Livro Zacarias Resenha

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    resenha

    SENA JNIOR, Carlos Zacarias. Os Impasses da Estratgia, os comunistas, o antifascismo e arevoluo burguesa no Brasil. 1936-1948. So Paulo:Annablume, 2010, 398p.

    Herosmo pessoal e runa poltica, o PCB durante o Estado novo

    Valrio Arcary*

    Este livro nos contauma histria poltica que uniu herosmoe tragdia. Os leitores encontraronestas pginas uma anlise crtica e atsevera das formulaes do partido dePrestes durante os anos que precedem esucedem II Guerra Mundial: nesteintervalo o PCB se recuperou da terrvel

    derrota de 1935, quando foi quasedestrudo, e se alou condio de umpartido com presena nacional tendo sua frente o nico dirigente poltico que

    podia ombrear em popularidade comGetlio Vargas, Lus Carlos Prestes,

    para mergulhar depois de poucos anosde legalidade na clandestinidade outravez.

    Este livro nos expe homens queuniram bravura moral e runa poltica.

    Nas suas pginas os leitores encontrarouma narrativa envolvente em que asvicissitudes das tticas so explicadas

    pelos impasses da estratgia, semdiminuir a dimenso humana dos

    personagens principais, os dirigentes doPCB, que apesar de suas fragilidades eerros, aparecem engrandecidos pela suaabnegao militante. Eles foram, na suaimensa maioria, alguns dos homens e

    mulheres da mais alta estatura moral e

    intelectual que participaram das lutaspopulares no Brasil do sculo XX. Elesviveram uma poca extraordinria eforam capazes de feitos extraordinrios.

    Este livro nos apresenta um partido queuniu, como nenhum outro do seu tempo,glria e infortnio. Os leitores poderocompreender porque a direo do PCB,

    perseguida implacavelmente por FilintoMuller, foi capaz de defender em 1945 a

    presena de Getlio no poder, o mesmoVargas que alguns poucos anos antestinha entregado Olga Benrio aosnazistas alemes. Descobriro, tambm,que o autor que desnudou essa desgraa

    poltica no deixou de olhar comgrandeza para os homens e mulheresque lutaram sob a bandeira docomunismo no Brasil naqueles anos.

    Alguns deles foram homens de ao,dirigentes de greves e de campanhas

    polticas nas ruas. Outros foramorganizadores de Partido dedicados formao dos militantes e construointerna. E houve ainda aqueles que

    assumiram tarefas intelectuaiscomplexas. Muitos foram levados sprises sob os diferentes regimespolticos que o pas conheceu entre osanos vinte e os anos setenta. Dirigiramsindicatos, associaes de bairros,organizaes camponesas. Trabalharam,discretamente, na legalidade, emergulharam na clandestinidade quandose viram obrigados. Resistiram sdesmoralizaes que vieram com as

    prises, cises e exlios. Fizeram

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    histria. Mas, foram, politicamente,derrotados.

    Permanecem vivas as controvrsias decritrios para a apreciao histrica dos

    partidos polticos. Partidos podem serjulgados pelo programa que apresentampara a transformao da sociedade. Oupodem ser explicados pela histria desuas linhas polticas, e de suas lutas

    polticas, sobretudo, as internas; peloconfronto entre suas posies quandoesto na oposio, e quando seaproximaram do poder; ou at pelosvalores e idias que inspiram sua

    identidade; pela composio social deseus membros - militantes ousimpatizantes - ou dos seus eleitores, ouda sua direo; pelo regime interno doseu funcionamento; pelas formas de seufinanciamento; ou pelas suas relaesinternacionais. Todos estes critrios sovlidos e significativos, e a construode uma sntese exige uma apreciao dasua dinmica de evoluo. S no se

    pode julgar um partido por aquilo que

    ele pensa sobre si prprio.Para aqueles que usam o marxismocomo mtodo de anlise das relaessociais e polticas, todos estes elementosso significativos, mas umacaracterizao de classe , finalmente,inescapvel. O livro que agora estardisponvel para todos os interessados nahistria da esquerda brasileira apresentauma nova interpretao consistente efartamente documentada para uma fasechave da histria do PCB.

    Como tudo que existe, os partidos setransformam, e a narrativa dessasmudanas o cerne da investigaohistrica. Quando a histria se resigna a

    procurar um fio de continuidade ou depermanncia nas organizaes poltico-sociais ela renuncia ao seu maiordesafio. Acontece que mudanas noso possveis sem crises. Os partidos

    podem ter crises de crescimento,

    provocadas pelas consequncias de seusacertos e dos desafios engrandecidosque vm com uma influncia maior, oucrises produzidas pelos seus erros.

    O PCB conheceu em sua longa histria,pelo menos, cinco crises devastadoras.Este livro relata um destes perodosdramticos: a segunda grande crise,

    provocada pela desastrosa tentativa deinsurreio militar de 1935, e arepresso que se abateu sobre o PCBnos anos seguintes. O elemento comuma essas cinco grandes crises foi que oPCB quase desapareceu nas quatro

    primeiras, para ressurgir em imprevistasreorganizaes e, finalmente, sucumbir,irremediavelmente, na ltima. O PCB serecuperou das primeiras quatro grandescrises da sua histria, mas o fezdeixando de ser o que era, porque setransformou de tal forma quereapareceu quase irreconhecvel.

    A primeira e menos estudada foi a criseda fase da sua estalinizao no final dosanos vinte e incio dos anos trinta, um

    processo que consumiu vrias rupturas,as principais delas dirigidas por MrioPedrosa e Hermnio Sacheta que deramorigem Quarta Internacional no Brasil.A estalinizao foi camuflada como

    bolchevizao e teve como seqela adestruio do ncleo dirigente fundador,com a proscrio de Astrogildo Pereira.A terceira foi a crise aberta sob oimpacto das revelaes, em 1956, dorelatrio Kruschev que originou, em um

    processo que consumiu alguns anos, oPartido Comunista do Brasil, sob aliderana de Joo Amazonas, MaurcioGrabois e Pedro Pomar, aos quais seuniu depois Digenes Arruda Cmara.A quarta crise veio com o golpe de1964 e a consolidao da ditaduramilitar, quando o duplo impacto daderrota diante da contra-revoluo noBrasil e da vitria da revoluo cubana,

    provocou uma exploso do Comit

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    Central (Carlos Mariguella, entreoutros, formou a ALN; Mrio Alves,Jacob Gorender, e Apolnio deCarvalho formaram o PCBR) que tinha

    resistido ciso pr-chinesa, originandouma disperso em vrios ncleos que selanaram luta armada. A ltima foi acrise final, aquela que se abriu aps1989/1991, quando da derrubada doregime ditatorial na ex-URSS, quando arestaurao capitalista conduzida poruma frao dirigente do prprio PartidoComunista precipitou a desagregaointernacional dos partidos at entoassociados a Moscou.

    Muitos autores j escreveram sobre oPCB entre os anos 1936 e 1948, um

    perodo de uma dzia de anos em que oPartido de Prestes se recuperou daterrvel derrota poltica do levantemilitar de 1935 - quando parecia tersido eliminado pela repressoimplacvel - e saiu da mais estritaclandestinidade para se transformar,quase da noite para o dia, em um dos

    maiores partidos comunistas daAmrica do Sul. Nessa sua segundacrise as rupturas do ncleo dirigenteforam menos significativas que nasoutras, e a reorganizao foi mais rpidaem funo do impacto moralizador dasituao internacional com a derrota donazi-fascismo. A influncia de massasconquistada pelo PCB, em 1945, comuma forte implantao nas categoriasmais organizadas dos trabalhadores, se

    expressou na eleio consagradora dePrestes como senador pelo Rio deJaneiro, ento, a capital poltica danao foi um fato inconteste, porm, emgeral, desvalorizado pela historiografia.

    A desqualificao do papel histricoque as organizaes sindicais e polticasdos trabalhadores e das massas

    populares tiveram na histria do pas um captulo da batalha ideolgica dos

    nossos tempos. Ao escrever sobre as

    lutas do passado, os historiadores esto,conscientemente ou no, envolvidos noscombates do presente. O peso social,

    poltico, ideolgico e at cultural que o

    PCB teve na sociedade brasileira foi,proporcionalmente, muito maior que opeso dos PCs na Argentina e noMxico, os outros dois pases chaves daAmrica Latina. Este acontecimentochave para a compreenso dasturbulncias do regime democrtico-liberal que surgiu ao final da guerra,

    porque o PCB manteve sua autoridadepoltica sobre os setores maiscombativos da classe operria mesmo

    depois de ter perdido sua legalidade,resultou de um processo de lutas

    polticas que este livro pretendeexplicar.

    Este um livro corajoso e original quedesafia tanto a historiografiasimpatizante do PCB, quanto a que lhefoi adversa. Ambas coincidiram emidentificar o PCB como um Partidomarxista-revolucionrio. Os leitores de

    Carlos Zacarias descobriro que estainterpretao foi sem fundamento. Nosanos trinta, o PCB de Lus CarlosPrestes j no era o mesmo partido deAstrogildo Pereira dos anos vinte. A

    pesquisa rigorosa nos apresenta ahistria errtica da evoluo dasorientaes polticas PCB, que oscilouda formao da ANL como Frente

    Nacional Democrtica para ainsurreio militar de 1935, da ttica da

    Unio Nacional antifascista contraVargas para o queremismo de apoio aVargas em 1945. As habilidades dohistoriador investigativo uniram-se verve do intelectual socialista engajado

    para construir um painel que cobre esteperodo histrico inteiro,contextualizando as flutuaes da linhado PCB nos marcos das suas relaescom Moscou, do blanquismo tardio doterceiro perodo ao seguidismo diante

    de Getlio.

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    Os estonteantes ziguezagues da polticado PCB no intervalo histrico maisdramtico do sculo XX ainda estavamsem uma explicao histrica

    meticulosa. A principal razo para essaausncia repousou na dificuldade decompreenso do que foi o estalinismo.O estalinismo emergiu nos anos vintecomo um fenmeno histrico novo, etudo o que historicamente original e,

    portanto, nico , para os seuscontemporneos, mais difcil deexplicar. A distncia de oitenta anos nosoferece uma vantagem de perspectivaque pode, tambm, nos enganar. A

    principal singularidade do estalinismo que ele no foi uma doutrina, nemmuito menos uma poltica. Oestalinismo mudou tantas vezes de

    poltica, e abraou orientaes todiversas e realizou giros toespetaculares, que os esforos deencontrar coerncia interna na evoluodas idias que saam de Moscou paraconduzir a III Internacional frustraram amaioria dos seus estudiosos, fossem elessimpticos ou avessos aos destinos doregime no poder na Unio Sovitica.

    Programaticamente, o estalinismo foi aideologia nacionalista de um Estadocontrolado por um aparelho burocrticogigantesco, os pelo menos cincomilhes de funcionrios quecompunham a denominadanomenklatura, ou seja, o contrrio dointernacionalismo. Quando a liderana

    de Stlin frente da URSS girou dadefesa da orientao da FrentePopulares contra o fascismo para oPacto Molotov/Ribbentrop ao mesmotempo em que, entre 1963/39, osProcessos de Moscou liquidavamfisicamente o que ainda existia de

    bolcheviques dentro do Partido - ospartidos comunistas no Ocidente foramcolocados diante do desafio de justificaro inexplicvel.

    O livro de Carlos Zacarias desenvolvecomo hiptese de trabalho que o fiocondutor para a explicao da polticado PCB foi a relao do partido

    brasileiro com o partido russo. Essaparece ter sido a fora de presso maispoderosa luz da documentaoreunida. No foi, evidentemente, anica. Os leitores podero descobrir nas

    perguntas que o autor formula as pistasque tentam resolver os enigmas deescolhas polticas que guiaram o PCB:que lies o Partido retirou do fracassodo levante militar de 1935? Por qu oPartido mais perseguido do pas

    procurou, ainda sob a ditadura doEstado Novo, a construo de umaFrente de Unio Nacional pelademocracia e pela Paz? Qual foi o

    papel de Prestes na direo do PCBdurante os anos de priso? Como o PCBse recuperou e reorganizou uma direonacional a partir das iniciativas dosquadros que surgiram no Par e naBahia? Como um partido de vanguardase transformou em partido cominfluncia de massas na campanha pela

    participao do Brasil na guerra contrao nazi-fascismo? Qual a relao do PCBcom o regime que nasceu da queda deVargas? No teria sido uma injustiaintelectual a avaliao historiogrficadominante que subestima o papel doPCB na luta pela democracia no ps-guerra?

    Como em todos os bons livros de

    Histria, este nos apresenta umanarrativa do que aconteceu, escapandodo perigo de apresentar a seqncia dosacontecimentos como uma desconexasucesso de peripcias fortuitas, ou doseu contrrio, um fluxo pr-determinadodo que seria inexorvel. O autor respeitao seu tema, e desvenda o que

    permanecia obscuro com a tenacidadede quem busca a verdade, a

    perseverana de uma mo que no

    treme, do que resulta uma literatura

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    histrica feita com paixo. Como emtodo livro honesto, o autor no seescondeu atrs de suas palavras, e nosrevela, tambm, algo sobre quem o

    escreveu. Carlos Zacarias nos entregaseu primeiro livro agora, e comoinvestigador devotado teve o cuidado defiltrar tudo aquilo que era colateral, emanter o foco no que era essencial,

    porm suas preferncias transpirampelas pginas. Este no , portanto, otrabalho de um principiante. a obra deum estudioso maduro que pesquisou

    muitos anos o seu tema, e que nossurpreende pela consistncia terica epela fluidez literria de uma escritainventiva e saborosa.

    *VALERIO ARCARY Professor do IF/SP (Instituto Federal de Educao, Cincia e Tecnologia de SoPaulo), e doutor em Histria pela USP.