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Folia de Reis, Sambas do PovoAlberto T. Ikeda

Coleo Cadernos de Folclore 21 Volume 2011

Coleo Cadernos de Folclore Realizao: Prefeitura Municipal de So Jos dos Campos Fundao Cultural Cassiano Ricardo Diretoria de Patrimnio Histrico Idealizao: Fundao Cultural Cassiano Ricardo Mario Domingos de Moraes Centro de Estudos da Cultura Popular - CECP ngela Savastano Coordenao Geral: Maria da Ftima Ramia Manfredini - CECP/UNIVAP Reviso Ortogrfica: Teruka Minamissawa Arte da capa: Roberto Munholi Fotos: Folia de Reis - Alberto T. Ikeda Digitao dos textos: Avelino Israel, Ftima Manfredini, Marieti Turco, Odete Pereira Batista, Paulo Fabiano Pontes de Amorim Designer Grfico: Nilson Ferreira/Andr L. Fernandes Digitalizao das Pautas Musicais: Csar Peten Impresso: JAC Grfica e Editora Ltda - S.J.Campos-SP ISBN: 000-00-00000-00-00Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Especializada do Museu do Folclore/CECP Maria Amlia Giffoni

Ikeda, Alberto T. Folia de reis, sambas do povo / Alberto T. Ikeda - - So Jos dos Campos/SP: CECP; FCCR, 2011. p. 156; 16cm x 23cm; (Cadernos de Folclore; v.21) 1. Antropologia da Msica 2. Msica Popular 3. Cultura Popular 4. Arte Popular I. Ttulo. II. Srie CDD: 390Copyright Alberto T. Ikeda - 2011 - Todos os direitos reservados

Fundao Cultural Cassiano Ricardo Av. Olivo Gomes, 100 - Santana - 12211-115 So Jos dos Campos - SP - Brasil www.fccr.org.br

Dedicatria

Para Maria Meron, por todos esses anos, na parceria da vida. Meus pais e irmos: Ushimatsu Ikeda (pai, in memoriam) e Yachiro Ikeda (me), e os(as) manos(as) Helena (in memoriam), Celso, Olga, Miguel e Miriam, e tambm Regina (cunhada). Os mestres e mestras e todos os(as) guardies(s) dos saberes populares, tantos, com quem aprendi muito desde a dcada de 1970.

Fundao Cultural Cassiano RicardoO que teriam em comum as figuras de Baltazar, Gaspar e Belchior, os trs reis magos, da Folia de Reis, com o samba? Essa uma pergunta que agua a curiosidade e que, de uma forma criativa e com muita pesquisa, vai sendo respondida ao longo da 21 edio da srie Cadernos de Folclore, publicada pela Fundao Cultural Cassiano Ricardo, de So Jos dos Campos. O autor da obra, Alberto T. Ikeda, imprime um ritmo em sua narrativa, marcado por "marchinhas", alm de textos de diferentes publicaes desde revistas acadmicas at jornais. Enfim, trata-se de uma publicao que vai enriquecer, ainda mais, a srie Cadernos de Folclore que j conta com 20 publicaes. Para a Fundao Cultural Cassiano Ricardo fica a sensao de mais um dever cumprido, no s pela publicao em si, mas principalmente, por estar colaborando na valorizao da cultura popular brasileira e fazendo despertar o interesse de pessoas que, at ento, sequer tinham conhecimento de como dois smbolos to distintos podem ser to prximos: "Folias de Reis, Sambas do Povo".

Mario Domingos de Moraes Presidente da Fundao Cultural Cassiano Ricardo - 2011

ApresentaoQuando, h 25 anos, propusemos publicar na forma de cadernos as pesquisas sobre Folclore, onde o estudo da cultura popular tratado como objeto de rea cientfica (Julieta de Andrade), tnhamos como objetivo levar informaes e subsdios aos professores e estudiosos dessa rea. No imaginvamos, entretanto, quo valioso era o assunto, quo diversos eram os temas que podiam ser abordados, quo extensa era a rea de estudiosos com interesse pelo assunto e quo importantes eram essas pessoas, os pesquisadores, que iriam colaborar com esses Cadernos. Hoje, olhando esse longo caminhar vemos que o esforo no foi em vo. Muito tem sido o interesse de alunos, professores e pesquisadores de So Jos dos Campos, So Paulo e de outros Estados brasileiros que buscam nesses cadernos informaes sobre o tema solicitando-os com frequncia. O Professor e Mestre Alberto Ikeda, didtico por excelncia, consegue que seus leitores e ouvintes, atravs de suas falas e escritas, alcancem com facilidade os conceitos transmitidos. Etnomusiclogo, com vasto e reconhecido saber na rea, transita por diversos caminhos da cultura popular, levantando importantes pontos para reflexes. Sua presena sempre aguardada com grande expectativa pelos seus discpulos e por ns, seus eternos aprendizes. A Fundao Cultural Cassiano Ricardo e o Centro de Estudos da Cultura Popular CECP, sentem-se honrados em ter na 21 edio da srie Cadernos de Folclore, o nome do ilustre Professor Doutor Alberto Ikeda. Angela Savastano Presidente do CECP Centro de Estudos da Cultura Popular

Centro de Estudos da Cultura Popular - CECPA coleo Cadernos de Folclore, publicada pela Fundao Cultural Cassiano Ricardo de So Jos dos Campos, a maneira que seus idealizadores encontraram para a instituio trazer luz um dos principais objetivos de sua criao. Nestes 25 anos de existncia, foram abordados os mais diversos assuntos, que consistem num acervo valioso disponibilizado populao, governantes e, principalmente, estudiosos. um conjunto de informaes da mais alta importncia para o resgate, preservao e disseminao da cultura popular brasileira. Poucas comunidades conseguem disponibilizar de forma sistematizada um conjunto de informaes especializadas, como acontece na Biblioteca Maria Amlia Corra Giffoni, do Museu do Folclore, fruto de uma poltica pblica de parceria com a sociedade organizada, na busca da humanizao das relaes entre o desenvolvimento desenfreado e a valorizao da cultura popular. O trabalho ora publicado, 'Folia de Reis, Samba do Povo', com contedos de expresses da cultura popular que envolve msica, dana e dramatizaes, importante documento, que ir enriquecer, sobremaneira, o acervo das realizaes da FCCR e do CECP. Produzido pelo pesquisador Alberto T. Ikeda, a partir de seus estudos na dcada de 70 e registrados ao longo de mais de 40 anos em publicaes de artigos para jornais e revistas, ganhou notoriedade com a publicao do relatrio, intermediado pelo National Museum of Ethnology, de Osaka,

com o apoio do Ministrio da Educao, Cincia e Cultura do Japo. A leitura da obra como uma Viagem no Tempo e no Espao; e nos remete aos primrdios de nossa socializao, contemplando uma verdadeira reflexo de escopo sociolgico, antropolgico e poltico.

Cristovo Cursino Vice-Presidente Centro de Estudos da Cultura Popular - CECP

SumrioPrefcio .......................................................................................................... 15 Do lundu ao mangue-beat ........................................................................ 19 So Joo no Brasil ...................................................................................... 27 Cururu: resistncia e adaptao de uma modalidade musical da cultura tradicional paulista ................................................ 33 Manifestaes tradicionais: rituais, artes, ancestralidades..........

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Folia de Reis, Sambas do Povo; Ciclo de Reis em Goinia: Tradio e Modernidade .................................................. 71 Forr: dana e msica do povo ............................................................... 121 Sobre o autor ................................................................................................ 145 Fundao Cultural Cassiano Ricardo .................................................... 149 Cultura sem limites Centro de Estudos da Cultura Popular - CECP .................................. 151 Coleo Cadernos de Folclore ................................................................. 153 Anexo - Fotos ............................................................................................... 155

Prefcio

Este livro rene alguns artigos publicados em anos anteriores, em veculos diversos, juntados agora sob o ttulo parcial de um trabalho de pesquisa cuja edio ocorreu no Japo, em portugus, em 1994, intitulado: Folia de Reis, Sambas do Povo; Ciclo de Reis em Goinia: tradio e modernidade. Tratava-se de um relatrio de pesquisa etnogrfica realizada na cidade de Goinia, Gois, com apoio do Ministrio da Educao, Cincia e Cultura do Japo, por intermdio do National Museum of Ethnology, de Osaka, publicado em coletnea com trabalhos de outros pesquisadores, no livro: Possesso e Procisso: religiosidade popular no Brasil, organizado por Hirochika Nakamaki e Amrico Pellegrini Filho. Cada pesquisador se ocupou do estudo de expresso cultural de alguma regio do Brasil, enquanto estive em Goinia com o propsito de pesquisar manifestaes ritual-musicais do ciclo catlico-popular natalino, mais especificamente os grupos devocionais identificados como Folias de Reis, que cultuam os Trs Reis Magos (Gaspar, Belchior e Baltazar). Um dos grupos que acompanhei, na periferia da cidade, era composto por migrantes do interior da Bahia. Estes, alm da integrativa atividade devocional-religiosa, do mbito do sagrado, tambm praticavam em alguns momentos o samba, caracterstico do interior baiano de onde provinham, em determinados momentos do seu giro (percurso), sobretudo aps as refeies, que, centrado nesta atividade cuja aparncia primeira era somente o entretenimento, igualmente propiciava uma importante interao, identificao e distino social na comunidade, sobretudo entre membros migrantes da mesma regio. Assim, duas expresses comumente compreendidas como antagnicas, uma profundamente religiosa e outra profana, se complementavam no grupo, 15

no mesmos espaos dos cultos, aproximando, por sua vez, simbolicamente, os reis (magos, nesse caso) e o povo, da o ttulo escolhido. Afinal, nas culturas tradicionais tambm os deuses esto comumente bem mais prximos dos homens. Todos os artigos tm Nota com os dados da publicao inicial. Foram mantidos no formato original, inclusive no que se refere s referncias bibliogrficas, apenas realizando-se a atualizao ortogrfica e incluindose um ou outro esclarecimento, com Notas. No h nos artigos uma unidade temtica, a no ser o fato de tratarem de manifestaes culturais populares, que o assunto fundamental desta coleo Caderno de Folclore. Mas, embora no exclusivas, predominam temas de msica, que o campo de maior atuao em meus estudos, em aproximao com as cincias sociais, sobretudo a antropologia. Evidentemente, todo escrito revela e reflete a sua poca de redao, perdendo, muitas vezes, a sua atualidade, mas nos casos aqui elencados acredito que podero ter ainda algum interesse, pelo registro etnogrfico, e, talvez, por algumas reflexes de escopo sociolgico-antropolgico e poltico em torno das expresses estudadas, que, acredito, podem ser projetadas para outros fatos das culturas populares. Pode-se notar tambm que no h nos escritos unidade no nvel de tratamento, de aprofundamento, nos enfoques, pois pertencem a diferentes tipos de publicao, incluindo revista acadmica, caderno de cultura e arte de jornal dirio, revista paradidtica e outras. A nova publicao desses trabalhos se faz na esperana de que ainda tenham alguma serventia. Mas isto somente poder ser avaliado pelo leitor. Um segundo aspecto que merece comentrio refere-se ao fato de que o ttulo Folia de Reis, Sambas do Povo com contedos de expresses da cultura popular que envolvem msica, dana e dramatizaes, pode levar o leitor a corroborar subliminarmente o senso comum de que estas so apenas expresses de entretenimento, de lazer, de alegria descomprometida, e de arte, ou, ainda, como manifestaes do folclore, o que limita bastante as possibilidades de compreenso dessas prticas 16

culturais, conforme procuro demonstrar nos artigos, sobretudo no ensaio aqui includo, intitulado: Manifestaes tradicionais: rituais, artes, ancestralidades ... . Para finalizar, importante ressaltar que esta publicao se deve a um convite que me foi feito pela sociloga ngela Savastano, idealizadora e coordenadora do Centro de Estudos da Cultura Popular (CECP) e do Museu de Folclore da Fundao Cultural Cassiano Ricardo (FCCR) de So Jos dos Campos, SP, que de longa data dedica-se ao estudo e promoo das culturas populares de tradio oral, sobretudo do Vale do Paraba, onde sua liderana nesse campo destacada. A ela registro os meus agradecimentos, extensivos professora Maria da Ftima Ramia Manfredini, Flvia Diamante Munholi, Francine Maia Freitas, envolvidas nesta edio e especialmente a Mario Domingos de Moraes, DiretorPresidente da Fundao Cultural Cassiano Ricardo (FCCR). S. Paulo, novembro de 2011 Alberto T. Ikeda (Instituto de Artes - Universidade Estadual Paulista UNESP campus de S. Paulo)

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Do lundu ao mangue-beat*

Do ancestral bamboleio africano, passando por toques de capoeira, jongo, maxixe, ijex, maracatu e samba, os ritmos negros so alimento e o tempero da cano popular brasileira. O Brasil a terra do samba! Tal afirmao no ter, provavelmente, muitos questionamentos, apesar de sermos um pas de grande variedade de ritmos populares. Inclusive, sob a mesma designao, samba, temos distintos ritmos no pas, sempre vinculados s comunidades negras. Os estilos mais reconhecidos do gnero so os que se desenvolveram na cidade do Rio de Janeiro, disseminados a partir da dcada de 20, tendo em sua formao a importante presena de migrantes negros da Bahia, constituindo a vertente do samba que podemos identificar como baianocarioca. Tal divulgao se deu pelos discos, rdios e apresentaes artsticas, pois o Rio era ento a referncia maior de urbanidade e modernidade da nao, sendo ainda sua capital. Por outro lado, polticas governamentais de cunho nacionalista e populista contriburam para a fixao desses estilos de samba como modelo de brasilidade, estendido a todo o pas. Com o samba, estamos na vertente negra da cultura brasileira, que tem ainda, entre outros, gneros musicais como o antigo lundu, o maxixe, os toques da capoeira (sobretudo de angola), o jongo, o ijex da Bahia. Mais recentemente, desde o incio dos anos 90, verificamos a consagrao de ritmos dos cortejos negros de maracatu, por meio do movimento 19

identificado como mangue-beat, em Pernambuco, cujos nomes mais consagrados so os de Chico Science & Nao Zumbi. Essa incorporao dos diversos ritmos originalmente negros se deu ao longo da histria, desde o lundu, cujas notcias mais antigas remontam ao sculo XVIII, passando pelo maxixe, que teve maior consagrao entre 1880 e 1930, e outros. Para exemplificar casos tambm atuais, podemos mencionar a msica Domingo no parque, de Gilberto Gil, que se baseia no toque de angola, da capoeira, e Beleza Pura, de Caetano Veloso, que tem o ritmo ijex, originalmente praticado em rituais de terreiros de candombl. Outro exemplo bem conhecido de ijex a cano Sina, do compositor Djavan. J o compositor e pesquisador carioca Nei Lopes tem jongos entre as suas criaes. Assim, ao longo da histria, compositores populares foram adotando padres rtmicos surgidos nos grupos negros como base para suas criaes, constituindo-se o variado e internacionalmente reconhecido cancioneiro popular brasileiro. Essa constante e histrica incorporao de manifestaes coreogrfico-musicais negras na msica popular, algumas transformadas em referncias mximas de nossa musicalidade, como o caso do samba, faz pressupor processos polticos participativos e de incluso social tnico-racial no Brasil. No entanto, no isto que acontece. Conforme tantas vezes revelado por estudiosos do tema, a incluso sonora no tem equivalncia na insero social desses segmentos na sociedade brasileira. A verdade que, em todos os gneros exemplificados, temos um mesmo histrico: um perodo inicial de forte rejeio, opresso e proibio; passando depois por certa tolerncia, seguida de aceitao; e , posteriormente, a incorporao e, muitas vezes, a apropriao e at a expropriao de muitas formas, j ento re-significadas como produtos artstico-culturais de grande valor simblico agregado. 20

Para confirmar as discriminaes, basta recorrer aos tantos depoimentos de antigos lderes negros, tornados pblicos ao longo da nossa histria. Podemos verificar o quanto foram rejeitados e oprimidos, inclusive policialmente. Isso se deu com sambistas, jongueiros, capoeiras, religiosos e tantos outros. Claro, no devemos esquecer que a permanncia de tais prticas se deu por forte resistncia da parte dos negros, na medida em que estas nunca foram para eles somente exerccios artsticos e de diverso, mas tambm instrumentos de identidade grupal e de socializao, de crtica social e de preservao de saberes e vises de mundo. Pequena histria da excluso Apesar dos vrios exemplos citados, enfocamos aqui apenas o caso do samba e das suas correspondentes agremiaes, as escolas de samba, que constituem hoje as referncias mais reconhecidas da musicalidade popular brasileira. Na verdade, nos dias atuais, diante da sua consagrao em todas as camadas sociais e em todo o pas, muitas pessoas, principalmente os mais jovens e tambm os estrangeiros, desconhecem o fato de o samba ter sido na origem manifestao dos grupos negros. Afinal, j de alguns anos pra c, quando assistimos aos desfiles das escolas de samba pela televiso, em particular do grupo especial do Rio de janeiro, notamos que, em boa parte delas, os negros so minoria. Essa observao pode ser constatada, ainda, por meio das fotografias de jornais e revistas que fazem a cobertura dos desfiles. Embora cortejos carnavalescos com pessoas fantasiadas e carros alegricos fossem praticados pelas classes mdias e pelas elites, o tipo de desfile que acabou se consagrando no Brasil com base no samba, resultou de adaptaes das populaes negras da capital carioca, inicialmente na 21

forma de blocos e cordes, e, depois, de escolas de samba. Do ponto de vista histrico, sabemos que estas ltimas surgiram nas comunidades do Rio de janeiro pelo final da dcada de 20 e incio da dcada de 30, sendo, ento, motivos de fortes desqualificaes pelos grupos mais abastados, que praticavam outras modalidades de desfile, as chamadas grandes sociedades e os ranchos. Mas, diante da presena efervescente das agremiaes negras, com o tempo os polticos perceberam nelas potencialidades para o fomento turstico e o entretenimento das massas. A partir dos meados da dcada de 30, os desfiles das escolas de samba passaram a ser oficializados, inclusive como forma de controle social, pois, para obterem autorizao para desfilar, as escolas tinham de se registrar na polcia como agremiaes cultural-recreativas. Tudo passava a ser controlado, desde os seus nomes, trajetos, e horrios dos desfiles at os enredos, sugerindo-se que estes se voltassem para os temas nacionais, como ocorria com os ranchos carnavalescos. Vivia-se ento, no pas, a era Vargas, marcada por forte nacionalismo e tendncias polticas autoritrias. A instituio dos enredos evitava um aspecto politicamente problemtico na prtica do samba tradicional: o hbito de improvisar, tendo apenas um refro fixo na msica, o que dava ensejo a cantos de forte teor crtico contra polticos, autoridades, represses policiais, carestias de vida e outros aspectos da realidade dos pobres e negros. Na dcada seguinte, os temas nacionais tornaram-se a tnica em todas as agremiaes carnavalescas, por sugesto e at mesmo imposio oficial. No entanto, mesmo oficializado, o samba continuou durante muito tempo a ser alvo de fortes preconceitos. Isso durou pelo menos at a dcada de 60, quando os desfiles das escolas comearam a servir de suporte para as programaes tursticas e comerciais, tanto que, em 1962, teve incio a cobrana de ingresso para assistir aos desfiles "na avenida" e, 22

a partir da dcada seguinte, as apresentaes passaram a ser transmitidas via televiso. Ento, na medida em que as agremiaes foram se agigantando e se sofisticando, em apresentaes cada vez mais luxuosas na nsia de vencer a disputa, os desfiles foram se tornando atividades impossveis para as pessoas de menor poder aquisitivo, diante do aumento ano a ano do custo das fantasias. Dessa forma, justo quando as escolas se tornaram altamente prestigiadas at em mbito internacional, despertando o interesse de participantes estrangeiros e de todo o pas, os membros das comunidades de onde essas agremiaes surgiram passaram a ser excludos devido a fatores econmicos. Um enredo que se repete ? O que se pode concluir deste breve histrico no nada promissor. Conta-se aqui uma histria de contradies: a de um pas que construiu parte do seu imaginrio musical calcado nos traos e vivncias de grupos negros, que se tornaram referncia mundial de brasilidade, e, por outro lado, continuou segregando socialmente essas populaes e, em muitos casos, at mesmo as manifestaes criadas outrora por seus antepassados. Ou seja, estamos diante de uma histria clara de apropriao e expropriao cultural. Nesse sentido, pode estar em curso a repetio desse mesmo histrico na recente onda musical neofolclrica ou etnicista que se verifica por todo o Brasil desde os anos 90, na qual jovens, principalmente de formao mais intelectualizada, tm-se interessado por msicas de raiz, danas, rituais e folguedos tradicionais, muitos deles gestados nas comunidades negras. Esses interessados esto formando conjuntos de msica e dana de projeo folclrica ou tnica, ou at se integrando aos grupos tradicionais, 23

conforme se nota em alguns cortejos de maracatu em Pernambuco, em bandas de congo no Esprito Santo, no samba-de-bumbo de So Paulo e em outras manifestaes por todo o Brasil. No desejo de valorizar tais expresses, muitos interessados (msicos, antroplogos, historiadores etc., alguns at movidos por princpios sinceramente honestos) passaram a atuar como agenciadores, verdadeiros atravessadores, desses grupos tradicionais, promovendo festivais e espetculos de msica tnica em casas de cultura, teatros, escolas e outros espaos, e tambm produzindo videodocumentrios ou CDs com verbas pblicas ou obtidas na iniciativa privada, por meio das leis de incentivo cultural, sem que, na maioria das vezes, os benefcios ou os produtos desses empreendimentos retornem para os grupos focados. Repete-se assim o procedimento da suposta valorizao das artes populares, em geral de domnio coletivo, que no tm o amparo de nenhuma legislao de salvaguarda ou de preservao de direitos autorais. Contemporaneamente, diante da onda etnicista, as formas tradicionais enfrentam o processo de suas inseres em um mercado de consumo ao mesmo tempo massificado e altamente segmentado. Assim como temos sambdromos em algumas cidades brasileiras, para o concurso das escolas de samba, que representam o coroamento do processo de incluso (e/ou excluso) de uma prtica cultural popular, tambm j existe o bumbdromo, em Parintins (AM), para o concurso de boi-bumbs, e o congdromo, para apresentaes de congadas ou congos, em So Sebastio do Paraso (MG). No futuro, surgiro com certeza outros dromos. Esperamos que sejam contados outros enredos mais promissores a respeito da presena negra na cultura brasileira, pois os que foram relatados aqui revelam facetas perversas e preocupantes dessa realidade. Facetas que no podem ser esquecidas, sob pena de que, em mais alguns 24

anos, tenhamos tambm que estabelecer cotas para garantir a presena de negros nos desfiles de escolas de samba. Evidente que no se pretende aqui defender uma segregao s avessas, reinvindicando-se o direito de exclusividade dos negros s suas prticas culturais ancestrais, mas, sim, repor aspectos dessa histria para o direcionamento de princpios sociais mais ticos na continuidade desse enredo, que inegavelmente foi mal desenvolvido at o momento na histria do Brasil.

* Do lundu ao mangue-beat, original em: Revista Histria Viva: temas brasileiros Presena Negra (edio especial temtica n. 3). S. Paulo: Ediouro/Duetto Editorial, maro 2006 ISSN 1808-6446, pp. 72-75.

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A festa caipira e os santos No Brasil, principalmente nas cidades, as comemoraes juninas se cristalizaram simbolicamente como festas rurais, da a generalizao da nomenclatura, festa caipira, e das caricaturas das roupas, do falar, do andar, enfim do modo de ser do homem do campo, do chamado roceiro. Embora a figura do homem rural seja enfocada no cenrio da vida urbana, tanto positiva quanto negativamente, pelo menos desde as peas de Martins Pena (1815-1848), como no exemplo da comdia O Juiz de paz na Roa, de 1838, podemos dizer que a sua imagem depreciada, conforme ocorre nas festas juninas, tem um forte marco no incio do sculo, mais a partir da segunda dcada, quando das preocupaes da modernizao e industrializao no Pas, principalmente partindo de So Paulo. Nessa vertente, o campons passou a ser visto de modo negativo, identificado como rstico, indolente e ingnuo, um entrave mesmo ao progresso. Embora resultado de uma viso centrista citadina, infundada e preconceituosa, esses imaginrios acabam se consagrando e se generalizando por todo o Pas, inclusive nas prprias regies interioranas. A disseminao dessas caricaturas se deu pela divulgao de imagens de um personagem O Jeca Tatuzinho, um homemda roa, do escritor Monteiro Lobato (1882-1948), atravs de milhares de livretos ilustrados, de propaganda de um Biotnico do laboratrio farmacutico Fontoura. 27

No que se refere aos santos desse ciclo: Santo Antonio (dia 13 ), So Joo (dia 24) e So Pedro (dia 29) , no geral, So Joo Batista aquele que concentra em si, de maneira cabal e pelo lado mais profano, o esprito festivo da poca. O Santo se relaciona ao fogo, cujos cultos foram praticados na maioria dos grupos humanos, desde os tempos antigos, anteriores ao cristianismo. Por terem sido rituais de forte penetrao nos grupos praticantes, em geral acompanhados de comida, bebida, msica, dana e outras formas dionisacas, ditas pags, a igreja crist procurou adapt-las aos moldes mais comedidos das cerimnias crists. Assim, adotou-se a crena de que a ligao do Santo com o fogo se deu porquanto foi atravs do levantamento de um mastro sinalizador e de uma grande fogueira para ilumin-lo que Santa Isabel avisou sua prima Maria Santssima quando do nascimento do seu filho Joo, no dia 24 de junho. Mas o batizador est tambm relacionando a outro elemento essencial a gua, pois So Joo teria batizado Jesus Cristo nas guas do Rio Jordo. Por outro lado, pratica-se entre ns o batismo do Santo (lavagem da imagem) nas guas de algum rio ou crrego. Estas passam, ento, a ter naqueles momentos rituais, poderes milagrosos, principalmente na cura de enfermidades. Ao Santo relacionam-se ainda, as crenas ligadas ao destino das pessoas, ao futuro, notadamente as adivinhaes relativas s questes amorosas, vida e morte. So inmeras as formas de sorte praticadas na vspera ou na noite de So Joo, para se conhecer o nome do futuro namorado ou marido, ou saber se a pessoa estar viva at os festejos do ano seguinte. Tambm, praticam-se nas regies agrcolas os ritos propiciatrios de boas colheitas, por exemplo, fixando se ao mastro do Santo espigas de milho e outros produtos da terra. Em muitas localidades, s cinzas da fogueira de So Joo 28

se atribuem poderes de combate s pragas e de proteo contra os maus espritos. So Joo tido como protetor das colheitas. Embora adaptada para as normas religiosas crists, nas festas juninas, houve com o tempo, o predomnio dos aspectos profanos, inclusive com conotaes sexuais, conforme se percebe no casamento caipira, no geral com a noiva j grvida, embora o santo casamenteiro no Brasil seja Santo Antnio. Isso pode estar ligado aos rituais pagos antigos, de fertilidade, tanto no sentido agrcola, da necessidade de boas colheitas, quanto no da gerao das crias dos animais e a procriao das famlias. Juntamente com o carnaval, e, talvez, at mais que este, as festas juninas so comemoraes das mais disseminadas no Brasil, promovidas no mbito das instituies (escolas, clubes, igrejas, indstrias, associaes de classe, etc.), ou nos stios, fazendas, ruas e nas residncias particulares, nos milhares de arrais por todo o Pas. Evidentemente nas regies interioranas, os aspectos religiosos ainda so bem mais presentes do que nos grandes centros urbanos. Mas, independente dos aspectos da possvel permanncia das antigas crenas e rituais, as festas juninas se mantm como momentos em que as comunidades se juntam para a prtica de aes que confirmam, identificam, e at conformam os indivduos como partes da coletividade. Principalmente nas grandes cidades, onde a vivncia cotidiana se d de maneira bastante individualizada, as festas permitem, periodicamente, alm da diverso grupal, as prticas socializadoras, significativas, importantes distintas do dia a dia. Em muitas localidades, s cinzas da fogueira de So Joo se atribuem poderes de combate s pragas e de proteo com tratos maus espritos. So Joo tido como protetor das colheitas. 29

Quadrilhas, Folguedos e outras Danas As festas joaninas no Brasil apresentam vrios elementos constantes e generalizados como a quadrilha, alguns tipos de alimento e bebida, a fogueira, o mastro do Santo, os fogos de artifcio e o casamento caipira ou matuto. Alm desses elementos comuns, em regies distintas do Pas ocorrem folguedos e danas especficas, prprias de cada localidade. A quadrilha, nos chegou da Frana (quadrille), atravs dos portugueses, no incio do sculo XIX. Sua forma original, porm, no a que se conhece hoje, a nossa popular quadrilha caipira. Inicialmente, foi dana palaciana, praticada pelas elites, em qualquer tipo de festividade, inclusive no carnaval, com coreografia marcada e dividida em cinco partes. No sculo XIX, e ainda atualmente em algumas regies, a quadrilha tambm conhecida como contradana, derivada dos termos quadrilha de contradanas. No geral, eram danadas por quatro pares ou mais, em fileiras opostas, da os nomes quadrilha e ou contradana. Embora trazida da Frana, h indicaes de que a quadrille francesa se originou da adaptao do country dance (dana do campo ou dance campestre) dos ingleses, bastante difundida nos sculos XVII e XVIII, resultando na contredanse francesa e na contradana no Brasil. Entre ns, j no sculo XX, e talvez mesmo no final do sculo XIX , a quadrilha acabou se consagrando e permanecendo principalmente como caracterstica da poca junina; embora bastante modificada em relao ao rigor coreogrfico da dana de salo, das elites. Nesse sentido, h entre ns modificaes e recriaes constantes, de grande dinamismo, nos vrios pontos do Pas, podendo-se encontrar at quadrilhas rap, atualmente. Outro fator interessante que, aps as dcadas de 70/80, em funo das migraes de nordestinos para vrios pontos do Brasil, e pelo trabalho 30

da mdia, muitas msicas juninas daquela regio, bem como a formao instrumental base de sanfona, zabumba e tringulo ( o Trio Nordestino), se difundiram largamente nas festas juninas, confundindo-as com o prprio forr nordestino. Assim, em So Paulo, para algumas crianas e jovens, essas festas so atualmente identificadas como festa de baiano (maneira pela qual muitos paulistas identificam as pessoas provenientes do Nordeste) e menos como festa caipira. Conforme j indicado anteriormente, h diferenas regionais nessas festas. No Norte do Pas, por exemplo, esta a poca de grande dinamismo no que se refere realizao de folguedos folclricos como o Bumbameu-boi, o Cordo de Pssaros, ou danas como o Lundu, a Desfeiteira, o Carimb, o Xod, o Xote, o Siri, o Coco ou Tambor de Crioula, alm de outras. Por sua vez, em Pernambuco, na regio de Caruaru, comum a apresentao, nessa poca, do chamado Batalho de Bacamarteou Bataio de So Joo, constitudo de grupo de homens uniformizados, portando bacamartes (arma de fogo; espcie de trabuco), que se apresentam com uma banda de pfanos, fazendo demonstraes dos disparos de suas armas. Em outras regies, como em Mato Grosso (ambos), pode ocorrer a dana do Siriri ou dana do Cururu, assim como no Vale do Paraba, no Estado de So Paulo, pode-se encontrar nas festa dos santos de junho grupo de Congada ou de Moambique, que, no entanto, so devotados a outros santos. Ainda em So Paulo, comum em alguns locais, a realizao de danas como o Jongo e o Batuque ou Tambu, por elementos das comunidades negras. Da mesma forma, outras localidades incorporam suas danas e folguedos nos festejos juninos, como exemplo da Guerra de espadas, 31

em Cruz das Almas, na Bahia, ou a Folia de So Joo, no interior do mesmo Estado, em Barreiras, prxima da divisa com o Estado de Tocantins, assim como no Sul o Fandango de Botas e de Tamancos. Importante de ser ressaltado, ainda, que o ciclo de festividades juninas tem sido aproveitado nos ltimos anos, em algumas cidades, principalmente do norte/nordeste, como atrativo para o fomento de um fluxo turstico regional, nacional e at internacional, quase to significativo quanto o perodo carnavalesco. Exemplos disso ocorrem com as festas juninas de Caruaru, em Pernambuco, e com o Festival de BoiBumb, na Ilha de Parintins, em plena floresta, noAmazonas. Promovidas por organismos oficiais, estas festas tm conseguido atrair anualmente imenso nmero de turistas, sendo que em Parintins construiu-se, inclusive, um bumbdromo, imitao do sambdromo do Rio de Janeiro.

* So Joo no Brasil: quadrilha, folguedos e outras danas, original em: Catlogo-programao So Joo no Brasil: a cultura popular em festa, S. Paulo: SESC Pompia, junho 1996.

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Resumo: um enfoque sobre a cultura popular diante da chamada modernizao e os meios de comunicao de massa, tomando como referencial o Cururu: uma modalidade de cantoria de improviso da cultura tradicional paulista. Durante muito tempo, folcloristas tm argumentado que a modernizao fator de destruio da cultura popular tradicional - o folclore -, criando a expectativa da necessidade de adoo de polticas governamentais no sentido da sua preservao. O ensaio resgata o tema, mostrando que em muitos casos a continuidade dessas manifestaes se d pelas condies implcitas destas e no pela adoo de polticas preservacionistas. Traando uma retrospectiva do cururu, de suas origens atualidade, o ensaio mostra o processo dinmico de sua preservao. Tem sido comum entre os folcloristas o vaticnio de que a modernizao, principalmente a influncia dos meios de comunicao de massa, implica a destruio da "cultura tradicional - o folclore. De fato, temos assistido a um processo de desagregao de vrias das nossas tradies culturais, porm, muitas dessas manifestaes tm resistido ou se adaptado de forma dinmica no processo da chamada modernizao. Um exemplo ilustrativo o caso do cururu - uma modalidade de cantoria de improviso da "regio do Mdio Tiet", no Estado de So Paulo - que bastante praticado tambm na regio de Cuiab, no Mato Grosso, embora com forma diferente da sua atual ocorrncia no interior paulista . 33(2)

Verifica-se ainda em outras regies onde se deu a "expanso paulista", segundo explicaAntnio Cndido . Ocupo-me apenas do cururu em So Paulo, onde se pode verificar de forma clara as suas transformaes atravs do tempo. O folclorista Hugo Pedro Carradore aponta vrias cidades do interior do Estado paulista como principais centros cururueiros: Piracicaba, Ibitiruna, Salgado, Pirambia, Botucatu, Laras, Maristela, Laranjal Paulista, Conchas, Pereiras, Sofete , Porangaba, Cesrio Lange, Tatu, Boituva, Alambari, ltapetininga e Sorocaba (4). O trabalho enfoca apenas aspectos que mostram a adaptabilidade dessa manifestao vida contempornea e esto baseados em pesquisas realizadas entre maio e junho de 1983, em cidades de forte tradio cururueira, como: Piracicaba, Sorocaba,Tatu e Tiet. Da provvel adaptao de danas cerimoniais indgenas, conforme aponta Mrio de Andrade e reafirma Antnio Cndido(5), originando o cururu religioso, chegando ao atual cururu cantoria-de-improviso e o cururu-cano, dos discos de msica sertaneja, h todo um processo de modificaes e adaptaes observveis no confronto entre as diversas pesquisas sobre o assunto e a sua prtica na atualidade. Revendo algumas definies Confrontando-se as conceituaes de pocas diferentes, pode-se verificar as mutaes ocorridas com o cururu: A. Maynard Araujo: "O cururu uma dana de fundo religioso, geralmente realizada noite, na qual so cantados desafios dentro de um certo cnone que se chama 'carreira' ou 'linha' e que determinado pelo pedestre" (6). 34(3)

L.C. Cascudo: "Dana, canto em desafios relacionados com as festas religiosas no pIano da louvao popular" . Antnio Cndido: "Cururu dana praticada pelos caboc1os de So Paulo, Gois e Mato Grosso" . Joo Chiarini: Cururu disputa, combate potico" . Hlio Damante: "Na verdade trata-se mais de um desafio entre violeiros, de uma forma caipira de repentismo, do que propriamente de uma dana, pelo menos nas variantes que remanescem. Ocorre, porm, contar sempre com platia atuante, a intervir com seus motes, a incentivar ou vaiar os cantadores, acompanhando-lhes o ritmo. Adquire assim um colorido de espetculo e como espetculo, inclusive com cartazes, apresentada nos teatros e circos, nas festas cvicas e religiosas" . Das consideraes expostas, a mais compatvel com o cururu na atualidade, no Estado de So Paulo, a de Hlio Damante, embora o desafio no seja necessariamente "entre violeiros". Os cururueiros hoje em dia dificilmente se acompanham viola, apenas cantam, ficando a funo de acompanhante a cargo de outros violeiros. A afirmao de que se trata de "desafio entre violeiros" se apropria mais aos repentistas de viola nordestinos,cada qual empunhando sua viola, embora a maioria dos cururueiros conheam pelo menos os rudimentos dos toques de viola. Bastante oportuna a observao de que o cururu adquiriu carter de espetculo, pois esse um dos aspectos que prevalece atualmente. Tal transformao se deu em virtude do cururu passar a ser apresentado nos palcos de teatros, cinemas, rdios, praas pblicas etc., exigindo que os cantadores permanecessem de frente para o pblico, na maioria das vezes imveis diante de um microfone, para que todos pudessern ouvir com clareza. Observe-se que, assim como no cururu, muitos folguedos e danas passam a sofrer modificaes estruturais 35(10) (9) (8) (7)

quando apresentados em palcos. O cururu, pelo visto, sempre conteve este carter de espetculo cantado, j que grande nfase se dava capacidade de improvisao do cantador. Com a apresentao dessa modalidade nos palcos, fora das festividades religiosas onde normalmente era apresentada, esta passou a ser sua tnica. A est, portanto, o aspecto principal da sua nova funo: espetculo artstico baseado na cantoria de improviso. Ressalte-se, no entanto, que o cururu no deixou de se fazer presente nas atuais festividades religiosas, porm no mais ligado parte religiosa e sim ao aspecto profano festivo. Ainda, a questo da interveno da platia "com seus motes" apontada par H. Damante no se verifica atualmente, pelo menos de forma sistemtica. Podemos sintetizar as transformaes ocorridas com o cururu, conforme a seguinte sequncia: 1) Danas cerimoniais indgenas; 2) reinterpretao das danas cerimoniais indgenas; 3) cururu-dana: danando em roda, diante de altares, com temtica predominantemente religiosa e com canto improvisado (desafio implcito). Comum no ambiente rural; 4) cururu cantoria-de-improviso: adaptado ao ambiente urbano como espetculo, sem dana, com temtica profana (desafio explcito); 5) cururu-cano: gnero de cano sertaneja, com permanncia apenas do ritmo tradicional. As trs ltimas modalidades subsistiram ao mesmo tempo durante certo perodo e atualmente permanecem apenas as duas ltimas formas, no Estado de So Paulo. Um exemplo bastante conhecido do cururu-cano a msica o Menino da Porteira, de Luizinho e Teddy Vieira, lanada inicialmente em 1955 e com diversas regravaes posteriores, sendo atualmente um dos "clssicos da msica sertaneja. 36

O exemplo a seguir, de cururu cantoria-de-improviso, do cantador Slvio Paes, de Sorocaba: "CURURU (gravao em fita, 12/6/1983) "Eu quero cantar um verso Pr esse Alberto escut Voc veio l de So Paulo a nossa capit Veio na casa desse Slvio E veio me procur pr fazer uma entrevista Pra esse Si1vio Paes fal Do tempo que eu era mocinho Quando eu comecei cant To eu tinha quatorze ano Eu cantava na frente do alt E ali eu cantava louvando Pra depois eu desafi E eu contei tudo bem certinho Daquela data pra c Hoje eu j t com quase sessenta Aos setenta eu quero cheg Mas a gente vai ficando velho Comea a se arrecord Daquele tempo que era mocinho Adivertia pra dan Cantava at de madrugada 37

E a gente no cobrava nada Do dono que ia cham Hoje em dia o cururu Muito modificado ele est Porque o festero chega l em casa E quando ele vo contrat Ele j tem que pagar dinheiro Pra ver a gente cant Em outro tempo eu ganhava nada Eu s cantava por brinc Hoje cobrar-se tem razo Porque no rdio e televiso Tarnbm cobram pa pass Quando a gente vai num rdio Voc j sabendo t E eles fazem a propaganda Comerciante que vai pag Por isso os cantad Quando no rdio ele foi Tambm tenham que cobrar E aqueles festero antigo Que mandavam nis cham Ele tratavam do povo Todos que tavam l Dava caf e po No cobrava nem um tosto Ni tambm no podia cobrar Agora eu j cantei pro Roberto (Alberto) 38

Que ele pediu pra mim cant Quero que voc descurpe Se acaso bo no t Voc aqui na minha casa Hora que quiser chegar De So Paulo a Sorocaba Meu prazer nunca se acaba Quando voc vir pra c Note-se, neste exemplo, que o cururueiro tomou a prpria entrevista como temrio do improviso e praticamente traou um panorama da relao entre o cururu tradicional socializado e as modificaes diante da sua transformao em espetculo. Nas apresentaes do improviso e desafio, normalmente, a contenda ocorre entre quatro cururueiros, sendo a ordem de apresentao decidida atravs de sorteio. Inicialmente os cantadores fazem saudaes ao pblico presente, aos promotores do encontro, s autoridades, cidade, etc., partindo da para o "ataque aos adversrios". Conforme explica Nh Serra, de Piracicaba: "O povo qu mesmo que quebre o pau!" O desafio: cururu ou cana-verde? Tomando-se as palavras de Lus da Cmara CASCUDO quando diz que desafio e "disputa potica, cantada, parte de improviso e parte decorada, entre cantadores" (11), e tambm diversas das conceituaes sobre o cururu expostas anteriormente, onde se menciona a disputa potica, podemos consider-lo como uma modalidade de desafio. 39

H, no entanto, um aspecto importante a ser considerado: por diversas vezes, em entrevista com cururueiros, pude perceber que ao se referirem ao desafio estavam na verdade tratando da cana-verde (uma dana de roda) e no do cururu. Solicitados a fazer demonstrao de desafio cantavam a cana-verde. A esse respeito Slvio Paes, de Sorocaba, explica que canaverde "desafio de cana-verde". "Na cana-verde um canta uma quadrinha e outro responde", e no cururu "um vai cantando inteiro quantos versos quis e outro vai escutando, depois outro entra para responder". Ainda pode-se observar no disco CURURU -Nh Serra e Pedro Chiquito.(ContinentalLP, 1976) que a nica faixa em que se anuncia o desafio a que corresponde cana-verde. V-se, ento, que os cantadores entendem o cururu como uma modalidade de cantoria de improviso, que pode ou no ter o desafio. Talvez isso se d pelo fato de o cururueiro cantar livremente quantos versos queira ou enquanto a platia demonstrar interesse em sua cantoria; somente depois ocorrendo a resposta. Quanto relao do desafio com a cana-verde, ou caninha-verde comum em diversas regies do Brasil -, o estranhvel que esta dana de roda nem sempre ocorre, mesmo na regio cururueira, com versos improvisados, assim como no ocorre necessariamente o desafio entre cantadores. Na maioria das vezes em que se realiza a dana, lana-se mo de versos tradicionais, embora seja do gosto dos caboclos a improvisao. A cana-verde se inicia geralmente com um refro tradicional, que se intercala a cada interveno do cantador.

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Cana-Verde (desafio entre Nh Serra e Pedro Chiquito - LP Continental 1976) Ai, Moreninha (Refro) Moreninha meu amor Refro Nas ondas dos teus cabelo Corre gua e nasce flor Pedro Chiquito: Aviola t tocando Vai toc Pedro Chiquito Pra voc fic sabendo Pras coisa fic bonito Adonde o menino chega Eu fao sent mosquito (Refro) Nh Serra: E agora eu vou cant Com o negro Pedro Chiquito Ai! Meu Deus! Que negro feio Ele pensa que bonito Negro feio e muito feio Parece chourio preto (Refro) Pedro Chiquito: Pra cantar o desafio 41

(bis)

Eu nunca tive receio o meu amigo Nh Serra Eu no sei dadonde veio o negro negro enxuto E voc gordo s no meio (Refro) Nh Serra: Me cham eu de feio Tudo sim mas isso no. Ai! Meu Deus! Fiquei com raiva i! que preto sem ao Venha aqui Pedro Chiquito V cham sua ateno. V avis Pedro Chiquito Se esse preto f bonito No existe sombrao (Refro) (continua) Os versos normalmente so em redondilha maior, sendo que na dana se cantam quadras, diferentemente das sextilhas do exemplo anterior. Assim, apesar dos depoimentos dos cururueiros, no se pode generalizar a conc1uso de que a cana-verde uma modalidade de desafio cantado, porquanto o que prevalece ainda a dana em forma de roda, podendo ou no ocorrer a cantoria-de-improviso. Quanto ao cururu, sim, atualmente uma modalidade em que o "desafio" tem prevalecido, centrado na capacidade improvisativa dos cantadores.

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O Ritmo e a Melodia no Cururu Tanto o cururu cantoria-de-improviso quanto o cururu-cano apresentam na melodia clulas rtmicas simples, predominantemente base de colcheias: semicolcheias e colcheias: a tradicional clula rtmica: podendo ocorrer variantes com semnimas ou ; ; ou at mesmo adaptadas s necessidades

prosdicas do texto cantado. Os motivos rtmicos sincopados, como do ltimo exemplo, so mais raros, predominando mesmo um certo quadradismo rtmico. Na cantoria-de-improviso h uma tendncia mais discursiva e livre na melodia, porm possvel de enquadramento dentro das frmulas j descritas. A conduo meldica geralmente segue padres tonais tradicionais da chamada msica caipira, embora cada cururueiro utilize-se de melodias prprias e de sua preferncia. No cururu-cano o acompanhamento rtmico instrumental se faz comumente com a frmula tambm acompanhamentos como ou ; enquanto na cantoria . improvisada, em funo da linha meldica mais discursiva, ocorrem No improviso, a viola costuma realizar acompanhamento em forma de solo ou simplesmente o acompanhamento rtmico-harmnico. interessante perceber que o acompanhamento rtmico aparece tambm em outras modalidades da msica rural paulista, entre as quais o cateret e a toada, sendo praticamente o mesmo do baio nordestino. Espetculos de Palco - Gravaes em Disco -As Rdios O escritor regionalista e folclorista Cornlio Pires (1884-1958) foi quem promoveu as primeiras apresentaes de cantos e danas folclricas paulistas como espetculo de palco, desencadeando o processo de 43

incorporao da msica caipira na indstria do disco e da comunicao. Em 1910, apresentou-se no Colgio Mackenzie de So Paulo, "num festival, juntamente com uma dupla de violeiros, em exibio de danas, mutiro, velrio, etc."(12)

. Em 1928, "traz para So Paulo mais dois

violeiros de talento, Caula e Mariano, alm de outros artistas. Com eles, d representaes interessantes, baseadas em motivos folclricos, como o cateret, cururu, fandango, etc. , representaes estas que se estenderam a diversas cidades interioranas. Em 1929, formou a Turma Caipira Cornlio Pires(14) (13)

e praticamente passou a viver como contador de "causos"

sobre a vida rural paulista, inclusive gravando e vendendo discos. Explica J.R. Tinhoro que "as primeiras duplas caipiras de So Paulo a gravarem suas composies em discos foram trazidas do interior, ainda com carter de amadores, pelo entusiasta da vida rural Cornlio Pires" , isso em 1929. Sobre a incorporao da msica rural pela indstria discogrfica, Souza Martins diz que "o cururu, alis, constituiu uma boa indicao pelas grandes transformaes e sofreu quando deixou de ser cururu rural, isto , dana e canto religiosos, para adaptar-se ao rdio e ao disco. Inicialmente foi apresentado em discos 78 rpm como cntico, sem o desafio secularizado que hoje caracteriza, surgindo da uma modalidade de msica sertaneja totalmente oposta ao cururu de origem, porque destituda dos seus aspectos formais caractersticos" . Na verdade, a transformao do cururu se deu no somente em funo da sua incorporao indstria discogrfica, (mas, antes, quando teve de se adaptar s apresentaes em palcos, como espetculo. Transportado para o ambiente citadino, houve, inclusive, modificaes em sua temtica predominantemente religiosa do ambiente rural. Evidentemente, os poucos aspectos das atividades de Cornlio Pires, apontados anteriormente, como promotor de "shows folc1ricos", servem 44(16) (15)

apenas para balizamento de alguns momentos significativos, porquanto suas atividades nesta rea foram constantes a partir de 1910, tanto na Capital quanto no Interior. Diante da transformao do cururu em espetculo artstico, tambm as rdios, sobretudo do interior, incorporaram em suas programaes a presena dos cururueiros, pela dcada de 40. Segundo H. P. Carradore, "as primeiras festanas cururueiras eram realizadas na Rdio Difusora de Piracicaba, em 1939" (17). O programa se manteve no ar por diversos anos e deixou de ser realizado por problemas trabalhistas de registro dos cururueiros como empregados da rdio, pela regularidade de apresentaes nos programas. Assim, tambm na cidade de Sorocaba existiu programa dedicado exclusivamente ao cururu, sob o comando do cururueiro Nh Serra. Na poca desta pesquisa maio e junho de 1983 existiam programas de cururu em rdios das cidades de Itu, Tatu e Porto Feliz. Toda essa valorizao dos cantadores, naturalmente, concorreu para a profissionalizao, ou pelo menos a semiprofissionalizao destes. J em 1947, J. Chiarini referia-se ao fato dizendo que "no ganham muito os canturies. Recebem bem pouco. As despesas de viagem, estada e comunicaes pagas pelos patrocinadores"(18)

. Este quadro parece no ser

muito diferente na atualidade, pois, apesar de receberem pagamento pelas apresentaes, a maioria dos cururueiros tem profisses outras. As cantorias ocorrem normalmente nos fins de semana ou noite, no os impedindo de exercerem suas profisses normais. A forte conotao artstica, uma espcie de show business caipira, assumida pelos cururueiros na atualidade, pode ser verificada nas atividades de um dos seus lideres: Nh Serra, de Piracicaba, que, alm de apresentador de programas radiofnicos - que lhe do naturalmente liderana entre os cururueiros -, uma espcie de empresrio do setor. Tem 45

introduzida pelos jesutas nas suas festas religiosas fora (e talvez dentro) do templo. Antnio Cndido explica que o cururu significa, na sua forma primitiva, uma reinterpretao e parcialmente reconstruo de danas cerimoniais tupi, cf. Possveis Razes... p. 400. (6) A1ceu Maynard Araujo, Folclore Nacional, vol. lI, 2 ed. S. Paulo, 1973, p. 77. (7) Lus da Cmara Cascudo, Dicionrio do Folclore Brasileiro. Vol. II. Rio de Janeiro,1969, p. 525. (8) Antnio Cndido, op. cit. p. 385. Na contracapa do LP Continental: Cururu - Nh Serra e Pedro Chiquito, 1976, o autor explica: medida que o processo de urbanizao se desenrolou, o elemento religioso cedeu lugar ao elemento profano, os traos coletivos, como a dana, cederam lugar exibio pessoal, os temas religiosos ensinados no catecismo foram substitudos... (9) Joo Chiarini, Cururu in Revista do Arquivo Municipal (juIhoagosto-setembro, 1947) p. 85. (10) Hlio Damante, Folclore Brasileiro: So Paulo - Rio de Janeiro, 1980, p. 30. (11) L. C. Cascudo, op. cit., p. 525. (12) Macedo Dantas, Cornlio Pires: Criao e Riso. S. Paulo, 1976, p. 344. (13) idem, p. 349. (14) idem, p. 350. (15) Jos Ramos Tinhoro, Pequena Histria da Msica Popular. Petrpolis, 1974, p.196. 46

vrios discos gravados com outros cantadores e mantm uma empresa de promoes artsticas, em cujo carto de apresentao se l: "Nh Serra Promoes S/C Ltda. - Folclore Regional - Conjunto de Repentista e Shows Radiofnicos". A agenda do grupo de Nh Serra entre fins de maio e incio de julho (1983) previa dezesseis apresentaes em diversas cidades da regio, inclusive na cidade de Carmpolis, no Paran, o que mostra: a grande aceitao do gnero no interior. Naturalmente, tratava-se de um perodo de muitas festividades - ciclo junino -, sendo que em outras pocas as apresentaes so em menor nmero. Porm, na cidade de Tatu, em pelo menos dois bares(19), se fazem apresentaes de cururueiros todos os fins de semana, e de um deles se transmite um programa pela Rdio Notcias de Tatu. O potencial dos cururueiros como comunicadores populares se verifica tambm nas pocas das campanhas eleitorais para os cobiados cargos pblicos, pois os polticos sempre se servem destes em suas campanhas. Nh Serra lembra que, em Piracicaba, o primeiro candidato a contratar cururueiros para a campanha foi o ex-prefeito Luiz Gonzaga, isto por volta de 1948. Serra relembra alguns versos que cantou mais recentemente para um outro candidato a prefeito: Povo de Piracicaba Deve ter recordao Ano de quarenta e oito Que o quinze foi campeo (20) Joo Guidote que levou Pra primeira-diviso Joo Guidote levou o quinze Dia quinze vote em Joo" Assim, transformadas ou no, percebe-se que tanto o cururu quanto outras inmeras manifestaes folclricas permanecem recicladas, j que 47

contm implicitamente algumas funes sociais que possibilitam tal continuidade. Notas (1) Este ensaio foi originalmente apresentado como trabalho de aproveitamento na disciplina de ps-graduao Aspectos Polticos da Literatura de Cordel em So Paulo, ministrada pelo Prof. Dr. Joseph M. Luyten, ECA-USP, no 1 semestre de 1983. Apesar de passados sete anos da pesquisa de campo, o quadro geral dessa modalidade musical no interior paulista no sofreu maiores modificaes, da a razo da presente publicao. Houve, inclusive, uma defesa da tese sobre o assunto, na ECA-USP: Eduardo A. Escalante, A Msica no Cururu do Mdio Tiet Paulista. Dissertao de Mestrado em Artes, ECA-USP, 1986. (2) Em 1976, presenciei o cururu em bairros de Cuiab - Mato Grosso, sempre danado em roda. Participavam em mdia 10 cururueiros, todos portando violas de cocho ou "ganzs" (reco-reco). Sobre a viola de cocho ver Julieta de Andrade, Cocho matogrossense: um alade brasileiro, S. Paulo, 1981. (3) Antnio Cndido, Possveis Razes Indgenas de uma Dana Popular in E. Schaden (org.) - Leituras de Etnologia Brasileira, S. Paulo, 1976, p. 404. (4) Hugo Pedro Carradore, Retrato das Tradies Piracicabanas, Piracicaba, 1978, p.52. (5) Mrio de Andrade escreveu, na Pequena Histria da Msica: no hesito em afirmar ser o cururu uma primitiva dana amerndia, 48

(16) Jos de Souza Martins, Capitalismo e Tradicionalismo. S. Paulo, 1975, p. 123. (17) H. P. Carradore, op. cit., p. 54. (18) J. Chiarini, op. cit., p. 104/105. (19) Bar Baila Comigo, Av. Pompeu Reale, 510, Bairro do Morro Grande e Bar Vio Mau,Av. Salles Gomes, 325, Bairro da Estao. (20) Referncia equipe de futebol XV de Novembro, de Piracicaba. IKEDA, A. T. - Cururu: resistence and adaptation. ARTEunesp; So Paulo, 6: 47-59,1990. ABSTRACT: A focus about the popular culture before the modernization and the mass-comunication, above reference to the Cururu: one modality of improvisation song, from paulista tradicional culture. During manv years the folklorists, had been discussing that modernization is destructing the popular traditional culture - the folklore -, and creating expectation about the necessity of governnamental politics for its preservation. The article accost the topic and shows that many cases the continuation of these manifestations occurs for the proper condition and not adopting a politics of preservation. KEY-WORDS: Folklore;folk song; modernization; impromptu song; cultural politic.

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* Cururu: resistncia e adaptao de uma modalidade musical da cultura tradicional paulista, original em: ARTEunesp, v.6, 1990, pp.47-59.

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Um pouco de histria e conceitos Na primeira edio do Prmio Cultura Viva, a categoria Manifestao Tradicional recebeu inscries de projetos voltados para duas grandes vertentes temticas: as culturas indgenas e, em maioria significativa, as culturas populares tradicionais. Trata-se de uma classificao bastante abrangente, e coube, inclusive, entre as semifinalistas, uma iniciativa relacionada mais comumente ao campo do patrimnio arquitetnico-histrico, sobre ofcios de cantaria (arte de expresso em pedra). De fato, nos ltimos anos, no escopo das denominadas manifestaes tradicionais, em meio a tantas iniciativas de interesse e fomento que vm ocorrendo no Brasil, observa-se o predomnio de projetos relacionados s culturas populares tradicionais, tema que ser tratado neste texto. Essas manifestaes so identificadas tambm como cultura popular, cultura tradicional, cultura popular de tradio oral, cultura de raiz, tradies populares, conhecimentos tradicionais, e ainda folclore, que termo mais consagrado historicamente, desde meados do sculo XIX, mas que tem sido evitado nos ltimos tempos por seu desgaste semntico . Por sua vez, mais recentemente esses mesmos fatos culturais passaram a ser categorizados tambm como patrimnio imaterial.1

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Um dos motivos dessa deteriorao foi a maneira como os fatos culturais populares tradicionais foram concebidos, estudados e divulgados por muitos folcloristas: de modo desvinculado dos seus contextos sociais. Isso deu s pessoas a sensao negativa de que se tratava de fatos exticos e ultrapassados, fora do tempo, de irrealidades, excentricidades, rusticidades ou expresses curiosas e anedticas relacionadas a pessoas incultas ou excntricas, que eram, no entanto, exaltadas de modo idealizado, distncia diga-se, dentro de uma viso nacionalista conservadora, na qual se dirigia a ateno ao povo apenas como alegoria da nacionalidade.

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As inmeras denominaes so tentativas de se conferir a essa ordem de expresses alguma caracterstica ou distino, buscando singularizlas, diferenciando-as de outras, como por exemplo a cultura de massa, a cultura urbana, a cultura erudita e a cultura indgena. Porm, a tarefa no simples, pois os conhecimentos abarcados nas culturas populares tradicionais so muito diversificados, alm do que comumente uma mesma modalidade pode ter diferenas na forma, funo e at nos significados em regies e/ou grupos distintos. No Brasil, essas expresses culturais tradicionais ganharam maior visibilidade diante de um certo modismo que surgiu sobretudo a partir da dcada de 1990. Entretanto, importante lembrar que a ateno para esse conjunto de saberes tem um lastro j histrico, vindo, de modo mais evidente, pelo menos desde o sculo XIX, em alguns pases da Europa. Desde ento, as anteriormente denominadas antiguidades populares ou literatura popular passaram a ser objeto de reconhecimento. Embora o hbito de coletar costumes populares ocorresse desde pocas bem anteriores, o movimento teve maior impulso, de forma mais programtica, a partir de meados do sculo XIX, com a proposta de criao do prprio termo: folklore, na Inglaterra, em 1846 2 , identificado como o saber tradicional do povo ou a sabedoria popular. O autor da proposio, William John Thoms, solicitava na ocasio apoio para a realizao de levantamento sobre usos, costumes, cerimnias, crenas, romances, rifes, supersties etc., dos tempos antigos3 , que estavam, ento, inteiramente perdidos e se preocupava com o quanto se poderia ainda salvar..., diante da modernizao.42

Para mais detalhes, ver: Renato ORTIZ. Cultura Popular: romnticos e folcloristas. So Paulo: Programa de Estudos Ps-Graduados em Cincias Sociais / PUC-SP, 1985. 3 Conf. Laura DELLAMNICA, Manual de folclore. So Paulo:AVB, 1976, p. 15. 4 interessante perceber que tanto do ponto de vista conceitual, quanto em relao aos modos de salvaguarda desses saberes, o que se prope atualmente, em muitos aspectos, so preocupaes bem prximas a essas, desta vez, talvez, em oposio aos desdobramentos da globalizao e das tecnologias, e em sintonia, em certa medida, com as questes ambientais, uma vez que as culturas tradicionais so entendidas como mais prximas da natureza (o acstico, o artesanal etc.).

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Ao longo da histria so muitas as tentativas de se definir a cultura popular tradicional, sobretudo, por folcloristas. Porm, trata-se de tarefa complexa, com resultados que sempre apresentam um ou outro seno, por envolverem saberes e fazeres to variados. Aqui, apenas para efeito de um balizamento conceitual bsico, podemos recuperar dois textos mais recentes que tm grande consagrao por serem emitidos por um organismo de alcance e reconhecimento mundial, a Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura Unesco, que tem sido uma referncia importante para os pases do ponto de vista das reflexes sobre a cultura. Em um documento de 1989, define-se: A cultura tradicional e popular o conjunto de criaes que emanam de uma comunidade cultural fundadas na tradio, expressadas por um grupo ou por indivduos e que reconhecidamente respondem s expectativas da comunidade enquanto expresso de sua identidade cultural e social; as normas e os valores se transmitem oralmente, por imitao ou de outras maneiras. Suas formas compreendem, entre outras, a lngua, a literatura, a msica, a dana, os jogos, a mitologia, os ritos, os costumes, o artesanato, a arquitetura e outras artes.5

Mais recentemente, em 2003, a Unesco estabeleceu um outro conceito relacionado ao anterior, o de patrimnio imaterial, definido como: (...) os usos, representaes, expresses, conhecimentos e tcnicas junto com os instrumentos, objetos, artefatos e espaos culturais que lhe so inerentes que as comunidades, os grupos e em alguns casos os indivduos reconhecem como parte integrante de seu patrimnio cultural.5

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Conf. Recomendao sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular traduo do autor, o stio: http://www.unesco.org/culture/laws/paris/html_sp/page1.shtml, em 17/5/2006. 6 Traduzido da Convencin para la salvaguardia del patrimonio cultural inmaterial, UNESCO, Paris, 17 de outubre de 2003 stio: htto://www.unesco.org/culture/ich_convention/ndex.php?pg=000228&PHPSESSID=ebb128633fa78faep3d f3b29761829c5, de 19/8/2006.

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Note-se que tambm um conceito bastante aberto, podendo ser aplicado a tantos fatos culturais, de diversos tipos de sociedades, mas que na prtica, entre ns, tem sido relacionado predominantemente aos saberes das culturas populares e tradicionais. Na primeira definio destacam-se idias como: conjunto de criaes (vrios fatos), emanao comunitria, embasamento na tradio, expresso de grupo ou individual, reconhecimento comunitrio, expresso de identidade e transmisso oral, incluindo-se vrios exemplos de fatos que so abarcados na definio, aos quais se podem acrescentar muitos mais. No segundo, ressaltam-se os aspectos intangveis da cultura, alm dos seus correspondentes resultados materiais e os espaos fsicos nos quais ocorrem. So de fato peculiaridades que costumam ser destacadas quando se procura identificar as manifestaes da cultura popular tradicional.7

Uma onda etnicista O atual movimento de interesse pelos saberes tradicionais transparece em diversos campos, sobretudo nas expresses identificadas como artes (msica, teatro, dana, artes plsticas), mas tambm na educao, nas cincias sociais e em outras reas; aparecendo at na gastronomia e na moda, nas roupas e cabelos (look tnico), nas quais as referncias s culturas tradicionais se fazem presentes. Assim, vivemos uma onda uma poca de fascinao etnicista, podemos dizer que inclui o interesse7

Sobre as peculiaridades dos fatos folclricos ver:Amrico PELLEGRINI FILHO, Conceitos Brasileiros de Folclore. In Antologia de Folclore Brasileiro (org. Amrico PELLEGRINI FILHO). So Paulo: Edart/Univ. Federal da Paraba/Univ. Federal do Par, 1982, PP. 11-33, e Rita Laura Segato de CARVALHO, A antropologia e a crise taxonmica da cultura popular, In: Seminrio Folclore e Cultura Popular: as vrias fases de um debate, Rio de Janeiro: INF/IBAC/Minc, 1992, PP. 13-21.

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pelas culturas de povos diversos, genericamente identificados como tnicos, e tambm pelas culturas populares tradicionais. Tal envolvimento atinge sobretudo jovens e pessoas de formao mais intelectualizada (estudantes universitrios e de grau mdio e intelectuais)8.

Pode-se, inclusive, encontrar em vrias cidades do Brasil conjuntos artsticos de projeo folclrica de msica e/ou danas/folguedos compostos de estudantes, da mesma forma como grande quantidade de jovens (comumente identificados como universitrios) participam dos prprios grupos tradicionais. No primeiro caso, podemos mencionar a existncia de maracatus, ou pelo menos de bandas de percusso de maracatu em cidades como So Paulo, Rio de Janeiro, Braslia, Campinas e Florianpolis. No que se refere musica, por exemplo, nunca se viu to grande quantidade de CDs e vdeo-documentrios de msica/cultura tradicional como lanados nesses ltimos anos, por instituies de diversos tipos (departamentos e secretarias governamentais, ONGs, fundaes e associaes culturais), conforme se percebe at em algumas lojas mais especializadas em som, nas quais se encontram msicas de vrias partes do mundo e do Brasil, nas sesses denominadas: world music, msica tnica, msica do mundo ou msica internacional. Outra vertente reveladora do interesse contemporneo em torno das sonoridades tribais ou msica de mundos esquecidos pode ser vista nas programaes de algumas emissoras de televiso, sobretudo educativas ou a cabo (que comearam a proliferar no Brasil principalmente8

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Inclusive, na vida acadmica, pode-se notar o desdobramento de especializaes relacionadas ao campo da antropologia, como etnocenologia, etnopoesia, etnobotnica, etnomedicina, etnomatemtica e outras tantas. 9 Conf. Ttulo do CD duplo: Vozes de Mundos Esquecidos: msica tradicional dos povos indgenas, compilado e editado por Larry Blumendeld, pelas Ellipsis Arts..., Roslyn-New York, 1993, produzido em colaborao com o Centro para os Direitos Humanos das Naes Unidas.

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a partir de meados da dcada de 1990), que exibem documentrios enfocando a cultura de povos diversos, muitas vezes na forma de viagens de aventura, retratando aspectos culturais, curiosos e exticos (festas, danas e msicas) de diversas regies do mundo, incluindo a natureza e a vida animal, ao mesmo tempo em que se avolumam as programaes de espetculos de grupos de cultura popular em instituies culturais. Um outro exemplo singular do modismo etnicista em diversos setores o buf infantil Casa Tupiniquim: festas e afins (especializada em organizar festas), inaugurada em outubro de 2000 no bairro paulistano de Vila Madalena, que se promove como um Centro Cultural Infantil, voltado para resgatar a cultura brasileira. Ali, nas festas infantis, Mickey10

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No que toca s televises educativas, podemos mencionar como exemplo a srie de vdeo-documentrios: Bahia, singular e plural, plural, produzida a partir de 1998 pelo Instituto de Radiodifuso da Bahia (IRDEB), uma fundao da Secretaria da Educao do Estado, que se fez acompanhar de uma srie de CDs. Os vdeos foram veiculados pela TV Educativa da Bahia e outras como a TV Cultura de So Paulo e a TV Senado. Em 2002, os vdeos j contavam 14 ttulos e continuavam sendo produzidos. Mas, a rigor, a divulgao de documentrios etno-cultural-musicais extrapola as televises educativas. Tambm verificou-se em alguns casos um interesse mais comercial por essa vertente musical, como foi o caso de uma srie de quinze programas (documentrios de 30 minutos), denominada Msica do Brasil, veiculada, sintomaticamente, pela MTV (Music Television) brasileira, semanalmente, a partir de abril de 2000, apresentando um amplo mapeamento das prticas musicais no Brasil, notadamente as tradicionais. Como se sabe, a MTV sempre se voltou mais para o pblico jovem, dedicando-se principalmente msica pop-rock. O documentrio foi produzido por iniciativa de uma empresa privada ligada ao setor de comunicaes. Uma dessas emissoras a National Geographic Channel que se anuncia: Descobrindo o Mundo. Por sua vez, alguns programas revelam j no ttulo a preocupao ambientalista e de aventura, relacionada muitas vezes aos chamados esportes radicais (rapel, rafting etc.), como: Reprter Eco, Tribos e Trilhas e Expedies, veiculadas na TV Cultura de So Paulo; Vises do Mundo, da TV SESC-SENAC e outros voltados para esportes, relacionados com a natureza. Bom exemplo so as programaes realizadas nos SESCs (Servio Social do Comrcio), em todo o Brasil, e at mesmo em algumas casas noturnas alternativas. Tanto se apresentam artistas que criam suas prprias composies com base nas referncias tradicionais, quanto so programados os prprios grupos tradicionais, muitas vezes em um mesmo espetculo, em um tipo de juno que no se concebia em outras pocas, conforme se viu na Programao Balaio Brasil, organizada pelo SESC So Paulo em novembro de 2000, quando cerca de 150 atraes divididas entre Teatro, Dana, Msica, Literatura e Artes Visuais foram apresentadas em diversas unidades, desde produes emergentes at nomes j consagrados, de artistas populares aos mais contemporneos. A programao inclui desde a cultura indgena, passando pelo folclore, at a vanguarda, e havia no projeto editorial preocupao com a recriao da tradi cultural local em relao aos valores universais...(conf. Programao Balaio Brasil, SESC So Paulo, 2000). Na capital paulista, um outro espao alternativo, de apresentao de danas tradicionais, so algumas festas anuais (trs no decorrer do ano) realizadas por integrantes de um grupo de projeo de danas/msicas maranhenses denominado Cupuau, que apresenta o auto do bumba-meu-boi e outras danas em uma praa de um bairro conhecido como Morro do Querosene, na zona Oeste da cidade. Para o local, nos dias das festas, acorrem sempre milhares de jovens, que permanecem, muitos, por toda a noite assistindo s apresentaes do Cupuau e de outros grupos de danas e folguedos tradicionais existentes na cidade.

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Mouse e outros personagens da mdia de massa no entram. O trabalho de entretenimento das festas feito com lendas (Saci, Iara e outras), msicas, jogos/brincadeiras, danas e tambm com comidas brasileiras. Por fim, alm de tantas outras, a dinmica do interesse voltado para as culturas tradicionais pode ser aferida na criao, em So Paulo, do Frum Permanente de Cultura Popular Tradicional (FPCP), em agosto de 2002, que com o tempo passou a reunir expressivo nmero de interessados em todo o Brasil, inclusive de grupos organizados que realizam algum tipo de trabalho voltado para ou com culturas populares. Nota-se que o Frum direcionou muito as preocupaes para discutir e buscar meios de interferir politicamente (nas esferas federal, estadual e municipal) com propostas de legalizao de leis de incentivo cultura popular. Seus integrantes criaram, inclusive, uma rede de comunicaes via internet na qual anunciam e trocam informaes sobre eventos relacionados ao tema.

Fomento e salvaguarda Muitas so as propostas e aes de fomento, registro e acautelamento das culturas tradicionais, conforme se verifica nas inmeras iniciativas descritas que esto corroboradas nos prprios documentos conceituais da Unesco, cujo objetivo principal a salvaguarda destas. No Brasil, historicamente, desde um estudo pioneiro de folclore (de literatura oral) do escritor sergipano Slvio Romero (1851-1914), com o livro Cantos Populares do Brasil, publicado em 1883, reunindo contos, cantos e poesias populares, vrias foram as iniciativas de reconhecimento da importncia das culturas populares tradicionais, sobretudo como13

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Os documentos so, respectivamente: Recomendao sobre Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular (1989) e Conveno para a Salvaguarda do Patrimnio Cultural Imaterial (2003).

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indicadoras da brasilidade. Oficialmente, diversos foram os atos para documentar, estudar e fomentar os saberes das culturas tradicionais como citar esparsamente, alguns exemplos: a Misso de Pesquisas Folclricas, iniciativa de Mrio de Andrade em 1938, no ento Departamento de Cultura do Municpio de So Paulo, que fez extenso registro (gravaes, fotos, registro descritivo) de manifestaes populares no Norte e Nordeste do Brasil; a criao da Comisso Nacional de Folclore (CNFL) em 1947, organizada no Ministrio das Relaes Exteriores, como representante do Brasil na Unesco, e a criao da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro em 1958 (atualmente Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional Iphan, do Ministrio da Cultura), com os seguintes objetivos: promover registro, pesquisas e levantamento, cursos de formao e de especializao, exposies, publicaes, festivais; proteger o patrimnio folclrico, as artes e os folguedos populares; organizar museus, bibliotecas, filmotecas, fonotecas e centros de documentao; manter intercmbio com entidades congneres; divulgar o folclore no Brasil.14 Em 1965, instituiu-se a data de 22 de agosto como o Dia do Folclore, no mbito do Governo Federal, por meio de decreto no qual se expunha: O Governo deseja assegurar a mais ampla proteo s manifestaes da criao popular no s estimulando sua investigao e estudo, como ainda defendendo a sobrevivncia dos seus folguedos e artes, como elo valioso da continuidade tradicional brasileira....15

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Para ver detalhes do histrico dos estudos e fomento do folclore, ver: Laura DELLA MNICA, Manual do Folclore, So Paulo: AVB, 1976, p.23 e Lus Rodolfo VILHENA, Projeto e Misso: o movimento folclrico brasileiro, 1947-1964, Rio d e Janeiro: Funarte/Getlio Vargas, 1997. Conf. Laura DELLA MNICA, 1976, P.20. Em So Paulo existe tambm o Decreto n. 48.310, de 1967, instituindo o Ms do Folclore (agosto), Considerando que o Poder Pblico no deve ficar indiferente difuso e defesa do folclore, pelo que ele representa como espelho da alma popular, e amlgama de conhecimentos e prticas que contribuem inclusive para fortalecer os laos da comunidade, da Nao e da fraternidade humana,... e visando divulgar, estudar e pesquisar os fatos da cultura popular brasileira, e despertar o interesse, especialmente dos jovens para a cincia do Folclore;...(In: Laura DELLAMNICA, p. 21)

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Da legislao mais recente podemos destacar a prpria Constituio Brasileira, de 1988, que prev no seu Art. 215, Pargrafo 1 - O Estado proteger as manifestaes das culturas populares, indgenas e afrobrasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatrio nacional. No Art. 216, no que interessa para o presente enfoque, se l: Constituem patrimnio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referncia identidade, ao, memria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I as formas de expresso; II os modos de criar, fazer e viver;... E no Pargrafo 1: O poder pblico, com a colaborao da comunidade, promover e proteger o patrimnio cultural brasileiro, por meio de inventrios, registros vigilncia, tombamento e desapropriao, e de outras formas de acautelamento e preservao. No desdobramento do que preconizam a Constituio Brasileira e as decises da Unesco, j mencionadas, no ano de 2000 foi oficializado o Decreto n. 3.551 (Federal), de 4 de agosto, que Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem o patrimnio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimnio (Imaterial..., no qual se prev o registro nos seguintes livros: I Livro de Registro dos Saberes, onde sero inscritos conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; II Livro de Registro das Celebraes, onde sero inscritos rituais e festas que marcam a vivncia coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras prticas da vida social; III Livro de Registros das Formas de Expresso, onde sero inscritas manifestaes literrias, musicais, plsticas, cnicas e ldicas; IV Livro de Registro de Lugares, onde sero inscritos mercados, feiras, santurios, 63

praas e demais espaos onde se concentram e reproduzem prticas culturais coletivas. ... No stio do Programa Nacional do Patrimnio Imaterial, do IphanMinC, nas suas diretrizes, prope-se, entre outros aspectos: Promover a incluso social e a melhoria das condies de vida de produtores e detentores do patrimnio cultural imaterial, e alm disso Ampliar a participao dos grupos que produzem, transmitem e atualizam manifestaes culturais de natureza imaterial nos projetos de preservao e valorizao desse patrimnio, o que revela preocupaes no somente com os fatos culturais em si, como sempre se fez historicamente, e ainda predomina na maioria das propostas contemporneas de fomento s culturas tradicionais. Nota-se, ento, a preocupao com a valorizao dos prprios detentores desses saberes , fato esse que se confirma tambm em outro stio (dos Planos de Salvaguarda), no qual se busca atuar no sentido da melhoria das condies sociais e materiais de transmisso e reproduo que possibilitam sua existncia, que podem ir desde a ajuda financeira a detentores de saberes especficos com vistas sua transmisso, at, por exemplo, a organizao comunitria ou a facilitao de acesso a matrias-primas . Da mesma forma, multiplicaram-se no Ministrio da Cultura outras iniciativas no tocante s culturas populares, entre as quais: os Pontos de Cultura, de repasse de recursos em dinheiro e de aes do Programa Cultura Viva (MinC), que no primeiro Edital, de 2004, selecionou aproximadamente 260 projetos, dos quais muitos voltados para as culturas populares tradicionais; o I Seminrio Nacional de Polticas Pblicas para16

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Conf. http://www.iphan.gov.br/bens/P.%20Imaterial/imaterial.htm, em 16/4/2005. http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do?id=12553&retorno=paginaIphan, em 26/6/2006.

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as Culturas Populares, em fevereiro de 2005 (precedido de seminrios em vrios Estados), o Edital de Concurso Pblico n. 2, de 31 de agosto de 2005, da Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural (SID)/Secretaria de Fomento e Incentivo Cultura, para Fomento s Expresses das Culturas Populares, que teve em torno de 630 inscries e selecionou 46 projetos de todo o Pas ; o Prmio Cultura Viva, em 2006; o Edital de Divulgao n. 001/2006, de Mapeamento e Documentao do Patrimnio Cultural Imaterial, do Iphan-MinC , e , em setembro de 2006, o II Seminrio Nacional de Polticas Pblicas para as Culturas Populares e o I Encontro Sul-Americano de Culturas Populares. Alm das iniciativas de mbito federal, existem aquelas de governos estaduais e municipais, e, ainda de associaes da sociedade civil, que de uma forma ou outra, esto voltadas para o fomento e salvaguarda das tradies culturais. Em So Paulo, instituiu-se, em 2001, o Dia da Cultura Caipira (5 de agosto) e, em 2004, o Dia do Saci (31 de outubro), no mbito estadual. Na cidade de Botucatu, organiza-se o Festival Nacional do Saci (onde surgiu a Associao Nacional dos Criadores de Saci); alm disso o Governo do Estado oficializou em 2006 editais de Concurso de Apoio a Projetos de Promoo da Continuidade da Cultura Caipira, Caiara, Piraquara e Afro, e, ainda, da Cultura Quilombola . Por sua vez, o Governo do Estado de Pernambuco, com base em Lei de 2002, promoveu em 2005 o I Concurso Pblico do Registro do Patrimnio Vivo do Estado de Pernambuco RPV-PE, para beneficiar os artistas e mestres da cultura popular e tradicional do Estado , que passaram a ter direito a uma penso18

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Conf. Stio: http://www.cultpopbrasil.org/noticias/news_item.2006-01-05.0146052683, em 28/5/2006, e publicao: Cultura Viva Programa Nacional de Cultura, Educao e Cidadania, 2 ed., Braslia: Ministrio da Cultura /Ministrio do Trabalho e Emprego, 2005.19

Stio: http://portal.iphan.gov.br/forum/concurso/novasede/Edital_PNPI-2006.pdf, em 30/7/2006.

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Stio: http://www.cultura.sp.gov.br/StaticFiles/SEC/edital/Edital_PAC_17-2006_cultura_caipira.doc, em 27/7/2006.21

Ver FUNDARPE, stio: http://www.cultura.pe.gov.br/. E, 26/09/2006.

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mensal, como Patrimnio Vivo. Igualmente, o Governo do Estado do Cear, em 2003, instituiu o Registro dos Mestres da Cultura Tradicional Popular do Estado do Cear, cujos selecionados tambm obtiveram direito a um auxlio financeiro mensal como Tesouro Vivo do Cear . H de se mencionar tambm os empreendimentos de patrocnio, de grande importncia, da Petrobras, empresa estatal, sobretudo desde a consolidao, em 2003, do Programa Petrobras Cultural, executado a partir de 2004, em sintonia com o Ministrio da Cultura e a Secretaria de Comunicao de Governo e Gesto Estratgica, da Presidncia da Repblica, que entre as suas linhas de atuao, na de Preservao e Memria (Msica e Patrimnio), teve desmembramento de incentivo para projetos de Patrimnio (Memria das Artes e Patrimnio Imaterial), na qual tm sido selecionados muitos projetos voltados para as culturas populares tradicionais. Da mesma forma, outras empresas, inclusive bancos, no sistema de renncia fiscal, tm realizado aes de promoo das culturas populares.22

Algumas questes, ainda... antes de encerrar De fato, notrio o interesse que as culturas populares e tradicionais vm despertando em diversos segmentos sociais nos ltimos anos, inclusive resultando em inmeras medidas governamentais de fomento e preservao, como nunca se viu antes, a exemplo do prprio Prmio Cultura Viva. Neste caso, h de se destacar um aspecto inovador, buscando superar o entrave burocrtico que envolve comumente asStio: http://www.cultpopbrasil.org/politicaspublicas/document.2005-06-27.1565947118, em 28/5/2006. O conceito de Tesouro Nacional Vivo foi iniciado no Japo, na dcada de 1950 e posteriormente alcanou outros pases, sendo tambm incorporado pela Unesco, no projeto dos Tesouros Humanos Vivos, servindo de referncia para vrios pases.22

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realizaes oficiais de fomento aos grupos de prticas populares tradicionais. Nesse prmio puderam se inscrever, diretamente, sem intermedirios, grupos que no tm estatuto jurdico formal (exigncia burocrtica), que a realidade da grande maioria dessas iniciativas, que embora sejam conhecidas e consagradas em suas comunidades, no contam com tal condio institucional. Posteriormente, os grupos premiados, quando informais, obtiveram assessoria para os trmites burocrticos de seus registros. O reconhecimento das culturas tradicionais se revela, no todo, em distintas formas de registro (gravao de CDs, vdeo-documentrios, inventrios, publicao de pesquisas), programao de um sem-nmero de apresentaes artsticas, festivais, criao de fruns, programas televisivos, patrimonializao de mestres das culturas populares como tesouros vivos, encontros e outras modalidades. Pode-se crer que, em seus princpios, muitas das iniciativas esto lastreadas em meritria preocupao com os saberes populares, sobretudo quando voltadas tambm para os membros das comunidades guardis desses conhecimentos (o que uma inovao), e no somente interessada nos fenmenos em si, de forma descontextualizada, como tem sido feito historicamente. Mas, por outro lado, tambm ocorrem ainda aes (mesmo oficiais) que se pautam em vcios e conceitos equivocados, que resultam de vises reducionistas, fragmentadas, e por demais generalizadas23

das

culturas populares. Nestes casos, no geral, no se levam em considerao os conceitos, as vises, os interesses, funes e sentidos mais profundos que as prprias comunidades tm dos fenmenos que praticam.23

H de se reconhecer que a prpria tentativa de nomear, com poucos termos (gerais), as to variadas expresses culturais populares revela tambm uma compreenso redutora, rasa, das mesmas. De fato, cultura popular nomenclatura muito vaga e j saturada, praticamente, sem eficcia representativa.

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Dessa forma, o modo predominante de incorporao das expresses populares tradicionais no cenrio cultural tem se dado atualmente pela via esttica, ou seja, como arte, espetculos para puro entretenimento, e, ainda, como apresentaes de folclore, na forma de expresses de representao da identidade nacional (brasilidade), das regionalidades ou das localidades24. Esse ltimo tipo de interveno comum quando se elegem algumas prticas tradicionais, notadamente as que envolvem msica, dana e dramatizaes, como atraes artsticas ou tursticas das suas localidades, compreendendo-as como fenmenos isolados dos seus contextos histricos e sociais, que lhes do sentido. Por exemplo, um mestre de Folia de Reis, que em primeiro lugar, uma espcie de lder espiritual, religioso, devoto e representante dos Trs Reis Magos (Baltazar, Gaspar e Melchior), passa a ser visto como representante do folclore ou includo na categoria artista popular, o que estranhvel para o prprio. Naturalmente, no se pode desconsiderar a dimenso esttica que se ressalta em tantas expresses populares tradicionais, mas na maioria d