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Luís Roberto Barroso Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ Doutor Livre-Docente pela UERJ Mestre em Direito pela Yale Law School Brasília, 6 de dezembro de 2010. Exmo. Sr. DR. OPHIR CAVALCANTE JR. M.D. Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil Excelentíssimo Senhor Presidente: Honrado com a designação para a Relatoria do Seminário sobre a Reforma Política, organizado pela Ordem dos Advogados do Brasil, procurei produzir um documento capaz de atender ao legítimo anseio da entidade, compartilhado pelos advogados em geral, de cooperar no esforço permanente de aprimoramento das instituições democráticas. A decisão política do Conselho Federal de empenhar a autoridade da OAB na superação do imobilismo nessa matéria merece registro e louvor. As exposições e debates de altíssimo nível realizados nos dias 16, 17 e 18 de novembro revelaram a existência de forte consenso sobre os principais problemas do sistema político brasileiro e suas graves conseqüências para o país. Houve, porém, um desacordo igualmente intenso acerca das melhores opções de mudança. É possível afirmar que algumas propostas, como a adoção da lista preordenada e do financiamento público de campanhas, foram objeto de adesão quase unânime. Em outras matérias, porém, o sentimento majoritário se manifestou de forma difusa, de modo que foi inevitável a realização de algumas escolhas fundamentadas, ora submetidas à apreciação desse Egrégio Conselho Federal. Ao apresentar o resultado do trabalho, transmito a Vossa Excelência a expressão do meu apreço e da mais elevada consideração. LUÍS ROBERTO BARROSO

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Luís Roberto Barroso

 

Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ Doutor Livre-Docente pela UERJ

Mestre em Direito pela Yale Law School  

Brasília, 6 de dezembro de 2010.

Exmo. Sr.

DR. OPHIR CAVALCANTE JR.

M.D. Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil

Excelentíssimo Senhor Presidente:

Honrado com a designação para a Relatoria do Seminário

sobre a Reforma Política, organizado pela Ordem dos Advogados do Brasil,

procurei produzir um documento capaz de atender ao legítimo anseio da

entidade, compartilhado pelos advogados em geral, de cooperar no esforço

permanente de aprimoramento das instituições democráticas. A decisão política

do Conselho Federal de empenhar a autoridade da OAB na superação do

imobilismo nessa matéria merece registro e louvor.

As exposições e debates de altíssimo nível realizados nos

dias 16, 17 e 18 de novembro revelaram a existência de forte consenso sobre os

principais problemas do sistema político brasileiro e suas graves conseqüências

para o país. Houve, porém, um desacordo igualmente intenso acerca das

melhores opções de mudança. É possível afirmar que algumas propostas, como a

adoção da lista preordenada e do financiamento público de campanhas, foram

objeto de adesão quase unânime. Em outras matérias, porém, o sentimento

majoritário se manifestou de forma difusa, de modo que foi inevitável a

realização de algumas escolhas fundamentadas, ora submetidas à apreciação

desse Egrégio Conselho Federal.

Ao apresentar o resultado do trabalho, transmito a Vossa

Excelência a expressão do meu apreço e da mais elevada consideração.

LUÍS ROBERTO BARROSO

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A REFORMA POLÍTICA:

UMA PROPOSTA DE SISTEMA DE GOVERNO, ELEITORAL E

PARTIDÁRIO PARA O BRASIL

SUMÁRIO

I. INTRODUÇÃO

II. SISTEMA DE GOVERNO

1. Atenuação da hegemonia do Poder Executivo no sistema nacional de

separação dos Poderes

2. Reeleição e prazo de mandato do Presidente da República

III. SISTEMA ELEITORAL

1. Sistema Distrital Misto

2. Sistema de lista fechada ou preordenada

IV. SISTEMA PARTIDÁRIO

1. Mecanismos para redução da infidelidade e da pulverização partidárias

2. Financiamento público de campanhas

V. CONCLUSÃO: SÍNTESE DAS PROPOSTAS APRESENTADAS PELA ORDEM DOS

ADVOGADOS DO BRASIL

I. INTRODUÇÃO

1. No momento em que comemora seus oitenta anos, a Ordem

dos Advogados do Brasil propõe à sociedade brasileira uma discussão abrangente

sobre os problemas do sistema político nacional e as possibilidades de reforma. O

seminário realizado entre os dias 16 e 18 de novembro, que contou com a

participação de respeitadas lideranças políticas e expoentes da Ciência Social e

do Direito, teve por objetivo aproximar experiências e formar massa crítica para

dar suporte à formulação de uma proposta concreta da entidade, a ser debatida no

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espaço público. A Ordem entende que o tema e a ocasião não poderiam ser mais

apropriados.

2. É inegável o sucesso da experiência democrática inaugurada

no Brasil a partir da Constituição de 1988. Ao longo desses mais de 20 anos, e

com especial intensidade na última década, o país tem conseguido conciliar

estabilidade institucional, crescimento econômico e avanço nos principais

indicadores sociais. Tais conquistas devem ser celebradas, mas não afastam a

importância de uma reforma do sistema político, que recupere sua

representatividade e altere as condições estruturais que têm permitido desvios

diversos. Ao contrário, o bom momento do país propicia o ambiente adequado

para um debate verdadeiramente democrático e para a efetivação das mudanças

necessárias.

3. Vive-se no Brasil uma situação delicada, em que a atividade

política desprendeu-se da sociedade civil, deixando de representá-la e, no limite,

até de lhe servir. Quando isso ocorre, a política passa a ser um fim em si mesma,

um mundo à parte, visto ora com indiferença, ora com desconfiança. Ao longo

dos anos, a ampla exposição das disfunções do financiamento eleitoral, das

relações oblíquas entre Executivo e parlamentares e do exercício de cargos

públicos para benefício próprio trouxe uma onda de ceticismo que tem abatido a

cidadania e minado a capacidade de indignação e de reação. A observação é de

cunho institucional e não tem por foco qualquer governo em particular.

4. A verdade, contudo, é que não há Estado democrático sem

atividade política intensa e saudável, nem tampouco sem parlamento atuante e

investido de credibilidade. É preciso, portanto, reconstruir o conteúdo e a

imagem dos partidos e do Congresso, assim como exaltar a dignidade da política.

Políticos são recrutados na sociedade civil, isto é, no mesmo ambiente de onde

saem todos os demais cidadãos. Se há especial incidência de desvios no ambiente

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da política, não se deve supor que esse fato decorra de circunstâncias pessoais de

quem a ela se dedica. Todo ser humano traz em si o bem e o mal. A vida

civilizada e a ética procuram potencializar o bem e reprimir o mal. O sistema

político brasileiro, por vicissitudes diversas, tem funcionado às avessas: exacerba

os defeitos e inibe as virtudes.

5. As idéias que se seguem procuram inverter essa lógica,

tendo em vista a realização de três propósitos centrais:

(i) Fomentar a legitimidade democrática do sistema político,

recuperando a identificação entre a sociedade civil e o conjunto de

representantes. Para tanto, é necessário conferir maior autenticidade programática

aos partidos políticos e reduzir drasticamente o custo das campanhas, de modo a

conter a influência do poder econômico no processo eleitoral e no exercício dos

mandatos;

(ii) Assegurar a governabilidade, baseada em relações

institucionalizadas entre os Poderes Executivo e Legislativo. Para alcançar esse

objetivo, a ideia é criar mecanismos que facilitem a superação de crises

institucionais e a formação de maiorias de sustentação política do governo, com

predomínio dos partidos e não do poder atomizado de cada parlamentar;

(iii) Fomentar as virtudes republicanas1, tornando o debate

político mais programático e menos clientelista e esvaziando a necessidade de

loteamento de órgãos públicos e de distribuição de cargos em troca de apoio

político. Para tanto, é necessário adotar medidas que afastem ou reduzam a

                                                                                                                         1 A expressão “virtudes republicanas” é aqui utilizada para designar a preservação da integridade pessoal dos agentes públicos e a observância de padrões éticos de gestão da coisa pública, que levem à promoção do interesse público, e não dos interesses particulares dos governantes ou de terceiros identificados. Tais virtudes se expressam nos princípios constitucionais da moralidade, da impessoalidade e da finalidade pública na ação política e administrativa. A expressão também é freqüentemente empregada, no debate político, para denotar o exercício consciente e ativo da cidadania.

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influência do poder econômico no processo eleitoral, dado que potencializa o

clientelismo. Na mesma linha, eliminar o poder de barganha individual de cada

parlamentar, gerador de mecanismos de troca de favores por votos.

6. O Seminário sobre a Reforma Política e a proposta dele

resultante foram organizados em três grandes eixos temáticos: I – Sistema de

Governo; II – Sistema Eleitoral; e III – Sistema Partidário. Dada a abrangência

de tais matérias, cada um dos eixos foi dividido em dois painéis mais específicos.

Cada painel contou com a participação de três convidados, sendo um jurista, um

cientista político e um membro representativo da classe política. Ao final de cada

bloco, abriu-se aos Conselheiros Federais e demais convidados a oportunidade de

formular perguntas e contribuições ao debate.

7. Os painéis revelaram a existência de relativo consenso no

diagnóstico dos principais problemas do sistema político nacional. Por outro

lado, verificou-se grande desacordo em relação às medidas que devem ser

adotadas. Tal circunstância impôs a necessidade de escolhas fundamentadas, sob

pena de não se produzir contribuição efetiva. A Ordem dos Advogados do Brasil

não pretende ingressar no debate público por meio da enunciação de

generalidades, mas sim com propostas concretas.

8. O presente relatório consiste, justamente, em uma carta de

propostas, desenvolvidas com fundamento nas exposições e debates realizados

no âmbito do seminário, bem como em estudos anteriormente desenvolvidos por

alguns dos Conselhos Seccionais2 e pelo próprio Conselho Federal, notadamente

a Proposta de Reforma Política elaborada, em 2007, pelo Professor Fábio Konder

Comparato. Foram objeto de consideração, igualmente, as diversas contribuições

                                                                                                                         2 Encaminharam manifestações escritas os Conselhos Seccionais do Ceará e do Mato Grosso do Sul.

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encaminhadas por entidades representativas da sociedade civil, convidadas a

participar dos trabalhos3.

9. Após essa breve introdução, já é possível passar

propriamente à enunciação objetiva das propostas submetidas à apreciação desse

Conselho Federal.

II. SISTEMA DE GOVERNO

1. Atenuação da hegemonia do Poder Executivo no sistema nacional

de separação dos Poderes

10. O primeiro eixo temático foi inaugurado com o painel

dedicado a discutir a hegemonia presidencial no Brasil. Os trabalhos foram

presididos pelo Ministro Enrique Ricardo Lewandowski, tendo falado o

Deputado Federal Michel Temer e os professores Argelina Figueiredo e Luís

Roberto Barroso.

11. A posição da Ordem dos Advogados do Brasil é pela

necessidade de atenuação da tradição brasileira de hegemonia presidencial4. Em

parte, tal objetivo pode ser alcançado sem a introdução de alterações legislativas,

por meio do cumprimento efetivo da Constituição em questões envolvendo as

competências do Executivo e o seu relacionamento com os demais Poderes. A                                                                                                                          3 A Ordem dos Advogados do Brasil recebeu propostas e contribuições encaminhadas pelas seguintes entidades, em ordem alfabética: ANPM – Associação Nacional dos Procuradores Municipais, que encaminhou propostas e três trabalhos doutrinários de autoria do professor Martônio Mont’Alverne Barreto Lima; ANPT – Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho; PR – Partido da República; PRP – Partido Republicano Progressista; e PSC – Partido Social Cristão. O Conselheiro Federal Mário Lúcio Quintão Soares encaminhou, igualmente, sugestões escritas. Também foi utilizado projeto de reforma política desenvolvido pelo Instituto Ideias, sob minha coordenação, publicado na Revista de Direito do Estado 3:287, 2006. 4 Sobre esse tema específico e outros aspectos concernentes à reforma política, v. José Afonso da Silva, A Constituição brasileira e a reforma política, mimeografado.

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título de exemplo, em matéria de medidas provisórias, é necessário que o

Congresso Nacional realize um controle mais ativo em relação aos requisitos

constitucionais de relevância e urgência, inclusive por meio do funcionamento

regular da Comissão Mista de Deputados e Senadores prevista no art. 62, § 9º, da

Carta5.

12. O mesmo raciocínio vale para o disposto no art. 66, §§ 4º e

6º, da Constituição, que determinam a apreciação dos vetos do Chefe do Poder

Executivo no prazo de 30 dias, em sessão conjunta do Congresso Nacional, sob

pena de sobrestamento das demais votações6. Apesar da redação taxativa dos

dispositivos em questão, a praxe tem sido a inércia do Poder Legislativo,

havendo registro de vetos comunicados há mais de dez anos e ainda não

apreciados7. Na verdade, a deliberação determinada pela ordem constitucional

tem sido a exceção, e não a regra.

13. Ainda em relação à possibilidade de se produzir um

reequilíbrio dos Poderes Executivo e Legislativo por meio da observância estrita

da Constituição, convém destacar a exacerbação dos poderes presidenciais em

matéria orçamentária. A prerrogativa de contingenciar verbas                                                                                                                          5 CF/88, art. 62: “Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. (…) § 9º Caberá à comissão mista de Deputados e Senadores examinar as medidas provisórias e sobre elas emitir parecer, antes de serem apreciadas, em sessão separada, pelo plenário de cada uma das Casas do Congresso Nacional”. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001). 6 CF/88, art. 66: “A Casa na qual tenha sido concluída a votação enviará o projeto de lei ao Presidente da República, que, aquiescendo, o sancionará. § 1º - Se o Presidente da República considerar o projeto, no todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao interesse público, vetá-lo-á total ou parcialmente, no prazo de quinze dias úteis, contados da data do recebimento, e comunicará, dentro de quarenta e oito horas, ao Presidente do Senado Federal os motivos do veto. (…) § 4º - O veto será apreciado em sessão conjunta, dentro de trinta dias a contar de seu recebimento, só podendo ser rejeitado pelo voto da maioria absoluta dos Deputados e Senadores, em escrutínio secreto. (…) § 6º Esgotado sem deliberação o prazo estabelecido no § 4º, o veto será colocado na ordem do dia da sessão imediata, sobrestadas as demais proposições, até sua votação final”. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001). 7 Segundo dados da Câmara dos Deputados, encontram-se atualmente em tramitação, apenas nessa Casa,1406 vetos. Na esmagadora maioria dos casos, o prazo constitucional para apreciação já foi ultrapassado há meses ou mesmo anos.

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indiscriminadamente e sem motivação converte-se em instrumento de pressão e

moeda de troca em barganhas políticas, em detrimento das negociações

institucionais e da construção de consensos genuínos. A despeito de seus efeitos

negativos sobre a harmonia entre os Poderes e de esvaziar a eficácia da lei

orçamentária, a prática dos contingenciamentos não é respaldada por qualquer

disposição constitucional ou legal expressa. A Ordem entende que o tema deve

ser submetido a ampla rediscussão8.

14. Por fim, ingressando em domínio que exigiria mudanças

formais na ordem jurídica, postula-se, em primeiro lugar, uma redução drástica

do número de cargos em comissão. Em segundo lugar, a Ordem defende um

redimensionamento do sistema presidencialista, buscando elementos no chamado

semipresidencialismo, praticado em países como Portugal e França. O atual

sistema brasileiro concentra enormes poderes na figura pessoal do Presidente da

República, mas não favorece a formação de maiorias de apoio estáveis no

Congresso Nacional. Por conta disso, o Executivo se vê obrigado a negociar

casuisticamente a aprovação de cada uma de suas propostas de governo, o que

prejudica a governabilidade e abre espaço para barganhas políticas.

15. Na fórmula ora proposta, o Presidente da República, eleito

de forma direta de acordo com as atuais regras constitucionais, continuaria a

titularizar a Chefia do Estado, ao mesmo tempo em que conservaria um conjunto

relevante de competências políticas, destinadas a assegurar a sua participação

ativa nas grandes decisões nacionais. Seria o caso, e.g., da competência para

propor projetos de lei, comandar as Forças Armadas e nomear os membros dos

Tribunais Superiores e outras autoridades referidas na Constituição, dentre

                                                                                                                         8  Em linha de princípio, não se defende aqui a introdução do orçamento vinculativo – que talvez dependesse de alterações legislativas formais –, mas sim uma fórmula de equilíbrio entre Poderes, em que a não-execução orçamentária seja adequadamente motivada pelo Executivo, expondo as razões pelas quais se entende necessário descumprir o planejamento aprovado pelo Congresso Nacional, após um processo longo e custoso. Sobre o tema, v. Eduardo Mendonça, A constitucionalização das finanças públicas no Brasil – Devido processo orçamentário e democracia, 2010.

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outras. Já o Primeiro-Ministro ou Chefe de Gabinete, que seria indicado pelo

Presidente e dependeria de aprovação da maioria parlamentar, seria o Chefe da

Administração Pública, encarregando-se da condução ordinária dos assuntos de

governo. O modelo proposto, portanto, não perde sua índole presidencialista,

embora incorpore alguns aspectos relevantes do parlamentarismo.

16. Com isso, espera-se promover um alinhamento autêntico e

estável entre o governo e a maioria parlamentar, promovendo a governabilidade

baseada em relações republicanas. Ao mesmo tempo, preserva-se a figura de um

Presidente forte e representativo, inclusive por sua importância no processo de

reconstrução democrática do país após a experiência autoritária. O modelo

somente seria implementado após o decurso de oito anos desde a sua aprovação,

de forma a minimizar a interferência de interesses políticos imediatos na

conformação do novo sistema.

2. Reeleição e prazo de mandato do Presidente da República

17. Nesse painel, em que se discutiu a possibilidade de reeleição

para a Chefia do Poder Executivo e eventuais modelos alternativos, os

convidados foram o Senador Demóstenes Torres e os professores Walter Costa

Porto e Gaudêncio Torquato.

18. Não há consenso forte acerca da proibição da reeleição.

Embora a alteração constitucional que permitiu essa possibilidade seja objeto de

uma percepção crítica relevante, há quem entenda que a mudança intermitente do

modelo impede a institucionalização do processo. Vale dizer: pior do que não ter

a fórmula ideal é ter regras que nunca se estabilizam.

19. Ainda que mantida a reeleição, a Ordem dos Advogados do

Brasil sustenta a necessidade de modificação da regra que permite a reeleição do

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Chefe do Poder Executivo, introduzida pela Emenda Constitucional nº 16, de 4

de junho de 1997. Os pleitos realizados desde então, nos três níveis federativos,

têm demonstrado que o sistema atual afeta a capacidade de ação política do

governo no ano eleitoral e gera o risco de beneficiamento direto ou indireto do

candidato à reeleição, inclusive por conta de fatores naturais e inevitáveis, como

a exposição pessoal favorável relacionada a ações do governo.

20. Para superar esses problemas, e considerando os

inconvenientes da mutação intermitente de sistemas, a Ordem propõe que seja

instituída a exigência de desincompatibilização do Chefe do Poder Executivo nos

seis meses anteriores ao pleito como requisito para a disputa da reeleição. Tal

providência consistiria em uma extensão da regra de desincompatibilização já

introduzida pela EC 16/97, que atualmente é aplicável apenas às hipóteses em

que o detentor do mandato pretenda se candidatar a cargo eletivo diverso9.

III. SISTEMA ELEITORAL

1. Sistema distrital misto

21. Os trabalhos do segundo eixo temático, sob a Presidência do

Ministro Carlos Ayres Britto, iniciaram-se com o painel dedicado ao sistema

eleitoral, que contou com a participação do Senador Pedro Simon e dos

professores Luiz Viana Queiroz e Jairo Nicolau.

22. A Ordem dos Advogados do Brasil apóia a introdução do

sistema distrital misto nas eleições para Deputado Federal, Deputado Estadual e

Vereador. Embora haja inúmeras variantes do sistema – que é adotado em países

como Alemanha e Japão –, a Ordem propõe inicialmente um modelo

                                                                                                                         9 CF/88, art. 14, § 6º: “Para concorrerem a outros cargos, o Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal e os Prefeitos devem renunciar aos respectivos mandatos até seis meses antes do pleito”.

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denominado distrital misto por superposição10. O tema justifica um breve

esclarecimento.

23. O sistema distrital misto combina aspectos dos dois grandes

modelos eleitorais puros existentes: o majoritário e o proporcional. Para o

componente majoritário do sistema, a circunscrição (o Estado, por exemplo) é

dividida em distritos eleitorais, em cujo âmbito cada partido lançará um

candidato, sendo eleito um único parlamentar por cada distrito. Para a dimensão

proporcional do modelo, cada partido apresenta uma lista fechada de candidatos.

O eleitor, assim, terá direito a dois votos: o primeiro no candidato de sua

preferência no âmbito do distrito; e o segundo, no partido político de sua

preferência.

24. Dessa forma, na composição da Câmara dos Deputados,

metade dos candidatos serão eleitos pelo voto distrital e a outra metade pelo voto

proporcional, de acordo com a votação de cada partido. O modelo

especificamente proposto – misto de superposição – caracteriza-se pela

independência entre as fórmulas majoritárias e proporcionais. O voto no

candidato eleito pelo sistema majoritário não interfere na eleição proporcional,

tal como se houvesse duas eleições distintas. O objetivo do sistema é promover a

conjugação de pontos positivos tanto do sistema majoritário quanto do sistema

proporcional.

25. Com efeito, o componente majoritário da eleição distrital

aproxima o candidato do eleitor, aumentando sua representatividade e facilitando

o controle mais eficiente de sua atuação parlamentar. Mais importante ainda, o

sistema apresenta potencial para baratear sensivelmente o custo das eleições, uma                                                                                                                          10 Outro sistema muito conhecido é o distrital misto por correção, que vigora, por exemplo, na Alemanha. Nesse país, nas eleições para o Parlamento Federal (Bundestag), adota-se o sistema misto de correção, em que ao eleitor são postos à disposição dois votos, um para a escolha de um dos candidatos no distrito (primeiro voto) e outro para a escolha de uma lista partidária (segundo voto). Em linhas gerais, este segundo voto é que irá determinar o número de cadeiras ao qual cada partido fará jus.

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vez que as campanhas majoritárias ficariam restritas ao âmbito de cada distrito. A

eventual municipalização do pleito decorrente desse mecanismo é compensada

pelo voto ideológico ou programático, que é dado no partido, por meio do voto

proporcional.

2. Sistema de lista fechada ou preordenada

26. O segundo painel do bloco teve por objeto os diferentes

sistemas de formação das listas partidárias, os quais definem, na prática, a ordem

de eleição dos candidatos no sistemas de votação proporcional. Falaram o

Deputado Federal Miro Teixeira, o jurista Pedro Abramovay e o professor

Marcus André Mello.

27. A posição da Ordem dos Advogados do Brasil é pela

necessidade premente de se substituir o atual sistema de lista aberta, na verdade,

de lista desordenada, pelo sistema de lista preordenada. Antes de enunciar o

amplo conjunto de razões que motivam essa opção, convém fazer um breve

registro teórico. Como se sabe, o sistema proporcional tem por objetivo

promover a distribuição dos mandatos legislativos segundo a representatividade

dos partidos existentes, de modo a que o Parlamento reflita, tanto quanto

possível, o arranjo das forças políticas atuantes na sociedade. Em linha de

princípio, é a votação obtida pelo partido que deve determinar o número de

cadeiras a que ele terá direito, as quais serão distribuídas por entre seus

candidatos. Há diversos sistemas para determinar a forma como se dá essa

distribuição, dentre os quais dois se destacam.

28. No escrutínio de lista desordenada ou aberta, tal como

praticado no Brasil, o eleitor tem a opção de votar no partido ou no candidato de

sua preferência. De um jeito ou de outro, os votos serão computados para o

partido, servindo, inicialmente, para determinar a quantidade de mandatos

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conquistados pela agremiação. Estabelecido esse número, serão considerados

eleitos os candidatos do partido que tenham recebido o maior número de votos

individuais, até que se complete o preenchimento das vagas.

29. Já no escrutínio de lista fechada, o eleitor vota em uma lista

de candidatos preordenada pelo partido, cujo conteúdo é divulgado ao eleitor.

Apura-se o total de votos que a lista recebeu. O partido ocupará o percentual das

cadeiras correspondente ao percentual de votos obtidos pela lista partidária. Os

candidatos que ocupam os primeiros lugares na lista serão considerados eleitos

prioritariamente sobre os candidatos que ocupam posições posteriores.

30. A ideia romântica de que a lista desordenada ou aberta

permite ao eleitor escolher de forma personalizada os candidatos que serão

eleitos simplesmente não corresponde à realidade. Do ponto de vista estatístico,

menos de 10% dos parlamentares têm sido eleitos com base em sua votação

individual11. Os demais dependem da transferência de votos obtidos por outros

candidatos de seu partido ou mesmo de outras agremiações, como ocorre nas

coligações partidárias. Como visto, todos os votos são computados, em primeiro

lugar, para os partidos, conferindo-lhes direito a determinado número de vagas.

A votação individual determina apenas a posição de cada candidato na lista

partidária. Embora essa circunstância possa privilegiar pontualmente a vontade

popular – sobretudo ao garantir a eleição de umas poucas figuras carismáticas –,

a verdade é que o sistema produz muito mais distorções do que acertos.

                                                                                                                         11 Nas eleições de 2010, apenas 35 dos 513 Deputados Federais eleitos obtiveram votos pessoais suficientes para superar o quociente partidário. Isso equivale a apenas 6,8% do total. Vale dizer: os 478 Deputados Federais restantes dependeram, em maior ou menor medida, da transferência de votos obtidos por outros candidatos do mesmo partido ou coligação para garantir sua eleição. Os dados podem ser obtidos na página eletrônica do TSE e foram divulgados em página eletrônica mantida pelo Jornal O Estado de São Paulo: http://blogs.estadao.com.br/eduardo-reina/2010/11/09/so-68-dos-deputados-federais-foram-eleitos-sem-ajuda-de-puxador-de-voto. Acesso em 2 de dezembro de 2010.

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31. Na prática, um candidato que obtenha um número expressivo

de votos pode conferir ao seu partido a prerrogativa de eleger outros

parlamentares, com votação pessoal baixa ou insignificante. Dada a limitação dos

mandatos disponíveis, o efeito colateral é a preterição de candidatos, de outros

partidos, com votação pessoal muito mais expressiva12. Com efeito, já se

tornaram comuns13 – e, por vezes, folclóricos14 – os casos em que indivíduos

com votação irrisória acabaram eleitos. Longe de constituírem incidências

isoladas, tais situações têm sido corriqueiras nas eleições proporcionais

realizadas no país.

32. O modelo estimula os partidos a lançar a candidatura de

personalidades carismáticas, mesmo quando não apresentem afinidade com o

programa partidário ou mesmo qualquer histórico de engajamento político. O

sucesso dessas pessoas pode alavancar a eleição de candidatos que defendam

orientações políticas diversas ou mesmo opostas, atribuindo ao voto

consequências que o eleitor medianamente informado não teria condições de

antever e com as quais, provavelmente, ele não concordaria15. O que se tem,

                                                                                                                         12 É possível identificar exemplos desse tipo de disfunção mesmo no período anterior à promulgação da Constituição de 1988, que não produziu alterações profundas nas regras básicas do sistema eleitoral. Um exemplo histórico, especialmente emblemático, envolveu o advogado Marcelo Cerqueira. Após ter exercido um mandato de Deputado Federal, entre 1979 e 1982, candidatou-se novamente em 1986, pelo Partido Socialista Brasileiro, para integrar a Assembleia Nacional Constituinte. E embora tenha ficado entre os dez deputados mais votados do Estado do Rio de Janeiro, acabou não sendo eleito pelo fato de o seu partido não ter atingido o quociente eleitoral. 13 Vale citar um exemplo da referida distorção, retirado das Eleições de 2010 para Deputado Federal: no Rio de Janeiro, houve um candidato eleito com 13.018 votos. No mesmo Estado, um outro candidato com 72.352 votos não foi eleito, em razão do baixo desempenho global de seu partido. A diferença entre as duas votações supera os 500%. Situações semelhantes ocorreram em praticamente todos os Estados da Federação, confirmando que as opções personalistas do eleitor não se refletem necessariamente no resultado das eleições. 14 As Eleições de 2002 produziram os casos mais extremos, amplamente noticiados. Na ocasião, por conta da votação recorde obtida pelo candidato Enéias, do Prona, outros cinco candidatos do mesmo partido acabaram sendo eleitos com votação muito inferior ao quociente eleitoral então verificado no Estado de São Paulo. Quatro desses candidatos obtiveram menos de 1000 votos nominais, tendo o menos votado obtido apenas 275 votos. 15 Um exemplo citado na exposição do jurista Pedro Abramovay ilustra a questão de forma especialmente clara. É mais do que provável que a imensa maioria dos eleitores que votaram no candidato Tiririca, eleito como o Deputado Federal mais votado do país, não tivessem conhecimento de que estariam ajudando a eleger também o candidato Protógenes Queiroz,

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portanto, é um sistema parcialmente aleatório ou, o que é pior, um sistema que

pode ser manipulado para a produção de resultados inteiramente desvinculados

da vontade que os eleitores pensam estar manifestando ao votar.

33. Ademais, o sistema de lista aberta tem produzido uma outra

distorção extremamente grave. Por conta do regime atual, cada candidato é

obrigado a fazer sua campanha individualmente, na medida em que precisa dos

votos pessoais para assegurar uma boa posição na lista partidária. Disso depende

sua chance real de ser eleito. Na verdade, os principais rivais de um candidato

passam a ser os seus companheiros de partido, especialmente os que apresentem

perfil semelhante, potencialmente atrativo para determinada faixa do eleitorado.

Tais candidatos travam, antes de tudo, uma disputa interna pela preferência desse

segmento de eleitores. O embate programático entre partidos fica em um distante

segundo plano.

34. Como é intuitivo, esse modelo aumenta exponencialmente o

custo das eleições, fazendo com que o poder econômico seja determinante para o

êxito eleitoral. Com a exceção de celebridades ou de pessoas muito ricas que

estejam dispostas a empenhar seu próprio capital, os candidatos com chances

reais serão, como regra, aqueles que forem capazes de obter a maior quantidade

de recursos para investir em uma campanha massiva, sobretudo na mídia. A

necessidade de arrecadar recursos cria um verdadeiro mercado de financiamento

de campanhas, em que as doações privadas podem ser condicionadas à promessa

de favorecimentos posteriores. O interesse em ocultar essas doações gera, por sua

vez, o famigerado caixa-dois. A rigor, mesmo doadores bem intencionados

podem ter interesse em não aparecer de forma ostensiva, a fim de evitar suspeitas

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     dada a existência de coligação entre os respectivos partidos. Não se trata de fazer um juízo de valor, positivo ou negativo, sobre esses dois candidatos ou quaisquer dos demais. O que o exemplo demonstra é o fato de que o atual sistema eleitoral cria a possibilidade de que o eleitor contribua, com o seu voto, para a eleição de candidatos com perfil inteiramente diverso ou mesmo oposto ao do seu candidato de preferência.

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sobre suas futuras relações institucionais com os mandatários que venham a ser

eleitos.

35. O sistema de lista desordenada exerce, portanto, um papel

central na reprodução dos desvios tradicionais do sistema político brasileiro. Daí

a importância de sua substituição. O sistema de lista fechada elimina a

competição entre candidatos do mesmo partido, que passam a se beneficiar

mutuamente. Isso permite que as campanhas sejam unificadas, reduzindo os

custos de forma drástica16 e quebrando a perversa lógica econômica do mercado

de financiamento eleitoral. Além disso, o foco das campanhas é naturalmente

deslocado para as diferenças programáticas entre os partidos, privilegiando o

caráter ideológico das eleições e não mais as disputas pessoais. Por fim, o

fortalecimento dos partidos tende a facilitar a formação de maiorias políticas de

sustentação do Governo e institucionaliza as relações de poder, ao diminuir a

possibilidade de barganha individual de apoio por cada parlamentar.

36. O argumento que se costuma opor a esse sistema é o risco de

dominação dos partidos pelas respectivas lideranças, reduzindo sua democracia

interna e dificultando o processo de renovação dos quadros. Sem entrar na

discussão sobre a existência do chamado caciquismo já no modelo atual, os

eventuais inconvenientes da mudança parecem ser superados, com ampla

margem de sobra, pelos benefícios que se podem razoavelmente esperar. De

parte isso – e sem prejuízo da possibilidade de se conceber mecanismos formais

para estimular a democracia interna dos partidos –, a dinâmica do sistema

obrigaria as lideranças a fazer concessões e buscar a formação de listas capazes

de disputar a preferência popular e resistir à critica dos partidos rivais, inclusive

para resguardar seu próprio interesse eleitoral.

                                                                                                                         16 É óbvio que continuará havendo estímulo à promoção pessoal por parte de cada candidato, inclusive por conta do interesse em obter destaque e alcançar posições de liderança na estrutura partidária. A despeito disso, a competição entre candidatos do mesmo partido é minimizada de forma drástica, uma vez que deixa de constituir o fator determinante para a eleição de um ou outro indivíduo.

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37. Por todos esses motivos, a Ordem dos Advogados do Brasil

elege a adoção do escrutínio de lista preordenada como prioridade em sua

proposta de reforma política.

IV. SISTEMA PARTIDÁRIO

1. Mecanismos para redução da infidelidade e da pulverização

partidárias

38. Os trabalhos do terceiro eixo temático foram presididos pela

Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha. O primeiro painel teve por objeto a

infidelidade partidária e a pulverização dos partidos políticos, propondo-se aos

expositores que discutissem fórmulas de atenuação. Falaram o Deputado Federal

Aldo Rebelo e os professores Cláudio Pereira de Souza Neto e André Marenco.

39. Em relação à infidelidade partidária, a Ordem dos

Advogados do Brasil considera que as regras aplicáveis às eleições proporcionais

que foram extraídas da Constituição pelo Tribunal Superior Eleitoral, e

confirmadas pelo Supremo Tribunal Federal, são satisfatórias e devem ser

mantidas. Sem prejuízo disso, nada impede que o Poder Legislativo, observando

tais diretrizes, confira tratamento legal à matéria, notadamente para disciplinar as

hipóteses excepcionais em que a troca de partido não deva ocasionar a perda de

mandato. Nessa mesma linha, é possível instituir uma janela para a troca livre de

partido ao final de cada legislatura, de modo a permitir que o detentor de

mandato possa concorrer a uma nova eleição por agremiação diversa.

40. No que concerne ao problema da pulverização dos partidos

políticos, a Ordem dos Advogados do Brasil apresenta duas alternativas, em

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ordem de preferência. A primeira seria a proibição de coligações nas eleições

proporcionais, de modo a fazer com que a eleição de um parlamentar dependesse

da capacidade do seu partido de superar, autonomamente, o quociente eleitoral.

Esse modelo teria a vantagem de permitir a formação de blocos representativos

verdadeiramente autênticos. Isso pelo fato de que ficaria excluída a possibilidade

de transferência de votos entre agremiações diversas para efeito de superação do

quociente, prática que tem permitido a sobrevivência artificial de partidos

totalmente inexpressivos.

41. A segunda opção seria a instituição de uma cláusula de

desempenho, condicionando o funcionamento partidário e o acesso pleno a

determinados benefícios – como a participação paritária na repartição do Fundo

Partidário e no tempo de propaganda eleitoral gratuita – à obtenção, pelo partido,

de pelo menos 1% dos votos válidos apurados nacionalmente na eleição para

Deputado Federal, distribuídos por um terço dos Estados-membros. Na

verificação do atendimento a esse critério seriam computados apenas os votos

dados ao próprio partido, desconsiderando-se eventuais coligações.

42. Veja-se que ambas as fórmulas seriam substancialmente

menos restritivas do aquela decorrente do art. 13 da Lei nº 9.096/95, que

condicionava o funcionamento partidário à obtenção de 5% dos votos válidos

apurados nacionalmente e de, no mínimo, 2% dos votos em 1/3 dos Estados17.

                                                                                                                         17 Lei nº 9.096/95, art. 13: “Tem direito a funcionamento parlamentar, em todas as Casas Legislativas para as quais tenha elegido representante, o partido que, em cada eleição para a Câmara dos Deputados obtenha o apoio de, no mínimo, cinco por cento dos votos apurados, não computados os brancos e os nulos, distribuídos em, pelo menos, um terço dos Estados, com um mínimo de dois por cento do total de cada um deles”. Contudo, nas eleições anteriores vigorava a norma transitória do artigo 57: “No período entre o início da próxima Legislatura e a proclamação dos resultados da segunda eleição geral subseqüente para a Câmara dos Deputados, será observado o seguinte: I - direito a funcionamento parlamentar ao partido com registro definitivo de seus estatutos no Tribunal Superior Eleitoral até a data da publicação desta Lei que, a partir de sua fundação tenha concorrido ou venha a concorrer às eleições gerais para a Câmara dos Deputados, elegendo representante em duas eleições consecutivas: a) na Câmara dos Deputados, toda vez que eleger representante em, no mínimo, cinco Estados e obtiver um por cento dos votos apurados no País, não computados os brancos e os nulos; b) nas Assembléias Legislativas e nas Câmaras de Vereadores, toda vez que, atendida a exigência do inciso anterior, eleger representante para a respectiva Casa e obtiver um total

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Como se sabe, tal previsão foi declarada inconstitucional pelo STF sob o

argumento de que impunha limitação excessiva – e, portanto, irrazoável – à

possibilidade de representação formal das minorias18.

43. A Ordem entende que os critérios ora propostos não

incorreriam na mesma crítica. A instituição de cláusulas de desempenho – com

requisitos até mais severos – é um mecanismo amplamente utilizado no Direito

comparado para conter a multiplicação de partidos, com prejuízos à

governabilidade e à própria formação de um debate político consistente e

inteligível19. Um partido que não seja capaz de obter a adesão de sequer 1% do

eleitorado não pode ser considerado representativo de um movimento político

nacional. O que não o impede de divulgar seus programas na tentativa de obter

novos adeptos, sobretudo em um ambiente de plena liberdade democrática e

caracterizado pelo surgimento de formas de comunicação massificada de

baixíssimo custo, especialmente no âmbito da internet.

2. Financiamento público de campanhas

44. O último painel do seminário foi dedicado ao tema do

financiamento público de campanhas. Falaram o Deputado Federal José Eduardo

Cardozo, o jurista Alexandre Kruel Jobim e o professor Lúcio Rennó.

45. A Ordem dos Advogados do Brasil apóia, em linha de

princípio, o financiamento exclusivamente público de campanhas. Tal sistema

pressupõe necessariamente a adoção combinada do escrutínio por lista

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     de um por cento dos votos apurados na Circunscrição, não computados os brancos e os nulos”. 18 STF, DJ 30 mar. 2007, ADIn 1306/DF, Rel. Min. Marco Aurélio. 19 A título de exemplo, assim é na Espanha, que adota o sistema proporcional e a cláusula de barreira de 3% dos votos nacionais, e na Suécia, em que a cláusula de barreira é de 4%. Mas muitos países que adotam o sistema distrital ou o distrital misto também possuem cláusula de barreira. Na Alemanha, que possui um sistema distrital misto, exige-se do partido a obtenção de, no mínimo, 5% do total de votos nacionais, ou pelo menos, três candidatos distritais.

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preordenada, tanto pela necessidade de se reduzir drasticamente o custo das

campanhas, como para evitar que recursos do Erário financiem uma disputa

mercadológica entre candidatos do mesmo partido. A posição da Ordem baseia-

se nos seguintes fundamentos.

46. A conjugação de campanhas milionárias e financiamento

privado tem produzido resultados desastrosos para a autenticidade do processo

eleitoral e para a transparência das relações entre o Poder Público e os agentes

econômicos. Embora interligados, cada um desses problemas justifica um

comentário específico. Em primeiro lugar, as campanhas assumiram um custo

proibitivo, afastando da política os candidatos que não disponham dos recursos

necessários. O financiamento exclusivamente público, combinado com a lista

preordenada, reduziria os custos e produziria um novo equilíbrio na disputa

eleitoral, além de favorecer a disputa ideológica. Em segundo lugar, a influência

dos agentes econômicos na arena parlamentar seria reduzida, afastando-se o risco

de que as doações de campanha venham a se converter em favorecimentos

indevidos por parte do Poder Público.

47. Contra essa proposta, dois argumentos de forte conteúdo

persuasivo costumam ser levantados: (i) o risco de perpetuação do caixa-dois e

de fraudes diversas; e (ii) o aumento da despesa pública, e justamente para

financiar atividades que a população enxerga com ceticismo. Um olhar atento

perceberá, porém, que ambas as objeções são superáveis. Quanto ao primeiro

aspecto, é preciso ter em conta que os desvios poderão ocorrer, como já ocorrem,

mas o controle tenderá a ser muito mais eficaz. Com a limitação drástica do custo

das campanhas lícitas, a ilicitude será mais facilmente detectável e haverá

interesse dos partidos na fiscalização recíproca.

48. A segunda objeção é refutada quando se constata o enorme

custo da corrupção. Tanto no sentido imaterial – custo político e democrático –,

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dado o falseamento da representação popular, quanto no sentido puramente

contábil. Não é incomum que os financiadores privados condicionem suas

contribuições, especialmente as ocultas, à obtenção de vantagens indevidas,

beneficiando-se muitas vezes de licitações viciadas e verbas orçamentárias sem

controle adequado.

49. Por fim, deve-se considerar, igualmente, que o Erário não

financiaria as atuais campanhas milionárias, mas sim um processo eleitoral bem

mais enxuto. Ainda assim, é certo que o impacto orçamentário seria elevado.

Uma das propostas atualmente em discussão sugere que o montante de recursos a

ser transferido aos partidos seja calculado na base de R$ 7,00 (sete reais) por

eleitor inscrito. Considerando os números das eleições de 2010, o custo total teria

ficado, portanto, na casa dos 950 milhões de reais20.

50. Embora extremamente expressivo, esse valor deve ser

colocado em perspectiva. Estudo recente da FIESP – Federação das Indústrias do

Estado de São Paulo, amplamente divulgado, sugere que o custo anual da

corrupção no Brasil varia entre 41,5 e 61,9 bilhões de reais21. Ainda que se trate

de uma estimativa e que seja difícil estimar o percentual da perda que poderia ser

evitado com o fim do atual mercado de financiamento eleitoral, parece bastante

realista assumir que os custos do sistema seriam justificados inclusive sob o

ponto de vista pragmático.

51. Por eventualidade, seria possível discutir um modelo de

financiamento predominantemente público, admitindo-se doações de pessoas

                                                                                                                         20 Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral, referentes às Eleições de 2010, o Brasil possui 135.804.433 eleitores. 21 Ainda segundo o mesmo estudo, as perdas equivalem a um montante que varia entre 1,38% e 2,3% do PIB. Caso a corrupção fosse reduzida a patamares comparáveis aos dos países desenvolvidos, estima-se que o PIB per capita médio no período de 1990 a 2008 teria sido 15,5% maior, subindo de US$ 7.954 para US$ 9.184. As informações, baseadas em dados de 2008, podem ser consultadas em: http://www.dgabc.com.br/News/5810714/custo-da-corrupcao-no-brasil-chega-a-r$-69-bi-por-ano.aspx. Acesso em 28 de novembro de 2010.

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físicas, com limitação rigorosa de valores e fixação de um teto para os gastos por

campanha. Essa fórmula adicionaria alguma complexidade ao processo de

fiscalização a cargo da Justiça Eleitoral – ainda sensivelmente menor do que a se

observa no modelo atual –, mas teria a vantagem de permitir o engajamento dos

cidadãos na política também pela forma de contribuições financeiras,

privilegiando a liberdade de expressão em sentido lato. A prevalecer essa opção,

o essencial é que o montante admissível de recursos privados não seja suficiente

para perpetuar as disfunções do sistema atual.

V. CONCLUSÃO: SÍNTESE DAS PROPOSTAS APRESENTADAS PELA ORDEM DOS

ADVOGADOS DO BRASIL

52. A seguir, em proposições objetivas, a síntese das propostas

apresentadas pela Ordem dos Advogados do Brasil, enunciadas em ordem de

prioridade, tendo por critério o nível de apoio obtido nos debates internos.

1. Adoção do sistema de lista partidária preordenada ou

fechada;

2. Financiamento público das campanhas eleitorais, ficando

aberta ao debate subsequente a possibilidade de

contribuições privadas de pessoas físicas, com limite

máximo de contribuição por doador, bem como com

fixação de gasto máximo por campanha;

3. Fidelidade partidária, na linha já estabelecida por decisão

do Supremo Tribunal Federal, com a instituição de uma

janela de curto período para a mudança de partido

anteriormente à cada eleição;

4. Proibição de coligações nas eleições proporcionais ou

instituição de cláusula de desempenho;

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5. Adoção do sistema de voto distrital misto, segundo a

fórmula descrita;

6. Atenuação do sistema presidencialista vigente no Brasil,

com a introdução de elementos do chamado

semipresidencialismo.

Este o relatório que submeto à elevada consideração do

Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

Brasília, 6 de dezembro de 2010.

LUÍS ROBERTO BARROSO