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governança global

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  • OrganizadoresAndr Rego VianaPedro Silva Barros

    Andr Bojikian Calixtre

  • OrganizadoresAndr Rego VianaPedro Silva Barros

    Andr Bojikian Calixtre

    Governo Federal

    Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica Ministro Wellington Moreira Franco

    PresidenteMarcio Pochmann

    Diretor de Desenvolvimento InstitucionalGeov Parente Farias

    Diretor de Estudos e Relaes Econmicas e Polticas Internacionais, SubstitutoMarcos Antonio Macedo Cintra

    Diretor de Estudos e Polticas do Estado, das Instituies e da DemocraciaAlexandre de vila Gomide

    Diretora de Estudos e Polticas Macroeconmicas Vanessa Petrelli Corra

    Diretor de Estudos e Polticas Regionais, Urbanas e AmbientaisFrancisco de Assis Costa

    Diretor de Estudos e Polticas Setoriais de Inovao, Regulao e Infraestrutura, SubstitutoCarlos Eduardo Fernandez da Silveira

    Diretor de Estudos e Polticas SociaisJorge Abraho de Castro

    Chefe de GabineteFabio de S e Silva

    Assessor-chefe de Imprensa e ComunicaoDaniel Castro

    URL: http://www.ipea.gov.br Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoria

    Fundao pbl ica v inculada Secretar ia de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica, o Ipea fornece suporte tcnico e institucional s aes governamentais possibilitando a formulao de inmeras polticas pblicas e programas de desenvolvimento brasi leiro e disponibi l iza, para a sociedade, pesquisas e estudos realizados por seus tcnicos.

  • OrganizadoresAndr Rego VianaPedro Silva Barros

    Andr Bojikian Calixtre

    Braslia, 2011

  • Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada Ipea 2011

    permitida a reproduo deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reprodues para fins comerciais so proibidas.

    As opinies emitidas nesta publicao so de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, no exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada ou da Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica.

    Governana global e integrao da Amrica do Sul / organizadores: Andr Rego Viana, Pedro Silva Barros, Andr Bojikian Calixtre. Braslia : Ipea, 2011. 318 p. : grfs., tabs.

    Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7811-125-0

    1. Integrao Econmica. 2. Integrao Regional.3. Amrica do Sul. 4.Amrica Latina. I.Viana, AndrRego. II. Barros, Pedro Silva. III. Calixtre, AndrBojikian. IV. Instituto de Pesquisa EconmicaAplicada.

    CDD 338.98

  • Sumrio

    APrESENTAo 5

    PAlAvrAS doS orgANizAdorES 7

    iNTroduo 9

    CAPTulo 1 uNiPolAridAdE E mulTiPolAridAdE: NovAS ESTruTurAS NA gEoPolTiCA iNTErNACioNAl E oS BriCSFranklin Trein 19

    CAPTulo 2 iNTEgrAo Sul-AmEriCANA: oPorTuNidAdES E dESAFioS PArA umA mAior PArTiCiPAo do CoNTiNENTE NA govErNANA gloBAlWalter Antonio Desider Neto 65

    CAPTulo 3 A AmriCA lATiNA E A ECoNomiA muNdiAl: CoNjuNTurA, dESENvolvimENTo E ProSPECTivA Carlos Eduardo Martins 95

    CAPTulo 4 ou iNvENTAmoS ou ErrAmoS ENCruzilHAdAS dAiNTEgrAo rEgioNAl Sul-AmEriCANACarlos Walter Porto-Gonalves 133

    CAPTulo 5 Alm dA CirCuNSTNCiA: CAmiNHoS dA iNTEgrAoSul-AmEriCANA do mErCoSul uNASulAndr Bojikian Calixtre e Pedro Silva Barros 177

    CAPTulo 6 rECurSoS NATurAiS E A gEoPolTiCA dA iNTEgrAoSul-AmEriCANAMonica Bruckmann 197

    CAPTulo 7 o BANCo do Sul ArQuiTETurA iNSTiTuCioNAl E ProCESSodE NEgoCiAo dENTro dE umA ESTrATgiA AlTErNATivA dE dESENvolvimENTo NA AmriCA do SulMarcelo Dias Carcanholo 247

    CAPTulo 8 A PETroBrAS NA AmriCA do SulLuiz Fernando Sann Pinto 283

  • APrESENTAo

    A integrao da Amrica do Sul e da Amrica Latina mais do que uma vocao para a poltica externa brasileira: clusula ptrea da nossa Constituio Federal. Desse modo, era de se esperar que a nova Diretoria de Estudos e Relaes Econmicas e Polticas Internacionais (Dinte) do Ipea, constituda h pouco mais de dois anos, tenha como responsabilidade o estudo das relaes econmicas e polticas do Brasil com os pases vizinhos.

    Alm da pesquisa, o instituto tambm est comprometido com a cooperao tcnica internacional para a elaborao de polticas pblicas, e tem procurado avanar nos estudos sobre a integrao da economia e da sociedade brasileira com a Amrica Latina. Um exemplo desta tarefa a misso do Ipea instituda em Caracas, na Venezuela, a qual tem contribudo substancialmente tanto para o planejamento do Estado venezuelano como para trocas de experincias, e enriquecido nosso ainda limitado conhecimento sobre os pases que nos cercam.

    Este livro resultado do esforo da equipe de pesquisadores do Ipea que, em conjunto com pesquisadores do Programa Nacional de Pesquisa para o Desenvol-vimento (PNPD/Ipea), vem se dedicando a entender os limites e as possibilidades da integrao latino-americana. Constitui uma primeira aproximao, bastante crtica, dos temas que nos afetam diretamente e cujo enfrentamento condio para se construir um futuro comum.

    Marcio Pochmann

    Presidente do Ipea

  • PAlAvrAS doS orgANizAdorES

    A poltica pblica externa a maior responsvel pelo crescente protagonismo internacional do Brasil. Contudo, ela s pde ser colocada em prtica porque outras polticas pblicas garantiram o crescimento econmico com distribuio de renda e fortalecimento da democracia.

    A ausncia de turbulncia econmica no perodo de 2003 a 2007, associada valorizao de produtos primrios e diminuio relativa da presena norte-ameri-cana nos assuntos sub-regionais da Amrica do Sul indubitavelmente colaboraram para o fortalecimento brasileiro. Nos anos da crise financeira internacional, iniciada em 2008, o Brasil acentuou a poltica virtuosa do perodo anterior e se props um salto qualitativo: aprofundar o relacionamento com os vizinhos sul-americanos e associar o desenvolvimento econmico, social e poltico brasileiro ao do continente.

    O ineditismo de uma poltica comum de desenvolvimento demanda imensa reflexo, grande esforo de planejamento e necessidade constante de avaliao.

    O fortalecimento da poltica pblica externa do Brasil e o aumento de sua presena internacional definiram a criao da Diretoria de Estudos e Relaes Eco-nmicas e Polticas Internacionais (Dinte) no Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (Ipea). medida que a prioridade da poltica externa brasileira a Am-rica do Sul, a regio tambm a principal rea de estudos internacionais para o ins-tituto. Todos os nmeros do Boletim de Economia e Poltica Internacional possuem artigos acerca da Amrica do Sul, destacando-se o de nmero 5, especial sobre os vinte anos do Mercado Comum do Sul (Mercosul). O Ipea seguir promovendo debates e pesquisas sobre a regio e, futuramente, publicar seu primeiro livro com posies institucionais exclusivamente dedicado ao tema.

    Este volume foi marcado por um rico processo de aprendizagem e rene trabalhos fomentados na academia ao lado da produo da casa. Estes textos e outros que viro a pblico na forma de Textos para Discusso do Ipea, dado suas caractersticas distintas, so frutos de um ano de debate apaixonado e acalorado entre pesquisadores universitrios e tcnicos governamentais envolvidos na ela-borao e anlise de polticas pblicas na Dinte/Ipea guardado, como tal, um certo hibridismo.

    com essa paixo e com esse comprometimento que gostaramos de agradecer, no apenas aos autores dos textos aqui publicados, mas tambm

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    governania global e integrao da Amrica do Sul

    aos que ficaram de fora, pois suas pesquisas se estenderam muito alm da constituio de captulos de um livro, como o caso particular do professor Ladislaw Dowbor, ou se desviaram para temas que sero reunidos em outras publicaes, como o do pesquisador Rodrigo Nobile.

    Nosso mais novo colega, Walter Antonio Desider Neto, no apenas con-tribuiu com seu captulo, mas foi inestimvel como parecerista e revisor nos es-tertores deste processo; portanto gostaramos de agradecer sua contribuio, em especial, alm da contribuio de outros colegas de diretoria, sem os quais, com certeza, a qualidade deste produto no seria a mesma. Como tudo produzido na Dinte, por mais autoral que sejam os artigos, esta , mesmo que em parte, uma obra coletiva.

    Andr Rego Viana

    Pedro da Silva Barros

    Andr Bojikian Calixtre

    Braslia, setembro de 2011.

  • iNTroduo

    Theotnio dos Santos*

    O Ipea vem passando por mudanas muito importantes que visam ajustar suas atividades s novas realidades do mundo contemporneo, o qual vive um radical processo de transformao. Entre as novas realidades que se apresentam com insistncia aos pesquisadores, esto os processos de internacionalizao e globalizao da economia e da poltica mundiais, que exercem influncia cada vez mais incisiva sobre as estruturas internas de cada pas, produzindo conjunturas inditas que exigem anlises mais flexveis e complexas.

    Nesse sentido se orienta a atuao da Diretoria de Estudos Relaes Econmicas e Polticas Internacionais (Dinte) do Ipea, que comea a estabelecer, com incurses prospectivas mais sistemticas, um painel cada vez mais coerente da cena contempornea, til, sobretudo, ao planejamento estratgico do pas. Assim, abriram-se novos campos de pesquisa, foram criadas diversas publicaes e concebidos mecanismos de cooperao com instituies e pesquisadores dedicados a este esforo terico e emprico fundamental.

    Aceitei o convite para participar do debate sobre as verses preliminares dos trabalhos constantes deste livro e para escrever sua introduo devido alegre coincidncia de alguns dos pesquisadores participantes serem velhos colegas colaboradores da Ctedra e Rede da Unesco/ONU sobre Economia Global e Desenvolvimento Sustentvel (REGGEN), a qual coordeno. Desde sua criao, em 1997, a REGGEN vem se dedicando ao estudo sistemtico do processo de globalizao e de suas dimenses regionais, por meio da articulao de pesquisadores e instituies de todos os continentes voltados ao assunto.

    Este livro parte dos resultados desta pesquisa, e apresenta excelentes produtos. Alm dos materiais disponveis neste volume, esto em preparao vrios textos para discusso que aprofundam muitas das temticas aqui desen-volvidas. Seguramente, esta iniciativa, entre outras j em marcha no instituto, ajudar a criar um ambiente de estudos mais densos e rigorosos sobre a situao internacional, que superem o plano exclusivamente diplomtico e penetrem na complexidade da dinmica das relaes internacionais contemporneas. de se esperar que se consolide e amplie este tipo de colaborao entre o governo,

    * Professor Emrito da Universidade Federal Fluminense (UFF), coordenador da Ctedra e Rede Unesco/UNU sobre Economia Global e Desenvolvimento Sustentvel (www.reggen.org.br).

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    governana global e integrao da Amrica do Sul

    as organizaes internacionais, a academia, as organizaes no governamen-tais, as associaes de classe e os movimentos sociais, para que a insero brasi-leira e latino-americana na economia e poltica mundiais se revele sempre mais consciente e efetiva, na busca de um mundo justo, igualitrio e democrtico.

    1 gloBAlizAo E iNTEgrAo Sul-AmEriCANA

    Os trabalhos apresentados neste livro so a sntese de um esforo de pesquisa no mbito da chamada pblica promovida pelo Ipea para a realizao de um estudo coletivo acerca dos impactos da globalizao sobre a integrao sul-americana. Os leitores interessados em uma viso mais abrangente de cada item de pesquisa devem acompanhar, nas prximas publicaes do Ipea, os informes completos sobre os temas tratados.

    No texto que abre esta coletnea, Franklin Trein demonstra enorme capacidade de sntese, ao apresentar um dilogo muito proveitoso com os estudos europeus, estadunidenses e japoneses sobre a dinmica contempornea do sistema mundial. O autor enfatiza especialmente a questo crucial da possibilidade de que o mundo contemporneo se configure segundo o princpio da unipolaridade objetivo intentado, sobretudo, durante o governo Bush filho , ou se desenvolva uma articulao mundial orientada por uma multipolaridade que emerge, principalmente nos ltimos anos, diante do fracasso das invases do Iraque e do Afeganisto e, portanto, das concepes geopolticas que as engendraram.

    A evoluo das relaes polticas internacionais confirma as anlises ante-riores1 e explica como os pases da Amrica Latina puderam encaminhar uma concepo prpria da integrao regional, tendo a experincia do Mercado Co-mum do Sul (Mercosul) permitido ao Brasil assegurar o avano da Amrica do Sul na direo de um acordo regional extremamente amplo, a Unio das Naes Sul-Americanas (Unasul), organismo que se encontra em pleno desenvolvimento. Franklin Trein estuda tambm as tentativas de impedir o avano destes projetos integradores. Depois da derrota da proposta da rea de Livre-Comrcio das Am-ricas (Alca) em 2005, avanam diversas tentativas de acordos bilaterais sob a for-ma dos chamados tratados de livre-comrcio entre os Estados Unidos e vrios pases da regio. Franklin Trein termina o captulo com uma anlise detalhada dos diferentes grupos internacionais que buscam garantir a efetivao dos objetivos estratgicos dos centros do poder mundial. Torna-se possvel, assim, inserir os projetos de integrao regional sul-americanos e latino-americanos numa din-mica geopoltica mundial esforo indispensvel para os objetivos do projeto de pesquisa desenvolvido em comum.

    1. Em 2005, a REGGEN designou os ento BRICs de BRICAS, ao incluir a frica do Sul. Esta tendncia prevalece atualmente na REGGEN, com a sua proposta de coordenao acadmica entre os centros universitrios e de pesquisa de frica do Sul, Brasil, China, ndia e Rssia.

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    introduo

    O texto de Walter Antonio Desider Neto, por sua vez, pretende analisar de que maneiras a integrao sul-americana pode contribuir para uma maior parti-cipao do continente na formao de regras que orientem a governana global. O autor observa que a atuao conjunta dos pases da regio em fruns multilate-rais internacionais proveitosa, uma vez que se fundamenta na soma dos recursos de poder de cada participante.

    A partir dessa observao, caracterizado o conjunto dos recursos de poder dos pases da Amrica do Sul e sua posio no sistema internacional. Em seguida, faz-se uma anlise sobre os desafios que configuram o debate e a convergncia dos posicionamentos polticos dos doze pases do continente. A presena de quatro subgrupos identificada com base na participao dos Estados sul-americanos nos variados arranjos de integrao regional. Por fim, o autor tece algumas consi-deraes a respeito da situao atual da integrao.

    O estudo de Carlos Eduardo Martins busca analisar os desafios da Amrica do Sul ante as mudanas da economia mundial. A anlise se baseia em uma percepo abrangente da economia mundial, a qual vista como um fenmeno de longa durao, iniciado pelo menos a partir do esforo europeu para romper o domnio rabe sobre a rota da seda e o comrcio com o chamado Oriente afro-asitico.

    A descoberta da Amrica integra um continente inteiro numa nova rota comercial e reestrutura a produo e a diviso internacional do trabalho entre quase todas as regies do mundo. A centralidade europeia neste processo esteve apoiada inicialmente no domnio da tecnologia da navegao ocenica, alimentada pelos excedentes financeiros europeus, acumulados nos pontos nevrlgicos da cadeia comercial mundial. A expanso deste processo vai encontrar na Revoluo Industrial sua base material para expandir-se universalmente. Conforme o autor, a Revoluo Industrial se universalizou entre 1790-1970 e estabeleceu a expanso do capitalismo, de um sistema-mundo at ento apenas euro-americano, que comerciava com os imprios-mundo asiticos e africanos, para um sistema mundial que se estruturou em todos os continentes do planeta.

    Tal aventura econmica, social, poltica e cultural deu origem a novas estru-turas nas Amricas, que se converteram numa zona exportadora por excelncia dos produtos demandados pelo centro deste processo. Isto apesar da enorme acumulao de riqueza gerada, por intermdio de um mecanismo de superex-plorao da fora de trabalho no somente formada das grandes concentraes humanas com um alto grau de civilizao sabe-se hoje que algumas, como a civilizao recm-descoberta em Caral, no Peru, j haviam alcanado um nvel extremamente elevado h 5 mil anos , mas recorrendo-se inclusive a um gigan-tesco e lucrativo comrcio de escravos trazidos da frica para as Amricas.

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    governana global e integrao da Amrica do Sul

    Esta extraordinria acumulao primitiva de capital, que permitiu a implan-tao do capitalismo como um modo de produo dominante em todo o planeta, desapareceu pouco a pouco do imaginrio construdo pelo pensamento ocidental, que se concentrou nas pretensas qualidades absolutas do centro do novo sistema, o qual foi se deslocando da centralidade ibrico-mediterrnea para o norte da Europa. Holanda e Inglaterra se tornaram as herdeiras da gigantesca acumulao primitiva de capitais gerada pela aventura colonial, comandada por uma burguesia comercial que seria desprezada pela nova burguesia industrial em ascenso e criadora do mun-do cultural moderno, depreciador do passado ainda limitado da expanso europeia.

    O texto de Carlos Eduardo Martins permite, assim, situar a histria da Amrica do Sul num plano geopoltico extremamente rico, que mostra os limites estreitos a que foi reduzida a regio, que, ao libertar-se de seus centros coloniais no princpio do sculo XIX, abdicou da gesta libertria continental comandada por Bolvar para entregar-se diviso entre pequenos chefes locais ou regionais. Esta opo mais ou menos consciente permitiu que o destino da regio fosse en-tregue s novas foras hegemnicas locais, que se apropriaram das imensa riquezas geradas pela incorporao da regio ao aumento da demanda europeia por produ-tos agrcolas e matrias-primas e puderam impor-se sobre os demais proprietrios de terras e exploradores de minas. Foi assim que este poder limitado, voltado para as necessidades locais e submetido a um comrcio mundial que no controlava, permitiu desenvolverem-se oligarquias nacionais apoiadas em altas taxas de explo-rao da mo de obra.

    O trabalho de Carlos Eduardo Martins conduz, assim, a uma busca pela identificao das atuais mudanas operadas no sistema mundial que conduziram a uma retomada impressionante dos ideais integracionistas na histria recente da Amrica do Sul e da Amrica Latina em geral.

    possvel interpretar o quadro que se estabelece desde os anos 1990 e conti-nua no princpio do novo sculo como uma manifestao, no plano hemisfrico, do fenmeno mais geral da decadncia da hegemonia dos Estados Unidos, pas ao mesmo tempo crtico e herdeiro do sistema colonial. O que em certa medida explica as dificuldades de manter esta hegemonia, que alcanou seu mximo ao final da Segunda Guerra Mundial, e que se conquistou em parte pelo apoio aos movimentos anticoloniais que se enquadrassem num neocolonialismo submisso ao poder estadunidense.

    Esta realidade complexa cria as condies intelectuais elaborao do marco absolutamente necessrio para se pensar o processo de afirmao e soberania que comea a adquirir uma fora integradora das naes de uma regio que parecia condenada eternamente dependncia econmica, social e poltica.

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    introduo

    Carlos Walter Porto-Gonalves, por seu turno, apresenta um esforo de sntese de suas amplas pesquisas sobre as relaes entre globalizao, integrao regional e meio ambiente. Ele afirma em seu trabalho que

    a globalizao aqui ser compreendida no como um perodo recente que caracteriza-ria o mundo contemporneo, como parece maioria dos articulistas do mainstream, mas, ao contrrio, como histria de longa durao (Braudel, Wallerstein, Arrighi) que conformou o sistema-mundo moderno-colonial que nos governa at hoje. Compreender o espao do sistema mundo moderno-colonial como acumulao desigual de tempos (Milton Santos) fundamental para a anlise da integrao do nosso continente no contexto geopoltico do sistema-mundo.

    O enfoque geopoltico de Carlos Walter permite aprofundar a anlise dos mecanismos territoriais dos fenmenos estudados. O autor leva seus leitores a percorrerem um longo caminho, iniciado com os processos histricos impulsio-nados pela expanso do capitalismo europeu. Discorre ento sobre os biomas da Amrica Latina, o mapa da diversidade biolgica e cultural da Amaznia, o qua-dro das exportaes e importaes da Amrica Latina, as guas e terras disponveis por pas, a evoluo demogrfica, as reas divididas por plantaes principais, ressaltando a articulao destes fenmenos s aparentemente naturais com as lutas polticas e sociais que eles provocam inevitavelmente. Carlos Walter coloca assim seus leitores diante das mais remotas lutas sociais dos povos sumetidos expanso das exportaes mineiras, at encaminh-los para uma compreenso global do que representa a Iniciativa para a Integrao da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) e outros projetos similares de reafirmao da Amrica Latina e em particular da Amrica do Sul , enquanto regio exportadora de matrias-primas e produtos agrcolas.

    Trata-se, assim, de uma pesquisa indispensvel para que se definam as grandes linhas do planejamento estratgico de toda a regio. Alm disso, o captulo refere as vrias lutas parciais que envolvem a vida cotidiana dos povos latino-americanos, que tm de ser consideradas em qualquer projeto histrico consistente.

    Andr Bojikian Calixtre e Pedro Silva Barros contribuem neste volume com um artigo onde mostram como, a partir da experincia histrica de constituio do Mercosul, a diplomacia brasileira aprofundou as relaes com seus vizinhos e caminhou para a constituio de um novo espao de integrao poltica que culminou na constituio da Unasul.

    Num primeiro movimento, os autores realizam o resgate histrico das iniciativas e projetos antecedentes, visando abordar, num segundo momento, a transio do conceito de Amrica Latina para Amrica do Sul, destacando-se que a ltima o principal espao contemporneo de legitimao da poltica externa brasileira. Assim, os instrumentos de integrao econmica so analisados considerando-se

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    governana global e integrao da Amrica do Sul

    o quadro de mudanas polticas pelas quais a regio passou nos ltimos cinquenta anos, com enfoque nos impulsos integracionistas e seus entraves.

    Os autores discutem as novas caractersticas do processo de integrao re-gional, que despregou-se da integrao comercialista e cada vez mais caminha no sentido da constituio de polticas pblicas e compartilhamento de expe-rincias, em especial no mbito das polticas sociais, que constituem mais uma construo de um destino comum do que uma reaproximao de vizinhos que antes mal se comunicavam.

    Monica Bruckmann assina um estudo abrangente e profundo sobre os re-cursos naturais e a geopoltica da integrao sul-americana. Ela parte da relao entre os recursos naturais e o processo civilizatrio para mostrar, inclusive, o ca-rter cclico da explorao dos recursos naturais e sua relao com as estratgias de desenvolvimento, com especial nfase na questo das soberanias nacionais que se convertem em soberanias regionais a serem defendidas em amplos projetos de desenvolvimento regional.

    Com isso, nos leva necessidade de repensar os fenmenos das hegemonias num contexto histrico no qual as lutas pelas soberanias nacionais readquirem um papel poltico e terico fundamental. Para o aprofundamento da capacida-de de previso das foras socioeconmicas em jogo, a pesquisadora investiga as concepes estratgicas que comandam a poltica dos Estados Unidos sobre os minrios mais importantes. Nesta busca, se revelam as vulnerabilidades do centro hegemnico em virtude de uma dependncia crescente das matrias-primas dis-ponveis apenas nos pases perifricos.

    A partir dessa constatao, a autora examina o papel da Amrica Latina como fonte de minerais estratgicos, destacando a importncia do ltio. Em seguida, ana-lisa o aparecimento de um novo ator no centro do sistema a China, pas que se configura como grande consumidor e produtor de minerais. Estas consideraes suscitam uma retomada do tema dos ciclos dos materiais estratgicos que esto as-sociados aos avanos cientficos e tecnolgicos da humanidade, o que abre caminho para um novo posicionamento da Amrica Latina ou, pelo menos, da Amrica do Sul integrada, com a soberania sobre suas riquezas. Trata-se, portanto, de revisar o prprio conceito de soberania, que adquire assim uma dimenso continental.

    Mostrando-se capaz de formular um projeto consequente de utilizao das mudanas globais em curso, uma Amrica Latina unificada na defesa das suas riquezas e dos seus interesses criar novas condies de negociao no cenrio internacional. Tal projeto deve se sustentar num amplo esforo emprico e te-rico, buscando-se inclusive uma compreenso mais sistemtica dos novos atores internacionais, como a China, cuja posio tem se mostrado cada vez mais expl-cita em relao importncia estratgica da Amrica Latina.

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    introduo

    Marcelo Dias Carcanholo avana objetivamente na anlise das possibili-dades e da necessidade de uma nova arquitetura financeira regional, que teria no Banco do Sul seu instrumento preferencial. Sua postura crtica no exclui as possibilidades de avano na concretizao deste banco e nos efeitos positivos que permitiria para o apoio aos investimentos sociais e de infraestrutura.

    Acompanhando as principais propostas tericas sobre o papel do banco, o autor mostra como este poderia ser um catalisador da liquidez regional que hoje em dia assume um carter espetacular, ao capitalizar os supervits comerciais produzidos nos ltimos anos. So discutidas, assim, as gigantescas concentraes de reservas mal aplicadas em investimentos em ttulos do governo norte-americano.

    Numa conjuntura to favorvel desperdiada pela ausncia de respostas co-erentes, extremamente necessrio para o planejamento estratgico dispor de uma agenda bem estruturada no que diz respeito criao de uma nova ordem financeira regional. O autor sugere uma agenda organizada em torno dos seguin-tes temas: uma anlise da proposta de uma nova arquitetura financeira regional seguida de um balano dos argumentos contrrios e favorveis ao Banco do Sul e sua operacionalidade. Depois, so verificados os distintos mecanismos recomen-dados e sua relao com os interesses dos pases, observando-se a importncia da tomada de deciso do Brasil, aguardada com enorme expectativa.

    O texto de Marcelo Dias Carcanholo indica o caminho para o fortalecimento das economias da regio, apoiando-se em grande parte nos prprios documentos do Banco do Sul que definem como seu objetivo estratgico o estabelecimento das soberanias fundamentais dos povos da regio (energtica, alimentar etc.) e projetam uma grande quantidade de instrumentos financeiros e monetrios para o alcance das metas definidas.

    Finalmente, como exemplo da complexidade desta nova fase, convm apresentar o trabalho de Luiz Fernando Sann Pinto sobre a Petrobras na Amrica do Sul, que se constitui em um importante estudo de caso acerca das novas realidades em curso nos planos micro e macroeconmico. Assim como a luta pelo domnio e explorao nacional e regional do petrleo foi e parte da histria da regio, o avano da integrao regional coloca na ordem do dia no somente as estruturas mais globais da regionalizao, como tambm os problemas de gesto das riquezas regionais. O petrleo motivou vrias lutas regionais, e assim ser seguramente nesta nova fase na qual se amplia o papel da questo energtica. A Amrica Latina e particularmente a Amrica do Sul se apresenta como a sede de uma das maiores reservas petroleiras do mundo e possui uma das maiores concentraes de hidroeltricas, mas tambm a sede de novas tecnologias de produo de bioenergia em escala planetria, e conta com uma base fundamental de energia solar e elica. Ressalte-se, ademais, que no continente h grande

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    governana global e integrao da Amrica do Sul

    concentrao de ltio, matria bsica no s da bateria de celulares e aparelhos eletrnicos, mas tambm dos transformadores eltricos e eletrnicos.

    Este percurso to interessante realizado pela equipe de pesquisa, cuja sntese de suas concluses apresentada neste livro, indica o caminho para a institucionalizao de um campo de estudo fundamental para a conquista do pleno desenvolvimento humano e sustentvel de uma regio que sintetiza vrias experincias civilizatrias, e que emerge definitivamente para colocar-se no centro da evoluo humana, rompendo com sua dependncia, atraso e misria, fruto da acentuada concentrao da renda do planeta.

  • CAPTULo 1

    uNiPolAridAdE E mulTiPolAridAdE: NovAS ESTruTurAS NA gEoPolTiCA iNTErNACioNAl E oS BriCS1*

    Franklin Trein**

    Os primeiros anos da transio desde o fim da Guerra Fria tm sido marcados por crises sucessivas, onde a indefinio, a incerteza e a impotncia substituram a simplicidade, a previsibilidade e a constncia que caracterizaram a competio entre Estados Unidos e a Unio Sovitica depois da estabilizao da diviso bipolar (GASPAR, 2008).

    O objetivo deste trabalho examinar as condies das relaes internacionais globais, considerando seus principais atores para os interesses do Brasil e de seu entorno pol-tico. A partir de uma perspectiva geopoltica, sero destacadas particularmente aquelas articulaes que configuram os processos em curso como tenses entre um mundo unipolar e multipolar, hegemnico e multilateral. Sem desconhecer e sem desconside-rar a complexidade do cenrio internacional, os argumentos aqui apresentados sero claros e concisos, deixando na indicao das fontes consultadas as sugestes para uma discusso muito mais ampla. A rigorosa seleo dos autores citados, em que no fal-tam perspectivas diametralmente opostas, tem o propsito de ampliar e enriquecer o

    * A escolha do modo como este trabalho est apresentado a seguir resultou da impossibilidade de expor, ainda que de forma resumida, os incontveis argumentos examinados e selecionados ao longo da pesquisa. Percorreu-se um caminho bastante extenso, que resultou em um emaranhado de teses que bem refletem a complexidade das questes aqui tratadas. Na composio do texto, contudo, teve-se o cuidado de que as diferentes percepes ficassem resumidas nas prprias palavras do autor em uma formulao clara e consistente. Na inteno de permitir aos interessados uma crtica interna deste trabalho, ou mesmo um aprofundamento da discusso em qualquer de suas partes, sempre que possvel, se remeteu s fontes em que se recolheram as ideias trazidas para o debate. Como foi feita ainda a opo de restringir as fontes consultadas ao que est disponvel na internet, adotou-se dois critrios que pareceram indispensveis, porm suficientes, para conferir confiabilidade a esta pesquisa. Primeiro: s foram feitas referncia a paginas de instituies perfeitamente identificveis e de reconhecida competncia nas respectivas reas de trabalho, mesmo aquelas que contriburam somente como fontes de informao de imprensa. Segundo: na sequncia, nas pginas institucionais, para os textos que reproduzem resultados de pesquisa, s foram consideradas aqueles de autores com vnculos e funes permanentes nestas instituies. Independentemente das muitas referncias s fontes, os argumentos apresentados aqui so de exclusiva responsabilidade do autor.** Coordenador do Programa de Estudos Europeus e professor associado do Programa de Ps-Graduao em Economia Poltica Internacional, ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

  • 20

    governana global e integrao da Amrica do Sul

    debate com as diferentes anlises as contradies presentes no entendimento dos especialistas. No obstante a extenso e a riqueza das discusses entre os autores, reitera-se que os argumentos condutores deste texto so de exclusiva responsabilidade do autor.

    1 uNiPolAridAdE mulTiPolAridAdE1

    A anlise do sistema internacional nos anos mais recentes mostra que indicadores, tais como poder militar, poder econmico, poder poltico e capacidade cientfico-tecnolgica, que deram aos norte-americanos, especialmente aps a dissoluo da Unio das Repblicas Socialistas Soviticas (URSS), uma posio de supremacia nas relaes internacionais, servem ainda para a avaliao do papel dos Estados Unidos no momento atual (SUR [s.d.]).

    Na primeira dcada ps-dissoluo da URSS, o contexto do que parecia ser a vitria definitiva da viso de mundo liberal, inaugurada por Margareth Thatcher e Ronald Reagan nos anos 1980, permitiu aos norte-americanos e a seus aliados o sentimento de que o mundo havia sido completamente dominado (TESSIER, 2001). O exerccio de um poder hegemnico era um direito e um dever de quem se tornara a nica superpotncia. Exerc-lo era legal e legtimo. Assim, o mundo bipolar do ps-guerra, depois de quase meio sculo, deu lugar a uma nova realidade. Os Estados Unidos assumiram a condio de um poder unipolar (PERES, 2008).

    No surpreende ningum que aquela tenha sido a evoluo das relaes de poder entre os pases. Todos os elementos disponveis para uma avaliao criterio-sa apontavam para a nao norte-americana como a nica em condies de pen-sar o mundo em uma perspectiva geopoltica global. Decorrido meio sculo desde o fim da Segunda Guerra Mundial, somente os Estados Unidos tinham logrado construir uma infraestrutura econmica, cientfico-tecnolgica, militar e poltica capaz de se fazer presente e expressar seus interesses em qualquer quadrante do planeta. O esforo de integrao regional da Europa Ocidental, construindo a Unio Europeia (UE), tinha ficado muito aqum das condies necessrias ao exerccio de um poder que, para ser efetivo, deveria dispor da capacidade de ver o mundo como um territrio sem limites para seus interesses. A sia, por sua vez, na transio dos anos 1980 para os 1990, para observadores distantes ainda se en-contrava encoberta por um vu de indefinies, sendo que a China mantinha suas fronteiras rigidamente fechadas para a ltima expanso territorial significativa do modo de produo capitalista.

    1. Usar o conceito de unipolaridade uma contradio em termos; mesmo assim, pela frequncia com que encon-trado entre os autores, no parece merecer aqui a crtica que lhe caberia e, assim, estar incorporado ao vocabulrio deste trabalho na sua acepo corrente.

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    Naquele perodo, os Estados Unidos, no apenas detentores de um poder hegemnico incontestvel, mas tambm caracterizados por um certo isolacionis-mo, tiveram uma poltica externa ambgua, flutuando entre o unilateralismo e o multilateralismo (ALMEIDA, 2003). Talvez mais ambivalncia do que ambigui-dade foi a forma encontrada para manter seus compromissos com aqueles que consideravam seus aliados.

    A unipolaridade, contudo, no foi percebida s nos campos poltico e militar; logo ficou evidente que, embora com algumas diferenas quanto concentrao, diante das economias de outros pases, seu poder econmico tambm tinha dimenses hegemnicas (LINK, 2004).

    A singularidade das posies poltica e militar norte-americana ficou evi-denciada na forma como os Estados Unidos e seus aliados europeus ocidentais trataram o conflito generalizado na regio dos Blcs, aps a dissoluo da Federao Iugoslava (ISKENDEROV, 2010). A UE, mesmo tendo assumido uma posio de gendarme, no conseguiu tomar decises eficazes, deixando aos Estados Unidos o espao de interveno na regio por meio da Organiza-o do Tratado do Atlntico Norte (Otan). A tragdia que se abateu sobre os povos balcnicos parecia ser suficiente para explicitar um cenrio de unipo-laridade que se cristalizava. Contudo, aquele foi um tempo to curto quanto um piscar de olhos da histria. Os acontecimentos do Onze de Setembro de 2001 tornaram perceptvel a inflexo na poltica norte-americana em todos os seus segmentos e direes. Se, at ento, na busca de seus interesses, era visvel uma escalada de poder que parecia no conhecer limites, naquele momento, evidenciou-se que a perspectiva de um poder absoluto era falsa.

    A reao tampouco se fez esperar. Em maro de 2003, a invaso do Ira-que marcou o incio de uma nova estratgia: a doutrina da interveno militar como forma de resguardar interesses passou a justificar toda e qualquer guerra, mesmo aquelas preventivas, contra inimigos reais ou potenciais. A primeira consequncia foi a de que o mundo, que se tonara nico com o fim da hist-ria (FUKUYAMA, 1992), voltou, novamente, a estar dividido entre os alia-dos incondicionais, de um lado, e, do outro, todos os demais, considerados inimigos em diferentes graus de conflito e confrontao. A Europa Ocidental, parceira de tantas guerras, diante das vacilaes da Alemanha e da Frana, pas-sou a ser classificada de uma civilizao decadente a Velha Europa, como a chamou Donald Rumsfeld. O ataque s torres gmeas para os estrategis-tas norte-americanos, desde Wall Street at o Pentgono, passando pela Casa Branca, significou o fim do conforto proporcionado por um poder que parecia

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    infinito.2 Como disse Osama Bin Laden, a sociedade norte-americana, a partir de ento, jamais conciliaria o sono por uma noite inteira. O Onze de Setembro mostrou que os pilares do poder hegemnico eram vulnerveis e que o proces-so de corroso da unipolaridade econmica, poltica e militar no podia ser detido (KNOTHE, 2007).

    Se o longo perodo de Guerra Fria (mais de quatro dcadas) permitiu que os Estados Unidos tivessem conduzido a defesa de seus interesses com independncia, autonomia e, no raro, de forma arrogante e mesmo com des-prezo em relao aos seus aliados, o mundo unipolar, ps-queda do muro de Berlim, em 9 de novembro de 1989, serviu para desvelar uma situao em que o poderoso aliado dos europeus, at ento indispensvel, passou a ser visto de uma nova forma. O perodo de pouco mais de uma dcada, entre 1989 e 2001, levou a explicitao do fato de que alguns interesses norte-americanos deixavam de ser interesses comuns a todos, como vinha sendo considerados h mais de meio sculo, para passar a ser somente os interesses de uma nao he-gemnica. Se isto no era exatamente uma novidade para a Frana (GORCE, 2003; KASPI, 1987)3 do general De Gaule, que abandonou a Otan em 7 de maro de 1966 ou para a Alemanha 4 de Willy Brandt, com sua Ostpolitik , no entanto, contribuiu para tornar a realidade dos acontecimentos mais evi-dente para alguns pases; entre eles, aqueles que passaram a ser chamados de emergentes, como o Brasil, e algumas regies, como a Amrica do Sul, ainda que no em toda a sua extenso (MAYNES, 1999).

    As invases do Afeganisto, em 2001, e do Iraque, em 2003, determi-nadas pelo presidente George W. Bush, em nada contriburam para melhorar a imagem internacional dos Estados Unidos, pelo contrrio, serviram para chamar ateno para o exerccio de uma poltica que optava pelo uso unila-teral da fora em detrimento do dilogo multilateral respaldado pelos orga-nismos internacionais. Aquelas duas guerras provocaram no s um aumento considervel dos gastos pblicos durante o governo de Bush, como tambm

    2. Antes do ataque s torres gmeas, os Estados Unidos permitiram-se rejeitar o Protocolo de Kyoto, o Tribunal Penal Internacional, a Conveno sobre a Eliminao de Minas Antipessoais, a Conveno de Inspeo de Armas Biolgicas e o Protocolo sobre a Corrupo e Lavagem de Dinheiro. No dia 12 de junho de 2001, o presidente George W. Bush declarou em Madrid que o Tratado Antimsseis Balsticos, de 1972, assinado pelos Estados Unidos e pela ex-URSS, que ajudou exitosamente a manter o equilbrio estratgico entre as duas potncias durante mais de trs dcadas, era uma relquia do passado. 3. Uma extensa documentao sobre as relaes entre a Frana e a otan encontra-se no Document dinformation no 1, da Bibliothque de lotan, de 12 de maro de 2009. Disponvel em: .4. Sobre a ostpolitik, como foi chamada a poltica de distenso posta em prtica pelo primeiro-ministro da Repbli-ca Federal da Alemanha, Willy Brandt (1969-1974), que teve como seu principal formulador, o ento ministro para relaes especiais, Egon Bahr (1972-1974), h uma extensa e consistente literatura na biblioteca da Friedrich-Ebert-Stieftung, em Bonn. Disponvel em: .

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    levaram a opinio pblica internacional a considerar os Estados Unidos uma ameaa paz mundial.5

    Um novo momento parecia ter sido inaugurado com a campanha que conduziu Barack Obama presidncia da nao mais poderosa do mundo. Pelo menos, assim entenderam muitos analistas.6 Entretanto, alguns j admi-tem que, da mesma forma como o mandato presidencial ainda est em curso, tambm se prolonga o processo de definio da nova estratgia norte-america-na; vista e revista diante das dificuldades de ganhar as guerras rapidamente e, mais ainda, de garantir a paz, mesmo esquecendo a democracia. Os polticos desconfiam e os generais no acreditam nas promessas de efetiva retirada de tropas dos campos de batalha.7

    Se a privatizao da guerra um bom negcio, se mercenrios de toda ordem no campo de batalha podem garantir a circulao de bilhes de dla-res (SINGER, 2009), isto tende, no entanto, a se reduzir a uma simples ttica de dissimulao. Ela no garantia da vitria e menos ainda de recuperao da confiana desgastada. Na medida em que no assegura tranquilidade para as populaes locais, tambm no garante para o capital qualquer perspectiva de recuperao dos custos da interveno e, menos ainda, a necessria con-fiana para futuros investimentos. O Iraque, o Afeganisto, mas ainda o Ir e, menos significativo, porm sempre parte do todo formado pelos inimigos, a Somlia representam focos de corroso na estrutura do poder hegemnico norte-americano. No ser demais lembrar que, na sequncia do terremoto que destruiu Porto Princpe, no se concretizou ocupao militar do Haiti

    5. Informaes sobre a economia norte-americana, com dados atualizados sobre as contas pblicas, podem ser obtidas em: . A respeito da imagem dos Estados Unidos durante o governo do presidente Bush frente opinio pblica internacional, h uma grande quantidade de fontes disponveis, entre elas: ; ; para a opinio pblica em geral, via internet, ver: .6. Na verdade, no s analistas de poltica internacional, mas tambm a imprensa de opinio expressavam uma grande expectativa em relao ao novo governo dos Estados Unidos. Um testemunho do que a opinio pblica esperava de Barack obama est expresso, talvez, no Prmio Nobel da Paz que lhe foi conferido em 2009.7. A lenta retirada das tropas terrestres do Iraque, iniciada no final de 2010, muito mais uma mudana estratgica na forma de substituio de foras regulares por foras mercenrias que continuaro com as novas tarefas tticas sobre o territrio. As foras remanescentes contaro com o apoio de unidades ditas de policiamento que, por sua vez, so unidades regulares do Exrcito norte-americano. Alm da imprensa (The New York Times, disponvel em: ; e Newsweek, disponvel em: ), organizaes no governamentais (oNGs) acompanham e divulgam informaes sobre a estratgia norte-americana de transferncia de suas aes militares para empresas privadas. Disponvel em: , . Um estudo abrangente sobre a participao crescente de empresas privadas em aes de guerra como forma de encobrir responsabilidades governamentais, perspectiva presente na nova estratgia militar dos Estados Unidos para o sculo XXI, proposta por Donald Rumsfeld, quando secretrio de Defesa de George W. Bush, em 2001, foi elaborado pela Universit Lavale, no Qubec, e est disponvel em: .

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    pelas foras norte-americanas, no por falta de interesse e disposio, mas muito mais pelas resistncias oferecidas por aqueles outros pases que l se encontravam por mandato da Organizao das Naes Unidas (ONU) entre eles, o Brasil.8 Todos estes ditos aliados dos Estados Unidos, em maior ou me-nor grau, mas que no estavam mais dispostos a legitimar atos de demonstra-o de poder contra uma sociedade miservel e completamente fragilizada por circunstncias polticas histricas, somadas agora a uma catstrofe natural.

    As dificuldades dos norte-americanos para manter sua condio de poder unipolar so internas e externas: de um lado, as crises econmicas dvida interna privada, dvida pblica interna e externa e dficit da balana comercial (WAL-LERSTEIN, 2002); do outro lado, o custo da guerra,9 de uma guerra sempre sem soluo, seja no Iraque, seja no Afeganisto. Em outras palavras, do lado de fora de suas fronteiras, os Estados Unidos assistem, com poucas ou nenhuma alternativa, formao de grupos de interesses circunstanciais: G-4, G-5 e G-20. Na verdade, estes grupos so o resultado de um fenmeno relativamente novo no cenrio internacional. Eles vm se somar aos blocos regionais, estes com maior densidade poltica e j institucionalizados. Dito de outra forma, os Gs como grupos ad hoc se acrescentam quelas formaes regionais definidas nas suas diferentes verses, isto , na forma da UE, do Mercado Comum do Sul (Merco-sul), da Unio de Naes Sul-Americanas (Unasul), da Organizao Xangai para a Cooperao (SCO, em ingls, Shanghai Cooperation Organisation),10 ou at mesmo da Organizao para a Cooperao Econmica (ECO, em ingls, Eco-nomic Cooperation Organization).11 Mas o maior e mais preocupante desafio posio norte-americana no mundo no so estas instituies que, a partir de di-ferentes interesses, agregam diversas quantidades de pases em associaes sempre heterogneas. Sem dvida, o grande desafio ao lugar ocupado pelos Estados Uni-dos no sistema internacional vem da China, no seu infatigvel desenvolvimento econmico, suportado por uma populao de mais de 1,3 bilho de indivduos (JABBOUR, 2004).

    8. No dia 18 de janeiro de 2010, o Daily Telegraph publicou: France accused the US of occupying Haiti on Monday as thousands of American troops flooded into the country to take charge of aid efforts and security. The French minister in charge of humanitarian relief called on the UN to clarify the American role amid claims the military build up was hampering aid efforts.9. Stiglitz and Bilmes (2008) have estimated the cost of the Irak war to the United States to be at least US$3 trillion (3.000 billion). This excludes the cost to the rest of the world (notably the UK and Iraq, with an estimated 40-100,000 casualties). The Irak war comes out then as the second most expensive war in history, after the Second World War, which cost about $5 trillion (in 2007 dollars adjusted for inflation). Mais informaes disponveis em Bergh (2008).10. Pases integrantes da SCo: Cazaquisto, China, Quirguisto, Rssia, Tajiquisto e Uzbequisto. A SCo foi criada em 1996, como os Cinco de Xangai. Em 2001, com o ingresso do Uzbequisto, passou a se denominar SCo. Ela uma organizao intergovenamental de segurana mtua. A ndia, o Ir, a Monglia e o Paquisto tm o status de observadores junto SCo.11. Pases integrantes da ECo: Afeganisto, Azerbaijo, Ir, Cazaquisto, Quirguisto, Paquisto, Tajiquisto, Turquia, Turcomenisto e Uzbequisto.

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    unipolaridade e multipolaridade

    2 oS BriCS12

    Identificar ncleos de poder atuando a partir de arranjos circunstanciais no significa dizer que a hegemonia dos Estados Unidos d sinais de vulnerabilida-de. Pelo contrrio, h bons indcios de que o poder norte-americano, seja ele militar, econmico ou poltico, est muito distante de um fim. No se pode desconsiderar que o hard power e o soft power (capacidade industrial, capacidade militar, recursos humanos, cincia e tecnologia (C&T) e dominncia cultural), sobre os quais se apoia sua hegemonia, somados representam uma capacidade de deciso e ao de extraordinrio potencial.

    Quando a anlise da posio norte-americana no sistema internacional indica que nos encontramos em um perodo de mudanas, mas, ao mesmo tempo, que nada acontecer de um dia para o outro, isto significa que h, pelo menos, dois fa-tores a serem considerados. Por um lado, vale a pena repetir, a sustentao do poder dos Estados Unidos de tal ordem que no ser em pouco tempo que at mesmo o extraordinrio desenvolvimento chins conseguir se aproximar dos seus valores econmicos e militares e, assim, lhe fazer uma efetiva concorrncia.13

    Por outro, e isso talvez ainda mais significativo, a ningum entre os grandes (os que constituem o G-7)14 parece conveniente uma nova ordem. Durante o per-odo recente, o da chamada globalizao, os interesses do capital se entrelaaram de tal maneira que mesmo os chineses, que no professam um capitalismo estrito, no tm vantagens no enfraquecimento da posio dos Estados Unidos.15

    Os chefes de Estado ou de governo do Brasil, da Rssia, da ndia e da China se reuniram, pela primeira vez, em Yekaterimburgo, na Rssia, a convite

    12. Como amplamente divulgado, a sigla BRIC apareceu pela primeira vez em trabalho elaborado pelo economista do banco Goldman Sachs, Jim oNeil, em 2001. Neste estudo, ele previu que Brasil, Rssia, ndia e China apelidados de BRIC at 2050 teriam mais peso econmico que o grupo dos pases mais desenvolvidos de hoje. importante ob-servar ainda que os quatro pases no se reuniram por uma deciso estratgica, formulada originalmente por suas res-pectivas chancelarias, seno que muito mais motivados pela oportunidade da sugestiva sonoridade de uma sigla que j corria o mundo: brik (tijolo) ou seja, universalmente um bloco de barro cozido, resistente, usado em edificaes.13. Sobre as relaes Estados Unidos versus China, h um interessante debate em World Affairs Board, disponvel em: . Um debate menos amplo, porm mais atualizado, est disponvel em: Consumer News and Business (CNBC), The world is going to become richer and richer as developing economies play catch up over the coming years, according to Willem Buiter, chief economist at Citigroup. Disponvel em: .14. o chamado G-7 formado pelos seguintes pases: Estados Unidos, Japo, Alemanha, Reino Unido, Frana, Itlia e Canad. o G-7 + 1, ou G-8, inclui ainda a Rssia.15. Uma polmica interessante sobre as relaes entre as economias norte-americana e chinesa esta disponvel em: Economic mutually assured destruction revisited disponvel em: . Uma discusso, mais atual, sobre este tema tem seguimento em China vs America: fight of the century disponvel em: . o capitalismo chins deve estar causando importantes re-flexes da parte de muitos idelogos liberais, uma vez que seu xito significa uma ruptura, de facto, com uma relao urea ou seja, aquela da propriedade privada e da livre iniciativa como estruturas indispensveis democracia burguesa. Ver tambm Carrio ([s.d.]).

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    do presidente Dmitri Medvedev, em 16 de junho de 2009.16 Neste encontro, buscaram definir uma agenda comum que permitisse exercer presses no sen-tido de uma reforma profunda das instituies do sistema financeiro interna-cional, tais como o Fundo Monetrio Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Os resultados foram bastante modestos.

    difcil supor que, mesmo podendo ter vantagens expressivas em uma nova ordem das finanas internacionais, considerando-se suas divergncias, os BRICs ve-nham a convergir o suficiente para exigirem as reformas que dizem ser seus objetivos. Se a segunda reunio dos chefes de Estado e de governo dos BRICs, em meados de abril de 2010, em Braslia, permitiu avanar, ainda que lentamente, sobre os resul-tados do primeiro encontro, ficou mais uma vez evidente que as diferenas no so de simples soluo. No s as questes ambientais17 e as avaliaes distintas, com respeito ao problema da energia atmica, separam os quatro pases. Os compromissos bilaterais de cada um com pases terceiros e os conflitos de fronteira entre China e ndia18 e China e Rssia19 j seriam suficientes para que a efetiva consolidao deste G-4 deva ser vista como de difcil realizao. Soma-se a tudo isto o fato de que as reivindicaes apresentadas pelos BRICs at agora no se traduzem em nenhuma mudana mais significativa das regras do jogo do capitalismo. Eles no insistiram na proposta apresentada em 2009 de criar uma nova divisa internacional para rivalizar com o dlar e, tambm, no avanaram mais na formao de instituies conjuntas.

    16. Dizer que a reunio em Yekaterimburgo, por convite do presidente Dmitri Medvedev, no se originou em uma deciso estratgica prpria das chancelarias, no significa desconhecer seu significado para as relaes internacionais globais. o fato de que interesses convergentes entre os quatro pases tenham sido identificados por um analista de finanas internacionais, por um lado, no invalida a oportunidade da constituio do grupo; por outro, contudo, lhe d um carter particular. Isto, exatamente, parece se traduzir na iniciativa do presidente russo, que, entre os demais membros dos BRICs, representa o pas cuja economia enfrenta maiores dificuldades e que, nesta medida, tem interesse especial em ver as negociaes na organizao Mundial do Comrcio (oMC), e no s ali, tomarem um ritmo e uma direo os mais positivos possveis. Para um exame extenso e consistente dos BRICs, ver o trabalho de Bruno De Vizia e Gilberto Costa. Disponvel em: . Em paralelo II Reunio de Cpula dos BRICs, realizada em Braslia, em 15 de abril de 2010, o seminrio internacional organizado pelo Ipea (Cpula BRIC de Think Thanks: o Papel dos BRICs na Transformao Global do Ps-crise) produziu uma exaustiva anlise das condies deste grupo de pases e suas intervenes no sistema internacional. Bruno De Vizia editor-chefe e Gilberto Costa seu assistente em Braslia na revista mensal de informaes e debates do Ipea Desafios do Desenvolvimento. importante observar que o documento do Ipea acaba por reforar a percepo de que os quatro pases no formam um todo, mas, muito antes, se mantm justapostos. As diferenas entre os integrantes dos BRICs, como se ver a seguir, no permitem uma aproximao suficiente para que possam atuar como um bloco sempre convergente e coeso. 17. Uma anlise bastante abrangente das posies das principais economias mundiais entre elas, as dos BRICs , pode ser encontrada em Drge (2009).18. Em 12 de abril de 2005, a China e a ndia assinaram um acordo definindo princpios gerais para resolver seus problemas de fronteira, que j duram mais de 40 anos. Conferir em Accord entre lInde et la Chine pour rgler leur diffrend frontalier disponvel em: . Mesmo assim, os problemas persistem; isto o que informa Antoine Ginard, pesquisador e colaborador permanente de Aujourdhui lInde. Conferir La Chine et lInde continuent dentretenir le flou frontalier au Ladakh, disponvel em: .19. Para os conflitos de fronteira entre a China e a Rssia, ver Colin (2003).

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    unipolaridade e multipolaridade

    O que se observa que a concorrncia capitalista entre Brasil, Rssia, ndia e China no faz deles parceiros completos, seno que, cada vez mais, concorrentes explcitos.

    Mais um exemplo da dificuldade de consolidao do G-4 pode ser observado no Conselho de Segurana da ONU, o verdadeiro clube atmico formado pelos cinco donos do mundo. Neste conselho, so testados os princpios de soberania, isonomia e democracia que se diz constiturem os fundamentos da ordem interna-cional. E faz-se o silncio obsequioso dos pares permanentes deste conselho (China, Frana, Reino Unido e Rssia, alm dos Estados Unidos) frente violncia norte-americana no Iraque, no Afeganisto e no Paquisto, s ameaas ao Ir ou ao apoio poltica de Israel para com os palestinos; violncia russa na Chechnia; violncia chinesa em Xianjang; violncia europeia nos Blcs. Estes fatos so parte de uma realidade que serve a todos que tm em uma ordem de perfil imperial unipolar mais vantagens que prejuzos.

    A ordem internacional ps-Guerra Fria permanece em transio. O movimento de uma unipolaridade multilateral para, talvez, uma multipolaridade multilateral se afigura longo e no destitudo de sobressaltos. Mesmo j revestidos de expressivos destaques diante dos demais pases, os BRICs, individualmente ou mesmo como gru-po, ainda que tenham 40% da populao e sejam responsveis por aproximadamente 20% do produto interno bruto (PIB) mundial, no renem condies econmicas, polticas ou militares para tomar decises que desafiem os interesses dos Estados Uni-dos e seus aliados do G-7.20 Mesmo assim, h de se reconhecer que, ao reiterarem a reivindicao por reformas imediatas no Banco Mundial e no FMI de modo a dar mais voz para as naes em desenvolvimento e ao imporem um prazo para as reformas, alm de pedirem que o G-20 seja mais ativo na definio de uma estratgia para o mundo ps-crise, isto mostra alguma coeso e confiana entre os quatro pases.

    Essa perspectiva crtica em relao aos BRICs, aqui expressa, no impede de reconhecer que eles vm ganhando, individualmente, um crescente destaque entre as demais naes e que, mesmo com todas as dificuldades, so percebidos como um grupo de pases cujas manifestaes devem ser tomadas em considera-o nas grandes decises internacionais (CRUZ, 2007).

    20. Nesse contexto, uma anlise extensa e detalhada dos BRICs, com contribuies de 14 autores, pode ser encontrada em Baumann (2010). Nunca ser demais observar que o G-20 enquanto instncia de discusso no representa um desafio posio norte-americana, como tambm verdade que ele no teria se constitudo sem o consenso dos Estados Unidos.

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    Na reunio do G-20 financeiro,21 em Pittsburgh, nos dias 24 e 25 de setembro de 2009, por reivindicao dos integrantes do G-4, com destaque para a atuao diplomtica brasileira, ficou acertado que as decises, at ento tomadas no mbito do G-8, passariam ao grupo ampliado do G-20, que assim se converteu no principal foro para a coordenao econmica internacional.22 A cpula de Pittsburgh concluiu convocando uma nova reunio para junho de 2010, em Toronto.

    Agora, quando j se dispe do resultado desse ltimo encontro, sabe-se que ele foi palco, mais uma vez, das dificuldades e das resistncias oferecidas pela posio de poder dos Estados Unidos e seus aliados, principalmente os europeus. O fracasso nas negociaes sobre as barreiras comerciais, em especial a para os produtos agrcolas, que seria levada prxima Rodada de Doha, con-trariou muitos interesses, principalmente os do Brasil. Em outros termos, em Toronto, os BRICs no tiveram peso suficiente para impor seus interesses dian-te da unipolaridade dos norte-americanos que, neste caso, buscaram respaldo em entendimento multilateral com seus aliados mais prximos.

    3 oS BriCS: um A um23

    O exame, ainda que breve, das condies de cada um dos quatro pases que in-tegram o grupo dos BRICs parece ser um caminho para o entendimento do que nem sempre est dito com clareza ou seja, o que se pode esperar como atuao de cada um deles e do conjunto que passaram a formar aps a reunio em Yeka-terimburgo, em 2009.

    O ponto de partida o contexto no qual se tem, de um lado, a intrincada trama dos interesses dos Estados Unidos e seus aliados (mais imediatamente, os demais componentes do G-7) sustentada por um extraordinrio poder econ-mico e militar. Do outro lado, por assim dizer, encontra-se um grupo de pases, ditos emergentes, e aqui interessam particularmente Brasil, Rssia, ndia e China,

    21. importante citar a existncia de outro G-20, denominado G-20 pases emergentes, que composto apenas por pases em desenvolvimento, cujo objetivo principal a elaborao e a discusso de projetos para defender os interesses das naes integrantes. J o G-20 financeiro, que est sendo abordado neste texto, rene representantes de pases desenvolvidos e pases em desenvolvimento, para tratar de aspectos econmicos mundiais. o grupo foi criado em 1999, com o intuito de promover o fortalecimento da economia mundial. A representatividade do G-20 financeiro muito expressiva, pois, somados os pases membros, eles so responsveis por, aproximadamente, 90% do produto nacional bruto mundial, 80% do comrcio internacional e aproximadamente 65% da populao do planeta. Integram o chamado G-20 financeiro os seguintes pases: frica do Sul, Argentina, Brasil, Mxico, Canad, Estados Unidos, Alemanha, Frana, Itlia, Reino Unido, Rssia, China, Japo, Coreia do Sul, ndia, Indonsia, Arbia Saudita, Turquia, Austrlia e a UE. 22. Todos os documentos oficiais da reunio de cpula de Pittsburgh esto disponveis em: .23. o Brasil ser examinado somente ao final deste trabalho, na seo 6.

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    reunidos sob uma sigla que mais dificultou a compreenso de seus papis do que ajudou a situar cada um em suas reais funes.

    A partir de uma perspectiva geopoltica, possvel observar que os quatro pases tm em comum o fato de que so detentores de um expressivo poder regional. Neste sentido, necessrio ter presente que o Brasil o nico que no s no tem fronteiras comuns com os demais, como tambm aquele que se encontra fora e distante, geograficamente, do continente asitico. Em outros termos, desde um ponto de vista geopoltico, o Brasil tem uma situao singu-lar em relao China, ndia e Rssia, uma vez que por suas caractersticas, sobretudo territoriais, goza de uma condio privilegiada em sua regio ou seja, na Amrica do Sul.

    O fato de que a China tem fronteiras comuns tanto com a Rssia, ao norte, quanto com a ndia, ao sul, permite que se considere que o conjunto dos trs pases forma um arco, ou uma cadeia. Tomando-se em conta suas caractersticas comuns, ainda que no igualmente distribudas entre eles (territrio, populao, poder econmico e poder militar), so todos os trs grandes potncias. As fron-teiras comuns entre eles, na forma como foi observado anteriormente, histori-camente, tm significado motivo de conflitos permanentes, situao que s nos ltimos anos passou a receber um tratamento que vem permitindo transformar o que j foi motivo de grandes atritos em alguma forma de entendimento. Mesmo assim, divergncias herdadas de muitos sculos atrs no se mostram de simples e rpida soluo. A proximidade territorial entre aquelas trs grandes potncias , deste modo, mais um fator de instabilidade na regio que de boa vizinhana.24

    3.1 rssia

    A Federao Russa foi a principal herdeira do esplio deixado pela dissoluo da URSS. Neste sentido, lhe coube uma parte considervel do poderio militar sovi-tico, o que, mesmo tendo perdido a dimenso que caracterizou a bipolaridade do perodo da Guerra Fria, guarda grandes propores. A Rssia, como segunda maior potncia militar no mundo, est muito aqum dos Estados Unidos e, ao mes-mo tempo, muito alm de todos os demais pases detentores de armas atmicas.25

    Acontece, contudo, que sua capacidade militar se degrada a cada momento, pelo menos em termos relativos. Ainda que a Rssia continue fazendo um grande es-foro para manter seus arsenais e suas tropas, so reconhecidas suas limitaes para

    24. As anlises geopolticas dos BRICs e, em particular, dos trs pases da sia tm contribudo para o entendimento de relaes importantes entre eles e com outros atores do sistema internacional. Pela atualidade e riqueza de elementos, destacam-se aqui as seguintes contribuies de Reiter ([s.d.]), Scholvin e Mattes (2007) e Grossmann (2005).25. Para um exame detalhado das potncias militares no mundo, consultar o site disponvel em: .

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    governana global e integrao da Amrica do Sul

    seguir em uma corrida armamentista que, liderada pelos Estados Unidos, a cada dia exige mais recursos materiais e intelectuais, dada a complexidade tecnolgica crescente dos novos armamentos.26

    dispensvel insistir no fato de que tanto nas questes militares como na economia, a cincia e a tecnologia se tornaram condies necessrias para seu desenvolvimento e sua sustentabilidade. Se uma das mais fortes evidncias da crise que levou dissoluo da URSS foi o colapso de sua capacidade de produ-o cientfica e tecnolgica,27 decorridas duas dcadas, aquela realidade se tornou ainda mais crtica.28 A microeletrnica, a informtica, a robtica e a nanotecno-logia so componentes fundamentais de qualquer armamento contemporneo, e estas so reas em que a capacidade de pesquisa entre os russos perde terreno constantemente (SINGER, 2009).29 Embora tenha herdado uma considervel infraestrutura de pesquisa em instalaes materiais e recursos humanos, a Rssia sofreu perdas enormes com o desmembramento do Estado sovitico, uma vez que muitos complexos nos quais se desenvolviam pesquisas bsicas e aplicadas estavam localizados em territrios que passaram a fazer parte de seus vizinhos. As universidades russas, mesmo mantendo um destacado potencial de pesquisa e ensino, esto distantes daquelas avaliadas como as mais qualificadas no mundo.30

    Se essas rpidas observaes permitem identificar dificuldades para a Rssia manter-se na posio que herdou da URSS com relao distribuio do poder militar entre todos os pases. Os mesmos elementos citados servem ainda para indicar que a economia russa encontra em sua deficincia em cincia e tecnologia um dos gargalos mais crticos para seu desenvolvimento no presente e no futuro.

    26. Para uma anlise das atuais condies das foras militares russas, ver os trabalhos de Alexander Golts. Ele um analista militar independente e editor substituto do Yezhednevny Zhurnal. Algumas de suas publicaes esto dispo-nveis em: . Consultar ainda as publicaes da Stiftung Wissenschaft und Politik (SWP), em que possvel encontrar trabalhos atualizados sobre a Rssia e, em especial, suas foras armadas. No sentido dos argumentos apresentados aqui, ver Klein (2009).27. Um seminrio interno realizado no vero de 1992, no otto-Suhr-Institut fr Politikwissenschaft da Universidade Livre de Berlim, analisou demoradamente essa questo. Tendo tido a oportunidade de acompanhar aqueles debates, o autor deste texto se convenceu de que a corrida cientifica e tecnolgica teve uma grande responsabilidade nos acon-tecimentos que levaram ao colapso da economia sovitica e, em consequncia, da sustentao sociopoltica do regime instalado em Moscou. o deslocamento da disputa entre americanos e soviticos do campo propriamente militar para o da cincia e tecnologia j estava sugerido no pensamento estratgico de Zbigniew Brezezinski desde o incio dos anos 1970. Neste sentido, ver Brezezinski (1971). Em certa medida, antecipando a compreenso dos rumos que tomaram as tenses Leste-oeste, na dcada de 1980, um breve ensaio sobre isto se encontra em Trein (1983).28. Sobre a capacidade de pesquisa das universidades russas, ver o site disponvel em: .29. Mais elementos para a discusso do problema da sustentao cientfico-tecnolgica das novas armas podem ser encontrados no site disponvel em: .30. Para um ranking das universidades, ver Consejo Superior de Investigaciones Cientficas (CSIC), Espanha, Webome-trics Ranking of World Universities. Disponvel em: .

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    A queda significativa da capacidade de produo em cincia e tecnologia da Rssia no se deve somente ao fato de que uma parte da herana sovitica, material e intelectual, tenha ficado no territrio de outros pases que integra-vam a URSS como o caso da Ucrnia, da Gergia e mesmo do Cazaquisto , mas tambm desorganizao do Estado, principal indutor e consumidor dos produtos da pesquisa na era sovitica, desagregao social e consequente in-segurana, reforada pela formao de estruturas mafiosas infiltradas em todas as instncias da sociedade russa ps-dissoluo da URSS,31 inclusive nas instituies de ensino, do nvel bsico at universidade, e ainda nas instituies de pesquisa, contriburam para uma situao de difcil reverso; pelo menos, no curto prazo (GALBAS e LINDNER, 2008).

    A economia russa, que passou por um amplo processo de privatizao desde 1992, saiu de uma situao de concentrao em mos estatais, para passar a umas poucas mos privadas, produzindo altas concentraes de riqueza e renda. Desde ento, a produo de bens e servios na Rssia experimentou inovaes bastante limitadas, alm de no ter conseguido ainda uma completa reorganizao das ca-deias produtivas. O consumo de bens suntuosos, por alguns poucos novos ricos, contrasta com a carncia de oferta de produtos bsicos e as limitaes de consumo para uma parcela expressiva da populao pauperizada. Sustentada por sua con-dio de segundo maior produtor mundial de petrleo e gs, apesar de seu vasto territrio, a Rssia se tornou uma importadora de alimentos sem perspectiva de soluo para esta situao crtica. As atividades econmicas no campo, em certa medida, esto muito mais precrias que nos centros urbanos. Falta quase tudo, desde a pesquisa nas reas biolgicas, passando pela infraestrutura de maquinrio, at os elementos bsicos de gesto capitalista da economia no campo.32

    Os analistas coincidem na avaliao de que, aps a dissoluo da URSS, os problemas enfrentados pela Rssia so complexos e abrangentes, no se excluindo nenhum setor da economia, da sociedade e da organizao do seu Estado nacional atual (INSOR, 2010). So problemas no apenas conjunturais, mas tambm es-truturais. Entre os ltimos, encontra-se a crise demogrfica da sociedade russa, j detectvel ainda ao tempo da URSS; porm, bastante mais grave a partir de junho de 1991, quando Boris Ieltsin foi eleito presidente.

    31. Sobre as mfias russas e suas consequncias sobre a ordem social do pas, ver Halbach (2004).32. Mais informaes sobre aspectos importantes da economia russa, atualmente, podem ser encontradas no site disponvel em: . outra fonte importante de informaes sobre a situao da Rssia o Center for Global Studies da Universitt Bonn, no qual o Bonn Power Shift Monitor fornece uma dezena de parmetros atualizados das condies da sociedade e da economia daquele pas em uma escala comparativa com 20 outros pases, entre os mais desenvolvidos. Disponvel em: .

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    As estatsticas de quase duas dcadas mostram uma realidade complexa. Pois, por um lado, houve uma sensvel diminuio da taxa de natalidade e, por outro, uma queda no menos grave da expectativa de vida, sendo esta ainda caracterizada por uma acentuada diminuio para os homens. De acordo com dados divulgados em 2003, e que no diferem das condies atuais, os homens, que, na dcada de 1970, chegaram a atingir uma expectativa de vida de 64 anos, caram para 59 anos, e as mulheres passaram de 74,4 anos para 72 anos. Considerando-se que tal situao resultado de uma degradao geral das con-dies de vida ou seja, de qualidade da alimentao, de assistncia sade, de higiene, de condies de trabalho e, por fim, do aumento do consumo de lcool , no se trata de um problema de simples e rpida soluo.33 Entre as consequncias mais imediatas a que chegam os analistas, a primeira delas a de que, a seguir nas atuais condies, a Rssia, que j comea a ter problemas em decorrncia de sua crise demogrfica, em breve no ter como manter seu desenvolvimento econmico e, tambm, seu poder militar, uma vez que no haver populao em condies etrias para repor seus homens em armas e para assumir os postos de trabalho, especialmente aqueles que exigem maior qualifi-cao cientfica ou tcnica (RUSSLAND-ANALYSEN, 2010).

    3.2 ndia

    O exame das caractersticas da ndia no menos surpreendente do que apresen-tam os analistas da realidade russa atualmente. Semelhanas ou diferenas entre os dois pases em nada contribuem para o entendimento da complexidade deste que o segundo pas com maior populao no mundo e com perspectiva de se tornar o mais populoso, segundo as projees demogrficas disponveis.34 De qualquer modo, se se tomar como ponto de partida o fato de que a ndia conta com um arsenal atmico, ser conveniente observar que ela depende ainda dos veculos lanadores russos para transportar suas bombas. Isto no apenas lhe im-pede de dispor completamente de suas armas, como tambm a limita condio de uma potncia nuclear regional.35

    33. H uma extensa lista de artigos que examinam a crise demogrfica russa. os ensaios indicados a seguir oferecem um bom resumo dos debates que vm ocorrendo entre os especialistas na Europa: Tabarly (2007), Moullec (2002), Vichnevski (2009) e Lindner (2008).34. Um estudo abrangente e atualizado, de abril de 2010, sobre a evoluo demogrfica da ndia e seus problemas de urbanizao encontra-se disponvel em mais de 240 pginas do relatrio do McKinsey Global Institute (2010). Um estudo menos abrangente, mas comparativo, que complementa esta indicao o Free World Academy (2005).35. Nesse sentido, a condio da ndia completamente diferente daquela dos pases que compem o grupo perma-nente do Conselho de Segurana da oNU, todos eles com capacidade e autonomia para usar suas armas atmicas em qualquer lugar do planeta. As ogivas nucleares da ndia so transportadas por avies ou msseis do tipo intermediate range ballistic missile (IRBM), ambos de fabricao russa. Mais sobre este tema em Rothermund (2003). Mais detalhes no site disponvel em: .

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    Pretender examinar a ndia a partir de uma perspectiva antropolgica, ou ainda sociolgica, sem cogitar qualquer hiptese de entendimento das dimenses filosficas e religiosas da sociedade indiana, est fora dos objetivos de qualquer tarefa individual e de curto prazo. Assim, resta somente o esforo de resumir em poucas palavras alguns elementos de sua realidade que podem influir na atuao daquele pas do sul da sia no sistema internacional.

    Entre os analistas da realidade indiana, encontram-se mais divergncias que concordncias; contudo, h alguns elementos caractersticos da ndia sobre os quais as avaliaes se aproximam. Um deles o problema demogrfico. Com a projeo de ultrapassar a China at 2030, a ndia tem na quantidade de indi-vduos que formam sua sociedade tanto um trunfo quando um handicap. De um lado, seja do ponto de vista econmico, seja do militar, a disponibilidade de um contingente, por assim dizer, ilimitado de indivduos vem lhe permitindo vantagens relativas frente a outros pases, principalmente seus vizinhos, que no a China. Por outro lado, no entanto, a ndia no pode ter um projeto de desen-volvimento social e econmico que pretenda integrar toda a sua populao. Isto no ser possvel, como observam os estudiosos; pelo menos, nos termos em se mede atualmente o ndice de desenvolvimento humano (IDH).36 Um resumo das discusses aponta para uma situao em que, prximo da metade do sculo XXI, tendo atingido seu mximo de populao, a ndia contar com uma sociedade dividida, na qual a parcela dinmica, plenamente integrada ao modo de produo capitalista, algo entre 400 e 500 milhes de pessoas, lhe assegurar uma posio confortvel como uma das maiores economias do mundo.

    Nesse cenrio para o futuro, a ndia ter, entre outros, dois condicionantes fundamentais: sua capacidade de produo e inovao cientfica e tecnolgica e suas condies de controle social, sem ruptura da atual ordem poltica de um con-tingente de aproximadamente 800 milhes de indivduos, que devero continuar vivendo fora dos padres de consumo correspondentes ao que considerado o mnimo de conforto sob uma ordem econmica capitalista.37

    36. Ver The Indian Economic & Social History Review. A revista contm vrios ensaios e remete a outros que tambm tratam deste tema. Disponvel em: . outras fontes de debates sobre o proble-ma do desenvolvimento social e econmico da ndia so o Institut fr Asien-Studien, que faz parte do German Institute of Global and Area Studies (Giga), em Hamburgo disponvel em: e o Sdasien-Institut der Universitt Heidelberg disponvel em: . Para ampliar a discusso, ver ainda Boillot (2006).37. A cole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS), em Paris, no Centre dtudes sur lInde et lAsie du sud (Ceias), acompanha a evoluo da situao da ndia com pesquisas de grande interesse. Disponvel em: .

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    Quanto primeira condio, apesar de hoje as universidades e os centros de pesquisa da ndia no terem destaque, quando comparados s instituies congneres a nvel mundial,38 inegvel que a sociedade indiana apresenta uma capacidade em cincia e tecnologia invejvel.39 Sua condio se expressa no s no fato de ter posto satlites em rbita, ainda na dcada passada, mas tambm em prova definitiva de seu potencial, que est consignada no lanamento, com pleno xito, da sonda lunar Chandrayaan, em 22 de outubro de 2008. Os relatrios das autoridades indianas e dos estudiosos ocidentais apontam as biotecnologias, as nanotecnologias, as cincias dos materiais, as tecnologias da informao (TIs) e as tecnologias aeroespaciais como reas em que a ndia j possui competncia internacional e dever continuar crescendo.

    Os conflitos com seus vizinhos, uma herana do colonialismo ingls, tem sido um dos principais fatores de instabilidade e insegurana do desenvolvimento da ndia desde sua independncia formal, em 1947. Por meio de diversos acor-dos, a partir de 1994 e mais especialmente de 2005, como j foi observado ante-riormente, a ndia conseguiu reverter a escalada de tenso de suas relaes com a China, uma tenso que se estende ao longo de mais de 4 mil quilmetros de fronteiras comuns. No entanto, isto no se pode dizer de suas relaes com os ou-tros pases com os quais tem limites, especialmente o Paquisto. Fatores de ordem religiosa, que confronta muulmanos com hindus, e de natureza tnica, que pe em oposio sihks com outras populaes, principalmente na regio do Punjab, no extremo norte do pas, so motivos de instabilidade interna e tambm para suas relaes internacionais.40 Considerando-se que o Paquisto tambm possui armas atmicas, manter as relaes indo-paquistanesas abaixo de um nvel de confronto militar direto para a ndia condio indispensvel para uma trajetria positiva de seu desenvolvimento.

    38. Para um exame detalhado da capacidade acadmica da ndia, ver Indian institutes and universities. Disponvel em: . Sobre a classificao das universidades em escala mundial, ver: Ranking web of world universities. Disponvel em: .39. As instituies indianas aqui indicadas oferecem informaes abrangentes e atualizadas sobre o desenvolvimento cientfico e tecnolgico da ndia: Ministry of Science & Technology, Department of Science and Technology disponvel em: ; Council of Scientific and Industrial Research disponvel em: ; Science and Engineering Research Council disponvel em: ; e Jawaharlal Nehru Centre for Advanced Scientific Research disponvel em: < http://www.jncasr.ac.in/>. Alm destas, possvel expandir o conhecimento a respeito do tema em La coopration scientifique du CNRS avec lInde, disponvel em: . Informaes atualizadas sobre outros feitos relevantes da ndia nos campos da cincia e da tecnologia podem ser encontradas ainda no site disponvel em: e na pgina do site disponvel em: .40. Para os conflitos internos e internacionais da ndia, ver: Peace Research Institute oslo (Prio) disponvel em: ; e Stockholm International Research Institute (Sipri) disponvel em: . o Sipri, em sua srie Sipri Lecture, oferece um estudo bastante interessante sobre o tema e para os objetivos deste estudo. Seu ttulo Regional powers: explaining regional security order in Brazil, India and Russia.

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    3.3 China41

    A China o nico pas, no s entre os BRICs ou os integrantes do G-20, se no entre todos os membros do sistema internacional, que rene elementos suficientes para, em algum momento futuro, disputar com os Estados Unidos a posio de nao com o maior poder econmico, militar e poltico do planeta (CRUZ, 2010). Contudo, no so poucos os analistas que entendem que a opo atual da estratgia chinesa de no confrontao direta com a unipolaridade norte-americana.

    Apesar de todas as tenses internacionais (econmicas, militares e polti-cas), quase que em sua totalidade envolvendo interesses e at mesmo a presena imediata dos Estados Unidos, a nova conjuntura, criada a partir da dissoluo da URSS, foi altamente favorvel aos interesses chineses. Em outros termos, no interessa China uma alterao desta ordem (CEPRID, 2007; YU, 2007), que se, de um lado, lhe positiva, de outro, visivelmente desgastante para a posio norte-americana. Manter-se no topo da hierarquia de poder implica ter custos crescentes para a sociedade estadunidense e os capitais que buscam, no seu ter-ritrio ou sob sua bandeira, a proteo de direito (poltico-jurdica) e de fato (militar) para a manuteno de seus ganhos.

    O Consenso de Beijing (RAMO, 2004), que para muitos estudiosos resume a opo soft power (CSIS, 2009) da China est bem explicitado nas relaes que os chineses vm construindo com pases em desenvolvimento, entre os quais se incluem os da Amrica Latina. Mantendo-se fiel ao princpio da no ingerncia nos assuntos internos do parceiro, nas ltimas duas dcadas, a China estabeleceu vnculos com pases e regies ricas em matrias-primas, incluindo petrleo e ali-mentos, indispensveis para sua economia e a manuteno de sua populao.42

    Diferentemente da ndia, a China encontra-se em uma trajetria de desen-volvimento que carrega consigo toda a sua populao, atualmente um pouco supe-rior a 1,3 bilho de indivduos, ainda que em diferentes ritmos e em distintos es-tgios econmico e social. Isto significa, internamente, uma extraordinria presso sobre seus recursos naturais e seu meio ambiente (GUERRERO, 2009) e, nas suas

    41. Nos dias 17 e 18 de abril de 2008, no Rio de Janeiro, a Fundao Alexandre de Gusmo (FUNAG) promoveu a III Conferncia Nacional de Poltica Externa e Poltica Internacional (CNPEPI): o Brasil no Mundo que Vem a, dedicada ao exame da China. o conjunto dos trabalhos ali apresentados reuniu um rico e atualizado acervo de anlises e informaes sobre a China, as quais foram tomadas em considerao neste texto; contudo, sem fazer referncia a cada momento em que isto aconteceu por economia de espao. A publicao da FUNAG contendo o conjunto dos trabalhos apresentados na III CNPEPI encontra-se disponvel em: .42. Um interessante trabalho elaborado pela Associaom Cultural Dirio Liberdade (portal anticapitalista da Galiza e pases lusfonos), sob o ttulo de Qual o interesse da China na Amrica Latina?, sem deixar escapar detalhes importantes, resume a presena da China na regio, destacando seus principais interesses estratgicos. Disponvel em: . Ainda sobre este tema, o Brussels Institute of Contemporary China Studies publicou, em 2008, um estudo de grande interesse pelas informaes e anlises que contm (Freeman, Holslag e Weil, 2008).

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    relaes com outros pases, define a necessidade premente de priorizar condies de acesso a fontes de materiais estratgicos, sem as quais sua economia enfrentar obstculos intransponveis (KAPPEL e SCHNEIDENBACH, 2006).43

    Consciente dos estrangulamentos estruturais para qualquer projeto de grande potncia, a China tem desenvolvido um esforo incalculvel de racionalizao dos impactos do desenvolvimento econmico acelerado sobre sua sociedade, ao mesmo tempo em que busca consolidar suas posies econmica, militar e poltica tanto na sia como no resto do mundo (FREEMAN, JENKINS e SMIS, 2007; GEERA-ERTS et al., 2007; KEMPER, 2006).

    Ao contrrio dos Estados Unidos, que, ao longo do sculo XX, pde construir uma consistente rede planetria de coleta de materiais estratgicos para sua economia e o desenvolvimento de seu poder militar, acumulando reservas de alguns minrios em quantidades suficientes para o consumo de vrios anos e mesmo de dcadas, a China carente de praticamente tudo, ainda que disponha de carvo, ferro, alguns metais no ferrosos e terras raras; contudo, em quantidades que no permitem sustentar por um perodo mais longo seu ritmo de crescimento econmico atual. A mesma coisa pode ser observada com relao aos alimentos. Se os norte-americanos so autossufi-cientes em praticamente todos os itens de sua cesta bsica, os chineses s no so carentes de arroz.

    Assim, por meio de uma diplomacia onipresente, os chineses buscam estabelecer e assegurar condies de dilogo com muitos interlocutores, at mesmo nas questes mais complexas e difceis. Um exemplo neste sentido foi, em 9 de junho de 2010, o voto dado no Conselho de Segurana da ONU, condenando o programa nuclear do Ir. Ao se associar posio norte-americana, a China ganhou legitimidade para exigir modificaes no texto da resoluo que, ao ser aprovada, se tornou praticamente in-cua. Desta forma, os chineses, por um lado, disseram que no lhes interessa alteraes no frgil equilbrio no Oriente Mdio e, por outro, mantiveram condies de seguir recebendo um importante suprimento de petrleo iraniano.

    Se, para as questes econmicas, a China tem desenvolvido uma poltica ativa de participao e parceria internacional,44 nas questes militares, ela tem se mostrado bastante mais recatada. Conhecedores da distncia que os separa do poder militar norte-americano e, consequentemente, do custo que implicaria uma corrida armamentista em termos tradicionais, tudo indica que os chineses

    43. Mais sobre o tema em Spiegel online. Disponvel em: .44. A China faz parte da Cooperao Econmica da sia (APEC em ingls, Pacfico Asia-Pacific Economic Coopera-tion), da SCo, da oMC, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID em Inter-American Development Bank, como membro no muturio), do G-77, do G-20 e do G-4, agora G-5: BRICS.

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    fizeram opo por uma estratgia apoiada em alta tecnologia, e no em volume de armamentos. A nica exceo talvez esteja na sua fora naval, que remete aos ter-mos tradicionais de disputa geoestratgica de espao e disperso dos seus vasos de guerra por todos os mares. Isto tem implicaes diretas na poltica externa, uma vez que tecnologia de ponta sinnimo de demanda de materiais no disponveis no prprio territrio e presena em todos os mares requer portos de apoio em ter-ritrios amigos. O exame do comportamento da diplomacia chinesa s confirma estas observaes (LANGE, 2008; LANDWEHR, 2010; SCHNEIDER, [s.d.]; HOLSLAG, 2010).

    4 dE BriC A BriCS

    A realidade dinmica do sistema internacional permite sempre novos arranjos e foi exatamente isto que aconteceu em 14 de abril de 2011, na III Cpula dos BRICs, realizada em Sanya, na China. Nesta cpula, se organizou uma nova constelao, j prevista, o G-4 (BRIC) passou a contar com mais um membro, a frica do Sul, passando assim a ter uma nova sigla: BRICS.

    O novo G-5 tem na frica do Sul um membro muito particular que, por suas caractersticas, assume uma condio nica entre os demais. Sua presena junto aos outros quatro pases vem de uma longa histria, que merece ser lembra-da, ainda que brevemente.

    Embora tendo sua origem na colonizao promovida pela Holanda, em me-ados do sculo XVII, com o enfraquecimento do Imprio colonial holands, a frica do Sul passou a sofrer crescente influncia inglesa. Atrados pelas riquezas naturais da regio e pela posio estratgica no extremo sul do oceano Atlntico, a meio caminho para o Subcontinente Indiano, os primeiros representantes do Imprio Britnico se instalaram na Cidade do Cabo em 1806. Durante meio s-culo, a coexistncia entre britnicos e beres,45 embora no fosse pacfica, permitiu s duas comunidades se desenvolverem em contato e com relativa independncia. A situao mudou completamente quando, em 1867, foram descobertas grandes jazidas de diamante na regio do Transvaal ou seja, na parte norte do territrio sul-africano. Ao longo de pouco mais de 30 anos, as tenses s cresceram, at que, em 1899, irrompeu um conflito armado definitivo entre os colonos britnicos e os beres.46 Os primeiros contaram, em seu favor, com a interveno das foras militares da maioria das colnias do Imprio Vitoriano, os segundos, por sua vez, tiveram o apoio da Alemanha imperial sob Wilhelm II.47 O incio do sculo XX

    45. Ber, que significa fazendeiro, foi o nome genrico adotado pelos colonizadores holandeses e seus descendentes para se identificarem e, assim, se distinguirem dos demais europeus na frica do Sul.46. Essa foi a segunda guerra entre os beres e os ingleses. A primeira aconteceu entre 1880 e 1881.47. Wilhelm II, da Prssia, era neto da rainha Vitria por parte de sua me, tambm Vitria, princesa real da Gr-Bretanha.

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    consagrou a vitria dos ingleses sobre seus opositores naquela regio do extremo sul da frica48 e a radicalizao, ainda maior, da poltica racista dos europeus, que resultou no apartheid.

    Ao longo de, pelo menos, quatro dcadas do sculo XIX, o Imprio Britnico se serviu de expressiva imigrao de indianos, especialmente do sul da ndia, para seus objetivos de explorao colonia