LIVRO PROPRIETARIO

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  • 8/17/2019 LIVRO PROPRIETARIO

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    Antropologia Cultural

     

    2014

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    Editorial

    © UniSEB © Editora Universidade Estácio de SáTodos os direitos desta edição reservados à UniSEB e Editora Universidade Estácio de Sá.

    Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou meio eletrônico, e mecânico, fotográco e gravação ou

    qualquer outro, sem a permissão expressa do UniSEB e Editora Universidade Estácio de Sá. A violação dos direitos autorais é punívelcomo crime (Código Penal art. 184 e §§; Lei 6.895/80), com busca, apreensão e indenizações diversas (Lei 9.610/98 – Lei dos Direitos

    Autorais – arts. 122, 123, 124 e 126).

    Comitê EditorialSergio Cabral

    Claudete VeigaClaudia Regina de Brito

    Autor do OriginalAmir Abdala

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      S  u  m  á  r  i o

    Antropologia CulturalCapítulo 1: Caracterização Inicial da

    Antropologia ..................................................... 7

    Objetivos da sua aprendizagem ................................. 7Você se lembra? ................................................................ 7

    1.1 Origens da antropologia ................................................. 8

    1.2 A teoria antropológica evolucionista .................................. 11

    1.3 Alteridade e etnocentrismo ...................................................... 14

    Atividades ............................................................................................ 18

    Reflexão................................................................................................... 18

    Leitura recomendada ................................................................................... 20

    Referências ..................................................................................................... 20

     Na próximo capítulo .......................................................................................... 20

    Capítulo 2: Antropologia Social Britânica:

    o Funcionalismo de Malinowski e de Radcliffe-Brown .................................... 21

    Objetivos da sua aprendizagem ................................................................................ 21

    Você se lembra? .......................................................................................................... 21

    2.1 O método etnográfico ........................................................................................... 22

    2.2 A antropologia funcionalista .................................................................................. 23Atividades ...................................................................................................................... 27

    Reflexão ......................................................................................................................... 27

    Leitura recomendada ...................................................................................................... 28

    Referências ................................................................................................................... 28

     No próximo capítulo ..................................................................................................... 28

    Capítulo 3: O Culturalismo Norte-Americano e os

    Estudos Antropológicos Franceses ........................................................................ 29

    Objetivos da sua aprendizagem .............................................................................. 29

    Você se lembra? ................................................................................................... 29

    3.1 Antropologia cultural ................................................................................ 30

    3.2 Contribuições antropológicas dos estudos franceses ............................. 34

    Atividades ................................................................................................ 39

    Reflexão ................................................................................................ 39

    Leitura recomendada ........................................................................ 43

    Referências ................................................................................... 44 No próximo capítulo ................................................................ 44

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    Capítulo 4: O Conceito de Cultura.............................................................................. 45

    Objetivos da sua aprendizagem ...................................................................................... 45

    Você se lembra? .............................................................................................................. 45

    4.1 Natureza e Cultura ................................................................................................... 464.2 O cultural e o biológico............................................................................................ 51

    4.3 Análise cultural ........................................................................................................ 54

    Atividades ....................................................................................................................... 58

    Reflexão .......................................................................................................................... 59

    Leitura recomendada ....................................................................................................... 61

    Referências ..................................................................................................................... 61

     No próximo capítulo ....................................................................................................... 62

    Capítulo 5: Noções sobre Etnia e Aspectos dos Estudos Antropológicos no Brasil ....63

    Objetivos da sua aprendizagem ...................................................................................... 63

    Você se lembra? .............................................................................................................. 63

    5.1 Uma introdução às teorias da etnicidade ................................................................. 64

    5.2 Os grupos étnicos de Fredrik Barth ......................................................................... 66

    5.3 As relações entre o mundo do índio e o mundo do branco ...................................... 69

    5.4 A Mestiçagem e a questão da formação da nação em Gilberto Freyre .................... 77

    Atividades ....................................................................................................................... 80Reflexão .......................................................................................................................... 81

    Leitura recomendada ....................................................................................................... 83

    Referências ...................................................................................................................... 83

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      A   p  r  e

       s  e  n  t a ç 

     ã  oPrezados(as) alunos(as)

    O que é antropologia? Trata-se deuma questão central em nossos estudos

    nesta disciplina, e para a qual não devemoster a expectativa de oferecer uma solução rápi-da e imediata. É certo que com poucas palavras

     podemos apresentar uma denição básica do termo.Porém, se pretendemos examinar a pergunta em sua am-

     plitude e profundidade, necessitaremos ir além; precisamos percorrer, mesmo que sumariamente, a própria história do

     pensamento antropológico, os temas e conceitos que o consti-

    tuem, suas diferentes vertentes teóricas. Anal, não pretendemosmemorizar o signicado formal de uma palavra, mas sim compre-

    ender seu alcance, acompanhar os sentidos para os quais nos envia,isto é, reetir acerca daquilo que nos é dito pela antropologia, identi-

    car suas relações com a condição humana e com a vida em sociedade.Um exercício preliminar de imaginação nos facilita o acesso às discus-sões antropológicas. Suponhamos que cada um de nós, por um motivo

    qualquer, logo ao nascer ou pouco depois, tivéssemos sido completa-mente afastado de nossos ascendentes biológicos diretos e transferido para outra sociedade – um país distante, por exemplo - na qual seriamoseducados com visões de mundo, valores e hábitos signicativamente dis-tintos daqueles que vigoravam no local de nosso nascimento. Seríamos,então, as mesmas pessoas que somos? Teríamos as mesmas crenças quetemos? Nossas explicações sobre a realidade seriam as mesmas com asquais habitualmente orientamos nossa conduta no mundo?

    Pensando um pouco sobre esses questionamentos, atingimos respos-tas negativas para todos eles. E isso nos remete para a constatação

    de que se nós, humanos, por um lado somos seres naturais, do-tados de uma constituição siológica que nos foi legada pela

    história da natureza, por outro lado excedemos aquilo que ésimplesmente natural: modicamos a paisagem, conferi-

    mos signicados à realidade em que estamos inseridos,

     procuramos compreender a origem e os fenômenos douniverso, instituímos princípios morais que regemnossos comportamentos em sociedade. Em uma

    expressão, construímos a cultura. Ou melhor,

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    elaboramos culturas, pois diferentes sociedades – e mesmo grupos sociaisdistintos no interior de uma sociedade – desenvolvem diferentes hábitos,valores, visões de mundo, quer dizer, diferentes culturas. Nessa perspecti-

    va, os seres humanos são seres naturais e culturais.E, portanto, se de um ponto de vista rigorosamente natural, perten-cemos à unidade da espécie humana, à humanidade, sob o prisma culturalmais adequado seria falarmos em humanidades, posto que se constata a pluralidade de culturas nas quais vivem os seres humanos em sociedades. No interior de uma sociedade ou de um grupo social, por sua vez, a cultu-ra não é algo denitivamente dado e imutável. Os conteúdos culturais nãosão congurações eternas da realidade social, pois a cultura modica-se

    no curso do tempo: transformam-se os costumes, as normas, os padrõescomportamentais dos seres humanos em sociedade.

    Assim, a pergunta o que é antropologia? envia-nos para um amploconjunto de indagações interseccionadas. Anal, o que devemos entender pela palavra cultura? Como cultura e natureza se relacionam? Em quemedida culturas distintas condicionam diferentemente as visões de mundodos seres humanos? É correto hierarquizarmos as culturas humanas ou

    identicarmos estágios inferiores e superiores de uma cultura humana?Quais são as formas pelas quais as diferentes culturas se relacionam umascom as outras? As relações culturais envolvem relações de poder? Comoa cultura interfere em nossa existência, na formação de nossos laços afeti-vos, em nossas escolhas prossionais?

    Esses são alguns dos problemas teóricos contemplados pelas inves-tigações antropológicas, pela área do saber que atualmente chamamosde antropologia cultural. No itinerário deste livro, examinamos essas

    questões mediante a exposição introdutória das principais escolas de pensamento antropológico, de suas diferentes perspectivas metodológicase dos conceitos desenvolvidos na esfera da antropologia. Pretendemos,com isso, não somente caracterizar a atividade e a produção discursivada antropologia, mas sobretudo indicar a pertinência das contribuiçõesantropológicas para as nossas vidas e para nossas reexões sobre o mundocontemporâneo.

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      C  a  p   i

       t  u   l  o  1 

    Caracterização Inicial daAntropologia

     Neste capítulo, discorreremos sobre a origemdas questões antropológicas e da antropologiacomo área relevante do saber cientíco contempo-

    râneo. Delinearemos ainda a concepção antropológicaevolucionista, intensamente presente na primeira geração

    de estudos antropológicos. Por m, percorremos as noçõesde etnocentrismo e de alteridade, termos centrais nas discus-

    sões antropológicas.

    Objetivos da sua aprendizagemCompreender as origens da antropologia e suas características fun-

    damentais.

    Você se lembra?De ouvir termos como antropologia e evolução em seu dia a dia? De en-

    contrar, em textos jornalísticos ou literários, as palavras etnocentrismo ealteridade? Neste capítulo, trataremos desses temas e de conceitos sob o prisma da investigação antropológica.

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    Antropologia Cultural

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    1.1 Origens da antropologia

    Em sentido muito abrangente e, portanto, pouco preciso, a antropo-logia pode ser inicialmente denida como o estudo acerca do ser humano

    como ser social e cultural, isto é, em suas dimensões socioculturais. Dessaforma, situa-se no círculo das denominadas ciências humanas e sociais,como a história, a geograa, a sociologia e a psicologia, dentre outras.Vistas em conjunto, as ciências humanas e sociais distinguem-se das ciên-cias naturais ou da natureza, que dizem respeito a áreas do conhecimentocomo a química, a física e a biologia.

     Nas origens da chamada modernidade, especialmente no século XVII,

    desenvolve-se a ciência moderna, inicialmente direcionada exclusivamenteao conhecimento da realidade natural e baseada em métodos experimentaisconsiderados adequados à revelação das leis da natureza. As ciências natu-rais são assim intituladas porque têm a natureza como objeto de conheci-mento, ou seja, mediante a vericação empírica, a observação sistemática eexperimental dos fenômenos naturais, pretende-se identicar as relações decausalidade e a regularidade presentes nos processos da natureza.

    As ciências humanas e sociais, por seu turno, têm nos temas especi-

    camente humanos o seu objeto de estudos, quer dizer, voltam-se para asquestões que dizem respeito centralmente à humanidade em sua existência psíquica, histórica, social e cultural. Surgem, a partir do século XVIII, emum contexto histórico marcado por profundas transformações econômicas,sociais e políticas no ocidente, bem como no lastro dos êxitos alcançadosno campo das ciências naturais. Quanto a este último aspecto, relacionadoao crescente prestígio da ciência moderna, pode ser explicado simplica-

    damente do seguinte modo: a consolidação das explicações cientícas dosfenômenos da natureza estimulava o esforço intelectual e metodológico pela busca de explicações cientícas para os fenômenos humanos e sociais.

    Entretanto, a tarefa proposta pelas ciências humanas e sociais é, emcerto sentido, mais complexa do que a realizada pelas ciências naturais.Para estas, há uma nítida separação entre o sujeito – o ser humano – e oobjeto do conhecimento – os fenômenos da natureza. Nas ciências huma-nas e sociais, não é tão clara a fronteira entre sujeito e objeto, existindo,

    isto sim, uma interpenetração mais radical entre ambos, a saber, prevalecenotável coincidência entre sujeito e objeto, pois trata-se, em suma, doser humano que pretende conhecer a própria humanidade. Assim, se noâmbito das ciências da natureza, nas quais se pressupõe maior nível de

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    Caracterização Inicial da Antropologia – Capítulo 1

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    objetividade, notam-se divergências teóricas e metodológicas entre pes-quisadores, tal situação é ainda acentuada nas ciências humanas e sociais,caracterizada por diversas tendências interpretativas.

     Não é diferente, evidentemente, com a antropologia, considerando-

    -se sua condição de ciência humana e social. Na história do pensamentoantropológico, desenvolvem-se perspectivas metodológicas e teóricasdistintas e, em alguns casos, opostas, sendo possível destacar variações notocante aos temas pesquisados, às concepções epistemológicas e à ênfaseatribuída a aspectos da realidade humana.

    Do mesmo modo que as demais ciências humanas, a antropologiatoma a humanidade como objeto de conhecimento, mas com um diferencial

    decisivo: seu interesse volta-se para a diversidade de formas de cultura esociedade. A plasticidade do homem e, em outros termos, a pluralidade demodelagens que assume a existência humana guram no centro das aten-ções da disciplina. É certo que, historicamente, a antropologia nasce comoo estudo dos “povos primitivos”, ou seja, daquelas sociedades de pequenaescala, desprovidas de escrita, com organização social mais “simples”, mar-cadas pelo peso da tradição e por certos costumes considerados “exóticos”.

    Contudo, a despeito dessas origens, a antropologia não deve ser

    confundida com uma suposta “ciência das sociedades primitivas” porque,além do seu evidente anacronismo, uma denição assim restrita carece deembasamento real, pois outras áreas, como a demograa, a geograa e a psicologia social, também se ocupam do mesmo objeto de investigação.Além disso, há muito que os estudos antropológicos se estenderam aosfenômenos das sociedades ditas “civilizadas”.

    Mesmo nesta seara, a dos fatos sociais considerados mais complexos,

    o conhecimento antropológico se distingue uma vez que prima pela aborda-gem microscópica da realidade e fundamenta-se na experiência etnográca,resultante da imersão do pesquisador em um universo cultural que é, de algummodo, distante do seu ou, ainda, do encontro com modos de vida e com su- jeitos sociais que lhe causam estranhamento. Nesse sentido, é esclarecedor ocomentário feito pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss:

    Enquanto a sociologia se esforça em fazer a ciência social do obser-

    vador, a antropologia procura, por sua vez, elaborar a ciência socialdo observado: seja que ela vise atingir, em sua descrição de socie-

    dades estranhas e longínquas, o ponto de vista do próprio indígena,

    seja que ela amplie seu objeto, até incluir nele a sociedade do obser-

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    Antropologia Cultural

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    vador, mas tentando então extrair um sistema de referência fundado

    na experiência etnográca, o que seja independente, ao mesmo tem-

     po, do observador e de seu objeto (LEVI-STRAUSS, 1973, p 404).

    Através, portanto, da etnograa, o empreendimento antropológico busca tornar a realidade observada acessível, com o cuidado de não esva-ziar sua singularidade, mas, pelo contrário, no esforço de reter a perspec-tiva de quem a experimenta. Ainda mais, procura capturar as propriedadese os sentidos dos fenômenos sociais, convertendo o distante em algo próximo sem dissolver a diferença, e forjando um sistema, ou uma inter- pretação, reconhecível e aceitável até mesmo para o observador indígena.

    De todo modo, persiste ainda uma tendência geral de se assumirque a curiosidade intelectual pela diferença ou pelo ponto de vista do “ou-tro” estaria na origem da antropologia. Como consequência disso, algunsestudiosos defendem que já se pode falar em pensamento antropológicoquando se consideram os escritos losócos centrados na descrição doscostumes exóticos de povos distantes ou na reexão sobre as diferençasentre os grupos humanos.

    Ilustrativo desse propalado interesse pelo “outro”, mas, ao mesmo

    tempo, excepcional pela adoção de uma postura claramente relativistaface a ele, é o ensaio do lósofo francês Michel de Montaigne intitulado“Dos canibais” (1580). Na contracorrente da sensibilidade de sua época,segundo a qual o estatuto de inferioridade dos costumes dos então chama-dos “selvagens” era algo dado de antemão, Montaigne (1533-1592) reetesobre a disposição geral de se desqualicar como bárbaras as práticas ado-tadas pelos nativos, inclusive, ou principalmente, o canibalismo.

    O autor advertia que, antes de condená-las, deveriam seus contem- porâneos olhar para as faltas cometidas por sua própria nação. Seu argu-mento é que julgamos inaceitável o modo como vivem e agem os povosremotos porque simplesmente não seguem eles as mesmas regras que oVelho Mundo. Nosso parâmetro corresponderia sempre às ideias, normase aos costumes da nação a qual pertencemos, e ao que foge do que nos éfamiliar atribuímos um valor inferior. Segundo o exemplo do autor, entreos selvagens, parece natural consumir a carne do inimigo derrotado em

    combate, do mesmo modo que, para os portugueses, a vingança consisteem enterrar o adversário até a cintura, cravá-lo de echas nas áreas desco- bertas e, por m, enforcá-lo. As duas maneiras de ser e agir são bem dife-rentes, mas, aos olhos de cada um dos grupos, suas próprias práticas lhes

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    Caracterização Inicial da Antropologia – Capítulo 1

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     parecem legítimas. Por outro lado, desaa Montaigne, se procedêssemos aum distanciamento com relação às nossas próprias ações, nossas técnicasde guerra não se revelariam menos nobres? Assim, ele arma: “Podemos, pois, achá-los bárbaros em relação às regras da razão, mas não a nós, que

    os sobrepassamos em toda a espécie de barbárie” (MONTAIGNE, 2002).Montaigne, assim como outros lósofos, anunciaram temas ou

    debates de natureza antropológica, entre os séculos XVI e XVIII. Mes-mo interessando-se pelos povos do Novo Mundo, ainda não estavam na presença da construção de um saber cientíco tal como conhecemos hoje,nem da institucionalização de um campo de conhecimento.

    1.2 A teoria antropológica evolucionista Efetivamente, o desenvolvimento da antropologia enquanto dis-

    ciplina acadêmica foi um processo gradual relacionado a personagens econdições particulares. Uma dessas circunstâncias diz respeito à coletade artefatos e informações sobre os então chamados “povos primitivos”e a organização de coleções etnográcas em museus nacionais da Euro- pa e Estados Unidos no século XIX. Os objetos e dados coletados por

    viajantes, missionários e funcionários dos Impérios Coloniais na Áfricae América eram classicados e catalogados por eruditos que se tornaramreconhecidos como especialistas em “sociedades primitivas”.

    A primeira geração de antropólogos estava, assim, vinculada aosmuseus e atrelada aos seus gabinetes, de onde formulavam suas teoriase grandes generalizações sobre povos remotos, com os quais, salvo rarasexceções, efetivamente nunca tinham tido contato, mas dispunham de in-

    formações compiladas por terceiros.A marca desse período formador da antropologia é o predomínio do paradigma evolucionista. O evolucionismo pressupunha a existência deuma história universal e linear rumo ao progresso, porém os diferentes gru- pos humanos se encontravam em fases desiguais de desenvolvimento. A so-ciedade ocidental europeia encarnava o nível mais adiantado de progressoalcançado pela humanidade, enquanto os demais povos, do Oriente, África,América e Austrália, ainda estavam nos estágios inferiores da evolução. O

    que estes teóricos concebiam ser “a civilização” – e que correspondia evi-dentemente à sua própria sociedade – ostentava a forma mais complexa decultura e organização social conhecida, marcada, entre outros traços, pela presença do pensamento cientíco, da propriedade privada, do governo,

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    Antropologia Cultural

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    da religião monoteísta e do casamento monogâmico. Por outro lado, o queidenticava os povos chamados de selvagens ou primitivos, segundo osevolucionistas, era justamente a ausência dos predicados previamente cita-dos: sem escrita, sem Estado, sem economia de mercado, sem ciência, e daí

     por diante. Vivenciando uma condição de atraso, tais povos apresentariamcongurações mais simples de parentesco, tecnologia e crenças.

    Dentre os mais notórios representantes da antropologia evolucio-nista, estão os britânicos Edward B. Tylor (1832-1917) e James Frazer(1854-1941), e o norte-americano Henry Morgan (1818-1881). Institui-ções como o direito, o parentesco, a magia e a religião guravam entre ostemas que mais despertavam o interesse desses teóricos. Extraídos de seu

    contexto social de origem e uso, os elementos e características de cadauma dessas instituições eram separados e classicados dos mais simplesaos mais complexos, sendo então dispostos em uma escala evolutiva.

    Edward Tylor compreende a história cultural da humanidade como parte da história da natureza, ou seja, para esse pioneiro da antropologia, pensamentos, desejos e ações humanas são determinados por leis, da mes-ma forma que os fenômenos da natureza são regidos por leis universais.Dessa forma, ele rejeita especulações sobre interferências extranaturais ou

    sobre espontaneidade não causal na história humana, isto é, concebe a his-tória da humanidade como o desdobramento de leis xas, que conduzemas sociedades humanas de um estágio sociocultural primitivo para formasde organização mais avançadas, encontrando seu ponto máximo de evolu-ção na sociedade moderna, industrial e cienticista. Semelhantes às tesesde Tylor são as concepções de Lewis Morgan e de James Frazer. SegundoMorgan, o percurso evolutivo da cultura humana tem como seu ponto

    de partida a selvageria, atravessando o nível intermediário da barbárie econcluindo-se no desenvolvimento da civilização. Frazer, por sua vez,estabelece como sequência evolutiva da humanidade os estágios por eledenominados de mágico e de religioso, sendo que este seria, nalmente,substituído pela chamada era cientíca.

     Nota-se que, para o pensamento antropológico evolucionista, nãohá pluralidade cultural, isto é, em sentido rigoroso, não existe em cultu-ras humanas, mas tão somente a cultura humana em sua singularidade.

    Adotando como referência os aspectos culturais da moderna civilizaçãoocidental, os antropólogos evolucionistas hierarquizam as sociedadeshumanas, considerando primitivas ou atrasadas todas as formas de orga-nização social distintas desse modelo ocidental. Essa crença em um único

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    Caracterização Inicial da Antropologia – Capítulo 1

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    modelo realmente válido de organização sociocultural revela a profundainspiração etnocêntrica do evolucionismo.

    É certo que a concepção evolucionista e etnocêntrica desses primeirosantropólogos não penetra verdadeiramente a diversidade cultural da huma-

    nidade, motivo pelo qual, como observaremos, recebe críticas severas dos posteriores estudiosos da antropologia. Entretanto, não devemos ignorar suacontribuição para a constituição dessa área do saber humano. Quanto a esseaspecto, é interessante registrarmos as palavras de François Laplantine:

    Esses homens [...] colocavam o problema maior da antropologia: ex-

     plicar a universalidade e a diversidade das técnicas, das instituições,

    dos comportamentos e das crenças, comparar as práticas sociais in-nitamente distantes umas das outras tanto no espaço como no tempo.

    Seu mérito é ter extraído mesmo se o zeram com dogmatismo,

    mesmo se suas convicções fossem mais passionais do que racionais

    essa hipótese mestra sem a qual não haveria antropologia, mas ape-

    nas etnologias regionais: a unidade da espécie humana, ou, como

    escreve Morgan, da “família humana”. [...] São eles que mostraram

     pela primeira vez que as disparidades culturais entre os grupos hu-

    manos não eram de forma alguma a consequência de predisposiçõescongênitas, mas apenas o resultado de situações técnicas e econômi-

    cas. Assim, uma das características principais do evolucionismo [...]

    é o seu antirracismo. (LAPLANTINE, 2010, p.72-73).

    Evidentemente, ao postular a irracionalidade e a inferioridade dasmanifestações culturais dos povos do Novo Mundo, os evolucionistas

    não trouxeram análises muito satisfatórias sobre o funcionamento e osignicado de suas instituições, como, por exemplo, a magia. Entretanto,ainda assim contribuíram decisivamente para que a humanidade dos po-vos selvagens deixasse de ser colocada em dúvida, demonstraram que taishomens não viviam segundo leis da natureza, mas obedeciam às normasde sua organização social, reconheceram a legitimidade da cultura destes povos e impuseram a relevância cientíca de seu estudo.

    Apesar de suas ambições pouco modestas – nada menos do que in-

    ventariar a diversidade dos costumes sociais e escalonar as sociedades hu-manas, por exemplo – e dos seus resultados pouco expressivos no tocantea um verdadeiro entendimento da realidade vivenciada pelos nativos, osevolucionistas lançaram as bases da nova disciplina.

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    Antropologia Cultural

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    Contudo, é por meio das inovações teórico-metodológicas lança-das nas primeiras décadas do século XX que a antropologia consolida-secomo ciência social moderna.

    O rompimento denitivo com a abordagem evolucionista é manifes-

    tado através de algumas operações essenciais. Por um lado, perde centra-lidade a dicotomia civilização/barbárie. Parece claramente insatisfatória aatitude de eleger a civilização ocidental como medida e modelo de desen-volvimento a partir do qual todas as outras formas de sociedade devem seravaliadas e rotuladas. Por outro lado, deixa de gurar como obrigatóriaa análise diacrônica da cultura, ou seja, os fenômenos culturais não mais precisam ser situados no eixo da história para terem suas características

    reconhecidas e apreciadas. O costume nativo passa a interessar não maiscomo exemplar de uma etapa da evolução social, nem como prova dairracionalidade de grupos humanos mais atrasados, mas sim como umelemento que, ao lado de outros, constitui parte de uma cultura ou organi-zação social, e é esta totalidade que cumpre estudar e reconstituir.

    Por outro lado, emerge também uma nova atitude com relação à prá-tica de investigação, fruto de uma preocupação com as condições de coletado dado etnográco, com a origem dos relatos e a construção da base em-

     pírica da reexão antropológica. Passa a haver interesse pela realização de pesquisa de primeira mão e pelo testemunho direto da vida nativa.

    1.3 Alteridade e etnocentrismo 

    Falar em alteridade é falar sobre a condição de ser do “outro” e, portanto, é algo que diz respeito ao jogo identidade/diferença. Sistemas

    de alteridade articulam a oposição “nós”/”eles” segundo uma gradaçãoda diferença e podem conceber “outros” próximos (o vizinho), distantes(o estrangeiro; o primitivo) e absolutos (a natureza, os mortos). Do pontode vista humanista, por exemplo, os animais encarnariam a alteridademáxima (veremos, em um próximo capítulo, que certos povos ameríndiosconstroem a alteridade de uma perspectiva distinta).

     No panorama das ciências sociais, a antropologia é a disciplina queinstitui a alteridade como seu objeto de estudo. Consiste em um saber que

    se arvora a competência de revelar a verdade do “outro”, de tornar umaoutra realidade inteligível, de traduzir a diferença em termos familiares ouinterpretar uma visão de mundo diferente. Em outros termos a tarefa da

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    Caracterização Inicial da Antropologia – Capítulo 1

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    antropologia já foi denida de diversas maneiras – tradução, interpretação,decodicação, representação – mas o problema da alteridade se manteve.

    É signicativo que as próprias condições que permitiram o oresci-mento da antropologia, no século XIX, envolvam um ambiente intelectual

    em que a noção de alteridade ganhava proeminência, anal o contextoera o de confronto com o exotismo dos povos do além-mar – contatadosalguns séculos antes. A construção do imaginário europeu sobre o “outro”se forjou ao longo de séculos de narrativas de viajantes e conquistadoresem um extenso período que cobre os descobrimentos, a conquista daAmérica, o estabelecimento dos Impérios Coloniais, a organização doempreendimento missionário. Mas qual era a imagem dos povos do Novo

    Mundo que prevalecia na época? Eles eram representados ora como seresirracionais, infantis e tolos, ora como monstros, seres bestiais e perigosos.O ponto de partida era sempre o contraste com a civilização europeia, oque determinou que os chamados “primitivos” fossem encarados tanto pela ótica da falta: sem roupa, sem escrita e sem Estado, quanto pela óticado desregramento: sexualidade desviante, canibalismo, crueldade.

    Mesmo atualmente, com as mudanças no regime de alteridade com o qual a antropologia

    trabalha, Mariza Peirano defende que a noção permanece central à disciplina. Hoje, deixoude prevalecer entre as antropologias metropolitanas a exigência de que o antropólogo viajeao além-mar para um encontro com uma “alteridade radical”. Também, no caso da tradiçãobrasileira, deu-se a inclusão de objetos de estudo mais “próximos”, além da consagrada pre-ferência pela população indígena – representação máxima da diferença por aqui. Contudo,mesmo na chamada “antropologia feita em casa”, trata-se de investigar um “outro”, aindaque próximo, e a questão da construção da distância, ainda que mínima, permanece central.Assim, Peirano observa que a alteridade mudou de dimensão, mas não foi eliminada porqueé um aspecto fundante da disciplina, sem o qual ela não pode se reconhecer (PEIRANO, 1999).

    Segundo Rapport e Overing, o Ocidente adotou um sistema de alte-ridade pautado pelo princípio da exclusão. Nesse sistema, os processos deconstrução da diferença e de caracterização do estranho como monstruosoimplicam na instituição de fronteiras rígidas entre o “nós” e o “eles”, eli-minando a possibilidade da interação. No discurso dos conquistadores, aimagem que surge dos povos do Novo Mundo corresponde a uma perfeitainversão daquilo que os europeus julgam ser a sua própria sociedade. O

    selvagem aparece então como a antítese do civilizado o que assegura que adiferença seja percebida como absoluta. A distância construída é tão abissalque sugere a negação da humanidade do “outro”. Assim, o esquema colonialde processamento da alteridade não somente reduziu a diferença ao exotis-

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    Antropologia Cultural

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    mo, como promoveu a neutralização de sua potência, tratando de rebaixá-la para rearmar a superioridade europeia (RAPPORT E OVERING, 2000).

    Contudo, a exclusão e a inferiorização não consistem nas únicasformas de apreensão da alteridade. Rapport e Overing sugerem que há

    também um regime inclusivo da alteridade característico dos índios daAmazônia. No sistema indígena, o estranho e o desconhecido não deixamde ser encarados como monstros em potencial (o diferente pode semprerepresentar um perigo), no entanto tal sistema enfrenta o problema daneutralização dos poderes do “outro” prescrevendo como solução a assi-milação destes poderes, o que no caso de alguns povos implica na práticado canibalismo ritual. A estratégia para lidar com os perigos da alteridade

    consiste na absorção dos poderes do “outro” através da antropofagia – noexemplo dos guerreiros Tupinambás, isto se dava através da ingestão deum pedaço do corpo do inimigo (RAPPORT e OVERING, 2000).

    Resta pouca dúvida que apesar de se orientarem por princípios opos-tos – inclusão versus exclusão –, os dois modelos de enfrentamento da alte-ridade expostos aqui embutem preconceitos etnocêntricos. Tanto europeuscomo indígenas situam suas respectivas sociedades no centro do universo,identicando-se como os legítimos humanos e colocando a humanidade do

    “outro” em questão ou percebendo-o como uma criatura monstruosa, um serdesprezível ou um perigo. E, de fato, não poderia ser de outro modo se acei-tamos a premissa de Claude Levi-Strauss de que o etnocentrismo é um traçouniversal, igualmente compartilhado por todas as culturas. Nenhuma atitudeseria mais característica do gênero humano do que a do grupo que duvida dahumanidade alheia. Nas palavras de Levi-Strauss:

     Nas Grandes Antilhas alguns anos após a descoberta da América,enquanto os espanhóis enviavam comissões de investigação para

    indagar se os indígenas possuíam ou não alma, estes últimos dedi-

    cavam-se a afogar os brancos feitos prisioneiros para vericarem

    através de uma vigilância prolongada se o cadáver daqueles estava

    ou não sujeito à putrefação (LEVI-STRAUSS, 1976, p 60).

    Os membros de uma determinada sociedade naturalmente consi-

    deram os seus próprios valores, costumes e crenças como os mais corre-tos e tendem a tomá-los como parâmetro quando são confrontados comum modo de vida ou uma ideologia diferente. Ou seja, o etnocentrismocorresponde à avaliação culturalmente centrada que cada grupo faz do

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    Caracterização Inicial da Antropologia – Capítulo 1

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    outro. A construção ou representação etnocêntrica do “outro” pode tan-to rebaixá-lo ao nível dos animais, quanto elevá-lo ao nível dos deuses; pode tanto negar-lhe atributos humanos de valor, evocando sentimentosde desprezo e rejeição, como pode imputar ao “outro”, poderes mágicos,

     prescrevendo atitudes de medo ou reverência com relação a ele.Em resumo, se a antropologia nasceu com a promessa de capturar a

    alteridade e torná-la acessível a um “nós” europeu, ocidental, a correnteevolucionista fez isso sem se livrar do esquema intelectual etnocêntricodominante em sua época, continuando a enquadrar a diferença a partir do princípio da exclusão. De fato, embora o conjunto disforme de exotismoencontrado no além-mar passasse a ser catalogado e organizado em tribos,

    costumes, estágios evolutivos, níveis tecnológicos e até em culturas, oevolucionismo manteve o rebaixamento da diferença; o “outro” continuoureduzido a um estatuto inferior.

    Porém, logo se tornou evidente que a viabilidade do projeto an-tropológico de conhecer a alteridade dependia de dois procedimentosmetodológicos essenciais: a objetividade do olhar do etnógrafo e o distan-ciamento deste com relação aos valores de sua própria sociedade. Estasduas operações são consideradas etapas básicas para a antropologia se

    libertar da armadilha do etnocentrismo. A disciplina passa a perseguir esteempreendimento, tornando-se nesse sentido bem sucedida, por meio dodesenvolvimento do funcionalismo britânico e do culturalismo america-no, abordados a seguir.

     No âmbito do culturalismo, ainda foi forjado um dos antídotos maisecazes contra o etnocentrismo (assim como contra racismos e provin-cianismos ans), tratava-se da atitude de rejeitar o julgamento de outra

    cultura com base nos valores da nossa própria. O relativismo cultural pre-conizou que todas as culturas deveriam ser consideradas igualmente váli-das e compreendidas em seus próprios termos, já que são os preconceitosderivados do apego às convenções culturais às quais estamos familiariza-dos que nos impede de considerar aceitável o comportamento do outro.Do mesmo modo que nós tendemos a aprovar nossas próprias normas deconduta, as quais nos parecem absolutamente naturais, qualquer povo sereconhece em sua cultura, a qual se apresenta como bastante satisfatória

     para aqueles que a vivem. Inexiste assim medida absoluta para informar julgamentos, os valores são relativos e, portanto, a avaliação do costumedo outro com base no que julgamos bom e aceitável representa um obstá-culo ao conhecimento verdadeiramente antropológico.

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    Antropologia Cultural

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     Atividades

    01. Explique a contribuição do pensamento losóco de Michel de Montaigne para a antropologia.

    02. Caracterize a concepção antropológica evolucionista.

    03. Explique os signicados dos termos etnoocentrismo e alteridade.

    Reflexão 

    Ao propor um relato da história da antropologia, Eriksen e Nielsenfazem um questionamento provocativo acerca da posição marginal da dis-

    ciplina no contexto de sua institucionalização. Algumas peculiaridades daantropologia contribuiriam para situá-la de forma diferenciada no quadrodas demais ciências sociais. Como os autores apontam, nos casos da Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, a liderança da disciplina ou a fundaçãodas correntes principais são feitos muitas vezes atribuídos a estrangeiroscomo o polonês Malinowiski e o judeu alemão Franz Boas. Também sedestacava no campo de estudos antropológicos a presença de mulheres –

    como Audrey Richards, Ruth Benedict – e de pesquisadores vindos dascolônias inglesas – Meyer Fortes e Max Gluckman – o que não era tãocomum no meio acadêmico em geral (ERIKSEN ; NIELSEN, 2007).

    Contribuía ainda para conferir uma identidade marginal à disciplinaa predileção por investigações orientadas “para baixo” assim como porassuntos eminentemente “estranhos” ou “incomuns” como terminologiasde parentesco, linhagens na África, ritos mágicos, danças ameríndias etrocas cerimoniais na Melanésia. A rigor, a própria proposta de um saber

    que se ocupa de tornar o exótico algo familiar aliada ao esforço de relati-vização da cultura do “outro” e de atribuição de valores iguais ao ponto devista do nativo e às concepções da sociedade do cientista devem ter soadocomo empreendimentos heterodoxos para a época.

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    Caracterização Inicial da Antropologia – Capítulo 1

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    Um caso notórioem que o antropólogo pôde

    fazer seu trabalho de campo adespeito de um contexto desfavorável

    à presença europeia é o de E. E. Evans-Pritchard entre os Nuer. Como o próprio autor

    esclarece, este povo acabara de ser pacificadocom uso de violência pelos britânicos quando ele

    se estabeleceu entre eles, justamente a pedidodo governo colonial (Evans- Pritchard, 2008).

    Todavia, tais fatores não implicaram em desprestígio para a novaciência social e, de fato, talvez tenham até contribuído para aumentar suavisibilidade. A primeira metade do século XX testemunhou a expansão daantropologia e sua institucionalização nos principais centros universitá-

    rios da Europa e América, como Cambridge, Oxford, Columbia e Chica-go. É digno de nota também o estabelecimento da disciplina na “periferia”do mundo, com destaque para as instituições que avançaram a pesquisaantropológica em países como o México (Escola Nacional de Antropolo-gia e História), Brasil (Museu Nacional; Escola de Sociologia e Políticade São Paulo), Zâmbia (Instituto Rhodes-Livingstone) e África do Sul(Universidade do Cabo).

    Outro ponto que gostaria de exortar à reexão diz respeito às relaçõesentre antropologia e colonialismo. Não se pode deixar de notar que mesmoindiretamente, a empresa colonial foi um evento que favoreceu o desenvol-vimento da pesquisa de campo de natureza antropológica. É difícil não re-conhecer que a observação direta de povos considerados então “primitivos”fez-se possível num contexto em que estes estavam sendo submetidos a umsistema de dominação pelos grandes estados nacionais europeus – que, emúltima instância, era o que de fato permitia a pesquisadores brancos viver

    com segurança entre eles, compartilhando com intimidade de seu cotidiano,inclusive em situações de tensão nas colônias (FIGUEIREDO, 2004).

    As relações entre colonialismo e antropologia são cercadas de con-trovérsia e constituem assunto de estudos de historiadores da disciplinaque têm se empenhado em esclarecer, por um lado, de que modo as con-dições coloniais afetaram o desenvolvimento da disciplina, e de outro, osusos que o sistema fez do conhecimento etnográco que era produzido.

    Uma hipótese aceita, por exemplo, é que a ên-fase do evolucionismo no primitivismo eno atraso dos povos da África, Índia eAmérica teria, de fato, contribuído para referendar através de um ar-gumento científico a dominaçãocolonial. Pode ter ficado maisfácil convencer a opinião pública

    europeia de que se tratava de umamissão civilizadora: os europeusestavam levando desenvolvimento a povos atrasados.

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    Antropologia Cultural

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     Leitura recomendada 

    Aprender antropologia, de François Laplantine (Editora Brasiliense),oferece-nos uma introdução concisa e competente acerca da antropologia

    e de suas principais vertentes.

    Referências

    CASTRO, Celso (org.). Evolucionismo cultural. Rio de Janeiro: Zahar,2005.

    ERIKSEN, Thomas H. e NIELSEN, Finn S. História da antropologia.Pe-trópolis, RJ: Vozes, 2007.

    EVANS-PRITCHARD, Edward. “Algumas reminiscências e reexões so- bre o trabalho de campo” In: Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

    FIGUEIREDO, Regina E. D. Cuidando da saúde do vizinho: as atividades

    de antropólogos norte-americanos no Brasil

    GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: JorgeZahar, 2001.

    LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Brasiliense,2010.

    MONTAIGNE, Michel De. Os Ensaios. São Paulo: Editora Martins Fontes,2002.

    PEIRANO, Mariza. A alteridade em contexto: a antropologia como ciên-cia social no Brasil. Série Antropologia. Brasília: UNB, 1999.

    Na próximo capítulo 

    Avançaremos em nossos estudos antropológicos, examinando o méto-do etnográco e a teoria funcionalista da antropologia social britânica.

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     Antropologia Social

    Britânica: o Funcionalismo

    de Malinowski e deRadcliffe-Brown Neste capítulo, trataremos do método etnográco

    e da consolidação da antropologia como disciplinacientíca do conhecimento. Examinaremos também as

     perspectivas antropológicas funcionalistas da antropologiasocial britânica.

    Objetivos da sua aprendizagemCompreender a importância do método antropológico e a concep-

    ção antropológica funcionalista.

    Você se lembra?De ouvir a expressão função social e os signicados que ela recebe emnosso cotidiano? Neste capítulo, procuraremos compreender a vertente

    antropológica funcionalista.

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    Antropologia Cultural

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    2.1 O método etnográfico 

    Vericamos, no capítulo anterior, que as críticas à teoria antropoló-gica evolucionista dirigem-se ao seu etnocentrismo, à sua análise unica-

    mente diacrônica da cultura e à sua ausência de sistemáticas pesquisas decampo.

    Para as novas tendências antropológicas, caracterizadas pelos tra- balhos de estudiosos como Franz Boas, Bronislaw Malinowski e ClaudeLévi-Strauss, o evolucionismo, com seu etnocentrismo expresso na dico-tomia civilização/barbárie, partiu do falso pressuposto de que a civiliza-ção ocidental contemporânea é a medida e o modelo de desenvolvimento

    a partir do qual todas as outras formas de sociedade devem ser avaliadas. Nas pesquisas desenvolvidas pelos antropólogos que procuram se afastardo viés teórico evolucionista, as outras culturas passam a interessar nãomais como supostos exemplares de uma etapa da evolução social, nemcomo prova da irracionalidade de grupos humanos considerados maisatrasados, mas sim como totalidades sociais próprias e reveladoras da di-versidade cultural humana.

    Esses antropólogos, embora reconheçam nos evolucionistas a fun-

    dação da preocupação antropológica, destacam a necessidade de rigorosas pesquisas etnográcas como base indispensável para a formação de umsaber antropológico realmente sólido acerca das culturas humanas. Assim,se a primeira geração de antropólogos não se dedicou sistematicamente a pesquisas de campo, baseando-se em relatos de viajantes, cronistas e mis-sionários sobre os povos distantes, os novos antropólogos assumem umaatitude armativa em relação às práticas de investigação, preocupando-se

    com as condições de coleta dos dados etnográcos, com o registro dosrelatos, ou seja, com a construção rigorosa de um alicerce empírico para areexão antropológica.

    Desde então, a centralidade do método etnográco para a antropolo-gia tende a ser tão pronunciada que chega a constituir parte do que tradi-cionalmente dene a disciplina. A pesquisa de campo intensiva nasce coma moderna antropologia e torna-se uma exigência tanto para a confecçãode monograas sobre os povos “exóticos” quanto para a legitimação do

    saber produzido sobre o outro. Mas em que consiste tal método? Em pri-meiro lugar, a ideia de pesquisa de campo implica que o pesquisador sedesloque para o lugar que lhe propiciará o contato direto com seu objetode estudo, ou seja, ele vai a campo e lá permanece o intervalo de tempo

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    Antropologia Social Britânica: o Funcionalismo de Malinowski e de Radcliffe-Brown – Capítulo 2

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    necessário para testemunhar os fatos que deseja interpretar ou analisar.Tradicionalmente, o “campo” do antropólogo era uma “aldeia”, em geralna África, América ou em uma ilha do Pacíco. Hoje, o lócus da investi-gação etnográca pode ser uma empresa, um hospital ou mesmo um ar -

    quivo. O campo se refere ao lugar ou cenário onde o antropólogo procedeàs suas observações. Em segundo, as notórias palavras de advertência deClifford Geertz: “Os antropólogos estudam nas aldeias e não as aldeias”.

    Essa distinção é fundamental, porque o que interessa é o que o pesquisador procura, para quais fatos dirige seu olhar investigativo, que perguntas faz e que teoria o orienta. Em campo, a técnica privilegiada pelo etnógrafo é a “observação participante”, que prevê o convívio do

     pesquisador com a comunidade perscrutada. A proposta é interagir comas pessoas e procurar imergir no cotidiano do grupo social, inclusive atra-vés da participação em suas atividades e eventos. Não somente conversarcom as pessoas, fazer perguntas e entrevistas, mas viver a rotina do grupoimplica o engajamento em atividades como a caça, a pesca, os rituais, ascelebrações, as refeições. Durante sua estadia em campo, o etnógrafoescuta, observa, colhe dados, presta atenção aos detalhes e anota. Suasanotações constarão de um caderno de campo.

    Predomina ainda nos clássicos estudos de campo a perspectivasincrônica, ou seja, a análise da sociedade no tempo presente. A propostadestes trabalhos era oferecer um retrato da sociedade, um relato dos vá-rios aspectos da vida social real de um grupo no momento em que trans-corriam e eram observados pelo antropólogo. Artifícios como o uso do presente do indicativo e a eliminação da perspectiva histórica congelam aação, suspendem o tempo e criam a ilusão de que o objeto da descrição é

    contemporâneo ao leitor. Esta convenção narrativa cou conhecida como“presente etnográco”.

    2.2 A antropologia funcionalista 

    A doutrina funcionalista foi, em grande medida, uma reação aoevolucionismo. A aposta na análise sincrônica dos eventos sociais seopunha claramente ao privilégio que as teorias evolucionistas conferiam

    ao eixo temporal, sobretudo, atestava a rejeição à história conjetural e àsespeculações quanto ao desenvolvimento das sociedades – recursos esteslargamente utilizados nos grandes esquemas evolutivos propostos. Outrorecurso contestado pelos funcionalistas era a teoria das sobrevivências.

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    Antropologia Cultural

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    Através dela, os evolucionistas articulavam passado e presente, defenden-do que certos costumes herdados perdem o signicado com o tempo e asmudanças, mas persistem nas sociedades como meros resíduos da histó-ria, permanecem como sobrevivências do período em que tiveram alguma

    utilidade, sendo estas sobrevivências referenciadas como evidência do processo evolutivo. A objeção dos funcionalistas com relação à teoria dassobrevivências é patente, é um efeito direto da proposição central destacorrente de que tudo no sistema social tem uma funcionalidade. Costu-mes, instituições, comportamentos não existem ao acaso, nem podem serconsiderados sobras da evolução, se eles continuam em funcionamentona estrutura social é porque têm um sentido, desempenham uma função

    dentro dela.Em linhas gerais, podemos dizer que o funcionalismo, desenvolvidona antropologia social britânica com Bronislaw Malinowski (1884-1942)e com Alfred Reginald Radcliffe-Brown (1881-1955), recusa os pressu- postos evolucionistas e confere novo relevo à alteridade: em vez de prio-rizar a humanidade em diferentes estágios sociais, o funcionalismo indagacada sociedade pelo que ela é em si mesma.

    Para Bronislaw Malinowski, cada cultura possui sua lógica própria,

    com sua signicação e coerência no interior da sociedade em que está emvigor. Ele foi um dos primeiros antropólogos que se dedicaram intensa esistematicamente a compreender o que pensam, sentem e fazem homense mulheres de culturas diferentes da prevalecente na civilização ocidentalcontemporânea. Entretanto, de acordo com sua concepção funcionalista,todas as culturas possuem um ponto fundamental em comum: as culturashumanas têm a função de satisfazer as necessidades elementares dos seres

    humanos. Trata-se da tese de que as instituições sociais são construídas para satisfazer necessidades dos seres humanos, exprimindo-se, assim,uma noção de totalidade cultural integrada, à maneira de um organismoem que todas as suas partes conuem para a preservação do todo.

    O trecho seguinte nos auxilia a compreender melhor a orientaçãofuncionalista da antropologia de Malinowski:

    Como é óbvio, a cultura consiste no conjunto integral de instrumen-

    tos e bens de consumo, nos códigos institucionais dos vários gruposda sociedade, nas ideias e artes, nas crenças e costumes humanos.

    Quer consideremos uma cultura muito simples ou primitiva, quer

    uma cultura extremamente complexa e desenvolvida, confrontamo-

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    Antropologia Social Britânica: o Funcionalismo de Malinowski e de Radcliffe-Brown – Capítulo 2

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    -nos com um vasto dispositivo, em parte material e em parte espiri-

    tual, que possibilita ao homem fazer face aos problemas concretos e

    especícos que se lhe deparam. Estes problemas resultam do fato de

    o homem possuir um corpo sujeito às necessidades orgânicas mas

    variadas e de viver num meio ambiente que é o seu melhor amigovisto fornecer-lhe a matéria-prima destinada ao seu trabalho manu-

    al, mas que é ao mesmo tempo um inimigo perigoso, pois alberga

    muitas forças hostis. (MALINOWSKI, 2009, p. 45).

    A teoria funcionalista de Malinowski assenta-se em fundamentos biológicos: os seres humanos são uma espécie animal cuja sobrevivência

    requer a satisfação de necessidades naturais. Em outros termos, a necessi-dade de resolver os problemas apresentados pelas necessidades nutricio-nais, reprodutivas e higiênicas dos seres humanos determina a construçãode um ambiente articial. Nesse sentido, dizer que a cultura possui umafunção signica armar que corresponde ao atendimento de necessidadeshumanas mediante a cooperação, a construção de artefatos e o consumoorganizado de bens.

    Sob o ponto de vista funcionalista de Malinowski, a cultura é uma

    consequência da natureza humana, sendo esta compreendida não em umadimensão losóca, mas, denindo-se pelo fato de todos os seres huma-nos terem de comer, respirar, dormir, procriar e eliminar excreções doorganismo, por um conjunto de necessidades básicas que constituem odeterminismo biológico sobre o qual se erguem as culturas. Essa relaçãoentre natureza humana e cultura é exposta nos seguintes termos por Mali-nowski:

    Comparados com os dos outros animais, os dotes anatômicos do ho-

    mem são algo escassos. Faltam-lhe armas naturais tais como garras,

     presas ou bolsas de venenos. [...] Em contrapartida, o homem pro-

    duz armas aguçadas e pesadas, capazes de atingir alvos distantes.

    Inventa e aperfeiçoa instrumentos [...] Para produzirem os objetos

    necessários, [os homens] têm de obedecer a normas técnicas, regu-

    lamentar a conduta coletiva e manter vivas as tradições do conhe-

    cimento, da lei e da ética [...] (MALINOWSKI, 2009, p. 130-132).

    Dessa forma, diante das necessidades naturalmente impostas paraa sua sobrevivência, os seres humanos organizam-se em grupos perma-

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    Antropologia Cultural

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    nentes, articulados em leis, regras e costumes, a saber, em sociedadescaracterizadas por instituições que denem as relações dos seres humanosentre si e com o meio ambiente. As necessidades e os impulsos naturais,contudo, vividos sob as instituições culturais, são profundamente afeta-

    dos pelas culturas em que estão inseridos. Assim, a vida cultural implicanovas necessidades e novos imperativos para o comportamento humano:transmissão da tradição pelas gerações; procedimentos educativos; meca-nismos que assegurem a vigência dos costumes, da moral, da lei.

    Já de acordo com a proposta estrutural-funcionalista proposta porRadcliffe-Brown, a antropologia tem como objeto de investigação as re-lações de associação estabelecidas entre os seres humanos, as relações de

     pessoa a pessoa, como aquelas entre pais e lhos. É da observação diretadesta realidade concreta que o antropólogo parte para poder alcançar asformas gerais, estruturais destas conexões e assim descrever a estruturasocial em operação. Ou seja, o objetivo é identicar as regularidades a mde atingir um modelo formal, e, assim, as ações observadas só interessamna medida em que permitem derivar a ocorrência de uma forma geral deinteração que se reproduz independentemente dos sujeitos envolvidos. Naexplicação do próprio Radcliffe-Brown, temos que:

    As relações reais de Pedro, João e Antonio ou o comportamento

    de Juca e Zeca podem ser anotados no nosso caderninho de notas e

    servir de exemplos para a nossa descrição geral. Mas o que neces-

    sitamos para ns cientícos é de uma descrição da forma da estru-

    tura. Por exemplo, se numa tribo australiana eu observo, em certo

    número de casos, o comportamento, uma com as outras, de pessoas

    que se acham na relação de irmão da mãe e lho da irmã, é a m de poder registrar o mais precisamente possível a forma geral ou nor-

    mal dessas relações, abstração feita das variações de casos particu-

    lares, se bem que levando em conta essas variações (RADCLIFFE

    BROWN, 1970, p 160-161).

    Para Radcliffe-Brown, a estrutura social consiste, então, nessaconguração de tipo mais estável e constante baseada nas redes de rela-

    ções sociais de determinada espécie e instituições sociais existentes. Nascomunidades chamadas tribais, por exemplo, as relações de parentesco permeiam todas as esferas da vida social e, portanto, constituem uma parte fundamental de sua estrutura social. Interessado em instituições do

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    Antropologia Social Britânica: o Funcionalismo de Malinowski e de Radcliffe-Brown – Capítulo 2

       E   A   D  -   1   4  -   A  n   t  r  o  p  o   l  o  g   i  a   C  u   l   t  u  r  a   l  –   P  r  o   i   b   i   d  a  a  r  e  p  r  o   d  u  ç   ã  o  –   ©    U

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    mesmo tipo, caracterizadas por responder pelo funcionamento, integraçãoe continuidade das estruturas sociais, Radcliffe-Brown dedicou-se ao es-tudo de fenômenos como as sanções sociais e o direito primitivo.

     Atividades

    01. Caracterize o método etnográco e sua importância para a antropo-logia.

    02. Descreva as perspectivas funcionalistas de Bronislaw Malinowski ede Radcllife-Brown.

    Reflexão 

    As teorias antropológicas desenvolvidas posteriormente ao evo-lucionismo, malgrado suas diferentes perspectivas, apresentam algunsaspectos comuns. Com menor ou maior intensidade, rompem com o etno-centrismo característico da primeira geração de antropólogos e, com isso,conferem relevo ao tema da alteridade e da diversidade cultural humana.As diferentes culturas das diferentes sociedades humanas passam, então,a ser investigadas como realidades próprias e autônomas. Além disso,adquire relevo também a sistemática investigação etnográca, com o pro-

     pósito de se encontrar uma base verdadeiramente empírica para o saberantropológico.

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    Antropologia Cultural

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     Leitura recomendada 

    Uma teoria científca da cultura, livro de Bronislaw Malinowski(70.ed), constitui-se em uma ótima introdução ao método e à concepção

    antropológica funcionalista.

    Referências

    BENEDICT, Ruth. Padrões de cultura. Lisboa: Livros do Brasil.

    BOAS, Franz. Os princípios da classificação etnológica. In:

    STOCKING, George (org). A formação da antropologia america-na,1883-1911: antologia. Rio de Janeiro: Contraponto e Editora UFRJ,2004.

    LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasi-liense, 2010.

    MALINOWISKI, B. Os argonautas do Pacífico Ocidental. São Pau-

    lo: Abril Cultural, 1984.

    MALINOWSKI, B. Uma teoria científica da cultura. Lisboa:70.ed, 2009.

    No próximo capítulo 

    Prosseguiremos no exame das diferentes vertentes da antropologia,examinando o culturalismo norte-americano e as contribuições francesas para o conhecimento antropológico.

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     O Culturalismo Norte-

    Americano e os EstudosAntropológicos Franceses

     Neste capítulo, apresentaremos o cultura-lismo norte-americano, perspectiva losócalançada por Franz Boas, bem como descreveremos

    as contribuições francesas para a antropologia, comMauss e Durkheim, e algumas características da obra do

    antropólogo Lévi-Strauss.

    Objetivos da sua aprendizagem• Compreender o culturalismo antropológico norte-americano e

    as contribuições de intelectuais de tradição francesa para o pensa-mento antropológico.

    Você se lembra?De ter se deparado, em algum momento com a expressão relativismocultural? De ouvir dizer que nossos pensamentos são condicionados

     pela sociedade em que vivemos? Esses temas são tratados neste capítulo.

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    Antropologia Cultural

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     3.1 Antropologia cultural 

     Nos Estados Unidos, foi o imigrante e judeu alemão Franz Boas(1858-1942) quem inaugurou a moderna tradição de estudos antropológi-

    cos, conhecida como culturalismo americano. Também um dos pioneirosna condução de pesquisa de campo entre “povos primitivos”, ele reali-zou expedições para estudar os esquimós da Terra de Bafn e os índiosKwakiutl da costa de Vancouver. Boas iniciou sua carreira contrapondo-seà orientação evolucionista dominante na antropologia norte-americana donal do século XIX. Foi responsável por elaborar críticas denitivas tantoà ideia de evolução social unilinear, quanto à crença de que existiriam di-

    ferenças inatas entre a mentalidade de civilizados e a de primitivos, desa-ando a premissa da inferioridade destes últimos. Coerente com este posi-cionamento, ao longo da vida, ele também promoveu um ferrenho ataqueao conceito de raça, engajando-se em debate públicos contra o racismo e afavor da igualdade entre os povos.

    Além da insatisfação com a classicação do mundo em povos maisou menos evoluídos, em primitivos e civilizados, Boas rejeitava a busca por leis universais de desenvolvimento social e a derivação de grandes

    generalizações a partir da comparação de fatos etnográcos similares, porém, subtraídos de seus contextos sociais. Sua atenção não se voltava para a elaboração de esquemas gerais, mas ao contrário, para a investiga-ção das qualidades do particular, para o estudo do caso individual, o queo torna um adepto do individualismo metodológico. Desse modo, interes-sava-lhe compreender como uma cultura, reunindo um estoque especialde elementos, conferia ao todo um signicado e uma orientação próprios.

    Fotografia bem conhecida em que Boas estariailustrando o movimento de uma dança que eleobservou em campo.

    Seu problema era saber deque forma a ação de fatoresgeográficos e processoshistóricos podia inuenciarna formação do caráterespecíco de determinadaconguração cultural.

    Um artigo de Boas de

    1887, compilado por Ge-orge Stocking, ilustra umade suas divergências comos evolucionistas. Nele,

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    O Culturalismo Norte-Americano e os Estudos Antropológicos Franceses – Capítulo 3

       E   A   D  -   1   4  -   A  n   t  r  o  p  o   l  o  g   i  a   C  u   l   t  u  r  a   l  –   P  r  o   i   b   i   d  a  a  r  e  p  r  o   d  u  ç   ã  o  –   ©    U

      n   i   S   E   B

    Boas discute os critérios usados para organizar as coleções etnológicas emmuseus e critica o sistema adotado pelo curador de etnologia do Museu Nacional de Washington, Otis T. Mason, porque, primeiro, divide as in-venções humanas como se fossem espécimes biológicos com base em sua

    aparência externa. Em segundo, por ser uma classicação centrada nosobjetos e suas similaridades, o que não esclarece a respeito do estilo decada grupo. O objetivo na forma de arranjo de Mason, ao mostrar diferen-tes exemplares de um tipo de artefato, por exemplo, armas (um conjuntode arcos, lanças e facas) é sugerir que, porque tiveram causas comuns, in-venções semelhantes podem ser encontradas entre povos muito distantese podem ser entendidas sem a necessidade de referência à sua conjuntura

    “tribal”. Boas julga que esse procedimento classicatório é arbitrário enão serve aos objetivos de uma coleção etnológica, principalmente porquenão propicia o entendimento do signicado, uso e nalidade do objetodentro do seu contexto de origem, nem esclarece acerca de suas relaçõescom outros elementos da cultura em questão. Assim arma ele:

     Não podemos compreender o signicado de um artefato singular se

    o consideramos fora do seu ambiente, fora do contexto das outras

    invenções do povo a que pertence e fora do contexto dos outrosfenômenos que afetam esse povo e suas produções. Uma coleção

    de instrumentos usados para o mesmo m ou feitos do mesmo ma-

    terial ensina apenas que o homem em diferentes regiões da Terra

    tem feito invenções semelhantes. Por outro lado, uma coleção que

    representa a vida de uma tribo permite compreender muito melhor o

    espécime singular (STOCKING, 2004, p 87).

    A objeção de Boas é com a forma de classicação museológica sem potencial explicativo, que não permite a identicação das característicasque compõem o estilo de cada grupo e não favorece a apreensão da cul-tura como um todo. Seu ponto de vista ca ainda mais claro quando elediscute o exemplo hipotético de uma disposição de artefatos que combi-nasse uma coleção de instrumentos como autas e tambores indígenas einstrumentos musicais de uma orquestra moderna. O que tal coleção reve-

    laria além do fato de que os povos se servem de meios similares para fazermúsica? Segundo ele, não é feita nenhuma contribuição para a questão principal: as características da música de cada cultura. Nada é dito acerca

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    Antropologia Cultural

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    dos diferentes estilos musicais que enm é o que determina a produçãodos instrumentos dentro de cada grupo.

    Como consequência, para Boas, “a tribo” – ou seja, o conjunto – enão o objeto – o elemento – deveria ser o critério para a organização das

    coleções etnológicas, mesmo porque é só dentro de seu contexto culturalque um objeto deixa entrever os sentidos que tem para o grupo e podereceber uma classicação adequada. Extraído o contexto, algo se perde.

    O chocalho, por exemplo, não resulta simplesmente da idéia de

     produzir barulho, nem dos métodos tecnológico aplicados para

    atingir esse objetivo. Além disso, resulta de concepções religiosas,

     pois qualquer barulho pode ser empregado para invocar ou afastaros espíritos; o pode resultar do prazer que as crianças sentem com

     barulhos de qualquer tipo; sua forma pode ser característica da arte

    do povo (STOCKING, 2004, p 90).

     Na verdade, ao discorrer sobre como deveria ser o tratamento dacultura material de um povo pelos museus etnológicos, defendendo a in-tegração do elemento em seu conjunto cultural particular, o texto em tela

    apresenta, como bem observa Stocking, um dos pilares da antropologia boasiana: a ideia de que cada cultura é uma totalidade que integra e confe-re signicado às suas partes.

    O argumento de que cada fenômeno cultural corresponde a umacombinação de elementos segundo uma lógica e uma história próprias eque, portanto, deve ser estudado individualmente, tornou-se dominante natradição americana. Este postulado está na raiz da rejeição dos antropó-

    logos boasianos ao método comparativo – tendência que radica em outrotexto seminal de Boas, “As limitações do método comparativo” (1895),também escrito para refutar a forma arbitrária dos evolucionistas compa-rarem traços de culturas diferentes e a partir disso tecerem generalizaçõesimpróprias.

     Na trilha do mestre, os alunos de Boas assumiram que a cada povocorresponde uma cultura com perl particular, ou seja, cada grupo sedestaca por um conjunto de costumes, tradições e instituições. Nesse

    sentido, merece destaque o trabalho da sucessora de Boas na cátedra deantropologia da Universidade de Columbia, Ruth Benedict (1887-1948).Para Benedict, cada cultura escolhe apenas uma pequena porção de traçosdo grande arco de costumes e comportamentos humanos possíveis. Esta

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    O Culturalismo Norte-Americano e os Estudos Antropológicos Franceses – Capítulo 3

       E   A   D  -   1   4  -   A  n   t  r  o  p  o   l  o  g   i  a   C  u   l   t  u  r  a   l  –   P  r  o   i   b   i   d  a  a  r  e  p  r  o   d  u  ç   ã  o  –   ©    U

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    combinação original responde pela feição característica que cada congu-ração cultural possui, em outros termos, conforma o “espírito” ou “ethos”de um povo, espécie de “personalidade coletiva” responsável por moldaruniformemente as emoções dos indivíduos. Cada cultura dá forma aos

    seus variados elementos segundo um padrão, uma conguração. Em cadauma, as instituições e normas de conduta tendem a uma direção, orientan-do seus membros a um determinado temperamento.

    Em linhas gerais, portanto, a proposta culturalista de Franz Boasconsiste no estudo das características particulares de cada cultura, exami-nando como os modos de vida dos indivíduos são tributários da cultura aque pertencem. Boas entende que não há uma lei geral ou um elemento

    fundacional presente em todas as culturas, armando, desse modo, radi-calmente a pluralidade cultural: há culturas humanas, e não um só mo-delo cultural. Nesse sentido, esse antropólogo destaca que a ocorrênciade fenômenos culturais similares em diferentes sociedades, a partir dosquais muitos estudiosos pretendem identicar leis vigentes nas diversasculturas, nem sempre se deve às mesmas causas, sendo compreensívelapenas na história particular de cada cultura. Quando muito, para Boas, os paralelismos entre diferentes culturas resultam de causas sociais capazes

    de produzir efeitos similares e de problemas para os quais há um númerolimitado de soluções, jamais indicando a existência de um único caminhocultural para a humanidade. Essas teses de Franz Boas incidem no rela-tivismo cultural, segundo o qual os valores, os costumes, as práticas e asnormas de uma cultura são legitimados exclusivamente no interior mesmodesta cultura, sem a utilização de critérios comparativos e hierarquizantesentre as culturas. O relativismo cultural, então, é uma perspectiva extre-

    mamente contrária às tendências etnocêntricas.Portanto, o individualismo metodológico ou o método histórico deFranz Boas enfatiza a importância de se entender o desenvolvimento in-terno e especíco de cada cultura. Assim, não há uma história única, poiscada sociedade desenvolve sua história cultural:

    Os fenômenos culturais são de tal complexidade que me parece

    duvidoso que se possa encontrar qualquer lei cultural válida. As

    condições causais das ocorrências culturais repousam sempre nainteração entre indivíduo e sociedade, e nenhum estudo classicató-

    rio das sociedades irá solucionar esse problema. [...] Em resumo, a

    matéria-prima da antropologia é tal que ela precisa ser uma ciência

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    O Culturalismo Norte-Americano e os Estudos Antropológicos Franceses – Capítulo 3

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    gerais como tempo, espaço, número e pessoa (o “eu”) são manifestaçõesdo espírito humano, contudo constituem produto da consciência coletiva,originando-se em certas estruturas sociais, vinculando-se a certos usossociais.

    Assim, em diferentes trabalhos, os pesquisadores franceses procura-ram indicar “de que forma ideias tão abstratas como aquelas de tempo e deespaço se acham, a cada momento de sua história, em íntima relação coma organização social correspondente” (DURKHEIM ; MAUSS, 1981, p455). Nesse sentido, é bem conhecida a contribuição de Mauss por meiodo estudo das formas embrionárias que a noção de pessoa (a ideia do“eu”) assume em sociedades consideradas “primitivas” até a articulação

    do conceito de consciência individual psicológica, que é próprio das ci-vilizações modernas. Em suas próprias palavras, Mauss busca investigar:

    Como, no curso dos séculos, através de numerosas sociedades, ela-

     borou- se lentamente, não o sentido do ‘eu’, mas a noção, o concei-

    to respectivo que os homens das diversas épocas criaram (...). O que

    quero mostrar aos senhores é a série de formas que esse conceito

    revestiu na vida dos homens em sociedade, segundo seus direitos,

    suas religiões, seus costumes, suas estruturas sociais e suas mentali-dades (MAUSS, 1974, p 211).

    Acompanhando relatos etnográcos de diversas partes do mundo,Mauss discute como em sociedades “primitivas”, divididas em agrupa-mentos sociais chamados de clãs, os indivíduos encontram-se ainda muitodissolvidos, confundidos na coletividade. Nesse caso, é a partir do grupo

    que se compõe a pessoa enquanto personagem social; ao clã, ela deve seunome, sua posição social, seu papel ritual, seus títulos e direitos. Aquise tem a pessoa enquanto um fato da organização, diz Mauss, nomes e privilégios reconhecidos a um personagem social. É entre os romanos,continua o autor, que se estabelece, ainda que parcialmente, uma noçãode pessoa concebida como um fato do direito. Ao lado da personagem,da máscara do teatro, emerge um conceito jurídico de pessoa e tambéma ideia de que a “persona” pode corresponder à verdadeira natureza do

    indivíduo, à personalidade humana. Este caráter pessoal do direito é enri-quecido com os gregos por meio da adição de um sentido moral à pessoa.

    De acordo com Mauss: “Às funções, às honras, aos cargos, aos di-reitos acrescenta-se a pessoa moral consciente” (MAUSS, 1974, p 234).

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    Antropologia Cultural

       P  r  o   i   b   i   d  a  a  r  e  p  r  o   d  u  ç   ã  o  –   ©    U  n   i   S   E   B

    A passagem da “persona” para a pessoa humana dependeu do trabalhodo cristianismo. O discurso religioso empresta à pessoa tanto um sentidode universalidade, humanidade, quanto de unidade (“todos são um emCristo”). A convicção na unidade de Deus, e em decorrência na unidade

    das duas naturezas de Cristo e da própria Igreja, coloca também a questãoda unidade do homem. Unindo corpo e alma, amalgamando substância eforma, a noção cristã de pessoa fundamenta-se no caráter uno e indivisíveldo ser. Por m, a transformação denitiva teria resultado do esforço em- preendido pelos lósofos. Com eles, edica-se a ideia de uma consciênciaindividual, psicológica; equaciona-se a pessoa ao eu. Primeiro, fazem daconsciência humana a condição para a razão prática. Depois, constroem a

    noção do “eu” como categoria fundamental da consciência. “A partir deentão, está feita a revolução das mentalidades, cada um de nós tem o seu‘eu’” (MAUSS, 1974, p 239).

    O projeto que inaugurou o estudo dos aspectos sociais dos sistemasde conhecimento foi o conduzido em parceria por Durkheim e Mauss so- bre a faculdade de classicar. No artigo “Algumas formas primitivas declassicação”, publicado em 1903 na revista  L’Anee de Sociologique, éapresentada uma teoria sociológica da categoria “classe”, ou, se preferir,

    das noções de gênero e espécie.O ponto de partida é a recusa da hipótese, então prevalecente, de

    que a elaboração lógica do mundo sensível resulta de uma atividade es- pontânea que depende tão somente da consciência dos indivíduos. Nessecaso, é rebatida a tese kantiana de que as categorias do entendimento – eaqui é incluída a classe – estariam dadas a priori, seriam inatas, obra daintelecção pura (razão pura). Concebendo a função classicadora como

    “o procedimento que consiste em classicar os seres, os acontecimen-tos, os fatos do mundo em gêneros e em espécies, em subordiná-losuns aos outros, em determinar suas relações de inclusão e de exclusão”(DURKHEIM; MAUSS, 1981, p 400), os autores contestam tanto a psi-cologia quanto a lógica por ambas atribuírem à gênese de tal função umanecessidade natural da humanidade, procurando buscá-la seja a partir defaculdades imanentes ao indivíduo, seja pelas propriedades do mundoreal. Para os lógicos, a hierarquia dos conceitos está dada nas coisas, o

    mundo sensível oferece o esquema da classicação que é apreendido pelohomem. Já os psicólogos apostam no papel da associação de ideias e nacapacidade de entendimento abstrato, individual. Mas Durkheim e Maussopõem-se a tudo isso:

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    O Culturalismo Norte-Americano e os Estudos Antropológicos Franceses – Capítulo 3

       E   A   D  -   1   4  -   A  n   t  r  o  p  o   l  o  g   i  a   C  u   l   t  u  r  a   l  –   P  r  o   i   b   i   d  a  a  r  e  p  r  o   d  u  ç   ã  o  –   ©    U

      n   i   S   E   B

    Uma classe é um grupo de coisas; ora, as coisas não se apresentam

     por si mesmas tão agrupadas à observação. Podemos perceber de

    maneira mais ou menos vaga suas semelhanças. Mas o simples fato

    destas semelhanças não basta para explicar como somos levados a

    reunir os seres que assim se assemelham e reuni-los numa espéciede meio ideal, encerrado nos limites determinados, e que chama-

    mos um gênero, uma espécie etc. Nada nos autoriza a supor que

    nosso espírito, desde o nascimento, traga já elaborado em si o pro-

    tótipo deste quadro elementar de toda classicação (DURKHEIM;

    MAUSS, 1981, p 403).

    Destarte, se o modelo das classicações, com suas relações de coor -denação e subordinação, não pode ser encontrado nem no mundo naturalnem na consciência individual, onde é que os autores propõem buscá-lo.Como sociólogos, eles assumem que o plano da psicologia individualsubordina-se ao da organização social e, consequentemente, não é graçasa uma atividade introspectiva que os homens teriam atingido as tipologiasem que se enquadram os seres vivos. É porque estavam agrupados nomundo social que os homens puderam projetar um ordenamento ao reino

    natural. O fato de o coletivo ter precedência sobre o individual sugere que para explicar os quadros de disposição das coisas deve-se articulá-los aosgrupos sociais entre os quais operam.

     No lastro dessas contribuições antropológicas francesas, desenvol-ve-se a pesquisa do antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009), quetinha origem belga, mas realizou seus estudos de graduação na França,sendo, em larga medida, um seguidor de Marcel Mauss.

    Com efeito, Lévi-Strauss contemplou em seu