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INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO - FUNDAMENTOS DE UMA DOGMÁTICA CONSTITUCIONAL TRANSFORMADORA LUÍS ROBERTO BARROSO Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Master of Laws pela Yale Law School. Procurador do Estado e Advogado no Rio de Janeiro. 3ª edição 1999 Editora Saraiva ÍNDICE GERAL Abreviaturas IX Um prefácio afinal desnecessário XI Registros XXI INTRODUÇÃO 1. A interpretação. Generalidades 2. Apresentação do tema 3. Plano de trabalho 6 PARTE 1 A DETERMINAÇÃO DA NORMA APLICÁVEL Introdução CONFLITOS DE NORMAS NO ESPAÇO E NO TEMPO Capítulo 1 A CONSTITUIÇÃO E O CONFLITO DE NORMAS NO ESPAÇO. DIREITO CONSTITUCIONAL INTERNACIONAL 1. O tratado internacional e a Constituição 2. A norma estrangeira e a Constituição a) A norma estrangeira e a Constituição de origem b) A norma estrangeira e a Constituição brasileira Capítulo II A CONSTITUIÇÃO E O CONFLITO DE NORMAS NO TEMPO. DIREITO CONSTITUCIONAL INTERTEMPORAL 1. A Constituição nova e a ordem constitucional anterior 2. Emenda constitucional e Constituição em vigor 3. Constituição nova e direito infraconstitucional anterior 4. Algumas questões de direito intertemporal suscitadas pelo advento de uma nova Constituição a) Inexistência de inconstitucionalidade formal superveniente b) Aplicação imediata, mas não retroativa, da Constituição nova c) Declaração de inconstitucionalidade e efeito repristinatório d) Situações processuais específicas e) Normas infraconstitucionais não recepcionadas pela Constituição de 1988 PARTE II A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL Capítulo I OS MÉTODOS E CONCEITOS CLÁSSICOS APLICADOS À INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 1. Introdução 2. Peculiaridades das normas constitucionais 3. Conceitos, classificações e métodos clássicos de interpretação a) Subjetivismo e objetivismo. O originalismo nos Estados Unidos b) Interpretação constitucional legislativa, administrativa, judicial, doutrinária e autêntica c) Interpretação declarativa, restritiva e extensiva d) Os métodos ou elementos clássicos de interpretação I - A interpretação gramatical II - A interpretação histórica III - A interpretação sistemática

Luis Roberto Barroso - Direito Constitucional

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  • INTERPRETAO E APLICAO DA CONSTITUIO - FUNDAMENTOS DE UMA DOGMTICA CONSTITUCIONAL TRANSFORMADORA LUS ROBERTO BARROSO Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Master of Laws pela Yale Law School. Procurador do Estado e Advogado no Rio de Janeiro. 3 edio 1999 Editora Saraiva NDICE GERAL Abreviaturas IX Um prefcio afinal desnecessrio XI Registros XXI INTRODUO 1. A interpretao. Generalidades 2. Apresentao do tema 3. Plano de trabalho 6 PARTE 1 A DETERMINAO DA NORMA APLICVEL Introduo CONFLITOS DE NORMAS NO ESPAO E NO TEMPO Captulo 1 A CONSTITUIO E O CONFLITO DE NORMAS NO ESPAO. DIREITO CONSTITUCIONAL INTERNACIONAL 1. O tratado internacional e a Constituio 2. A norma estrangeira e a Constituio a) A norma estrangeira e a Constituio de origem b) A norma estrangeira e a Constituio brasileira Captulo II A CONSTITUIO E O CONFLITO DE NORMAS NO TEMPO. DIREITO CONSTITUCIONAL INTERTEMPORAL 1. A Constituio nova e a ordem constitucional anterior 2. Emenda constitucional e Constituio em vigor 3. Constituio nova e direito infraconstitucional anterior 4. Algumas questes de direito intertemporal suscitadas pelo advento de uma nova Constituio a) Inexistncia de inconstitucionalidade formal superveniente b) Aplicao imediata, mas no retroativa, da Constituio nova c) Declarao de inconstitucionalidade e efeito repristinatrio d) Situaes processuais especficas e) Normas infraconstitucionais no recepcionadas pela Constituio de 1988 PARTE II A INTERPRETAO CONSTITUCIONAL Captulo I OS MTODOS E CONCEITOS CLSSICOS APLICADOS INTERPRETAO CONSTITUCIONAL 1. Introduo 2. Peculiaridades das normas constitucionais 3. Conceitos, classificaes e mtodos clssicos de interpretao a) Subjetivismo e objetivismo. O originalismo nos Estados Unidos b) Interpretao constitucional legislativa, administrativa, judicial, doutrinria e autntica c) Interpretao declarativa, restritiva e extensiva d) Os mtodos ou elementos clssicos de interpretao I - A interpretao gramatical II - A interpretao histrica III - A interpretao sistemtica

  • IV - A interpretao teleolgica e) Integrao da vontade constitucional. Analogia e costume consti- tucional 4. A interpretao constitucional evolutiva Captulo Ii PRINCPIOS DE INTERPRETAO ESPECIFICAMENTE CONSTITUCIONAL 1. Os princpios constitucionais como condicionantes da interpretao constitucional 2. Princpio da supremacia da Constituio 3. Princpio da presuno de constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Pblico 4. Princpio da interpretao conforme a Constituio 5. Princpio da unidade da Constituio 6. Princpios da razoabilidade e da proporcionalidade 7. Princpio da efetividade PARTE FINAL A OBJETIVIDADE DESEJADA EA NEUTRALIDADE IMPOSSVEL: O PAPEL DO INTRPRETE NA INTERPRETAO CONSTITUCIONAL Captulo I SABER JURDICO CONVENCIONAL, TEORIA CRTICA DO DIREITO E DIREITO ALTERNATIVO. A SNTESE NECESSRIA 1. Introduo 2. A teoria crtica 3. O direito alternativo 4. Objetividade e neutralidade. Os limites do possvel Captulo Ii CONCLUSES ndice onomstico ndice alfabtico-remissivo Bibliografia ABREVIATURAS ADCT - Ato das Disposies Constitucionais Transitrias ADIn - Ao Direta de Inconstitucionalidade AgI - Agravo de Instrumento AgRg - Agravo Regimental AJCL - American Journal of Comparative Law AJIL - American Journal of International Law BVerfGE - Entscheidungen des Bundesverfassungsgericht DJU - Dirio de Justia da Unio Embgs - Embargos ILM - International Legal Materiais MI - Mandado de Injuno ML - Medida Liminar MS - Mandado de Segurana QO - Questo de Ordem RDA - Revista de Direito Administrativo RE - Recurso Extraordinrio Rep - Representao de Inconstitucionalidade REsp - Recurso Especial RILSF - Revista de Informao Legislativa do Senado Federal RF - Revista Forense RMS - Recurso em Mandado de Segurana RT - CDC e CP - Revista dos Tribunais - Cadernos de Direito Constitucional e Cincia Poltica RTDP - Revista Trimestral de Direito Pblico

  • RTJ - Revista Trimestral de Jurisprudncia STF - Supremo Tribunal Federal STJ - Superior Tribunal de Justia TFR - Tribunal Federal de Recursos UM PREFCIO AFINAL DESNECESSRIO Estas palavras no pretendem ser um prefcio que merea o nome. No que alimentasse a presuno de oferecer um desses prefcios densos e eruditos, que, s vezes, dissimulam a ambio de competir com a obra que apresentam. Honrado, porm, pelo convite do autor para prefaciar a publicao da tese - que lhe deu as merecidas galas de Professor Titular da Uni- versidade do Estado do Rio de Janeiro - e verdadeiramente impressio- nado com a excelncia do trabalho, cheguei a cogitar, guisa de pref- cio, de dar um testemunho: aos sete anos de cotidiana interpretao cons- titucional por dever de ofcio, pensei aproveitar o tema e dar conta do mtodo e dos motivos de votar de um juiz do Supremo Tribunal Federal. Ao menos, dos motivos conscientes e racionais. Que os outros - supe- rado, embora, o mito ingnuo ou mistificador da interpretao neutra (e no apenas imparcial) - so, de regra, indevassveis: no que os queira ocultar o intrprete, mas porque, na grande maioria das vezes, ele prprio o primeiro a ignor-los. Na Parte Final deste livro, disse-o o autor, de modo irretocvel: "Idealmente, o intrprete, o aplicador do direito, o juiz, deve ser neutro. E mesmo possvel conceber que ele seja racionalmente educado para a compreenso, para a tolern- cia, para a capacidade de entender o diferente, seja o homos- sexual, o criminoso, o miservel ou o mentalmente deficien- te. Pode-se mesmo, um tanto utopicamente, cogitar de libert- lo de seus preconceitos, de suas opes polticas pessoais e oferecer-lhe como referncia um conceito idealizado e assptico de justia. Mas no ser possvel libert-lo do pr- prio inconsciente, de seus registros mais primitivos. No h como idealizar um intrprete sem memria e sem desejos. Em sentido pleno, no h neutralidade possvel". Frustrou-se o intento do depoimento pessoal, atropelado pelas tur- bulncias da presidncia do Tribunal e das dimenses inditas da crise do Judicirio, que venho tentando discutir sem preconceitos. E ainda pela certeza de que nenhuma contribuio justificaria retardar ainda mais a publicao de estudo to significativo. Este livro, cuja apresentao a amizade de Lus Roberto Barroso me entregou, consolida a inscrio do conjunto da sua obra, fruto da juventude ainda vigente, no rol das melhores produes da teoria cons- titucional brasileira. O trabalho premiado do estudante O problema da federao (Forense, 1982) - que o grande Seabra Fagundes, no prefcio, no he- sitou em saudar como "dos melhores j escritos sobre o regime federal no Brasil" prenunciava os marcos caractersticos do jurista consagrado de hoje: o domnio seguro dos princpios, da histria e da dogmtica constitucional, sem asfixia do compromisso com o seu Pas e o seu povo. Vem dessa poca a nossa aproximao pessoal, na militncia da OAB, ao tempo em que, "sobre o crepsculo do autoritarismo, incidem as primeiras frestas de claridade" (O problema da federao, cit., p. XII). 1. Prmio Cndido de Oliveira Neto, 1980, da OAB-RJ. J em 1989 - entremeando-se na srie de trabalhos menores, no entanto, de valor indiscutvel (assim, p. ex., Igualdade perante a lei, de

  • 1985, Revista de Direito Pblico, 78:65, e A crise econmica e o direito constitucional, de 1993, Revista Forense, 323:83) - completa o autor a verso original de sua tese de livre-docncia -A fora normativa da Cons- tituio. Elementos para a efetividade das normas constitucionais - a qual, ampliada e atualizada, foi divulgada em duas edies, como ttulo definitivo - O direito constitucional e a efetividade de suas normas - e o subttulo que trai o engajamento do terico - Limites e possibilida- des da Constituio brasileira (Renovar, 1991 e 1993). Na primeira das edies, a veemente divergncia com a minha pos- tura restritiva nos leading cases acerca da natureza e das potencialidades dogmticas do mandado de injuno - tal como institudo e disciplina- do (e muito mal) pela Constituio - valeu-me, na transcrio de uma ementa, o epteto de ser uma "pena ilustre - outrora progressista" (O direito constitucional e a efetividade de suas normas, cit., p. 179), ex- presses abrandadas, com sutileza, na edio seguinte (O direito consti- tucional e a efetividade de suas normas, cit., p. 183). A impiedade da crtica do amigo - que assim aparentemente me compelia retirada do crculo dos "progressistas", onde h anos o rece- bera - nem afetou a amizade, nem alterou o juzo extremamente posi- tivo sobre o trabalho. 2. Juzo positivo, alis, que j nem poderia dissimular: da leitura dos originais da tese, dela extrara citao, precedida de referncia elogiosa, que erigira em um dos pilares da fundamentao do voto em que tomara posio na polmica - MI 107 (QO), Moreira Alves, RTJ, 133:11, 50. De qualquer sorte, at por vaidade intelectual, no ousaria retratar- me dos justos encmios ao estudo: a verdade que - aps o clssico de Jos Afonso da Silva sobre a eficcia jurdica das normas constitucio- nais - a monografia de Barroso, em torno dos caminhos possveis para a efetividade (ou eficcia social) da Constituio, deu novas dimenses, no Brasil, ao esforo para vencer a paralisia das inovaes constitucio- nais contra a resistncia sua realizao de parte dos interesses criados. 3. Jos Afonso da Silva,Aplicabilidade das normas constitucionais, Revista dos Tribunais, 1968. Esta segunda tese, que hoje me orgulha apresentar, responde s mesmas inspiraes do jurista comprometido com a descoberta e a ex- plorao das potencialidades transformadoras da Constituio. Sua tnica a mesma da obra anterior, uma obsesso frtil com a efetividade da norma constitucional, expressa nesta passagem feliz, que traduz a declarada influncia de Konrad Hesse: "O malogro do constitucionalismo, no Brasil e alhu- res, vem associado falta de efetividade da Constituio, de sua incapacidade de moldar e submeter a realidade so- cial. Naturalmente, a Constituio jurdica de um Estado condicionada historicamente pelas circunstncias concre- tas de cada poca. Mas no se reduz ela mera expresso das situaes de fato existentes. A Constituio tem uma existncia prpria, autnoma, embora relativa, que advm de sua fora normativa, pela qual ordena e conforma o contex- to social e poltico. Existe, assim, entre a norma e a rea- lidade, uma tenso permanente. neste espao que se definem as possibilidades e os limites do direito consti- tucional". Ou nesse pargrafo, irretocvel, que trai a segura apreenso do me- lhor da lgica de Kelsen: "No nvel lgico, nenhuma lei, qualquer que seja sua

  • hierarquia, editada para no ser cumprida. Sem embargo, ao menos potencialmente, existe sempre um antagonismo entre o dever-ser tipificado na norma e o ser da realidade social. Se assim no fosse, seria desnecessria a regra, pois no haveria sentido algum em impor-se, por via legal, algo que ordinria e invariavelmente j ocorre. precisamente aqui que reside o impasse cientfico que invalida a suposi- o, difundida e equivocada, de que o direito deve limitar- se a expressar a realidade de fato. Isso seria sua negao. De outra parte, certo que o direito se forma com elemen- tos colhidos na realidade, e seria condenada ao insucesso a legislao que no tivesse ressonncia no sentimento so- cial. O equilbrio entre esses dois extremos que conduz a um ordenamento jurdico socialmente eficaz". 4. A Hans Kelsen, contudo, a obra reserva, depois (Parte Final, cap. 1, n. 1), um tratamento injusto e incide na assimilao, tambm difundida mas equivocada, entre o normativismo da Teorhia Pura - que tem um dos seus pontos fortes na revelao do carter tambm criador das etapas sucessivas de aplicao do direito, at a sentena, inclusive (cf., p. ex., Teora general del derecho y del Estado, trad., Mxico, 1949, p. 137 e s.) - e o formalismo dos exegetas, este, sim, que parte da premissa de "que a atividade do intrprete se desenvolve por via de um processo dedutivo, de mera subsuno do fato norma", de sentido supostamente inequvoco: permita-me o autor a crti- ca ligeira, que, por fora do contraste, realar os muitos elogios. O tema agora eleito - Interpretao e aplicao da Constituio de trato freqentemente negligenciado, quando no enfadonhamente repetitivo, seguramente no uma promessa, necessariamente mistificadora. de ensinar caminhos sem desvios nem alternativas para a soluo pretensamente unvoca de todo e qualquer problema constitucional. Ao contrrio, o subttulo da tese - Fundamentos de uma dogmtica constitucional transformadora - desvela o engajamento progressista do autor, que o pargrafo final do estudo corajosamente renova: "O constituinte invariavelmente mais progressista que o legislador ordinrio. Tal fato d relevo s potencialidades do direito constitucional, e suas possibilidades interpretativas. Sem abrir mo de uma perspectiva questionadora e crtica, poss- vel, com base nos princpios maiores da Constituio e nos valores do processo civilizatrio, dar um passo frente na dogmtica constitucional. Cuida-se de produzir um conheci- mento e uma prtica asseguradores das grandes conquistas histricas, mas igualmente comprometidos com a transfor- mao das estruturas vigentes. O esboo de uma dogmtica autocrtica e progressista, que ajude a ordenar um pas capaz de gerar riquezas e distribu-las adequadamente". Essa audaciosa declarao de compromisso do autor com a "transformao das estruturas vigentes" no seria de celebrar se se tratasse apenas de mais uma dessas tentativas, to comuns na rea do direito pblico, de vender crenas ideolgicas dessa ou daquela co- lorao como solues de dogmtica constitucional, de simulada neutralidade cientfica. Certo, Lus Roberto Barroso denuncia com razo que "a idia de neutralidade do Estado, das leis e de seus intrpretes, divulgada pela

  • doutrina liberal-normativista, toma por base o status quo e, por isso, s reputa neutra a deciso ou a atitude que no afeta nem subverte as distribuies de poder e riqueza existentes na sociedade". verdade tambm que no receou enfrentar preconceitos e resga- tar, da superficialidade da rplica que si opor-lhe a crtica reacionria, os aspectos positivos da "teoria crtica do direito" e do movimento do "direito alternativo". No obstante, a obra repele decididamente a pregao dos que, a partir da "impossibilidade da objetividade plena" - dado o inextirpvel coeficiente de subjetividade que toda interpretao contm -, renun- ciam na sua prtica busca da "objetividade possvel". Da, o trao antolgico da linha de equilbrio que prope: "A impossibilidade de chegar-se objetividade plena no minimiza a necessidade de se buscar a objetividade possvel. A interpretao, no apenas no direito como em outros domnios, jamais ser uma atividade inteiramente discricionria ou puramente mecnica. Ela ser sempre o produto de uma interao entre o intrprete e o texto, e seu produto final conter elementos objetivos e subjetivos. E bom que seja assim. A objetividade traar os parmetros de atuao do intrprete e permitir aferir o acerto de sua deciso luz das possibilidades exegticas do texto, das regras de interpretao (que o confinam a um espao que, normalmente, no vai alm da literalidade, da histria, do sistema e da finalidade da norma) e do contedo dos princpios e conceitos de que no se pode afastar. A subje- tividade traduzir-se- na sensibilidade do intrprete, que humanizar a norma para afeio-la realidade, e permiti- r que ele busque a soluo justa, dentre as alternativas que o ordenamento lhe abriu. A objetividade mxima que se pode perseguir na interpretao jurdica e constitucional a de estabelecer os balizamentos dentro dos quais o apli- cador da lei exercitar sua criatividade, seu senso do razoa- vel e sua capacidade de fazer a justia do caso concreto". A essa orientao o autor consegue manter-se invariavelmente fiel, custa da rejeio coerente tentao dos desvios de todas as bandas. Assim, de um lado, na trilha do seu mestre, o notvel Jos Carlos Barbosa Moreira volta a denunciar a lgica predileta dos reacionrios, "uma das patologias crnicas da hermenutica constitucional brasileira, que a interpretao retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele no inove nada, mas, ao revs, fique to parecido quanto possvel com o antigo". Repele, no entanto, com igual vigor, o "charlatanismo constitucio- nal", merc do qual, com freqncia, intrpretes politicamente compro- metidos - includos alguns dos nossos - forcejam por ignorar princ- pios elementares e limites intransponveis da dogmtica do ordenamento positivo, busca de uma falsa legitimao jurdica para suas posies. Essa fidelidade dignidade cientfica da interpretao constitucio- nal, sem prejuzo da criatividade e do compromisso com a transforma- o, na medida em que dogmaticamente viveis, responde pelo nvel de altiplano, sem depresses, que o livro mantm, do comeo ao fim. impossvel, contudo, no assinalar alguns pontos da obra, cuja particular cintilao a singulariza, no panorama de hoje da nossa doutri- na constitucional. Entre eles, toda a Parte I - A determinao da norma aplicvel -, que, salvo engano, pela sistemtica do trato dos conflitos das normas constitucionais no tempo e no espao, no encontra paralelo em nossa

  • literatura. Nela, ganha realce a precisa anlise da questo, quase inexplorada, da legitimidade e dos limites do controle, no foro brasileiro, da validade da norma estrangeira a aplicar, quer perante a Constituio de origem, quer perante a prpria Constituio do Brasil, cujas normas, em passa- gem de grande felicidade, o autor insere na "ordem pblica internacio- nal". So pginas mpares. De relevar tambm todo o captulo destinado a enfatizar o decisi- vo papel dogmtico dos princpios constitucionais - "normas eleitas pelo constituinte como fundamentos e qualificaes essenciais da or- dem jurdica que instituem" -, os quais - assinala o autor, reafirman- do sua postura fundamental -, por sua generalidade, abstrao e capa- cidade de expanso, permitem muitas vezes ao intrprete "superar o legalismo estrito e buscar no prprio sistema a soluo mais justa", mas, a um s tempo, "funcionam como limites interpretativos mximos, neu- tralizando o subjetivismo voluntarista dos sentimentos pessoais e das convenincias polticas, reduzindo a discricionariedade do legislador e impondo-lhe o dever de motivar seu convencimento". Exemplar igualmente, dentro da mesma diretiva metodolgica, nos tpicos que se ocupam dos princpios especficos da interpretao constitucional, a explorao das potencialidades do "princpio da razoabilidade" e a definio dos marcos do seu espao legtimo de incidncia. S duas palavras a mais. Vai a primeira para o cuidado da tese com a pesquisa e a anlise da jurisprudncia constitucional brasileira, que a obra de nossos especia- listas, a exemplo do que sucede nos demais ramos do direito, tende sim- plesmente a ignorar. O escamoteamento da jurisprudncia pela doutrina, entretanto, de todo indesculpvel. No que se pretenda impor ao terico a submis- so ao entendimento dos tribunais - acentuei, ao prefaciar outra obra recente: o que no leal, sobretudo para o leitor jovem, no dar conta dele e transmitir, como verdades apodticas, opinies diametralmente opostas a quanto se tem decidido - certo ou errado, no importa - na vivncia cotidiana, na Justia, da lei e da Constituio. 5. Jos Tarcisio de Almeida Melo, Direito constitucional brasileiro, Del Rey, 1996, prefciu. auspicioso verificar que essa tendncia tradicional est sendo su- perada por alguns dos melhores nomes da nova gerao de publicistas brasileiros. 6. Cf., a partir de Jos Celso de Melo Filho (Constituio Federal anotada, Saraiva, 1986) e de Gilmar F. Mendes (Controle de constitucionalidade, Saraiva, 1990, e Jurisdio constitucional - controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha, Saraiva, 1996), v. g., Clmerson M. Clve. A fiscalizao abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, Revista dosTribunais, 1995; Nagih Slaibi Filho, Ao declaratria de constitucionalidade, Forense, 1994; Elival S. Ramos. inconstitucionalidade das leis, Saraiva, 1994; Oscar Vilhena Vieira, Supremo Tribunal Federal - jurisprudncia poltica, Revista dos Tribunais, 1994; Joaquim Barbosa Gomes, La Cour Suprim dans le systme politique brsilien, alm de valiosos comentrios e crticas de decises determinadas,

  • e. g., Flvio Bauer Novelli, sobre o julgamento da ADIn 939, declaratria da inconstitucionalidade do art. 2, 2, da EC 3/93, RT - Cadernos de Direito Constitucional, 13:18. Entre eles, com esta tese, Lus Roberto Barroso se inseriu definiti- vamente com minuciosa ateno jurisprudncia constitucional do Pas, particularmente a do Supremo Tribunal, que analisa com preciso e cri- tica com agudeza, quando entende ser o caso. A transcrio de alguns trechos j dispensaria, a rigor, a ltima nota destas palavras, reservada para louvar a clareza e a limpidez do estilo, de elegncia tica, infenso a ouropis e berloques, sem conces- ses frase arrevesada, s metforas substitutivas de conceitos tcnicos e a tantos outros abominveis vcios de provinciano pedantismo, dos quais muitos de nossos juristas esto longe de libertar-se. Por tudo quanto foi dito, o melhor encerrar. Afinal, se o livro to bom e to bem escrito, j mais que hora de deixar que o leitor desavisado, que haja gasto seu tempo com esta apresen- tao desnecessria, entregue-se afinal ao prazer intelectual da sua leitura. Brasilia, maio de 1996. J. P. Seplveda Pertence REGISTROS Inmeras pessoas participaram deste projeto, com maior ou menor intensidade, em contribuies intelectuais e afetivas. Por evidente, ne- nhuma delas tem culpa no resultado. Ana Paula de Barcellos tem sido um adorvel anjo da guarda destes ltimos anos, com sua dedicao e talento. Lus Eduardo Barbosa Moreira prestou-me valiosa ajuda na pes- quisa dos materiais em italiano e reviu em mincia o texto final. Lcia Maria Lefebvre Fisher, de novo e sempre, foi a bibliotecria que tomou minha vida mais fcil e melhor. Devo, igualmente, ao Professor Osiris Cuadrat de Souza inmeras correes da primeira verso. Nelson Nascimento Diz, Mauro Fichtner Pereira e Joel Alves Andrade, advogados e pessoas notveis, foram interlocutores freqen- tes e gratificantes de minhas angstias e perplexidades. Os Professores Jos Carlos Barbosa Moreira, Milton Flaks, Joaquim Arruda Falco e Hlio Assuno honraram-me com a leitura dos originais e com suas crticas lcidas e proveitosas. O Professor Gustavo Tepedino tem sido companheiro e amigo constante de muitos caminhos, que vm desde o movimento estudantil e chegaro a um mundo melhor. Os Professores Doutores Caio Tcito, Raul Machado Horta, Jos Alfredo de Oliveira Baracho, Carlos Alberto Direito e Jacob Dolinger integraram a banca de concurso que me conferiu o grau de titular em Direito Constitucional, com nota mxima. A leitura atenta que fizeram de meu trabalho e as argies eruditas e instigantes valorizaram imen- samente a conquista. Partilho o ttulo, em profunda comunho afetiva, com a Professora Carmen Tiburcio, pelo estmulo, carinho e transcen- dente amizade de todos estes anos. Este trabalho dedicado T, que o acompanhou a cada passo, e Luna, que nasceu junto com ele. Nas madrugadas e fins de semana em que o escrevi, e por isto no pude estar com elas, reconheci-me no verso encantado de Jorge Luis Borges, uma linda declarao de amor: "Estar com voc ou no estar com voc a medida do meu tempo". Dezembro de 1995 LRB INTRODUO "Um texto, depois de ter sido separado do seu emissor e das circunstncias concretas da sua emisso, flutua no

  • vcuo de um espao infinito de interpretaes possveis. Por conseqncia, nenhum texto pode ser interpretado de acordo com a utopia de um sentido autorizado definido, original e final. A linguagem diz sempre algo mais do que o seu inacessvel sentido literal, que j se perdeu desde o incio da emisso textual." Umberto Eco 1. Umberto Eco, Les limites de linterprtation, 1992, p. 8. 1. A interpretao. Generalidades A Terra plana, e todos os dias o sol nasce, percorre o cu de ponta a ponta e se pe do lado oposto. Por muito tempo isto foi tido como uma obviedade, e toda a compreenso do mundo era tributria dessas pre- missas, Que, todavia, eram falsas. Desde logo, uma primeira constatao: as verdades, em cincia, no so absolutas nem perenes. Toda interpre- tao produto de uma poca, de uma conjuntura que abrange os fatos, as circunstncias do intrprete e, evidentemente, o imaginrio de cada um. Ao longo dos sculos, o homem tem recorrido mitologia, ao so- brenatural, ao pantesmo, f monotesta de diversos credos e obses- so do racionalismo. No necessariamente nessa ordem. Em instigante trabalho no qual procurou traar um paralelo entre a Fsica e o direito constitucional, Laurence Tribe dissertou sobre os trs grandes estgios da Fsica moderna, e como cada um deles influenciou a percepo do universo em geral. Newton trabalhou sobre a idia de que os objetos eram isolados e interagiam a distncia e utilizou-se de conceitos metafsicos como espao e tempo absolutos. A Fsica ps- newtoniana, marcada pela teoria da relatividade de Einstein, superou a fase do absoluto, divulgou a idia da curvatura do espao e de que todos os corpos interagem entre si. Por fim, com a Fsica quntica percebeu- se que a prpria atividade de observao e investigao interfere com os fatos pesquisados. Vale dizer: nem mesmo a mera observao neutra. 2. Laurence Tribe, The curvature of constitutional space: what lawyers can learn from modern physics, Harvard Law Review, 103:1, 1989. Ao longo do tempo, varia a percepo que o homem tem, no ape- nas do mundo sua volta, como tambm de si mesmo. Em passagen clssica, Sigmund Freud identificou trs momentos em que, pela mo da cincia, o homem se viu abalado em suas convices e mesmo en sua auto-estima. O primeiro golpe deveu-se a Coprnico, com a revela- o de que a Terra no era o centro do universo, mas apenas um mins- culo fragmento de um sistema csmico cuja vastido inimaginvel. O segundo golpe veio com Darwin, que atravs da pesquisa biolgica des- truiu o suposto lugar privilegiado que o homem ocuparia no mbito da criao e provou sua incontestvel natureza animal. O terceiro abalo, possivelmente o mais contundente, veio com o prprio Freud, criador da Psicanlise: a descoberta de que o homem no senhor absoluo sequer da prpria vontade, de seus desejos, de seus instintos. Seu psiquis- mo no dominado pela razo, mas pelo inconsciente. 3. Sigmund Freud, O pensamento vivo de Freud, 1985, p. 59. certamente possvel incluir neste elenco um outro golpe mais re- cente: o fiasco dos pases que se organizaram sob inspirao do marxis- mo e puseram em prtica o chamado socialismo real. A ideologia, que chegou a envolver quase metade da humanidade e cativou coraes e mentes por todo o mundo, representava um exerccio supremo do racionalismo e um esforo de criao de um novo homem. Um homem

  • que no seria predestinado pela fatalidade, pela providncia ou por seus prprios instintos, mas pela histria. Uma histria que poderia ser to- mada nas mos para promover uma sociedade igualitria, solidria e pretensamente universal, sem Estados, nacionalismos ou fronteiras. No faltam os que possam alegar que, desde a primeira hora, denuncia- ram a inviabilidade ou os desvios do modelo, no deixa de ser desolador para o esprito humano que tudo tenha acabado em secesso, desordem e fratricdio. O trabalho que a seguir se desenvolve parte da premissa consolida- da de que a interpretao no um fenmeno absoluto ou atemporal. Ela espelha o nvel de conhecimento e a realidade de cada poca, bem como as crenas e valores do intrprete, sejam os do contexto social em que esteja inserido, sejam os de sua prpria individualidade. 2. Apresentao do tema A interpretao constitucional no Brasil era um tema espera de um autor. Possivelmente continuar a ser. Este estudo, todavia, tem a ambio de identificar e sistematizar os elementos essenciais da teoria da interpretao aplicveis ao direito constitucional. No seu desenvolvi- mento, sem embargo da nfase dada realidade brasileira, procurou-se importar, seletivamente, com moderao e sentido crtico, o que de me- lhor havia no direito comparado sobre a matria. 4. Posteriormente publicao da 1 edio deste livro, em 1996, foram lanados outros trabalhos monogrficos acerca da interpretao constitucional, dentre os quais se destacam: Inocncio Mrtires Coelho, Interpretao constitucional, 1997; Uadi Lammgo Bulos, Manual de interpre- tao constitucional, 1997; Celso Ribeiro Bastos, Hermenutica e interpretao constitucional, 1997; Lenio Luiz Streck, Hermenutica jurdica e(m) crise: uma explorao hermenutica da construo do direito, 1999. Neste esforo, deu-se especial ateno bicentenria produo jurisprudencial da Suprema Corte norte-americana, bem como fecun- da atuao do Tribunal Constitucional Federal alemo em pouco mais de um quarto de sculo. Contudo, e naturalmente, reservou-se maior destaque para as decises do Supremo Tribunal Federal brasileiro, refe- ridas e reproduzidas com freqncia ao longo do texto, contrariando um velho hbito da doutrina de tratar a jurisprudncia, sobretudo a nacio- nal, com certo desdm. No se correu o risco, aqui, de ficar de frente para o mar, de costas para o Brasil. O trabalho que se segue no tem por objeto a filosofia da interpreta- o constitucional, nem tampouco pretende ser uma teoria geral sobre o tema. Ele se volta, predominantemente, para a atividade de realizao da vontade constitucional, e procura fundamentar, desenvolver e sistemati- zar o conhecimento necessrio a tal desiderato. Concentra-se, assim, no itinerrio intelectivo a ser percorrido no processo de interpretao da Cons- tituio, desde a determinao da norma aplicvel at o ato final de sua incidncia sobre o caso concreto, sem descurar do questionamento acerca do papel desempenhado pela subjetividade do prprio intrprete. A interpretao constitucional, como a interpretao em geral, no um fenmeno monoltico, singular. Ela essencialmente plural e com- porta nfase em aspectos diferentes. Em uma anlise cientfica, assim, possvel voltar a ateno, em primeiro lugar, para o sistema, isto , para o conjunto de normas, princpios e conceitos inerentes ao processo interpretativo. Pode-se, de outra parte, dar um papel destacado ao obje-

  • to, vale dizer, aos casos concretos, s situaes da vida, aos problemas que devem ser solucionados pela interpretao da norma. Por fim, possvel cogitar, ainda, de investigar o papel do sujeito da interpretao, voltando os olhos para os valores e a ideologia do intrprete e sua reper- cusso no produto de seu trabalho. Metodologicamente, portanto, possvel encarar a interpretao constitucional a partir do sistema, do primado da norma e da dogmtica jurdica tradicional, qual se adicionam particularidades exigidas pelo carter singular da Constituio. A interpretao constitucional, por via de conseqncia, uma espcie de interpretao jurdica, enriquecida por princpios e regras prprias. Este mtodo, que se pode identificar como mtodo hermenutico clssico, trata a Constituio como lei, e procura desenvolver sua fora normativa, sem embargo de dificuldades que a peculiar estrutura das normas constitucionais muitas vezes suscita. 5. Ernst-Wolfgang Bckenfrde (Escritos sobre derechos fundamentales, 1993) faz refe- rncia ao mtodo hermenutico clssico, que associa a Forsthoff (Rechtsstaat im Wandel, 1976), e dele distingue variaes de menor ou maior sutileza, como o mtodo hermenutico-concretizador, de Konrad Hesse (Grundzge des VerfassungsR der Bundesrepublik Deutschland. 1976) e F. Mller (Enzvklopdie der geisteswissenschaftichen Arbeitsmethoden, 1972), e o que denomina interpretao constitucional orientada s cincias da realidade, de Smend (Staatsrechtliche Abhandlungen, 1968). possvel, igualmente, optar por uma metodologia que valorize antes o objeto que motiva a interpretao, isto , o caso concreto ou o problema a ser resolvido. Nos pases onde vigora a tradio do common law, como nos Estados Unidos, a nfase da argumentao jurdica recai, precisamente, na discusso dos aspectos de fato da causa e na busca do precedente mais adequado, sem que exista, normalmente, a rigidez de uma norma taxativa emanada do sistema. Paralelamente ao case system norte-americano, desenvolveu-se entre os alemes a tpica, o chamado mtodo tpico aplicado aos problemas, pelo qual se sustenta o primado do problema sobre a norma jurdica e sobre o sistema, onde a interpreta- o se apresenta como um mtodo aberto de argumentao, indutivo e no dedutivo. Nele, a ordem jurdica apenas uma referncia, um dos argumentos, um dos topoi a serem levados em conta na soluo das situaes concretas. 6. Veja-se, por todos, em meio a vastssima bibliografia, o texto clssico de Karl Llewellyn, The case law system in America, Columbia Law Review, 88:989, 1988. 7. A obra fundamental sobre a tpica de Theodor Viehweg, Topik und Jurisprudenz, 1953. Vejam-se, tambm, H. Ehmke, Prinzipien der Verfassungsinterpretation, 1963; Ernst-Wolfgang Bckenfrde, Escritos sobre derechos fundamentales, cit., p. 19 e s.; Jos Antonio Estvez Araujo, La Constitucin como proceso y la desobediencia civil, 1994; Eduardo Garca de Enterra, Reflexiones sobre la ley y los principios generales del derecho, 1984. Em lngua portuguesa, v. Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, 1993, p. 404 e s. Por fim, possvel, na interpretao constitucional, voltar os olhos para

  • o papel do intrprete, as possibilidades de sua atuao e os limites de sua discricionariedade. Aqui de grande relevo o aporte trazido pela teoria cr- tica do direito e seus desdobramentos, notadamente no seu questionamento da onipotncia da dogmtica jurdica convencional e da funo ideolgica do direito e do intrprete. Abre-se, assim, um espao para a discusso da objetividade da norma e da neutralidade de seu aplicador, e do papel do direito como instrumento de conservao e de transformao. 8. V Michel Miaille, Introduo crtica ao direito, 1989; Carlos Maria Crcova e outros, Materiales para una teora crtica del derecho, s. d.; Luis Alberto Warat e Eduardo A. Russo, Interpretacin de la ley, 1988, v. 1. O presente estudo procurou, na medida do possvel, produzir a sn- tese necessria dessas perspectivas distintas. Sem deixar de reconhecer, contudo, que tanto a tpica quanto a crtica - bem como outras varia- es, que vo do sociologismo ao economicismo - so questionamentos do sistema legal, do saber jurdico tradicional, e no propostas que pos- sam erradic-lo ou desdenh-lo. Rejeitou-se, assim, o ceticismo terico de que o direito, tanto na sua dimenso cientfica quanto na normativa, no seja mais do que um instrumento assegurador do status quo e perpetuador de certas relaes de poder. Sem embargo da crtica histri- ca severa que se lhe possa fazer, inegvel a existncia de um amplo espao onde o direito pode ser no mero reflexo da realidade, mas uma fora capaz de conform-la e transform-la. Investiu-se, tambm, grande esforo na divulgao do conhecimen- to tradicional, na exibio dos mtodos clssicos de interpretao e na explorao dos princpios especficos de interpretao constitucional. preciso conhecer o direito posto. Tal preocupao poderia decorrer da advertncia de Umberto Eco de que, para violar regras ou opor-se a elas, importa, antes de tudo, conhec-las e, eventualmente, saber mostrar sua inconsistncia ou funo meramente repressiva. Mas a verdade que a ignorncia do que existe conduz antes ao preconceito do que atuao transformadora. 9. Umberto Eco, Como se faz uma tese, 1993, p. 48. O exame do caso brasileiro revela existirem amplas e generosas possibilidades exegticas no texto constitucional em vigor. O texto que se segue procura fornecer elementos, dentro do sistema jurdico, que permitam ao intrprete neutralizar certas perverses ideolgicas - suas ou do ordenamento -, realizando a justia do caso concreto. um es- foro em busca de uma dogmtica jurdica autocrtica e progressista. Mas, de qualquer modo, de uma dogmtica jurdica. 3. Plano de trabalho O estudo que aqui se empreende foi concebido em trs grandes par- tes, cada uma delas dividida em dois captulos. A Parte I cuida da deter- minao da norma aplicvel. Trata-se de investigao em tema normal- mente negligenciado pelos constitucionalistas. O primeiro momento de qualquer atividade interpretativa h de ser a determinao da norma ju- rdica a ser aplicada hiptese. Na interpretao constitucional, essa determinao poder ficar sujeita prvia soluo de conflitos entre normas provindas de fontes ou ordenamentos jurdicos distintos. Ser necessrio, por vezes, dirimir colises entre um tratado internacional e a Constituio nacional. Em outras situaes, sendo hiptese de aplica- o de direito estrangeiro por um juiz brasileiro, precisar ele confron- tar tal norma com o direito constitucional vigente, para aferir-lhe a vali- dade. Diversas possibilidades se abrem nesta matria, com carter emi- nentemente prtico e no apenas terico, como demonstra a farta juris-

  • prudncia levantada sobre o assunto. O captulo I, portanto, dedicado ao direito constitucional internacional. A determinao da norma aplicvel a uma dada hiptese concreta depender tambm, muitas vezes, da soluo de conflitos de natureza temporal. Quando da entrada em vigor de uma Constituio nova, fruto da atuao do poder constituinte originrio, ou de uma emenda consti- tucional, criada pelo constituinte derivado, indispensvel definir as relaes que se estabelecem entre esses novos textos e as normas constitucionais e infraconstitucionais anteriormente existentes. O cap- tulo II volta-se para o direito constitucional intertemporal, cuidando da vigncia de normas luz de novas disposies constitucionais, abran- gendo aspectos relacionados com a aplicao imediata e eventualmente retroativa da Constituio, com a inconstitucionalidade material e for- mal supervenientes, com existncia ou no de efeito repristinatrio quan- do da declarao de inconstitucionalidade da norma revogadora, dentre outros temas complexos. A Parte II do estudo tem por objeto a interpretao constitucional propriamente dita. No captulo I faz-se a apreciao dos conceitos e mtodos clssicos de interpretao jurdica aplicados interpretao constitucional. Analisam-se, assim, as singularidades das normas cons- titucionais que as distinguem das normas infraconstitucionais, bem como aspectos relativos determinao da vontade do constituinte e da au- tonomia assumida pelo texto constitucional uma vez posto em vigor. Percorrem-se, em seguida, as categorias em que se classifica a interpre- tao, inclusive constitucional, quanto origem (legislativa, adminis- trativa ou judicial), extenso (declarativa, extensiva ou restritiva) e quanto aos elementos tradicionais (gramatical, histrica, sistemtica e teleolgica). Em desfecho, estudam-se o costume e a analogia como mtodos integrativos das lacunas constitucionais, abrindo-se, ainda, um tpico especial para a interpretao evolutiva. O captulo II constitui o ncleo bsico do trabalho e consiste na siste- matizao e estudo dos princpios de interpretao especificamente consti- tucional. Nele, enfatiza-se, em primeiro lugar, a relevncia dos princpios constitucionais materiais como vetores de toda a atividade interpretativa da Constituio. Passa-se, logo aps, ao exame detalhado e individual de cada um dos princpios arrolados: supremacia da Constituio, presuno de constitucionalidade das leis e atos do Poder Pblico, interpretao confor- me Constituio, unidade da Constituio, razoabilidade-proporcio- nalidade, concluindo com o princpio da efetividade. A Parte Final do trabalho cuida da objetividade desejada e a neu- tralidade impossvel: o papel do intrprete na interpretao constitucio- nal. Analisa-se, ali, no captulo I, a teoria jurdica clssica ou tradicional e algumas formulaes que a questionaram, como a teoria crtica do direito e o movimento impropriamente designado de direito alternativo. Faz-se, nessa parte, ampla especulao sobre a norma como parmetro para a objetividade do direito e da atividade interpretativa, bem como sobre questes afetas neutralidade do intrprete. Encerrando o captu- lo, procura-se enfatizar a importncia de uma boa dogmtica constitucio- nal, que liberte o estudo do direito constitucional da retrica vazia e do discurso puramente poltico, sem densidade jurdica. A concretizao da Constituio, sua valorizao como documento jurdico, aproxima-a antes do processo do que da cincia poltica. Por derradeiro, no captulo II procura-se apresentar, esquematicamente, uma sntese das idias de- senvolvidas ao longo do estudo. Ao longo de todo o texto, nenhuma preocupao foi mais constante do que a que inspirou a bela passagem de Manuel Bandeira, em Itiner-

  • rio de Pasrgada, lembrada por Plauto Faraco de Azevedo, em sua Cr- tica dogmtica e hermenutica jurdica: "Aproveito a ocasio para jurar que jamais fiz um poe- ma ou verso ininteligvel para me fingir de profundo sob a especiosa capa de hermetismo. S no fui claro quando no pude". PARTE I - A DETERMINAO DA NORMA APLICVEL Introduo - CONFLITOS DE NORMAS NO ESPAO E NO TEMPO A ordem jurdica de cada Estdo constitui um sistema lgico, com- posto de elementos que se articulam harmoniosamente. No se amolda idia de sistema a possibilidade de uma mesma situao jurdica estar sujeita incidncia de normas distintas, contrastantes entre si. Justa- mente ao revs, no ordenamento jurdico no podem coexistir normas incompatveis. O direito no tolera antinomias. 1. Sobre antinomias e critrios para solucion-las, v. Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jurdico, 1990, p. 81 e s. Um dos critrios comumente utilizados para evitar as antinomias, solucionando o conflito entre normas, o critrio hierrquico: a norma superior prevalece sobre a inferior. Assim, pois, se a Constituio e uma lei ordinria divergirem, a Constituio que prevalece. Se um decreto regulamentar desvirtuar o sentido da lei, ser invlido nesta parte. Se a resoluo deixar de observar o teor do regulamento, no poder prevale- cer. E assim por diante. Um segundo critrio de que se vale o sistema normativo para selecio- nar a regra aplicvel, em meio a preceitos incompatveis, o da especia- lizao. Havendo, em relao a dada matria, uma regra geral e uma especial (ou excepcional), prevalece a segunda: lex specialis derogat generalis. 2. V. Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jurdico, cit., p. 81 e s. Existem, no entanto, duas espcies de conflitos de normas cuja solu- o, ao menos em princpio, no se socorre dos critrios hierrquico ou de especializao, mas, sim, de outro instrumental terico. So os conflitos de leis no espao e no tempo, cujo equacionamento percorre caminhos com- plexos e acidentados, que passam por diversos ramos do direito. As normas jurdicas positivas existentes no mundo no so univer- sais nem perptuas. Ao contrrio, cada Estado tem suas prprias leis, que emanam de sua soberania; e cada poca tem os seus prprios valo- res, que se consubstanciam em regras vigentes. Porque assim , as nor- mas variam infinitamente, no tempo e no espao, e so suscetveis de gerar conflitos diversos. 3. Haroldo Vallado, Direito internacional privado, 1974. v. 1, p. 4. Ordinariamente, determinada relao jurdica constituir-se-, pro- duzir seus efeitos e extinguir-se- sob a vigncia da mesma lei. E, nes- se caso, inexistir qualquer conflito de natureza temporal. Por igual, ser mais comum que uma relao jurdica tenha o seu nascimento e todo o seu ciclo de existncia no mbito do mesmo Estado, sendo regida, pois, por um nico sistema de normas. Inexistir, em tal hiptese, qual- quer conflito de natureza espacial. Todavia, ocasies existem em que essa relao sofre a incidncia de lei nova ou entra em contato com o ordenamento jurdico de outro Esta- do. Tais hipteses, alis, tornam-se mais corriqueiras por fora da mu- dana acelerada da tcnica e dos costumes - provocando a modifica- o das leis - aliada internacionalizao das atividades humanas, gerando obrigaes em que alguns de seus elementos (sujeitos, objeto,

  • fato jurdico) esto em conexo com Estdos diferentes. Pois bem: os conflitos de leis no tempo, que geralmente se observam no mbito de um mesmo sistema jurdico, so equacionados e resolvidos dentro de um domnio cientfico denominado direito intertemporal. Os conflitos de leis no espao, isto , os que exigem a definio de qual ordenamento jurdico reger a espcie, constituem objto do direito inter- nacional privado. Cada um deles tem princpios e regras peculiares, que, singularmente, no se aglutinam em um texto normativo nico, mas se espalham difusamente pelos diferentes documentos legais. 4. Nada obstante, existe uma especial concentrao dessas normas na Lei de Introduo ao Cdigo Civil. So de direito intertemporal os arts. 1, 2 e 6. So de direito internacional privado maior parte das normas remanescentes, notadamente do art. 7 em diante. O direito intertemporal e o direito internacional privado, cujas re- gras integram o chamado "sobredireito", desempenham papel de des- taque na misso do direito de assegurar a continuidade e a estabilidade das relaes jurdicas. Com efeito, funda-se o primeiro no princpio da no-retroatividade da lei e no respeito s situaes jurdicas preexistentes. De forma anloga, o direito internacional privado repousa sobre o prin- cpio da territorialidade, bem como no reconhecimento das situaes jurdicas constitudas no mbito de eficcia de uma lei estrangeira. 5. V.. Pontes de Miranda, Direito supra-estatal, direito interestatal, direito intra-estatal e sobredireito, in Estudos jurdicos em homenagem ao Professor Oscar Tenrio, 1977, p. 458. V. tambm Jacob Dolinger, Direito internacional privado; parte geral, 1994, p. 25: "Acima das nor- mas jurdicas materiais destinadas soluo dos conflitos de interesses, sobrepem-se as regras sobre o campo da aplicao destas normas. So as regras que compem o chamado sobredireito, que determinam qual a norma competente na hiptese de serem potencialmente aplicveis duas normas diferentes mesma situao jurdica". 6. Joo Baptista Machado, Lies de direito internacional privado, 1982, p. 9-10. Sem embargo do que foi dito acima, hipteses h de aplicao re- troativa e de aplicao extraterritorial do direito. A seguir se estudam os princpios, as regras e as excees que regem a aplicao das normas constitucionais no tempo e no espao. Captulo I - A CONSTITUIO E O CONFLITO DE NORMAS NO ESPAO. DIREITO CONSTITUCIONAL INTERNACIONAL Como ficou assentado, o direito internacional privado visa a solucio- nar o conflito de leis no espao, vale dizer, o entrechoque de normas que emanam de soberanias diferentes. Ele regula os fatos em conexo com leis autnomas e divergentes. A despeito da denominao imprecisa, sua atuao no se restringe ao campo do direito privado, estendendo-se a diferentes domnios do direito pblico, haja vista existirem conflitos potenciais entre normas constitucionais, penais, fiscais e financeiras dos diferentes Estados. 1. Sobre o tema, na literatura nacional mais recente, vejam-se, alm do livro de Haroldo Vallado, j citado, Jacob Dolinger, Direito internacional privado, cit.; Oscar Tenrio, Direito internacional

  • privado, 1976; Amilcar de Castro, Direito internacional privado, 1987; Irineu Strenger, Curso de direito internacional privado, 1978; Wilson de Souza Campos Batalha, Tratado de direito internacio- nal privado, 1977; e Agustinho Fernandes Dias da Silva, Introduo ao direito internacional privado, 1975. Na literatura internacional, so fontes de referncia clssicas as obras seguintes: Savigny, Trait de droit romain, 1855-1860; Story, Comentrios sobre el conflicto de las leyes, 1834; Pillet, Principes de droit international priv, 1903; Nyboyet, Trait de droit international priv franais, 1944; Ferrer Correia, Lies de direito internacional privado, 1963; Battifol e Lagarde, Droit international priv, 1981-1983. 2. Haroldo Vallado, Direito internacional privado, cit., p. 4, e Oscar Tenrio, Direito inter- nacional privado, cit., p. 13. Existe vasta controvrsia acerca do objeto do direito internacional privado, no sendo esta a sede prpria para reedit-la. Conforme o pas ou o autor, tem sido includo no domnio do direito internacional privado o estudo da nacionalidade, da condio jurdica do estrangeiro, da teoria dos direitos adquiridos, do conflito de jurisdio e do reconhecimento de sentenas estrangeiras. H consenso, todavia, em que a soluo do conflito de leis sua principal razo de existir. V. amplo levantamento sobre o tema em Jacob Dolinger, Direito internacional privado, cit., p. 1 e s. 3. A denominao direito internacional privado foi utilizada pela primeira vez por Joseph Story (Comentrios sobre el conflicto de las leyes, cit., p. 12) e adotada na Frana por M. Foelix (Trait du droit International priv ou du conflit des lois de difrentes nations, en matire de droit priv, 1843). Embora se mantenha fiel denominao tradicional, a doutrina unnime em condenar o termo internacional o direito internacional privado predominantemente interno e no disciplina relaes entre naes - e o termo privado, j que abrange conflitos regidos pelo direito pblico, sendo o seu prprio papel de soluo de conflitos de leis de natureza eminentemen- te pblica. O direito internacional privado abrange os conflitos de leis, sem qual- quer cogitao a respeito da natureza das normas da diviso clssica. Seu papel no o de formular a regra que vai reger o caso concreto, mas, sim, indicar, dentre as normas que dispem diferentemente sobre uma mesma matria, qual dever prevalecer em uma dada situao. Por tal razo, diz-se que as normas de direito internacional privado so indiretas. 4. Oscar Tenrio, Direito internacional privado, cit., p. 13. 5. V. Jacob Dolinger, Direito internacional privado, cit., p. 48: "Estas normas do Direito Internacional Privado apenas indicam qual, dentre os sistemas jurdicos de alguma forma ligados

  • hiptese, deve ser aplicado". O autor refere, tambm, alguns casos em que, excepcionalmente, a regra de direito internaional privado ter carter direto, substancial. As regras de direito internacional privado so, normalmente, dispo- sies de direito interno, de vez que cada ordenamento jurdico estabe- lece suas prprias regras de soluo de conflitos. Tais preceitos, que se denominam regras de conexo, indicam qual dos ordenamentos jurdi- cos em contato com uma dada relao dever prevalecer e disciplin-la. Paralelamente a isso, e ingressando em faixa de intensa conexo com o direito internacional pblico, existem normas que no so cria- das pelo rgo legislativo interno, mas, sim, resultam de acordos entre Estados: so os tratados e convenes internacionais. Surge, a, nova possibilidade de conflito: o que venha a contrapor a norma internacio- nal e os princpios e regras de direito interno. o chamado conflito entre fontes. Para os fins do estudo aqui desenvolvido, interessa especial- mente a incompatibilidade entre o tratado e a Constituio. H, ainda, outro ponto relevante na determinao de qual lei vai reger a hiptese. que, ao solucionar um conflito de leis, a regra de direito internacional privado pode indicar como aplicvel uma lei de seu prprio ordenamento - a lex fori - ou pode apontar para a aplica- o de norma de outro ordenamento jurdico. Disso resulta que aos juzes e tribunais de um Estado caber, por vezes, aplicar direito estrangeiro. Ao faz-lo, tero de apreciar alguns aspectos importantes dessa inte- rao de duas ordens legais. Dentre eles se inclui a verificao da com- patibilidade entre a norma estrangeira e a Constituio, seja a do Esta- do de origem, seja a do foro. A expresso "direito constitucional internacional", que abre este tpico, aqui empregada em associao com a idia de direito interna- cional privado acima exposta. Por tal designao se identifica o conjun- to de princpios e de regras que envolvem a soluo dos conflitos exis- tentes entre as normas internacionais e estrangeiras, de um lado, e as normas constitucionais, de outro. Na acepo adotada, o conceito de direito constitucional internacio- nal no se confunde com o estudo dos preceitos constitucionais que, genrica e difusamente, tenham algum reflexo internacional, como os que versam a nacionalidade, a condio jurdica do estrangeiro ou as relaes externas do Pas. O objeto de que aqui se cuida mais restri- to: trata-se to-somente de encontrar a soluo para os conflitos do tipo acima descritos. 6. nesta acepo mais ampla que a expresso foi empregada por Celso Albuquerque Mello, em seu Direito constitucional internacional, 1994. 1. O tratado internacional e a Constituio O tema do conflito entre as normas internacionais e a ordem interna evoca duas grandes correntes doutrinrias que disputam o melhor equacionamento da questo: o dualismo, pregado no mbito internacio- nal por Triepel e Anzilotti e seguido no Brasil por Amilcar de Castro, e o monismo, concepo desenvolvida por Hans Kelsen e seguida no Bra- sil pela maior parte da doutrina, inclusive Vallado, Tenrio, Celso Albuquerque Mello e Marotta Rangel. 7. Vejam-se Heinrich Triepel, Vlkerrecht und Landesrecht, 1899, p. 169 e s., e Dionisio Anzilotti, Cours de droit international, 1929, p. 49 e s. Vejam-se, tambm, Triepel, Recueil des Cours (Cursos proferidos na Academia de DIP da Haia), 1:79 e s., apud Haroldo Vallado, Direito

  • internacional pri vado, cit., p. 51, e Anzilotti, Curso de derecho internacional, p. 48, apud Amilcar de Castro, Direito internacional privado, cit., p. 123. 8. Direito internacional privado, cit., p. 53 e 94. 9. Direito internacional privado, cit., p. 93 e s. 10. Direito constitucional internacional, cit., p. 344. 11. V. Os conflitos entre o direito interno e os tratados internacionais, Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, 44/45, p. 29. Para os dualistas, inexiste conflito possvel entre a ordem internacio- nal e a ordem interna simplesmente porque no h qualquer interseo entre ambas. So esferas distintas, que no se tocam. Assim, as normas de direito internacional disciplinam as relaes entre Estados, e entre estes e os demais protagonistas da sociedade internacional. De sua par- te, o direito interno rege as relaes intra-estatais, sem qualquer cone- xo com elementos externos. Nesta ordem de idias, um ato internacio- nal qualquer, como um tratado normativo, somente operar efeitos em mbito interno de um Estado se uma lei vier incorpor-lo ao ordenamento jurdico positivo. Os autores se referem a esta lei com "ordem de execuo". 12. Amlcar de Castro, Direito internacional privado, cit., p. 123, citando Morelli, Nozioni di diritto internazionale, p. 91 e s. O monismo jurdico afirma, com melhor razo, que o direito cons- titui uma unidade, um sistema, e que tanto o direito internacional quan- to o direito interno integram esse sistema. Por assim ser, torna-se impe- rativa a existncia de normas que coordenem esses dois domnios e que estabeleam qual deles deve prevalecer em caso de conflito. Kelsen ad- mite, em tese, o monismo com prevalncia da ordem interna e o monismo com prevalncia da ordem internacional, embora seja partidrio desse ltimo. A superioridade do direito internacional sobre o direito interno de cada Estado foi afirmada, desde 1930, pela Corte Permanente de Jus- tia Internacional. 13. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 1979, p. 437 e s., especialmente p. 442-7. 14. Em parecer consultivo proferido em 31-7-1930, assim pronunciou-se a Corte: " princ- pio geral reconhecido, do direito internacional, que, nas relaes entre potncias contratantes de um tratado, as disposies de uma lei no podem prevalecer sobre as do tratado" (apud Hildebrando Accioly, Manual de direito internacional pblico, 1978, p. 6). A Constituio da maior parte dos pases europeus contm regras sobre as relaes entre o direito interno e o direito internacional, nor- malmente no sentido de considerar este ltimo como parte integrante do primeiro. No, assim, a Constituio da Frana, de 1958, que expres- sa no sentido da superioridade do direito internacional, bem como a da Holanda, de 1983. A verdade, no entanto, que a jurisprudncia restritiva dos tribunais tende a neutralizar essa supremacia formal, sal- vo quanto ao direito comunitrio europeu, que tem desfrutado de prima- zia sobre o direito interno. 15. V. Constituio da ustria, de 1929, art. 9 Constituio da Alemanha, de 1949, art. 25; Constituio da Itlia, de 1947, art. 10. 16. Constituio da Frana, art. 55: "Os tratados ou acordos regularmente ratificados ou apro-

  • vados tm, a partir de sua publicao, uma autoridade superior das leis, desde que respeitadas pela outra parte signatria". Constituio da Holanda, art. 94: "As disposies legais em vigor no Reino deixaro de se aplicar quando colidirem com disposies de tratados obrigatrios para todas as pessoas ou com decises de organizaes internacionais". No mesmo sentido o art. 15, n. 4, da nova Constituio russa, aprovada por referendo popular em 12 de dezembro de 1993 (v. Gennady M. Danilenko, The new Russian Constitution and international law, American Journal of International Law, 88:451, 1994, p. 464 e s.). 17. Jacob Dolinger, Direito internacional pri vado, cit., p. 83. 18. Jacob Dolinger, Direito internacional privado, cit., p. 83. V. tambm Celso Albuquerque Mello, Direito constitucional internacional, cit., p. 325: "Quanto ao D. Comunitrio ele tem sido visto como um ramo do DIP com caractersticas prprias, por exemplo, a supranacionalidade, a cesso de competncias soberanas comunidade. Ele considerado uma categoria especial dentro da ordem jurdica dos Estados-membros. Esta a posio da Corte de Justia das Comunidades Europias". Sobre o tema, v., infra, acrdo do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, nota 46. J. J. Gomes Canotilho (Direito constitucional, 1991, p. 915-6) assinala que os tratados institutivos das comunidades europias e as disposies comunitrias dotadas de aplicabilidade direta impem- se sobre a legislao interna, quer com base no princpio da especialidade ou no da competncia prevalente. Note-se que, nesta segunda hiptese, a prevalncia no implica ab-rogao das normas internas precedentes ou a invalidade das subseqentes (Anwendungsvorrang). Nos Estados Unidos, a jurisprudncia, de longa data, considerou os tratados e convenes internacionais incorporados ao direito inter- no, na interpretao dada ao art. 6, 2 seo, da Constituio. Aos atos internacionais adequadamente aprovados pelo Congresso reconhece- se o mesmo nvel das leis federais, de forma tal que o posterior preva- lece sobre o anterior. Paradoxalmente, na prtica, o direito internacio- nal freqentemente privilegiado, por fora de uma atitude de defe- rncia dos tribunais americanos, que somente consideram derrogados os atos internacionais quando seja evidente a inteno do Legislativo nesse sentido. 19. V. Cherokee Tobacco, 78 U. S. (11 Wall)616(1871); The Paquete Habana, 175 U. S.677 (1900); Cook vs. United States, 288 U. S. 102 (1933); Diggs vs. Schultz, 470 F. 2d 461 (D. C. Circuit) (1972), cert. den., 411 U. S. 931. 20. V. Reestatement (Third) of Foreign Relations Law of the United States, 1988, 14. No Brasil no existe disposio constitucional a respeito do tema, o que tem suscitado crticas diversas. No obstante, no que diz respeito ao conflito entre tratado internacional e norma interna infraconstitu- cional, a doutrina, como assinalamos pouco atrs, amplamente majo- ritria no sentido do monismo jurdico, com primazia para o direito in-

  • ternacional. Por tal postulado, o tratado prevalece sobre o direito inter- no, de forma a alterar a lei anterior, mas no pode ser alterado por lei superveniente. Esse entendimento positivado no art. 98 do Cdigo Tri- butrio Nacional. 21. Celso Albuquerque Mello, Direito constitucional internacional, cit., p. 343, e Lus Roberto Barroso, A brief guide to Brazil ls new Constitution and some international issues arising under it, mimeografado, 1989, p. 22. 22. CTN, art. 98: "Os tratados e as convenes internacionais revogam ou modificam a legis- lao tributria interna, e sero observados pela que lhes sobrevenha". Curiosamente, os autores, unanimidade, vislumbravam essa mes- ma orientao na jurisprudncia constante e reiterada do Supremo Tri- bunal Federal. Por tal razo, causou imensa reao a deciso proferida pela Corte no Recurso Extraordinrio n. 80.004, que teria quebrado lon- ga tradio ao decidir: "Embora a Conveno de Genebra que previu uma lei uniforme sobre letras de cmbio e notas promissrias tenha aplicabilidade no direito interno brasileiro, no se sobrepe ela s leis do Pas, disso decorrendo a constitucionalidade e conseqente validade do Decreto-lei n. 427/69 que instituiu o registro obrigatrio da Nota Promissria em Repartio Fazendria, sob pena de nulidade do ttulo". 23. RTJ, 83:809, 1978. A deciso foi criticada por Jos Carlos de Magalhes, que lavrou: "O que fica dessa deciso, contudo, a impresso de recuo do Supremo aceitao da prevalncia do direito internacional. (...) Afastando-se da orientao anterior, no atentaram aqueles Ministros para a problemtica da responsabilidade do Estado na ordem internacional" (O Supremo Tribunal Federal e as relaes entre direito interno e direito internacional, Boletim Brasileiro de Direito Internacional, 61-69:53, 1975-79, p. 56). Celso Albuquerque Mello tambm condenou o julgado: "Entretanto, houve no Brasil um grande retrocesso no RE n. 80.004, decidido em 1978, em que o STF decidiu que uma lei revoga tratado anterior. Esta deciso viola tambm a Conveno de Viena sobre direito dos tratados (1969) que no admite o trmino do tratado por mudana de direito superveniente" (Direito constitucional internacional, cit., p. 344). Decises posteriores da Suprema Corte mantiveram a mesma linha de entendimento, consoante fundamentao do Ministro e internaciona- lista Jos Francisco Rezek: "O STF deve garantir prevalncia ltima palavra do Congresso Nacional, expressa no texto domstico, no obstante isto importasse o reconhecimento da afronta pelo pas de um compromisso internacional. Tal seria um fato resultante da culpa dos poderes polticos, a que o Judici- rio no teria como dar remdio". 24. RTJ, 115:969, 1986, p. 973, e 119:22, 1987, p. 30. Tambm a legislao ordinria desprezou a preferncia dos doutrinadores pelo primado das normas internacionais. Assim que a Lei n. 7.357,

  • de 9-2-1985, passou a reger os cheques sem ateno Lei Uniforme de Genebra, fruto de conveno que fora firmada pelo Brasil e promulgada pelo Decreto n. 57.595, de 7-1-1966. A verdade que, em exame detido da jurisprudncia, Jacob Dolinger constatou que a leitura que a maioria dos autores fazia das decises do Supremo Tribunal Federal era antes reflexo de sua prpria crena no pri- mado do direito internacional do que expresso da realidade dos julgados. Ao contrrio do sugerido, a orientao da mais alta Corte a do monismo moderado, em que o tratado se incorpora ao direito interno no mesmo nvel hierrquico da lei ordinria, sujeitando-se ao princpio consolidado: em caso de conflito, no se colocando a questo em termos de regra geral e regra particular, prevalece a norma posterior sobre a anterior. Existem, porm, algumas excees a essa equiparao entre tratado e lei ordinria para efeito de resoluo de conflitos. A primeira d-se em matria relativa tributao, onde o art. 98 do Cdigo Tributrio Nacio- nal (Lei n. 5.172, de 25-10-1966), como visto, expresso quanto preva- lncia da norma internacional. A segunda exceo refere-se aos casos de extradio, onde se considera que a lei interna (Lei n. 6.815, de 19-8-1980), que geral, cede vez ao tratado, que regra especial. Con- fira-se o afirmado em palavras do prprio Dolinger, Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro: "Nossa concluso que, excetuadas as hipteses de tratado-contrato, nada havia na jurisprudncia brasileira quanto prevalncia de tratados sobre lei promulgada pos- teriormente, e, portanto, equivocados todos os ilustres au- tores acima citados que lamentaram a alegada mudana na posio da Suprema Corte. Aposio do STF atravs dos tempos de coerncia e resume-se em dar o mesmo trata- mento a lei e a tratado, sempre prevalecendo o diploma posterior, excepcionados os tratados fiscais e de extradi- o, que, por sua natureza contratual, exigem denncia for- mal para deixarem de ser cumpridos. 25. E assim j decidiu o Supremo Tribunal Federal: No sistema brasileiro, ratificado e pro- mulgado, o tratado bilateral de extradio se incorpora, com fora de lei especial, ao ordenamento jurdico interno, de tal modo que a clusula que limita a priso do extraditando ou determina a sua libertao, ao termo de certo prazo (quarenta e cinco dias contados do pedido de priso preventiva), cria direito individual em seu favor, contra o qual no oponvel disposio mais rigorosa da lei geral (noventa dias, contados da data em que efetivada a priso - art. 82, 2 e 3 da Lei 6.815/ 80) (RTJ, 162:822, 1997, Extr. 194-Repblica Argentina, rel. Min. Seplveda Pertence). 26. Sobre a distino entre tratado-contrato e tratado normativo, v. infra. 27. Direito internacional privado, cit., p. 102. J com a redao dada ao art. 178 da Constituio pela Emenda Constitucional n. 7, de 15 de agosto de 1995, instituiu-se nova regra especfica nas relaes entre o tratado e os atos internacionais. De fato, passou o preceptivo constitucional a ter a seguinte dico: "Art. 178. A lei dispor sobre a ordenao dos transportes areo, aqutico e terrestre, devendo, quanto ordenao do transporte internacional, observar os acordos firmados pela Unio, atendido o princpio da reciprocidade". Posta a questo das relaes entre o direito internacional e as dispo-

  • sies internas infraconstitucionais, cumpre agora investigar o tpico mais relevante para os fins aqui propostos: como se situa o direito em face do conflito entre o direito internacional e a Constituio. O tema envolto em controvrsias. Seria possvel cogitar, em um primeiro lance de vista, da invalidade de norma constitucional que se encontrasse em confronto com determi- nadas normas internacionais fundamentais, emanadas dos princpios gerais do direito e dos costumes dos povos civilizados. Tal seria o caso de preceitos que estabelecessem a submisso jurdica de um pas vizi- nho, prescrevessem sua anexao ou por qualquer outra via ofendessem a soberania de um outro Estado. Igual juzo recairia sobre uma disposio que pregasse o genocdio. Os exemplos poderiam multiplicar-se, embo- ra sempre tangenciando o absurdo. Nas hipteses aventadas, afirmar-se-ia a supremacia do direito internacional sobre o direito constitucional. 28. O Estatuto da Corte Internacional de Justia prev como fontes do direito internacional pblico - isto , normas internacionais - os tratados (convenes internacionais), o costume internacional e os princpios gerais do direito. Faz referncia, ainda, jurisprudncia e doutrina como fontes auxiliares, e faculta o emprego da eqidade (art. 38). 29. Agustinho Fernandes Dias da Silva (Introduo ao direito internacional privado, cit., p. 33) sugere alguns outros exemplos, como o de norma constitucional que estabelecesse o domnio universal como objetivo nacional, que afirmasse a hegemonia nacional sobre um continente ou elegesse a guerra como meio de soluo de conflitos. E averbou: "As normas internacionais bsicas so indenunciveis e irrevogveis, por isso prevalecero sempre". De fato, a idia da soberania ilimitada do poder constituinte no merece abrigo. No possvel emprestar Constituio todo e qualquer contedo, sem atender a quaisquer princpios, valores e condies. A questo acima delineada - confronto da ordem constitucional com cer- tos valores universais -, embora suscite a interessantssima discusso acerca dos limites materiais do poder constituinte originrio, mais te- rica do que real, pelo que se situa fora do objeto de um estudo mais preocupado com a aplicao concreta do direito constitucional. 30. V. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, 1983, t. 2, p. 86. A anlise a seguir desenvolvida concentra-se no confronto entre o ordenamento interno superior e o direito internacional convencional. E muito embora haja quem sustente que todo direito verdadeiramente in- ternacional repousa sobre o consentimento, interessa-nos aqui, parti- cularmente, o especfico ato de vontade, convencional por excelncia, que o tratado internacional, e como ele se coloca diante da Constitui- o do Estado que o celebrou. 31. Jos Francisco Rezek, Direito internacional pblico, 1989, p. 3. 32. Os tratados so atualmente a fonte mais importante do direito internacional (v. Celso O. de Albuquerque Mello, Direito internacional pblico, 1992, v. 1, p. 157). A Conveno sobre Direito dos Tratados (Viena, 1969) fornece a seguinte definio (art. 1 a): "Tratado significa um acordo internacional celebrado entre Estados em forma escrita e regido pelo direito internacional,

  • que conste, ou de um instrumento nico ou de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominao especfica". Assim como no direito interno uma norma sujeita-se ao contraste constitucional tanto do ponto de vista formal quanto do material, tam- bm os tratados internacionais submetem-se a essa dupla apreciao. Por via de conseqncia, possvel avali-los sob dois aspectos: o de sua constitucionalidade extrnseca e o de sua constitucionalidade in- trnseca. A inconstitucionalidade, na primeira hiptese, tambm denominada ratificao imperfeita, ocorre quando o tratado aprovado viola as regras constitucionais de competncia e de procedimento para sua celebrao, apro- vao parlamentar, ratificao e entrada em vigor. A doutrina oscilou en- tre admitir-lhe a validade, a despeito do vcio formal, ou proclamar-lhe a nulidade. A Conveno sobre Direito dos Tratados (Viena, 1969) tomou partido na controvrsia, afirmando a validade do tratado em tal hiptese, salvo manifesta violao de norma fundamental sobre competncia. 33. Na Constituio brasileira, a celebrao de tratados, convenes e atos internacionais competncia privativa do Presidente da Repblica, sujeita a referendo do Congresso Nacional (art. 84, VIII), ao qual incumbe resolver definitivamente sobre quaisquer acordos e atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimnio nacional (art. 49, I). Sobre o tema, embora referente ao regime constitucional anterior, v. Jos Francisco Rezek, Direito dos tratados, 1984, p. 185 e s. J sob a Constituio atual, v. Celso O. de Albuquerque Mello, Direito internacional pblico, cit., p. 156 e s. 34. V. Celso D. de Albuquerque Mello, Direito constitucional internacional, cit., p. 321. 35. Conveno, art. 46: "Um Estado no poder invocar o fato de que seu consentimento em obrigar-se por um tratado foi expresso em violao de uma disposio de seu direito interno sobre competncia para concluir tratados, a no ser que essa violao seja manifesta e diga respeito a uma regra de seu direito interno de importncia fundamental". A doutrina monista do primado do direito internacional s admite essa hiptese de inconstitucionalidade do tratado, rejeitando qualquer possibilidade de seu exame intrnseco para verificao da compatibili- dade com a Lei Maior. Diversos so os autores de reputao que susten- tam a primazia do tratado sobre a prpria Constituio. Hildebrando Accioly taxativo ao afirmar que a lei constitucional nao pode isentar o Estado de responsabilidade por violao de seus de- veres internacionais. Invoca, em favor de seu ponto de vista, deciso da Corte Permanente de Arbitragem, de Haia, onde se deliberou que "as disposies constitucionais de um Estado no poderiam ser opostas aos direitos internacionais de estrangeiros". E cita, tambm, julgado da Corte Permanente de Justia Internacional, de 4 de fevereiro de 1932, onde se declarou: "Um Estado no pode invocar contra outro Estado sua prpria Constituio para se esquivar a obrigaes que lhe incumbem em virtude do direito internacional ou de trata- dos vigentes".

  • 36. Hildebrando Accioly, Manual de direito internacional pblico, cit., p. 56. 37. Manual de direito internacional pblico, cit., p. 56. Haroldo Vallado, nessa mesma linha de entendimento, sustenta que a disposio interna, mesmo de natureza constitucional, no poder ser observada se contrariar preceito em vigor de direito internacional b- sico, geral ou de direito internacional convencional, isto , de tratado vlido e vigente. Acompanha-o, nesse passo, Agustinho Fernandes da Silva, para quem o tratado deve ser observado at extinguir-se ou ser denunciado. Enfatiza que a forma prpria de revogao de um tra- tado por vontade de uma das partes a denncia, e no a previso constitucional em contrrio. 38. Haroldo Vallado, Direito internacional pri vado, cit., p. 94. 39. Agustinho Fernandes Dias da Silva, Introduo ao direito internacional privado, cit., p. 33. Os dois autores, todavia, fazem uma distino clara e relevante, de natureza temporal: as proposies enunciadas acima somente se aplicam quando o tratado j seencontre em vigor no momento de promulgao da Constituio. Na hiptese inversa, em que o tratado celebrado na vign- cia de uma dada Carta, sendo com ela incompatvel, a no prevalecer, por no se haver constitudo legitimamente. Em palavras de Vallado: "Assim, prevalecem as regras dos tratados anteriores ao texto constitucional; s no prevalece a norma interna- cional que vier a ser aprovada e ratificada aps vigncia do texto constitucional que a ela se ope, pois nesse caso de- correria dum ato internacional invlido, no vigorante, pois no podia ter sido aprovado nem ratificado. distino ne- essria para os atos convencionais internacionais". 40. Haroldo Vallado, Direito internacional pri vado, cit., p. 94. Em sentido diverso, e com melhor razo, parte substancial da dou- trina brasileira. Aurelino Leal, j em 1925, averbava: "A mim me parece que se os assuntos regulados nos tratados forem compatveis com as alteraes introduzidas no regime constitucional, nada h que se oponha a que as mesmas continuem em vigor. Se, porm, as modificaes feitas na lei suprema colidirem com a matria regulada nos acordos internacionais, no se me afigura que os mesmos prevaleam contra a nova orientao constitucionaL a me- nos que o poder constituinte consigne na reforma uma dis- posio garantindo a sua vigncia". 41. Aurelino Leal, Teoria e prtica da Constituio Federal brasileira, 1925, p. 628. Na mesma linha o magistrio de Carlos Maximiliano: "A Constituio a lei suprema do pas; contra a sua letra, ou esprito, no prevalecem resolues dos poderes federais, constituies, decretos ou sentenas federais, nem tratados, ou quaisquer outros atos diplomticos". 42. Carlos Maximiliano, Hermenutica e aplicao do direito, 1981, p. 314. Tambm internacionalistas da melhor linhagem endossam a idia de prevalncia da Constituio, quando no por opo doutrinria, ao menos por constatao da realidade e do princpio da supremacia cons- titucional. Veja-se, em seqncia, a opinio de Oscar Tenrio e Jos Francisco Rezek, respectivamente: "A decretao da inconstitucionalidade dos tratados pelo Supremo Tribunal Federal no se limita aos elemen- tos de validade, como a ratificao e a promulgao, mas

  • se estende ao confronto entre a letra do tratado e a letra da Constituio. Uma nova Constituio cria uma nova or- dem jurdica. Subsistem apenas as normas pretritas no incompatveis com ela. Assim, os tratados anteriores a ela perdem sua eficcia desde que contrrios Constituio". 43. Oscar Tenrio, Direito internacional privado, cit., p. 94. "A constituio nacional, vrtice do ordenamento jur- dico, a sede de determinao da estatura da norma jurdi- ca convencional. Dificilmente uma dessas leis fundamen- tais desprezaria, neste momento histrico, o ideal de segu- rana e estabilidade da ordem jurdica a ponto de subpor- se, a si mesmo, ao produto normativo dos compromissos exteriores do Estado. Assim, posto o primado da Constitui- o em confronto com a norma pacta sunt servanda, cor- rente que se preserve a autoridade da lei fundamental do Estado, ainda que isto signifique a prtica de um ilcito pelo que noplano externo, deve aquele responder". 44. Jos Francisco Rezek, Direito internacional pblico, cit., p. 103-4. No direito comparado europeu, exceo de Portugal, que adota um regime hbrido, e da Holanda, onde a aprovao do tratado por trs quartos dos Estados Gerais modifica a Constituio, a regra que trata- dos que conflitem com a Lei Fundamental no possam ser aprovados sem prvia reviso constitucional. o que dispem, expressamente, v. g., as Constituies da Frana (art. 54), da Espanha (art. 95, I) e da Alemanha (art. 79, I). 45. Dispe o art. 277, 2, da Constituio portuguesa: "A inconstitucionalidade orgnica ou formal de tratados internacionais regularmente ratificados no impede a aplicao das suas normas na ordem jurdica portuguesa, desde que tais normas sejam aplicadas na ordem jurdica da outra parte, salvo se tal inconstitucionalidade resultar de violao de uma disposio fundamental". 46. Com relao especificamente ao direito comunitrio, v. nota 18. A esse propsito, alis, o Tribunal Constitucional Federal da Ale- manha (Bundesverfassungsgericht) apreciou, recentemente, recurso constitucional contra a participao da Alemanha na Unio Europia, apresentado por um grupo de polticos e professores, incluindo um ex- dirigente da Comunidade Econmica Europia, e por membros do Partido Verde alemo que integram o Parlamento Europeu. 47. Neue Juristische Wochenschrift, v. 47, 1993, p. 3047 e s. A ntegra do acrdo, vertido para o ingls, est publicada no International Legal Materials, v. XXXIII, 1994, p. 388 e s. Os requerentes alegaram, dentre outras coisas, que o Ato de Adeso ao Tratado e o Ato que emendara a Constituio violavam seus direitos polticos de representao, seus direitos individuais (pela transferncia de atribuies para sua proteo Unio Europia), bem como ofen- diam o princpio democrtico, a soberania nacional e o direito de serem pagos em Deutsche Mark (e no em uma futura moeda comum), alm de deverem ser submetidos a referendo popular. Em deciso longamente fundamentada, datada de 12 de outubro de 1993, a Corte rejeitou a impugnao e permitiu a entrada em vigor do Tratado da Unio Europia (tambm conhecido como Tratado de Maastricht), em novembro de 1993. No obstante isso, o Tribunal Cons- titucional Federal cuidou de qualificar diversas questes e assentou re-

  • levantes premissas a propsito de sua interpretao das relaes entre o direito constitucionl e o direito comunitrio. Os diferentes aspectos da deciso podem ser sintetizados nas proposies seguintes: 1) O direito alemo probe a diminuio do poder do Estado atravs da transferncia de deveres e responsabilidades do Parlamento Federal, na extenso em que isso importar em violao do princpio democrtico. 2) O princpio democrtico no impede que a Repblica Federal da Alemanha se torne membro de uma comunidade intergovernamental organizada em base supranacional. 3) Se uma comunidade de Estados assume poderes e responsabili- dades de soberania, os povos dos Estados-membros precisam legitimar esse processo atravs dos seus parlamentos nacionais. 4) O princpio democrtico impe limites extenso de funes e poderes a serem transferidos para a comunidade europia. O Parlamen- to Federal dever reter funes e poderes de importncia substancial. 5) O programa de integrao e os direitos transferidos comunida- de europia supranacional devem ser especificados com preciso. Cabe ao Tribunal Constitucional Federal determinar se os direitos de sobera- nia exercidos pelas instituies e entidades dirigentes europias esto dentro dos limites ou se extrapolam os que lhes foram conferidos. 6) A interpretao das regras de competncia do Tratado de Maastricht no dever importar em extenso do Tratado. Se tal ocorrer, a Alemanha no ficar vinculada. 7) O Tribunal Constitucional Federal e a Corte Europia de Justia exercem jurisdio em uma "relao cooperativa". 8) O Tratado de Maastricht estabelece uma comunidade intergo- vernamental para criao de uma unidade mais estreita entre os povos da Europa. Cada um desses povos organizado em um Estado prprio, inexistindo, pois, um Estado da Europa, com seu prprio povo. 9) a) O Tratado de Maastricht no confere Unio Europia auto- determinao na obteno de recursos, financeiros ou de qualquer outra natureza, destinados a atender seus objetivos. necessrio o consenti- mento dos Estados. b) A ratificao do Tratado no sujeita a Repblica Federativa da Ale- manha a um processo incontrolvel e imprevisvel que conduza inexoravelmente unificao monetria. O Tratado de Maastricht simples- mente prepara o caminho para a integrao gradual da Comunidade Euro- pia em uma comunidade de leis. Qualquer passo adiante depende do con- sentimento do Governo Federal, sujeito deliberao do Parlamento. 48. International Legal Materiais, cit., p. 393-7. Resumo e traduo para o portugus de responsabilidade do autor. Nos Estados Unidos, muito embora seja indiscutvel a superiorida- de da Constituio sobre os atos internacionais, a Suprema Corte ja- mais declarou um tratado inconstitucional. Tal fato pode ser creditado, em parte, a uma associao exagerada, quando no equivocada, que os tribunais fazem entre questes internacionais e "questes polticas", o que excluiria aquelas do controle judicial. 49. V. Restatement (Third) of Foreign Relations Law of the United States, 1988, 111 (p. 43): "In their character as law of the United States, rules of international law and provisions of international agreements of the United States are subject to the Bill of Rights and other prohibitions, restrictions, and requirements of the Constitution, and cannot be given effect in violation of them. However,

  • failure of the United States to carry out an obligation on the ground of its unconstitutionality will not relieve the United States of responsability under international law". 50. Sobre o tema, V. Louis Henkin, Foreign affairs and the Constitution, 1975. Para um painel amplo e atualizado das relaes entre direito interno e direito internacional na perspectiva norte- americana, v. JohnH. Jackson, Status of treaties in domestic legal systems: a policy analysis, American Journal of International Law, v. 86, 1992, p. 310 e s. 51. E assim se passa a despeito da advertncia do Justice Brennan, ao relatar e julgar Baker vs. Carr (369 U. S. 186) (1962), um dos principais precedentes que delineou a "political question doctrine": "It is error to suppose that every case ar controversy which touches foreign relations lies beyond judicial cognizance" ( equvoco supor que qualquer litgio que tangencie as relaes inter- nacionais situa-se fora do conhecimento judicial). Desse modo, a despeito do imenso prestgio e independncia do Poder Judicirio nos Estados Unidos, h uma persistente tradio de os juzes e tribunais cederem o passo avaliao dos Poderes Polticos, notadamente ao Presidente da Repblica, sempre que a matria envolva relaes internacionais de qualquer natureza. H toda uma linha de ca- sos ratificando essa atitude de deferncia ao Executivo. Essa orienta- o, alis, chegou ao extremo de chancelar, em mais de um caso, as decises do Poder Executivo de seqestrar, em Estado estrangeiro, pes- soas contra as quais se houvesse instaurado processo criminal nos Esta- dos Unidos, para sujeit-las a julgamento naquele pas. A questo, por sua gravidade e relevncia, merece breve digresso. 52. Vejam-se, por exemplo, United States vs. Curtiss - Wright Corp (299 U. S. 304) (1936), Banco Nacional de Cuba vs. Sabbatino (376 U. S. 398) (1964), First National Citibank vs. Banco Nacional de Cuba (406 U. S.759) (1972), Alfred Dunhill of London, inc. vs. Republic of Cuba (425 U. S.682) (1976), Goldwater vs. Carter (444 U. S.996) (1979), Dames & Moore vs. Reagan (453 U. S. 654) (1981). Veja-se, tambm, o interessantssimo caso United States vs. Palestine Liberation Organization (U. S. District Court, Southern District of New York, 1988). O caso mais recente julgado pela Suprema Corte foi Barquero vs. United States (International Legal Materials, 33:904,1994), onde se afirmou a constitucionalidade do tratado celebrado entre Estados UnidOs e Mxico sobre troca de informaes tributrias. O tratado permite que, mediante requerimento do outro pas, a autoridade governamental requisite a qualquer banco comercial informaes sobre determinado correntista. Em United States vs. Verdugo Urquidez, a Suprema Corte, refor- mando deciso do Tribunal Federal do 9 Circuito, decidiu que a Cons- tituio americana, ou ao menos a 4 emenda (que assegura a inviolabilidade das pessoas, suas casas, documentos e bens contra bus- cas e apreenses ilegais), no se aplicava fora dos Estados Unidos. Como conseqncia, no poderia ser invocada por cidado mexicano levado

  • fora para julgamento nos Estados Unidos (com a concordncia do Go- verno mexicano), cuja casa, no Mxico, havia sido objeto de busca ile- gal por agentes norte-americanos. 53. 110 S. Ct. 1056 (1990). Sobre este caso especificamente, v. Andreas F. Lowenfeld, U. S. law enforcement abroad: the Constitution and international law, continued, AJIL, 84/444, 1990, especial- mente p. 491-3. Pouco mais adiante, em deciso que estarreceu a comunidade jur- dica internacional, a Suprema Corte, por maioria, e reformando deciso de duas instncias inferiores, admitiu ser possvel submeter a julgamen- to nos Estados Unidos cidado mexicano que fora seqestrado no Mxi- co, sem anuncia do Governo daquele pas, que formulou protesto di- plomtico veemente. Servindo-se de um argumento primrio - o de que o tratado de extradio entre Estados Unidos e Mxico no proibia expressamente o seqestro -, a Suprema Corte afastou a incidncia do tratado (que teria fora de lei) como j vimos e aplicou uma antiqssima jurisprudncia pela qual admitia que, uma vez apresentado Justia, um acusado pudesse ser submetido a julgamento, independentemente de haver sido conduzido por meio lcito ou ilcito. Em desfecho, a Corte admitiu que o seqestro violava princpios de direito internacional, mas entendeu que a deciso sobre a restituio ou no do acusado ao seu pas, de onde fora retirado fora, era uma questo da competncia discricionria do Executivo. J que ele estava nos Estados Unidos, cabia Justia norte-americana julg-lo. 54. United States vs. Alvarez Machain, 31 I. L. M. 900(1992). Na concluso de seu veemente voto dissidente, consignou Justice Stevens: "Eu suspeito que a maior parte dos tribunais do mundo civilizado ficar perplexa pela deciso "monstruosa" que esta Corte anuncia hoje. Toda nao que tem interesse em preservar o estado de direito (the Rule of the Law) afetada, direta ou indireta- mente, por uma deciso deste carter". Para uma crtica igualmente contundente de tal acrdo, V. Michael J. Glennon, State sponsored abduction: a comment on United States vs. Alvarez-Machain, AJIL, 86:756, 1992. Precedente mais edificante foi, estabelecido, recentemente, pela Supre- ma Corte do Canad. Em R. vs. Cook, julgado em outubro de 1998, decidiu a Corte que o interrogatrio de um cidado canadense, por agentes policiais canadenses, ainda que realizado nos Estados Unidos, sujeitava-se aos pro- cedimentos e garantias da Carta de Direitos e Liberdades do Canad. No caso especfico, o acusado de um homicdio no fora informado do seu direito de ser assistido por um advogado durante o interrogatrio. 55. International Legal Materials, v. XXXVIII, 1999, p. 271 e s. Retomando a linha de raciocnio, e passando ao caso brasileiro, vai- se constatar que, entre ns, desde a primeira Constituio republicana se admite a verificao da constitucionalidade intrnseca de um tratado. Em acrdo de 15 de setembro de 1977, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade, em parte, de alguns artigos da Con- veno da OIT n. 110, referentes s condies de trabalhadores em fa- zenda. A Constituio de 1967-69 ensejava tal tipo de pronunciamen- to, em regra que foi reproduzida na Carta atual. De fato, no art. 102, III, a, da Constituio de 1988, prev-se o cabimento de recurso extraordi- nrio quando a deciso recorrida declarar a inconstitucionalidade de tra- tado ou lei federal.

  • 56. Constituio Federal de 24-2-1891, art. 59, 1, a. 57. RTJ, 84:724, 1978, Rep. n. 803-DF, rel. Min. Djaci Falco. Veja-se, tambm, Celso D. de Albuquerque Mello, Direito constitucional internacional, cit., p. 324. 58. "Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal... III - julgar, mediante recurso extra- ordinrio, as causas decididas em nica ou ltima instncia, qua