais cortes europeias.

Por um lado, impunha-se reparar os castelos, organizar as tropas e obter armas para enfrentar a iminente invaso da Pas. Por outro lado, carecia D. Joo IV do reconhecimento das outras naes, solicitando os inimigos da Espanha (como a Frana e os Pases Baixos) para a assinatura de trata-dos de comrcio e de amizade. To importante como o papel dos militares foi o dos diplomatas, que, em circunstncias muitas vezes adversas, sus-tentaram nas capitais da Europa os direitos da Casa de Bragana ao trono. (Verssimo Serro, 1983, p. 4).

Saraiva (1983, p. 23), indo ao encontro do que escreveu Verssimo Serro (1983, p. 4), resume que a primeira dcada do Portugal restaurado se preencheu com a

organizao para a guerra, a busca de apoio nas potncias inimigas de Espanha, as diligncias para conseguir que a Santa S reconhecesse a legitimidade da situao dinstica portuguesa e a luta entre as faces polticas desavindas.

Labourdette (2003, p. 332) vem reforar estas ideias, pois, segundo o autor, a par da legitimao do novo monarca, era tambm necessrio e importante

reconstruir a defesa de uma fronteira que sessenta anos de unio ibrica haviam deixado amplamente aberta, e constituir um exrcito que deti-vesse a invaso, porque a hora de uma ofensiva espanhola havia de soar infalivelmente (Labourdette, 2003, p. 332).

E essa hora no demorou a chegar. Durante mais de um quarto de sculo, os portugueses, conduzidos por D. Joo IV, D. Lusa de Gusmo (que, aps a morte do marido, iria ficar como regente, dada a menoridade do filho herdeiro) e pelo conde de Castelo Melhor (que viria a ser conse-lheiro do futuro rei, D. Afonso VI), tiveram de efectuar contra a Espanha uma verdadeira guerra de independncia. Assim, a nova administrao do rei brigantino teve urgncia em criar uma superestrutura militar, em

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gerar meios de financiamento, em recrutar soldados e em inovar institu-cionalmente21 (Costa, 2004, p. 24).

1.3. A Guerra da Restaurao (1640/1641-1668)

A Guerra da Restaurao percorreu os reinados de D. Joo IV e D. Afonso VI (este, com as regncias de D. Lusa de Gusmo e de D. Pedro II, pelo meio) e foi o mais prolongado conflito militar da histria portu-guesa No entanto, esteve longe de se traduzir a maior parte do tempo num efectivo e sistemtico confronto blico no cenrio europeu. (Ra-mos, 2009, p. 302). Teve incio praticamente logo que se restaurou a in-dependncia de Portugal e s terminou em 166822. Esta guerra mobilizou todos os esforos que o pas podia despender e absorveu enormes somas de dinheiro, acabando por levar a que a ajuda concedida s possesses ul-tramarinas fosse diminuta e insuficiente (Oliveira Marques, 1983, p. 445; Ramos, 2009, p. 300). Ramos (2009, p. 300) esclarece que, provavelmen-te, sem a conjuntura internacional excepcionalmente favorvel e sem o apoio em tcnica e em fora militar do estrangeiro, a guerra nunca tivesse sido vencida pelos portugueses mas que, mesmo assim, a resposta por-tuguesa [se] debateu () com enormes problemas. O autor completa que

21 Costa (2004, pp. 24 e 25) refere que uma das principais inovaes institucionais foi a criao do Conselho de Guerra, cuja principal funo era elaborar, por solicitao rgia, pareceres sobre os mais variados assuntos relacionados com a guerra, fazendo--os chegar, atravs das chamadas consultas, ao rei para resoluo, pois o Conselho no deliberava. O autor refere, tambm, o governo das armas como uma inovao ins-titucional (Costa, 2004, p. 26). Os governadores de armas governavam a unidade terri-torial das provncias, entretanto criadas (Costa, 2004, p. 27). A Junta dos Trs Estados surge, igualmente, nesta poca, e era composta por indivduos eleitos ou designados como representantes dos trs estados, nobreza, clero e povo, e procurava superintender nas cobranas e gesto dos tributos para a guerra (Costa, 2004, p. 27; Costa et al, 2011, p. 152). Subtil (1993, pp. 180 e 181) refere a existncia de outros rgos da administra-o central, como o Conselho de Estado ou a Junta da Bula Cruzada, mas ambos foram criados antes da Restaurao da Independncia.22 Ribeiro (1934f, p. 41) refere que tinham decorrido seis meses aps a revoluo vitoriosa de Dezembro quando se trocaram os primeiros tiros entre portugueses e es-panhis, na fronteira do Alentejo.

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O peso das condicionantes externas no conflito foi, sem dvida, decisi-vo no despoletar da iniciativa restauracionista e em toda a sua evoluo ulterior, porque limitou drasticamente a capacidade de manobra da mo-narquia dos Habsburgos. () A disputa pela hegemonia entre a Frana dos Bourbon e a Espanha dos Habsburgos () constitui o pano de fundo internacional que condicionou directa e decididamente o curso dos acon-tecimentos em Portugal na sua fase inicial (Ramos, 2009, pp. 303 e 304).

Oliveira Marques (1973, p. 445), conta que, do lado portugus, a guerra se limitou a operaes fronteirias de pouca envergadura, baseadas no ataque a aldeias desprotegidas, captura de gado e vitualhas, queima de searas ou ao corte de rvores. Isto porque Portugal no dispunha de um exrcito moderno, as suas fortificaes eram escassas, as suas coudelarias haviam sido extintas e os seus melhores generais lutavam pela Espanha, algures na Europa (Oliveira Marques, 1973, p. 445). Ainda assim, ao lon-go do perodo que durou a guerra, alguns portugueses que se encontravam fora do pas, regressaram e foram importantes para a formao do exrcito de Portugal (Costa, 2004, p. 51). Mesmo com um nmero de foras mili-tares inferior, estas eram mais motivadas que as espanholas, uma vez que lutavam para impedir uma invaso sua ptria, e eram, tambm, melhor comandadas (Labourdette, 2003, p. 335). Ribeiro (1934d, p. 99) diz mes-mo que Portugal afirmava os seus direitos de nao livre. E cada soldado portugus sabia que defendia o solo ptrio..

Do lado espanhol, as ofensivas eram algo reprimidas e demoradas, uma vez que o pas se encontrava envolvido na Guerra dos Trinta Anos e a re-solver a questo da Catalunha. At resoluo desta questo, as armas mais importantes dos espanhis, na conduo da guerra contra os portugueses, foram, segundo Ramos (2009, p. 305), o bloqueio comercial e, sobretudo, o isolamento diplomtico23. Enquanto o primeiro teve uma eficcia limi-

23 Esta situao de isolamento diplomtico leva a que Ramos (2009, p. 34) discorra sobre a forma como Portugal dirigiu os seus esforos diplomticos para conquistar apoios e reconhe-cimento no exterior. Diz o autor que neste particular h duas perspectivas histricas: uma onde se encontram os historiadores que salientam a eficcia da aco da diplomacia portuguesa; do outro, os que destacam a srie de acordos e tratados, nem sempre favorveis ao pas, com que os Bragana brindaram algumas naes europeias, na senda de um reconhecimento da sua Casa (destacam-se, aqui, as concesses econmicas feitas sobretudo Inglaterra).

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tada, uma vez que fora furado por vrias potncias europeias, em funo das suas necessidades, j o isolamento diplomtico, apoiado numa intensa actividade propagandstica, revelou-se bastante dramtico nos seus efei-tos (Ramos, 2009, p. 304). Depois de estabilizada a situao na Catalunha, a monarquia dos Habsburgos canalizou esforos redobrados para a frente ocidental dos seus conflitos (Ramos, 2009, pp. 302 e 303).

Assim, esta guerra teve altos e baixos para os dois lados, tendo al-gumas das batalhas dado a vitria aos exrcitos portugueses (Montijo, 1655, e Linhas de Elvas, 1659, por exemplo) e outras aos espanhis. Oli-veira Marques (1973, p. 446) afirma que, no entanto, costumavam ser os portugueses a actuar como defensores, enquanto os espanhis actuavam como invasores. Ramos (2009, p. 303) confirma e acrescenta que, a lti-ma dcada da guerra, entre 1656 e 1668, se caracterizou por sucessivas ofensivas espanholas e pelas correspondentes e vitoriosas respostas por-tuguesas, configurando-se como o perodo mais marcante e decisivo do conflito.. Os principais combates foram: Olivena, entre 1641 e 1657; Ouguela, 1644; Montijo24 (Espanha), 1644; Badajoz, 1657; Elvas, entre 1658 e 1659; Ameixial 25, 1663; vora, 1663; Sobradillo (Espanha), 1664; Castelo Rodrigo, 1664; Almeida, 1664; Vila Viosa, 1665; Montes Claros 26, 1665 (Costa, 2004; Oliveira Marques, 1973). Costa (2004, p. 95) afir-ma que os anos decisivos da guerra tero sido os de 1662 a 1665, com o ano de 1663 a ter um papel preponderante27.

24 Ribeiro (1934f, p. 57) menciona que esta foi uma famosa batalha uma vez que, tendo--se iniciado por uma quase derrota dos soldados portugueses e em completo desbarato da nossa cavalaria, terminou, merc duma rpida deciso do general em chefe, por um triunfo das armas de Portugal.25 Ramos (2009, p. 314) refere que a vitria no Ameixial teve um enorme impacto pol-tico, em ambos os pases.26 Batalha onde a vitria fora completa e decisiva para o desfecho da guerra (Ribeiro, 1934d, p. 99). O autor acrescenta que apesar das vitrias deste perodo, a luta ainda se arrastou por mais dois anos e tanto, tendo recado no regime de escaramuas sem impor-tncia (Ribeiro, 1934d, p. 100).27 Costa (2004, pp. 95-99) afirma que o ano de 1662 aquele que melhor traduz as dificuldades dos portugueses face nova ofensiva inimiga.; que o ano de 1663 pode provavelmente ser considerado o ano determinante da Guerra da Restaurao, tendo--se assistido a algumas inovaes tcticas; o ano de 1664 teria sido um ano peculiar j que do lado portugus era realizada uma mobilizao numa escala sem precedentes

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Em 1665, Filipe IV morreu, deixando um herdeiro ainda menor, o que enfraqueceu a monarquia dos Habsburgos. Ao mesmo tempo, Lus XIV de Frana decidira reclamar a parte da herana da sua mulher, filha mais velha do falecido soberano, o que viria acrescentar conflitos para resolver aos espanhis. O pas estava, assim, fragilizado e parecia mesmo com-preender que, em relao a Portugal, tinha de se resignar ao inevitvel, ou seja, aceitar que, pelo menos no plano militar, a guerra havia chegado ao fim (Ramos, 2009, p. 315) e que tinha de reconhecer a dinastia de Bra-gana (Labourdette, 2003, p. 336). Castelo Melhor, valido de D. Afonso VI, percebeu isso e considerou que estavam reunidas as condies para obter esses reconhecimentos nos melhores termos. Assim, entrou em ne-gociaes28 com a regente, Mariana de ustria e, a 5 de Janeiro de 1668, conclui-se o tratado de Madrid, onde se determinava que a monarquia de Filipe IV reconhecia a independncia de Portugal e a dinastia de Bragan-a29. As principais clusulas do tratado determinavam o seguinte:

restituio mtua de todas as praas conquistadas, com excepo de Ceuta, que ficara em poder dos castelhanos; libertao imediata de todos os prisio-neiros; restabelecimento das relaes comerciais entre os sbditos dos dois pases, tais como se efectuavam no tempo de D. Sebastio; reparao dos danos sofridos pelos particulares, em razo da guerra (Peres, 1934b, p. 120).

A vitria portuguesa na Guerra da Restaurao explicada por Ramos (2009, p. 315) da seguinte forma:

o governo do conde de Castelo Melhor divulgaria a presena de 28 mil homens no Alentejo, nmero que, a ser efectivo, constituiria uma exuberante vitria da sua aco disciplinadora e que no teria qualquer correspondncia no campo adversrio ().; em 1665, organizar-se-ia, em Madrid, a derradeira tentativa de fazer o reino regressar aos domnios de Filipe IV, tentativa essa que saiu gorada.28 Ramos (2009, p. 315) menciona que as negociaes foram feitas com intermediao inglesa.29 Valladares (2006, p. 268) conta que houve quem, em Portugal, considerasse os termos do tratado muito decepcionantes e criticasse D. Pedro por t-lo assinado. No entanto, o autor ressalva que Portugal se encontrava de tal modo debilitado que o facto de ter alcanado a sua independncia resumia toda a glria a que, naquela altura, podia aspirar (). (Valla-dares, 2006, p. 268).

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Sem que se possa excluir outros factores, bem como algum xito portugus na criao de uma fora armada na ltima fase do conflito, no oferece d-vidas que a vitria portuguesa se deveu, em larga medida, incapacidade castelhana para organizar um exrcito com a dimenso suficiente para vencer a guerra. A monarquia dos Habsburgos, para alm de se encontrar esgotada, no fora, ao que tudo indica, capaz de prosseguir com as inova-es militares que no sculo XVI lhe tinham granjeado assinalveis xitos.

Conta Costa (2004, p. 104) que logo que foi sabida a paz, houve sinais de grande contentamento. Aos poucos, o reino foi sendo desmantelado de toda a superestrutura militar criada durante a guerra, tornando--se Portugal um pas sem exrcito permanente (Costa, 2004, p. 106). A Frana, de Lus XIV, ainda procurou colocar entraves celebrao da paz (pois o estado de guerra entre Portugal e a Espanha convinha-lhe) e encetou algumas iniciativas para tal, mas no foi bem-sucedido (Peres, 1934b, p. 120; Ribeiro, 1934c, p. 111).

1.4. O reinado de D. Joo IV

O reinado de D. Joo IV no foi, nomeadamente numa fase inicial, um reinado fcil. Foram urdidas algumas conjuras para destituir o novo rei e mesmo para assassin-lo (Costa, 2004, p. 49; Labourdette, 2003, p. 327; Oliveira Marques, 1983, p. 444; Peres, 1934a, pp. 15-19; Ramos, 2009, p. 325; Verssimo Serro, 1983, p. 4). Assim, dentro do pas, a estabilidade do regime dependeu do aniquilamento de toda a discrdia a favor da Es-panha. Logo em 1641, foi descoberta uma conspirao, onde, de acordo com Oliveira Marques (1973, p. 444), participavam algumas das melho-res famlias da aristocracia, membros da alta burguesia e do alto clero. O castigo aplicado por D. Joo IV fora, nas palavras de Labourdette (2003, p. 327) de uma dureza exemplar e, segundo Verssimo Serro (1983, p. 4) tornaram o monarca implacvel com os seus inimigos. O autor diz tambm que o direito exerceu um contributo notvel para a defesa da nova dinastia e que, por esta razo, se compreende que os secretrios das embaixadas fossem sempre juristas consagrados (Verssimo Serro, 1983, p. 5-6).

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De forma a conseguir impor a independncia, depois do golpe de Es-tado, e a reconquistar um imprio que fora, nas palavras de Labourdet-te (2003, p. 328), gravemente mutilado pelos holandeses, D. Joo IV precisava do apoio de potncias estrangeiras. E era pois, natural, que o governo procurasse estas entre as naes rivais da Espanha e, em pri-meiro lugar, na Frana (Ribeiro, 1934b, pp. 25-27). Ora, a conjuntura in-ternacional, apresentava-se-lhe, como j foi referido, bastante favorvel, uma vez que a Espanha, envolvida na Guerra dos Trinta Anos, lutava em diversas frentes e acabava por no poder castigar e reconquistar () [a] nao rebelde como desejaria (Labourdette, 2003, p. 328). Neste campo, Labourdette (2003, p. 328) refere que

D. Joo IV teve inicialmente a sorte de beneficiar da passividade da Es-panha, depois a habilidade de congregar alianas na Europa, e finalmente a capacidade de organizar uma defesa do reino contra a qual a Espanha nada poderia.

No campo diplomtico, D. Joo IV contou com embaixadores e agentes de alta craveira (Verssimo Serro, 1983, p. 5). Oliveira Mar-ques (1973, p. 443) informa que, relativamente poltica externa, um dos principais objectivos de Portugal era fazer a paz com a Holanda e conseguir apoio militar e diplomtico dos inimigos da Espanha. Logo em 1641, D. Joo IV concedeu aos holandeses a liberdade de comrcio, de que gozavam antes da unio ibrica, e os holandeses proibiram os seus compatriotas de fazer a guerra contra Portugal, apesar de tal no os impedir de continuar a atacar descaradamente os domnios portugueses (Labourdette, 2003, p. 331). No entanto, um tratado de paz demorou a ser assinado, uma vez que, para isso, a Holanda teria que renunciar sua poltica de conquista na sia e no Atlntico e isso no lhes interessava, e s em 1661 que chegaram a um acordo de paz, que, de acordo com Ramos (2009, p. 307), acabou por no resolver todas as questes pen-dentes. O tratado de paz com as Provncias Unidas proclamava que, em troca da renncia ao Brasil, a Angola e a So Tom, Portugal reconhecia a possesso holandesa das suas conquistas no Oriente e concedia-lhes as mesmas facilidades que j eram concedidas aos ingleses no comrcio do

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sal de Setbal. Para alm disto, comprometia-se a pagar-lhes, no prazo de dezasseis anos, uma avultada indemnizao (Labourdette, 2003, pp. 339 e 340). Ou seja, Portugal acabou por acordar um tratado algo desvantajo-so (segundo os portugueses da poca), mas, dadas as circunstncias, foi o possvel (Ribeiro, 1934b, p. 28).

No que s possesses ultramarinas diz respeito, Portugal havia sido expulso da maioria das que ainda lhe restavam no oceano ndico30 e era tambm expelido da Arbia e do Golfo Prsico pelos rabes, ajudados pelos ingleses e pelos holandeses. Restou-lhe Moambique, que reconhe-ceu D. Joo IV como rei, em 1641; Goa, no mesmo ano; e Macau, onde a notcia da Restaurao s chegara em 1642, sendo o novo monarca logo aclamado (Labourdette, 2003, p. 338). No Atlntico, Portugal per-deu parte de Angola e de So Tom, em 1641, mas acabou por recobrar estes territrios, em 1648. J na Madeira e nos Aores, a aclamao de D. Joo IV aconteceu logo em 1641 e 1642, respectivamente, o que se re-velou deveras importante, uma vez que estes arquiplagos comandavam a navegao e a defesa do Atlntico e, consequentemente, a restaurao portuguesa em frica e no Brasil (Labourdette, 2003, p. 338). Marrocos reconheceu o soberano, logo em 1640; Tnger fez o mesmo em 1643; Ceuta permaneceu fiel a Espanha. No Brasil, a notcia da proclamao da independncia foi chegando de forma faseada s diversas cidades e o reconhecimento do novo monarca ia sendo aceite assim que se sabia do sucedido. Devido ocupao holandesa no pas (nordeste) e s trguas que Portugal tinha negociado na Europa, a situao foi mais complica-da, o que tambm fez com que, finalizado, viesse a ser o captulo mais glorioso da fidelidade a D. Joo IV (Verssimo Serro, 1983, p. 16). Os holandeses no queriam abandonar o local e os portugueses no queriam guerras, mas os luso-brasileiros pretendiam, nas palavras de Labourdette (2003, p. 338), ver-se livres dos herticos abominados (os holandeses) e insurgiram-se, levando a que estes, aos poucos, fossem abandonan-do o pas, tendo a ltima vaga de holandeses abandonado o Brasil em 1654. Portugal v, assim, a sua soberania completamente restabelecida em terras de Vera Cruz. Verssimo Serro (1983, p. 16) diz mesmo que

30 Oliveira Marques enumera as seguintes perdas, por parte de Portugal: Malaca (1641), Ceilo (1644/1656), Coulo (1658), Negapato (1660), etc.

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a restaurao no Brasil foi porventura o captulo mais glorioso da fide-lidade a D. Joo IV das parcelas ultramarinas e Corteso (1934, p. 639) acrescenta que em seu conjunto, a histria do Brasil [no sculo XVII] uma epopeia, que, s por si, resgata o nome portugus do vergonhoso declnios que noutras partes manifesta.

As perdas de territrios so entendidas por Labourdette (2003, p. 337) como um preo a pagar para garantir a Restaurao da Independncia. No sentido de manter a paz com holandeses e ingleses, duas potncias marti-mas em ascenso, D. Joo IV acabou, como j se viu, por ter de renunciar a algumas das possesses que haviam feito a fortuna e a grandeza de Por-tugal, ao longo do sculo XVI, pois o seu realismo poltico permitia-lhe perceber que a reconquista, por esses motivos e pela falta de meios, s poderia vir a ser parcial (Labourdette, 2003, p. 337). O novo eixo da pol-tica colonial giraria em torno do Atlntico e, segundo Labourdette (2003, p. 337), a fundao da Companhia Geral do Comrcio do Brasil foi disso a melhor prova. O autor refere, tambm, que, apesar da prioridade dada a esta rota, os assuntos da ndia no foram totalmente esquecidos, mas, uma vez que era o rendimento do acar brasileiro que financiava a in-dependncia portuguesa, a sua explorao e comercializao tornava-se primordial (Labourdette, 2003, p. 337). Apesar destas privaes, Xavier e Hespanha (1993b, p. 408) referem que a construo modular e descentra-lizada do pas, permitiu-lhe ultrapassar a perda do controle de qualquer rota martima fundamental.. Para Boxer (1977, p. 133), e de uma forma global, este conjunto de perdas, conquistas e reconquistas podem sinteti-zar-se da seguinte forma: vitria para os holandeses na sia, um empate na frica Ocidental e vitria para os portugueses no Brasil..

Uma aliana francesa tambm foi procurada. No entanto, no que toca a este pas, Oliveira Marques (1973, p. 444) refere que o apoio acabou por ser mais verbal, que outra coisa qualquer. Assim, depois de ter encoraja-do os portugueses a revoltar-se (mesmo no tendo tido papel directo nos acontecimentos do 1 de Dezembro), a Frana prometeu uma aliana com Portugal, no sentido de as duas potncias se manterem unidas e em que se comprometiam a no estabelecer uma paz separada com a Espanha. No entanto, a inteno da Frana no era cumprir o acordado e D. Joo IV, apercebendo-se disso e tambm da inteno deste pas de tornar Portugal

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num seu peo, recuou e as duas naes acabaram por no entrar em acor-dos (Labourdette, 2003, p. 331)31. O autor vai mais longe ao afirmar que a aliana francesa no passara, afinal, de uma aliana de circunstncia, uma vez que, aps o reconhecimento da dinastia de Bragana por parte da Espanha, ela era muito menos necessria a Portugal e poderia, at, tornar-se nefasta se arrastasse o pas na esteira da poltica de Lus XIV (Labourdette, 2003, p. 357). S no reinado de Afonso VI (estando j o monarca casado com uma princesa francesa) que se assinou um tratado de aliana, do qual fazia parte ajuda miliar a Portugal.

Com a Inglaterra, a princpio, as negociaes decorreram com rapi-dez e bom entendimento entre os contratantes. Mas, entretanto, surgiram algumas dificuldades que l se resolveram (Ribeiro, 1934b, pp. 32-34). O monarca portugus conseguiu, em 1642, um tratado de amizade e de navegao (Labourdette, 2003, p. 330). Anos depois, entre 1650 e 1654, Portugal esteve em guerra aberta com os britnicos, mas estes facilmen-te se mostraram superiores, levando a que os portugueses tivessem que assinar um tratado de paz que abria o imprio ao trfico ingls (Ramos, 2009, p. 308). Em 1661, a filha de D. Joo IV, D. Catarina, veio a ca-sar com Carlos II de Inglaterra, tendo este obtido, em dote, a cedncia de Bombaim e Tnger. Nesta altura, foi assinado novo tratado de paz e aliana que ratificava todos os anteriores e segundo o qual Portugal tinha de cumprir uma srie de clusulas. Valladares (2006, p. 213) afirma que este acordo representou um indiscutvel triunfo britnico, se bem que o regime dos Bragana tivesse alcanado o que mais necessitava: apoio militar e diplomtico contra Madrid..

Labourdette (2003, p. 330) refere, ainda, que ajuda militar, tanto na forma de contingentes mercenrios, como na de armas e abastecimentos, Portugal recebeu da parte da Europa setentrional, nomeadamente da Su-cia. Ribeiro (1934b, pp. 34-36) acrescenta que Portugal conseguiu, tanto da Sucia como da Dinamarca, apoio e estabeleceram-se, desde a, com estes pases, boas relaes, afectuosas e confiantes, tendo-se Francisco de Sousa Coutinho mostrado, aqui, um hbil diplomata.

31 No fundo, e apesar de a Frana querer a paz europeia, no desejava assistir ao re-nascer do poderio ibrico, da que evitassem at onde pudessem as alianas e tratados entre portugueses e espanhis (Saraiva, 1983, p. 27).

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Um fracasso diplomtico vivido por D. Joo IV teve a ver com a per-manente recusa da Santa S em reconhecer a secesso de Portugal, negan-do, tambm, todas as splicas de confirmao de bispos para as dioceses que iam vagando. (Oliveira Marques, 1973, p. 444). Roma considerava o rei de Espanha o chefe da causa catlica contra os protestantes e no que-ria, de forma alguma, enfraquec-lo (Labourdette, 2003, p. 331). Ramos (2009, p. 308) acrescenta que a influncia da coroa espanhola na corte pontifcia era muita e que mesmo com os insistentes esforos diplomticos portugueses, o resultado nunca foi o esperado. S em 1669, no pontificado de Clemente IX, e j depois de firmada a paz entre Portugal e a Espanha que se mudou a atitude romana para com Portugal (Verssimo Serro, 1983, p. 5). Ribeiro (1934b, p. 37) ressalva que a embaixada a Roma foi mesmo a ltima a ser enviada, talvez j imaginando as dificuldades com que se iria deparar. Diz o autor que

o governo portugus ligava importncia ao reconhecimento da indepen-dncia portuguesa pelo pontfice, e que logo de princpio pensou em resta-belecer as relaes com a cria romana. Mas, desde o princpio tambm, antevira todas as dificuldades que oferecia semelhante misso (Ribeiro, 1934b, p. 38).

De facto, se em Paris, Londres, Amesterdo, etc., os plenipotenci-rios haviam conseguido firmar tratados de aliana, ou simplesmente de amizade e comrcio, o que significava o reconhecimento de Portugal como estado independente, em Roma, contudo, a diplomacia espanhola tinha vencido (Ribeiro, 1934b, p. 40).

Ramos (2009, p. 306) resume a aco dos diplomatas portugueses nas diversas cortes europeias como tendo sido marcadas por mil e uma peri-pcias rocambolescas. Contudo, prossegue o autor,

difcil fazer um balano negativo da actuao destes improvisados diplo-matas, visto que alcanaram o que era indiscutivelmente o seu principal objectivo, ou seja, o reconhecimento internacional da autonomia portu-guesa (2009, p. 306).

Corteso (1934, p. 641) chama a ateno para o facto de a histria da

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administrao colonial portuguesa dever ser considerada em globo e no provncia a provncia, de modo a que melhor se compreenda o esforo que representou. Quando olhada assim, assegura o autor, na totalidade do Imprio, averigua-se, certo, que abandonmos aos inimigos muitos territrios; mas reconquistmos e dilatmos, em propores mais slidas a parte melhor daqueles que nos haviam sido arrebatados. (Corteso, 1934, p. 641). Corteso (1934, p. 642) alerta, ainda, para um facto ca-pital que costuma escapar aos historiadores, quando julgam os esforos da Nao e dos seus governantes em relao aos nossos domnios ultra-marinos depois da Restaurao: a insuficincia demogrfica de Portugal para levar a cabo a defesa eficaz de territrios mais vastos que nunca, e sobre os quais se estendia com frequncia uma soberania apenas nominal. Explica o autor que a populao existente em Portugal era insuficiente para, ao mesmo tempo, defender o reino dum inimigo mais poderoso que o invadia com frequncia por todas as fronteiras e para defender e recon-quistar parte duma provncia j nesse tempo to vasta como o Brasil mais as costas de dois continentes, a frica e a sia, dos ataques das naes martimas mais fortes daquela poca (Corteso, 1934, p. 642). Quando se compara a grandeza desmesurada da tarefa com a insignificncia dos meios humanos, espanta que ainda pudssemos conservar tanto, afirma Corteso (1934, p. 642). O autor acrescenta, tambm, que esta despropor-o aumenta, se insignificncia demogrfica juntarmos a msera escas-sez dos instrumentos de defesa (Corteso, 1934, p. 642).

A nvel econmico, D. Joo IV procurou obter dinheiro de qualquer maneira, principalmente para conseguir defender o pas de Espanha. Oliveira Marques (1973, pp. 444 e 445) refere que as cortes votaram subsdios mas o governo, actuando de forma prudente, tentou o mais que pde no aumentar os impostos, conseguindo obter proveitos atra-vs da cobrana de somas avultadas aos mercadores a quem, em troca, concedia privilgios. O desenvolvimento do comrcio com os pases da Europa do norte favoreceu numerosos mercadores, levando-os, segundo Oliveira Marques (1973, p. 445), a apoiar a causa da independncia. J a produo de acar, no Brasil, veio a tornar-se a principal fonte de rendimentos da nova dinastia (Saraiva, 1983, p. 42). A situao viria a alterar-se, na segunda metade do sculo XVII, devido concorrncia das

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Antilhas inglesas, francesas e holandesas, tendo levado a uma crise de anos no comrcio portugus (Labourdette, 2003, pp. 354 e 355; Saraiva, 1983, pp. 42 e 43).

De facto, e contrariamente ao que se verificava em Portugal, no Brasil assistia-se a um desenvolvimento e crescimento econmico. Uma rique-za surgida durante este sculo foi o tabaco. Saraiva (1983, p. 43) refere que a sua rpida expanso levou a que as autoridades tivessem de proibir o seu cultivo, uma vez que os agricultores, atrados pelos preos e lu-cros, deixassem de plantar bens essenciais, para a alimentao, como, por exemplo, a mandioca (essencial para alimentar os trabalhadores oriun-dos da frica). A criao de gado, o comrcio dos couros, os negcios de escravos levados de frica ao Brasil, para trabalhar nos engenhos de acar, eram as outras bases da economia brasileira que, segundo Saraiva (1983, p. 43) rendiam ao Estado e a particulares alguns lucros. No en-tanto, o autor alerta que os ndices de prosperidade [contrastavam] com as queixas de penria e [com] as dificuldades do Estado para satisfazer compromissos, uma vez que os mecanismos de organizao do Estado no se tinham modernizado, tendo levado a que, ao longo deste perodo, se observasse um errio pblico, em dfice permanente, e uma riqueza particular em constante desenvolvimento. (Saraiva, 1983, p. 43).

Quem, economicamente e no s, beneficiou de toda esta situao foram os cristos-novos que ajudaram, com capitais judaicos, a causa da independncia32 e auxiliaram-se a si mesmos em operaes rendosas. Alm disto, por mais que uma vez, nos perodos de maior aperto, os representantes dos cristos-novos ofereceram coroa vultosos recursos financeiros, em troca de atenuaes ao estatuto inquisitorial. (Saraiva, 1983, p. 43). Conta Oliveira Marques (1973, p. 445) que, com estes ca-pitais, os portugueses conseguiram comprar navios, munies e soldados para a defesa da sua ptria. Alm do mais, a administrao dos bens an-teriormente confiscados passou da Inquisio para o Estado, o que cons-titua uma mais-valia. No entanto, a situao dos cristos-novos viria a

32 Logo em 1643, o padre Antnio Vieira percebeu que sem a colaborao dos judeus no era possvel manter a independncia de Portugal (Saraiva, 1983, p. 43). Portugal, na ver-dade, no nadava em dinheiro e as dificuldades financeiras aumentavam. Refere Ribeiro (1934e, p. 72) que, no oramento da guerra, todos os anos se produzia um deficit.

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alterar-se, nos reinados seguintes. Labourdette (2003, p. 350) conta que a nova dinastia trouxe um certo sossego aos cristos-novos, graas, es-sencialmente, aco dos jesutas e ao facto de o seu maior inimigo, o inquisidor-mor D. Francisco de Castro, ter sido afastado. Refere ainda que o mais influente dos jesutas da Restaurao fora o padre Antnio Vieira, simultaneamente orador, missionrio, escritor, diplomata, ho-mem de Estado e economista. (Labourdette, 2003, p. 350). Tinha grande ascendente sobre D. Joo IV, ao qual demonstrara que a riqueza e acti-vidade comercial dos cristos-novos eram indispensveis salvaguar-da e ao desenvolvimento do imprio colonial. (Labourdette, 2003, p. 351). Ribeiro (1934e, p. 69) refere que o monarca o encarregou, at, de vrias misses diplomticas. Por sua vez, o padre convenceu-o a criar a Companhia do Brasil33, com o contributo daqueles. No entanto, durante a regncia de D. Lusa de Gusmo e a governao de Castelo Melhor, a Inquisio recuperou a sua actividade e o Santo Ofcio mandou prender o padre. Com o golpe de estado de D. Pedro, em 1667, os cristos-novos voltaram a encontrar protectores entre os conselheiros do prncipe re-gente e o padre Antnio Vieira passa, novamente, a actuar na corte e a defender a sua causa (Labourdette, 2003, p. 351; Saraiva, 1983, p. 40). Anos mais tarde, a Inquisio volta a recuperar alguma da sua fora34 e, em finais dos anos setenta do sculo XVII, pelas mais variadas razes, D. Pedro, de forma algo inesperada, passa a apoiar o Santo Ofcio, tendo este recuperado todos os seus poderes (Labourdette, 2003, p. 353)35.

Em 1656, D. Joo IV morre. Em jeito de resumo, Oliveira Marques

33 Que tinha algumas obrigaes de carcter militar, nomeadamente de defesa da inde-pendncia (Peres, 1934c, p. 394).34 Na poca, o anti-semitismo popular era geral e atingira nveis de violncia muito altos. Saraiva (1983, p. 41) refere alguns motivos possveis para tal: a insistente dou-trinao, as grandes manifestaes populares que acompanharam os autos-de-f, a luta das classes tradicionalmente privilegiadas contra uma nascente classe mdia enrique-cida pelos negcios do Brasil, quase todos nas mos dos cristos-novos, o patriotismo exacerbado por muitos anos de guerra e a desconfiana nos homens de negcios, liga-dos guerra e s naes por vrios motivos.35 Em Roma, algumas das medidas adoptadas pelo Santo Ofcio no eram bem vistas, o que acabou por causar quezlias entre as duas naes. Saraiva (1983, p. 42) refere que a Inquisio Portuguesa acabou por sair vencedora da confrontao, tendo celebrado a vitria com a realizao de vrios autos-de-f.

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(1973, p. 443) afirma que o reinado de D. Joo IV (1640-1656), numa fase inicial,

foi uma sucesso de desastres para o Imprio, uma srie de desaires na di-plomacia europeia e uma situao pouco prspera na economia interna, s compensada por meia dzia de triunfos militares em Portugal que impedi-ram uma invaso espanhola em larga escala.

No entanto, o autor ressalva que, no geral, o governo do rei restaurador ficou marcado por ter sido prudente, com uma srie de medidas acerta-das na administrao (Oliveira Marques, 1973, p. 446). O autor conti-nua, dizendo que este nunca fora um monarca de absolutismos extremos, tendo partilhado a tarefa governativa com alguns conselhos e tribunais e acrescenta, ainda, que D. Joo mostrou ter tento ao conservar os seus ministros durante longos perodos, pois assim assegurava a estabilidade e continuidade (Oliveira Marques, 1973, p. 446). Verssimo Serro (1983, p. 3) confirma este lado prudente de D. Joo IV e acrescenta que ele sou-be manifestar, ao longo de dezasseis anos, essa prudncia, muitas vezes concretizada em firmeza, o que tornou o seu papel, frente dos destinos de Portugal, notvel. Diz, ainda, o autor que o monarca

soube estar altura da confiana que nele depositaram os conjurados, iden-tificando-se com os ideais da ptria, tornada senhora do seu destino (Vers-simo Serro, 1983, p. 3).

O esforo do Restaurador no foi apenas poltico e militar, mas tam-bm legislativo e financeiro. Diz Verssimo Serro (1983, p. 8) que ele havia promulgado uma srie de leis necessrias boa administrao do pas, ao mesmo tempo que empenhara o seu nome e fortuna pessoal ao servio do movimento. O autor continua, afirmando que D. Joo IV fora sempre fiel ao princpio de que a salvao do reino devia ser obtida pelo esforo colectivo da nao e que jamais trara a confiana que haviam de-positado nele (Verssimo Serro, 1983, p. 8). Bourdon (1973, p. 87) afir-ma, simplesmente, que tanto do ponto de vista militar, como diplomtico, a obra de D. Joo IV fora capital, apesar de inacabada, e que pode ser considerado um dos soberanos mais importantes do seu tempo, no s porque teve o mrito de restaurar a independncia do seu reino, mas

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tambm porque era um prncipe cultivado, amigo das artes e da msica (Bourdon, 1973, p. 89).

1.5. A regncia de D. Lusa de Gusmo

Com a morte de D. Joo IV, sobe ao trono o seu filho Afonso VI36, mas, enquanto este no atingiu a maioridade (na altura, catorze anos), D. Lusa de Gusmo, sua me, mulher inteligente e dotada de forte perso-nalidade (Labourdette, 2003, p. 342), ficou como regente do reino37. No entanto, mesmo depois de D. Afonso ter feito catorze anos, em 1657, a regncia de D. Lusa foi-se mantendo, indefinidamente, devido incapa-cidade fsica e mental que todos reconheciam ao rei em governar (Olivei-ra Marques, 1973, p. 446). Oliveira Marques (1973, p. 446) afirma que neste perodo compreendido entre 1656 e 1662 no ocorreram grandes mudanas comparativamente ao reinado de D. Joo IV. Verssimo Serro (1983, p. 8) afirma que, de uma forma geral, D. Lusa soube reger o pas com o maior tacto poltico, sabendo congraar as duas faces palacia-nas que se tinham reunido em torno dos condes de Odemira e de Can-tanhede.. De facto, depois da morte de D. Joo IV e durante a regncia

36 A subida ao trono de D. Afonso VI (que no havia sido preparado para reinar) deu-se, porque o filho primognito do rei, D. Teodsio, morrera prematuramente, aos 19 anos, corria o ano de 1653. Sobre D. Teodsio, diz D. Antnio Caetano de Sousa (1740, p. 265) que era liberal para com os pobres, magnnimo, de uma sensatez admirvel, muito corajoso, e sobretudo muito respeitador da Lei de Deus e que desde a mais tenra idade, sabia e falava a lngua latina, tendo chegado a compor alguns tratados curiosos e eruditos sobre diversas matrias. Verssimo Serro (1991 p. 36) acrescenta que o prncipe rece-bera uma boa educao literria, cientfica e militar, contribuindo para a sua formao o padre Antnio Vieira, que lhe moldou o esprito religioso na conscincia do grande papel que o destino lhe reservava. () O impulso da juventude o fez visitar em 1651 os castelos do Alentejo, onde animou os soldados e as populaes; e, no regresso a Lisboa, viu-se nomeado capito-general das armas do Reino. Referem os cronistas que era mui-to devoto e, ao mesmo tempo, impregnado de ideal guerreiro.. Tambm Labourdette (2003, pp. 341 e 342) se refere ao jovem Teodsio como um prncipe perfeito em quem depositavam as maiores esperanas.37 data da morte de D. Joo IV, D. Afonso contava apenas treze anos de idade. Segundo o testamento de seu pai, a rainha D. Lusa de Gusmo, sua me, ficaria como regente, at este atingir a maioridade (Saraiva, 1983, p. 24; Verssimo Serro, 1983, p. 8).

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de D. Lusa, a nobreza encontrava-se dividida em faces inimigas que, constantemente, se batiam entre si (Saraiva, 1983, p. 24).

Durante os anos de regncia, Portugal enviou a princesa Catarina de Bragana38 para Inglaterra, em 1661, a fim de casar com Carlos II e as-sim criar uma unio e conseguir alianas entre as duas naes (Costa, 2004, p. 87; Oliveira Marques, 1973, p. 446). Conforme j foi referido, para que tal unio se realizasse, foi preciso entregar Tnger e Bombaim, como dote, aos ingleses. Diz Verssimo Serro (1983, p. 9) que a coroa inglesa recebia, assim, pontos fundamentais para alicerar o seu imprio ultramarino, mas a verdade que, sem o apoio da Inglaterra, Portugal no teria sobrevivido fora das armas espanholas, nem a independn-cia teria resistido aliana franco-espanhola, decorrente da Guerra dos Trinta Anos (Verssimo Serro, 1983, pp. 9 e 10). Este casamento (e esta aliana) foi negociado numa altura em que a Guerra da Restaurao en-trara numa fase perigosa para Portugal a Paz dos Pirenus era celebrada entre as coroas de Frana e a dos Habsburgos de Madrid e os espanhis podiam agora dedicar-se de forma exclusiva guerra com os portugueses. Da que fosse importantssimo conseguir fortes alianas (Costa, 2004, pp. 86-87). E, de facto, Valladares (2006, pp. 214 e 215) afirma que o casa-mento da princesa com o monarca ingls representou a mais sria ameaa para Madrid, desde o levantamento de 1640, uma vez que um membro dos Bragana conseguia, pela primeira vez, entrar no crculo das famlias reais europeias, assegurando, desse modo, o respeito pela nova dinastia reinante em Portugal.

Foi tambm durante este perodo de regncia que ocorreram a maior parte das batalhas com a Espanha, o que desagradava a maioria da popu-lao, que comeava a questionar a governao de D. Lusa de Gusmo. Este descontentamento era tambm causado pelo facto de, neste perodo, Portugal ter tido de pagar o primeiro dote da infanta Catarina (referente ao casamento), o que obrigou a grandes sacrifcios (Saraiva, 1983, p. 29). O autor refere que D. Lusa viu-se at obrigada a vender algumas das suas

38 Inicialmente, pensava-se em casar D. Catarina com o rei de Frana, Lus XIV, e assim obter uma aliana com este pas. No entanto, o acordo no se realizou, devido ao elevado dote exigido pelos franceses e a infanta acabou por ir parar a Inglaterra, onde casou com Carlos II (Saraiva, 1983, p. 26).

jias pessoais, de forma a fazer face a esta despesa (Saraiva, 1983, p. 29). Alm do mais, o ano fora de fome. Saraiva (1983, p. 29) menciona que foi este ambiente que tornou possvel o xito do golpe que se preparava.

Em jeito de resumo, Ribeiro (1934d, p. 77) descreve desta forma a regncia de D. Lusa:

As circunstncias em que a animosa princesa tomava conta do governo eram particularmente difceis. Sobrava-lhe energia, mas, em sua volta, os polticos e os militares ambiciosos engendravam aquela rede de dificul-dades que peculiar a todas as regncias pela menoridade do reinante: dissdios por questes de precedncia, rebeldias por apetites insatisfeitos, orgulhos que podem finalmente extravasar, quando a morte gelou para sempre a mo que costumava firmar os decretos de cargos, as cartas im-pondo exlios e abrindo prises.

Assim, em 1662, um golpe de estado palaciano transferiu o poder para D. Afonso VI e D. Lusa decide afastar-se da corte.

1.6. O reinado de D. Afonso VI

No ano em que o Mercrio Portugus veio a lume, 1663, D. Afonso VI era rei de Portugal e o pas encontrava-se dividido entre aqueles que apoiavam o monarca e a governao do conde de Castelo Melhor e os que desejavam a continuao da regncia de D. Lusa de Gusmo, ou mesmo a abdicao do rei em favor do seu irmo, o infante D. Pedro. Ramos (2009, p. 328) menciona que foi um perodo de intensa luta fac-ciosa entre grupos aristocrticos da corte (), onde j se anunciavam as tenses que iriam surgir, mais tarde. Aps a morte de D. Joo IV, em 1656, e depois do perodo de regncia de D. Lusa de Gusmo (que assu-mira a governao devido menoridade do filho e a mantivera por mais cinco anos), D. Afonso, auxiliado pelo conde de Castelo Melhor, passa, a partir de 1662, a comandar os destinos da nao, aps um golpe de estado perpetuado por si prprio e pelos seus conselheiros, contra a sua me e os seus apoiantes.

D. Afonso vai governar Portugal entre 1662 e 1667. No entanto, este rei apresentava alguns problemas mentais e motores e so vrios os auto-

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res que descrevem a sua incapacidade de assumir as responsabilidades do poder. Labourdette (2003, p. 342) baseando-se num relato de um cronista daquele tempo, conta que, em criana, D. Afonso fora afectado por aquilo a que os mdicos da poca chamavam uma febre maligna que o deixara hemiplgico do lado direito: No via daquele olho, nem ouvia daquele ouvido, e s com grande dificuldade movia a mo e o p direitos. Olivei-ra Marques (1973, p. 446) refere que o monarca era fsica e mentalmente diminudo. Ramos (2009, p. 327) diz que o jovem era, de facto, hemi-plgico e refora as dvidas que a sua sade fsica e mental suscitavam na altura. Bourdon (1973, p. 91) afirma que o monarca era violento e depravado e que dava, frequentemente, provas de um desregramento precoce dos sentidos e do esprito. Ribeiro (1934c, p. 1010) salienta que o prncipe, quando contrariado, tinha acessos de furor e que tentava ba-ter nos que se lhe aproximavam, lanando, mesmo, mo a uma qualquer arma para os atingir. O autor acrescenta que a esses acessos violentos, sucedia um estado de apatia, em que sofria sem reaco tudo o que se lhe pudesse fazer ou dizer. (Ribeiro, 1934c, p. 101). Apesar de todos estes problemas, Ribeiro (1934c, pp. 101-102) afirma que D. Afonso era dono de uma memria prodigiosa, mas [demonstrava] impossibilidade de fi-xar a ateno, ideao claudicante, debilidade de intelecto, que faziam do moo/rei uma eterna criana e criana de pouco sizo que, desde peque-na, dera srios trabalhos me regente, ao aio e aos perceptores, cujos esforos se inutilizavam contra a resistncia duma ndole rebelde.. As suas graves diminuies mentais e motoras e a incapacidade que quase todos lhe reconheciam em reinar fizeram com que, neste perodo, a luta pelo poder estivesse mais intensa que nunca (Saraiva, 1983, p. 28). Havia quem defendesse que D. Lusa deveria voltar a ser regente; havia quem considerasse o infante D. Pedro como um possvel sucessor da coroa; mas havia tambm, como explica Saraiva (1983, p. 28) quem no se preocu-passe em explorar a semidemncia do rei, captando-lhe a simpatia para governar em seu nome..

Na verdade, durante o tempo em que foi rei, D. Afonso esteve rodeado de pessoas que no agradavam nem corte, nem populao em geral. Conta Saraiva (1993, pp. 28 e 29) que um dos que esteve mais prximo do rei, numa fase em que ainda era D. Lusa quem governava, foi Ant-

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nio Conti, um aventureiro italiano que comeou por ser companheiro de arruaas do monarca. Labourdette (2003, p. 343) acrescenta que este rapidamente adquiriu uma influncia preponderante no esprito fraco e na falta de vontade do infeliz soberano que o chamou, como a qual-quer fidalgo, para junto de si no palcio, tendo o rei ficado sob a sua total dominao e enchendo de benesses Conti e os seus familiares (La-bourdette, 2003, p. 343). Mas D. Lusa de Gusmo, ciente da perigosa conjuntura externa em que Portugal se encontrava e prevendo que tal situao em nada iria ajudar, acabou por conseguir mandar prender Con-ti, em 1662, e, mais tarde, embarc-lo para o Brasil (Labourdette, 2003, p. 343). Com Conti, foram tambm presos outros companheiros do rei e igualmente enviados para o degredo, no Brasil (Saraiva, 1983, p. 29). O rei no reagiu bem a esta situao e caiu num estado de abatimento completo e s a presena de esprito e a ambio de um dos seus fi-dalgos de cmara, D. Lus de Vasconcelos e Sousa, conde de Castelo Me-lhor, o conseguiram animar e convencer a tomar as rdeas do governo, o que acabou por acontecer nesse mesmo ano (Labourdette, 2003, p. 344).

Desta situao de debilitao do rei, tambm se aproveitou um grupo de nobres que, em segredo, preparou o fim da regncia de D. Lusa e o incio do reinado efectivo de D. Afonso VI (Saraiva, 1983, p. 29). O au-tor refere que esta ainda procurou contrariar a situao, mas, como j foi dito, o descontentamento com a conjuntura que se vivia era acentuado e ela no teve outra hiptese seno entregar os destinos da nao ao filho (Saraiva, 1983, p. 29).

Assim, em 1662, um golpe de estado palaciano transferiu o poder para D. Afonso VI. Labourdette (2003, p. 342) relata que D. Afonso, dono de uma personalidade muito controversa, soube tomar medidas que se impunham no plano militar, financeiro e institucional, apoiando--se nos seus conselheiros e nas cortes. Conta Labourdette (2003, p. 344) que, feito primeiro-ministro, o conde de Castelo Melhor 39 foi quem, no

39 Em 1662, o conde de Castelo Melhor, Lus Vasconcelos de Sousa, de seu nome, tinha 26 anos. Labourdette (2003, p. 344) menciona que o conde de Castelo Melhor era um patriota autntico e queria consagrar definitivamente a independncia do pas. Possua todas as qualidades de um homem de Estado, exercendo uma hbil diplomacia e revi-gorando um exrcito esgotado por vinte e trs anos de combates.. De acordo com as palavras de Ribeiro (1934d, p. 91), Lus de Vasconcelos, de inteligncia viva, viso

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fundo, governou, deixando que o rei se entregasse aos seus excessos e loucuras, completamente desinteressado dos assuntos polticos, que deixava ao cuidad