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INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO - FUNDAMENTOS DE UMA DOGMÁTICA CONSTITUCIONAL TRANSFORMADORA LUÍS ROBERTO BARROSO Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Master of Laws pela Yale Law School. Procurador do Estado e Advogado no Rio de Janeiro. 3ª edição 1999 Editora Saraiva ÍNDICE GERAL Abreviaturas IX Um prefácio afinal desnecessário XI Registros XXI INTRODUÇÃO 1. A interpretação. Generalidades 2. Apresentação do tema 3. Plano de trabalho 6 PARTE 1 A DETERMINAÇÃO DA NORMA APLICÁVEL Introdução CONFLITOS DE NORMAS NO ESPAÇO E NO TEMPO Capítulo 1 A CONSTITUIÇÃO E O CONFLITO DE NORMAS NO ESPAÇO. DIREITO CONSTITUCIONAL INTERNACIONAL 1. O tratado internacional e a Constituição 2. A norma estrangeira e a Constituição a) A norma estrangeira e a Constituição de origem b) A norma estrangeira e a Constituição brasileira Capítulo II A CONSTITUIÇÃO E O CONFLITO DE NORMAS NO TEMPO. DIREITO CONSTITUCIONAL INTERTEMPORAL 1. A Constituição nova e a ordem constitucional anterior 2. Emenda constitucional e Constituição em vigor 3. Constituição nova e direito infraconstitucional anterior 4. Algumas questões de direito intertemporal suscitadas pelo advento de uma nova Constituição a) Inexistência de inconstitucionalidade formal superveniente b) Aplicação imediata, mas não retroativa, da Constituição nova c) Declaração de inconstitucionalidade e efeito repristinatório d) Situações processuais específicas e) Normas infraconstitucionais não recepcionadas pela Constituição de 1988 PARTE II A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL Capítulo I OS MÉTODOS E CONCEITOS CLÁSSICOS APLICADOS À INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 1. Introdução

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INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO - FUNDAMENTOS DE

UMA DOGMÁTICA CONSTITUCIONAL TRANSFORMADORA

LUÍS ROBERTO BARROSO

Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do

Estado do Rio de Janeiro. Master of Laws pela Yale Law School.

Procurador do Estado e Advogado no Rio de Janeiro.

3ª edição 1999 Editora Saraiva

ÍNDICE GERAL

Abreviaturas IX

Um prefácio afinal desnecessário XI

Registros XXI

INTRODUÇÃO

1. A interpretação. Generalidades

2. Apresentação do tema

3. Plano de trabalho 6

PARTE 1

A DETERMINAÇÃO DA NORMA APLICÁVEL

Introdução

CONFLITOS DE NORMAS NO ESPAÇO E NO TEMPO

Capítulo 1

A CONSTITUIÇÃO E O CONFLITO DE NORMAS NO ESPAÇO.

DIREITO CONSTITUCIONAL INTERNACIONAL

1. O tratado internacional e a Constituição

2. A norma estrangeira e a Constituição

a) A norma estrangeira e a Constituição de origem

b) A norma estrangeira e a Constituição brasileira

Capítulo II

A CONSTITUIÇÃO E O CONFLITO DE NORMAS NO TEMPO.

DIREITO CONSTITUCIONAL INTERTEMPORAL

1. A Constituição nova e a ordem constitucional anterior

2. Emenda constitucional e Constituição em vigor

3. Constituição nova e direito infraconstitucional anterior

4. Algumas questões de direito intertemporal suscitadas pelo advento

de uma nova Constituição

a) Inexistência de inconstitucionalidade formal superveniente

b) Aplicação imediata, mas não retroativa, da Constituição nova

c) Declaração de inconstitucionalidade e efeito repristinatório

d) Situações processuais específicas

e) Normas infraconstitucionais não recepcionadas pela Constituição

de 1988

PARTE II

A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

Capítulo I

OS MÉTODOS E CONCEITOS CLÁSSICOS APLICADOS

À INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

1. Introdução

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2. Peculiaridades das normas constitucionais

3. Conceitos, classificações e métodos clássicos de interpretação

a) Subjetivismo e objetivismo. O originalismo nos Estados Unidos

b) Interpretação constitucional legislativa, administrativa, judicial,

doutrinária e autêntica

c) Interpretação declarativa, restritiva e extensiva

d) Os métodos ou elementos clássicos de interpretação

I - A interpretação gramatical

II - A interpretação histórica

III - A interpretação sistemática

IV - A interpretação teleológica

e) Integração da vontade constitucional. Analogia e costume consti-

tucional

4. A interpretação constitucional evolutiva

Capítulo Ii

PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO ESPECIFICAMENTE

CONSTITUCIONAL

1. Os princípios constitucionais como condicionantes da interpretação

constitucional

2. Princípio da supremacia da Constituição

3. Princípio da presunção de constitucionalidade das leis e dos atos do

Poder Público

4. Princípio da interpretação conforme a Constituição

5. Princípio da unidade da Constituição

6. Princípios da razoabilidade e da proporcionalidade

7. Princípio da efetividade

PARTE FINAL

A OBJETIVIDADE DESEJADA EA NEUTRALIDADE IMPOSSÍVEL:

O PAPEL DO INTÉRPRETE NA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

Capítulo I

SABER JURÍDICO CONVENCIONAL, TEORIA CRÍTICA DO DIREITO

E DIREITO ALTERNATIVO. A SÍNTESE NECESSÁRIA

1. Introdução

2. A teoria crítica

3. O direito alternativo

4. Objetividade e neutralidade. Os limites do possível

Capítulo Ii

CONCLUSÕES

Índice onomástico

Índice alfabético-remissivo

Bibliografia

ABREVIATURAS

ADCT - Ato das Disposições Constitucionais Transitórias

ADIn - Ação Direta de Inconstitucionalidade

AgI - Agravo de Instrumento

AgRg - Agravo Regimental

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AJCL - American Journal of Comparative Law

AJIL - American Journal of International Law

BVerfGE - Entscheidungen des Bundesverfassungsgericht

DJU - Diário de Justiça da União

Embgs - Embargos

ILM - International Legal Materiais

MI - Mandado de Injunção

ML - Medida Liminar

MS - Mandado de Segurança

QO - Questão de Ordem

RDA - Revista de Direito Administrativo

RE - Recurso Extraordinário

Rep - Representação de Inconstitucionalidade

REsp - Recurso Especial

RILSF - Revista de Informação Legislativa do Senado Federal

RF - Revista Forense

RMS - Recurso em Mandado de Segurança

RT - CDC e CP - Revista dos Tribunais - Cadernos

de Direito Constitucional e Ciência Política

RTDP - Revista Trimestral de Direito Público

RTJ - Revista Trimestral de Jurisprudência

STF - Supremo Tribunal Federal

STJ - Superior Tribunal de Justiça

TFR - Tribunal Federal de Recursos

UM PREFÁCIO AFINAL DESNECESSÁRIO

Estas palavras não pretendem ser um prefácio que mereça o nome.

Não é que alimentasse a presunção de oferecer um desses prefácios

densos e eruditos, que, às vezes, dissimulam a ambição de competir

com a obra que apresentam.

Honrado, porém, pelo convite do autor para prefaciar a publicação

da tese - que lhe deu as merecidas galas de Professor Titular da Uni-

versidade do Estado do Rio de Janeiro - e verdadeiramente impressio-

nado com a excelência do trabalho, cheguei a cogitar, à guisa de prefá-

cio, de dar um testemunho: aos sete anos de cotidiana interpretação cons-

titucional por dever de ofício, pensei aproveitar o tema e dar conta do

método e dos motivos de votar de um juiz do Supremo Tribunal Federal.

Ao menos, dos motivos conscientes e racionais. Que os outros - supe-

rado, embora, o mito ingênuo ou mistificador da interpretação neutra (e

não apenas imparcial) - são, de regra, indevassáveis: não que os queira

ocultar o intérprete, mas porque, na grande maioria das vezes, é ele

próprio o primeiro a ignorá-los.

Na Parte Final deste livro, disse-o o autor, de modo irretocável:

"Idealmente, o intérprete, o aplicador do direito, o juiz,

deve ser neutro. E é mesmo possível conceber que ele seja

racionalmente educado para a compreensão, para a tolerân-

cia, para a capacidade de entender o diferente, seja o homos-

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sexual, o criminoso, o miserável ou o mentalmente deficien-

te. Pode-se mesmo, um tanto utopicamente, cogitar de libertá-

lo de seus preconceitos, de suas opções políticas pessoais e

oferecer-lhe como referência um conceito idealizado e

asséptico de justiça. Mas não será possível libertá-lo do pró-

prio inconsciente, de seus registros mais primitivos. Não há

como idealizar um intérprete sem memória e sem desejos.

Em sentido pleno, não há neutralidade possível".

Frustrou-se o intento do depoimento pessoal, atropelado pelas tur-

bulências da presidência do Tribunal e das dimensões inéditas da crise

do Judiciário, que venho tentando discutir sem preconceitos. E ainda

pela certeza de que nenhuma contribuição justificaria retardar ainda mais

a publicação de estudo tão significativo.

Este livro, cuja apresentação a amizade de Luís Roberto Barroso

me entregou, consolida a inscrição do conjunto da sua obra, fruto da

juventude ainda vigente, no rol das melhores produções da teoria cons-

titucional brasileira.

O trabalho premiado do estudante O problema da federação

(Forense, 1982) - que o grande Seabra Fagundes, no prefácio, não he-

sitou em saudar como "dos melhores já escritos sobre o regime federal

no Brasil" prenunciava os marcos característicos do jurista consagrado

de hoje: o domínio seguro dos princípios, da história e da dogmática

constitucional, sem asfixia do compromisso com o seu País e o seu povo.

Vem dessa época a nossa aproximação pessoal, na militância da

OAB, ao tempo em que, "sobre o crepúsculo do autoritarismo, incidem

as primeiras frestas de claridade" (O problema da federação, cit.,

p. XII).

1. Prêmio Cândido de Oliveira Neto, 1980, da OAB-RJ.

Já em 1989 - entremeando-se na série de trabalhos menores, no

entanto, de valor indiscutível (assim, p. ex., Igualdade perante a lei, de

1985, Revista de Direito Público, 78:65, e A crise econômica e o direito

constitucional, de 1993, Revista Forense, 323:83) - completa o autor a

versão original de sua tese de livre-docência -A força normativa da Cons-

tituição. Elementos para a efetividade das normas constitucionais - a

qual, ampliada e atualizada, foi divulgada em duas edições, como título

definitivo - O direito constitucional e a efetividade de suas normas -

e o subtítulo que trai o engajamento do teórico - Limites e possibilida-

des da Constituição brasileira (Renovar, 1991 e 1993).

Na primeira das edições, a veemente divergência com a minha pos-

tura restritiva nos leading cases acerca da natureza e das potencialidades

dogmáticas do mandado de injunção - tal como instituído e disciplina-

do (e muito mal) pela Constituição - valeu-me, na transcrição de uma

ementa, o epíteto de ser uma "pena ilustre - outrora progressista" (O

direito constitucional e a efetividade de suas normas, cit., p. 179), ex-

pressões abrandadas, com sutileza, na edição seguinte (O direito consti-

tucional e a efetividade de suas normas, cit., p. 183).

A impiedade da crítica do amigo - que assim aparentemente me

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compelia à retirada do círculo dos "progressistas", onde há anos o rece-

bera - nem afetou a amizade, nem alterou o juízo extremamente posi-

tivo sobre o trabalho.

2. Juízo positivo, aliás, que já nem poderia dissimular: da leitura dos originais da tese,

dela

extraíra citação, precedida de referência elogiosa, que erigira em um dos pilares da

fundamentação

do voto em que tomara posição na polêmica - MI 107 (QO), Moreira Alves, RTJ, 133:11,

50.

De qualquer sorte, até por vaidade intelectual, não ousaria retratar-

me dos justos encômios ao estudo: a verdade é que - após o clássico de

José Afonso da Silva sobre a eficácia jurídica das normas constitucio-

nais - a monografia de Barroso, em torno dos caminhos possíveis para

a efetividade (ou eficácia social) da Constituição, deu novas dimensões,

no Brasil, ao esforço para vencer a paralisia das inovações constitucio-

nais contra a resistência à sua realização de parte dos interesses criados.

3. José Afonso da Silva,Aplicabilidade das normas constitucionais, Revista dos

Tribunais, 1968.

Esta segunda tese, que hoje me orgulha apresentar, responde às

mesmas inspirações do jurista comprometido com a descoberta e a ex-

ploração das potencialidades transformadoras da Constituição.

Sua tônica é a mesma da obra anterior, uma obsessão fértil com a

efetividade da norma constitucional, expressa nesta passagem feliz, que

traduz a declarada influência de Konrad Hesse:

"O malogro do constitucionalismo, no Brasil e alhu-

res, vem associado à falta de efetividade da Constituição,

de sua incapacidade de moldar e submeter a realidade so-

cial. Naturalmente, a Constituição jurídica de um Estado é

condicionada historicamente pelas circunstâncias concre-

tas de cada época. Mas não se reduz ela à mera expressão

das situações de fato existentes. A Constituição tem uma

existência própria, autônoma, embora relativa, que advém

de sua força normativa, pela qual ordena e conforma o contex-

to social e político. Existe, assim, entre a norma e a rea-

lidade, uma tensão permanente. É neste espaço que se

definem as possibilidades e os limites do direito consti-

tucional".

Ou nesse parágrafo, irretocável, que trai a segura apreensão do me-

lhor da lógica de Kelsen:

"No nível lógico, nenhuma lei, qualquer que seja sua

hierarquia, é editada para não ser cumprida. Sem embargo,

ao menos potencialmente, existe sempre um antagonismo

entre o dever-ser tipificado na norma e o ser da realidade

social. Se assim não fosse, seria desnecessária a regra, pois

não haveria sentido algum em impor-se, por via legal, algo

que ordinária e invariavelmente já ocorre. É precisamente

aqui que reside o impasse científico que invalida a suposi-

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ção, difundida e equivocada, de que o direito deve limitar-

se a expressar a realidade de fato. Isso seria sua negação.

De outra parte, é certo que o direito se forma com elemen-

tos colhidos na realidade, e seria condenada ao insucesso a

legislação que não tivesse ressonância no sentimento so-

cial. O equilíbrio entre esses dois extremos é que conduz a

um ordenamento jurídico socialmente eficaz".

4. A Hans Kelsen, contudo, a obra reserva, depois (Parte Final, cap. 1, n. 1), um

tratamento

injusto e incide na assimilação, também difundida mas equivocada, entre o normativismo

da Teorhia

Pura - que tem um dos seus pontos fortes na revelação do caráter também criador das etapas

sucessivas de aplicação do direito, até a sentença, inclusive (cf., p. ex., Teoría general del

derecho

y del Estado, trad., México, 1949, p. 137 e s.) - e o formalismo dos exegetas, este, sim, que

parte

da premissa de "que a atividade do intérprete se desenvolve por via de um processo

dedutivo, de

mera subsunção do fato à norma", de sentido supostamente inequívoco: permita-me o autor

a críti-

ca ligeira, que, por força do contraste, realçará os muitos elogios.

O tema agora eleito - Interpretação e aplicação da Constituição

de trato freqüentemente negligenciado, quando não enfadonhamente

repetitivo, seguramente não é uma promessa, necessariamente mistificadora.

de ensinar caminhos sem desvios nem alternativas para a solução

pretensamente unívoca de todo e qualquer problema constitucional.

Ao contrário, o subtítulo da tese - Fundamentos de uma dogmática

constitucional transformadora - desvela o engajamento progressista

do autor, que o parágrafo final do estudo corajosamente renova:

"O constituinte é invariavelmente mais progressista que

o legislador ordinário. Tal fato dá relevo às potencialidades do

direito constitucional, e suas possibilidades interpretativas. Sem

abrir mão de uma perspectiva questionadora e crítica, é possí-

vel, com base nos princípios maiores da Constituição e nos

valores do processo civilizatório, dar um passo à frente na

dogmática constitucional. Cuida-se de produzir um conheci-

mento e uma prática asseguradores das grandes conquistas

históricas, mas igualmente comprometidos com a transfor-

mação das estruturas vigentes. O esboço de uma dogmática

autocrítica e progressista, que ajude a ordenar um país capaz

de gerar riquezas e distribuí-las adequadamente".

Essa audaciosa declaração de compromisso do autor com a

"transformação das estruturas vigentes" não seria de celebrar se se

tratasse apenas de mais uma dessas tentativas, tão comuns na área do

direito público, de vender crenças ideológicas dessa ou daquela co-

loração como soluções de dogmática constitucional, de simulada

neutralidade científica.

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Certo, Luís Roberto Barroso denuncia com razão que "a idéia de

neutralidade do Estado, das leis e de seus intérpretes, divulgada pela

doutrina liberal-normativista, toma por base o status quo” e, por isso, só

reputa neutra “a decisão ou a atitude que não afeta nem subverte as

distribuições de poder e riqueza existentes na sociedade".

É verdade também que não receou enfrentar preconceitos e resga-

tar, da superficialidade da réplica que sói opor-lhe a crítica reacionária,

os aspectos positivos da "teoria crítica do direito" e do movimento do

"direito alternativo".

Não obstante, a obra repele decididamente a pregação dos que, a

partir da "impossibilidade da objetividade plena" - dado o inextirpável

coeficiente de subjetividade que toda interpretação contém -, renun-

ciam na sua prática à busca da "objetividade possível".

Daí, o traço antológico da linha de equilíbrio que propõe:

"A impossibilidade de chegar-se à objetividade plena

não minimiza a necessidade de se buscar a objetividade

possível. A interpretação, não apenas no direito como em

outros domínios, jamais será uma atividade inteiramente

discricionária ou puramente mecânica. Ela será sempre o

produto de uma interação entre o intérprete e o texto, e seu

produto final conterá elementos objetivos e subjetivos. E é

bom que seja assim. A objetividade traçará os parâmetros

de atuação do intérprete e permitirá aferir o acerto de sua

decisão à luz das possibilidades exegéticas do texto, das

regras de interpretação (que o confinam a um espaço que,

normalmente, não vai além da literalidade, da história, do

sistema e da finalidade da norma) e do conteúdo dos

princípios e conceitos de que não se pode afastar. A subje-

tividade traduzir-se-á na sensibilidade do intérprete, que

humanizará a norma para afeiçoá-la à realidade, e permiti-

rá que ele busque a solução justa, dentre as alternativas que

o ordenamento lhe abriu. A objetividade máxima que se

pode perseguir na interpretação jurídica e constitucional é

a de estabelecer os balizamentos dentro dos quais o apli-

cador da lei exercitará sua criatividade, seu senso do razoa-

vel e sua capacidade de fazer a justiça do caso concreto".

A essa orientação o autor consegue manter-se invariavelmente fiel,

à custa da rejeição coerente à tentação dos desvios de todas as bandas.

Assim, de um lado, na trilha do seu mestre, o notável José Carlos

Barbosa Moreira volta a denunciar a lógica predileta dos reacionários,

"uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira,

que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o

texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão

parecido quanto possível com o antigo".

Repele, no entanto, com igual vigor, o "charlatanismo constitucio-

nal", mercê do qual, com freqüência, intérpretes politicamente compro-

metidos - incluídos alguns dos nossos - forcejam por ignorar princí-

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pios elementares e limites intransponíveis da dogmática do ordenamento

positivo, à busca de uma falsa legitimação jurídica para suas posições.

Essa fidelidade à dignidade científica da interpretação constitucio-

nal, sem prejuízo da criatividade e do compromisso com a transforma-

ção, na medida em que dogmaticamente viáveis, responde pelo nível de

altiplano, sem depressões, que o livro mantém, do começo ao fim.

É impossível, contudo, não assinalar alguns pontos da obra, cuja

particular cintilação a singulariza, no panorama de hoje da nossa doutri-

na constitucional.

Entre eles, toda a Parte I - A determinação da norma aplicável -,

que, salvo engano, pela sistemática do trato dos conflitos das normas

constitucionais no tempo e no espaço, não encontra paralelo em nossa

literatura.

Nela, ganha realce a precisa análise da questão, quase inexplorada,

da legitimidade e dos limites do controle, no foro brasileiro, da validade

da norma estrangeira a aplicar, quer perante a Constituição de origem,

quer perante a própria Constituição do Brasil, cujas normas, em passa-

gem de grande felicidade, o autor insere na "ordem pública internacio-

nal". São páginas ímpares.

De relevar também é todo o capítulo destinado a enfatizar o decisi-

vo papel dogmático dos princípios constitucionais - "normas eleitas

pelo constituinte como fundamentos e qualificações essenciais da or-

dem jurídica que instituem" -, os quais - assinala o autor, reafirman-

do sua postura fundamental -, por sua generalidade, abstração e capa-

cidade de expansão, permitem muitas vezes ao intérprete "superar o

legalismo estrito e buscar no próprio sistema a solução mais justa", mas,

a um só tempo, "funcionam como limites interpretativos máximos, neu-

tralizando o subjetivismo voluntarista dos sentimentos pessoais e das

conveniências políticas, reduzindo a discricionariedade do legislador e

impondo-lhe o dever de motivar seu convencimento".

Exemplar igualmente, dentro da mesma diretiva metodológica,

nos tópicos que se ocupam dos princípios específicos da interpretação

constitucional, é a exploração das potencialidades do "princípio da

razoabilidade" e a definição dos marcos do seu espaço legítimo de

incidência.

Só duas palavras a mais.

Vai a primeira para o cuidado da tese com a pesquisa e a análise da

jurisprudência constitucional brasileira, que a obra de nossos especia-

listas, a exemplo do que sucede nos demais ramos do direito, tende sim-

plesmente a ignorar.

O escamoteamento da jurisprudência pela doutrina, entretanto, é

de todo indesculpável. Não é que se pretenda impor ao teórico a submis-

são ao entendimento dos tribunais - acentuei, ao prefaciar outra obra

recente: o que não é leal, sobretudo para o leitor jovem, é não dar conta

dele e transmitir, como verdades apodíticas, opiniões diametralmente

opostas a quanto se tem decidido - certo ou errado, não importa - na

vivência cotidiana, na Justiça, da lei e da Constituição.

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5. José Tarcisio de Almeida Melo, Direito constitucional brasileiro, Del Rey, 1996,

prefáciu.

É auspicioso verificar que essa tendência tradicional está sendo su-

perada por alguns dos melhores nomes da nova geração de publicistas

brasileiros.

6. Cf., a partir de José Celso de Melo Filho (Constituição Federal anotada, Saraiva,

1986) e de

Gilmar F. Mendes (Controle de constitucionalidade, Saraiva, 1990, e Jurisdição

constitucional -

controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha, Saraiva, 1996), v. g., Clémerson M.

Clêve. A

fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, Revista dosTribunais,

1995; Nagih

Slaibi Filho, Ação declaratória de constitucionalidade, Forense, 1994; Elival S. Ramos. À

inconstitucionalidade das leis, Saraiva, 1994; Oscar Vilhena Vieira, Supremo Tribunal

Federal -

jurisprudência política, Revista dos Tribunais, 1994; Joaquim Barbosa Gomes, La Cour

Suprëim’

dans le système politique brésilien, além de valiosos comentários e críticas de decisões

determinadas,

e. g., Flávio Bauer Novelli, sobre o julgamento da ADIn 939, declaratória da

inconstitucionalidade do

art. 2º, § 2º, da EC 3/93, RT - Cadernos de Direito Constitucional, 13:18.

Entre eles, com esta tese, Luís Roberto Barroso se inseriu definiti-

vamente com minuciosa atenção à jurisprudência constitucional do País,

particularmente a do Supremo Tribunal, que analisa com precisão e cri-

tica com agudeza, quando entende ser o caso.

A transcrição de alguns trechos já dispensaria, a rigor, a última

nota destas palavras, reservada para louvar a clareza e a limpidez do

estilo, de elegância ática, infenso a ouropéis e berloques, sem conces-

sões à frase arrevesada, às metáforas substitutivas de conceitos técnicos

e a tantos outros abomináveis vícios de provinciano pedantismo, dos

quais muitos de nossos juristas estão longe de libertar-se.

Por tudo quanto foi dito, o melhor é encerrar.

Afinal, se o livro é tão bom e tão bem escrito, já é mais que hora de

deixar que o leitor desavisado, que haja gasto seu tempo com esta apresen-

tação desnecessária, entregue-se afinal ao prazer intelectual da sua leitura.

Brasilia, maio de 1996.

J. P. Sepúlveda Pertence

REGISTROS

Inúmeras pessoas participaram deste projeto, com maior ou menor

intensidade, em contribuições intelectuais e afetivas. Por evidente, ne-

nhuma delas tem culpa no resultado. Ana Paula de Barcellos tem sido

um adorável anjo da guarda destes últimos anos, com sua dedicação e

talento. Luís Eduardo Barbosa Moreira prestou-me valiosa ajuda na pes-

quisa dos materiais em italiano e reviu em minúcia o texto final. Lúcia

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Maria Lefebvre Fisher, de novo e sempre, foi a bibliotecária que tomou

minha vida mais fácil e melhor. Devo, igualmente, ao Professor Osiris

Cuadrat de Souza inúmeras correções da primeira versão.

Nelson Nascimento Diz, Mauro Fichtner Pereira e Joel Alves

Andrade, advogados e pessoas notáveis, foram interlocutores freqüen-

tes e gratificantes de minhas angústias e perplexidades. Os Professores

José Carlos Barbosa Moreira, Milton Flaks, Joaquim Arruda Falcão e

Hélio Assunção honraram-me com a leitura dos originais e com suas

críticas lúcidas e proveitosas. O Professor Gustavo Tepedino tem sido

companheiro e amigo constante de muitos caminhos, que vêm desde o

movimento estudantil e chegarão a um mundo melhor.

Os Professores Doutores Caio Tácito, Raul Machado Horta, José

Alfredo de Oliveira Baracho, Carlos Alberto Direito e Jacob Dolinger

integraram a banca de concurso que me conferiu o grau de titular em

Direito Constitucional, com nota máxima. A leitura atenta que fizeram

de meu trabalho e as argüições eruditas e instigantes valorizaram imen-

samente a conquista. Partilho o título, em profunda comunhão afetiva,

com a Professora Carmen Tiburcio, pelo estímulo, carinho e transcen-

dente amizade de todos estes anos.

Este trabalho é dedicado à Tê, que o acompanhou a cada passo, e à

Luna, que nasceu junto com ele. Nas madrugadas e fins de semana em

que o escrevi, e por isto não pude estar com elas, reconheci-me no verso

encantado de Jorge Luis Borges, uma linda declaração de amor: "Estar

com você ou não estar com você é a medida do meu tempo".

Dezembro de 1995

LRB

INTRODUÇÃO

"Um texto, depois de ter sido separado do seu emissor

e das circunstâncias concretas da sua emissão, flutua no

vácuo de um espaço infinito de interpretações possíveis.

Por conseqüência, nenhum texto pode ser interpretado de

acordo com a utopia de um sentido autorizado definido,

original e final. A linguagem diz sempre algo mais do que

o seu inacessível sentido literal, que já se perdeu desde o

início da emissão textual."

Umberto Eco

1. Umberto Eco, Les limites de l´interprétation, 1992, p. 8.

1. A interpretação. Generalidades

A Terra é plana, e todos os dias o sol nasce, percorre o céu de ponta

a ponta e se põe do lado oposto. Por muito tempo isto foi tido como uma

obviedade, e toda a compreensão do mundo era tributária dessas pre-

missas, Que, todavia, eram falsas. Desde logo, uma primeira constatação:

as verdades, em ciência, não são absolutas nem perenes. Toda interpre-

tação é produto de uma época, de uma conjuntura que abrange os fatos,

as circunstâncias do intérprete e, evidentemente, o imaginário de cada

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um. Ao longo dos séculos, o homem tem recorrido à mitologia, ao so-

brenatural, ao panteísmo, à fé monoteísta de diversos credos e à obses-

são do racionalismo. Não necessariamente nessa ordem.

Em instigante trabalho no qual procurou traçar um paralelo entre a

Física e o direito constitucional, Laurence Tribe dissertou sobre os três

grandes estágios da Física moderna, e como cada um deles influenciou

a percepção do universo em geral. Newton trabalhou sobre a idéia de

que os objetos eram isolados e interagiam a distância e utilizou-se de

conceitos metafísicos como espaço e tempo absolutos. A Física pós-

newtoniana, marcada pela teoria da relatividade de Einstein, superou a

fase do absoluto, divulgou a idéia da curvatura do espaço e de que todos

os corpos interagem entre si. Por fim, com a Física quântica percebeu-

se que a própria atividade de observação e investigação interfere com os

fatos pesquisados. Vale dizer: nem mesmo a mera observação é neutra.

2. Laurence Tribe, The curvature of constitutional space: what lawyers can learn from

modern physics, Harvard Law Review, 103:1, 1989.

Ao longo do tempo, varia a percepção que o homem tem, não ape-

nas do mundo à sua volta, como também de si mesmo. Em passagen

clássica, Sigmund Freud identificou três momentos em que, pela mão

da ciência, o homem se viu abalado em suas convicções e mesmo en

sua auto-estima. O primeiro golpe deveu-se a Copérnico, com a revela-

ção de que a Terra não era o centro do universo, mas apenas um minús-

culo fragmento de um sistema cósmico cuja vastidão é inimaginável. O

segundo golpe veio com Darwin, que através da pesquisa biológica des-

truiu o suposto lugar privilegiado que o homem ocuparia no âmbito da

criação e provou sua incontestável natureza animal. O terceiro abalo,

possivelmente o mais contundente, veio com o próprio Freud, criador

da Psicanálise: a descoberta de que o homem não é senhor absoluo

sequer da própria vontade, de seus desejos, de seus instintos. Seu

psiquis-

mo não é dominado pela razão, mas pelo inconsciente.

3. Sigmund Freud, O pensamento vivo de Freud, 1985, p. 59.

É certamente possível incluir neste elenco um outro golpe mais

re-

cente: o fiasco dos países que se organizaram sob inspiração do marxis-

mo e puseram em prática o chamado socialismo real. A ideologia, que

chegou a envolver quase metade da humanidade e cativou corações e

mentes por todo o mundo, representava um exercício supremo do

racionalismo e um esforço de criação de um novo homem. Um homem

que não seria predestinado pela fatalidade, pela providência ou por seus

próprios instintos, mas pela história. Uma história que poderia ser to-

mada nas mãos para promover uma sociedade igualitária, solidária e

pretensamente universal, sem Estados, nacionalismos ou fronteiras.

Não faltam os que possam alegar que, desde a primeira hora, denuncia-

ram a inviabilidade ou os desvios do modelo, não deixa de ser desolador

para o espírito humano que tudo tenha acabado em secessão, desordem

e fratricídio.

Page 12: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

O trabalho que a seguir se desenvolve parte da premissa consolida-

da de que a interpretação não é um fenômeno absoluto ou atemporal.

Ela espelha o nível de conhecimento e a realidade de cada época, bem

como as crenças e valores do intérprete, sejam os do contexto social em

que esteja inserido, sejam os de sua própria individualidade.

2. Apresentação do tema

A interpretação constitucional no Brasil era um tema à espera de

um autor. Possivelmente continuará a ser. Este estudo, todavia, tem a

ambição de identificar e sistematizar os elementos essenciais da teoria

da interpretação aplicáveis ao direito constitucional. No seu desenvolvi-

mento, sem embargo da ênfase dada à realidade brasileira, procurou-se

importar, seletivamente, com moderação e sentido crítico, o que de me-

lhor havia no direito comparado sobre a matéria.

4. Posteriormente à publicação da 1ª edição deste livro, em 1996, foram lançados

outros

trabalhos monográficos acerca da interpretação constitucional, dentre os quais se destacam:

Inocêncio

Mártires Coelho, Interpretação constitucional, 1997; Uadi Lammêgo Bulos, Manual de

interpre-

tação constitucional, 1997; Celso Ribeiro Bastos, Hermenêutica e interpretação

constitucional,

1997; Lenio Luiz Streck, Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica

da

construção do direito, 1999.

Neste esforço, deu-se especial atenção à bicentenária produção

jurisprudencial da Suprema Corte norte-americana, bem como à fecun-

da atuação do Tribunal Constitucional Federal alemão em pouco mais

de um quarto de século. Contudo, e naturalmente, reservou-se maior

destaque para as decisões do Supremo Tribunal Federal brasileiro, refe-

ridas e reproduzidas com freqüência ao longo do texto, contrariando um

velho hábito da doutrina de tratar a jurisprudência, sobretudo a nacio-

nal, com certo desdém. Não se correu o risco, aqui, de ficar de frente

para o mar, de costas para o Brasil.

O trabalho que se segue não tem por objeto a filosofia da interpreta-

ção constitucional, nem tampouco pretende ser uma teoria geral sobre o

tema. Ele se volta, predominantemente, para a atividade de realização da

vontade constitucional, e procura fundamentar, desenvolver e sistemati-

zar o conhecimento necessário a tal desiderato. Concentra-se, assim, no

itinerário intelectivo a ser percorrido no processo de interpretação da Cons-

tituição, desde a determinação da norma aplicável até o ato final de sua

incidência sobre o caso concreto, sem descurar do questionamento acerca

do papel desempenhado pela subjetividade do próprio intérprete.

A interpretação constitucional, como a interpretação em geral, não

é um fenômeno monolítico, singular. Ela é essencialmente plural e com-

porta ênfase em aspectos diferentes. Em uma análise científica, assim, é

possível voltar a atenção, em primeiro lugar, para o sistema, isto é, para

Page 13: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

o conjunto de normas, princípios e conceitos inerentes ao processo

interpretativo. Pode-se, de outra parte, dar um papel destacado ao obje-

to, vale dizer, aos casos concretos, às situações da vida, aos problemas

que devem ser solucionados pela interpretação da norma. Por fim, é

possível cogitar, ainda, de investigar o papel do sujeito da interpretação,

voltando os olhos para os valores e a ideologia do intérprete e sua reper-

cussão no produto de seu trabalho.

Metodologicamente, portanto, é possível encarar a interpretação

constitucional a partir do sistema, do primado da norma e da dogmática

jurídica tradicional, à qual se adicionam particularidades exigidas pelo

caráter singular da Constituição. A interpretação constitucional, por via

de conseqüência, é uma espécie de interpretação jurídica, enriquecida

por princípios e regras próprias. Este método, que se pode identificar

como método hermenêutico clássico, trata a Constituição como lei, e

procura desenvolver sua força normativa, sem embargo de dificuldades

que a peculiar estrutura das normas constitucionais muitas vezes suscita.

5. Ernst-Wolfgang Böckenförde (Escritos sobre derechos fundamentales, 1993) faz

refe-

rência ao método hermenêutico clássico, que associa a Forsthoff (Rechtsstaat im Wandel,

1976),

e dele distingue variações de menor ou maior sutileza, como o método hermenêutico-

concretizador,

de Konrad Hesse (Grundzüge des VerfassungsR der Bundesrepublik Deutschland. 1976) e

F.

Müller (Enzvklopãdie der geisteswissenschaftíichen Arbeitsmethoden, 1972), e o que

denomina

interpretação constitucional orientada às ciências da realidade, de Smend (Staatsrechtliche

Abhandlungen, 1968).

É possível, igualmente, optar por uma metodologia que valorize

antes o objeto que motiva a interpretação, isto é, o caso concreto ou o

problema a ser resolvido. Nos países onde vigora a tradição do common

law, como nos Estados Unidos, a ênfase da argumentação jurídica recai,

precisamente, na discussão dos aspectos de fato da causa e na busca do

precedente mais adequado, sem que exista, normalmente, a rigidez de

uma norma taxativa emanada do sistema. Paralelamente ao case system

norte-americano, desenvolveu-se entre os alemães a tópica, o chamado

método tópico aplicado aos problemas, pelo qual se sustenta o primado

do problema sobre a norma jurídica e sobre o sistema, onde a interpreta-

ção se apresenta como um método aberto de argumentação, indutivo e

não dedutivo. Nele, a ordem jurídica é apenas uma referência, um dos

argumentos, um dos topoi a serem levados em conta na solução das

situações concretas.

6. Veja-se, por todos, em meio a vastíssima bibliografia, o texto clássico de Karl

Llewellyn,

The case law system in America, Columbia Law Review, 88:989, 1988.

7. A obra fundamental sobre a tópica é de Theodor Viehweg, Topik und Jurisprudenz,

1953.

Page 14: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Vejam-se, também, H. Ehmke, Prinzipien der Verfassungsinterpretation, 1963; Ernst-

Wolfgang

Böckenförde, Escritos sobre derechos fundamentales, cit., p. 19 e s.; José Antonio Estévez

Araujo, La

Constitución como proceso y la desobediencia civil, 1994; Eduardo García de Enterría,

Reflexiones

sobre la ley y los principios generales del derecho, 1984. Em língua portuguesa, v. Paulo

Bonavides,

Curso de direito constitucional, 1993, p. 404 e s.

Por fim, é possível, na interpretação constitucional, voltar os olhos para

o papel do intérprete, as possibilidades de sua atuação e os limites de sua

discricionariedade. Aqui é de grande relevo o aporte trazido pela teoria crí-

tica do direito e seus desdobramentos, notadamente no seu questionamento

da onipotência da dogmática jurídica convencional e da função ideológica

do direito e do intérprete. Abre-se, assim, um espaço para a discussão da

objetividade da norma e da neutralidade de seu aplicador, e do papel do

direito como instrumento de conservação e de transformação.

8. V Michel Miaille, Introdução crítica ao direito, 1989; Carlos Maria Cárcova e

outros,

Materiales para una teoría crítica del derecho, s. d.; Luis Alberto Warat e Eduardo A.

Russo,

Interpretación de la ley, 1988, v. 1.

O presente estudo procurou, na medida do possível, produzir a sín-

tese necessária dessas perspectivas distintas. Sem deixar de reconhecer,

contudo, que tanto a tópica quanto a crítica - bem como outras varia-

ções, que vão do sociologismo ao economicismo - são questionamentos

do sistema legal, do saber jurídico tradicional, e não propostas que pos-

sam erradicá-lo ou desdenhá-lo. Rejeitou-se, assim, o ceticismo teórico

de que o direito, tanto na sua dimensão científica quanto na normativa,

não seja mais do que um instrumento assegurador do status quo e

perpetuador de certas relações de poder. Sem embargo da crítica históri-

ca severa que se lhe possa fazer, é inegável a existência de um amplo

espaço onde o direito pode ser não mero reflexo da realidade, mas uma

força capaz de conformá-la e transformá-la.

Investiu-se, também, grande esforço na divulgação do conhecimen-

to tradicional, na exibição dos métodos clássicos de interpretação e na

exploração dos princípios específicos de interpretação constitucional. É

preciso conhecer o direito posto. Tal preocupação poderia decorrer da

advertência de Umberto Eco de que, para violar regras ou opor-se a elas,

importa, antes de tudo, conhecê-las e, eventualmente, saber mostrar sua

inconsistência ou função meramente repressiva. Mas a verdade é que a

ignorância do que existe conduz antes ao preconceito do que à atuação

transformadora.

9. Umberto Eco, Como se faz uma tese, 1993, p. 48.

O exame do caso brasileiro revela existirem amplas e generosas

possibilidades exegéticas no texto constitucional em vigor. O texto que

se segue procura fornecer elementos, dentro do sistema jurídico, que

Page 15: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

permitam ao intérprete neutralizar certas perversões ideológicas - suas

ou do ordenamento -, realizando a justiça do caso concreto. É um es-

forço em busca de uma dogmática jurídica autocrítica e progressista.

Mas, de qualquer modo, de uma dogmática jurídica.

3. Plano de trabalho

O estudo que aqui se empreende foi concebido em três grandes par-

tes, cada uma delas dividida em dois capítulos. A Parte I cuida da deter-

minação da norma aplicável. Trata-se de investigação em tema normal-

mente negligenciado pelos constitucionalistas. O primeiro momento de

qualquer atividade interpretativa há de ser a determinação da norma ju-

rídica a ser aplicada à hipótese. Na interpretação constitucional, essa

determinação poderá ficar sujeita à prévia solução de conflitos entre

normas provindas de fontes ou ordenamentos jurídicos distintos. Será

necessário, por vezes, dirimir colisões entre um tratado internacional e

a Constituição nacional. Em outras situações, sendo hipótese de aplica-

ção de direito estrangeiro por um juiz brasileiro, precisará ele confron-

tar tal norma com o direito constitucional vigente, para aferir-lhe a vali-

dade. Diversas possibilidades se abrem nesta matéria, com caráter emi-

nentemente prático e não apenas teórico, como demonstra a farta juris-

prudência levantada sobre o assunto. O capítulo I, portanto, é dedicado

ao direito constitucional internacional.

A determinação da norma aplicável a uma dada hipótese concreta

dependerá também, muitas vezes, da solução de conflitos de natureza

temporal. Quando da entrada em vigor de uma Constituição nova, fruto

da atuação do poder constituinte originário, ou de uma emenda consti-

tucional, criada pelo constituinte derivado, é indispensável definir as

relações que se estabelecem entre esses novos textos e as normas

constitucionais e infraconstitucionais anteriormente existentes. O capí-

tulo II volta-se para o direito constitucional intertemporal, cuidando da

vigência de normas à luz de novas disposições constitucionais, abran-

gendo aspectos relacionados com a aplicação imediata e eventualmente

retroativa da Constituição, com a inconstitucionalidade material e for-

mal supervenientes, com existência ou não de efeito repristinatório quan-

do da declaração de inconstitucionalidade da norma revogadora, dentre

outros temas complexos.

A Parte II do estudo tem por objeto a interpretação constitucional

propriamente dita. No capítulo I faz-se a apreciação dos conceitos e

métodos clássicos de interpretação jurídica aplicados à interpretação

constitucional. Analisam-se, assim, as singularidades das normas cons-

titucionais que as distinguem das normas infraconstitucionais, bem como

aspectos relativos à determinação da vontade do constituinte e da au-

tonomia assumida pelo texto constitucional uma vez posto em vigor.

Percorrem-se, em seguida, as categorias em que se classifica a interpre-

tação, inclusive constitucional, quanto à origem (legislativa, adminis-

trativa ou judicial), à extensão (declarativa, extensiva ou restritiva) e

quanto aos elementos tradicionais (gramatical, histórica, sistemática e

Page 16: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

teleológica). Em desfecho, estudam-se o costume e a analogia como

métodos integrativos das lacunas constitucionais, abrindo-se, ainda, um

tópico especial para a interpretação evolutiva.

O capítulo II constitui o núcleo básico do trabalho e consiste na siste-

matização e estudo dos princípios de interpretação especificamente consti-

tucional. Nele, enfatiza-se, em primeiro lugar, a relevância dos princípios

constitucionais materiais como vetores de toda a atividade interpretativa da

Constituição. Passa-se, logo após, ao exame detalhado e individual de cada

um dos princípios arrolados: supremacia da Constituição, presunção de

constitucionalidade das leis e atos do Poder Público, interpretação confor-

me à Constituição, unidade da Constituição, razoabilidade-proporcio-

nalidade, concluindo com o princípio da efetividade.

A Parte Final do trabalho cuida da objetividade desejada e a neu-

tralidade impossível: o papel do intérprete na interpretação constitucio-

nal. Analisa-se, ali, no capítulo I, a teoria jurídica clássica ou tradicional

e algumas formulações que a questionaram, como a teoria crítica do

direito e o movimento impropriamente designado de direito alternativo.

Faz-se, nessa parte, ampla especulação sobre a norma como parâmetro

para a objetividade do direito e da atividade interpretativa, bem como

sobre questões afetas à neutralidade do intérprete. Encerrando o capítu-

lo, procura-se enfatizar a importância de uma boa dogmática constitucio-

nal, que liberte o estudo do direito constitucional da retórica vazia e do

discurso puramente político, sem densidade jurídica. A concretização

da Constituição, sua valorização como documento jurídico, aproxima-a

antes do processo do que da ciência política. Por derradeiro, no capítulo

II procura-se apresentar, esquematicamente, uma síntese das idéias de-

senvolvidas ao longo do estudo.

Ao longo de todo o texto, nenhuma preocupação foi mais constante

do que a que inspirou a bela passagem de Manuel Bandeira, em Itinerá-

rio de Pasárgada, lembrada por Plauto Faraco de Azevedo, em sua Crí-

tica à dogmática e hermenêutica jurídica:

"Aproveito a ocasião para jurar que jamais fiz um poe-

ma ou verso ininteligível para me fingir de profundo sob a

especiosa capa de hermetismo. Só não fui claro quando

não pude".

PARTE I - A DETERMINAÇÃO DA NORMA APLICÁVEL

Introdução - CONFLITOS DE NORMAS NO ESPAÇO E NO TEMPO

A ordem jurídica de cada Estàdo constitui um sistema lógico, com-

posto de elementos que se articulam harmoniosamente. Não se amolda

à idéia de sistema a possibilidade de uma mesma situação jurídica estar

sujeita à incidência de normas distintas, contrastantes entre si. Justa-

mente ao revés, no ordenamento jurídico não podem coexistir normas

incompatíveis. O direito não tolera antinomias.

1. Sobre antinomias e critérios para solucioná-las, v. Norberto Bobbio, Teoria do

ordenamento

Page 17: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

jurídico, 1990, p. 81 e s.

Um dos critérios comumente utilizados para evitar as antinomias,

solucionando o conflito entre normas, é o critério hierárquico: a norma

superior prevalece sobre a inferior. Assim, pois, se a Constituição e uma

lei ordinária divergirem, é a Constituição que prevalece. Se um decreto

regulamentar desvirtuar o sentido da lei, será inválido nesta parte. Se a

resolução deixar de observar o teor do regulamento, não poderá prevale-

cer. E assim por diante.

Um segundo critério de que se vale o sistema normativo para selecio-

nar a regra aplicável, em meio a preceitos incompatíveis, é o da especia-

lização. Havendo, em relação a dada matéria, uma regra geral e uma

especial (ou excepcional), prevalece a segunda: lex specialis derogat

generalis.

2. V. Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 81 e s.

Existem, no entanto, duas espécies de conflitos de normas cuja solu-

ção, ao menos em princípio, não se socorre dos critérios hierárquico ou de

especialização, mas, sim, de outro instrumental teórico. São os conflitos

de leis no espaço e no tempo, cujo equacionamento percorre caminhos com-

plexos e acidentados, que passam por diversos ramos do direito.

As normas jurídicas positivas existentes no mundo não são univer-

sais nem perpétuas. Ao contrário, cada Estado tem suas próprias leis,

que emanam de sua soberania; e cada época tem os seus próprios valo-

res, que se consubstanciam em regras vigentes. Porque assim é, as nor-

mas variam infinitamente, no tempo e no espaço, e são suscetíveis de

gerar conflitos diversos.

3. Haroldo Valladão, Direito internacional privado, 1974. v. 1, p. 4.

Ordinariamente, determinada relação jurídica constituir-se-á, pro-

duzirá seus efeitos e extinguir-se-á sob a vigência da mesma lei. E, nes-

se caso, inexistirá qualquer conflito de natureza temporal. Por igual,

será mais comum que uma relação jurídica tenha o seu nascimento e

todo o seu ciclo de existência no âmbito do mesmo Estado, sendo regida,

pois, por um único sistema de normas. Inexistirá, em tal hipótese, qual-

quer conflito de natureza espacial.

Todavia, ocasiões existem em que essa relação sofre a incidência de

lei nova ou entra em contato com o ordenamento jurídico de outro Esta-

do. Tais hipóteses, aliás, tornam-se mais corriqueiras por força da mu-

dança acelerada da técnica e dos costumes - provocando a modifica-

ção das leis - aliada à internacionalização das atividades humanas,

gerando obrigações em que alguns de seus elementos (sujeitos, objeto,

fato jurídico) estão em conexão com Estàdos diferentes.

Pois bem: os conflitos de leis no tempo, que geralmente se observam

no âmbito de um mesmo sistema jurídico, são equacionados e resolvidos

dentro de um domínio científico denominado direito intertemporal. Os

conflitos de leis no espaço, isto é, os que exigem a definição de qual

ordenamento jurídico regerá a espécie, constituem objêto do direito inter-

nacional privado. Cada um deles tem princípios e regras peculiares, que,

singularmente, não se aglutinam em um texto normativo único, mas se

Page 18: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

espalham difusamente pelos diferentes documentos legais.

4. Nada obstante, existe uma especial concentração dessas normas na Lei de

Introdução ao

Código Civil. São de direito intertemporal os arts. 1º, 2º e 6º. São de direito internacional

privado

maior parte das normas remanescentes, notadamente do art. 7º em diante.

O direito intertemporal e o direito internacional privado, cujas re-

gras integram o chamado "sobredireito", desempenham papel de des-

taque na missão do direito de assegurar a continuidade e a estabilidade

das relações jurídicas. Com efeito, funda-se o primeiro no princípio da

não-retroatividade da lei e no respeito às situações jurídicas preexistentes.

De forma análoga, o direito internacional privado repousa sobre o prin-

cípio da territorialidade, bem como no reconhecimento das situações

jurídicas constituídas no âmbito de eficácia de uma lei estrangeira.

5. V.. Pontes de Miranda, Direito supra-estatal, direito interestatal, direito intra-estatal

e

sobredireito, in Estudos jurídicos em homenagem ao Professor Oscar Tenório, 1977, p. 458.

V.

também Jacob Dolinger, Direito internacional privado; parte geral, 1994, p. 25: "Acima das

nor-

mas jurídicas materiais destinadas à solução dos conflitos de interesses, sobrepõem-se as

regras

sobre o campo da aplicação destas normas. São as regras que compõem o chamado

sobredireito,

que determinam qual a norma competente na hipótese de serem potencialmente aplicáveis

duas

normas diferentes à mesma situação jurídica".

6. João Baptista Machado, Lições de direito internacional privado, 1982, p. 9-10.

Sem embargo do que foi dito acima, hipóteses há de aplicação re-

troativa e de aplicação extraterritorial do direito. A seguir se estudam os

princípios, as regras e as exceções que regem a aplicação das normas

constitucionais no tempo e no espaço.

Capítulo I - A CONSTITUIÇÃO E O CONFLITO DE NORMAS NO ESPAÇO. DIREITO

CONSTITUCIONAL INTERNACIONAL

Como ficou assentado, o direito internacional privado visa a solucio-

nar o conflito de leis no espaço, vale dizer, o entrechoque de normas que

emanam de soberanias diferentes. Ele regula os fatos em conexão com

leis autônomas e divergentes. A despeito da denominação imprecisa,

sua atuação não se restringe ao campo do direito privado, estendendo-se

a diferentes domínios do direito público, haja vista existirem conflitos

potenciais entre normas constitucionais, penais, fiscais e financeiras dos

diferentes Estados.

1. Sobre o tema, na literatura nacional mais recente, vejam-se, além do livro de

Haroldo Valladão,

já citado, Jacob Dolinger, Direito internacional privado, cit.; Oscar Tenório, Direito

internacional

Page 19: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

privado, 1976; Amilcar de Castro, Direito internacional privado, 1987; Irineu Strenger,

Curso de

direito internacional privado, 1978; Wilson de Souza Campos Batalha, Tratado de direito

internacio-

nal privado, 1977; e Agustinho Fernandes Dias da Silva, Introdução ao direito internacional

privado,

1975. Na literatura internacional, são fontes de referência clássicas as obras seguintes:

Savigny, Traité

de droit romain, 1855-1860; Story, Comentários sobre el conflicto de las leyes, 1834; Pillet,

Principes

de droit international privé, 1903; Nyboyet, Traité de droit international privé français,

1944; Ferrer

Correia, Lições de direito internacional privado, 1963; Battifol e Lagarde, Droit

international privé,

1981-1983.

2. Haroldo Valladão, Direito internacional privado, cit., p. 4, e Oscar Tenório, Direito

inter-

nacional privado, cit., p. 13. Existe vasta controvérsia acerca do objeto do direito

internacional

privado, não sendo esta a sede própria para reeditá-la. Conforme o país ou o autor, tem sido

incluído

no domínio do direito internacional privado o estudo da nacionalidade, da condição jurídica

do

estrangeiro, da teoria dos direitos adquiridos, do conflito de jurisdição e do reconhecimento

de

sentenças estrangeiras. Há consenso, todavia, em que a solução do conflito de leis é sua

principal

razão de existir. V. amplo levantamento sobre o tema em Jacob Dolinger, Direito

internacional

privado, cit., p. 1 e s.

3. A denominação direito internacional privado foi utilizada pela primeira vez por

Joseph

Story (Comentários sobre el conflicto de las leyes, cit., p. 12) e adotada na França por M.

Foelix (Traité du droit International privé ou du conflit des lois de diférentes nations, en

matière

de droit privé, 1843). Embora se mantenha fiel à denominação tradicional, a doutrina é

unânime em

condenar o termo internacional o direito internacional privado é predominantemente interno

e

não disciplina relações entre nações - e o termo privado, já que abrange conflitos regidos

pelo

direito público, sendo o seu próprio papel de solução de conflitos de leis de natureza

eminentemen-

te pública.

O direito internacional privado abrange os conflitos de leis, sem qual-

quer cogitação a respeito da natureza das normas da divisão clássica. Seu

papel não é o de formular a regra que vai reger o caso concreto, mas, sim,

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indicar, dentre as normas que dispõem diferentemente sobre uma mesma

matéria, qual deverá prevalecer em uma dada situação. Por tal razão, diz-se

que as normas de direito internacional privado são indiretas.

4. Oscar Tenório, Direito internacional privado, cit., p. 13.

5. V. Jacob Dolinger, Direito internacional privado, cit., p. 48: "Estas normas do

Direito

Internacional Privado apenas indicam qual, dentre os sistemas jurídicos de alguma forma

ligados à

hipótese, deve ser aplicado". O autor refere, também, alguns casos em que,

excepcionalmente, a

regra de direito internaçional privado terá caráter direto, substancial.

As regras de direito internacional privado são, normalmente, dispo-

sições de direito interno, de vez que cada ordenamento jurídico estabe-

lece suas próprias regras de solução de conflitos. Tais preceitos, que se

denominam regras de conexão, indicam qual dos ordenamentos jurídi-

cos em contato com uma dada relação deverá prevalecer e discipliná-la.

Paralelamente a isso, e ingressando em faixa de intensa conexão

com o direito internacional público, existem normas que não são cria-

das pelo órgão legislativo interno, mas, sim, resultam de acordos entre

Estados: são os tratados e convenções internacionais. Surge, aí, nova

possibilidade de conflito: o que venha a contrapor a norma internacio-

nal e os princípios e regras de direito interno. É o chamado conflito

entre fontes. Para os fins do estudo aqui desenvolvido, interessa especial-

mente a incompatibilidade entre o tratado e a Constituição.

Há, ainda, outro ponto relevante na determinação de qual lei vai

reger a hipótese. É que, ao solucionar um conflito de leis, a regra de

direito internacional privado pode indicar como aplicável uma lei de

seu próprio ordenamento - a lex fori - ou pode apontar para a aplica-

ção de norma de outro ordenamento jurídico. Disso resulta que aos juízes

e tribunais de um Estado caberá, por vezes, aplicar direito estrangeiro.

Ao fazê-lo, terão de apreciar alguns aspectos importantes dessa inte-

ração de duas ordens legais. Dentre eles se inclui a verificação da com-

patibilidade entre a norma estrangeira e a Constituição, seja a do Esta-

do de origem, seja a do foro.

A expressão "direito constitucional internacional", que abre este

tópico, é aqui empregada em associação com a idéia de direito interna-

cional privado acima exposta. Por tal designação se identifica o conjun-

to de princípios e de regras que envolvem a solução dos conflitos exis-

tentes entre as normas internacionais e estrangeiras, de um lado, e as

normas constitucionais, de outro.

Na acepção adotada, o conceito de direito constitucional internacio-

nal não se confunde com o estudo dos preceitos constitucionais que,

genérica e difusamente, tenham algum reflexo internacional, como os

que versam a nacionalidade, a condição jurídica do estrangeiro ou as

relações externas do País. O objeto de que aqui se cuida é mais restri-

to: trata-se tão-somente de encontrar a solução para os conflitos do

tipo acima descritos.

Page 21: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

6. É nesta acepção mais ampla que a expressão foi empregada por Celso Albuquerque

Mello,

em seu Direito constitucional internacional, 1994.

1. O tratado internacional e a Constituição

O tema do conflito entre as normas internacionais e a ordem interna

evoca duas grandes correntes doutrinárias que disputam o melhor

equacionamento da questão: o dualismo, pregado no âmbito internacio-

nal por Triepel e Anzilotti e seguido no Brasil por Amilcar de Castro, e

o monismo, concepção desenvolvida por Hans Kelsen e seguida no Bra-

sil pela maior parte da doutrina, inclusive Valladão, Tenório, Celso

Albuquerque Mello e Marotta Rangel.

7. Vejam-se Heinrich Triepel, Völkerrecht und Landesrecht, 1899, p. 169 e s., e

Dionisio

Anzilotti, Cours de droit international, 1929, p. 49 e s. Vejam-se, também, Triepel, Recueil

des

Cours (Cursos proferidos na Academia de DIP da Haia), 1:79 e s., apud Haroldo Valladão,

Direito

internacional pri vado, cit., p. 51, e Anzilotti, Curso de derecho internacional, p. 48, apud

Amilcar

de Castro, Direito internacional privado, cit., p. 123.

8. Direito internacional privado, cit., p. 53 e 94.

9. Direito internacional privado, cit., p. 93 e s.

10. Direito constitucional internacional, cit., p. 344.

11. V. Os conflitos entre o direito interno e os tratados internacionais, Boletim da

Sociedade

Brasileira de Direito Internacional, 44/45, p. 29.

Para os dualistas, inexiste conflito possível entre a ordem internacio-

nal e a ordem interna simplesmente porque não há qualquer interseção

entre ambas. São esferas distintas, que não se tocam. Assim, as normas

de direito internacional disciplinam as relações entre Estados, e entre

estes e os demais protagonistas da sociedade internacional. De sua par-

te, o direito interno rege as relações intra-estatais, sem qualquer cone-

xão com elementos externos. Nesta ordem de idéias, um ato internacio-

nal qualquer, como um tratado normativo, somente operará efeitos em

âmbito interno de um Estado se uma lei vier incorporá-lo ao

ordenamento jurídico positivo. Os autores se referem a esta lei com

"ordem de execução".

12. Amílcar de Castro, Direito internacional privado, cit., p. 123, citando Morelli,

Nozioni di

diritto internazionale, p. 91 e s.

O monismo jurídico afirma, com melhor razão, que o direito cons-

titui uma unidade, um sistema, e que tanto o direito internacional quan-

to o direito interno integram esse sistema. Por assim ser, torna-se impe-

rativa a existência de normas que coordenem esses dois domínios e que

estabeleçam qual deles deve prevalecer em caso de conflito. Kelsen ad-

mite, em tese, o monismo com prevalência da ordem interna e o monismo

Page 22: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

com prevalência da ordem internacional, embora seja partidário desse

último. A superioridade do direito internacional sobre o direito interno

de cada Estado foi afirmada, desde 1930, pela Corte Permanente de Jus-

tiça Internacional.

13. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 1979, p. 437 e s., especialmente p. 442-7.

14. Em parecer consultivo proferido em 31-7-1930, assim pronunciou-se a Corte:

"É princí-

pio geral reconhecido, do direito internacional, que, nas relações entre potências

contratantes de um

tratado, as disposições de uma lei não podem prevalecer sobre as do tratado" (apud

Hildebrando

Accioly, Manual de direito internacional público, 1978, p. 6).

A Constituição da maior parte dos países europeus contém regras

sobre as relações entre o direito interno e o direito internacional, nor-

malmente no sentido de considerar este último como parte integrante do

primeiro. Não, assim, a Constituição da França, de 1958, que é expres-

sa no sentido da superioridade do direito internacional, bem como a da

Holanda, de 1983. A verdade, no entanto, é que a jurisprudência

restritiva dos tribunais tende a neutralizar essa supremacia formal, sal-

vo quanto ao direito comunitário europeu, que tem desfrutado de prima-

zia sobre o direito interno.

15. V. Constituição da Áustria, de 1929, art. 9º Constituição da Alemanha, de 1949,

art. 25;

Constituição da Itália, de 1947, art. 10.

16. Constituição da França, art. 55: "Os tratados ou acordos regularmente ratificados

ou apro-

vados têm, a partir de sua publicação, uma autoridade superior à das leis, desde que

respeitadas pela

outra parte signatária". Constituição da Holanda, art. 94: "As disposições legais em vigor

no Reino

deixarão de se aplicar quando colidirem com disposições de tratados obrigatórios para todas

as

pessoas ou com decisões de organizações internacionais". No mesmo sentido é o art. 15, n.

4, da

nova Constituição russa, aprovada por referendo popular em 12 de dezembro de 1993 (v.

Gennady

M. Danilenko, The new Russian Constitution and international law, American Journal of

International

Law, 88:451, 1994, p. 464 e s.).

17. Jacob Dolinger, Direito internacional pri vado, cit., p. 83.

18. Jacob Dolinger, Direito internacional privado, cit., p. 83. V. também Celso

Albuquerque

Mello, Direito constitucional internacional, cit., p. 325: "Quanto ao D. Comunitário ele tem

sido

visto como um ramo do DIP com características próprias, por exemplo, a

supranacionalidade, a

Page 23: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

cessão de competências soberanas à comunidade. Ele é considerado uma categoria especial

dentro

da ordem jurídica dos Estados-membros. Esta é a posição da Corte de Justiça das

Comunidades

Européias". Sobre o tema, v., infra, acórdão do Tribunal Constitucional Federal da

Alemanha, nota

46. J. J. Gomes Canotilho (Direito constitucional, 1991, p. 915-6) assinala que os tratados

institutivos

das comunidades européias e as disposições comunitárias dotadas de aplicabilidade direta

impõem-

se sobre a legislação interna, quer com base no princípio da especialidade ou no da

competência

prevalente. Note-se que, nesta segunda hipótese, a prevalência não implica ab-rogação das

normas

internas precedentes ou a invalidade das subseqüentes (Anwendungsvorrang).

Nos Estados Unidos, a jurisprudência, de longa data, considerou

os tratados e convenções internacionais incorporados ao direito inter-

no, na interpretação dada ao art. 6º, 2ª seção, da Constituição. Aos atos

internacionais adequadamente aprovados pelo Congresso reconhece-

se o mesmo nível das leis federais, de forma tal que o posterior preva-

lece sobre o anterior. Paradoxalmente, na prática, o direito internacio-

nal é freqüentemente privilegiado, por força de uma atitude de defe-

rência dos tribunais americanos, que somente consideram derrogados

os atos internacionais quando seja evidente a intenção do Legislativo

nesse sentido.

19. V. Cherokee Tobacco, 78 U. S. (11 Wall)616(1871); The Paquete Habana, 175 U.

S.677

(1900); Cook vs. United States, 288 U. S. 102 (1933); Diggs vs. Schultz, 470 F. 2d 461 (D.

C.

Circuit) (1972), cert. den., 411 U. S. 931.

20. V. Reestatement (Third) of Foreign Relations Law of the United States, 1988,

§ 14.

No Brasil não existe disposição constitucional a respeito do tema, o

que tem suscitado críticas diversas. Não obstante, no que diz respeito

ao conflito entre tratado internacional e norma interna infraconstitu-

cional, a doutrina, como assinalamos pouco atrás, é amplamente majo-

ritária no sentido do monismo jurídico, com primazia para o direito in-

ternacional. Por tal postulado, o tratado prevalece sobre o direito inter-

no, de forma a alterar a lei anterior, mas não pode ser alterado por lei

superveniente. Esse entendimento é positivado no art. 98 do Código Tri-

butário Nacional.

21. Celso Albuquerque Mello, Direito constitucional internacional, cit., p. 343, e Luís

Roberto

Barroso, A brief guide to Brazil l´s new Constitution and some international issues arising

under it,

mimeografado, 1989, p. 22.

Page 24: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

22. CTN, art. 98: "Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam

a legis-

lação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha".

Curiosamente, os autores, à unanimidade, vislumbravam essa mes-

ma orientação na jurisprudência constante e reiterada do Supremo Tri-

bunal Federal. Por tal razão, causou imensa reação a decisão proferida

pela Corte no Recurso Extraordinário n. 80.004, que teria quebrado lon-

ga tradição ao decidir:

"Embora a Convenção de Genebra que previu uma lei

uniforme sobre letras de câmbio e notas promissórias tenha

aplicabilidade no direito interno brasileiro, não se sobrepõe

ela às leis do País, disso decorrendo a constitucionalidade e

conseqüente validade do Decreto-lei n. 427/69 que instituiu

o registro obrigatório da Nota Promissória em Repartição

Fazendária, sob pena de nulidade do título".

23. RTJ, 83:809, 1978. A decisão foi criticada por José Carlos de Magalhães, que

lavrou: "O

que fica dessa decisão, contudo, é a impressão de recuo do Supremo à aceitação da

prevalência do

direito internacional. (...) Afastando-se da orientação anterior, não atentaram aqueles

Ministros

para a problemática da responsabilidade do Estado na ordem internacional" (O Supremo

Tribunal

Federal e as relações entre direito interno e direito internacional, Boletim Brasileiro de

Direito

Internacional, 61-69:53, 1975-79, p. 56). Celso Albuquerque Mello também condenou o

julgado:

"Entretanto, houve no Brasil um grande retrocesso no RE n. 80.004, decidido em 1978, em

que o

STF decidiu que uma lei revoga tratado anterior. Esta decisão viola também a Convenção

de Viena

sobre direito dos tratados (1969) que não admite o término do tratado por mudança de

direito

superveniente" (Direito constitucional internacional, cit., p. 344).

Decisões posteriores da Suprema Corte mantiveram a mesma linha

de entendimento, consoante fundamentação do Ministro e internaciona-

lista José Francisco Rezek:

"O STF deve garantir prevalência à última palavra do

Congresso Nacional, expressa no texto doméstico, não

obstante isto importasse o reconhecimento da afronta pelo

país de um compromisso internacional. Tal seria um fato

resultante da culpa dos poderes políticos, a que o Judiciá-

rio não teria como dar remédio".

24. RTJ, 115:969, 1986, p. 973, e 119:22, 1987, p. 30. Também a legislação ordinária

desprezou

a preferência dos doutrinadores pelo primado das normas internacionais. Assim é que a Lei

n. 7.357,

Page 25: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

de 9-2-1985, passou a reger os cheques sem atenção à Lei Uniforme de Genebra, fruto de

convenção

que fora firmada pelo Brasil e promulgada pelo Decreto n. 57.595, de 7-1-1966.

A verdade é que, em exame detido da jurisprudência, Jacob Dolinger

constatou que a leitura que a maioria dos autores fazia das decisões do

Supremo Tribunal Federal era antes reflexo de sua própria crença no pri-

mado do direito internacional do que expressão da realidade dos julgados.

Ao contrário do sugerido, a orientação da mais alta Corte é a do monismo

moderado, em que o tratado se incorpora ao direito interno no mesmo

nível hierárquico da lei ordinária, sujeitando-se ao princípio consolidado:

em caso de conflito, não se colocando a questão em termos de regra geral

e regra particular, prevalece a norma posterior sobre a anterior.

Existem, porém, algumas exceções a essa equiparação entre tratado

e lei ordinária para efeito de resolução de conflitos. A primeira dá-se em

matéria relativa à tributação, onde o art. 98 do Código Tributário Nacio-

nal (Lei n. 5.172, de 25-10-1966), como visto, é expresso quanto à preva-

lência da norma internacional. A segunda exceção refere-se aos casos

de extradição, onde se considera que a lei interna (Lei n. 6.815, de

19-8-1980), que é geral, cede vez ao tratado, que é regra especial. Con-

fira-se o afirmado em palavras do próprio Dolinger, Professor Titular da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro:

"Nossa conclusão é que, excetuadas as hipóteses de

tratado-contrato, nada havia na jurisprudência brasileira

quanto à prevalência de tratados sobre lei promulgada pos-

teriormente, e, portanto, equivocados todos os ilustres au-

tores acima citados que lamentaram a alegada mudança na

posição da Suprema Corte. Aposição do STF através dos

tempos é de coerência e resume-se em dar o mesmo trata-

mento a lei e a tratado, sempre prevalecendo o diploma

posterior, excepcionados os tratados fiscais e de extradi-

ção, que, por sua natureza contratual, exigem denúncia for-

mal para deixarem de ser cumpridos.

25. E assim já decidiu o Supremo Tribunal Federal: No sistema brasileiro, ratificado e

pro-

mulgado, o tratado bilateral de extradição se incorpora, com força de lei especial, ao

ordenamento

jurídico interno, de tal modo que a cláusula que limita a prisão do extraditando ou

determina a sua

libertação, ao termo de certo prazo (quarenta e cinco dias contados do pedido de prisão

preventiva),

cria direito individual em seu favor, contra o qual não é oponível disposição mais rigorosa

da lei

geral (noventa dias, contados da data em que efetivada a prisão - art. 82, §§ 2º e 3º da Lei

6.815/

80) (RTJ, 162:822, 1997, Extr. 194-República Argentina, rel. Min. Sepúlveda Pertence).

26. Sobre a distinção entre tratado-contrato e tratado normativo, v. infra.

27. Direito internacional privado, cit., p. 102.

Page 26: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Já com a redação dada ao art. 178 da Constituição pela Emenda

Constitucional n. 7, de 15 de agosto de 1995, instituiu-se nova regra

específica nas relações entre o tratado e os atos internacionais. De fato,

passou o preceptivo constitucional a ter a seguinte dicção: "Art. 178. A

lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre,

devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os

acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade".

Posta a questão das relações entre o direito internacional e as dispo-

sições internas infraconstitucionais, cumpre agora investigar o tópico

mais relevante para os fins aqui propostos: como se situa o direito em

face do conflito entre o direito internacional e a Constituição. O tema é

envolto em controvérsias.

Seria possível cogitar, em um primeiro lance de vista, da invalidade

de norma constitucional que se encontrasse em confronto com determi-

nadas normas internacionais fundamentais, emanadas dos princípios

gerais do direito e dos costumes dos povos civilizados. Tal seria o caso

de preceitos que estabelecessem a submissão jurídica de um país vizi-

nho, prescrevessem sua anexação ou por qualquer outra via ofendessem a

soberania de um outro Estado. Igual juízo recairia sobre uma disposição

que pregasse o genocídio. Os exemplos poderiam multiplicar-se, embo-

ra sempre tangenciando o absurdo. Nas hipóteses aventadas, afirmar-se-ia a

supremacia do direito internacional sobre o direito constitucional.

28. O Estatuto da Corte Internacional de Justiça prevê como fontes do direito

internacional

público - isto é, normas internacionais - os tratados (convenções internacionais), o costume

internacional e os princípios gerais do direito. Faz referência, ainda, à jurisprudência e à

doutrina

como fontes auxiliares, e faculta o emprego da eqüidade (art. 38).

29. Agustinho Fernandes Dias da Silva (Introdução ao direito internacional privado,

cit., p.

33) sugere alguns outros exemplos, como o de norma constitucional que estabelecesse o

domínio

universal como objetivo nacional, que afirmasse a hegemonia nacional sobre um continente

ou

elegesse a guerra como meio de solução de conflitos. E averbou: "As normas internacionais

básicas

são indenunciáveis e irrevogáveis, por isso prevalecerão sempre".

De fato, a idéia da soberania ilimitada do poder constituinte não

merece abrigo. Não é possível emprestar à Constituição todo e qualquer

conteúdo, sem atender a quaisquer princípios, valores e condições. A

questão acima delineada - confronto da ordem constitucional com cer-

tos valores universais -, embora suscite a interessantíssima discussão

acerca dos limites materiais do poder constituinte originário, é mais teó-

rica do que real, pelo que se situa fora do objeto de um estudo mais

preocupado com a aplicação concreta do direito constitucional.

30. V. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, 1983, t. 2, p. 86.

A análise a seguir desenvolvida concentra-se no confronto entre o

Page 27: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

ordenamento interno superior e o direito internacional convencional. E

muito embora haja quem sustente que todo direito verdadeiramente in-

ternacional repousa sobre o consentimento, interessa-nos aqui, parti-

cularmente, o específico ato de vontade, convencional por excelência,

que é o tratado internacional, e como ele se coloca diante da Constitui-

ção do Estado que o celebrou.

31. José Francisco Rezek, Direito internacional público, 1989, p. 3.

32. Os tratados são atualmente a fonte mais importante do direito internacional (v.

Celso O.

de Albuquerque Mello, Direito internacional público, 1992, v. 1, p. 157). A Convenção

sobre

Direito dos Tratados (Viena, 1969) fornece a seguinte definição (art. 1º a): "Tratado

significa um

acordo internacional celebrado entre Estados em forma escrita e regido pelo direito

internacional,

que conste, ou de um instrumento único ou de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer

que

seja sua denominação específica".

Assim como no direito interno uma norma sujeita-se ao contraste

constitucional tanto do ponto de vista formal quanto do material, tam-

bém os tratados internacionais submetem-se a essa dupla apreciação.

Por via de conseqüência, é possível avaliá-los sob dois aspectos: o de

sua constitucionalidade extrínseca e o de sua constitucionalidade in-

trínseca.

A inconstitucionalidade, na primeira hipótese, também denominada

ratificação imperfeita, ocorre quando o tratado aprovado viola as regras

constitucionais de competência e de procedimento para sua celebração, apro-

vação parlamentar, ratificação e entrada em vigor. A doutrina oscilou en-

tre admitir-lhe a validade, a despeito do vício formal, ou proclamar-lhe a

nulidade. A Convenção sobre Direito dos Tratados (Viena, 1969) tomou

partido na controvérsia, afirmando a validade do tratado em tal hipótese,

salvo manifesta violação de norma fundamental sobre competência.

33. Na Constituição brasileira, a celebração de tratados, convenções e atos

internacionais é

competência privativa do Presidente da República, sujeita a referendo do Congresso

Nacional (art.

84, VIII), ao qual incumbe resolver definitivamente sobre quaisquer acordos e atos

internacionais

que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional (art. 49, I).

Sobre o

tema, embora referente ao regime constitucional anterior, v. José Francisco Rezek, Direito

dos

tratados, 1984, p. 185 e s. Já sob a Constituição atual, v. Celso O. de Albuquerque Mello,

Direito

internacional público, cit., p. 156 e s.

34. V. Celso D. de Albuquerque Mello, Direito constitucional internacional, cit.,

p. 321.

Page 28: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

35. Convenção, art. 46: "Um Estado não poderá invocar o fato de que seu

consentimento em

obrigar-se por um tratado foi expresso em violação de uma disposição de seu direito interno

sobre

competência para concluir tratados, a não ser que essa violação seja manifesta e diga

respeito a uma

regra de seu direito interno de importância fundamental".

A doutrina monista do primado do direito internacional só admite

essa hipótese de inconstitucionalidade do tratado, rejeitando qualquer

possibilidade de seu exame intrínseco para verificação da compatibili-

dade com a Lei Maior. Diversos são os autores de reputação que susten-

tam a primazia do tratado sobre a própria Constituição.

Hildebrando Accioly é taxativo ao afirmar que a lei constitucional

nao pode isentar o Estado de responsabilidade por violação de seus de-

veres internacionais. Invoca, em favor de seu ponto de vista, decisão da

Corte Permanente de Arbitragem, de Haia, onde se deliberou que "as

disposições constitucionais de um Estado não poderiam ser opostas aos

direitos internacionais de estrangeiros". E cita, também, julgado da

Corte Permanente de Justiça Internacional, de 4 de fevereiro de 1932,

onde se declarou:

"Um Estado não pode invocar contra outro Estado sua

própria Constituição para se esquivar a obrigações que lhe

incumbem em virtude do direito internacional ou de trata-

dos vigentes".

36. Hildebrando Accioly, Manual de direito internacional público, cit., p. 56.

37. Manual de direito internacional público, cit., p. 56.

Haroldo Valladão, nessa mesma linha de entendimento, sustenta que

a disposição interna, mesmo de natureza constitucional, não poderá ser

observada se contrariar preceito em vigor de direito internacional bá-

sico, geral ou de direito internacional convencional, isto é, de tratado

válido e vigente. Acompanha-o, nesse passo, Agustinho Fernandes

da Silva, para quem o tratado deve ser observado até extinguir-se ou

ser denunciado. Enfatiza que a forma própria de revogação de um tra-

tado por vontade de uma das partes é a denúncia, e não a previsão

constitucional em contrário.

38. Haroldo Valladão, Direito internacional pri vado, cit., p. 94.

39. Agustinho Fernandes Dias da Silva, Introdução ao direito internacional privado,

cit., p. 33.

Os dois autores, todavia, fazem uma distinção clara e relevante, de

natureza temporal: as proposições enunciadas acima somente se aplicam

quando o tratado já seencontre em vigor no momento de promulgação da

Constituição. Na hipótese inversa, em que o tratado é celebrado na vigên-

cia de uma dada Carta, sendo com ela incompatível, aí não prevalecerá,

por não se haver constituído legitimamente. Em palavras de Valladão:

"Assim, prevalecem as regras dos tratados anteriores

ao texto constitucional; só não prevalece a norma interna-

cional que vier a ser aprovada e ratificada após vigência do

Page 29: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

texto constitucional que a ela se opõe, pois nesse caso de-

correria dum ato internacional inválido, não vigorante, pois

não podia ter sido aprovado nem ratificado. É distinção ne-

çessária para os atos convencionais internacionais".

40. Haroldo Valladão, Direito internacional pri vado, cit., p. 94.

Em sentido diverso, e com melhor razão, parte substancial da dou-

trina brasileira. Aurelino Leal, já em 1925, averbava:

"A mim me parece que se os assuntos regulados nos

tratados forem compatíveis com as alterações introduzidas

no regime constitucional, nada há que se oponha a que as

mesmas continuem em vigor. Se, porém, as modificações

feitas na lei suprema colidirem com a matéria regulada nos

acordos internacionais, não se me afigura que os mesmos

prevaleçam contra a nova orientação constitucionaL a me-

nos que o poder constituinte consigne na reforma uma dis-

posição garantindo a sua vigência".

41. Aurelino Leal, Teoria e prática da Constituição Federal brasileira, 1925, p. 628.

Na mesma linha é o magistério de Carlos Maximiliano:

"A Constituição é a lei suprema do país; contra a sua

letra, ou espírito, não prevalecem resoluções dos poderes

federais, constituições, decretos ou sentenças federais, nem

tratados, ou quaisquer outros atos diplomáticos".

42. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, 1981, p. 314.

Também internacionalistas da melhor linhagem endossam a idéia

de prevalência da Constituição, quando não por opção doutrinária, ao

menos por constatação da realidade e do princípio da supremacia cons-

titucional. Veja-se, em seqüência, a opinião de Oscar Tenório e José

Francisco Rezek, respectivamente:

"A decretação da inconstitucionalidade dos tratados

pelo Supremo Tribunal Federal não se limita aos elemen-

tos de validade, como a ratificação e a promulgação, mas

se estende ao confronto entre a letra do tratado e a letra da

Constituição. Uma nova Constituição cria uma nova or-

dem jurídica. Subsistem apenas as normas pretéritas não

incompatíveis com ela. Assim, os tratados anteriores a ela

perdem sua eficácia desde que contrários à Constituição".

43. Oscar Tenório, Direito internacional privado, cit., p. 94.

"A constituição nacional, vértice do ordenamento jurí-

dico,é a sede de determinação da estatura da norma jurídi-

ca convencional. Dificilmente uma dessas leis fundamen-

tais desprezaria, neste momento histórico, o ideal de segu-

rança e estabilidade da ordem jurídica a ponto de subpor-

se, a si mesmo, ao produto normativo dos compromissos

exteriores do Estado. Assim, posto o primado da Constitui-

ção em confronto com a norma pacta sunt servanda, é cor-

rente que se preserve a autoridade da lei fundamental do

Estado, ainda que isto signifique a prática de um ilícito

Page 30: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

pelo que noplano externo, deve aquele responder".

44. José Francisco Rezek, Direito internacional público, cit., p. 103-4.

No direito comparado europeu, à exceção de Portugal, que adota

um regime híbrido, e da Holanda, onde a aprovação do tratado por três

quartos dos Estados Gerais modifica a Constituição, a regra é que trata-

dos que conflitem com a Lei Fundamental não possam ser aprovados

sem prévia revisão constitucional. É o que dispõem, expressamente, v.

g., as Constituições da França (art. 54), da Espanha (art. 95, I) e da

Alemanha (art. 79, I).

45. Dispõe o art. 277, 2, da Constituição portuguesa: "A inconstitucionalidade

orgânica ou

formal de tratados internacionais regularmente ratificados não impede a aplicação das suas

normas na

ordem jurídica portuguesa, desde que tais normas sejam aplicadas na ordem jurídica da

outra parte,

salvo se tal inconstitucionalidade resultar de violação de uma disposição fundamental".

46. Com relação especificamente ao direito comunitário, v. nota 18.

A esse propósito, aliás, o Tribunal Constitucional Federal da Ale-

manha (Bundesverfassungsgericht) apreciou, recentemente, recurso

constitucional contra a participação da Alemanha na União Européia,

apresentado por um grupo de políticos e professores, incluindo um ex-

dirigente da Comunidade Econômica Européia, e por membros do Partido

Verde alemão que integram o Parlamento Europeu.

47. Neue Juristische Wochenschrift, v. 47, 1993, p. 3047 e s. A íntegra do acórdão,

vertido para o inglês, está publicada no International Legal Materials, v. XXXIII, 1994, p.

388 e s.

Os requerentes alegaram, dentre outras coisas, que o Ato de Adesão

ao Tratado e o Ato que emendara a Constituição violavam seus direitos

políticos de representação, seus direitos individuais (pela transferência

de atribuições para sua proteção à União Européia), bem como ofen-

diam o princípio democrático, a soberania nacional e o direito de serem

pagos em Deutsche Mark (e não em uma futura moeda comum), além

de deverem ser submetidos a referendo popular.

Em decisão longamente fundamentada, datada de 12 de outubro de

1993, a Corte rejeitou a impugnação e permitiu a entrada em vigor do

Tratado da União Européia (também conhecido como Tratado de

Maastricht), em novembro de 1993. Não obstante isso, o Tribunal Cons-

titucional Federal cuidou de qualificar diversas questões e assentou re-

levantes premissas a propósito de sua interpretação das relações entre o

direito constitucionàl e o direito comunitário. Os diferentes aspectos da

decisão podem ser sintetizados nas proposições seguintes:

1) O direito alemão proíbe a diminuição do poder do Estado através

da transferência de deveres e responsabilidades do Parlamento Federal,

na extensão em que isso importar em violação do princípio democrático.

2) O princípio democrático não impede que a República Federal da

Alemanha se torne membro de uma comunidade intergovernamental

organizada em base supranacional.

Page 31: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

3) Se uma comunidade de Estados assume poderes e responsabili-

dades de soberania, os povos dos Estados-membros precisam legitimar

esse processo através dos seus parlamentos nacionais.

4) O princípio democrático impõe limites à extensão de funções e

poderes a serem transferidos para a comunidade européia. O Parlamen-

to Federal deverá reter funções e poderes de importância substancial.

5) O programa de integração e os direitos transferidos à comunida-

de européia supranacional devem ser especificados com precisão. Cabe

ao Tribunal Constitucional Federal determinar se os direitos de sobera-

nia exercidos pelas instituições e entidades dirigentes européias estão

dentro dos limites ou se extrapolam os que lhes foram conferidos.

6) A interpretação das regras de competência do Tratado de

Maastricht não deverá importar em extensão do Tratado. Se tal ocorrer,

a Alemanha não ficará vinculada.

7) O Tribunal Constitucional Federal e a Corte Européia de Justiça

exercem jurisdição em uma "relação cooperativa".

8) O Tratado de Maastricht estabelece uma comunidade intergo-

vernamental para criação de uma unidade mais estreita entre os povos

da Europa. Cada um desses povos é organizado em um Estado próprio,

inexistindo, pois, um Estado da Europa, com seu próprio povo.

9) a) O Tratado de Maastricht não confere à União Européia auto-

determinação na obtenção de recursos, financeiros ou de qualquer outra

natureza, destinados a atender seus objetivos. É necessário o consenti-

mento dos Estados.

b) A ratificação do Tratado não sujeita a República Federativa da Ale-

manha a um processo incontrolável e imprevisível que conduza

inexoravelmente à unificação monetária. O Tratado de Maastricht simples-

mente prepara o caminho para a integração gradual da Comunidade Euro-

péia em uma comunidade de leis. Qualquer passo adiante depende do con-

sentimento do Governo Federal, sujeito à deliberação do Parlamento.

48. International Legal Materiais, cit., p. 393-7. Resumo e tradução para o português

de

responsabilidade do autor.

Nos Estados Unidos, muito embora seja indiscutível a superiorida-

de da Constituição sobre os atos internacionais, a Suprema Corte ja-

mais declarou um tratado inconstitucional. Tal fato pode ser creditado,

em parte, a uma associação exagerada, quando não equivocada, que os

tribunais fazem entre questões internacionais e "questões políticas", o

que excluiria aquelas do controle judicial.

49. V. Restatement (Third) of Foreign Relations Law of the United States, 1988, § 111

(p. 43):

"In their character as law of the United States, rules of international law and provisions of

international

agreements of the United States are subject to the Bill of Rights and other prohibitions,

restrictions,

and requirements of the Constitution, and cannot be given effect in violation of them.

However,

Page 32: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

failure of the United States to carry out an obligation on the ground of its

unconstitutionality will not

relieve the United States of responsability under international law".

50. Sobre o tema, V. Louis Henkin, Foreign affairs and the Constitution, 1975. Para

um painel

amplo e atualizado das relações entre direito interno e direito internacional na perspectiva

norte-

americana, v. JohnH. Jackson, Status of treaties in domestic legal systems: a policy

analysis, American

Journal of International Law, v. 86, 1992, p. 310 e s.

51. E assim se passa a despeito da advertência do Justice Brennan, ao relatar e julgar

Baker

vs. Carr (369 U. S. 186) (1962), um dos principais precedentes que delineou a "political

question

doctrine": "It is error to suppose that every case ar controversy which touches foreign

relations lies

beyond judicial cognizance" (É equívoco supor que qualquer litígio que tangencie as

relações inter-

nacionais situa-se fora do conhecimento judicial).

Desse modo, a despeito do imenso prestígio e independência do

Poder Judiciário nos Estados Unidos, há uma persistente tradição de os

juízes e tribunais cederem o passo à avaliação dos Poderes Políticos,

notadamente ao Presidente da República, sempre que a matéria envolva

relações internacionais de qualquer natureza. Há toda uma linha de ca-

sos ratificando essa atitude de deferência ao Executivo. Essa orienta-

ção, aliás, chegou ao extremo de chancelar, em mais de um caso, as

decisões do Poder Executivo de seqüestrar, em Estado estrangeiro, pes-

soas contra as quais se houvesse instaurado processo criminal nos Esta-

dos Unidos, para sujeitá-las a julgamento naquele país. A questão, por

sua gravidade e relevância, merece breve digressão.

52. Vejam-se, por exemplo, United States vs. Curtiss - Wright Corp (299 U. S. 304)

(1936),

Banco Nacional de Cuba vs. Sabbatino (376 U. S. 398) (1964), First National Citibank vs.

Banco

Nacional de Cuba (406 U. S.759) (1972), Alfred Dunhill of London, inc. vs. Republic of

Cuba

(425 U. S.682) (1976), Goldwater vs. Carter (444 U. S.996) (1979), Dames & Moore vs.

Reagan

(453 U. S. 654) (1981). Veja-se, também, o interessantíssimo caso United States vs.

Palestine

Liberation Organization (U. S. District Court, Southern District of New York, 1988). O

caso mais

recente julgado pela Suprema Corte foi Barquero vs. United States (International Legal

Materials,

33:904,1994), onde se afirmou a constitucionalidade do tratado celebrado entre Estados

UnidOs e

Page 33: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

México sobre troca de informações tributárias. O tratado permite que, mediante

requerimento do

outro país, a autoridade governamental requisite a qualquer banco comercial informações

sobre

determinado correntista.

Em United States vs. Verdugo Urquidez, a Suprema Corte, refor-

mando decisão do Tribunal Federal do 9º Circuito, decidiu que a Cons-

tituição americana, ou ao menos a 4ª emenda (que assegura a

inviolabilidade das pessoas, suas casas, documentos e bens contra bus-

cas e apreensões ilegais), não se aplicava fora dos Estados Unidos. Como

conseqüência, não poderia ser invocada por cidadão mexicano levado à

força para julgamento nos Estados Unidos (com a concordância do Go-

verno mexicano), cuja casa, no México, havia sido objeto de busca ile-

gal por agentes norte-americanos.

53. 110 S. Ct. 1056 (1990). Sobre este caso especificamente, v. Andreas F. Lowenfeld,

U. S. law

enforcement abroad: the Constitution and international law, continued, AJIL, 84/444, 1990,

especial-

mente p. 491-3.

Pouco mais adiante, em decisão que estarreceu a comunidade jurí-

dica internacional, a Suprema Corte, por maioria, e reformando decisão

de duas instâncias inferiores, admitiu ser possível submeter a julgamen-

to nos Estados Unidos cidadão mexicano que fora seqüestrado no Méxi-

co, sem anuência do Governo daquele país, que formulou protesto di-

plomático veemente. Servindo-se de um argumento primário - o de

que o tratado de extradição entre Estados Unidos e México não proibia

expressamente o seqüestro -, a Suprema Corte afastou a incidência do

tratado (que teria força de lei) como já vimos e aplicou uma antiqüíssima

jurisprudência pela qual admitia que, uma vez apresentado à Justiça, um

acusado pudesse ser submetido a julgamento, independentemente de

haver sido conduzido por meio lícito ou ilícito. Em desfecho, a Corte

admitiu que o seqüestro violava princípios de direito internacional, mas

entendeu que a decisão sobre a restituição ou não do acusado ao seu

país, de onde fora retirado à força, era uma questão da competência

discricionária do Executivo. Já que ele estava nos Estados Unidos, cabia

à Justiça norte-americana julgá-lo.

54. United States vs. Alvarez Machain, 31 I. L. M. 900(1992). Na conclusão de seu

veemente

voto dissidente, consignou Justice Stevens: "Eu suspeito que a maior parte dos tribunais do

mundo

civilizado ficará perplexa pela decisão "monstruosa" que esta Corte anuncia hoje. Toda

nação que

tem interesse em preservar o estado de direito (the Rule of the Law) é afetada, direta ou

indireta-

mente, por uma decisão deste caráter". Para uma crítica igualmente contundente de tal

acórdão, V.

Page 34: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Michael J. Glennon, State sponsored abduction: a comment on United States vs. Alvarez-

Machain,

AJIL, 86:756, 1992.

Precedente mais edificante foi, estabelecido, recentemente, pela Supre-

ma Corte do Canadá. Em R. vs. Cook, julgado em outubro de 1998, decidiu

a Corte que o interrogatório de um cidadão canadense, por agentes policiais

canadenses, ainda que realizado nos Estados Unidos, sujeitava-se aos pro-

cedimentos e garantias da Carta de Direitos e Liberdades do Canadá. No

caso específico, o acusado de um homicídio não fora informado do seu

direito de ser assistido por um advogado durante o interrogatório.

55. International Legal Materials, v. XXXVIII, 1999, p. 271 e s.

Retomando a linha de raciocínio, e passando ao caso brasileiro, vai-

se constatar que, entre nós, desde a primeira Constituição republicana

se admite a verificação da constitucionalidade intrínseca de um tratado.

Em acórdão de 15 de setembro de 1977, o Supremo Tribunal Federal

declarou a inconstitucionalidade, em parte, de alguns artigos da Con-

venção da OIT n. 110, referentes às condições de trabalhadores em fa-

zenda. A Constituição de 1967-69 ensejava tal tipo de pronunciamen-

to, em regra que foi reproduzida na Carta atual. De fato, no art. 102, III,

a, da Constituição de 1988, prevê-se o cabimento de recurso extraordi-

nário quando a decisão recorrida declarar a inconstitucionalidade de tra-

tado ou lei federal.

56. Constituição Federal de 24-2-1891, art. 59, § 1º, a.

57. RTJ, 84:724, 1978, Rep. n. 803-DF, rel. Min. Djaci Falcão. Veja-se, também,

Celso D. de

Albuquerque Mello, Direito constitucional internacional, cit., p. 324.

58. "Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal... III - julgar, mediante recurso

extra-

ordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:...

b) decla-

rar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal."

É bem de ver que a dicção pura e simples da cláusula constitucio-

nal, tal como vem sendo reproduzida nos diferentes Diplomas, não

infirma, prima facie, a tese defendida por Haroldo Valladão e acima

exposta. É que, em verdade, ao prever declaração de inconstitucionalidade

de tratado, o texto constitucional só pode estar-se referindo àquele que

seja posterior à Constituição. Isso porque, consoante regra consolidada

do direito constitucional intertemporal brasileiro, não se declara a

inconstitucionalidade de preceito anterior à Constituição (v., infra, capí-

tulo II). Portanto, a letra expressa da Lei Maior não dirime a dúvida

sobre a possibilidade de o tratado anterior prevalecer, mesmo que con-

traste com a nova norma constitucional.

Todavia, o Supremo Tribunal Federal, no apagar das luzes do regi-

me constitucional anterior, afastou, de forma taxativa, quaisquer incer-

tezas que pudessem existir. A questão se impôs relativamente à cobran-

ça do imposto sobre circulação de mercadorias (ICM) na importação de

bens de capital de países membros do GATT. À vista do entendimento

Page 35: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

consolidado, a Corte editou o verbete n. 575 da Súmula, com o seguinte

teor: "À mercadoria importada de país signatário do GATT ou membro

da ALALC, estende-se a isenção do Imposto de Circulação de Merca-

dorias concedida a similar nacional".

Sobreveio, todavia, a Emenda Constitucional n. 23, de 1º de dezem-

bro de 1983, que acrescentou um § 11 ao art. 23 do Texto, determinando

a incidência do tributo sobre as mercadorias importadas, sem qualquer

distinção quanto ao país de origem. O Tribunal de Justiça de São Paulo

proferiu decisão mantendo a isenção, nos casos de importação de bem

de capital de países signatários do GATT. A Fazenda do Estado de São

Paulo interpôs recurso extraordinário, sob o fundamento de que oTribu-

nal a quo prestigiara o acordo internacional em detrimento do texto cons-

titucional emendado.

59. Ficou assim a redação do texto constitucional: "Art. 23. Compete aos Estados e ao

Distrito

Federal instituir impostos sobre:... § 11. O imposto a que se refere o item II (ICM) incidirá,

tam-

bém, sobre a entrada, em estabelecimento comercial, industrial ou produtor, de mercadoria

impor-

tada do exterior por seu titular, inclusive quando se tratar de bens destinados a consumo ou

ativo

fixo do estabelecimento".

Ao apreciar o caso, o Supremo Tribunal Federal firmou posição

estreme de dúvida ao decidir:

"Inadmissível a prevalência de tratados e convenções

internacionais contra o texto expresso da Lei Magna (...)

Os acordos internacionais, como é o caso do GATT

(General Agreement on Tariffs and Trade), protegem os

produtos originários dos países contratantes. Todavia, não

há como admitir, como deixou entender a decisão recorri-

da, que na nova tributação autorizada pela Emenda Consti-

tucional n. 23, deva ser atendido o que prescreve um trata-

do internacional (...)

Hierarquicamente, tratado e lei situam-se abaixo da

Constituição Federal. Consagrar-se que um tratado deve ser

respeitado, mesmo que colida com o texto constitucional, é

imprimir-lhe situação superior à própria Carta Política".

60. RTJ, 121:270, 1987, RE 109.173-SP, rel. Min. Carlos Madeira.

Em decisões posteriores, o Supremo Tribunal Federal atenuou o re-

sultado prático de tal decisão, passando a entender inexistir incompati-

bilidade entre o acordo do GATT e o texto constitucional resultante da

Emenda Constitucional n. 23/83. Assentou-se, no Recurso Extraordi-

nário n. 1114.784, que "a Emenda Constitucional não visou a retirar fun-

damento a essa avença internacional". Mas o princípio da supremacia

da Constituição sobre os atos internacionais convencionais restou

intangido.

61. RTJ, 124:358, 1987.

Page 36: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

62. RTJ, 126:804, 1987, p. 806. Não se está, no particular, de acordo com a leitura que

faz

deste acórdão o Professor Jacob Dolinger, ao extrair dele o sentido de que os tratados

contratuais,

como o do GATT, em contraposição aos tratados normativos, não são afetados por normas

de

direito interno, inclusive constitucionais (Direito internacional privado, cit., p. 101).

Mais recentemente, foi o Plenário do Supremo Tribunal Federal ins-

tado a pronunciar-se acerca da controvertida questão envolvendo a sub-

sistência ou não da prisão civil na hipótese de alienação fiduciária em

garantia (onde se equipara o devedor-fiduciante ao depositário), tendo

em vista o que dispõem o art. 7º, n. 7, da Convenção Americana sobre

Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica - e a cláusula

genérica inserta no art. 5º, LXVII, da Constituição de 1988. Como o

referido artigo da Convenção somente excepciona a hipótese de

inadimplemento da obrigação alimentícia, questionou-se a subsistência

ou não da prisão civil por infidelidade do depositário, haja vista a incorpo-

ração ao ordenamento jurídico brasileiro da referida Convenção (Decreto

n. 678, de 6-11-1992), nos termos do art. 5º, § 2º, da Constituição Federal

de 1988. E o Supremo, invocando a supremacia da Constituição em rela-

ção à convenção, declarou a possibilidade da prisão civil em qualquer dos

casos onde o depositário venha a ser considerado infiel, inclusive na alie-

nação fiduciária em garantia, em acórdão no qual se lavrou:

"1. A Constituição proíbe a prisão civil por dívida, mas

não a do depositário que se furta à entrega de bem sobre o

qual tem a posse imediata, seja o depósito voluntário ou

legal (art. 5º, LXVII).

2. Os arts. 1º (art. 66 da Lei n. 4.728/65) e 4º do Decre-

to-lei n. 911/69, definem o devedor alienante fiduciário

como depositário, porque o domínio e a posse direta do

bem continuam em poder do proprietário fiduciário ou cre-

dor, em face da natureza do contrato.

3. A prisão de quem foi declarado, por decisão judicial,

como depositário infiel é constitucional, seja quanto ao

depósito regulamentado no Código Civil como no caso de

alienação protegida pela cláusula fiduciária.

4. Os compromissos assumidos pela República Fede-

rativa do Brasil em tratado internacional de que seja parte

(CF, art. 5º, § 2º) não minimizam o conceito de soberania

do Estado-povo na elaboração da sua Constituição; por esta

razão, o art. 7º, n. 7, do Pacto de San José da Costa Rica

("ninguém deve ser detido por dívida": "este princípio não

limita os mandados de autoridade judiciária competente

expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação ali-

mentar"), deve ser interpretado com as limitações impostas

pelo art. 5º, LXVII, da Constituição".

Page 37: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

63. RTJ, 164:213, 1998, HC 73.044-SP, rel. Min. Maurício Corrêa. A posição do

Superior

Tribunal de Justiça é de aberta divergência em relação à do Supremo Tribunal Federal: cf.

DJU, 11

mar. 1996, RHC 4.849-PR, p. 6664, rel. Min. Adhemar Maciel; e DJU, 19 mar. 1997, RHC

5507-PR,

rel. Min. Anselmo Santiago. Sobre o tema, v. infra, cap. II, n. 4, e.

Em síntese apertada de tudo que se vem de expor, é possível assentar

que, no conflito de fontes interna e internacional, o estágio atual do direito

brasileiro, consoante a jurisprudência constitucional e a melhor doutrina, é

no sentido de que:

A) Os tratados internacionais são incorporados ao direito interno

em nível de igualdade com a legislação ordinária. Inexistindo entre o

tratado e a lei relação de hierarquia, sujeitam-se eles à regra geral de que

a norma posterior prevalece sobre a anterior. A derrogação do tratado

pela lei não exclui eventual responsabilidade internacional do Estado,

se este não se valer do meio institucional próprio de extinção de um

tratado, que é a denúncia.

B) O tratado celebrado na vigência de uma Constituição e que seja

com ela incompatível, do ponto de vista formal (extrínseco) ou material

(intrínseco), é inválido e sujeita-se à declaração de inconstitucionalidade

incidenter tantum , por qualquer órgão judicial competente, sendo tal

decisão passível de revisão pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de

recurso extraordinário. O tratado que se encontrar em vigor quando do

advento de um novo texto constitucional, seja este fruto do poder cons-

tituinte originário ou derivado, será tido como ineficaz, se for com ele

incompatível.

64. Embora não haja precedente, é possível cogitar-se do cabimento de ação direta de

inconstitucionalidade contra o decreto que o promulga, haja vista seu status equiparado ao

de ato

normativo federal.

65. Não parece própria a referência a revogação, porque, a rigor técnico, o tratado não

deixa

de viger até o momento da denúncia.

2. A norma estrangeira e a Constituição

Como já assinalado anteriormente, o direito internacional privado

tem por objeto principal a indicação da lei aplicável sempre que uma

dada relação jurídica esteja em contato com mais de um ordenamento.

Por vezes, a norma indicada será a do próprio Estado do juiz ou tribunal

que esteja apreciando a questão. Nesse caso, diz-se que a lei aplicável é

a lei do foro, a lex fori.

66. Atente-se, aqui, para a distinção óbvia que existe entre lei aplicável e tribunal

competente

para aplicá-la. Não obstante, o mais comum é que a regra de direito internacional privado

indique a

lex fori.

Page 38: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Outras vezes, todavia, a regra de conexão do direito internacional

privado apontará para a aplicação de uma lei estrangeira. Vale dizer:

conforme seja a questão submetida a juízo, os sistemas jurídicos civili-

zados admitem a aplicação, no território do Estado, de lei estrangeira

para a solução de uma controvérsia. Por evidente, inexiste qualquer

violação da soberania do Estado em tal hipótese, de vez que a aplicação

do direito estrangeiro é consentida, voluntariamente, pela norma interna.

67. Dois exemplos corriqueiros de aplicação da lei estrangeira por Tribunal brasileiro:

a) de

acordo com o art. 9º da LICC, as obrigações se regem pela lei do país em que se

constituírem.

Portanto, se duas empresas litigarem no Brasil acerca de um contrato firmado em Londres,

aplica-se à

questão a lei inglesa (aliás, em matéria contratual, onde vigora a autonomia da vontade, as

partes

podem simplesmente eleger a lei a ser aplicada, independentemente do local de celebração

do ajuste);

b) um indivíduo domiciliado na Itália morre deixando bens no Brasil. Aberto o inventário

perante o

foro brasileiro, o juiz aplicará a lei italiana para disciplinar a ordem de vocação hereditária,

porque o

art. 10 da LICC estabelece que a sucessão por morte se rege pela lei do domicílio.

A aplicação do direito estrangeiro pelos tribunais é capítulo obriga-

tório de todos os livros de direito internacional privado. Não cabe,

aqui, aprofundar essa questão em nível teórico. Faz-se, todavia, a se-

guir, uma breve síntese do conhecimento convencional e cristalizado

sobre o tema, cujas implicações práticas são mais relevantes do que

aparentam a um primeiro lance de vista.

68. A propósito, vejam-se, por todos: Haroldo Valladão, Direito internacional privado,

cit., p.

450 e s., Oscar Tenório, Direito internacional privado, cit., p. 145 e s., e Jacob Dolinger,

Direito

internacional privado, cit., p. 223 e s.

A primeira indagação de relevo que surgiu acerca da aplicação do

direito estrangeiro foi a de saber se ele deveria ser encarado como um fato

ou como direito. Os efeitos de tal distinção são evidentes: fatos dependem

de alegação pela parte e de prova; o direito, ao contrário, presume-se de

conhecimento do juiz (jura novit curia) e pode ser aplicado de oficio,

independentemente de alegação ou prova. Diversos Estados tratam o di-

reito estrangeiro como fato. Não assim, porém, o ordenamento brasilei-

ro, onde o direito estrangeiro tem status de lei, embora o juiz possa trans-

ferir para a parte o ônus de provar-lhe o teor e a vigência.

69. Tal é o caso da França e do Reino Unido. Na Itália há decisões em ambos os

sentidos. V.

Jacob Dolinger, Direito internacional privado, cit., p. 224-6.

70. V. CPC, art. 337: "A parte, que alegar direito municipal, estadual, estrangeiro ou

consue-

Page 39: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

tudinário, provar-lhe-á o teor e a vigência, se assim o determinar o juiz".

A segunda questão que mobilizou os estudiosos foi a da interpreta-

ção e aplicação do direito estrangeiro. É que, diante da lei de outro país,

ao juiz se impõe determinar: a) se deve equipará-la a qualquer outra

norma interna, integrando-a ao sistema jurídico do foro; b) ou se deve

tratá-la com o sentido que lhe é dado pelo sistema jurídico estrangeiro.

Normalmente, a segunda proposição é a que prevalece. Por vezes,

no entanto, o direito estrangeiro há de curvar-se aos princípios e valores

do foro. Logo à frente se voltará ao ponto.

a) A norma estrangeira e a Constituição de origem

A maior parte da doutrina e mesmo alguns precedentes internacio-

nais convergem no sentido de que, ao aplicar o direito estrangeiro, o ma-

gistrado deverá fazê-lo em sua integralidade, acolhendo-lhe os preceitos e

as remissões. Nessa ordem de idéias, caber-lhe-á levar em conta a legisla-

ção estrangeira em seus diferentes níveis, o que inclui a Constituição.

É nesse sentido a jurisprudência da Corte Permanente de Justiça. Em

decisões proferidas em 1929, a propósito de casos conhecidos como

Serbian Loans e Brazilian Loans, a Corte firmou os princípios que a orien-

tam. Estabeleceu, assim que uma vez determinada a aplicação da lei de

um dado Estado, deve ela ser aplicada como o seria naquele Estado. Apli-

car uma norma diferentemente de como procederiam os tribunais do país

cuja lei foi indicada entraria em colisão com toda a teoria de adequada

aplicação da lei estrangeira. A Corte, portanto, deve empenhar-se em fa-

zer uma justa apreciação da jurisprudência dos tribunais locais.

71. P. C. I. J., Ser. A, n. 20/21, 1929, p. 5,40-7,93 e 120-5, apud Henkin, Pugh,

Schachter e

Smit, International law, 1987, p. 139: "Once the Court has arrived at the conclusion that it

is

necessary to apply the municipal law of a particular country, there seems to be no doubt

that it must

seek to apply it as it would be applied in that country. (...) Of course, the Court will

endeavour to

make ajust appreciation of the jurisprudence of municipal courts".

No mesmo sentido dispõe o art. 2º da Convenção aprovada pela con-

ferência Internacional Especializada sobre direito Internacional Privado

(Montevidéu, 1979), que determina que o direito extrangeiro será aplica-

do da mesma forma que o seria pelos juízes do país do qual emana a regra

aplicada. Bem assim, igualmente, o art. 409 do Código de Bustamante,

que é norma positiva no Brasil, e que determina que na aplicação do

direito estrangeiro deve-se atentar para o sentido que se lhe dá no país

de sua origem. Ou seja: deve-se respeitar a interpretação doutrinária e

jurisprudencial que lá se produz.

72. V. a íntegra da Convenção em Jacob Dolinger e Carmen Tiburcio, Vade-mécum de

direito

internacional privado, 1994, p. 627-30. O art. 2º dispõe: "Os juízes e as autoridades dos

Estados

Page 40: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Partes ficarão obrigados a aplicar o direito estrangeiro tal como o fariam os juízes do

Estado cujo

direito seja aplicável, sem prejuízo de que as partes possam alegar e provar a existência e o

conteú-

do da lei estrangeira invocada".

73. Jacob Dolinger e Carmen Tiburcio, Vade-mécum de direito internacional privado,

cit.,

p. 568.

Embora em diferente cenário, a questão se põe com grande signifi-

cação nos Estados Unidos. É que lá a parte mais expressiva do direito

substantivo é estadual, pelo que as regras de direito de família, suces-

sões, contratos, comerciais, penais etc. variam de Estado para Estado.

Como conseqüência, a disciplina dos conflicts of laws, que corresponde

ao direito internacional privado dos países de tradição romano-germânica,

concentra-se na indicação da lei aplicável às relações que mantêm cone-

xões com os ordenamentos jurídicos de mais de um Estado da Federação.

Além disso, de acordo com as regras próprias sobre jurisdição e

competência lá vigentes, cabe muitas vezes à Justiça Federal solucio-

nar litígios que envolvem a aplicação de direito estadual. Pois bem: a

SupremaCorte firmou, de longa data, orientação no sentido de que, ao

aplicar lei estadual, deve o juiz ou tribunal federal dar-lhe o sentido que

lhe confere o mais alto tribunal do Estado cuja lei está sendo aplicada.

74. Nos termos do art. 3º da Constituição, as duas grandes categorias de casos que

recaem na

competência das cortes federais são: a) os que envolvem a aplicação da Constituição, das

leis

federais e dos tratados internacionais (federal question jurisdiction) e b) os que têm como

partes

cidadãos de Estados diferentes da federação (diversity jurisdiction). Nesta segunda

hipótese, as

cortes federais se vêem rotineiramente na contingência de aplicar direito estadual. V.

Charles Alan

Wright, Law of Federal Courts, 1983, caps. 3 e 4, e Louisell, Hazard Jr. e Tait, Pleading

and

procedure, 1983, p. 16-7.

75. V. Eric R. Co. vs. Tompkins, 304 U. S.64(1938).

Ficou assinalado, linhas atrás, que ao aplicar o direito estrangeiro o

intérprete deve fazê-lo integralmente, observando, inclusive, as regras

próprias de hierarquia das leis e de direito intertemporal vigentes no

país de origem. Dentro dessa lógica, deverá prestigiar, em primeiro lu-

gar, as normas constitucionais, cuja supremacia é princípio

generalizadamente aceito. E, se constatar que uma dada norma inferior

é incompatível com a Constituição, deverá cogitar de pronunciar-lhe a

inconstitucionalidade, nos limites e com os efeitos que o juiz estrangei-

ro poderia fazê-lo.

Se no direito estrangeiro, por exemplo, se considerar que a norma

anterior à Constituição é com ela incompatível, fica revogada, igual tra-

Page 41: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

tamento à questão deverá dar-lhe o juiz brasileiro que eventualmente de-

vesse aplicá-la a um caso concreto. Mas, se a lei editada já na vigência de

uma dada Constituição for com ela incompatível, é de indagar-se: pode o

juiz ou tribunal do foro declarar-lhe a inconstitucionalidade perante a

Constituição estrangeira e,por via de conseqüênÇia deixar de aplicá-la?

Haroldo Valladão responde afirmativamente, sem opor qualquer res-

trição. A questão, todavia, exige uma certa qualificação. É que, como

já ficou assentado, o juiz que aplica direito estrangeiro há de interpretá-

lo de acordo com as práticas do país de origem, atentando para a legis-

lação, doutrina e jurisprudência. Ora bem: nem todos os Estados admi-

tem o controle de constitucionalidade das leis pelo Judiciário. Na Fran-

ça e na Suíça, para citar dois exemplos, essa possibilidade não existe.

Ao contrário, nos Estados Unidos e na Alemanha tal exame é corriqueiro.

76. Direito internacional privado, cit.,p.460-1.

77. Note-se, todavia, que na França o Comitê Consultivo para a revisão constitucional,

cons-

tituído pelo Presidente da República por Decreto de 2-12-1992 e presidido pelo Professor

Georges

Vedel, propôs a instituição do controle repressivo de constitucionalidade em tema de

direitos funda-

mentais. Pela proposta, a alínea 12 do art. 62 passaria a ter a seguinte redação: "Une

disposition

déclarée inconstitutionelle sur le fondement de l’article 61-1 est abrogée. Elle ne peut être

appliquée

aux procédures en cours". Veja-se Propositions pour une révision de la Constitution, 1993.

Na

Suíça, inexiste o controle de constitucionalidade das leis federais, mas faz-se o controle das

normas

cantonais. Sobre o tema, vejam-se Philippe Maystadt, Le contrôle de constitutionnalité en

Suisse,

in Actualité du contrôle juridicitionnel des lois, 1973, p. 161 e s., e Pedro Cruz Villalón, La

formación

del sistema europeo de control de constitucionalidad, 1987, p. 53 e s.

Assim, então, o controle da constitucionalidade de lei estrangeira

em face de ser exercido, pelo órgão

jurisdicional do foro, nos mesmos moldes e limites em que o faria o juiz

ou tribunal do ordenamento de origem. Quando se tratar da aplicação de

lei estrangeira de país onde não seja legítimo ao Poder Judiciário pro-

nunciar, in concreto ou in abstracto, a inconstitucionalidade de uma lei,

não poderá o juiz ou tribunal do foro fazê-lo.

78. No mesmo sentido, v. João Baptista Machado, Lições de direito internacional

privado,

cit., p. 244. Em sentido diverso, v. Luiz Antonio Severo da Costa, Da aplicação do direito

estran-

geiro pelo juiz nacional, 1968, p. 40: "Se tem dúvidas sobre a constitucionalidade do

diploma legal,

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mas se aquela Corte (N. A.: refere-se ele à Suprema Corte do país estrangeiro) ainda não se

mani-

festou a respeito, deve considerar válida tal lei, pois não pode chamar a si atribuição

específica

daquele órgão".

Desnecessário remarcar a evidência de que o órgão judicial brasi-

leiro, ao pronunciar a inconstituçionalidade de uma lei, fá-lo-á sempre

em caráter incidental, para o fim exclusivo de negar-lhe aplicação ao

caso concreto. Jamais se cuidará de uma decisão em tese, mesmo que

isso seja possível à luz do ordenamento de origem, porque não se pode

reconhecer tal competência a qualquer tribunal que não seja do país do

qual promana a lei. No Brasil, tudo que se pode pretender é negar eficá-

cia à norma estrangeira, sem que isso afete sua validade e sua vigência.

A questão do reconhecimento da inconstitucionalidade de norma

estrangeira perante o ordenamento de origem já foi apreciada pelo Su-

premo Tribunal Federal. Na vigência da Carta de 1988, pelo menos dois

acórdãos abordaram o tema, embora sem maior aprofundamento.

O primeiro deles diz respeito ao controvertido caso de extradição

requerida pela República Argentina do ex-líder dos Montoneros, Mario

Eduardo Firmenich. O Governo requerente imputava ao extraditando

um longo elenco de práticas delituosas, em relação às quais havia decre-

tos de custódia cautelar expedidos pela Justiça argentina, e que incluíam:

associação ilícita, diversos homicídios, atentado com lesões corporais,

posse de explosivos e armas e uso de documento público falsificado.

79. RTJ, 111:16, 1984, Extradição n. 417, rel. Min. Oscar Dias Corrêa.

Toda a discussão gravitou em torno de duas questões básicas: a) a

interpretação, vigência e validade da Lei de Anistia editada pelo Con-

gresso argentino, e posteriormente revogada pelo próprio Legislativo,

com efeitos retroativos, sob o fundamento de que era inconstitucional;

b) a natureza dos delitos imputados ao extraditando - comum ou políti-

ca -, tendo em vista o disposto no inciso LII do art. 5º da Constituição

brasileira, que veda a extradição por crime político ou de opinião.

80. Era importante ter em linha de conta, na apreciação do tema, que, por força do

tratado de

extradição entre Brasil e Argentina, não seria concedida a extradição quando, pelo mesmo

fato, o

delinquente tivesse sido anistiado no Estado requerente ou requerido (art. III).

Em meio a outros argumentos, a defesa do extraditando, além de

procurar remarcar o caráter político das infrações, fundou-se:

a) na inconstitucionalidade da lei que revogou retroativamente a

anistia;

b) na inconstitucionalidade do art. 2º da própria Lei da Anistia, que,

discriminatoriamente, excluía do beneficio pessoas na situação do extra-

ditando.

As duas inconstitucionalidades argüidas eram em face da Consti-

tuição argentina.

O Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, em votação dividi-

Page 43: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

da, concedeu a extradição, com ressalvas, concluindo que: a) a Lei de

Anistia do país requerente era inaplicável à hipótese, não atingindo o

extraditando, consoante previsão expressa no seu próprio texto; b) havia

prevalência dos crimes comuns sobre os políticos; c) era improcedente

a alegação de que o extraditando seria julgado em seu país por tribunal

de exceção.

81. Foram excluídas as imputações de caráter político puramente (liderança de

movimento políti-

co, porte de armas e explosivos e uso de documentos falsos), bem como ressalvou-se que

não poderiam

ser impostas ao extraditando penas superiores a trinta anos de prisão em relação a cada

crime.

Os três votos vencidos, contrários à extradição, foram da lavra do

próprio Relator, Ministro Alfredo Buzaid, e dos Ministros José Francis-

co Rezek e Aldir Passarinho. Os dois primeiros enfrentaram diretamen-

te a questão da inconstitucionalidade da lei que cassara a anistia.

Em seu voto, o Ministro Buzaid rechaçou o argumento do Estado

requerente de que a Corte não teria competência para apreciar a valida-

de da lei argentina, e concluiu:

"A declaração de inconstitucionalidade é atribuição pri-

vativa do Poder Judiciário no Brasil ou das Cortes Consti-

tucionais nos países que as adotaram (...). Não a pode exer-

cer o Legislativo, porque a sua função consiste em elaborar

ou revogar leis, não em apreciar a sua validade.

(...) A conclusão a que se chega é que o legislador não

tem competência constitucional para declarar a

inconstitucionalidade de uma lei".

82. RTJ, 111:16, 1985, p. 28.

Acompanhou-o, no particular, o Ministro Rezek, pronunciando igual-

mente a invalidade da lei argentina, nos termos seguintes:

"Os tribunais derrubam, ex tunc, leis que padecem do

vício de inconstitucionalidade. O parlamento, em toda par-

te, tem o poder de revogar normas com efeito ex nunc; ja-

mais o de declará-las nulas, com efeito retroativo, sob o

argumento de inconstitucionalidade".

83. RTJ, 111:16, p. 30-1.

O Ministro Aldir Passarinho negou a extradição por considerar os

crimes de natureza política. É bem de ver que ele e todos os demais

Ministros - Oscar Corrêa, Néri da Silveira, Rafael Mayer, Decio

Miranda, Soares Mufioz, Moreira Alves e Djaci Falcão - deixaram de

discutir, especificamente, a questão da validade ou não da lei que anula-

ra a anistia. Curiosamente, todos, sem exceção, fundamentaram seus

votos no art. 2º da sobredita Lei de Anistia, que excluía o extraditando

de seus beneficios. Veja-se que nenhum dos Ministros deixou de aplicar

a lei por reputá-la revogada ou anulada pela lei superveniente. Justa-

mente ao contrário, interpretaram-na para concluir que não aproveitava

ao extraditando. Disso resulta que, embora não de forma expressa -

Page 44: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

mas com implícita evidência -, negaram validade e eficácia à lei pos-

terior que cassava retroativamente a anistia.

Por lapso do Relator originário, que a ele não fez menção, nenhum

dos Ministros apreciou um outro fundamento da defesa: o da

inconstitucionalidade do próprio art. 2º da Lei de Anistia, que, ao preve-

la parcial e excludente, violava preceito expresso da Carta argentina. Tal

omissão ensejou a interposição, pelo extraditando, de embargos de de-

claração, apreciados, igualmente, pelo Tribunal Pleno.

84. RTJ, 113:1, 1985.

Sem atentar para a imensa contradição em que incorriam, diversos

Ministros, ao julgar os embargos, negaram a possibilidade de aprecia-

ção da constitucionalidade ou não de lei argentina perante sua própria

Constituição. Confiram-se tais pronunciamentos.

"Ministro Oscar Corrêa: "Não lhe cabia (ao STF), substituindo-se ao

juízo do País requerente, examinar a inconstitucionalidade da Lei

revocatória, que, aliás, não interferiu no julgamento, saliente-se. Seria

indébita e inadmissível invasão de esfera de competência".

85. RTJ, 113:1,p.4.

Ministro Néri da Silveira: "Penso que não cabe ao STF enfrentar a

alegação de inconstitucionalidade da lei argentina. Certo está que o Po-

der Judiciário argentino não declarou inconstitucional o art. 2º da discu-

tida Lei de Anistia".

86. RTJ. 113:1, p. 5-6.

Ministro Rafael Mayer: "Entendo... que é impossível ao Supremo

Tribunal exercer um controle de constitucionalidade sobre uma lei ar-

gentina, pois é o exercício de jurisdição que não temos, mas tão-somen-

te aquele País, pelo seu Supremo Tribunal, com relação às suas leis".

87. RTJ, 113:1,p.6.

Ministro Djaci Falcão: "O texto de lei estrangeira não é passível de

exame interpretativo no plano constitucional, para que seja declarada a

sua inconstitucionalidade. Entendimento em sentido contrário poderia

conduzir-nos a uma divergência interpretativa com a própria Corte Su-

prema do País requerente da extradição".

88. RTJ, 113:1, p. 7-8.

Ministro Cordeiro Guerra: "Não há que considerar a interpretação

do Direito Constitucional Argentino porque não temos jurisdição na Ar-

gentina, nem somos um Tribunal supranacional, para dizer como os ou-

tros devem julgar. (...) O que poderíamos examinar, em matéria consti-

tucional, é se a Lei de Anistia, tal como foi concebida e vige na Argen-

tina, violaria a ordem jurídica ou constitucional brasileira".

89. RTJ, 113:1, p.8.

Ministro Moreira Alves: "A meu ver, em proçesso de extradição,

não cabe ao Supremo Tribunal Federal examinar a compatibilidade, ou

não, da legislação do país requerente com a Constituição ali vigente".

90. RTJ, 113:1, p. 7.

É de interesse observar que o voto do Ministro Moreira Alves sugere

que, a contrario sensu, fora do processo de extradição, é possível examinar

Page 45: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

a constitucionalidade da lei estrangeira perante o ordenamento de origem.

Melhor intuindo a evidência, o Ministro Soares Muñoz, reformulando

seu voto anterior, que concedia a extradição, assim decidiu:

"No que diz respeito à lei posterior, que havia revoga-

do a anistia, entendi que era ela ineficaz, visto que, uma

vez concedida a anistia, não era mais possível revogá-la.

Ora, se assim entendi com relação à lei revocatória, não

vejo razão para me omitir no que diz respeito à argüida

inconstitucionalidade da lei, enquanto restringe aquilo que

a Constituição Federal estabelece de maneira imperativa,

que deve ser geral. A Constituição Argentina determina que

a anistia deve ser geral, isto é, não pode ser concedida anis-

tia restrita. Se a lei desrespeitou a Lei Maior, é ineficaz.

Não estou declarando a inconstitucionalidade da lei. Estou

apenas afastando-a do caso concreto. Não preciso fazer ne-

nhuma comunicação à Corte Argentina, como não faz o

juiz singular, quando afasta uma lei inconstitucional. A lei

continua em vigor; ela é apenas arredada no caso concreto.

Eu a afasto. Afasto-a, como já afastei a lei revocatória".

91. RTJ, 113:1, p. 7. Em idêntico sentido foi o voto do Min. José Francisco Rezek, p.

5.

Do estudo de caso que se vem de empreender, chega-se a uma con-

clusão paradoxal. De fato, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu, como

premissa, que não lhe cabia apreciar a constitucionalidade de norma es-

trangeira em face do ordenamento de origem. Em seguida, e, contradito-

riamente, fugindo ao silogismo natural, julgou a questão deixando de apli-

car, por inconstitucional, lei que revogara a Lei de Anistia argentina.

Na verdade, a premissa é que era equivocada. O Supremo Tribunal

Federal, bem como qualquer juiz ou tribunal, pode pronunciar, in con-

creto, a inconstitucionalidade de lei estrangeira em face da Constituição

sob a qual foi editada, desde que o possam fazer as autoridades judiciá-

rias do Estado de origem da lei perante sua própria Constituição.

Alguns anos depois, já na vigência da Constituição de 1988, o

Supremo Tribunal Federal examinou um pedido de extradição de um

brasileiro naturalizado, fundado no permissivo constitucional do art.

5º, LI, que admite tal medida em caso de "comprovado envolvimento

em tráfico ilícito de entorpecentes, na forma da lei". O requerimento

foi formulado pelo Governo da Itália, Estado com o qual o Brasil não

mantém tratado de extradição. Para legitimar o pedido, o Estado re-

querente apresentou promessa de reciprocidade.

92. RDA, 190:94, 1992, Extradição n. 541, rel. Min. Sepúlveda Pertence.

93. Lei n. 6.815/80, art. 76: a extradição exige tratado ou promessa de reciprocidade.

Curiosamente, o relator para acórdão nesse caso foi o Ministro José

Paulo Sepúlveda Pertence, que havia sido, exatamente, o advogado de

defesa de Mario Firmenich na Extradição n. 417, acima apreciada. O

Relator observou que o art. 26 da Constituição da Itália impedia que o

Estado requerente oferecesse reciprocidade naquela hipótese, por isso

Page 46: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

que só admite a extradição de nacionais se houver previsão expressa em

convenção internacional. O acórdão, quanto à parte aqui relevante, veio

assim ementado:

"Extradição de brasileiro e promessa de reciprocidade

do Estado requerente: invalidade desta, à luz da Constitui-

ção italiana, que o STF pode declarar.

A validade e a conseqüente eficácia da promessa de

reciprocidade ao Estado requerido, em que fundado o pe-

dido de extradição, pressupõem que, invertidos os papéis,

o ordenamento do Estado requerente lhe permita honrá-la:

não é o caso da Itália, quando se cuida de extraditando bra-

sileiro, pois o art. 26 da Constituição italiana só admite a

extradição do nacional italiano quando expressamente pre-

vista pelas convenções internacionais, o que não ocorre na

espécie.

(...) Compete exclusivamente ao Supremo Tribunal Fe-

deral, juiz da extradição passiva, no Brasil, julgar da

invalidade, perante a ordem jurídica do Estado requerente,

da promessa de reciprocidade em que baseado o pedido, a

fim de negar-lhe a eficácia extradicional pretendida".

94. Constituição italiana, art. 26. L’estradizione del cittadino puô essere consentita

soltanto

ove sia espressamente prevista dalle conveniioni internazionali. Non puõ in alcun caso

essere

ammessa per reati politici" (A extradição do cidadão somente pode ser consentida quando

seja

expressamente prevista pelas convenções internacionais. Em hipótese alguma pode ser

admitida

por crimes políticos).

95. RDA, 190:94, Extradição n. 541, rel. Min. Sepúlveda Pertence.

É interessante observar que a questão da inconstitucionalidade da

promessa de reciprocidade, que constou de breve passagem do voto do

Relator e mereceu especial destaque na ementa do acórdão, não foi ob-

jeto de maior discussão ou aprofundamento. Aliás, o Ministro Carlos

Mário Velloso, ao proferir seu voto, assinalou que, precisamente quanto

à questão da reciprocidade, guardava "dúvidas a respeito".

De todo modo, a posição mais recente do Supremo Tribunal Fede-

ral é no sentido de que pode a Corte apreciar a constitucionalidade dos

atos estrangeiros à luz do ordenamento de origem, negando-lhes aplica-

ção quando seja o caso. Tal entendimento tem nossa adesão.

96. V., sobre o tema, José Carlos Barbosa Moreira. Le juge brésilien et le droit

étranger, in

Temas de direito processual, 4ª série. 1989, p. 299 e s., especialmente p. 309.

b) A norma estrangeira e a Constituição brasileira

A norma que soluciona um conflito de leis no espaço indica a

regra que vai reger uma relação que se encontrava sob a incidência

Page 47: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

potencial de mais de um ordenamento. Ao fazê-lo, apontará como

aplicável (a) ora a lei do foro, (b) ora a lei estrangeira. Quando a

indicação recai sobre a lei do foro, não se apresentam maiores difi-

culdades, haja vista que ela integra o sistema e com ele se harmoni-

za. Quando a lei indicada é estrangeira, a regra é que o juiz acate a

indicação e a aplique.

Não é difícil intuir, no entanto, que podem surgir dificuldades na

aplicação, no foro, de lei emanada de outro sistema jurídico. Para neu-

tralizar certos contrastes mais contundentes, praticamente todos os Es-

tados estabelecem uma grande categoria de "limit" à aplicação do

direito estrangeiro. Essa restrição se consubstancia em um instituto am-

plo, fluido e de difícil apreensão conceitual que é a ordem pública.

97. Sobre o tema, v. a tese clássica de Jacob Dolinger, A evolução da ordem pública

no

direito internacional privado, 1979, bem como seu Direito internacional privado, cit., p. 323

e s.

Vejam-se, também: Clóvis Beviláqua, Direito internacional privado, p. 77 e s.; Haroldo

Valladão,

Direito internacional privado, cit., p. 472 e s.; Oscar Tenório, Direito internacional privado,

cit., p.

315 e s.; Amilcar de Castro, Direito internacional pri vado, cit., p. 273 e s.; Irineu Strenger,

Curso

de direito internacional privado, cit., p. 510 e s.; Agostinho Fernandes Dias da Silva,

Introdução ao

direito internacional privado, cit., p. 131 e s.; João Batista Machado, Lições de direito

internacio-

nal privado, cit., p. 253 e s.

O princípio recebe abrigo expresso no art. 17 da Lei de Introdução

ao Código Civil em vigor, com a dicção seguinte:

"Art. 17. As leis, atos e sentenças de outro país, bem

como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia

no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a or-

dem pública e os bons costumes".

Sem embargo da tríplice referência do dispositivo, é certo que a

soberania nacional e os bons costumes expressam variações da ordem

pública. O conceito é antigo e de trânsito universal. Trata-se de uma

cláusula geral, de conteúdo elástico e variável, que tem levado os auto-

res a se referirem a ela como um conceito indeterminado a priori, e

mesmo indefinível. Não obstante, é possível identificar a ordem pú-

blica como um princípio geral de preservação de valores jurídicos, mo-

rais e econômicos de determinada sociedade política.

98. Embora diversos autores atribuam a primazia do tratamento do tema a Savigny,

que sobre

ele escreveu em 1849 (ano da 1ª edição de sua obra), é certo que dele cuidou anteriormente

Joseph

Story (Comentarios sobre el conflito de las Leyes, 1834, v. 1, p. 32-3, apud Jacob Dolinger,

Direito

Page 48: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

internacional privado, cit., p. 325): "Nación alguna puede ser justamente requerida a ceder

sus

conveniencias políticas e instituciones fundamentales en favor de las de otra nación. Mucho

menos

puede nación alguna ser requerida a sacrificar sus intereses a favor de otra, ó a practicar

doctrinas

que, en un concepto moral ó político sean incompatibles con su seguridad ó felicidad, ó con

su

conciencia de la justicia y del deber".

99. O princípio é adotado nos diferentes sistemas jurídicos, quer de formação romano-

germânica,

quer de base costumeira (common law). O Restatement on Conflict of laws Second, na

regra 90,

dispõe: "Nenhuma ação será aceita com base em lei estrangeira cuja execução seja contrária

à strong

public policy do foro". A Corte de Cassação francesa, por sua vez, deixou assentado que "a

definição

de ordem pública nacional depende, em larga medida, da opinião que prevaleça em cada

momento na

França" (apud Jacob Dolinger, Direito internacional privado, cit., p. 327).

100. João Batista Machado, Lições de direito internacional privado, cit., p. 259.

Fundados em distinção formulada por Brocher, os autores costu-

mam fazer referência à ordem pública interna e à ordem pública inter-

nacional. No fundo, a ordem pública constitui princípio único, que irra-

dia seus efeitos em planos diversos. Internamente, ele opera no sentido

de limitar a autonomia de vontade das partes em domínios nos quais

devem prevalecer, cogentemente, os comandos estatais.

101. Charles Brocher, Cours de droit international privé, 1882, t. 1, n. 44. apud

Haroldo

Valladão, Direito internacional privado, cit., p. 323.

102. V. Victor Nunes Leal, Classificação das normas jurídicas, in Problemas de direito

públi-

co, 1960, p. 39 e s. V., também, Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a

efetividade de

SUAS normas, 1993, p. 71.

No plano internacional, que é o que interessa aqui, o princípio se

manifesta de forma dúplice: (a) ora envolve a aplicação direta da lei

estrangeira indicada pela regra de conexão; (b) ora envolve a aplicação

indireta da lei estrangeira, pelo reconhecimento de direitos adquiridos e

de situações constituídas no exterior. Nas duas hipóteses, a ordem pú-

blica opera no sentido de impedir a eficácia dos atos jurídicos

contrastantes com os valores do foro embora sua aplicação seja mais

rígida no primeiro caso.

Não é difícil ilustrar o afirmado. A ordem pública brasileira ja-

mais admitiria que um indivíduo domiciliado na Arábia Saudita, onde

a poligamia é legítima, pudesse contrair no Brasil um segundo ou ter-

ceiro casamento simultâneo. Essa é uma situação. Por outro lado, di-

Page 49: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

ante de um fato já consumado no exterior, será possível, sem afronta à

ordem pública, reconhecer efeitos ao segundo ou terceiro casamentos

para os fins, por exemplo, do recebimento de pensão alimentícia ou de

atribuição da condição de herdeiros à prole do casal. Como se vê, O

conceito atua com intensidade diferente quando se trate de Constitui-

ção de situação jurídica nova (aplicação direta da norma estrangeira)

ou reconhecimento de situação já constituída (aplicação indireta da lei

estrangeira).

Veja-se que diante da impossibilidade de se reconhecer eficácia à

lei estrangeira, por afronta à ordem pública, há consenso doutrinário de

que se deva aplicar, à espécie, a lex fori. A exclusão da lei estrangeira

deverá ser tão estrita quanto possível, aproveitando-se a parte remanes-

cente que possa ser aceita no foro.

103. V. Jacob Dolinger, A evolução da ordem pública, cit., p. 258: "Apurado pelo

Tribunal que

a lei, a sentença ou o contrato estrangeiros contém disposição inaceitável no foro, deverá

compor

uma solução em que se aproveite o que for admissível da convenção, da norma ou decisão

estran-

geiras, substituindo a parte rejeitada por norma da lex fori".

Cabe, agora, fazer as aproximações cabíveis entre ordem pública e

Constituição. O efeito da ordem pública, no plano internacional, é o de

impedir a aplicação de direito estrangeiro, seja direta ou indiretamente.

Trata-se de um princípio de amplo espectro, difuso e cambiante, que é

externo à norma positiva, à letra expressa do texto legal. Como é co-

mum dizer-se, é um princípio "exógeno às leis". Conseqüência natu-

ral de tal premissa é que se encontrem aspectos inerentes à ordem públi-

ca fora do texto constitucional. Será possível, assim, negar aplicação à

norma estrangeira por afronta à ordem pública brasileira, mesmo que

ela não se confronte, direta ou imediatamente, com a Constituição.

104. Jacob Dolinger,A evolução da ordem pública, cit., p. 255.

Tem-se como assente, então, que nem tudo que viola a ordem públi-

ca viola a Constituição. A recíproca, todavia, segundo ampla linha de

entendimento, não é verdadeira. De fato, tem predominado o entendi-

mento de que sempre que a norma estrangeira estiver em contraste com

a Constituição estará, ipso jure, violando a ordem pública. O tema é

interessante e complexo.

105. V. ampla discussão da matéria em Rui Manuel Gens de Moura Ramos, Direito

interna-

cional privado e Constituição, 1980, p. 210 e s. A submissão de lei estrangeira ao controle

de

constitucionalidade perante a Lei Fundamental do foro foi afirmada pelo Tribunal

Constitucional

Federal alemão, em decisão datada de 4-5-1971 (B VerfGE, 31,58). V. Jan Kropholler,

Internationales

Privatrecht, 1990, p. 31-2.

Entre os internacionalistas - que, por formação, tentam minimizar as

Page 50: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

restrições à aplicação do direito estrangeiro - desenvolveu-se a crença que

procurava negar a identidade necessária entre o conteúdo da ordem pública

internacional e os princípios constitucionais. Sustentou-se, assim, que ha-

veria normas da Constituição que teriam relevância e outras que seriam

indiferentes à caracterização da exceção de ordem pública. Reproduzindo

posição corrente na doutrina italiana, escreveu Rui Moura Ramos:

"É assim que alguns não vão além de recomendar a

atuação da ordem pública apenas quando a contradição aber-

ta com a Constituição se traduz na negação da essência de

um direito fundamental, afirmando ao mesmo tempo de

forma clara que, longe de se referir a todas as normas cons-

titucionais, a ordem pública apenas contende com aqueles

poucos princípios fundamentais que possam fazer-se deri-

var imediatamente da Constituição, que vivem directamente

na consciência jurídica da comunidade do foro e que por

isso devem ser respeitados por todos os sistemas jurídicos

que pretendem aplicar nesse Estado".

106. Direito internacional privado e Constituição, cit., p. 218, invocando a lição de

Barile, Ordine publico internazionale e Costituzione, Rivista di Diritto Internazionale, v.

56,

1973, p. 729.

No Brasil todavia jamais se cogitou de exceção dessa ordem ao

princípio da supremacia constitucional. Ademais, o Código de

Bustamante tem disposição expressa a respeito, retirando a matéria da

turbulência doutrinária e dando-lhe solução de direito positivo. Confira-

se, a propósito, o teor do art. 4º do referido Código de Direito Internacio-

nal Privado, resultante de convenção internacional ratificada pelo Brasil

e promulgada pelo Decreto n. 18.871, de 13 de agosto de 1929:

"Art. 4º. Os preceitos constitucionais são de ordem pú-

blica internacional".

À luz de tal previsão, todas as disposições formalmente integradas

à Constituição brasileira são tidas como de ordem pública internacional

e impedem a aplicação de direito estrangeiro com elas contrastante. Em

seu resultado prático, a exceção da ordem pública consubstanciada na

norma constitucional ora terá efeito negativo - por vedar algo que o

ordenamento externo permite -, ora terá efeito positivo, por permitir

algo que a lex causae vedava.

Há, ainda, uma previsão expressa na Constituição brasileira, cunha-

da em norma unilateral, que derroga expressamente o direito estran-

geiro em princípio aplicável. É a que consta do inciso XXXI do art. 5º:

"a sucessão de bens de estrangeiros situados no País será regulada pela

lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, sempre

que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do de cujus".

107. Unilateral é a norma de solução de conflito de leis que prevê somente a aplicação

da

própria lei, da lei nacional - "aplica-se a lei brasileira" - em contraposição às normas

bilaterais,

Page 51: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

que se servem de critério geral e universal - "aplica-se a lei do domicílio da pessoa",

"aplica-se a

lei do local do contrato".

Ainda neste domínio, das relações entre a Constituição e o direito inter-

nacional e estrangeiro, haveria espaço para ampla discussão acerca da apli-

cação extraterritorial das normas constitucionais. A delimitação de nosso

objeto de estudo, todavia, remete esse tema para outra oportunidade.

108. Nesta área encontram-se questões como a proteção dos nacionais no exterior; a de

dever

o Estado, em sua atuação no exterior, respeitar suas próprias normas constitucionais etc. A

questão

da aplicação extraterritorial das normas constitucionais tem gerado inúmeras ações judiciais

nos

Estados Unidos, nos mais diversos temas, envolvendo a tortura e morte de um cidadão

nicaragüen-

se por agentes da CIA atuando na América Central (Sanchez-Espinosa vs. Reagan, 770 F.

2d 202-

D. C. Cire. 1985); a invasão do domicílio de um cidadão mexicano, sem mandado, por

agentes do

Drug Enforcement Agency (U. S. vs. Verdugo-Urquidez, já referido) etc. Sobre o tema, na

doutrina

americana, v. Jules Lobel, The Constitution abroad, e Andreas Lowenfeld, U. S. law

enforcement

abroad: The Constitution and international law, ambos publicados no American Journal of

International Law, v. 83, n. 4, 1989, p. 871 e 880, respectivamente.

Compendiando tudo que se vem de afirmar neste tópico, é possí-

vel afirmar, com base na melhor doutrina e na jurisprudência dos tri-

bunais, que:

A) Quando da aplicação de lei estrangeira, cabe ao juiz ou tribunal

brasileiro aplicá-la como o fariam os órgãos judiciários do país do qual

promana a norma. Se em tal jurisdição se admitir a pronúncia de

inconstitucionalidade de uma lei, poderá o juiz ou tribunal proceder da

mesma forma deixandodç aplicar, ao caso concreto, preceito estran-

geiro incompatível com o ordenamento de origem.

b) Com muito mais razão, deverão os juízes e tribunais brasileiros

negar aplicação à norma estrangeira que esteja em confronto com a Cons-

tituição brasileira. Com efeito, as normas constitucionais são tidas como

de ordem pública internacional, impedindo a eficácia de leis, decisões

judiciais e atos jurídicos estrangeiros com elas incompatíveis.

Capítulo II - A CONSTITUIÇÃO E O CONFLITO DE NORMAS NO TEMPO.

DIREITO CONSTITUCIONAL INTERTEMPORAL

O conflito de leis no tempo resulta não da coexistência de leis, como

no direito internacional privado, mas de sua sucessão. Trata-se da

contraposição entre lei nova e lei velha. Cabe ao direito intertemporal

solucionar esse conflito, fixando o alcance de normas que se sucedem.

Page 52: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Seu objeto é a determinação dos limites do domínio de cada uma dentre

duas disposições jurídicas consecutivas sobre o mesmo assunto.

1. Paul Roubier, Le droit transitoire (conflits des lois dans le temps), 1960, p. 3-4.

2. Carlos Maximiliano, Direito intertemporal, 1946, p. 7.

O postulado básico na matéria, que comporta exceções mas tem

"aceitação universal, é o de que a lei nova não atinge os fatos anteriores

ao início de sua vigência, nem as conseqüências dos mesmos, ainda que

se produzam sob o império do direito atual. Esse princípio, conhecido

como prinçípio da não retroatividade das leis tem por fundamento filo-

sófico a necessidade da segurança jurídica, da estabilidade do direito.

3. Carlos Maximiliano, Direito intertemporal, cit., p. 10.

4. Paul Roubier, Le droit transitoire, cit., p. 223. Sobre o tema, no direito brasileiro, v.

R.

Limongi França, A irretroatividade das leis e o direito adquirido, 1982.

Nos Estados Unidos, a Constituição de 1787 veda a edição de leis

retroativas de uma maneira geral (art. 1º, seção 9, 1: "ex post facto law")

e proibe aos Estados que elaborem leis que prejudiquem a obrigatoriedade

dos contratos (art. 1º, seção 10, 1: "law impairing the obligation of

contracts"). Na América Latina, à exceção do México, e na Europa, a

regra da não-retroatividade é de nível infraconstitucional, podendo, mes-

mo, ser derrogada por legislação superveniente.

No Brasil, o tema constou de todas as Constituições, desde a Impe-

rial, de 1824, à exceção da Carta do Estado Novo, de 1937. No texto

presentemente em vigor, dispõe o inciso XXXVI do art. 5º:

"a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídi-

co perfeito e a coisa julgada".

Foge ao escopo deste estudo o aprofundamento dos conceitos de

direito adquirido e ato jurídico perfeito, que são verdadeiros tormentos

para os intérpretes. Sobre o tema escreveram autores clássicos, como

Savigny e Gabba, e, entre nós, Carlos Maximiliano e Pontes de Miranda,

sem, contudo, desvendarem todas as complexidades e perplexidades de

sua aplicação aos casos concretos. Léon Duguit chegou mesmo a afir-

mar que há mais de meio século ensinava direito e, até então, ainda não

sabia o que era direito adquirido. Recentemente, o tema mereceu a den-

sa reflexão de Raul Machado Horta.

5. Léon Duguit, Leçons de droit public général, 1926, p. 308.

6. Raul Machado Horta, Constituição e direito adquirido, Revista de Informação

Legislativa

do Senado Federal, 112:69, 1991. Vejam-se, também, R. Limongi França, A

irretroatividade das

leis e o direito adquirido, cit., e Wilson de Souza Campos Batalha, Direito intertemporal,

1980.

É ainda a antiga opinião de Gabba que baliza o tema, ao apontar,

como característica do direito adquirido: 1) ter sido conseqüência de um

fato idôneo para a sua produção; 2) ter-se incorporado definitivamente ao

patrimônio do titular. Longe das hipóteses extremas, não é difícil traçar o

perfil doutrinário da não-retroatividade e do direito adquirido. As leis, de

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regra são feitas para virarpara o futuro, sem colher fatos passados,

ocorridos sob a égide de outra lei. Uma lei nova não pode pretender

desconstituir um direito subjetivo cujo ciclo aquisitivo já se consumou e

cujo desfrute se integra ao patrimônio do indivíduo ou da pessoa jurídica.

7. V. Gabba, Teoria della retroatività delle leggi, 1868, p. 191: "É adquirido todo

direito que:

a) é conseqüência de um fato idôneo a produzi-lo, em virtude da lei do tempo no

qual o fato se

realizou, embora a ocasião de fazê-lo valer não se tenha apresentado antes da atuação de

uma lei

nova a respeito do mesmo, e que b) nos termos da lei sob o império da qual se verificou o

fato de

onde se origina, passou imediatamente a fazer parte do patrimônio de quem o adquiriu". V.,

tam-

bém, Carlyle Popp, A retroatividade das normas constitucionais e os efeitos da Constituição

sobre

os direitos adquiridos, Paraná Judiciário, 36:13.

Apreciando um dos aspectos dessa complexa temática, no campo

referente aos contratos e o direito superveniente, assim pronunciou-se o

Supremo Tribunal Federal:

"Os contratos submetem-se, quanto ao seu estatuto de

regência, ao ordenamento normativo vigente à época de sua

celebração. Mesmo os efeitos futuros oriundos de contratos

anteriormente celebrados não se expõem ao domínio normativo

de leis supervenientes. As conseqüências jurídicas que emer-

gem de um ajuste negocial válido são regidas pela legislação

em vigor no momento de sua pactuação. Os contratos - que

se qualificam como atos jurídicos perfeitos - acham-se pro-

tegidos, em sua integralidade, inclusive quanto aos efeitos fu-

turos, pela norma de salvaguarda constante do art. 5º, XXXVI,

da Constituição da República. A incidência imediata da lei

nova sobre os efeitos futuros de um contrato pré-existente, pre-

cisamente por afetar a própria causa geradora do ajuste

negocial, reveste-se de caráter retroativo (retroatividade in-

justa de grau mínimo), achando-se desautorizada pela cláu-

sula constitucional que tutela a intangibilidade das situações

jurídicas definitivamente consolidadas".

8. RTJ, 164:1145, 1998, RE 209.519-SC, rel. Min. Celso de Mello.

Calha observar que, embora a não-retroatividade seja a regra, trata-

se de princípio que somente condiciona a atividade jurídica do Estado

nas hipóteses expressamente previstas na Constituição. São elas: a) a

proteção da segurança jurídica no domínio das relações sociais, veicula-

da no art. 5º, XXXVI, já citado; b) a proteção da liberdade do indivíduo

como a aplicação retroativa da lei penal, contida no art. 5º, XL ("a lei

penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu"); c) a proteção do contri-

buinte contra a voracidade retroativa do Fisco, constante do art. 150, III, a

(é vedada a cobrança de tributos "em relação a fatos geradores ocorridos

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antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumenta-

do"). Fora dessas hipóteses, a retroatividade da norma é tolerável.

9. A este propósito, decidiu o Supremo Tribunal Federal, recentemente, refutando

equívoco

longamente divulgado, que "o disposto no art. 5º, XXXVI, da CF, se aplica a toda e

qualquer lei

infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito público e lei de direito

privado, ou

entre lei de ordem pública e lei dispositiva" (RT, 690:176, 1993, ADIn 493-0 (ML)-DF, rel.

Min.

Moreira Alves). Ou ainda: "Razões de Estado - que muitas vezes configuram fundamentos

políti-

cos destinados a justificar, pragmaticamente, ex parte principis, a inaceitável adoção de

medidas de

caráter normativo - não podem ser invocadas para viabilizar o descumprimento da própria

Cons-

tituição. As normas de ordem pública - que também se sujeitam à cláusula inscrita no art.

5º,

XXXVI, da Carta Política - não podem frustrar a plena eficácia da norma constitucional,

compro-

metendo-a em sua integridade e desrespeitando-a em sua autoridade" (STF, RTJ, 164:1145,

1998,

RE 209.519-SC, rel. Min. Celso de Mello).

A doutrina, tanto civilista quanto publicista, chancela essa linha de

entendimento. Nesse sentido é a lição de Silvio Rodrigues:

"Assim o atual sistema brasileiro, pois, quer a Consti-

tuição, quer a lei ordinária, não falam em proibição de leis

retroativas. Apenas excluem da incidência da lei nova o ato

jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.

(...) Entre nós a lei é retroativa, e a supressão do pre-

ceito constitucional que, de maneira ampla, proibia leis re-

troativas, constituiu um progresso técnico. A lei retroage,

apenas não se permite que ela recaia sobre o ato jurídico

perfeito, sobre o direito adquirido e sobre a coisa julgada".

10. Silvio Rodrigues, Direito civil, 4. ed., v. 1, p. 51 e 53.

Por igual, escreveu o emérito mestre de Recife, Pinto Ferreira:

"O Estado pode determinar leis retroativas, pois as cir-

cunstâncias sociais e históricas se modificam. Os entes es-

tatais podem editar normas com eficácia retroativa ou com

efeito retrooperante, mas desde que não firam o direito ad-

quirido, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito protegidos

constitucionalmente pela lex legum".

11. Pinto Ferreira, Comentários à Constituição brasileira, 1989, v. 1, p. 143.

Essa é a doutrina abrigada na jurisprudência do Supremo Tribunal

Federal. O Projeto de Lei de Aplicação das Normas Jurídicas, recente-

mente elaborado por comissão ministerial, foge do entendimento crista-

lizado, dispondo de forma taxativa, em criticável proposta de inovação,

Page 55: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

"que a lei não terá efeito retroativo".

12. V. RTJ, 145:463, 1993, ADIn 605-DF, Medida Cautelar, rel. Min. Celso de Mello:

"O

princípio da irretroatividade somente condiciona a atividade jurídica do Estado nas

hipóteses ex-

pressamente previstas pela Constituição, em ordem a inibir a ação do Poder Público

eventualmente

configuradora de restrição gravosa (a) ao status libertatis da pessoa (CF, art. 5º, XL), (b) ao

status

subjectionis do contribuinte em matéria tributária (CF, art. 150,III, a) e (c) à segurança

jurídica no

domínio das relações sociais (CF, art. 5º, XXXVI)".

13. V. Projeto de Lei n. 4.905, de 1995, resultante da Mensagem n. 1.293/94. Sem

embargo da

crítica que ora se faz quanto a este aspecto específico, o Projeto, em suas linhas gerais, e

especial-

mente no capítulo dedicado ao direito internacional privado, dá um salto de qualidade no

direito

brasileiro em relação à matéria.

É bem de ver que a regra do art. 5º, XXXVI, dirige-se, primaria-

mente, ao legislador e, reflexamente, aos órgãos judiciários e admi-

nistrativos. Seu alcance atinge, também, o constituinte derivado, haja

vista que a não-retroação, nas hipóteses constitucionais, configura di-

reito individual, que, como tal, é protegido pelas limitações materiais

do art. 60, § 4º, IV. Disso resulta que as emendas à Constituição,

tanto quanto as leis infraconstitucionais, não podem malferir o direito

adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

14. CF, art. 60, § 4º, IV: "Não será objeto de deliberação a proposta de emenda

tendente a

abolir:... IV - os direitos e garantias individuais". No regime constitucional anterior, decisão

do

Supremo Tribunal Federal afirmou que "não há direito adquirido contra texto

constitucional, resulte

ele do Poder Constituinte originário, ou do Poder Constituinte derivado" (RTJ, 114:237,

1985, RE

94.414-SP, rel. Min. Moreira Alves). O acórdão foi proferido em 13-2-1985, quando ainda

em vigor

a Carta de 1969, que não incluía dentre as cláusulas pétreas os direitos e garantias

individuais, mas

tão-somente a Federação e a República (art. 47, § 1º).

O princípio da não-retroatividade, todavia, não condiciona o exercí-

cio do poder constituinte originário. A Constituição é o ato inaugural do

Estado, primeira expressão do direito na ordem cronológica, pelo que

não deve reverência à ordem jurídica anterior, que não lhe pode impor

regras ou limites. Doutrina e jUrisprudência convergem no sentido de

que "não há direito contra a Constituição".

15. M. Seabra Fagundes, O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário,

Page 56: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

1979, p. 3.

16. Na doutrina, vejam-se, por todos, Caio Mário da Silva Pereira, Direito

constitucional

intertemporal, RF, 304:29, 1988, e Wilson de Souza Campos Batalha, Direito

intertemporal, cit.,

p. 438. Na jurisprudência, v. RTJ, 67:327, Rep. n. 895, rel. Min. Djaci Falcão, RTJ, 71

:461, RE

75.418, rel. Min. Thompson Flores, e RTJ, 40:1008, AI 134.271, rel. Min. Moreira Alves,

RDA,

196:107, 1994, ADIn 248-1-RJ, rel. Min. Celso de Mello, onde se lavrou: "A supremacia

jurídica

das normas inscritas na Carta Federal não permite, ressalvadas as eventuais exceções

proclamadas. A

no próprio texto constituçional, que contra elas seja invocado o direito adquirido". Também

no

Superior Tribunal de Justiça se decidiu: "A nova Carta Política proibiu, no art. 7º, IV, a

vinculação

de valores ao salário mínimo, "para qualquer efeito". Dada a vedação, insubsiste qualquer

direito

adquirido à percepção de vencimentos ou proventos expressos em número desses salários"

(RT,

692:162, 1993, RMS 762-0-GO, rel. Min. Demócrito Reinaldo).

Não obstante isso mesmo na interpretação da vontade constitucio-

nal originária, a irretroatividade há de ser a regra, e a retroatividade a

exceção. Sempre que for possível, incumbe ao exegeta aplicar o direito

positivo de qualquer nível, sem afetar situações jurídicas já definitiva-

mente constituídas. E mais: não há retroatividade tácita. Um preceito

constitucional pode retroagir, mas deverá haver texto expresso nesse sen-

tido. Na Constituição brasileira de 1988 há exemplos de retroatividade

expressa, como o art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transi-

tórias. Com base nele, aliás, chegou-se a entender não ser oponível se-

quer a preexistência de coisa julgada, impondo-se a redução dos venci-

mentos do servidor aos limites constitucionais. Tal linha de entendimen-

to, todavia, foi desautorizada pelo Supremo Tribunal Federal.

17. Carlos Maximiliano, Direito intertemporal, cit., p. 52.

18. Igual orientação é seguida por Wilson Batalha, Direito intertemporal, cit., p. 438.

V.,

também, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Comentários à Constituição brasileira, 1990, v.

1, p. 9:

"Só se deve por isso aceitar como retroativa uma norma constitucional se isto resultar

inapelavelmente

do texto".

19. Art. 17: "Os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bem como

os

proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo com a

Constituição serão

Page 57: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, neste caso,

invocação de

direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título".

20. RT, 685:73, Ap. 158.745-1/1, TJESP, 2ª Câm., rel. Des. Cézar Peluso.

21. "A cláusula temporária e extravagante do art. 17 do Ato das Disposições

Constitucionais

Transitórias da Carta de 1988 não alcança situações jurídicas cobertas pela preclusão maior,

ou

seja, pelo manto da coisa julgada" (STF, RTJ, 167:656, 1999, RE 146.331-SP, rel. Min.

Marco

Aurélio). E, nos termos do voto do relator, ficou didaticamente consignado: "A norma diz

da impos-

sibilidade de evocar-se o direito adquirido, silenciando quanto à coisajulgada, isto é,

aquelas situa-

ções jurídicas submetidas ao crivo do Estado-juiz e já cobertas pelo manto da preclusão

maior, no

que voltada à segurança da vida em sociedade. É certo que, ao término do preceito, há

referência à

percepção de excesso a qualquer título. Todavia, a menção há de ter alcance perquirido

considerada

a referência a direito adquirido e ao silêncio, já consignado, quanto à coisa julgada. É

induvidoso

que o instituto da coisa julgada, agasalhado sistematicamente pelas Cartas brasileiras,

revela-se

possuidor de contornos inerentes às cláusulas pétreas...".

O direito constitucional intertemporal cuida da disciplina dos con-

flitos que decorrem do advento de uma nova ordem constitucional.

Essa modificação do direito constitucional positivo pode, eventual-

mente, ser obra do constituinte derivado, limitando-se a alterações tó-

picas no texto em vigor. De outras vezes, no entanto, tratar-se-á de

uma reformulação integral da ordem constitucional, fruto da elabora-

ção soberana do poder constituinte originário. O tema suscita questões

de certa complexidade e comporta inúmeras variações. Confira-se.

1. A Constituição nova e a ordem constitucional anterior

A Constituição, como é corrente, é a lei suprema do Estado. Na

formulação teórica de Kelsen, até aqui amplamente aceita, a Constitui-

ção é o fundamento de validade de toda a ordem jurídica. É ela que

confere unidade ao sistema, é o ponto comum ao qual se reconduzem

todas as normas vigentes no âmbito do Estado. De tal supremacia de-

corre o fato de que nenhuma norma pode subsistir validamente no âmbi-

to de um Estado se não for compatível com a Constituição. Classica-

mente, como se verá adiante, a ordem constitucional tende a tolerar, por

diferentes fundamentos, as normas anteriores à sua vigência que sejam

com ela compatíveis.

22. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 1979, p. 310: "A ordem jurídica não é um

sistema de

Page 58: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma

constru-

ção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é

produto da

conexão de dependência que resulta do facto de a validade de uma norma, que foi

produzida de

acordo com outra norma, cuja produção, por seu turno, é determinada por outra; e assim por

diante,

até abicar finalmente na norma fundamental - pressuposta. A norma fundamental -

hipotética,

nestes termos - é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta

interconexão criadora. Se começarmos por tomar em conta apenas a ordem jurídica

estadual

(estatal), a Constituição representa o escalão de Direito positivo mais elevado". Sobre o

mesmo

tema, na mesma linha, em versão mais didática, v. Norberto Bobbio, Teoria do

ordenamento

jurídico, 1990, p. 48 e s.

23. Veja-se o tema em palavras de J. J. Gomes Canotilho (Direito constitucional,

1991, p.

142): "A superioridade normativa do direito constitucional implica, como se disse, o

princípio da

conformidade de todos os actos do poder político com as normas e princípios

constitucionais (...).

Em termos aproximados e tendenciais, o referido princípio pode formular-se da seguinte

maneira:

nenhuma norma de hierarquia inferior pode estar em contradição com outra de dignidade

superior

(princípio da hierarquia), e nenhuma norma infraconstitucional pode estar em

desconformidade

com as normas e princípios constitucionais, sob pena de inexistência, nulidade,

anulabilidade ou

ineficácia (princípio da constitucionalidade)".

Merecem tratamento específico, no entanto, as relações que se esta-

belecem entre a Constituição nova e as normas que integravam o

ordenamento constitucional que está sendo substituído. Naturalmente,

no que sejam incompatíveis, inexiste qualquer dúvida de que a norma

anterior fica revogada, pela singela aplicação da regra geral de que as

normas posteriores revogam as anteriores quando incompatíveis. A ques-

tão se adensa em complexidade, todavia, quando se investiga a situação

das normas do regime constitucional anterior que não se contraponham

à nova ordem.

A Constituição escrita ordena sistematicamente os princípios fun-

damentais da organização política do Estado e das relações entre esse

Estado e o povo que o compõe. É documento único e supremo. Não se

pode cogitar, salvo casos de patologia institucional grave, da existência

simultânea de mais de uma Constituição no âmbito territorial de um

Page 59: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Estado. Posta em vigor uma nova Constituição, nenhum ato jurídico

anterior pode ter a pretensão de subsistir com caráter de norma supre-

ma. Merece registro, no particular, a lição de Jorge Miranda:

"Antes de mais, uma Constituição nova revoga a Cons-

tituição anterior. Por definição, não pode haver senão uma

Constituição - em sentido material e em sentido formal.

(...) Esta revogação é uma revogação global ou de sis-

tema, e não uma revogação stricto sensu ou uma recepção

individualizada, norma a norma. Não cabe indagar da com-

patibilidade ou não de qualquer norma constitucional ante-

rior com a correspondente norma constitucional nova ou

com a nova Constituição no seu conjunto; basta a sua in-

serção na anterior Constituição para que automaticamente

- expressa ou tacitamente - fique ou se entenda revogada

pela Constituição posterior".

24. No Brasil, desde o início do regime militar, em abril de 1964, até a Emenda

Constitucional

n. 11, de 13-10-1978, vigoraram os chamados "atos institucionais". Tais atos prevaleciam

sobre

a Constituição formal, e, embora travestidos de figura de direito, eram mera expressão da

supre-

macia do poder de fato que controlava o País e se punha acima das instituições jurídicas.

Regis-

tre-se que, nos Estados Federais, a existência de Constituições estaduais não colide com o

que se

vem de afirmar, de vez que tais diplomas são elaborados no exercício de competência

derivada

da própria Constituição Federal, a cujos princípios estão subordinados.

25. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 239.

A regra geral de que a nova Constituição revoga inteiramente a

ordem constitucional anterior não é incompatível com certas situa-

ções peculiares de subsistência de regras constitucionais precedentes.

É possível cogitar-se, por exemplo, de que a nova Carta expressamen-

te mantenha em vigor, e com o mesmo caráter constitucional, precei-

tos do ordenamento que está sendo substituído. Por evidente, o poder

constituinte que tem força para revogar tem também para conservar.

Apenas nesse caso, que se denomina recepção material, o título jurí-

dico da superioridade da norma mantida não é a ordem constitucional

anterior, mas a atual.

26. V. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 240.

Além da recepção material, a doutrina admite ainda uma outra pos-

sibilidade de aproveitamento legítimo das normas constitucionais do

regime anterior, desde que compatíveis com o novo sistema. Trata-se do

fenômeno da desconstitucionalização das normas constitucionais, pelo

qual os preceitos do regramento constitucional precedente, embora per-

dendo o caráter hierarquicamente superior, continuam a vigorar como

leis ordinárias. A tese encontra lastro em Carl Schmitt e foi explorada

Page 60: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

por Esmein. De fato, constatou o autor francês, na linha teórica do pró-

prio Schmitt, que as Constituições escritas contêm, freqüentemente, dis-

posições que não são constitucionais, senão pela forma, tendo conteú-

do, todavia, de normas administrativas, penais etc. Fundado em tal pre-

missa, desenvolveu o raciocínio da sobrevida das normas apenas for-

malmente constitucionais, quando compatíveis com a nova ordem. Em

suas próprias palavras:

"Pois bem: admite-se que disposições dessa nature-

za, que só pertenciam à Constituição revogada por um

liame fático, sobrevivam a ela e absolutamente não caiam

com ela. Dá-se-lhes tratamento de leis ordinárias - no

fundo é o que são - mas, ao mesmo tempo, são

reconduzidas à qualidade destas. Desgarram-se da Cons-

tituição, em que estavam encaixadas, e é por isso que per-

manecem em vigor; mas, ao mesmo tempo, perdem a efi-

cácia de normas constitucionais, e, daí por diante, podem,

como outra lei qualquer, ser modificadas pelo legislador

ordinário".

27. Carl Schmitt, Teoría de la Constitución, s. d., p. 32-3.

28. A. Esmein, Éléments de droit constitutionnel français et comparé, 1914, p. 582.

Entre nós, Pontes de Miranda, José Afonso da Silva e Manoel

Gonçalves Ferreira Filho admitem a tese. Em sede de direito positivo,

a antiga Constituição do Estado de São Paulo, de 13 de maio de 1967,

abrigava expressamente o princípio da desconstitucionalização, assim

como o faz a Constituição portuguesa em vigor, in verbis:

"Art. 290º (Direito anterior) 1. As leis constitucionais

posteriores a 25 de abril de 1974 não ressalvadas neste ca-

pítulo são consideradas leis ordinárias, sem prejuízo do dis-

posto no número seguinte. 2. O direito ordinário anterior à

entrada em vigor da Constituição mantém-se, desde que

não seja contrário à Constituição ou aos princípios nela

consignados".

29. Pontes de Miranda, Comentários à Constituição da República dos Estados Unidos

do

Brasil de 1934, t. 2, p. 560-1: "As leis que continuam em vigor são todas as que existiam e

não são

incompatíveis com a Constituição nova. Inclusive as regras contidas na Constituição

anterior;

posto que como simples leis". No mesmo sentido escreveu em seus Comentários à

Constituição de

1967, com a Emenda n. I de 1969, 1970, t. 1, p. 249-50.

30. José Afonso da Silva,Aplicabilidade das normas constitucionais, 1982, p. 207:

"Parece-

nos perfeitamente aceitável essa doutrina, pois que ela satisfaz o princípio da

compatibilidade entre

as normas da ordem jurídica, desde que, no caso, não se verifica conflito. Mas a regra

constitucio-

Page 61: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

nal anterior compatível não continua constitucional, porque isso contraria o conceito de

constitui-

ção formal, que há de ser aquele documento solene e escrito criado pelo poder constituinte.

Fica,

então, a regra valendo e vigendo, de acordo com o princípio da continuidade das normas

compati-

veis, mas como norma de caráter ordinário. É o que se chama princípio da

desconstitucionalização

das normas jurídicas".

31. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Direito constitucional comparado; o poder

constituin-

te, 1974,v. 1,p. 113.

32. Assim dispunha aquele diploma: "Art. 147. Consideram-se vigentes, com o caráter

de lei

ordinária, os artigos da Constituição promulgada em 9 de julho de 1947 que não contrariem

esta

Constituição".

Sem embargo, salvo os casos em que haja previsão constitucional

nesse sentido, não merece acolhida a tese de permanência da norma

constitucional anterior com caráter ordinário. E que, como visto, uma

nova Constituição, ao entrar em vigor, revoga ipso jure todo o

ordenamento constitucional anterior. Trata-se de uma revogação de sis-

tema, que, em princípio, não resguarda nenhuma norma constitucional

precedente. Tenha-se em conta que, classicamente, entre normas de igual

hierarquia, considera-se que a posterior revoga a anterior quando (a)

expressamente o declare, (b) seja com ela incompatível (c) ou regule

inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.

33. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 241: "A desconstitu-

cionalização... tem de ser prevista por uma norma. Não pode estribar-se em mera

concepção teórica

ou doutrinal. (...) Mas não tem de ser norma expressa ou norma constitucional formal:

poderá

tratar-se de norma de origem consuetudinária".

34. Esta é a doutrina acolhida no art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil,

que tem

efeito de uma lei geral de aplicação das normas jurídicas.

Pois bem: na hipótese aqui cogitada, incide o fundamento da letra c,

supra: uma nova Constituição regula inteiramente a matéria de que tra-

tava a Constituição precedente. A não-reprodução, na nova Carta, de

uma regra constante do ordenamento constitucional anterior, sem a res-

salva de sua continuidade, é um ato de vontade do constituinte, que

manifestamente desejou abster-se do tratamento da matéria. Ao legisla-

dor infraconstitucional, se assim desejar, caberá reeditar o preceito. Esse

modo de encarar o problema tem a adesão de Wilson de Souza Campos

Batalha, que averbou, com propriedade:

"A Constituição suprimida e substituída deixou de ser

norma vigente e não pode continuar a viger em plano infe-

Page 62: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

rior e sub conditione. Sua vida cessou, substituída por ou-

tra Constituição. Se as leis anteriores à nova Constituição

sobrevivem, quando nesta podem encontrar renovado fun-

damento de validade, o mesmo não ocorre com os velhos

preceitos constitucionais. Pura e simplesmente deixam de

ter validade no plano do ordenamento jurídico; sua invoca-

ção poderia ocorrer, não como norma vigente, mas como

princípio tradicional do direito do País".

35. Wilson de Souza Campos Batalha, Direito intertemporal, cit., p. 436.

De modo que, no sistema brasileiro, uma vez promulgada uma nova

Constituição, fica inteiramente revogada a anterior, sendo indiferente o

fato de suas normas guardarem ou não compatibilidade entre si. Até

porque, diante da fartura de Constituições que tem marcado a história

brasileira, correr-se-ia o risco de se ter em vigor, ainda hoje, com força

de lei ordinária, normas das Constituições de 1824, 1891, 1934, 1937,

1946, 1967 e 1969. Ninguém precisa disso.

2. Emenda constitucional e Constituição em vigor

A Constituição é um documento que aspira à permanência, mas não à

perenidade. Por tal razão, todas as Constituições modernas, desde a norte-

americana, de 1787, prevêem a possibilidade de sua própria reforma e

estabelecem as regras que vão reger a matéria. A reforma da Constituição,

como se sabe, é obra do poder constituinte derivado, e, como tal, repre-

senta o exercício de um poder que é juridicamente limitado. É o próprio

constituinte originário quem regula o processo de criação de novas nor-

mas constitucionais, bem como determina o conteúdo que possam ter.

36. Veja-se sobre o tema, genericamente, a tese de Paulo Braga Galvão, Limitações ao

poder

de emendar a Constituição, mimeografado, 1988. A produção jurídica nesta matéria foi

potencializada

pela previsão do art. 3º do ADCT, promulgado juntamente com a atual Constituição, que

previu a

realização de uma revisão constitucional após cinco anos de vigência da Carta de 1988.

Realizada

em meio a acirrada polêmica sobre seus limites materiais, a revisão não produziu senão

alterações

de menor expressão. Vejam-se, dentre muitos trabalhos elaborados a este propósito, Raul

Machado

Horta, Permanência e mudança na Constituição, separata da Revista Brasileira de Estudos

Políti-

cos, n. 74/75, 1992; GeraldoAtaliba, Limites à revisão constitucional de 1993, separata da

Revista

Trimestral de Direito Público, n. 3, 1993; Carmen Lúcia Antunes Rocha, Revisão

constitucional e

plebiscito, mimeografado, 1993; Diogo de Figueiredo Moreira Neto,A revisão

constitucional bra-

Page 63: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

sileira, 1993; Jair Eduardo Santana, Revisão constitucional, 1993; Maurício Antonio

Ribeiro Lopes,

Poder constituinte reformador, 1993. Veja-se, mais recentemente, José Alfredo de Oliveira

Baracho,

Teoria geral da revisão constitucional, Revista da Faculdade de Direito da UFMG, 34:47,

1994.

Quando a sucessão da ordem constitucional se dá com observância

das regras vigentes, afirma-se que, apesar da alteração normativa, hou-

ve continuidade formal do direito constitucional, porque as novas nor-

mas se reconduzem, jurídica e politicamente, à ordem precedente. Ao

revés fala-se em descontinuidade formal quando uma nova ordem cons-

titucional implica ruptura, revolucionária ou não, com a ordem consti-

tucional anterior. Já o conceito de descontinuidade material identifi-

ca-se com a situação em que, além da ocorrência de uma ruptura formal

(ou eventualmente sem ela), verifica-se também uma "destruição" do

antigo poder constituinte por um novo poder constituinte, "alicerçado

num título de legitimidade substancialmente diferente do anterior".

37. V. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 147-8. Em livro

interessantíssimo

(Discovering the Constitution, 1992), Bruce Ackerman, professor da Universidade de Yale,

identi-

fica três momentos de descontinuidade formal na experiência constitucional americana,

pela

inobservância do processo adequado de reforma constitucional: a elaboração, em si, da

Constitui-

ção, em 1787, em desconformidade com os Artigos da Confederação então vigentes,

havendo os

delegados das colônias extrapolado os mandatos que lhes haviam sido conferidos; a

aprovação

da 14ª emenda, pouco após a guerra civil; e a drástica mudança da jurisprudência da

Suprema

Corte relativamente às políticas públicas do New Deal, na década de 30.

38. A referência à "destrucción de la Constitución" se colhe em Carl Schmitt (Teoría

dela

Constitución, cit., p. 115), entendida como a "supresión de la Constitución existente (y no

sólo

de una o varias leyes constitucionales), acompañada de la supresión del Poder constituyente

en

que se basaba".

39. J. J. Gomes Canotiiho, Direito constitucional, cit., p. 149.

No Brasil houve, sem dúvida, descontinuidade formal e material na

substituição da Carta Imperial de 1824 pela Constituição de 1891, fruto

do golpe que proclamou a República; na edição da Constituição de 1934,

que institucionalizou, tardiamente, o movimento revolucionário de 30,

que rompera com o regime constitucional da República Velha; quando

da outorga da Carta de 1937, que instaurou o Estado Novo sobre as

ruínas do regime de 1934. Por outro lado, a elaboração da Constituição

Page 64: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

de 1946 foi precedida de convocação de Assembléia Constituinte, den-

trodos quadros da legalidade anterior. Aí, talvez, não se possa falar em

descontinuidade formal, embora certamente tenha havido

descontinuidade material, pela mudança do título de exercício do poder

constituinte: transferiu-se do poder ditatorial e unipessoal de Vargas para

a soberania popular. Hipótese inversa ocorreu com o golpe de 1964: não

houve descontinuidade formal, porque mantida a Constituição de 1946,

mas houve mudança do título de exercício do poder, que passou a ser

investido no movimento militar vitorioso.

40. É o que deflui, sem margem a dúvida, do Preâmbulo do Ato Institucional n. 1, de

9-4-

1964, onde se lia: "A Revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte.

(...) Ela

destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém

a força

normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas, sem que nisto seja

limitada

pela normatividade anterior à sua vitória. (...) Para demonstrar que não pretendemos

radicalizar o

processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946, limitando-nos a

modificá-la,

apenas, na parte relativa aos poderes do Presidente da República (...). Fica, assim, bem

claro que a

revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato

Institucional,

resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua

legitimação".

A Carta de 1967 não importou, quer em descontinuidade formal,

quer em material, por isso que convocada pelo poder que se instalara em

1964, que tutelou o processo onde apenas nominalmente agiu o Con-

gresso Nacional. Soberania popular nem pensar... A Carta de 1969 -

formalmente emenda constitucional à Carta de 1967 - curiosamente,

importou em descontinuidade formal, por inobservância do processo de

reforma previsto no texto de 1967, sem que tivesse havido, contudo,

descontinuidade material, por isso que foi obra do poder militar, que,

ainda quando ilegitimamente,já exercia o poder constituinte desde 1964.

Porfim, a Constituição de 1988, sem qualquer dúvida, terá impor-

tado em descontinuidade material, haja vista que coroou um movimen-

to popular reivindicatório pelo qual a soberania popular retomou para si

o poder constituinte que lhe fora usurpado desde 1964. Poder-se-á cogi-

tar da inexistência de descontinuidade formal, pelo fato de a Assem-

bléia Constituinte que a elaborou haver sido convocada por emenda cons-

titucional à Carta então vigente. Em nenhuma hipótese, contudo, será

correto o argumento de que o Texto em vigor não terá sido fruto de um

poder constituinte originário, porque convocado pelos órgãos do poder

constituído anterior. Mais do que em qualquer outro momento na his-

tória brasileira, a Constituição de 1988 é produto legítimo do exercício

Page 65: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

da soberania popular, com as virtudes e vícios que daí advêm, sobretudo

quanto às imperfeições do sistema representativo.

41. A Emenda Constitucional n. 26, de 27-11-1985, previu: "Art. 1º. Os membros da

Câmara

dos Deputados e do Senado Federal reunir-se-ão, unicameralmente, em Assembléia

Nacional Cons-

tituinte, livre e soberana, no dia 1º de fevereiro de 1987, na sede do Congresso Nacional.

Art. 2º. O

Presidente do Supremo Tribunal Federal instalará a Assembléia Nacional Constituinte e

dirigirá a

sessão de eleição do seu Presidente. Art. 3º. A Constituição será promulgada depois da

aprovação

de seu texto, em dois turnos de discussão e votação, pela maioria absoluta dos Membros da

Assem-

bléia Nacional Constituinte".

42. Este ponto de vista foi manifestado diversas vezes, quando das discussões da

Assem-

bléia Constituinte, pelo então Consultor-Geral da República, Saulo Ramos. Também se

pronun-

ciou no mesmo sentido Ives Gandra da Silva Martins, em palestra sobre os limites da

revisão

constitucional proferida na Ordem dos Advogados do Brasil - Seção do Rio de Janeiro.

Feita a digressão doutrinária, é bem de ver que a generalidade das

Constituições dita regras específicas acerca do procedimento a ser se-

guido para modificação de seu texto em via institucional. No Brasil, a

Carta em vigor aponta as pessoas e órgãos que têm legitimidade para

propor emenda constitucional, prevendo, ainda, na tradição nacional de

rigidez constitucional, as seguintes regras: a) discussão e votação em

cada Casa do Congresso, em dois turnos; b) aprovação mediante voto de

três quintos dos membros de cada Casa (art 60, I, II, III e § 2º).

Além dos requisitos formais acima identificados, o poder de emenda

sofre limitações que foram impostas pelo constituinte originário.

Com efeito, no direito constitucional positivo brasileiro, há condicionantes

de caráter circunstancial à reforma da Lei Fundamental, lançadas no § 1º,

do art. 60: "A Constituição não poderá ser emendada na vigência de inter-

venção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio".

43. Além das limitações circunstanciais e materiais, vistas a seguir, a doutrina

reconhece

também a existência de limitações ditas temporais, que consistem na estipulação de um

prazo

mínimo após o início de vigência da Constituição para que ela possa ser objeto de reforma.

Norma

desse teor vinha prevista na Constituição do Império, mas não existe na Carta atual.

Existem, também, as chamadas limitações materiais ao poder de

reforma constitucional, conhecidas como cláusulas pétreas, que vêm

previstas no § 4º do art. 60, onde se veda a apreciação de emenda ten-

dente a abolir: "I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto,

Page 66: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os

direitos e garantias individuais".

44. Além das limitações materiais expressas, alguns doutrinadores fazem referência,

tam-

bém, a limitações materiais implícitas (v. Nelson de Souza Sampaio, O poder de reforma

constitu-

cional, 1954, p. 93 e s.; Paulo Bonavides, Direito constitucional, 1980, p. 175 e s.; Manoel

Gonçal-

ves Ferreira Filho, Direito constitucional comparado, cit., v. 1, p. 155-6). A ampliação das

limita-

ções materiais expressas feita pela Constituição de 1988 reduziu a valia da teoria das

limitações

implícitas. Mas há uma que ainda subsiste como limitação implícita: o poder cOnstituinte

derivado

não pode alterar as regras relativas ao processo de edição da própria emenda.

Ora bem: sobrevindo uma emenda constitucional, os dispositivos

anteriores da Lei Fundamental que sejam com ela incompatÍveis ficam

revogados. É bem de ver, no entanto, que as emendas constitucionais

devem reverência absoluta aos preceitos do Texto Constitucional acima

noticiados. Se os violar, sujeitam-se ao controle de constitucionalidade

e podem ter pronunciada sua invalidade. Há precedentes sobre o tema

na prática constitucional brasileira. Recentemente, o Supremo Tribunal

Federal considerou inválido dispositivo da Emenda Constitucional n. 3,

de 17 de março de 1993, que excluía do princípio da anterioridade tribu-

tária (art. 150, III, b) o IPMF (Imposto sobre Movimentação ou Trans-

missão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira), e

vedou sua cobrança no mesmo exercício em que instituído. Relembre-

se que as emendas constitucionais deverão sempre respeitar os direitos

adquiridos, os atos jurídicos perfeitos e a coisa julgada, que são direitos

individuais igualmente preservados da ação do constituinte reformador.

45. Vejam-se sobre o tema, em meio a outros: Otto Bachoff, Normas constitucionais

incons-

titucionais?, 1994, p. 52-4; Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, 1988, t. 2, p.

287-

94; Maria Helena Diniz, Norma constitucional e seus efeitos, 1989, p. 97; J. J. Gomes

Canotilho,

Direito constitucional, cit., p. 756-8, e José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional

posi-

tivo, 1989, p. 58-60. E, de forma nítida, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

"Uma

Emenda Constitucional, emanada, portanto, de Constituinte derivada, incidindo em

violação à Cons-

tituição originária, pode ser declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal,

cuja fun-

ção precípua é de guarda da Constituição (art. 102, I, a, da CF)" (RDA, 198:123, 1994,

ADIn 939-

7-DF, rel. Min. Sydney Sanches).

Page 67: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

46. A Emenda Constitucional n. 3/93 que, em seu art. 2º, autorizou a União a instituir

o IPMF,

incidiu em vício de inconstitucionalidade, ao dispor, no § 2º desse dispositivo, que, quanto

a tal

tributo, não se aplica "o art. 150, 111, b e VI da Constituição", porque, desse modo, violou

os

seguintes princípios e normas imutáveis: 1º) o princípio da anterioridade, que é garantia

individual

do contribuinte (arts. 5º, § 2º, 60, § 4º, IV, e 150, III, b, da CF); 2º) o princípio da

imunidade

tributária recíproca, que é garantia da Federação (arts. 60, § 4º, I, e 150, VI, a, da CF); 3º) a

norma

que, estabelecendo outras imunidades, impede a criação de impostos nas hipóteses que

especifica

(art. 150, III, da CF) (RDA, 198:123,1994, ADin 939-7-DF, rel. Min. Sydney Sanches).

Para uma

visão crítica desta decisão, v. o denso artigo do eminente Professor Flavio Bauer Novelli,

Norma

constitucional inconstitucional?, RDA, 199:21, 1995. Veja-se, também, a referência feita no

julgamen-

to da ADIn 981-8-PR: "Após 5 de outubro de 1993, cabia ao Congresso Nacional deliberar

no sentido

da oportunidade ou necessidade de proceder à aludida revisão constitucional, a ser feita

uma só vez".

As mudanças na Constituição, decorrentes da "revisão" do art. 3º do ADCT, estão sujeitas

ao controle

judicial, diante das "cláusulas pétreas" consignadas no art. 60, § 4º e seus incisos, da Lei

Magna de

1988" (RDA, 198:231,1994, rel. Min. Néri da Silveira).

Ainda nessa temática, o Supremo Tribunal Federal, assim no regime

constitucional anterior como no atual, tem entendido cabível mandado de

segurança contra o simples processamento de emenda constitucional que

viole alguma das cláusulas pétreas do art. 60, § 4º. De fato, em mais de

um precedente, a Corte reconheceu, em sede de controle incidental, a

possibilidade de fiscalização jurisdicional da constitucionalidade de pro-

postas de emenda à Constituição que veicularem matéria vedada ao poder

reformador do Congresso Nacional.

47. V. RTJ, 99:1031, 1982. MS 20.257, rel. Min. Moreira Alves; RDA 193:266, 1993,

MS

21.747, rel. Min. Celso de Melo, e RDA, 191:200, 1993, MS 21.642, rel. Min. Celso de

Melo.

Mais recentemente, no MS 21 .648-DF, de que foi relator o Min. Ilmar Galvão, decidiu o

Supremo

Tribunal Federal: É legítima a pretensão de Deputado Federal, pela via do mandado de

segurança,

a que lhe seja reconhecido o direito de não ter de manifestar-se sobre Projeto de Emenda

Constitu-

Page 68: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

cional, que considera violador do princípio da anterioridade tributária. No entanto, perde o

Deputa-

do tal legitimidade em virtude da modificação da situação jurídica no curso do processo,

decorrente

da superveniente aprovação do projeto, que já se acha em vigor. Na hipótese, o mandado de

segu-

rança, que tinha caráter preventivo, não se pode voltar contra a emenda já promulgada, o

que

equivaleria a emprestar-lhe efeito, de todo descabido, de ação direta de

inconstitucionalidade, para

a qual, ademais, não está o impetrante legitimado (RTJ. 165:540, 1998).

De todo modo, sendo a emenda constitucional formal e material-

mente válida, tem vigência imediata e revoga as normas constitucionais

precedentes que sejam com ela incompatíveis. Aqui, ao contrário do

que normalmente se passa com o advento de uma nova Constituição,

não há descontinuidade de qualquer natureza, seja formal ou material.

Tampouco há que se falar em revogação de sistema. A revogação aqui

operada é limitada ao dispositivo substituído e às eventuais implicações

sistêmicas que disso resultem.

3. Constituição nova e direito infraconstitucional anterior

A interpretação constitucional, como se desenvolverá mais adiante,

conduz-se sob a inspiração de determinados princípios cardeais, que a

singularizam, dando-lhe um toque de especificidade. Dentre esses prin-

cípios destacam-se, para os fins do tópico aqui versado, o da supremacia

da Constituição e o da continuidade da ordem jurídica.

O princípio da supremacia da Constituição, que tem como premis-

sa a rigidez constitucional, é a idéia central subjacente a todos os siste-

mas jurídicos modernos. Sua compreensão é singela. Na celebrada ima-

gem de Kelsen, para ilustrar a hierarquia das normas jurídicas, a Cons-

tituição situa-se no vértice de todo o sistema legal, servindo como fun-

damento de validade das demais disposições normativas. Toda Consti-

tuição escrita e rígida, como é o caso da brasileira, goza de superiorida-

de jurídica em relação às outras leis, que não poderão ter existência

legítima se com ela contrastarem.

Merece relevo, por igual, o princípio da continuidade da ordem

jurídica. Ao entrar em vigor, a nova Constituição depara-se com todo

um sistema legal preexistente. Dificilmente a ordem constitucional re-

cém-estabelecida importará em um rompimento integral e absoluto com

o passado. Por isso, toda a legislação ordinária federal, estadual e mu-

nicipal que não seja incompatível com a nova Constituição conserva sua

eficácia. Se assim não fosse, haveria um enorme vácuo legal até que o

legislador infraconstitucional pudesse recompor inteiramente todo o

domínio coberto pelas normas jurídicas anteriores.

48. Sobre o tema, v. Caio Mário da Silva Pereira, Direito constitucional intertemporal,

RF,

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304:29, p. 30 e s.; Wilson de Souza Campos Batalha, Direito intertemporal, cit., p. 434 e 5.;

Jorge

Miranda, Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 242 e 5.; J. J. Gomes Canotilho,

Manual de

direito constitucional, cit., p. 1114 e s.

As relações entre uma nova Constituição e uma lei a ela anterior

situam-se na confluência desses dois princípios. O primeiro condena à

invalidade e à ineficácia toda e qualquer norma incompatível com a Carta

Constitucional. O segundo, de superlativo valor pragmático, procura

preservar a vigência e eficácia da legislação que vigorava anteriormente

ao advento da nova Constituição. As Constituições de 1891 e 1934

positivaram a regra da continuidade da ordem jurídica, embora o princí-

pio pudesse prescindir de texto expresso. As demais Cartas brasileiras

não o reproduziram, mas jamais se questionou a sua permanência em

nosso sistema.

49. Constituição Federal de 1891, art. 83: "Continuam em vigor, enquanto não

revogadas, as

leis do antigo regímen no que explícita ou implicitamente não for contrário ao sistema de

governo

firmado pela Constituição e aos princípios nela consagrados"; Constituição Federal de

1934: "Con-

tinuam em vigor, enquanto não revogadas, as leis que, explícita ou implicitamente não

contrariarem

as disposições desta Constituição".

50. Escreveu Rui Barbosa (Comentários à Constituição Federal brasileira, 1934, v. 6,

p. 406):

"Não se havia mister de que a Constituição formalmente o declarasse, para se ver ou saber

que não

repudiava as leis e instituições anteriores, com ela compatíveis, ou dela complementares.

Em todas

as constituições, está subentendida essa disposição".

A continuidade da ordem jurídica se dá através de um processo ao

qual a doutrina costuma referir-se como recepção, sob inspiração, ainda

aqui, da lição de Hans Kelsen, a seguir reproduzida:

"Uma grande parte das leis promulgadas sob a antiga

Constituição permanece, como costuma dizer-se, em vi-

gor. No entanto, esta expressão não é acertada. Se estas leis

devem ser consideradas como estando em vigor sob a nova

Constituição, isto somente é possível porque foram postas

em vigor sob a nova Constituição, expressa ou implicita-

mente (...). O que existe, não é uma criação de Direito in-

teiramente nova, mas recepção de normas de uma ordem

jurídica por uma outra".

51. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, p. 290-1.

E conclui o mestre de Viena, retomando sua idéia básica da Consti-

tuição como fundamento de validade da ordem jurídica:

"Mas também essa recepção é produção de Direito.

Page 70: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Com efeito, o imediato fundamento de validade das nor-

mas jurídicas recebidas sob a nova Constituição,

revolucionariamente estabelecida, já não pode ser a antiga

Constituição, que foi anulada, mas apenas o pode ser a nova.

O conteúdo destas normas permanece na verdade o mes-

mo, mas o seu fundamento de validade, e não apenas este

mas também o fundamento de validade de toda a ordem

jurídica, mudou. Com o tomar-se eficaz da nova Constitui-

ção, modificou-se a norma fundamental, quer dizer, o pres-

suposto sob o qual o facto constituinte e os factos postos

em harmonia com a Constituição podem ser pensados como

factos de produção e de aplicação de normas jurídicas".

52. Teoria pura do direito, cit., p. 290-1.

É preciso atentar, aqui, que, embora o texto da norma recepcionada

permaneça o mesmo, poderá ela merecer leitura e interpretação diver-

sas, quando o novo ordenamento esteja pautado por princípios e fins

distintos do anterior. Retomando a lição de Kelsen, também Norberto

Bobbio doutrinou a respeito:

"O fato de o novo ordenamento ser constituído em parte

por normas do velho não ofende em nada o seu caráter de

novidade: as normas comuns ao velho e ao novo ordena-

mento pertencem apenas materialmente ao primeiro; for-

malmente, são todas normas do novo, no sentido de que

elas são válidas não mais com base na norma fundamental

do velho ordenamento, mas com base na norma fundamental

do novo. Nesse sentido falamos de recepção, e não pura e

simplesmente de permanência do velho no novo. A recep-

ção é um ato jurídico com o qual o ordenamento acolhe e

torna suas as normas de outro ordenamento,onde tais nor-

mas permanecem materialmente iguais, mas não são mais

as mesmas com respeito à forma".

53. Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 177.

Justamente por não se tratar de mero recebimento das normas anterio-

res, mas de verdadeira recriação de seu sentido, é feliz o emprego da

palavra "novação", em lugar de "recepção", como faz Jorge Miranda,

que sintetizou com maestria as conseqüências jurídicas do fenômeno

em três corolários:

"a) Os princípios gerais de todos os ramos de Direito

passam a ser os que constem da Constituição ou os que

dela se infiram directa ou indirectamente, enquanto revela-

ções dos valores fundamentais da ordem jurídica acolhi-

dos pela Constituição;

b) As normas legais e regulamentares vigentes à data

da entrada em vigor da nova Constituição têm de ser

reinterpretadas em face desta e apenas subsistem se con-

formes com as suas normas e os seus princípios;

c) As normas anteriores contrárias à Constituição, mes-

Page 71: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

mo que contrárias a normas programáticas, não podem sub-

sistir - seja qual for o modo de interpretar o fenómeno da

contradição".

54. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 243-4.

Atente-se para a lição mais relevante: as normas legais têm de ser

reinterpretadas em face da nova Constituição, não se lhes aplicando,

automática e acriticamente, a jurisprudência forjada no regime ante-

rior. Deve-se rejeitar uma das patologias crônicas da hermenêutica

constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual

se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada,

mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo. Com

argúcia e espírito, José Carlos Barbosa Moreira estigmatiza a

equivocidade dessa postura:

"Põe-se ênfase nas semelhanças, corre-se um véu so-

bre as diferenças e conclui-se que, à luz daquelas, e a des-

peito destas, a disciplina da matéria, afinal de contas, mu-

dou pouco, se é que na verdade mudou. É um tipo de inter-

pretação... em que o olhar do intérprete dirige-se antes ao

passado que ao presente, e a imagem que ele capta é menos

a representação da realidade que uma sombra fantas-

magórica".

55. Para um valioso estudo de caso, veja-se Humberto Ribeiro Soares, Convênio

tributário e

a Constituição de 1988, 1992.

56. José Carlos Barbosa Moreira, O Poder Judiciário e a efetividade da nova

Constituição,

RF,304:151, 1988,p. 152.

No fenômeno da recepção, o que é verdadeiramente imperativo

é a compatibilidade entre o velho e o novo, como enfatizado pela

pena ilustre dos principais comentadores nacionais. João Barbalho

advertiu:

"O que unicamente existe em vigor da anterior legisla-

ção é o que nela não se acha em antinomia com o novo regi-

me e com seus princípios fundamentais. E é de notar que

não se torna necessário, para haver-se por derrogada essa

legislação, que ela enfrente algum artigo ou expressa dispo-

sição constitucional, basta que tenha ficado em oposição ao

sistema fundado pela Constituição e aos princípios nela con-

sagrados (art. 83). Sábia disposição, zeladora da pureza e

exação do sistema e da sua genuína e sincera execução".

57. João Barbalho, Constituição Federal brasileira - comentários, 1924, p. 487-8.

Carlos Maximiliano, após enfatizar a revogação automática dos tex-

tos incompatíveis com o estatuto supremo, acrescentou:

"Basta a antinomia implícita para desaparecer o texto

ordinário e prevalecer o fundamental".

58. Carlos Maximiliano, Comentários à Constituição brasileira (de 1891), 1918, p.

786.

Page 72: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Para que não se torne enfadonha a repetição, veja-se, por fim, Pon-

tes de Miranda, remarcando igualmente a evidência:

"As leis que continuam em vigor são todas as que exis-

tiam e não são incompatíveis com a Constituição nova".

59. Pontes de Miranda, Comentários à Constituição da República dos Estados Unidos

do

Brasil, cit., v. II, p. 560.

As manifestações transcritas acima, embora cuidassem de destacar

a necessária compatibilidade entre a velha ordem e a nova Constituição,

passam ao largo de uma discussão que seduz os teóricos, mas que tem,

igualmente, significativas conseqüências práticas. E que a doutrina tem

assumido posições que se contrapÕem com certo radicalismo no que

toca às relações entre a Constituição e a lei anterior.

De um lado, há os que sustentam que a nova Constituição, ao entrar

em vigor, simplesmente revoga toda a legislação precedente com ela in-

compatível. Portanto cuidar-se-ia de um conflito de natureza temporal, a

ser resolvido no plano da vigência da norma. De outro lado, há os que

sustentam a inadequação de se tratar tal questão à luz do direito

intertemporal, sob o argumento de que a regra lex posterior derogat priori

somente se aplica a normas de igual hierarquia. Por via de conseqüência,

consideram que o conflito entre a Constituição e a lei anterior é de nature-

za hierárquica, a ser resolvido no plano da validade da norma. Logo, se a

Constituição e a norma anterior são incompatíveis, é caso de pronunciar-

se a inconstitucionalidade da norma, e não sua revogação.

A questão, portanto, põe-se em termos de saber se a lei anterior

incompatível com a Constituição deve ser tida como revogada ou se é

necessário declarar-lhe a inconstitucionalidade. A tese da revogação,

aparentemente, tem a preferência da doutrina nacional. Confira-se a li-

ção de Victor Nunes Leal:

"Parece-nos mais acertada a corrente que vê na incom-

patibilidade entre a lei anterior e a Constituição nova um

simples caso de revogação e não de inconstitucionalidade.

Em primeiro lugar porque o conflito que aí se abre é tipica-

mente um conflito de normas no tempo: a norma anterior

considera-se revogada pela promulgação da norma poste-

rior com ela incompatível".

60. Victor Nunes Leal, Leis complementares da Constituição, RDA, VII:379, p. 390.

Assim, também, Francisco Campos:

"Todas as leis anteriores incompatíveis com a Consti-

tuição encontram-se tacitamente revogadas".

61. Francisco Campos, Direito constitucional, 1956, t. 2, p. 103.

Na mesma linha foi a manifestação do eminente Ministro Carlos

Mário da Silva Velloso, que, em trabalho doutrinário, averbou:

"A superveniência de norma constitucional revoga le-

gislação ordinária com ela incompatível, ou a questão se-

ria de ser resolvida no controle de constitucionalidade?

A doutrina e a jurisprudência brasileira concebem a

Page 73: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

questão no âmbito do Direito Intertemporal: a legislação

anterior à Constituição e com esta incompatível considera-

se revogada".

62. Carlos Mário da Silva Velloso, Controle da constitucionalidade na Constituição

brasileira

de 1988, in Temas de direito público, 1994, p. 138. Veja-se igual orientação em Celso

Ribeiro

Bastos, Curso de direito constitucional, 1990, p. 116; em Marcelo Neves, Teoria da

inconstitucionalidade das leis, 1988, p. 96, e em Ronaldo Poletti, Controle de

constitucionalidade

das leis, 1985, p. 165.

Não têm faltado, por outro lado, doutrinadores da melhor linhagem

sustentando a tese oposta. Castro Nunes, já em 1943, defendia:

"Tem-se dito e é essa a opinião generalizada, quer

na exposição do nosso Direito Constitucional, quer na ju-

risprudência que as leis preexistentes e havidas como

incompatíveis com a Constituição são leis revogadas, que

escapam ao tratamento da declaração da inconstitucio-

nalidade. Tenho divergido desse entendimento assentado

de longa data pelo Supremo Tribunal.

(...) A teoria da ab-rogação das leis supÕe normas da

mesma autoridade. Quando se diz que a lei posterior revo-

ga, ainda que tacitamente, a anterior, supõem-se no cotejo

leis do mesmo nível. Mas se a questão está em saber se

uma norma pode continuar a viger em face das regras ou

princípios de uma Constituição, a solução negativa só é

revogação por efeito daquela anterioridade; mas tem uma

designação peculiar a esse desnível das normas, chama-se

declaração de inconstitucionalidade".

63. Castro Nunes, Teoria e pratica do Poder Judiciário, 1943, p. 600-1. Aparentemente

no

mesmo sentido, Themístocles Brandão Cavalcanti, Do controle de constitucionalidade.

1966. p.

171, embora em texto ambíguo e pouco claro.

Em igual sentido é a compreensão de Wilson de Souza Campos

Batalha, que escreveu:

"Se, ao contrário, essas normas jurídicas elaboradas na

vigência da Constituição anterior vierem a atritar-se com os

novos textos constitucionais, cessarão de vigorar, a partir da

data do início da vigência da Constituição recente, porque

não poderão encontrar nesta fundamento para sua validade:

serão normas inconstitucionais. A rigor, não se poderá dizer

que a Constituição revogou as normas anteriores que lhe eram

contrárias. A revogação opera-se apenas entre normas de igual

hierarquia: a lei revoga-se por outra lei.

(...) A Constituição não revogou as leis anteriores que

lhe eram contrárias; apenas estas deixaram de existir no

Page 74: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

plano do ordenamento jurídico estatal, por haverem perdi-

do seu fundamento de validade".

64. Direito intertemporal. cit., p. 434.

A polêmica se põe, também, no plano do direito comparado. Na

Itália, depois de alguma controvérsia doutrinária, prevaleceu a tese de

que a hipótese se resolve em termos de ilegitimidade constitucional, e

não de revogação. Foi nesse sentido a sentença n. 1, de 1956, que bem

distinguiu as diferentes figuras envolvidas, assentando que "os dois ins-

titutos jurídicos da ab-rogação e da ilegitimidade constitucional das leis

não são idênticos entre si, movem-se em planos diversos, com efeitos

diversos e competências diversas". Tal decisão foi respaldada pelos

principais publicistas italianos.

65. Os comentários que se seguem beneficiam-se do valioso levantamento feito pelo

Min. Sepúlveda

Pertence, em voto vencido publicado na RDA 187:152, 1992, a que adiante far-se-á

menção.

66. V. Biscaretti di Ruffia, Derecho constitucional, 1984, p. 268: "... todo contraste

entre uma lei

anterior e a Constituição produz, antes de uma ab-rogação, uma ilegitimidade

constitucional".

67. Giurisprudenza della Corte Costituzionale italiana, 1985, p. 3: "I due istituti

giuridici

dell’abrogazione e della illegitimità costituzionale delle leggi non sono identici fra loro, si

muovono

su piani diversi, con effetti diversi e con competenze diverse". V. voto do Min. Sepúlveda

Pertence

referido acima.

68. Vejam-se, entre outros, Calamandrei (Corte Constitucional y autoridad judicial, in

Estudios

sobre el proceso civil, trad. Bs. As., 1973, v. III, p. 149 e s.), C. Mortati (Abrogazione

legislativa e

instaurazione di un nuovo ordinamento costituzionale, 1958, Raccolta di Scritti, 2:43, p.

68), Mauro

Cappelletti (La pregiudizialità costituzionale nel processo civile, 1972, p. 88) e Balladore-

Palieri

(Diritto costituzionale, 1955, p. 281, apud Sepülveda Pertence, RDA, 187:152, 1992, p.

156).

Na Alemanha o tratamento é distinto, quer se trate de controle in

concreto ou in abstracto. De fato, o Tribunal Constitucional Federal

entendeu não ser de sua competência, mas, sim, do juiz da causa, a solu-

ção da argüição incidente de incompatibilidade de lei anterior com a

Constituição. Vale dizer: não considerou ser o caso de se suscitar ques-

tão constitucional a ser encaminhada para o Tribunal. Todavia, no con-

trole abstrato, entendeu "caber-lhe a aferição da compatibilidade entre

o direito pré-constitucional e a Lei fundamental". De modo que o di-

reito alemão trata a questão ora como de nível infraconstitucional - i.

e., como revogação -, ora como de nível constitucional.

Page 75: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

69. BVerfGE, 2, 124, apud Gilmar Ferreira Mendes, Controle de constitucionalidade,

1990,

p. 75.

70. Odim Brandão Ferreira, apud Sepúlveda Pertence, RDA, 187:152, p. 156.

71. Dispõe a propósito a Constituição alemã: "Art. 126. (Divergências sobre a

continuidade da

vigência de direito antigo) As divergências sobre a continuidade da vigência de qualquer

disposição

jurídica, sob a forma de direito federal, serão decididas pelo Tribunal Federal

Constitucional".

Na Espanha, a letra expressa da Constituição sugere uma adesão à

teoria ab-rogatória e não à da inconstitucionalidade. De fato, na parte

final de seu texto, contém a Carta espanhola uma "disposición dero-

gatoria", cujo item 3 prescreve que "quedan derogadas cuantas dispo-

siciones se opongam al estabelecido en esta Constitución". Sem embar-

go, o Tribunal Constitucional temperou a leitura mais óbvia do disposi-

tivo com a adoção de uma tese híbrida. Se o juiz se convencer, à luz do

caso concreto, da existência de incompatibilidade entre a Constituição e

a lei a ela anterior, poderá prosseguir e decidir a lide, sem precisar sus-

pender o processo e levantar a questão constitucional. Se, porém, estiver

em dúvida, poderá levantar, perante o Tribunal Constitucional, a ques-

tão de inconstitucionalidade superveniente.

72. V. Francisco Fernandez Segado, El sistema constitucional

español, 1992, p. 75-9, e Eduardü

García de Enterría, La Constitución como norma jurídica y el Tribunal Constitucional,

1981, p. 85.

A sentença n. 4, de 2-2-1981, estabeleceu: "Así como frente a las Leyes

postconstitucionales el

Tribunal ostenta un monopolio para enjuiciar su conformidad con la Constitución, en

relación a las

preconstitucionales los Jueces y Tribunales deben inaplicarlas si entienden que han

quedado derogadas

por la Constitución, al oponerse a la misma; o pueden, en caso de duda, someter este tema

al

Tribunal Constitucional por la via de la cuestión de inconstitucionalidad" (apud Francisco

Segado,

El sistema constitucional español, cit., p. 78).

Em Portugal existe, atualmente, norma constitucional expressa en-

dossando a orientação da inconstitucionalidade superveniente, tese que

desde antes já contava com a adesão dos principais doutrinadores. Veja-

se, por todos, a posição de Gomes Canotilho:

"Os juízes podem e devem conhecer da incons-

titucionalidade do direito pré-constitucional e o TC pode

julgar inconstitucionais normas cuja entrada em vigor

retrotrai a um momento anterior ao da entrada em vigor da

Constituição.

(...) A inconstitucionalidade (plano de validade) con-

Page 76: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

duz, num caso concreto, à revogação (plano de vigência).

Daí que, na inconstitucionalidade superveniente, haja um

concurso de revogação (leis que se sucedem no tempo) e

nulidade (leis de hierarquia diferente em relação de con-

trariedade).

(...) O fato de as leis ordinárias anteriores incons-

titucionais terem deixado de vigorar com a entrada em vi-

gor da Constituição não significa a inutilidade de uma de-

claração expressa de inconstitucionalidade a efectuar pelo

órgão com competência para esse efeito".

73. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 1115. No mesmo sentido,

Jorge

Miranda, Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 248 e s.

Algumas peculiaridades da realidade brasileira e do sistema de con-

trole de constitucionalidade aqui adotado realçam a polêmica doutriná-

ria existente. De fato, a sucessão de cartas constitucionais e de emendas

ao longo de nossa acidentada história institucional faz com que se colo-

que rotineiramente perante os tribunais a questão da vigência ou valida-

de de normas anteriores à mudança constitucional. Quando a decisão é

pronunciada no caso concreto, não há qualquer implicação prática na

opção pela tese da revogação ou da inconstitucionalidade superveniente.

É que, em qualquer caso, ter-se-ia como ineficaz a norma a partir do

momento da promulgação da Constituição. De fato, tanto a revogação

retirada de vigência da lei - como a declaração incidental de

inconstitucionalidade - i. e., reconhecimento de sua invalidade - pro-

duziriam o mesmo resultado: não-aplicação, pelo juiz, da norma im-

pugnada, que terá deixado de existir ou de valer na mesma data.

No plano processual, todavia, surge uma importante conseqüência

prática da qualificação doutrinária da matéria. É que, no Brasil, além do

controle de constitucionalidade incidental e difuso, existe o controle

por via principal, em tese ou por ação direta, previsto expressamente no

art. 102, I, a, da Constituição Federal. Veja-se, então: se a questão se põe

em termos de inconstitucionalidade superveniente, caberá ação direta

de inconstitucionalidade contra a norma anterior à Constituição e que

seja com ela incompatível. De outra parte, se se encara a matéria em

termos de revogação, a ação direta será descabida, porque não se pode

cogitar de declarar inconstitucional o que já não existe no mundo jurídico.

O tema esteve pacificado por muitos anos em sede jurisprudencial,

havendo sido reagitado em amplo debate perante o Supremo Tribunal

Federal quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade

n. 2, em 6 de fevereiro de 1992. Em longo e erudito voto, reproduzido

no julgamento de diversas outras ações, o Ministro Sepúlveda Pertence

sustentou a tese da inconstitucionalidade superveniente, em

contraposição à idéia até então dominante de que todas as leis anteriores

à Constituição e com ela incompatíveis ficavam revogadas. Foi acom-

panhado pelos Ministros Néri da Silveira e Marco Aurélio. Na vigorosa

sustentação de seu voto, escreveu:

Page 77: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

"Não nego a paridade de efeitos substanciais entre a

concepção da inconstitucionalidade superveniente e a da

ab-rogação pela Constituição nova do direito pré-constitu-

cional ordinário, com ela incompatível.

(...) Prefiro-a (a tese da inconstitucionalidade super-

veniente) àquela da simples revogação, porque entendo que

a conseqüência básica da sua adoção - o cabimento da

ação direta -, é a que serve melhor às inspirações do sis-

tema brasileiro de controle de constitucionalidade.

Reduzir o problema às dimensões da simples revogação

da norma infraconstitucional pela norma constitucional pos-

terior - se é alvitre que tem por si a sedução da aparente

simplicidade -, redunda em fechar-lhe a via da ação direta.

É deixar, em conseqüência, que o deslinde das controvérsias

suscitadas flutue, durante anos, ao sabor dos dissídios entre

juízes e tribunais de todo o país, até chegar, se chegar, à de-

cisão da Alta Corte, ao fim de longa caminhada pelas vias

freqüentemente tortuosas do sistema de recursos".

74. ADIn 438, julgada em 7-2-1992, onde se transcreve na íntegra o voto da ADIn 2,

julgada

na véspera. Ressalvando sua opinião pessoal, curvou-se o Min. Pertence à deliberação da

maioria,

que não conhecia do pedido por impossibilidade jurídica, averbando: "Guardando, embora,

meu

inabalável convencimento derrotado, rendo-me à força numérica e à vontade da maioria e

acompa-

nho o eminente Relator" (RDA, 187:152, 1992).

Prevaleceu, todavia, a posição do Ministro Paulo Brossard, na linha

da tradicional jurisprudência da Suprema Corte. Com a adesão de oito

ministros, o acórdão proferido na Ação Direta de Inconstitucionalidade

n. 2 inscreveu em sua ementa a síntese da posição vitoriosa:

"O vício da inconstitucionalidade é congênito à lei e

há de ser apurado em face da Constituição vigente ao tem-

po de sua elaboração. Lei anterior não pode ser inconstitu-

cional em relação à Constituição superveniente; nem o le-

gislador poderia infringir Constituição futura. A Constitui-

ção sobrevinda não torna inconstitucionais leis anteriores

com ela conflitantes: revoga-as. Pelo fato de ser superior, a

Constituição não deixa de produzir efeitos revogatórios.

Seria ilógico que a lei fundamental, por ser suprema, não

revogasse, ao ser promulgada, leis ordinárias. A lei maior

valeria menos que a lei ordinária.

Reafirmação da antiga jurisprudência do STF, mais que

cinqüentenária.

Ação direta que não se conhece por impossibilidade

jurídica do pedido".

Page 78: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

75. V. Paulo Brossard, A Constituição e as leis a ela anteriores, Separata da Revista

Arquivos

do Ministério da Justiça, v. 45, n. 180, p. II. O trabalho apresenta um amplo levantamento

da

jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o tema. Vejam-se,

exemplificativamente: RTJ,

131:1070, 1988 e 130:1002, 1989;RDA, 188:288, 1992;RTJ, 145:347, 1993.

Há um vasto elenco de bons argumentos em favor de uma e outra

posições. Existem, mesmo, autores que procuram conciliar as correntes

opostas, cunhando uma solução híbrida para o problema. É o que faz

Lúcio Bittencourt, em passagem constantemente lembrada:

"A revogação se verifica quando a lei, tachada de in-

compatível com a Constituição, já se achava em vigor por

ocasião do advento desta. Não se trata, porém, de revoga-

ção pura e simples, como a que decorre em virtude do con-

flito intertemporal entre duas leis da mesma hierarquia. Não,

uma lei incompatível com a Constituição é, sempre, uma

lei inconstitucional, pouco importando que tenha precedi-

do o Estatuto Político ou lhe seja posterior. A revogação é

conseqüência da inconstitucionalidade".

76. Lúcio Bittencourt, O controle da constitucionalidade das leis, 1968, p. 131.

Esse ponto de vista intermediário ou conciliador tem a adesão de

José Afonso da Silva, que, concordando com Lúcio Bittencourt, afirma

que na hipótese "se dá uma revogação por inconstitucionalidade, numa

por assim dizer revogação por invalidação... ". É o que também

transparece da lição de J. J. Gomes Canotilho, já referida, que entende

haver "um concurso de revogação (leis que se sucedem no tempo) e

nulidade (leis de hierarquia diferente em relação de contrariedade)".

Ainda quando essa postura híbrida possa ser sedutora ao espírito - in

medio virtus -, o fato é que ela não soluciona o problema prático. Con-

vém aprofundar a análise do tema e emitir nossa opinião.

77. José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, cit., p. 202.

78. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 1115.

Uma norma incompatível com a Constituição poderá sempre ensejar

um juízo de inconstitucionalidade. A rigor doutrinário, tal juízo não so-

fre condicionamento de natureza temporal, podendo recair sobre lei an-

terior ou sobre lei posterior. Isso porque o que induz à inconstitucio-

nalidade é a incompatibilidade, independentemente do momento em que

se verifica. Esta poderá ser contemporânea ao nascimento da lei ou

superveniente, na hipótese de alteração do preceito constitucional.

De outra parte, uma lei posterior, sendo incompatível com a anterior,

deve revogá-la, desde que seja de hierarquia igual ou superior. Não seduz,

com todas as vênias, a tese de que lei posterior de hierarquia mais elevada

não possa suceder a norma inferior, com eficácia ab-rogatória. Parece

pouco lógico que a norma superveniente, sendo de igual hierarquia, possa

retirar de vigência a anterior, mas sendo superior não possa.

A conclusão a que se chega, de cada um dos parágrafos antecedentes,

Page 79: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

é que uma e outra correntes têm bom substrato doutrinário. Tanto é razo-

ável a idéia de revogação quanto a da inconstitucionalidade superveniente.

Está-se diante de duas proposições lógicas e bem fundadas. Em sendo

assim, a opção por uma ou outra envolve matéria de política legislativa,

cabendo, em princípio, ao próprio constituinte fazer a escolha, formulan-

do seu juízo de conveniência e oportunidade. Não o fazendo, a decisão

transfere-se para a Corte Constitucional ou para o Supremo Tribunal.

No caso brasileiro, como se assinalou, a opção por uma ou por outra

solução tem importante conseqüência prática: posta a matéria em ter-

mos de revogação, não caberá ação direta, pois não se pronuncia a

inconstitucionalidade de lei que já não esteja em vigor. Se, ao revés, se

conceber o tema no campo da inconstitucionalidade superveniente, ca-

berá, naturalmente, a ação direta.

A ratio que conduz à posição defendida por José Paulo Sepúlveda

Pertence é por ele explicitada: ensejar o estabelecimento de certeza jurí-

dica erga omnes sobre a eficácia ou não de uma lei, ainda que anterior à

Constituição, sem deixar que o "deslinde das controvérsias suscitadas

flutue, durante anos, ao sabor dos dissídios entre juízes e tribunais de

todo o país". Para isso, nada mais adequado que a ação direta de

inconstitucionalidade.

79. ADIn438, RDA, 187:152, 1992,p. 154.

Inversamente, uma das principais motivações da corrente majoritá-

ria da Suprema Corte, e que inspira, aliás, outras de suas linhas juris-

prudenciais, é a necessidade de limitar o número de feitos que chegam

àquele tribunal. Confrontado com a impossibilidade material de apre-

ciar milhares de processos que lhe tocam por competência originária ou

por via recursal, o Supremo Tribunal Federal tende a prestigiar os en-

tendimentos doutrinários que restrinjam, e não que ampliem, o acesso

de novas ações.

80. Como, v. g., a que estabelece critérios rígidos na verificação da legitimação para a

ação

direta prevista no inciso IX do art. 103 da Constituição. V. RTJ, 144:434, 1993, 144:702,

1993,

144:747, 1993, 145:669, 1993, 146:421, 1993; RDA, 188:144, 1992, e 188:150, 1992.

Paradoxalmente, o voto do Ministro Pertence, cuja tese importa em

aumento dos casos a serem submetidos à Corte, abre-se com a seguinte

e reveladora passagem:

"Assinalo, de início, para deixar documentado o con-

gestionamento temporal com que se debatem os trabalhos

do plenário da Corte, que este voto vista aguarda chamada

desde começos de 1990. Desde então não me cabe respon-

sabilidade pelo retardamento que agora impõe a renovação

integral do julgado".

81. ADIn 438, RDA, 187:152,p. 153.

A posição minoritária, à qual se filiaram, também, os Ministros Néri da

Silveira e Marco Aurélio, tem a simpatia das concepções que ensejam o

juízo de mérito e a solução possível para o problema, em lugar de postergá-

Page 80: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

la ou descartá-la por embaraços processuais. Mas enfrenta duas restrições

de cunho doutrinário. A primeira é a de que o exercício do poderjurisdicional

em tese, in abstracto, caracteriza exceção e deve ser evitado quando não

resulte da letra clara da lei ou de necessidade que se possa reputar impe-

riosa. O argumento tem consistência, mas não é decisivo.

82. Na lição sempre precisa do saudoso M. Seabra Fagundes (O controle dos atos

adminis-

trativos pelo Poder Judiciário, cit., p. 4-5 e 11), legislar é editar o direito positivo;

administrar é

aplicar a lei de ofício; e julgar é aplicar a lei contenciosamente. Em suas palavras: "O seu

exercício

(da função jurisdicional) pressupõe, assim, um conflito, uma controvérsia, ou um obstáculo

em

torno da realização do Direito e visa a removê-lo pela definitiva e obrigatória interpretação

da lei.

Para uma discussão sobre a natureza do papel desempenhado porjuízes e tribunais na

jurisdição

constitucional em Hans Kelsen, Carl Schmitt e Rudolf Smend, v. José Antonio Estévez

Araujo.

La Constitución como proceso y la desobediencia civil, 1994, p. 51 e s.

O outro argumento deita raízes em regra de interpretação constitu-

cional que será apreciada mais adiante. Veja-se que a jurisprudência que

trata a lei anterior incompatível com a Constituição sob o prisma da

revogação, e, conseqüentemente, do descabimento da ação direta de

inconstitucionalidade, é vetusta, bem anterior à Constituição de 1988.

Não colide ela com qualquer princípio ou com o sistema da Carta em

vigor. Ora bem: se o constituinte desejasse que a matéria fosse tratada

de forma diversa da que se cristalizou na jurisprudência, deveria ter cui-

dado de assim prever expressamente. A omissão, no caso, deve ser inter-

pretada como concordância com a prática jurisprudencial anterior.

83. A tese da revogação tem a chancela de jurisprudência antiga, que se formou ainda

na Cons-

tituição de 1946, antes mesmo da introdução da ação genérica de controle de

constitucionalidade (v.

RE 19.656, rel. Min. Luiz Gallotti,julgado em 1952, RT, 231:665). Foi confirmada no

regime consti-

tucional subseqüente em julgados sucessivos. V. RTJ, 71 :291, 1974,76:538, 1975, 82:44,

1977,95:980,

1979,99:544, 1981,116:652, 1981,109:1220, 1983,e 124:415,1987.

Assim, no direito constitucional positivo brasileiro, tal como inter-

pretado pelo Supremo Tribunal Federal, a incompatibilidade entre norma

infraconstitucional e Constituição superveniente deverá ser pronunciada

incidentalmente, na apreciação do caso concreto, e não em tese, mediante

controle abstrato. Da decisão proferida caberá recurso extraordinário.

84. REsp 68.410, RDA, 202:224, 1995, rel. Min. Humberto Gomes de Barros.

4. Algumas questões de direito intertemporal suscitadas pelo

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advento de uma nova Constituição

a) Inexistência de inconstitucionalidade formal superveniente

A Constituição, como já se assinalou, dita o modo de produção de

normas dentro do ordenamento jurídico, prevendo um processo próprio

onde se deverão observar regras de competência, procedimento e de

quorum para sua aprovação e ingresso válido no mundo jurídico. Além

disso, o texto constitucional condiciona, igualmente, o objeto das nor-

mas jurídicas que serão produzidas, vedando ou ordenando determina-

dos conteúdos. Quando a norma elaborada pelo órgão legislativo - seja

emenda ou lei infraconstitucional - está em desconformidade com o

processo estabelecido na Constiluição, diz-se haver ocorrido inconstitu-

cionalidade formal. Quando, de outra parte, a norma editada contravém

o conteúdo de um preceito constitucional, está-se diante de uma

inconstitucionalidade material.

Ordinariamente, inexiste, do ponto de vista prático, diferença mais

significativa entre as duas espécies de inconstitucionalidade acima

identificadas. Quando o órgão jurisdicional pronuncia a inconstitucio-

nalidade de uma norma, seja por nela vislumbrar um vício de iniciativa

(inconstitucionalidade formal) ou uma afronta ao princípio da isonomia

(inconstitucionalidade material), a conseqüência é rigorosamente a mes-

ma, e os efeitos de tal declaração produzir-se-ão indistintamente.

Diferentemente se passa quando a incompatibilidade se dá entre a

Constituição vigente e norma a ela anterior. Aí, sendo a incompatibili-

dade de natureza material, não poderá a norma subsistir. Conforme já

estudamos, de acordo com a corrente doutrinária que se escolha, a nor-

ma será tida como revogada ou como inconstitucional, mas em qualquer

caso não deverá ser aplicada. Não assim, porém, quando a incompatibi-

lidade superveniente tenha natureza formal. Nessa última hipótese, tem-

se admitido, sem maior controvérsia, a subsistência válida da norma

que haja sido produzida em adequação com o processo vigente no mo-

mento de sua elaboração. Incidirá, assim, a regra tempus regit actum.

Se a questão da inconstitucionalidade material superveniente é imersa

em controvérsias e disputas doutrinárias, o mesmo não se passa quando

se cuida de seu aspecto formal. O consenso doutrinário é amplo. Na

Itália, por exemplo, averbou Pierandrei:

"A ilegitimidade formal somente pode ser "originária",

porque um ato, devendo ser elaborado e formado através

do procedimento previsto pelas regras vigentes no momento

de sua criação, não pode ser julgado, quanto à sua valida-

de, senão com referência a estas mesmas regras".

85. Franco Pierandrei, Corte Costituzionale, in Enciclopedia dei diritto, 1962, v. 10, p.

874-

1036: "L’illegittimità formale può essere che "originaria", perchê un atto, dovendo essere

elaborato

e formato attraverso il procedimento previsto dalle regole vigenti al momento della sua

creazione,

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non può essere giudicato, quanto alla sua validità, se non, con riferimento alle stesse

regole".

Na Espanha, e em igual sentido, averbou Eduardo García de Enterría

que "esa inconstitucionalidad sobrevenida ha de referirse precisamente

a la contradicción con los principios materiales de la Constitución, no a

las reglas formales de elaboración de las leyes que ésta establece hoy".

86. Eduardo García de Enterría, La Constitución como norma y el Tribunal

Constitucional,

cit., p. 257.

Em Portugal colhe-se, na matéria, a lição cristalina de J. J. Gomes

Canotilho:

"A inconstitucionalidade superveniente refere-se, em

princípio, à contradição dos actos normativos com as nor-

mas e princípios materiais da Constituição e não à sua con-

tradição com as regras formais ou processuais do tempo da

sua elaboração. O princípio tempus regit actum leva a dis-

tinguir dois efeitos no tempo: a aprovação da norma rege-

se pela lei constitucional vigente nesse momento; a aplica-

ção da mesma norma tem de respeitar os princípios e nor-

mas constitucionais vigentes no momento em que se

efectiva essa mesma aplicação".

87. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 1115.

A doutrina brasileira não deu maior atenção ao tema, embora se leia

em Manoel Gonçalves Ferreira Filho que a "compatibilidade é de con-

teúdo, não de forma. A forma é regida pela regra tempus regit actum, de

modo que é irrelevante para a recepção". Há registros na jurisprudên-

cia recente do Supremo Tribunal Federal endossando a tese. Um prece-

dente cuida, precisamente, da competência para edição de normas pro-

cessuais pela própria Corte, quando da elaboração ou emenda de seu

Regimento, o que era admitido no regime de 1967-69 e não foi contem-

plado no texto atual. Ficou decidido:

"Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal -

Normas processuais. As normas processuais contidas no

Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal foram

recepcionadas pela atual Carta, no que com ela se revelam

compatíveis. O fato de não se ter mais a outorga constitucio-

nal para edição das citadas normas mediante ato regimen-

tal apenas obstaculiza novas inserções no Regimento, fi-

cando aquém da derrogação quanto às existentes à época

da promulgação da Carta".

88. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Comentários à Constituição brasileira de 1988,

cit., v.

1, p. 8.

89. RTJ, 133:33, 1990, Ação Originária n. 32 (AgRg)-DF, rel. Min. Marco Aurélio.

V., tam-

bém, em igual sentido, RTJ, 133:955, 1990, Embgs. na ADIn 29-RS, rel. Min. Marco

Aurélio.

Page 83: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Veja-se que é necessário distinguir aqui duas possibilidades diver-

sas: a) argüição de inconstitucionalidade formal em face da Constitui-

ção em vigor; b) argüição de inconstitucionalidade formal em face da

Constituição que presidiu a formação do ato. No primeiro caso, jamais

poderá ser pronunciada a inconstitucionalidade, simplesmente porque a

questão não pode ser colocada em face do novo ordenamento. Na se-

gunda hipótese, decerto não caberá a apreciação da matéria em ação

direta, por descaber esta via de controle quando se trate de argüição em

face de Constituição já revogada. Essa tem sido a firme posição da juris-

prudência do Supremo Tribunal Federal. Nada impede, contudo, que

qualquer órgão jurisdicional pronuncie, em concreto, incidentalmente,

a invalidade formal de ato que, havendo inobservado os requisitos para

sua formação, é inválido ab initio.

90. RTJ, 142:363, 1992, ADIn 3-DF, rel. Min. Moreira Alves: "Há, porém, no caso,

impossibi-

lidade jurídica do pedido, porquanto esta Corte já firmou jurisprudência no sentido de que a

ação direta

de inconstitucionalidade não é cabível quando a argüição se faz em face de Constituição já

revogada,

nem quando o ato normativo impugnado foi revogado antes da propositura dela".

Há, por fim, um aspecto de cunho mais especulativo do que prático,

mas que pode surgir no âmbito de um Estado Federal e, pois, merece um

comentário. É o que diz respeito à superveniência de norma constitucio-

nal alterando a regra de competência para produção legislativa. Vale

dizer: transferindo para os Estados ou Municípios o que antes era fede-

ral, ou vice-versa. A questão a definir é se se está diante de uma incom-

patibilidade formal ou material. Pontes de Miranda foi dos únicos a

cogitar da matéria, averbando:

"Sempre que a Constituição dá à União a competência

sobre certa matéria e havia legislação anterior, federal e

local, em contradição, a Constituição ab-rogou ou derrogou

a legislação federal ou local, em choque com a regra jurídi-

ca de competência. (...) Se a legislação, que existia, era só

estadual, ou municipal, e a Constituição tornou de compe-

tência legislativa federal a matéria, a superveniência da

Constituição faz contrário à Constituição qualquer ato de

aplicação dessa legislação, no que ela, com a nova regra

jurídica, seria sem sentido.

(...) Se havia legislação federal e estadual e a compe-

tência passou a ser, tão-só, do Estado-membro, ou do Mu-

nicípio, a legislação federal persiste, estadualizada, ou

municipalizada, respectivamente, até que o Estado-mem-

bro ou o Município a ab-rogue, ou derrogue".

91. Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil, 1975, v. 6, p. 66-7.

Esta posição é seguida por Gilmar Ferreira Mendes, em seu exce-

lente Controle de constitucionalidade, onde escreveu:

"Evidentemente, não há cogitar de uma federalização

Page 84: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

de normas estaduais ou municipais, por força de alteração

na regra de competência. Nesse caso, há de se reconhecer

eficácia derrogatória à norma constitucional que tornou de

competência legislativa federal matéria anteriormente afe-

ta ao âmbito estadual ou municipal. Todavia, se havia le-

gislação federal, e a matéria passou à esfera de competên-

cia estadual ou municipal, o complexo normativo promul-

gado pela União subsiste estadualizado ou municipalizado,

até que se proceda à derrogação por lei estadual ou munici-

pal. É o que parece autorizar o próprio princípio da conti-

nuidade do ordenamento jurídico".

92. Gilmar Ferreira Mendes, Controle de constitucionalidade, cit., p. 88.

Um ponto parece ter escapado às duas apreciações acima. É que,

mesmo se transferindo para a União a competência legislativa em dada

matéria, até que esta seja exercida, subsistirá a norma estadual ou muni-

cipal, no âmbito territorial do Estado ou do Município onde já vigia.

Vale dizer: embora não se vá cogitar de federalização da norma esta-

dual ou local, de modo a estender sua aplicação a outros Estados e Municí-

pios, o fato é que, no espaço territorial em que ela já valia, continuará

valendo, até ser ab-rogada pela norma federal superveniente.

b) Aplicação imediata, mas não retroativa, da Constituição nova

Já se deixou assentado, anteriormente, inexistir direito adquirido

em face da nova Constituição. Todas as situações jurídicas incompatÍ-

veis com o novo texto devem curvar-se à sua supremacia. Não obstante,

ficou igualmente assinalado que, embora a nova Constituição possa,

validamente, operar efeitos retroativos, terá de fazê-lo expressamente.

O que é fora de dúvida é que a Constituição, uma vez promulgada, deve

ter efeitos imediatos.

93. Sobre o tema, escreveu o Min. Moreira Alves que "a Constituição se aplica de

imediato,

alcançando, sem limitações, os efeitos futuros de fatos passados" (RE 117.870-1-RS, Di, 5

maio

1989). Todavia, só haverá retroação por mandamento expresso, como decidiu o Supremo

Tribunal

Federal no RE 168.618-PR, também relatado pelo Min. Moreira Alves (RTJ,

159:1017,1997): "A

Constituição tem eficácia imediata, alcançando os efeitos futuros de fatos passados

(retroatividade

mínima). Para alcançar, porém, hipótese em que, no passado, não havia foro especial, que

só foi

outorgado quando o réu não era mais Prefeito - hipótese que configura retroatividade

média, por

estar tramitando o processo penal -, seria mister que a Constituição o determinasse

expressamen-

te, o que não ocorre no caso".

Algumas situações de maior complexidade podem advir de tal re-

Page 85: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

gra, quando, então, impõe-se distinguir a produção de efeitos imediatos

da produção de efeitos retroativos. A esse propósito, já decidiu o Supre-

mo Tribunal Federal:

"Impossível é confundir-se a aplicação imediata com a

retroativa, a ponto de comprometer a almejada segurança ju-

rídica, o que aconteceria caso viesse a ser admitido verdadei-

ro "ressuscitamento" de demanda fulminada pela prescrição".

94. RTJ, 143:1009, 1993 (AI 140.751 [AgRg]-RJ, rel. Min. Marco Aurélio). Veja-se,

também,

RTJ, 138:371 (ADIn 189-RJ, rel. Min. Celso de Mello), em cuja ementa se lê: "A

inoponibilidade de

situações jurídicas consolidadas a quanto prescrevem normas constitucionais

supervenientes deriva da

supremacia, formal e material, de que se revestem os preceitos de uma Constituição".

A matéria dizia respeito à introdução, no Texto Constitucional, de

regra específica dilargando o prazo de prescrição das ações trabalhistas

para cinco anos (art. 5º, XXIX), em contraposição à regra ordinária até

então vigente (CLT, art. 11), que previa o prazo de dois anos. O efeito da

tal modificação sobre os processos já ajuizados foi amplamente debati-

do perante a mais alta Corte, que produziu farta jurisprudência, a seguir

compendiada:

"Se a questão da prescrição há de ser decidida segundo

o direito vigente ao tempo da propositura da ação, quando

dela só cuidava a legislação ordinária, a sua natureza

infraconstitucional não se altera com o fato de a Constitui-

ção posterior haver constitucionalizado a norma legal pre-

cedente, salvo se a essa promoção da matéria na hierarquia

da ordem jurídica se emprestasse efeito retroativo".

95. RTJ, 141:311, 1992, AI 135.521 (AgRg-EDcl)-DF, rel. Min. Sepúlveda Pertence.

"Prescrição trabalhista. Mesmo estando em curso o

processo quando da promulgação da Constituição de 1988,

não se sujeita a seu art. 7º, XXIX, o prazo anteriormente

consumado".

96. RTJ, 141:314, 1992, AI 136.489 (AgRg)-DF, rel. Min. Octávio Gallotti.

"A norma do art. 7º, XXIX, a, da CF/88 teve o efeito

de alargar, para 5 anos, o prazo prescricional das ações do

trabalhador urbano, decorrentes do contrato de trabalho,

propostas no curso do contrato, não se aplicando, obvia-

mente, a ações já em curso quando de seu advento".

97. RTJ, 140:1013, 1992, AI 139.155 (AgRg)-RJ, rel. Min. Ilmar Galvão.

Outra questão interessante, afeta ao tema da aplicação imediata de

normas da nova Constituição, foi apreciada pela Suprema Corte. Previu

a Carta de 1988, no art. 102, I, n, ser da competência originária do Su-

premo Tribunal Federal "a ação em que todos os membros da magistra-

tura sejam direta ou indiretamente interessados, e aquela em que mais

da metade dos membros do tribunal de origem estejam impedidos ou

sejam direta ou indiretamente interessados".

Page 86: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Em ação proposta perante a Justiça Estadual de São Paulo, em que

havia interesse de toda a magistratura estadual, inclusive dos membros

do Tribunal, a decisão de primeiro grau foi favorável aos autores. Inter-

posto recurso de apelação pelo Estado, que era réu, sobreveio a Consti-

tuição de 1988, que continha a prescrição do art. 102, I, n, acima trans-

crita. Diante disso, a 1ª Câmara cível do Tribunal de Justiça, por maio-

ria, não conheceu do recurso, à vista de a Constituição Federal ter trans-

ferido a competência na matéria para o Supremo Tribunal Federal.

Tal decisão, evidentemente, suprimia o segundo grau de jurisdição,

de vez que não poderia ser apreciada a apelação tempestivamente apre-

sentada. O voto vencido entendeu no sentido de que a regra constitucio-

nal só valia para as ações a serem propostas, mas não para situações

como aquela, por isso que haveria para o apelante o direito processual

adquirido de ver conhecido o recurso de acordo com a lei do momento

de sua interposição.

Em decisão singular, o Supremo entendeu ser ele o órgão compe-

tente para conhecer e julgar o recurso de apelação, em voto da lavra do

Ministro Sepúlveda Pertence, assim fundamentado:

"Não tenho dúvida de seguir a consideração lateral do

Ministro Moreira Alves (na AOE 8 [QO], MG): válida a

sentença - independentemente de cogitar-se de interesse

de seu prolator - porque exarada antes da Constituição,

ao STF incumbirá julgar a apelação. (...)

Uma vez, porém, que se entenda que, agora, a apela-

ção deva ser conhecida pelo STF, não terá havido supres-

são retroativa de recurso interposto, mas aplicação ime-

diata da regra de alteração da competência funcional para

julgá-lo. (...)

Assim, declaro competente o Supremo para o julga-

mento da apelação: é o meu voto".

98. RTJ, 130:471, 1989, Ação Originária n. 12 (QO)-SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence.

Louvável a decisão da Corte, que, mesmo subvertendo a ortodoxia

processual, cuidou de evitar que a aplicação imediata da nova Carta

afetasse negativamente a situação processual da parte apelante. Tal de-

cisão é coerente com a idéia, que se afigura legítima, de que na aplica-

ção imediata das normas constitucionais deve o intérprete cuidar que a

incidência do preceito não comprometa situações jurídicas já aperfeiçoa-

das sob o domínio do ordenamento anterior.

c) Declaração de inconstitucionalidade e efeito repristinatório

As leis, desde o momento em que se tornam obrigatórias, põem-se

em conflito com as que, anteriormente, regulavam a matéria de que elas

se ocupam, regulando-a por outro modo. Instaura-se, assim, o conflito

de leis no tempo, já estudado, e que se resolve pelo princípio geral da

irretroatividade e pelas regras do direito intertemporal. Uma dessas

regras é a de que lex posterior derogat priori. Essa revogação poderá

dar-se, nos termos do § 1º do art. 2º da Lei de Introdução ao Código

Page 87: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Civil, por declaração expressa, por incompatibilidade ou por regular a

lei nova, inteiramente, a matéria de que tratava a anterior. Operada a

revogação, a lei anterior deixa de existir no mundo jurídico, e o máximo

de reverência que se lhe presta é o eventual respeito a determinadas

conseqüências que haja produzido durante seu ciclo de vigência.

99. Clóvis Beviláqua, Teoria geral do direito civil, 1976, p. 25.

Comentando o tema, observou Oscar Tenório que o advento de uma

lei resulta às vezes na morte de outra. Mas essa lei revogada não ressusci-

ta, mesmo quando a lei que a eliminou do mundo jurídico também vem a

se extinguir. Somente por disposição expressa do legislador a lei morta

ressuscita, volta a ocupar lugar no sistema jurídico do país. A lei que

eventualmente determine a restauração da lei que se encontrava revogada

recebe a denominação de lei repristinatória, ou lei de efeito repris-

tinatório. Essa é a doutrina generalizadamente aceita, que tem a chan-

cela dos principais autores. No Brasil, há regra positiva a respeito, ins-

crita no § 3º do art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, in verbis:

"§ 3º Salvo disposição em contrário, a lei revogada não

se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência".

100. Oscar Tenório, Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro, 1955, p. 92.

101. Vejam-se, por todos, Hans Kelsen, Teoria geral das normas, 1986, p. 135;

Francesco

Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, 1987, p. 195, e José de Oliveira Ascensão, O

direito,

Introdução e teoria geral, 1993, p. 290.

O tema, até aqui pacífico, enfrenta, todavia, alguns embaraços

doutrinários e práticos que precisam ser equacionados. A lei posterior, já

se remarcou, revoga a anterior, nas hipóteses previstas. O que acontece,

no entanto, quando a lei que operou a revogação da lei anterior vem a ser

declarada inconstitucional? Esclareça-se, desde logo, que só é relevante,

aqui, a declaração de inconstitucionalidade que produza efeitos erga

omnes, pois a que opera efeitos meramente inter partes jamais terá qual-

quer repercussão sobre a subsistência ou eficácia da lei. Recoloca-se a

questão: declarada a inconstitucionalidade da lei revogadora, a lei revogada

permanece assim ou ressurge, por força da repristinação?

102. Produz efeitos erga omnes a pronúncia de inconstitucionalidade em ação direta de

inconstitucionalidade (CF, arts. 102, I, a, e 125, § 2º) e em via incidental, quando

observados os

requisitos constitucionais (CF, arts. 52, X, e 97).

Em outro estudo no qual se fez breve incursão na teoria dos atos

jurídicos e da inconstitucionalidade, deixamos averbado que as normas

jurídicas devem ser analisadas nos planos distintos da existência, vali-

dade e eficácia. Já não mais se disputa, na melhor doutrina, que o

exame da constitucionalidade de uma lei situa-se no plano de validade,

embora a decisão, naturalmente, traga repercussões à existência e eficá-

cia da norma. De regra, todos os efeitos produzidos por uma norma

inconstitucional devem ser fulminados. Nota típica do sistema brasilei-

ro de controle de constitucionalidade é a cominação de nulidade - e

Page 88: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

não de mera anulabilidade - ao ato normativo incompatível com a

Constituição, dando-se à decisão que pronuncia a inconstitucionalidade

caráter declaratório e efeitos ex tunc, isto é, retroativos à data de início

de vigência da lei.

103. V. Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas,

cit., p. 74 e s.

104. No sistema português, esta também é a regra (art. 282, 1), mas contempla-se

uma exceção (art. 282, 4), assim consignada: "Quando a segurança jurídica, razões de

eqüidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o

exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou

da ilegalidade com alcance mais restrito do que o previsto nos ns. 1 e 2". No Brasil,

tanto a doutrina como a jurisprudência têm relutado em admitir, formalmente, a introdu-

ção de exceção à regra geral da eficácia retroativa, embora haja projeto de lei no Con-

gresso nesse sentido. Deve-se consignar, todavia, que o Supremo Tribunal Federal tem

pelo menos uma linha jurisprudencial de atenuação do caráter absoluto da eficácia ex

tunc das decisões de inconstitucionalidade, referente à não-restituição de remuneração

recebida de boa-fé com base em norma posteriormente invalidada. Confira-se,

ilustrativamente, a decisão proferida no RE 122.202-6-MG, rel. Min. Francisco Rezek:

"A retribuição declarada inconstitucional não é de ser devolvida no período de validade

inquestionada da lei de origem, mas tampouco paga após a declaração de

inconstitucionalidade" (RDA, 202:161, 1995).

A atitude do intérprete, portanto, deve ser a de ignorar ou desfazer os

efeitos dos atos inconstitucionais, repondo a ordem jurídica e fática no status

quo ante. Assim também ensina, em Portugal, Marcelo Rebelo de Souza:

"Uma conseqüência primária da inconstitucionalidade

é, em geral, a desvalorização da conduta inconstitucional,

sem a qual a garantia da Constituição não existiria. Para

que o princípio da Constitucionalidade, expressão supre-

ma e qualitativamente mais exigente do princípio da Lega-

lidade em sentido amplo, vigore é essencial que, em regra,

uma conduta contrária à Constituição não possa produzir

cabalmente os exactos efeitos jurídicos que, em termos

normais, lhe corresponderiam".

105. Marcelo Rebelo de Souza, O valor jurídico do acto inconstitucional, 1988.

A premissa da não-admissão de efeitos válidos decorrentes do ato

inconstitucional conduz, inevitavelmente, à tese da repristinação da norma

revogada. É que, a rigor lógico, sequer se verificou a revogação no plano

jurídico. De fato, admitir-se que a norma anterior continue a ser tida por

revogada importará na admissão de que a lei inconstitucional inovou na

ordem jurídica, submetendo o direito objetivo a uma vontade que era vicia-

da desde a origem. Não há teoria que possa resistir a essa contradição.

106. Não obstante o afirmado, há autores que se opõem ao efeito repristinatório,

invocando

razões de conveniência, como a dificuldade de adequação da norma repristinada ao sistema,

e

mesmo a possível inconstitucionalidade, superveniente ou não, da norma primitiva. Jorge

Miranda

Page 89: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

(Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 254) faz um levantamento dos autores que

sustentam

esse ponto de vista, a saber: E. Redenti (Legittimità delle leggi e Corte Costituzionale,

Milano,

1957, p. 77-8), Temistocle Martines (Contributo ad una teoria giuridica delle forze

politiche, Milano,

1957, p.295 e s.), Pietro Virga (Diritto costituzionale, 1967, p. 685, nota), Franco Modugno

(Problemi

e pseudo-problemi relativi alle C. d. revivescenza di dispositivi abrogate da legge dichiarata

incostituzionale, in Studi in memoria di Carlo Esposito, Padova, 1972, p. 647 e s.).

A mais expressiva doutrina portuguesa, interpretando norma cons-

titucional que, expressamente, contempla a repristinação na hipótese

aqui versada, é pacífica a respeito. Gomes Canotilho e Vital Moreira

escreveram a propósito:

"Se o juízo de inconstitucionalidade afecta a validade

da norma desde a sua origem, de tal modo que a declaração

de inconstitucionalidade possui efeitos ex tunc (desde a ori-

gem da norma), então há-de ficar sem efeito o próprio acto

de revogação efectuado pela norma afinal inconstitucional,

pelo que o juízo de inconstitucionalidade implica a

repristinação (ou reposição em vigor) das normas que ti-

nham sido revogadas".

107. Dispõe o art. 282, 2: "A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade

com força

obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada

inconstitucional ou

ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado".

108. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituição, 1991, p. 276.

Na mesma linha, Jorge Miranda, notável mestre da Universidade de

Lisboa, distinguindo as hipóteses de inconstitucionalidade originária e

de inconstitucionalidade superveniente (v. supra):

"Existirá, porém, repristinação em caso de incons-

titucionalidade originária? Cremos que sim, a menos que o

órgão de fiscalização, tendo o poder de determinar os efei-

tos da inconstitucionalidade, disponha diferentemente. Já

não no caso de inconstitucionalidade superveniente, visto

que a revogação coincide com a emanação do acto

legislativo que fora válido".

109. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 254-5, onde invoca

as

lições de Mauro Cappelletti (Effetti preclusivi nel processo civile delle pronuncie

costituzionali, in

Studi in onore di Emilio Crosa, Milano, 1960, v. 1, p. 363), C. Mortati (Istituzioni di diritto

pubblico,

p. 996-7) e outros.

Mesmo à falta de disposição constitucional expressa, este é o enten-

dimento que melhor se harmoniza com o sistema brasileiro. O pró-

Page 90: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

prio Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao estabelecer os efeitos da

suspensão liminar da eficácia de uma lei cuja inconstitucionalidade foi

argüida, já decidiu:

"A suspensão liminar da eficácia da lei torna aplicável

a legislação anterior acaso existente, e não impede que se

edite nova lei, na conformidade das regras constitucionais

inerentes ao processo legislativo".

110. Sobre o tema, assim opinou Lúcio Bittencourt (O controle da constitucionalidade

das

leis, cit., p. 147): "Em nosso regime, se a lei deve ser considerada como ineficaz para todos

os

efeitos, é claro que também há de ser inoperante quanto à revogação dos textos legais cujo

lugar, se

fosse válida, teria passado a preencher. O assunto, porém, há de ser convenientemente

examinado en

cada caso concreto, podendo-se, excepcionalmente, chegar a solução diversa".

111. RTJ, 120:64, 1987, Rep. n. 1 .356-AL, rel. Min. Francisco Rezek. E, mais

recentemente:

"A suspensão cautelar da eficácia do ato normativo impugnado em ação direta - não

obstante

restaure, provisoriamente, a aplicabilidade da legislação anterior por ele revogada - não

inibe o

Poder Público de editar novo ato estatal, observados os parâmetros instituídos pelo sistema

de

direito positivo" (RTJ, 146:461, 1993, ADIn 652-MA, rel. Min. Celso de Mello).

E, especificamente sobre a questão do juízo de mérito na fiscaliza-

ção abstrata, o Supremo Tribunal Federal já deixou consignado:

"A declaração de inconstitucionalidade em tese encer-

ra um juízo de exclusão, que, fundado numa competência

de rejeição deferida ao Supremo Tribunal Federal, consiste

em remover do ordenamento positivo a manifestação esta-

tal inválida e desconforme ao modelo plasmado na Carta

Política, com todas as conseqüências daí decorrentes, in-

clusive a plena restauração de eficácia das leis e das nor-

mas afetadas pelo ato declarado inconstitucional. Esse po-

der excepcional - que extrai a sua autoridade da própria

Carta Política - converte o Supremo Tribunal Federal em

verdadeiro legislador negativo".

112. RTJ, 146:461, 1993, ADIn 652-MA, rel. Min. Celso de Mello.

d) Situações processuais específicas

(1) Efeitos do advento da nova Constituição sobre as ações diretas

de inconstitucionalidade anteriores

O controle de constitucionalidade em tese, por via de ação direta,

não se destina à tutela de situações jurídicas individuais. Sua finalidade

principal é a de assegurar a supremacia da Constituição e a conseqüente

Page 91: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

conformação de toda a ordem jurídica. Disso resulta que só deve caber o

controle de constitucionalidade, em via principal, perante Constituição

em vigor. Fugiria ao desiderato de guarda da Constituição a possibilida-

de de se pronunciar, em tese, a inconstitucionalidade de uma norma em

face de Constituição anterior, já revogada.

Disso resulta que, promulgada uma nova Constituição, não é possí-

vel prosseguir-se no exame de inconstitucionalidade, in abstracto, de

lei ou ato normativo em confronto com o texto constitucional já revoga-

do. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacificamente cris-

talizada nos termos da ementa a seguir transcrita:

"Representação por inconstitucionalidade de lei. O ob-

jetivo da representação é resguardar a ordem jurídica

inserida na Constituição em vigor ao tempo do seu

ajuizamento. Se a Constituição deixou de vigorar no curso

da ação, esta fica prejudicada. É o que se deu, no caso, em

face do advento da Constituição de 1988.

113. RTJ, 128:606, 1989, Rep. n. 1.533-PA, rel. Min. Djaci Falcão. Vejam-se, no

mesmo senti-

do, em meio a diversas outras decisões: RTJ, 130:1002, 1989, 130:1010, 1989, e 142:787,

1992.

É indiferente, aqui, a circunstância de a ação já se encontrar ajuiza-

da quando do advento da nova Carta. De fato, quando entrou em vigor a

Constituição de 1988, todas as ações diretas de inconstitucionalidade

pendentes de julgamento ficaram prejudicadas. Essa linha de entendi-

mento já se firmara desde o advento da Constituição de 1967, quando,

na Representação n. 765, do Ceará, decidiu-se:

"A particularidade concernente ao tempo da revoga-

ção da Constituição Federal, se antes ou depois do ajui-

zamento de ação declaratória de inconstitucionalidade, não

altera a doutrina que informa o precedente deste Plenário:

apenas recomenda o não-conhecimento da representação,

se ao tempo de sua propositura já não vigorava a Consti-

tuição que teria sido ofendida; enquanto que, na outra hi-

pótese, em que a Constituição cuja integridade se pretende

resguardar, foi revogada no curso da ação direta, a boa téc-

nica aconselha que o pedido seja julgado prejudicado".

114. Representações por inconstitucionalidade, t. III, p. 59. O trecho transcrito,

extraído do

voto do Relator, Min. Soares Muñoz, encontra-se reproduzido na RTJ, 128:606, 1989, p.

607.

Mesmo em se tratando de representação ou ação direta em que já

houvesse sido concedida liminar, a sobrevinda do novo texto constitucio-

nal implicará a cassação da medida, ficando prejudicado o pedido princi-

pal. O Supremo ressalva, apenas, a possibilidade de se utilizarem outros

meios processuais para impedir a eficácia da norma. Não se cogitou do

aproveitamento da ação já proposta, por economia processual, na hipóte-

se de a norma impugnada ser também inconstitucional em face da nova

Page 92: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Constituição. Tal possibilidade, aliás, enfrentaria o obstáculo da jurispru-

dência consolidada de que, sendo a norma anterior à Constituição, não se

presta a controle por ação direta, por se encontrar revogada (v. supra).

115. RTJ, 129:61, 1989, Rep. n. 1.528-RJ, rel. Min. Aldir Passarinho. O Superior

Tribunal de

Justiça, em ação civil pública ajuizada para a defesa de interesses individuais homogêneos

dos

munícipes em relação à cobrança de taxa de iluminação pública que se reputava ilegítima,

admitiu

a medida, consignando: "O incabimento de ação direta de declaração de

inconstitucionalidade, eis

que as leis municipais ns. 25/77 e 272/85 são anteriores à Constituição do Estado, justifica,

tam-

bém, o uso da ação civil pública, para evitar as inumeráveis demandas judiciais (economia

proces-

sual) e evitar decisões incongruentes sobre idênticas questões jurídicas. Recurso conhecido

e provi-

do para afastar a inadequação, no caso, da ação civil pública, para evitar as inumeráveis

demandas

judiciais (economia processual) e evitar decisões incongruentes sobre idênticas questões

jurídicas"

(REsp. 49.272-6-RS, rel. Min. Demócrito Reinaldo, DJU, 17 out. 1994, p. 27868).

(2) Revogada a lei cuja inconstitucionalidade se argüia, a ação di-

reta perde o objeto

Como já se assinalou, a finalidade precípua do controle em tese de

constitucionalidade é o resguardo da ordem constitucional como um todo, e

não a tutela de situações jurídicas individuais. Para tal fim existem as dife-

rentes ações judiciais a que se legitimam os titulares de pretensões de direi-

to material. Dentro de tal concepção, parece intuitivo que só se possa propor

ou continuar processando uma ação direta de inconstitucionalidade se e

enquanto se encontrar em vigor a norma contrastante com a Constituição.

Curiosamente, prevaleceu na jurisprudência do Supremo Tribunal

Federal, por longo período, ponto de vista diverso. Entendia-se que, mes-

mo revogada a lei objeto de argüição de inconstitucionalidade, subsistia

o interesse em prosseguir com a ação, sempre que houvesse a possibili-

dade de a lei ter produzido efeitos e afetado situações jurídicas indivi-

duais. Reiteradas vezes pronuncIou-se a Corte no sentido de que "a re-

vogação superveniente da lei acoimada de inconstitucional não tem o

condão, só por si, de fazer extinguir o processo de controle concentrado

de constitucionalidade".

116. V. RTJ, 54:710, 1970,55:562, 1971,87:758, 1979,89:367, 1979, 100:467, 1982;

RDA,

140:141,1980, 145:131, 1970,e152:166, 1983.

Todavia, em decisão relativamente recente, proferida na Ação Dire-

ta de Inconstitucionalidade n. 709-2-PR, da qual foi Relator o Ministro

Paulo Brossard, a Corte reverteu essa orientação, passando a entender

Page 93: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

ficar prejudicada a ação se ocorresse a revogação da lei argüida de

inconstitucionalidade. Esse acórdão vem sendo reiterado. De fato, de-

cidiu o Plenário da Corte, por maioria, em julgamento subseqüente:

"Revogada a lei argüida de inconstitucional, é de se

reconhecer, sempre, a perda de objeto da ação direta, re-

velando-se indiferente, para esse efeito, a constatação, ain-

da casuística, de efeitos residuais concretos gerados pelo

ato normativo impugnado".

117. DJU, 20maio 1994,p. 12247.

118. V. ADIn 93-4-DF, rel. Min. Francisco Rezek, DJU, 28 abr. 1993, p. 7378-9. Em

igual

sentido, v.RDA, 195:79, 1994, ADIn 221, rel. Min. Moreira Alves, e RTJ, 152:731, 1995,

ADIn

539-DF, rel. Min. Moreira Alves.

De modo que, presentemente, à luz da jurisprudência da mais alta

Corte, sendo revogada a lei contra a qual se ajuizou ação direta de

inconstitucionalidade, perde o objeto a ação proposta, ou, mais tecnica-

mente, verifica-se a perda superveniente do interesse processual, haja

vista que a medida deixa de ser útil e necessária.

e) Normas infraconstitucionais não recepcionadas pela Constituição

de 1988

Já se examinou acima, exaustivamente, a cristalização da jurisprudên-

cia do Supremo Tribunal Federal no sentido de não ser cabível ação direta

de inconstitucionalidade na hipótese de lei anterior à Constituição em vigor.

Mas, em casos concretos, os tribunais, e, inclusive, a Suprema Corte, têm-

se pronunciado sobre a recepção ou não de normas legais relevantes, edita-

das antes de 5 de outubro de 1988. Confiram-se algumas delas.

Conforme estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal, não mais

subsistem as leis editadas sob regimes constitucionais anteriores que

deferiam a titularidade do poder de agir, mediante ação penal pública, a

magistrados, a autoridades policiais ou a outros agentes administrati-

vos, como sucedia com relação aos crimes militares no âmbito do Exér-

cito e das Polícias Militares. A Constituição deferiu ao Ministério Pú-

blico o monopólio da ação penal pública (art. 129, I). Essa cláusula de

reserva sofre apenas uma exceção, constitucionalmente autorizada, na

hipótese singular de inércia do Parquet (art. 5º, LIX).

119. V. RTJ, 134:369, 1990, RHC 68.314, rel. Min. Celso de Mello; RTJ, 135:1032,

1991,

RHC 68.265, rel. Min. Sydney Sanches; RTJ, 136:226, 1991, HC 68.578, rel. Min. Carlos

Velloso.

É digno de nota, igualmente, que a jurisprudência, na vigência da

Carta de 1988, firmou-se no sentido de não estarem recepcionadas, em

princípio, as limitações baseadas em idade para inscrição em concurso

público. Com isso, insubsistem as normas legais e regulamentares que

fixavam o limite máximo de trinta e cinco anos, salvo nas hipóteses em

que a imposição se possa legitimar pela natureza do cargo.

Page 94: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

120. RDA, 184:130,1991,189:222, 1992,e191:143, 1993.

O Superior Tribunal de Justiça já decidiu não haver sido recepcionada

a norma do § 6º do art. 26 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional

(Lei Complementar n. 35/79), prevendo julgamento em sessão secreta

do Tribunal ou de seu Órgão Especial. Entendeu o Tribunal não ser com-

patível com o art. 93, IX, da Carta Federal, que exige que todos os julga-

mentos sejam públicos, a proibição da presença do magistrado e seu

advogado no recinto da sessão, no momento da votação de que resultou

a pena de indisponibilidade.

121. RT, 697:183, 1993, RMS 1.932, rel. Min. Costa Lima.

O mesmo Superior Tribunal de Justiça tem-se pronunciado no sen-

tido de não se encontrarem mais em vigor os parágrafos do art. 15 da

Lei das Desapropriações (Decreto-Lei n. 3.365/41). Nessa conformida-

de, não mais se admite a imissão na posse do bem pelo Poder Público

mediante depósito de valor meramente simbólico do montante da inde-

nização, por ser isso incompatível com o princípio da prévia e justa

indenização. No entanto, o Supremo Tribunal Federal, em repetidas

decisões, vem afirmando a recepção dos referidos dispositivos, visto

que o princípio constitucional da prévia e justa indenização (CF, art. 5º,

XXIV) é de ser observado com o pagamento do valor definitivo da ex-

propriação, ou seja, quando ocorre a transferência do domínio. Não,

desde logo, na oportunidade do depósito prévio para fins de imissão

provisória na posse do imóvel. A posição do Supremo Tribunal Fede-

ral, com toda a vênia devida, transige com a irresponsabilidade de

governantes que desapropriam sem os recursos necessários e dá ao Po-

der Público o bônus decorrente da morosidade da justiça.

122. "Apenas o caput do art. 15 do Decreto-Lei n. 3.365/41 foi recepcionado pela nova

Carta.

São incompatíveis como princípio constitucional da prévia ejusta indenização os demais

parágra-

fos do art. 15 referido, bem assim os arts. 3º e 4º do Decreto-Lei n. 1.075/70" (STJ, DJU,

16 nov.

1992, p. 21127, REsp 22604-SP, rel. Min. Peçanha Martins). No mesmo sentido o Tribunal

de

Justiça de São Paulo (RT, 669:99, 1991,671:104, 1991, e 696:93, 1993).

123. RTJ, 159:1054,1997,164:387,1998; RT, 752:125, 1998.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo entendeu que o art.

36, II, da Lei n. 6.515/77, que previa como óbice à conversão da separa-

ção em divórcio o não-pagamento de pensão alimentícia devida, não foi

recepcionado. Isso porque o art. 226, § 6º, da Constituição não exige

outra coisa para o divórcio que não a separação judicial por mais de um

ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por

mais de dois anos.

124. RT, 697:69, 1993.

Há divergência na jurisprudência sobre a subsistência ou não, após

a Constituição de 1988, da norma que permite a prisão civil do alienante

fiduciário, uma vez que equiparado ao depositário infiel (Decreto-Lei

Page 95: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

n. 911/69, art. 1º). O Superior Tribunal de Justiça já considerou não ter

sido a norma recepcionada, pois o art. 5º, LXVII, da Constituição em

vigor, ao omitir a cláusula final "na forma da lei", constante do art. 153,

§ 17, das Cartas de 1967-69, impediu que se desse ao alienante fiduciário

o tratamento de depositário. Veja-se elucidativo acórdão:

"Constitucional. Prisão civil. Habeas corpus. Aliena-

ção fiduciária em garantia. Interpretação do art. 66 da Lei

n. 4.728/65, alterado pelo Decreto-lei n. 911/69, em face

do art. 5º, LXVII, da Constituição em vigor. Crítica à juris-

prudência firmada ao tempo da ordem constitucional ca-

duca (art. 153, § 17).

O instituto da alienação fiduciária em garantia se tra-

duz em uma verdadeira aberratio legis. O credor fiduciário

não é proprietário; o devedor fiduciário não é depositário;

o desaparecimento involuntário do bem fiduciado não se-

gue a milenar regra da res perit domino suo. Talvez pudes-

se configurar em penhor sine traditione rei, nunca em "de-

pósito". O legislador ordinário tem sempre compromisso

com a ordem jurídica estabelecida. Na verdade, o que a lei

(Decreto-lei n. 911/69, ao alterar o art. 66 da Lei de Merca-

do de Capitais) fez foi reforçar a garantia contratual mediante

prisão civil, o que contraria toda nossa tradição jurídica,

que tem raízes profundas no sistema jurídico ocidental. A

"prisão civil por dívida do depositário infiel", do art. 5º,

LXVII, da Constituição, só pode ser aquela tradicional (CC, art. 1265)".

125. RHC 4.849-PR, DJU, 11 mar. 1996, p. 6664, rel. Min. Adhemar Maciel. No

mesmo

sentido, RT, 743:203, 1997, 751:207, 1998.

No âmbito do Supremo Tribunal Federal, entretanto, o tema já se

pacificou no sentido da recepção das normas do Decreto-Lei n. 911/69, e

da conseqüente constitucionalidade da prisão civil na alienação fiduciária

em garantia:

"A prisão de quem foi declarado, por decisão judicial,

como depositário infiel é constitucional, seja quanto ao

depósito regulamentado no Código Civil como no caso de

alienação protegida pela cláusula fiduciária".

126. RTJ, 164:213, 1998, HC 73.044-SP, rel. Min. Maurício Corrêa. Merece destaque,

no

particular, o voto vencido do Min. Marco Aurélio, no qual averbou: "Cabe frisar que foi

suprimida

da Carta cláusula, para alguns, viabilizadora da extensão ocorrida. A de 1988, ao contrário

das de

1967 e 1969, não reproduziu a referência "na forma da lei". Precisa, visando a evitar

dúvidas, veio

à balha com preceito categórico proibitivo da espécie de prisão - por dívida civil - exceto

quanto

Page 96: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

aos dois casos suficientemente definidos. Assim, o mecanismo de proteção a alguns

credores, como

é o caso do fiduciário, por sinal conhecido do Direito Romano, ainda que revestido, formal

e legal-

mente, da roupagem própria ao depósito, não subsiste, porquanto incompatível com os

novos ares

democráticos e liberais decorrentes da Carta de 1988".

Relativamente ao art. 5º, LXIII, da Constituição de 1988, que assegu-

ra ao "preso" o direito de permanecer em silêncio, o Supremo Tribunal

Federal considerou não recepcionado pela Constituição a parte final do

art. 186 do Código de Processo Penal onde se afirma que o silêncio do réu

poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa. Em verdadeira

interpretação construtiva do preceito constitucional, dele extraindo o prin-

cípio do privilégio contra a auto-incriminação (nemo tenetur se detegere),

o Supremo estendeu-o também a "qualquer indivíduo que figure como

objeto de procedimentos investigatórios policiais ou que ostente, em juízo

penal, a condição jurídica de imputado", apesar de o texto do inciso

LXIII se referir somente ao "preso". E, com base no referido princípio,

entendeu não poder ser o indiciado compelido a fornecer padrões gráficos

do próprio punho para fins de perícia criminal (CPP, art. 174, IV), caben-

do apenas ser intimado para fazê-lo a seu alvedrio.

Este o registro, exemplificativo e casuístico, de algumas leis de maior

alcance que têm sido pronunciadas como revogadas, por incompatibili-

dade com a nova ordem constitucional.

127. RT, 753:538,1998.

128. RTJ, 141:512, 1992, HC 68.929-SP, rel. Min. Celso de Mello.

129. RT, 760:542,1999, HC 77. 135-8-SP, rel. Min. Ilmar Galvão.

PARTE II - A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

Capítulo 1

MÉTODOS E CONCEITOS CLÁSSICOS APLICADOS A

INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

1. Introdução

A hermenêutica jurídica é um domínio teórico, especulativo, cujo

objeto é a formulação, o estudo e a sistematização dos princípios e regras

de interpretação do direito. A interpretação é atividade prática de revelar

o conteúdo, o significado e o alcance de uma norma, tendo por finalidade

fazê-la incidir em um caso concreto. A aplicação de uma norma jurídica

é o momento final do processo interpretativo, sua concretização, pela efe-

tiva incidência do preceito sobre a realidade de fato. Esses três conceitos

são marcos do itinerário intelectivo que leva à realização do direito. Cui-

dam eles de apurar o conteúdo da norma, fazer a subsunção dos fatos e

produzir a regra final, concreta, que regerá a espécie.

Page 97: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

1. Vejam-se, por todos, Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, 1987, p.

127 e

s.; Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, 1981, p. 1-10; Oswaldo

Aranha Ban-

deira de Mello, Princípios gerais de direito administrativo, 1969, p. 342; Luís Fernando

Coelho,

Lógica jurídica e interpretação das leis, 1979, p. 53 e s. V., também, José Alfredo de

Oliveira

Baracho, Hermenêutica constitucional, RDP, 59-60:46, 1981, p. 49 e s., onde se faz amplo

levanta-

mento da doutrina estrangeira sobre o tema.

2. Na pertinente anotação de Recaséns Siches, o processo de produção do direito

continua na

obra do intérprete, a quem cabe, não a valoração abstrata, mas a valoração concreta (Nueva

filosofía

de la interpretación del derecho, 1980, p. 288-9).

A interpretação constitucional exige, ainda, a especificação de um

outro conceito relevante, que é o de construção. Por sua natureza, uma

Constituição contém predominantemente normas de princípio ou es-

quema, com grande caráter de abstração. Destina-se a Lei Maior a al-

cançar situações que não foram expressamente contempladas ou deta-

lhadas no texto. Enquanto a interpretação, ensina Cooley, é a arte de

encontrar o verdadeiro sentido de qualquer expressão, a construção sig-

nifica tirar conclusões a respeito de matérias que estão fora e além das

expressões contidas no texto e dos fatores nele considerados. São con-

clusões que se colhem no espírito, embora não na letra da norma. A

interpretação é limitada à exploração do texto, ao passo que a constru-

ção vai além e pode recorrer a considerações extrínsecas.

3. V. Thomas Cooley, A treatise on the constitutional limitations, 1890, p. 70. J. H.

Meirelles

Teixeira, citando a lição de Black, constante de seu Handbook on the construction and

interpretation

of the laws, transcreveu que construção é "a arte ou processo de descobrir e expor o sentido

e a

intenção dos autores da lei tendo em vista sua aplicação a um caso dado, onde essa intenção

se

apresente duvidosa, quer por motivo de aparente conflito entre dispositivos ou diretivas,

quer em

razão de que o caso concreto não se ache explicitamente previsto na lei" (Curso de direito

constitu-

cional, 1991, p. 269). V., também, Anna Candida da Cunha Ferraz, Processos informais de

mudan-

ça da Constituição, 1986, p. 134 e s.

4. Construction, in Black’s law dictionarv, 1979. V., também, José Alfredo de Oliveira

Baracho,

Hermenêutica constitucional, RDP, 59-60:46, p. 47.

A interpretação constitucional serve-se de alguns princípios próprios

Page 98: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

e apresenta especificidades e complexidades que lhe são inerentes. Mas

isso não a retira do âmbito da interpretação geral do direito, de cuja

natureza e características partilha. Nem poderia ser diferente, à vista do

princípio da unidade da ordem jurídica e do conseqüente caráter único

de sua interpretação. Ademais, existe uma conexão inafastável entre a

interpretação constitucional e a interpretação das leis, de vez que a ju-

risdição constitucional se realiza, em grande parte, pela verificação da

compatibilidade entre a lei ordinária e as normas da Constituição.

5. Neste sentido, vejam-se K. Larenz, Metodología de la ciencia del derecho, 1980;

Alberto

Ramón Real, Los métodos de interpretación constitucional, RDP, 53-54:50, 1980, p. 51;

Jorge

Miranda, Manual de direito constitucional, 1983, t. 2, p. 227; José Alfredo de Oliveira

Baracho,

Hermenêutica constitucional, RDP, 59-60:46, p. 49. Vejam-se, para uma ampla discussão

sobre o

tema, com levantamento do grupo minoritário de autores que defende opinião contrária,

Pietro Merola

Chierchia, L’interpretazione sistematica della Costituzione, 1978, p. 87 e s., e Raúl Canosa

Usera,

Interpretación constitucional y fórmula política, 1988, p. 1-6.

6. V. Carmelo Carbone, L´interpretazione delle norme costituzionali, 1951, p. 11: "La

teoria

dell’interpretazione non può che essere unica, poichè le norme dell’interpretazione, che

pongono le

basi del procedimento interpretativo, riguardano l’intero ordinamento giuridico". Vejam-se,

também,

Alberto Ramón Real, Los métodos de interpretación constitucional, RDP, 53-54:50, p. 51, e

Ricardo

Lobo Torres, Normas de interpretação e integração do direito tributário, 1988, p. 119.

7. V. Ricardo Lobo Torres, Normas de interpretação e integração do direito tributário,

cit.,

p. 119-20, e Jerzy Wróblewski, Constitución y teoría general de la interpretación jurídica,

1988,

p. 94.

As Constituições não costumam trazer regras sobre a sua própria

interpretação ou para a do direito dela derivado. No sistema brasileiro,

são escassas as regras de interpretação positivadas em texto legal. As

existentes concentram-se na Lei de Introdução ao Código Civil, que, ao

lado de normas sobre vigência das leis, direito intertemporal e direito

internacional privado, consagrou apenas duas proposições afetas ao tema:

uma sobre integração ("Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o

caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do

direito") e outra de cunho teleológico ("Art. 5º Na aplicação da lei, o

juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem

comum"). A doutrina converge no sentido de que as normas sobre inter-

pretação, ainda quando constantes do Código Civil ou de um texto que

Page 99: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

se lhe anteponha, revestem-se de cunho materialmente constitucional.

8. Antonio Pensovecchio Li Bassi, L’interpretazione delle norme costituzionali, 1972,

p. 34. Ricardo Lobo Torres (Normas de interpretação e integração do direito tributário, cit.,

p. 10) lembra uma exceção, representada pela Constituição do México, que, no § 4º do art.

14,

estabelece que "la sentencia definitiva deverá ser conforme a la letra o a la interpretación

jurídica de la ley".

9. V., também, CPC, art. 126, onde se faz, igualmente, referência à analogia, aos

costumes e

aos princípios gerais de direito. Os Códigos Civis espanhol e português contêm detalhadas,

por

vezes prolixas, normas sobre interpretação jurídica. Ricardo Lobo Torres, Normas de

interpretação

e integração do direito tributário, cit., p. 6 e s., faz um amplo levantamento sobre normas de

interpretação constantes dos Códigos Civis de países europeus, como França, Alemanha,

Áustria,

Itália e Suíça.

10. Nesse sentido, Raul Canosa Usera, Interpretación constitucional y fórmula política,

cit.,

p. 88-9, Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 230-1, e Fran

Figueiredo,

Introdução à interpretação constitucional, RILSF, 87:175, 1985, p. 194-5.

Toda norma jurídica, e, ipso facto, toda norma constitucional, pre-

cisa ser interpretada. Interpretam-se todas as leis, sejam claras ou obscu-

ras, pois não se deve confundir a interpretação com a dificuldade de

interpretação. Não se partilha, aqui, da posição de Konrad Hesse, que

nega o caráter de interpretação à atividade de revelar o conteúdo da

norma constitucional quando "não se suscitam dúvidas". Embora haja

recuperado algum prestígio após décadas de rejeição, a máxima in claris

cessat interpretatio há de ter, tão-somente, o sentido de reconhecimento

de que a zona de clareza existente na lei enfraquece a atividade do intér-

prete, mas não o condena a uma acrítica interpretação literal.

11. Carmelo Carbone, L’interpretazione delle norme costituzionali, cit., p. 13; Paulo

Bonavides,

Curso de direito constitucional, 1993, p. 356-7; Jorge Miranda, Manual de direito

constitucional,

cit., t. 2, p. 224.

12. Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, cit., p. 129.

13. Konrad Hesse, La interpretación constitucional, in Escritos de derecho

constitucional,

1983, p. 35 e s. Na verdade, o ilustre autor alemão distingue entre mera atuação/realização

da

Constituição, como ato singelo ou mesmo inconsciente de cumprimento de suas normas;

compre-

ensão, que é a atividade desenvolvida quando o texto legal é claro e preciso; e interpretação

propria-

Page 100: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

mente dita, que é a tarefa mais complexa de revelar o sentido da norma, quando a

Constituição não

oferece uma resposta concludente.

14. Vejam-se Alípio da Silveira, Hermenêutica no direito brasileiro, 1968, v. 2, p. 30,

e Ricardo

Lobo Torres, Normas de interpretação e integração do direito tributário, cit., p. 45.

O objeto da interpretação constitucional é a determinação dos signifi-

cados das normas que integram a Constituição formal e material do Esta-

do. Essa interpretação pode assumir duas modalidades: a) a da aplicação

direta da norma constitucional, para reger uma situação jurídica - por

exemplo: a aposentadoria de um funcionário, o reconhecimento de uma

imunidade tributária, a realização de um plebiscito sobre a fusão de dois

estados etc.; b) ou a de uma operação de controle de constitucionalidade,

em que se verifica a compatibilidade de uma norma infraconstitucional

com a Constituição. No primeiro caso, a norma constitucional incide como

qualquer outra, e, se for instituidora de um direito subjetivo, ensejará a

tutela judicial, caso não seja cumprida espontaneamente. No segundo, a

norma não vai reger qualquer situação individual, não vai ser aplicada a

qualquer caso concreto, funcionando como mero paradigma em face do

qual se vai aferir a validade formal ou material de uma lei inferior.

15. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, 1991, p. 214: "Interpretar as normas

cons-

titucionais significa (como toda interpretação de normas jurídicas) compreender, investigar

e

mediatizar o conteúdo semântico dos enunciados lingüísticos que formam o texto

constitucional. A

interpretação constitucional reconduz-se, pois, à atribuição de um significado a um ou

vários sím-

bolos linguísticos escritos na constituição".

16. Captando essa dualidade, já assinalada pela doutrina italiana, anotou Frederico

Marques:

"Quando o tribunal exerce suas atribuições judicantes para compor litígio de natureza

constitucional, mas diverso do que existe no controle de constitucionalidade das leis,

também

se configura exercício de jurisdição constitucional. Há, no caso, questione di

costituzionalità,

e não, questione di legittimità costituzionale, como observa Franco Pierandrei. O

julgamento

constitucional, in casu, não é incidental, e sim, principaliter, mas sem os traços do judicial

control of legislation. Em tais casos, o exercício da jurisdição constitucional não implica

con-

trole da constitucionalidade de lei ou ato normativo, e sim, em aplicação pura e simples da

norma constitucional, para solucionar a lide" (A reforma do Poder Judiciário, 1979, p. 38-

9).

V., também, Anna Candida da Cunha Ferraz, Processos informais de mudança da Constitui-

ção, cit., p. 104-5.

Page 101: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

2. Peculiaridades das normas constitucionais

Embora seja uma lei, e como tal deva ser interpretada, a Constitui-

ção merece uma apreciação destacada dentro do sistema, à vista do con-

junto de peculiaridades que singularizam suas normas. Quatro delas me-

recem referência expressa: a) a superioridade hierárquica; b) a natureza

da linguagem; c) o conteúdo específico; d) o caráter político.

17. Diversos autores procuram assinalar os fatores que conferem especificidade às

normas

constitucionais e à sua interpretação. A catalogação acima não coincide com a de nenhum

deles,

embora haja, evidentemente, certas superposiçÕes. Vejam-se, por todos, J. J. Gomes

Canotilho,

Direito constitucional, cit., p. 215 e s.; Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit.,

t. 2, p.

225 e s.; Celso Ribeiro Bastos, Curso de direito constitucional, 1990, p. 103 e s.; Raúl

Canosa

Usera, Interpretación constitucional y fórmula política, cit., p. 59 e s.

A superioridade jurídica, a superlegalidade, a supremacia da

Constituição é a nota mais essencial do processo de interpretação

constitucional. É ela que confere à Lei Maior o caráter paradigmático

e subordinante de todo o ordenamento, de forma tal que nenhum ato

jurídico possa subsistir validamente no âmbito do Estado se contravier

seu sentido. Essa supremacia se afirma mediante os diferentes meca-

nismos de controle de constitucionalidade. O tema é objeto de análi-

se mais aprofundada logo adiante (v. infra).

A natureza da linguagem constitucional, própria à veiculação de nor-

mas principiológicas e esquemáticas, faz com que estas apresentem maior

abertura, maior grau de abstração e, conseqüentemente, menor densida-

de jurídica. Conceitos como os de igualdade, moralidade, função social

da propriedade, justiça social, bem comum, dignidade da pessoa huma-

na, dentre outros, conferem ao intérprete um significativo espaço de

discricionariedade". O problema dessa liberdade de conformação na

interpretação judicial é mais agudo nos países de Constituição sintética,

onde a plasticidade de certas cláusulas genéricas admite variações entre

extremos. Porém, mesmo em Estados que adotam uma Carta analítica

- ou casuística, como no caso brasileiro -, a questão se coloca com

freqüência.

18. Embora seja um tema mais estudado no campo do direito administrativo, também

os

juízes exercem competências discricionárias. Haverá discrição judicial sempre que se possa

conce-

ber que a norma admita mais de uma interpretação razoável. Isso ocorrerá nos chamados

hard

cases, casos difíceis, em que se abrem para o aplicador da lei possibilidades diversas, todas

razoá-

veis e dentro do delineamento legal. Sobre o tema, veja-se o instigante trabalho de Ahron

Barak,

Page 102: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Ministro da Suprema Corte de Israel, publicado nos Estados Unidos sob o título de Judicial

discretion,

1991. A rigor técnico, há proximidade, mas não superposição, entre conceitos

juridicamente

indeterminados e poder discricionário. Não se aprofundará aqui a questão, que poderá ser

estudada

em José Carlos Barbosa Moreira, Regras de experiência e conceitos juridicamente

indeterminados,

in Temas de direito processual, 4ª série, 1988, p. 65-6. A distinção também é feita por Piero

Calamandrei, Opere giuridiche, 1965, v. 1, p. 40, que, após analisar as duas figuras,

concluiu: "Se

discrezionalità, fenomeno attinente alla volontà e non all´intelligenza, può vedersi quale il

giudice

è in un certo senso arbitro della decisione da darsi al caso concreto, di discrezionalità non si

può

certo parlare quando l’attività del giudice mira esclusivamente, anzichè a decidere, a

integrare e

dichiarare la norma giuridica, sotto la guida di regole che non sono scritte nel diritto

positivo, ma

che sono vive nella coscienza del consociati".

19. V. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 216, onde se lê:

"Situadas no

vértice" da "pirâmide normativa", as normas constitucionais apresentam, em geral, uma

maior

abertura (e, conseqüentemente, uma menor densidade) que torna indispensável uma

operação de

concretização na qual se reconhece às entidades aplicadoras um "espaço de conformação"

("liber-

dade de conformação", "discricionariedade") mais ou menos amplo".

20. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Observações ao Projeto de Constituição da

Comis-

são de Sistematização da Assembléia Nacional Constituinte, mimeografado, 1987.

De parte isto, é bem de ver que o conteúdo de grande parte das dispo-

sições materialmente constitucionais refoge à estrutura típica das normas

dos demais ramos do direito. A vida jurídica, como se sabe, concretiza-se

em um conjunto de ordens e de proibições. O direito, como técnica de

disciplina da vida coletiva, destina-se, fundamentalmente, a reger com-

portamentos, em função de valores cuja preservação foi tida por convenien-

te. As normas que realizam essa finalidade denominam-se normas de con-

duta, que representam a maior porção do direito positivo. Essas regras

possuem uma composição dúplice, assim fotogrável: prevêem um fato e a

ele atribuem uma determinada conseqüência jurídica.

21. Hermes Lima, Introdução à ciência do direito, 1944, p. 111.

Existe, por certo, na Constituição certa quantidade de normas dessa

natureza, prescrevendo comportamentos e gerando direitos e obrigações.

Todavia, o Texto Constitucional também é sede de outra categoria de

normas, que são as normas de organização. Não se destinam elas a dis-

Page 103: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

ciplinar condutas de indivíduos ou grupos; têm um caráter instrumental

e precedem, logicamente, a incidência das demais. É que, além de

estruturarem organicamente o Estado, as regras dessa natureza discipli-

nam a própria criação e aplicação das normas de conduta. As normas

de organização não contêm a previsão abstrata de um fato, cuja ocorrên-

cia efetiva deflagra efeitos jurídicos. Vale dizer: não se apresentam como

juízos hipotéticos. Elas possuem üm efeito constitutivo imediato das

situações que enunciam. Não sendo, em princípio, geradoras de direi-

tos subjetivos, essas normas não são interpretadas e aplicadas em igual-

dade de condições com as normas de conduta.

22. Celso Ribeiro Bastos, Curso de direito constitucional, cit., p. 105, após averbar ser

uma

das singularidades da Constituição a predominância das chamadas "normas de estrutura",

tendo

por destinatário habitual o próprio legislador ordinário, acrescentou: "Ainda que nos

defrontemos

com uma Constituição de condutas, não há dúvida que o núcleo das Constituições é

formado por

um conjunto de normas com caráter eminentemente organizatório, isto é: normas que

conferem ou

outorgam competências. Não fora assim, a Constituição não cumprida o seu papel

fundamental de

estruturar o Estado". Vejam-se, também, Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres de Britto,

Interpretação

e aplicabilidade das normas constitucionais, 1982.

23. V. Miguel Reale, Lições preliminares de direito, 1973, p. 115.

Também singulariza o documento constitucional a presença de nor-

mas que se dizem programáticas. Contêm elas disposições indicadoras

de valores a serem preservados e de fins sociais a serem alcançados. Seu

objeto é o de estabelecer determinados princípios e fixar programas de

ação. Característica dessas regras é que elas não especificam qualquer

conduta a ser seguida pelo Poder Público, apenas apontando linhas dire-

toras. Por explicitarem fins, sem indicarem os meios, investem os

jurisdicionados em uma posição jurídica menos consistente do que as

normas de conduta típicas, de vez que não conferem direito subjetivo

em sua versão positiva de exigibilidade de determinada prestação. To-

davia, fazem nascer um direito subjetivo negativo de exigir do Poder

Público que se abstenha de praticar atos que contravenham os seus dita-

mes. Por via de conseqüência, as potencialidades que oferecem são

distintas e o intérprete e aplicador da norma tem de ser atento a isso.

24. Sobre este tema, v. nosso O direito constitucional e a efetividade de suas normas,

1993,

p. 109 e s. Vejam-se, também: Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1967,

com a

Emenda Constitucional n. 1, de 1969, p. 126-7; Celso Antônio Bandeira de Mello, Eficácia

das

Page 104: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

normas constitucionais sobre a justiça social, tese apresentada à IX Conferência Nacional

da Or-

dem dos Advogados do Brasil, Florianópolis, 1982, p. 18 e 29; Rosah Russomano, Das

normas

constitucionais programáticas, in As tendências atuais do direito público, 1976, p. 281, e

José

Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 1982, p. 19.

Por fim, as normas constitucionais são políticas quanto à sua origem,

quanto ao seu objeto e quanto aos resultados de sua aplicação. De fato, a

Constituição resulta do poder constituinte originário, tido como poder

político fundamental. Seabra Fagundes abre sua obra clássica com a

afirmação de que o poder constituinte, manifestação mais alta da vontade

coletiva, cria ou reconstrói o Estado, através da Constituição. A percep-

ção teórica da existência desse poder mais elevado, superior à ordem jurí-

dica instituída, remonta à antevéspera da revolução francesa, embora

tenha sido posto em prática pela primeira vez na consumação do processo

de emancipação dos Estados Unidos da América. Ou, a rigor técnico,

com a revolução inglesa e a afirmação do Parlamento em face do monar-

ca, em 1689, verdadeiro marco do constitucionalismo moderno.

25. José Alfredo de Oliveira Baracho, Processo constitucional, 1984, p. 355.

26. M. Seabra Fagundes, O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário,

1979, p. 3.

27. Emmanuel Joseph Sieyès, Qu´est-ce que le Tiers État?, editado em 1789. Há uma

versão

portuguesa sob o título de A Constituinte burguesa, 1986.

28. Obra clássica sobre esse período é a de Gordon S. Wood, The creation of the

American

Republic, 1776-1787, 1972. De fina ironia é a constatação de Hannah Arendt, em seu On

revolution.

1987: A triste verdade na matéria é que a Revolução Francesa, que acabou em desastre,

ingressou

na história mundial, enquanto a Revolução Americana, de sucesso tão retumbante,

permaneceu

como um evento menor".

29. Vejam-se, sobre o tema, Maurice Duverger, Instituciones políticas e derecho

constitu-

cional, 1984, p. 44 e s.; Marcelo Caetano, Direito constitucional, 1987, v. 1, p. 67 e s.; Luis

Sánchez

Agesta, Curso de derecho constitucional comparado, 1988, p. 107 e s.

De toda sorte, o poder constituinte é revolucionário nas suas raízes

históricas e político na sua essência. Ele representa um momento pré-

jurídico e, quando exercido em contexto democrático, expressa um mo-

mento de especial aglutinação e civismo do povo de um Estado. No caso

da Constituição brasileira de 1988, o poder constituinte somente veio a

ser exercido, fundado na soberania popular, após longo e penoso período

de transição, que sucedeu a fase mais aguda da ditadura militar. Apesar do

modelo transacional que ensejou sua convocação, não se deve desmerecer

Page 105: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

o fato de que a Assembléia Constituinte foi o ponto culminante de um

tormentoso processo de resistência democrática, que desaguou em um

caudaloso movimento de participação popular na década de 80.

A despeito de seu caráter político, a Constituição materializa a ten-

tativa de conversão do poder político em poder jurídico. Seu objeto é

um esforço de juridicização do fenômeno político. Mas não se pode

pretender objetividade plena ou total distanciamento das paixões em

um domínio onde se cuida da partilha do poder em nível horizontal e

vertical e onde se distribuem competências de governo, administrativas,

tributárias, além da complexa delimitação dos direitos dos cidadãos e

suas relações entre si e com o Poder Público. Porque assim é, a jurisdi-

ção constitucional, por mais técnica e apegada ao direito que possa e

deva ser, jamais se libertará de uma dimensão política, como assinalam

os autores mais ilustres. Em palavras de Mauro Cappelletti:

"O controle judicial de constitucionalidade das leis

sempre é destinado, por sua própria natureza, a ter também

uma coloração "política" mais ou menos evidente, mais ou

menos acentuada, vale dizer, a comportar uma ativa e cria-

tiva intervenção das Cortes investidas daquela função de

controle, na dialética das forças políticas do Estado".

30. Leve-se em consideração, mas cum grano salis, a advertência de Ferdinand

Lassalle, pre-

cursor do constitucionalismo sociológico, emA essência da Constituição, 1985, p. 49, onde

se repro-

duz texto de conferência proferida em 1863: Os problemas constitucionais não são

problemas de

direito, mas do poder; a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os

fatores reais e

efetivos do poder que naquele país vigem, e as Constituições escritas não têm valor nem

são duráveis,

a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social".

31. Mauro Cappelletti, O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito

compa-

rado, 1984, p. 114. No mesmo sentido, vejam-se Castro Nunes, Teoria e prática do

Poder Judiciário, 1943, p. 597, e M. Seabra Fagundes, A função política do Supremo

Tribunal

Federal, RDP, 49-50:7, 1979, p. 8. Em voto proferido no Supremo Tribunal Federal, e não

sem

certo exagero, pronunciou-se Themístocles Brandão Cavalcanti: "Na interpretação da

Constituição

não se deve levar em conta somente a intenção do legislador, o sentido e a significação das

palavras,

o raciocínio lógico no processo de interpretação, mas principalmente o sentido político da

interpre-

tação, considerando-se a Constituição como um diploma político" (Supremo Tribunal

Federal,

Page 106: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Representações por inconstitucionalidade. dispositivos de Constituições estaduais, 1976, v.

1, p.

153). Se é certo que se deve levar em conta o sentido político na interpretação

constitucional, o uso

do advérbio principalmente parece ser uma demasia.

Como se viu até aqui, não é possível neutralizar inteiramente a in-

terferência de fatores políticos na interpretação constitucional. A

racionalidade total, como bem percebeu Hesse, não é atingível no direi-

to constitucional. Isso não significa que se deva renunciar a ela, mas sim

buscar a "racionalidade possível". A interpretação da Constituição, a

despeito do caráter político do objeto e dos agentes que a levam a efeito,

é uma tarefa jurídica, e não política. Sujeita-se, assim, aos cânones de

racionalidade, objetividade e motivação exigíveis das decisões proferi-

das pelo Poder Judiciário. Uma Corte Constitucional não deve ser cega

ou indiferente às conseqüências políticas de suas decisões, inclusive para

impedir resultados injustos ou danosos ao bem comum. Mas somente

pode agir dentro dos limites e das possibilidades abertas pelo

ordenamento. Contra o direito o juiz não deve decidir jamais. Em caso

de conflito entre o direito e a política, o juiz está vinculado ao direito.

32. Konrad Hesse, Escritos de derecho constitucional, 1983, p. XVIII-XIX. A

referência

consta da Introdução escrita por Pedro Cruz Villalón.

33. Raúl Canosa Usera, Ínterpretación constitucional y fórmula política, cit., p. 121,

trans-

creve o ponto de vista divergente de Loewenstein e Leibholz na matéria, com o qual não se

está

de acordo.

34. Otto Bachoff, Der Verfassungsrichter zwischen Recht und Politik, p. 302-3,

adaptado da

citação feita por García de Enterría, La Constitución como norma y el Tribunal

Constitucional,

1991,p. 183-4.

3. Conceitos, classificações e métodos clássicos de interpretação

a) Subjetivismo e objetivismo. O originalismo nos Estados Unidos

Uma das mais vetustas discussões envolvendo a interpretação jurí-

dica é a que contrapõe os subjetivistas, que buscam identificar a mens

legislatoris, e os objetivistas, que se fiam na revelação da mens legis.

Cuida-se de saber se deve prevalecer na interpretação a vontade do le-

gislador histórico ou a vontade objetiva e autônoma da lei. O debate,

de certa forma, encontra-se superado pela convergência da quase-totali-

dade da doutrina para a linha objetiva. Para esse entendimento tam-

bém se orientou o Tribunal Constitucional Federal alemão, que em de-

cisão reiterada em inúmeros julgados assentou:

"Fundamental para interpretar un precepto legal es la

voluntad objetiva del legislador manifestada a través de

Page 107: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

dicho precepto y tal como se deduce del texto y del contex-

to de la disposición legal. No es, por el contrario, funda-

mental la idea subjetiva de los órganos que participan en el

proceso legislativo, o determinados de sus miembros, acerca

del significado de la disposición".

35. Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, 1993, p. 381. V. também Karl

Larenz,

Metodología de la ciencia del derecho, 1980, p. 250 e s.

36. Pietro Merola Chierchia, L’interpretazione sistematica della Costituzione, 1978, p.

208,

após reproduzir a lição de Coviello, De Ruggiero, Crisafulli, Pierandrei e Grasso, concluiu:

"Su

questa linea converge la quasi totalità della dottrina degli ultimi decenni".

37. BVerfGE, 1,299(312). V. Konrad Hesse, Escritos de derecho constitucional, cit., p.

38.

De fato, uma vez posta em vigor, a lei se desprende do complexo de

pensamentos e tendências que animaram seus autores. Isso é tanto mais

verdade quanto mais se distancie no tempo o início de vigência da lei. O

intérprete, ensinou Ferrara, deve buscar não aquilo que o legislador quis,

mas aquilo que na lei aparece objetivamente querido: a mens legis e não

a mens legislatoris. Não é, propriamente, que a vontade subjetiva do

legislador de ocasião seja inteiramente indiferente. O que remarcam

os objetivistas é que ela não é determinante e deve concorrer com outros

todos fatores relevantes. Com agudeza, e não sem certa ironia, Raúl Canosa

Usera observa que a preponderância entre a vontade do legislador ou da

lei dependerá, sempre, de uma terceira vontade: a do intérprete atual.

38. Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, cit., p. 135. Na feliz síntese

de

Peter Schneider, "a lei é mais sábia que o legislador" (Prinzipien der

Verfassungsinterpretation,

1963, apud Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, cit., p. 371). Vejam-se, ainda,

sobre o

tema Tércio Sampaio Ferraz Jr., A ciência do direito, 1980, p. 70-1, e Manuel A.

Domingues de

Andrade, Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis, 1978, p. 15.

39. Winfried Brugger, Legal interpretation, schools of jurisprudence, and

anthropology: some

remarks from a German point of view, American Journal of Comparative Law, 42:395,

1994, p. 401.

40. Raúl Canosa Usera, Interpretación constitucional y fórmula política, cit., p. 17.

Curiosamente, essa discussão foi reavivada ao longo das últimas

décadas, nos Estados Unidos, contrapondo originalistas e não-

originalistas. Após dois períodos sucessivos em que a Suprema Corte

apresentou um perfil nitidamente progressista, afirmativo de novos di-

reitos e de proteção das minorias, articulou-se um amplo movimento de

reação conservadora. Cognominado de "originalismo", funda-se ele na

tese de que o papel do intérprete da Constituição é buscar a intenção

Page 108: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

original (the original intent) dos elaboradores da Carta, abstendo-se de

impor suas próprias crenças ou preferências.

41. Sob a presidência de Earl Warren (1953-1969) e de Warren Burger (1969-1986).

As últi-

mas duas décadas, todavia, têm assistido ao esforço para desfazer o legado anterior,

sobretudo da

Corte Warren. Buscou-se, assim, uma metodologia que substituísse a discrição judicial por

um

critério mais objetivo ou neutro. Para tanto, não bastava voltar à tradição conservadora de

colocar

ênfase nos precedentes - as stare decisis -, porque eram precisamente os precedentes que os

conservadores pretendiam reformar. Nessa busca de uma metodologia que permitisse a

revisão dos

avanços da Corte, sobretudo em casos como Roe vs. Wade (v. infra), é que se chegou a um

revival

do originalismo e do textualismo (v. Morton J. Horwitz, Foreword: the Constitution of

change: legal

fundamentality without fundamentalism, Harvard Law Review, 107:30,1993, p. 34-5).

42. Sobre o tema, v. The great debate: interpreting our written Constitution, coletânea

publicada

por The Federalist Society, s. d., com textos de Edwin Meese, William Brennan Jr., John

Paul

Stevens, Robert Bork e Ronald Reagan. O tema, como se disse, foi reavivado na última

década, mas

é antigo. No julgamento de Home Building and Loan Association vs. Blaisdell, 290 U. S.

398, p.

451 e 453 (1934), já afirmara o Justice Sutherland: "A única finalidade da interpretação,

quando se

refere a disposições constitucionais, consiste em descobrir seu significado, em identificar e

dar

efeito à intenção de seus redatores e do povo que as adotou". Veja-se, também, Berger,

Government

by Judiciary. The transformation of the fourteenth Amendment, 1977.

Para os originalistas, o ativismo judicial, as construções jurídicas

desenvolvidas pelo Judiciário para acudir a situações não contempladas

na letra expressa da Constitüição, são antidemocráticas. Consoante o

raciocínio que desenvolvem, em um governo representativo, onde deve

prevalecer a vontade da maioria, expressa através da eleição dos agentes

públicos do Legislativo e do Executivo, o controle exercido pelo Judi-

ciário sobre os atos dos outros dois Poderes apresenta uma dificuldade

contramajoritária (a countermajoritarian difficulty) (v. infra). E somente

pode legitimar-se nos limites expressos e estreitos do texto constitucional.

43. V. Robert Bork, The great debate, cit., p. 43. V. também William Rehnquist, The

notion of

a living Constitution, Texas Law Review, 54:693, 1976. Veja-se, mais recentemente, do

próprio

Bork, The tempting of America, 1990.

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A crença originalista de que não é possível atingir um mínimo de

objetividade na interpretação constitucional - que ficaria, pois, sujeita

a meras preferências subjetivas pessoais - tem sido questionada com

veemência, tanto no debate acadêmico como na prática política. A ten-

tativa de alçar à Suprema Corte Robert Bork, um dos principais ideólogos

do originalismo, fracassou após amplo movimento de rejeição à nomea-

ção feita pelo Presidente Reagan. É certo, todavia, que a Suprema Cor-

te, após a nomeação de diversos Ministros conservadores, e sob a presi-

dência de William Rehnquist, um originalista, tornou-se um tribunal

sem a importância política e sem o brilho de outras épocas.

44. Vejam-se por todos, em meio a inúmeros escritos, H. Jefferson Powell, Rules for

originalists,

Virginia Law Review, 73:659, 1987, e Morton J. Horwitz, Foreword: the Constitution of

change...,

Harvard Law Review, 107:30, p. 41 e s.

45. Sobre o tema, v. Morton J. Horwitz, The bork nomination and American

constitutional

history, Syracuse Law Review, 39:1029, 1988.

46. Para um debate em língua portuguesa sobre o tema, vejam-se dois pequenos textos

publi-

cados na Revista de Direito Público, 93:5: Robert Bork, O que pretendiam os fundadores,

p. 6 e s.,

e Laurence Tribe, Os limites da originalidade, p. 9 e s. V., também, Enrique Alonso García,

La

interpretación de la Constitución, 1984, p. 138 e s.

b) Interpretação constitucional legislativa, administrativa, judicial, dou-

trinária e autêntica

Deixou-se remarcado, anteriormente, que a interpretação constitu-

cional, sem embargo de suas especificidades, situa-se no âmbito da in-

terpretação jurídica em geral. Sujeita-se, assim, às categorias em que

tradicionalmente se classifica a interpretação. Não se pretende, aqui,

explorar em maior profundidade esse tópico, que tem merecido valiosos

estudos, tanto na doutrina nacional quanto na estrangeira. A referência

que adiante se faz a cada uma das variações da interpretação tradicional

destina-se apenas a dar uma visão de conjunto da matéria e a apontar

algumas peculiaridades quando se trate de interpretar a Constituição.

No capítulo seguinte é que se cuidará, em percurso detalhado, dos prin-

cípios de interpretação especificamente constitucional.

47. Vejam-se, por todos, Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito,

1981;

Alípio Silveira, Hermenêutica no direito brasileiro, 1968; Luiz Fernando Coelho, Lógica

jurídica

e interpretação das leis, 1979; Paulo Batista, Compêndio de hermenêutica jurídica, 1984;

Mário

Franzen de Lima, Da interpretação jurídica, 1955; Rubens Limongi França, Elementos de

Page 110: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

hermenêutica e aplicação do direito, 1984; François Gény, Méthode d´interpretation et

sources en

droit privé positif, 1932; Emilio Betti, Teoria generale della interpretazione, 1955; Max

Ascoli, La

interpretación de las leyes, 1947; Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis,

1987;

Genaro Carrió, Notas sobre derecho y lenguage, 1979; Rudolph von Ihering, A finalidade

do direi-

to, 1979; Luis Recaséns Siches, Nueva filosofía de la interpretación del derecho, 1980;

Manuel A.

Domingues de Andrade, Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis, 1987.

A interpretação em geral, e, ipso facto, a interpretação constitucio-

nal, poderá ser, quanto à sua origem, legislativa, administrativa e judi-

cial. Alguns autores acrescentam a interpretação doutrinária, merecendo

ainda referência a possibilidade de uma interpretação constitucional au-

têntica. Quanto aos resultados ou à extensão, ela poderá ser declaratória,

extensiva ou restritiva. E quanto aos métodos, ou, mais propriamente,

quanto aos elementos de interpretação, ela será gramatical, histórica,

sistemática e teleológica.

48. V. Hector Fix Zamudio, Algunos aspectos de la interpretación constitucional en el

ordenamiento mexicano, Comparative Judicial Review, 2:69-71, 1974, p. 75-83, apud José

Alfredo

de Oliveira Baracho, Hermenêutica constitucional, RDP, 59-60:46, p. 54.

49. Para um maior desenvolvimento do tema da interpretação legislativa,

administrativa e

judicial, veja-se o valioso trabalho de Anna Candida da Cunha Ferraz, Processos informais

de

mudança da Constituição, cit., p. 64 e s., bem como o denso artigo de José Alfredo de

Oliveira

Baracho, Hermenêutica constitucional, RDP, 59-60:46, p. 54 e s.

A interpretação da Constituição é exercida por órgãos dos três Pode-

res estatais. Assim se passa, em primeiro lugar, para delimitação de sua

própria esfera de competências. Ademais, cada um deles precisa determi-

nar o conteúdo de normas constitucionais no desempenho de suas ativida-

des. A interpretação constitucional legislativa impõe-se em diversas situa-

ções, dentre as quais é possível destacar a que se realiza (a) para a própria

estruturação do Poder Legislativo, de seus órgãos e comissões; (b) na

observância do processo legislativo, aí incluídos a adequação de cada es-

pécie normativa e os procedimentos para sua edição; (c) na apreciação de

vetos do chefe do Executivo fundados em motivo de inconstitucionalidade.

A interpretação constitucional pelas Casas do Congresso, por Assembléias

Legislativas e Câmaras Municipais é indispensável para que exercitem

sua atividade legislativa nos limites da Lei Maior, e, talvez mais impor-

tante, para que legislem de forma a realizar os fins constitucionais.

50. Há um precedente historicamente relevante de interpretação legislativa, ocorrido

no Im-

Page 111: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

pério, sob a vigência da Carta de 1824. Cuida-se da célebre Lei de Interpretação (Lei n.

105, de 12-

5-1840), que reduziu o conteúdo e o alcance das inovações introduzidas pelo Ato Adicional

de 1834

(Lei n. 16, de 12-8-1834), que, dentre outras coisas, concedera certo grau de autonomia às

provín-

cias, e veio a ser interpretado de forma conservadora e centralista. Sobre o tema, v. Luís

Roberto

Barroso, Direito constitucional brasileiro: o problema da Federação, 1982, p. 30-1.

A interpretação constitucional administrativa é levada a efeito pelo

Poder Executivo, notadamente para pautar a própria conduta. Deverá

ele reverenciar os princípios constitucionais da Administração Pública

(CF, art. 37 e s.) e conter-se dentro dos limites genéricos que lhe são

impostos (respeitando, e. g., as hipóteses de reserva legal - CF, art. 5º,

II). É igualmente indispensável a interpretação para que os órgãos do

Executivo possam dar cumprimento aos atos normativos e aos atos de

individualização de situações jurídicas na conformidade da Constitui-

ção, além de sua importância na elaboração das políticas governamen-

tais, que devem, necessariamente, apontar para os fins constitucionais.

Aliás, o Executivo, em certos casos, pode interpretar a Constituição até

mesmo para divergir de interpretação que haja sido dada pelo Legislativo.

É que a doutrina e a jurisprudência a ele têm reconhecido o poder de

deixar de aplicar os atos legislativos que considere inconstitucionais.

51. V. Luís Roberto Barroso, Poder Executivo - lei inconstitucional - descumprimento,

parecer publicado em RDA, 181-182:387, 1990, com levantamento da doutrina e da

jurisprudência

sobre a matéria. E, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: "Os Poderes Executivo

e

Legislativo, por sua Chefia - e isso mesmo tem sido questionado com o alargamento da

legitimação

ativa na ação direta de inconstitucionalidade -, podem tão-só determinar aos seus órgãos

subordi-

nados que deixem de aplicar administrativamente as leis ou atos com força de lei que

considerem

inconstitucionais" (RTJ, 151:331, 1995,ADIn-MC 221-DF, rel. Min. Moreira Alves). E no

Supe-

rior Tribunal de Justiça: "Lei inconstitucional. Poder Executivo. Negativa de eficácia. O

Poder

Executivo deve negar execução a ato normativo que lhe pareça inconstitucional" (DJu, 8

nov.

1993, p. 23521, REsp 23.121, rel. Min. Humberto Gomes de Barros).

A interpretação constitucional judicial, no Brasil e nos países que

admitem a judicial review, se dá (a) pela aplicação direta de um preceptivo

constitucional (questão constitucional) ou (b) pela verificação da com-

patibilidade de uma norma em face da Constituição (controle de

constitucionalidade). A interpretação pelo Judiciário é final e vinculante

para os outros Poderes. Não é incomum que a interpretação judicial

Page 112: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

venha sobrepor-se à interpretação feita pelo Legislativo - como se pas-

sa quando declara uma lei inconstitucional - ou pelo Executivo.

52. Vejam-se dois exemplos em que a interpretação judicial desautorizou a que havia

sido

dada pelo Executivo: (1) o Parecer CF n. 1/89, da Consultoria-Geral da República,

aprovado pelo

Presidente da República, sustentou que a exigência de concurso público (CF, art. 37, II) não

se

impunha na contratação de empregados para sociedades de economia mista exploradoras de

ativi-

dades econômicas (RDA, 178:99). O Supremo Tribunal Federal, todavia, estabeleceu

entendimento

diverso: "Sociedade de economia mista destinada a explorar atividade econômica está

igualmente

sujeita a esse princípio (do art. 37, II), que não colide com o expresso no art. 173, § 1º"

(DJu, 23

abr. 1993); (2) o Poder Executivo, pelo Decreto n. 99.300/89, entendeu que os servidores

postos em

disponibilidade deveriam receber proventos proporcionais ao tempo de serviço, tese que foi

desautorizada pelo Supremo Tribunal Federal (RDA, 179-80:233). Hoje, contudo, em face

da nova

redação dada aos §§ 2º e 3º do art. 41 pela Emenda Constitucional n. 19/98, o servidor será

coloca-

do em disponibilidade com remuneração proporcional ao tempo de serviço.

A interpretação doutrinária não se dirige, diretamente, à aplicação das

normas constitucionais, mas, sim, a fornecer subsídios para os órgãos en-

carregados de realizá-la. Trata-se do produto do trabalho intelectual de

jurisconsultos, professores e escritores em geral. Também os advogados,

elaborando teses jurídicas e ousando criativamente na defesa dos interesses

que patrocinam, prestam importante contribuição de cunho doutrinário.

53. Sobre interpretação doutrinária, vejam-se, em meio a outros, Carlos Maximiliano,

Hermenêutica e aplicação do direito, cit., p. 94; Anna Candida da Cunha Ferraz, Processos

infor-

mais de mudança da Constituição, cit., p. 171 e s.; e José Alfredo de Oliveira Baracho,

Hermenêutica

constitucional, RDP, 59-60:46, cit., p. 70.

É controvertida a possibilidade de interpretação autêntica da Cons-

tituição. Aliás, é controvertida a própria existência da categoria inter-

pretação autêntica, como tal entendida a que emana do próprio órgão

que elaborou o ato cujo sentido e alcance ela declara. Pela interpretação

autêntica se edita uma norma interpretativa de outra preexistente. A maior

parte da doutrina, tanto brasileira como portuguesa, admite a interpretação

constitucional autêntica, desde que se faça pelo órgão competente para a

reforma constitucional, com observância do mesmo procedimento desta.

54. Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, cit., p. 134: "Disto resulta que a

chamada interpre-

Page 113: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

tação autêntica não é verdadeira interpretação, mas funda a sua eficácia de modo autônomo

na declara-

ção de vontade do legislador: é uma lei com efeito retroativo". Savigny entendia que a lei

interpretativa

resultante da interpretação autêntica constitui uma nova lei, de todo distinta daquela

preexistente (Juristische

Methodenlehre, 1951, p. 18, apud Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, cit., p.

357).

55. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, cit., p. 87. Sobre o tema,

pronunciou-se o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADIn 605-DF, rel. Min.

Celso de

Mello: "É plausível, em face do ordenamento constitucional brasileiro, o reconhecimento

da

admissibilidade das leis interpretativas, que configuram instrumento juridicamente idôneo

de

veiculação da denominada interpretação autêntica. Tais leis não traduzem usurpação das

atribui-

ções institucionais do Judiciário e, em conseqüência, não ofendem o postulado fundamental

da

divisão funcional do poder" (RTJ, 145:463, 1993).

56. V. Celso Ribeiro Bastos, Curso de direito constitucional, 1990, p. 101; J. J. Gomes

Canotilho,

Direito constitucional, cit., p. 239; Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., t.

2, p. 231;

Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, cit., p. 88 e 315.

A rigor, a interpretação constitucional, para ser verdadeiramente

autêntica, na conformidade da definição, teria de emanar da mesma

fonte instituidora: o poder constituinte originário. Isso, normalmente,

não será possível, pois, uma vez concluída a sua obra, o poder consti-

tuinte originário se exaure, ou, melhor dizendo, volta ao seu estado

latente e difuso. De modo que não se pode falar em interpretação cons-

titucional verdadeiramente autêntica. A discussão, todavia, tem pou-

ca relevância no Brasil. É que um dos traços que distinguem a inter-

pretação autêntica é o seu caráter retroativo, remontando à data de

vigência da lei que está sendo interpretada. Ora bem: entre nós isso

não é possível. Por força do art. 5º, XXXVI, da Constituição da Repú-

blica, combinado com o art. 60, § 4º, nem mesmo as emendas cons-

titucionais podem afetar as situações já definitivamente constituídas e

incorporadas ao patrimônio de seu titular. Ou seja: em qualquer caso

os efeitos se produzirão ex nunc.

57. No mesmo sentido, José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas

constitucionais,

1982,p. 216, e Anna Candida da Cunha Ferraz, Processos informais de mudança da

Constituição,

cit., p. 167-8.

58. Em sentido contrário, aparentemente sem levar em conta o fato de que a

irretroatividade

Page 114: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

no Brasil, ao contrário de outros países, é princípio constitucional, v. Paulo Bonavides,

Curso de

direito constitucional, cit., p. 358.

Até aqui deu-se atenção à interpretação constitucional realizada pelos

Poderes estatais e pela doutrina, com ênfase no papel da interpretação

judicial. É bem de ver, no entanto, que, a rigor, a interpretação constitu-

cional é levada a efeito pela generalidade das pessoas no âmbito do

Estado, que dela se servem para determinar a própria conduta e conhe-

cer os seus direitos. Inúmeras questões envolvendo a Constituição não

chegam aos tribunais e, menos ainda, ao Supremo Tribunal Federal, cujo

papel precípuo é a sua guarda. São resolvidas no plano da informalidade,

pelo consenso ou pela renúncia. De fato, muitas são as situações de

conflito potencial em que os interessados chegam a um acordo, demar-

cando os direitos de cada um; em outras, mesmo existindo violação da

norma, o titular da pretensão daí resultante não a leva ao Judiciário; ou,

ainda, hipóteses há de impossibilidade processual de acesso à Corte para

a discussão constitucional. Daí a constatação de Peter Häberle de que o

"processo constitucional formal não é a única forma de acesso ao pro-

cesso de interpretação constitucional".

59. Peter Häberle, Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da

Constitui-

ção: contribuição para a interpretação pluralista e "procedimental"da Constituição, 1997. p.

42.

No desenvolvimento de suas idéias, assentou Häberle que a inter-

pretação constitucional é um processo aberto, no qual estão envolvidos

os Poderes estatais, os órgãos públicos, mas também os cidadãos e os

grupos sociais. Não há, assim, um elenco cerrado, numerus clausus, de

interpretação da Constituição. Não sendo um evento puramente estatal,

todos podem, potencialmente, interpretar a Constituição, ao menos até

o pronunciamento final do Judiciário, se e quando ele ocorrer. Nas pala-

vras textuais do autor alemão:

"Todo aquele que vive no contexto regulado por uma

norma e que vive com este contexto é, indireta ou, até mes-

mo, diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatá-

rio da norma é participante ativo, muito mais ativo do que

se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico.

Como não são apenas os intérpretes jurídicos da Constitui-

ção que vivem a norma, não detêm eles o monopólio da

interpretação da Constituição".

60. Peter Häberle. Hermenêutica constitucional.. cit., p. 15.

c) Interpretação declarativa, restritiva e extensiva

Em seus clássicos Comentários, escreveu Joseph Story que as pala-

vras de uma Constituição devem ser tomadas em sua acepção natural e

óbvia, evitando-se o indevido alargamento ou restrição de seu signifi-

cado. Porém, nenhuma norma oferece fronteiras tão nítidas que elimi-

nem a dificuldade de determinar se, na espécie, deve-se passar além ou

Page 115: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

ficar aquém do que as palavras parecem indicar. Quando exista

congruência plena entre as palavras da norma e o sentido que lhes é

atribuído pela razão, quando coincidem o elemento gramatical e o ele-

mento lógico, a interpretação será declarativa (cum in verbis nulla

ambiguitas est, non debet admitti voluntatis quaestio).

61. Joseph Story, Commentaries on the Constitution of the United States, 1905, v. 1, p.

319.

62. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, cit., p. 200.

63. Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, cit., p. 147, e Paulo

Bonavides,

Curso de direito constitucional, cit., p. 362.

Todavia, havendo incongruência entre a interpretação lógica e a gra-

matical, caberá ao intérprete operar uma retificação do sentido verbal

na conformidade e na medida do sentido lógico. A imperfeição lingüís-

tica, expõe Ferrara, pode manifestar-se de duas formas: ou o legislador

disse mais do que queria dizer, ou disse menos, quando queria dizer

mais. No primeiro caso, impõe-se uma interpretação restritiva (ou es-

trita), onde a expressão literal da norma precisa ser limitada para expri-

mir seu verdadeiro sentido (lex plus scripsit, minus voluit). No segundo

caso, será necessária uma interpretação extensiva, com o alargamento

do sentido da lei, pois este ultrapassa a expressão literal da norma (lex

minus scripsit quam voluit).

64. Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, cit., p. 149.

65. V. Christiano José deAndrade, O problema dos métodos da interpretação jurídica,

1992,

p. 116-23, e José de Oliveira Ascensão, O direito. Introdução e teoria geral, 1993, p.

407-9.

A doutrina, de forma um tanto casuística, procura catalogar as hi-

póteses de interpretação restritiva e extensiva. Há certo consenso de que

se interpretam restritivamente as normas que instituem as regras ge-

rais, as que estabelecem benefícios, as punitivas em geral e as de

natureza fiscal. Comportam interpretação extensiva as normas que as-

seguram direitos, estabelecem garantias e fixam prazos.

66. Vejam-se Alípio Silveira, Hermenêutica no direito brasileiro, cit., p. 222; Carlos

Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, cit., p. 197-205; Linares Quintana,

Reglas para

la interpretación constitucional, 1987, p. 134-6; e Christiano José de Andrade, O problema

dos

métodos da interpretação jurídica, cit., p. 117.

67. Linares Quintana, Reglas para la interpretación constitucional, cit., p. 117.

68. V. Ivan Lira de Carvalho, A interpretação da norma jurídica (constitucional e

infraconstitucional), RT, 693:55, 1993, p. 55-6, e Carlos Maximiliano, Hermenêutica e

aplicação

do direito, cit., p. 205.

69. V. Ivan Lira de Carvalho, A interpretação da norma jurídica (constitucional e

infraconstitucional), RT, 693:55, p. 55-6, e Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação

do di-

Page 116: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

reito, cit., p. 205.

A jurisprudência é oscilante e assistemática na matéria. Há casos

em que a norma constitucional atributiva de um benefício é interpretada

restritivamente. Foi o que se passou no tocante à anistia política conce-

dida pelo art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da

Carta de 1988, que aproveitava aos punidos durante o regime militar,

aos quais assegurou as promoções a que teriam direito durante o perío-

do em que estiveram afastados por atos de exceção. A norma não escla-

recia se se incluíam tanto as promoções por antigüidade como as por

merecimento. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal oscilou,

até se firmar na exclusão da promoção por merecimento, interpretando

restritivamente o comando constitucional.

70. RTJ, 145:942, 1993, RE 140.616-DF, rel. Min. Paulo Brossard, em cuja ementa se

lia: "O

art. 8º do ADCT assegura, aos que foram atingidos por atos de exceção, em decorrência de

motiva-

ção exclusivamente política, as promoções "a que teriam direito se estivessem em serviço

ativo".

Não assegura as promoções possíveis, como as por merecimento". Em belo trecho,

criticando a

mudança de orientação do Supremo Tribunal Federal, afirmou o Min. Marco Aurélio,

citando pas-

sagem do livro O inverso da nossa desesperança: "Quando uma luz se apaga, é muito mais

escuro

do que se ela jamais houvesse brilhado".

Igualmente restritiva foi a interpretação dada pelo Tribunal de Jus-

tiça do Estado do Rio de Janeiro ao examinar benefício conferido pelo

art. 230, § 2º, da Constituição Federal, consistente na concessão de

gratuidade nos transportes coletivos urbanos para idosos, onde fez dis-

tinção entre área urbana e metropolitana. Em outras hipóteses, a inter-

pretação tem sido extensiva, como em relação à anistia constitucional

concedida pelo art. 47 do Ato das Disposições Constitucionais Transitó-

rias. Aliás, a propósito das disposições constitucionais transitórias em

geral, deixou entender o Supremo Tribunal Federal, embora de forma

implícita, terem elas cunho de regras excepcionais, merecendo interpreta-

ção estrita, não servindo como argumento para interpretar a parte perma-

nente da Constituição.

71. RT, 665:147, 1991, Ap. 5.465/89, rel. Des. Thiago Ribas Filho: "Transporte

coletivo de

passageiros - Gratuidade aos maiores de 65 anos - Direito concedido pela CF apenas em

relação

à área urbana, não à metropolitana - Impossibilidade de interpretação extensiva da norma

cons-

titucional - (...) O benefício é medida excepcional, à qual não se pode e deve dar

interpretação

extensiva".

Page 117: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

72. O ITACSP decidiu, em diversos casos, que o benefício aproveitava mesmo aos

devedores

que houvessem obtido financiamentos cuja soma fosse superior a 5.000 OTNs (que era o

limite

imposto pela norma concessiva do benefício), desde que o valor obtido em cada instituição

finan-

ceira não excedesse aquele limite. E que o benefício aproveitava, também, ao garantidor da

obriga-

ção. Confira-se, por todas, a decisão no AI 419.784-8, rel. Juiz Rodrigues de Carvalho, RT,

650:118,

1989: "Art. 47 do ADCT - Débitos inferiores a 5.000 OTN contraídos em instituições

financeiras

diferentes cuja soma ultrapassa o limite proposto - Irrelevância - Favor que há de sempre

ser

interpretado de forma benigna, ampla, a favorecer quem o pleiteia - Restrições que somente

podem ser impostas pelo próprio texto constitucional - Benefício extensível ao avalista".

Essa

linha de entendimento foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal: "Os contratos de

financia-

mento, para observância do teto inscrito no inciso IV, do § 3º, do art. 47, do ADCT à

CF/88, devem

ser observados de per si, autonomamente (STF, RTJ, 148:275, 1994, RE 134.038-PR, rel.

Min.

Carlos Velloso).

73. RTJ, 132:1065, 1990, ADIn 281 -MT, rel. Min. Sydney Sanches.

A Suprema Corte recorre, com freqüência, a linhas argumentativas

que se utilizam da interpretação extensiva ou restritiva. Ao confrontar,

por exemplo, a regra geral do art. 129, IX, da Constituição - que proíbe

que os membros do Ministério Público atuem como representantes ju-

diciais de entidades públicas - com o disposto no art. 29, § 5º, do ADCT,

que permitiu aos membros do Ministério Público estadual representar a

União em causas de natureza fiscal, decidiu o Supremo:

"A exceção prevista no § 5º do art. 29 do ADCT ao

disposto no inc. IX do art. 129 da parte permanente da CF

diz respeito apenas ao exercício da advocacia nos casos ali

especificados, e, por ser norma de direito excepcional, só

admite interpretação estrita, não sendo aplicável por ana-

logia, e, portanto, não indo além dos casos nela expressos,

nem se estendendo para abarcar as conseqüências lógicas

desses mesmos casos, máxime, nesta última hipótese, quan-

do a conseqüência lógica da exceção é objeto de outra nor-

ma geral que a proíbe".

74. RT, 678:220, 1990, ADIn 41-1 -DF, rel. Min. Moreira Alves.

Ao interpretar o art. 86, § 4º, da Constituição, que estabelece que o

Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser res-

ponsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções, deu-lhe,

igualmente, significação restritiva. De fato, ao apreciar ação ajuizada

Page 118: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

contra o ex-Presidente Collor de Mello, em meio a outras considera-

ções, assim pronunciou-se a mais Alta Corte:

"A norma consubstanciada no art. 86, § 4º, da Consti-

tuição, reclama e impõe, em função de seu caráter excepcio-

nal, exegese estrita, do que deriva a sua inaplicabilidade a

situações jurídicas de ordem extrapenal".

75. RTJ, 143:710, 1993, Ação Penal n. 305 (QO) - DF, rel. Min. Celso de Mello. No

julga-

mento da medida liminar na ADIn 978, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por

unanimidade, reconheceu que a imunidade a atos estranhos ao exercício das funções,

prevista em relação ao Presidente da República, não podia, em princípio, ser estendida

aos Governadores de Estado (RTJ, 156:782, 1996, ADIn 1 .025-TO, rel. Min. ILmar

Galvão). Em outro caso, envolvendo o tema da inelegibilidade, adotou o Supremo um

sentido estrito para a cláusula constitucional do art. 14, § 7º, que veda a eleição de

parentes, ao decidir que a norma não alcança a irmã da concubina do Prefeito (RT,

700:244, 1994, RE 157.868-8-PB, rel. Min. Marco Aurélio).

d) Os métodos ou elementos clássicos de interpretação

A interpretação constitucional é um fenômeno múltiplo sobre o qual

exercem influência (a) o contexto cultural, social e institucional, (b) a

posição do intérprete, (c) a metodologia jurídica. Em outra parte deste

estudo se dá atenção aos dois primeiros fatores. Cabe agora cuidar dos

chamados métodos de interpretação, que, mais do que os outros dois

aspectos versados, comportam apreciação de ênfase predominantemen-

te técnico-jurídica.

Os métodos clássicos de interpretação remontam ao magistério de

Savigny, fundador da Escola Histórica do Direito, e que, em seu Siste-

ma, de 1840, distinguiu, em terminologia moderna, os métodos grama-

tical, sistemático e histórico. Posteriormente, uma quarta perspectiva

foi acrescentada, que foi a interpretação teleológica. Com pequena varia-

ção, este é o catálogo dos métodos ou elementos clássicos da interpreta-

ção jurídica: gramatical, histórica, sistemática e teleológica.

76. Friedrich Carl von Savigny, Sistema del diritto romano attuale, 1886, v. 1, cap. 4,

p. 225

e s. (no original, Das System des heutigen Römischen Rechts, 1840, v. 1, § 33, p. 213-4).

77. Winfried Brugger, Legal interpretation, schools of jurisprudence, and

anthropology...,

American Journal of Comparative Law, 42:395, p. 395. V. também Francesco Ferrara,

Interpretação

e aplicação das leis, cit., p. 138 e s., e Konrad Hesse, La interpretación constitucional, in

Escritos de

derecho constitucional, cit., p. 38.

Há consenso entre a generalidade dos autores de que a interpretação,

a despeito da pluralidade de elementos que devem ser tomados em consi-

deração, é una. Nenhum método deve ser absolutizado: os diferentes

meios empregados ajudam-se uns aos outros, combinando-se e contro-

lando-se reciprocamente. A interpretação se faz a partir do texto da nor-

Page 119: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

ma (interpretação gramatical), de sua conexão (interpretação sistemáti-

ca), de sua finalidade (interpretação teleológica) e de seu processo de cri-

ação (interpretação histórica). Em palavras de Raúl Canosa Usera, a

transcendental missão do intérprete consiste em ordenar a pluralidade de

elementos que se acham à sua disposição.

78. Klaus Stern, Derecho del Estado de la República Federal Alemana, 1987, p. 284.

79. Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, cit., p. 131.

80. BVerJGE, 11, 126 (130), e BVerfGE, 35, 263 (278 e s.). V. Konrad Hesse,

Escritos de

derecho constitucional, cit., p. 39. V., também, Pablo Lucas Verdú, Curso de derecho

político,

1977, v. 2, p. 553, onde se lê: "Aunque la interpretación constitucional es una, no obstante

existen

diversos métodos para esclarecer el significado de las normas constitucionales. No hay una

interpretación histórica de las normas constitucionales, otra gramatical y otra lógico-

sistemática, y

teleológica, sino una sola interpretación constitucional que analiza los precedentes

históricos, exa-

mina los debates parlamentarios, fija el significado exacto de las palabras y realiza las

operaciones

necesarias para establecer el sentido de la norma constitucional como parte componente de

un

ordenamiento que apunta a una finalidad concreta".

81. Raúl Canosa Usera, Interpretación constitucional y fórmula política, cit., p. 135.

Da aplicação dos diferentes métodos a uma dada espécie concreta

podem ocorrer duas possibilidades: (a) ou todos eles conduzem a um

mesmo resultado; (b) ou apontam eles para resultados divergentes. Na

primeira hipótese, o caso será facilmente resolvido, pela incidência da

solução única resultante da convergência dos diferentes métodos. Tra-

tar-se-á de um caso fácil. Na segunda, estar-se-á diante de um caso difí-

cil. Para sua solução exige-se do intérprete maior indagação. Não exis-

te, a rigor, nenhuma hierarquia predeterminada entre os variados méto-

dos interpretativos, nem um critério rígido de desempate. A tradição

romano-germânica, todavia, desenvolveu algumas diretrizes que podem

ser úteis. Duas delas são destacadas a seguir.

82. V. Winfried Brugger, Legal interpretation, schools of jurisprudence, and

anthropology...,

American Journal of Comparative Law, 42:395, cit., p. 400.

Em primeiro lugar, a atuação do intérprete deve conter-se sempre

dentro dos limites e possibilidades do texto legal. A interpretação gra-

matical não pode ser inteiramente desprezada. Assim, por exemplo,

entre interpretações possíveis, deve-se optar pela que conduza à

compatibilização de uma norma com a Constituição. É a chamada in-

terpretação conforme a Constituição (v. infra). Todavia, não é possí-

vel distorcer ou ignorar o sentido das palavras, para chegar a um resul-

tado que delas esteja inteiramente dissociado. Em segundo lugar, os

métodos objetivos, como o sistemático e o teleológico, têm preferên-

Page 120: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

cia sobre o método tido como subjetivo, que é o histórico. A análise

histórica desempenha um papel secundário, suplementar na revelação

do sentido da norma.

83. Winfried Brugger, Legal interpretation, schools of jurisprudence, and

anthropology...,

American Journal of Comparative Law, 42:395, p. 400-1.

Analisam-se, a seguir, cada um dos principais elementos da inter-

pretação jurídica, com ênfase nas especificidades da interpretação cons-

titucional.

I - A interpretação gramatical

Toda interpretação jurídica deve partir do texto da norma, da revela-

ção do conteúdo semântico das palavras. Pela interpretação gramatical

- também dita textual, literal, filológica, verbal; semântica - se cuida

de atribuir significados aos enunciados lingüísticos do texto constitucio-

nal. Na feliz formulação de Karl Larenz, ela consiste na compreensão

do sentido possível das palavras, servindo esse sentido como limite da

própria interpretação.

84. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 222-3: "independentemente

do sen-

tido que se der ao elemento literal (...), o processo concretizador da norma da constituição

começa com

a atribuição de um significado aos enunciados lingüísticos do texto constitucional".

85. Karl Larenz, Metodología de la ciencia del derecho, 1966, p. 256 (no original

alemão,

Methodenlehre der Rechtswissenschaft, 1983, p. 329, apud Ricardo Lobo Torres, Normas

de inter-

pretação e integração do direito tributário, cit., p. 126). Na Rep. n. 846-RJ, seu Relator,

Min.

Antônio Neder, deixou assinalado: "Sabe-se que a interpretação gramatical não basta para

demons-

trar o sentido que se contém na norma, mas ela é necessária para, demonstrando o sentido

das

palavras com que foi escrita a norma, auxiliar a revelação do direito por meio da

interpretação

lógica, que a ela sucede, para, com esta, se processar a interpretação sistemática"

(Representações

por inconstitucionalidade: dispositivos de Constituições estaduais, 1976, t. 2, p. 93 e 107).

A interpretação gramatical é o momento inicial do processo inter-

pretativo. O texto da lei forma o substrato de que deve partir e em que

deve repousar o intérprete. Na interpretação constitucional, por vezes,

não é necessário ir além da letra e do sentido evidente do texto, como se

passa, por exemplo, em relação aos dispositivos acerca da composição e

funcionamento de órgãos estatais. De regra, todavia, correrá risco o

intérprete que estancar sua linha de raciocínio na interpretação literal.

Embora o espírito da norma deva ser pesquisado a partir de sua letra,

cumpre evitar o excesso de apego ao texto, que pode conduzir à injusti-

Page 121: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

ça , a fraude e até ao ridículo.

86. Esse entendimento é corrente, sendo reproduzido pela maior parte dos autores.

Veja-se,

por todos, Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, cit., p. 139.

87. V. Raúl Canosa Usera, Interpretación constitucional y fórmula política, cit., p. 94.

88. Com relativa freqüência, o Supremo Tribunal Federal estigmatiza o uso da

interpretação

literal, por geradora de "iniqüidades". Vejam-se, exemplificativamente, RTJ, 142:404,

1992, 409,

Rep. n. 1.108-MG, rel. Min. Francisco Rezek, e RTJ, 129:77, 1989, 87, MS 20.608-DE, rel.

Min.

Sydney Sanches.

89. Os atos praticados in fraudem legis são precisamente aqueles que observam o

sentido literal da

norma, mas violam-lhe o espírito. Sobre o tema, v. Regis Fichtner Pereira, Fraude à lei,

1994.

90. Em passagem deliciosamente espirituosa, o ex-Ministro Luiz Gallotti, do Supremo

Tribu-

nal Federal, ao julgar um recurso extraordinário naquela eg. Corte, assinalou: "De todas, a

interpre-

tação literal é a pior. Foi por ela que Clélia, na Chartreuse de Parme, de Stendhal, havendo

feito um

voto a Nossa Senhora de que não mais veria seu amante Fabrício, passou a recebê-lo na

mais

absoluta escuridão, supondo que assim estaria cumprindo o compromisso" (citado de

memória,

sem acesso ao texto do acórdão, que, aparentemente, não foi publicado).

É corrente, na prática jurisprudencial americana, que as palavras

em uma Constituição são empregadas em seu sentido comum. No fun-

do, é o desejável, pois, tratando-se de um documento simbolicamente

emanado do povo e destinado a traçar as regras fundamentais de convi-

vência, seus termos devem ser entendidos em sentido habitual. Essa

afirmativa não é universalmente válida, todavia, sobretudo à vista do

constitucionalismo mais analítico que sucedeu à Carta americana de

1787. O problema da linguagem constitucional se agravou com a demo-

cratização do processo constituinte. De fato, as Constituições mais re-

centes, e, especialmente a Constituição brasileira de 1988, são geradas

em meio a amplo processo dialético de discussão, participação e com-

posição política. Como conseqüência, dificilmente apresentam uma lin-

guagem jurídica uniforme e tecnicamente rigorosa. Parece, assim, pru-

dente a utilização, no particular, da regra mais flexível lavrada por Linares

Quintana, nos termos seguintes:

"As palavras empregadas na Constituição devem ser

entendidas em seu sentido geral e comum, a menos que

resulte claramente de seu texto que o constituinte quis re-

ferir-se ao seu sentido técnico-jurídico".

Page 122: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

91. Esse entendimento é divulgado pelo menos desde McCullough vs. Maryland, 4

Wheat

316, julgado em 1819.

92. José Antonio Estévez Araujo, La Constitución como proceso y la desobediencia

civil,

1994, p. 75.

93. V. Fran Figueiredo, Introdução à interpretação constitucional, RILSF, 87:175, p.

189.

94. Segundo V. Linares Quintana, Reglas para la interpretación constitucional, cit., p.

65.

Em linha algo contrastante com as premissas lançadas acima, a de-

monstrar claramente essa ambigüidade do texto constitucional - de ser

um documento popular e um documento jurídico a um só tempo

veja-se ilustrativa passagem de voto proferido pelo Ministro Marco

Aurélio, no Supremo Tribunal Federal:

"Sempre tenho presente a premissa de que o Direito é

ciência e, como tal, possui institutos, expressões e vocábu-

los com sentido próprio, havendo de se presumir que o le-

gislador, especialmente o constituinte, haja atuado com téc-

nica, atentando para o fato de que o esmero da linguagem é

essencial à revelação do sentido correto da disposição

normativa".

95. RDA, 193:228, 1993, p. 232, RMS 21.514, rel. Min. Marco Aurélio.

Já se deixou consignado, anteriormente, que uma das singularida-

des das normas constitucionais é o seu caráter sintético, esquemático,

de maior abertura. Disso resulta que a linguagem do Texto Constitu-

cional é mais vaga, com emprego de termos polissêmicos (tributos,

servidores, isonomia) e conceitos indeterminados (assuntos de inte-

resse local, dignidade da pessoa humana). É justamente dessa aber-

tura de linguagem que resultam construções como: (a) legitimados os

fins, também estarão os meios necessários para atingi-los; (b) se a

letra da norma assegura o direito a mais, está implícito o direito a

menos; (c) o devido processo legal abriga a idéia de procedimento

adequado e de razoabilidade substantiva (v. infra). Desnecessário

enfatizar que tal característica amplia a discricionariedade do intér-

prete, que há de adicionar um componente subjetivo resultante de sua

própria valoração para integrar o sentido dos comandos constitucio-

nais. Como já se reconheceu anteriormente, na interpretação jurídica,

em geral, e na interpretação constitucional, em particular, jamais será

possível obter racionalidade e objetividade plenas.

96. V. H. L. A. Hart, The concept of law, 1988, p. 121 e s., para um amplo

desenvolvimento da

idéia de open texture of the law.

97. V. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 224-5, que identifica como

difi-

culdades de investigação do conteúdo semântico das normas constitucionais: a) a

polissemia, b) os

Page 123: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

enunciados vagos, c) os conceitos de valor e d) os conceitos de prognose.

98. Essa idéia é desenvolvida na doutrina americana sob a denominação de doutrina

dos

poderes implícitos, que teve como marco histórico o julgamento do caso McCullough vs.

Maryland,

já citado.

99. Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, cit., p. 153.

Todavia, a mesma linguagem que confere abertura ao intérprete há

de figurar como limite máximo de sua atividade criadora. As palavras

têm sentidos mínimos que devem ser respeitados, sob risco de se per-

verter o seu papel de transmissoras de idéias e significados. É a interpre-

tação gramatical ou literal que delimita o espaço dentro do qual o intér-

prete vai operar, embora isso possa significar zonas hermenêuticas mui-

to extensas. A esse propósito, já decidiu o Tribunal Constitucional

Federal alemão:

"Através da interpretação não se pode dar a uma lei ine-

quívoca em seu texto e em seu sentido, um sentido oposto;

não se pode determinar de novo, no fundamental, o conteúdo

normativo da norma que há de ser interpretada; não se pode

faltar ao objetivo do legislador em um ponto essencial".

100. Raúl Canosa Usera, Interpretación constitucional y fórmula política, cit., p. 95.

101. BVerfGE, 11, 126 (130). V. Klaus Stern, Derecho del Estado de la República

Federal

Alemana, cit., p. 283.

O intérprete da Constituição deve partir da premissa de que todas as

palavras do Texto Constitucional têm uma função e um sentido próprios.

Não há palavras supérfluas na Constituição, nem se deve partir do pres-

suposto de que o constituinte incorreu em contradição ou obrou com má

técnica. Idealmente, ademais, deve o constituinte, na medida do possível,

empregar as palavras com o mesmo sentido sempre que tenha de repeti-

las em mais de uma passagem. De toda sorte, a eventual equivocidade

do Texto deve ser remediada com a busca do espírito da norma e o recurso

aos outros métodos de interpretação. Veja-se, no particular, a posição se-

vera - talvez exageradamente severa - do Ministro Sydney Sanches,

em sua crítica à linguagem da Carta de 1988:

"Porém, muito embora a teoria do Direito Constitucio-

nal aponte para a presunção de correção dos termos pousa-

dos nas constituições, ante o alto grau de elaboração e aná-

lise a que foi submetido o texto, não se haverá olvidar que

o nosso processo constituinte foi feito de maneira bastante

insatisfatória e atravancada, apesar do longo período

elaborativo, legando à Norma Suprema o infeliz apelido de

"colcha de retalhos". Deve ser visto com a devida cautela o

critério interpretativo de conceder muita importância ao uso

dos termos, haja vista a freqüência com que usou-se um

termo por outro na Constituição Federal".

102. Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, cit., p. 140.

Page 124: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

103. Nem sempre isso é possível, como lembra Linares Quintana, Reglas para la

interpretación

constitucional, cit., p. 80, citando lição de John Marshall.

104. RTJ, 143:27, 1993, ADIn 378-DF (Medida Liminar), rel. Min. Sydney Sanches.

Por fim, deve o intérprete fiar-se no pressuposto de que, quando a

nova Constituição mantém em algum dispositivo a mesma linguagem da

antiga, presume-se que não desejou modificar a interpretação que se dava

ao preceito no regime anterior. Essa é uma regra generalizadamente acei-

ta, que deve, contudo, ser aplicada cum grano salis. É preciso confirmar

se permanecem, ainda, o mesmo espírito, os mesmos princípios e sobre-

tudo os mesmos valores do Texto anterior. Aplicar uma nova Constituição

sem atenção a isso gera uma das patologias do constitucionalismo nacio-

nal, que é a interpretação retrospectiva (v. supra).

105. V. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, cit., p. 311. A

propósito,

veja-se a pertinente observação de Linares Quintana, Reglas para la interpretación

constitucional,

cit., p. 72: "En las reformas parciales de una Constitución, los constituyentes deben cuidar

de

mantener la uniformidad del estilo entre los preceptos anteriores y nuevos. De lo contrario,

las

enmiendas aparecerán a simple vista como verdaderos remiendos, cuya inconveniencia

surge no

sólo desde el punto de vista de la estilística constitucional, sino también como defecto de

fondo

susceptible de oscurecer la interpretación del Texto Supremo".

II - A interpretação histórica

A interpretação histórica consiste na busca do sentido da lei através

dos precedentes legislativos, dos trabalhos preparatórios e da occasio

legis. Esse esforço retrospectivo para revelar a vontade histórica do

legislador pode incluir não só a revelação de suas intenções quando da

edição da norma como também a especulação sobre qual seria a sua

vontade se ele estivesse ciente dos fatos e idéias contemporâneos. So-

bre ela escreveu Carlos Maximiliano:

"Relativamente ao elemento histórico propriamente

dito, há dois extremos perigosos: o excessivo apreço e o

completo repúdio.

(...) Além do elemento histórico propriamente dito,

constituído pelo direito anterior, do qual o vigente é apenas

um desdobramento, existe, sob a mesma denominação ge-

ral, outro fator de exegese, que os autores designam com as

expressões - Materiais Legislativos ou Trabalhos Prepa-

ratórios.

(...) Os materiais legislativos têm alguma utilidade para

a Hermenêutica; embora não devam ser colocados na pri-

meira linha".

Page 125: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

106. V. José de Oliveira Ascensão, O direito. Introdução e teoria geral, cit., p. 394-5.

Para a

distinção entre occasio legis e ratio legis, v. infra.

107. V. Winfried Brugger, Legal interpretation, schools of jurisprudence, and

anthropology...,

American Journal of Comparative Law, 42:395, p. 403.

108. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, cit., p. 140-3.

Apesar de desfrutar de certa reputação nos países que adotam o

common law, o elemento histórico tem sido o menos prestigiado na mo-

derna interpretação levada a efeito nos sistemas jurídicos da tradição

romano-germânica. A maior parte da doutrina minimiza o papel dos

projetos de lei, das discussões nas comissões, relatórios, debates em

plenário. Alguns autores condenam de forma radical a sua utilização,

e a jurisprudência também a tem em baixa conta, como revela, e. g., a

seguinte passagem constante de voto do Ministro Celso de Mello, do

Supremo Tribunal Federal:

"Não me parece, por isso mesmo, Sr. Presidente, deva

conferir-se um valor subordinante, no processo de inter-

pretação da Lei Fundamental, quer aos trabalhos parlamen-

tares, quer a vontade e à intenção originárias do legislador

constituinte. (...) O originalismo contudo - enquanto de-

signação doutrinária desse método de interpretação - pos-

sui um peso específico, porém relativo, (...) na exata medi-

da em que os seus postulados não condicionam e nem vin-

culam o intérprete na definição e na fixação do alcance do

sentido normativo das regras constitucionais. (...) Os con-

dicionamentos hermenêuticos impostos pela exacerbação

da vontade do legislador constituinte, e da intenção que o

animava em determinado momento histórico, reduziriam,

de modo extremamente inconveniente, a interpretação cons-

titucional, a uma "dimensão voluntarista" (J. J. Gomes

Canotilho), que se revela de todo incompatível com o ver-

dadeiro significado da Constituição...".

109. V. Geraldo Ataliba, Limites à revisão constitucional, Separata da Revista

Trimestral de

Direito Público, 1:6, 1993: "... o jurista sabe que a eventual intenção do legislador nada vale

(ou

não vale nada) para a interpretação jurídica. A Constituição não é o que os constituintes

quiseram

fazer; é muito mais que isso: é o que eles fizeram. O jurista trabalha como direito positivo

(posto).

A lei é mais sábia que o legislador. (...) Os juristas não perdem mais tempo em expor os

argumentos

tendentes a expressar o postulado hermenêutico elementar segundo o qual o desejo do

legislador,

sua vontade e seus processos subjetivos motivacionais não têm valor para a exegese

jurídica".

Page 126: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

110. RTJ, 134:963, 1990, p. 998-9, Embgs. na ADIn 27-DF, rel. Min. Aldir

Passarinho.

Sem embargo dessa visão crítica, o elemento histórico desempenha

na interpretação constitucional um papel mais destacado do que na in-

terpretação das leis. Isso se torna especialmente verdadeiro em relação

a Constituições ainda recentes". Fórmulas e institutos aparentemente

incompreensíveis encontram explicitação na identificação de sua causa

histórica. Aliás, o Preâmbulo das Constituições é freqüentemente um

esforço de prolongar no tempo o espírito do momento constituinte. Em

veemente defesa da interpretação histórica em matéria constitucional,

Pietro Merola Chierchia sustenta que o que se interpreta na norma não é

apenas o seu conteúdo aparente, mas todo o substrato de valores históri-

cos, políticos e ideológicos que estão na origem da Constituição. Não se

trata da vontade individual ou somada dos constituintes, mas, sim, da

vontade social de que aqueles foram portadores, entendida como sínte-

se de valores, sentimentos e aspirações comuns, traduzidos, no plano

normativo, nos princípios constitucionais.

111. Anna Candida da Cunha Ferraz, Processos informais de mudança da

Constituição, cit.,

p. 42.

112. Veja-se, por exemplo, o habeas data, criado pelo art. 5º, LXXII, que só se

justifica como

uma reação ao abuso à manipulação de informações durante o regime militar.

113. P. M. Chierchia, L’interpretazione sistematica della Costituzione, cit., p. 218 e s.

Claro que há limites a serem impostos à interpretação histórica. Nem

mesmo o constituinte originário pode ter a pretensão de aprisionar o

futuro. A patologia da interpretação histórica é o originalismo, ao qual

já se fez referência anteriormente. John Hart Ely, professor america-

no autor de um livro clássico, sustenta, com propriedade, que tal movi-

mento - de certa forma abrangido no conceito mais amplo de

interpretativismo - não é compatível com os princípios democráticos.

A defesa da idéia de subordinação de todas as gerações futuras à vonta-

de que aprovou a Constituição contrasta com a idéia de Jefferson,

generalizadamente aceita, de que a Constituição deve ser reafirmada a

cada geração, sendo, conseqüentemente, um patrimônio dos vivos.

114. Sobre o tema, além da bibliografia já mencionada, v. também José Antonio

Estévez

Araujo, La Constitución como proceso y la desobediencia civil, cit., p. 72 e s.

115. John Hart Ely, Democracy and distrust, 1980, p. 12-4.

Um exemplo caricato de interpretação histórica não evolutiva, pelo

apego ao originalismo, foi dado pela Suprema Corte americana no jul-

gamento de Olmstead vs. United States, onde o Chief Justice Taft consi-

derou que a interceptação telefônica não violava a 4ª Emenda (que veda

provas ilegais e buscas e apreensões sem ordem judicial) porque, quan-

do seu texto foi redigido, em 1791, não existia telefone".

116. 277 U. S.438(1928).

Page 127: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

III - A interpretação sistemática

Uma norma constitucional, vista isoladamente, pode fazer pouco

sentido ou mesmo estar em contradição com outra. Não é possível com-

preender integralmente alguma coisa - seja um texto legal, uma histó-

ria ou uma composição - sem entender suas partes, assim como não é

possível entender as partes de alguma coisa sem a compreensão do

todo". A visão estrutural, a perspectiva de todo o sistema, é vital.

117. Murphy. Fleming e Harris, II, American constitutional interpretation, 1986, p.

292.

O método sistemático disputa com o teleológico a primazia no pro-

cesso interpretativo. O direito objetivo não é um aglomerado aleatório

de disposições legais, mas um organismo jurídico, um sistema de pre-

ceitos coordenados ou subordinados, que convivem harmonicamente. A

interpretação sistemática é fruto da idéia de unidade do ordenamento

jurídico. Através dela, o intérprete situa o dispositivo a ser interpretado

dentro do contexto normativo geral e particular, estabelecendo as cone-

xões internas que enlaçam as instituições e as normas jurídicas". Em

bela passagem, registrou Capograssi que a interpretação não é senão a

afirmação do todo, da unidade diante da particularidade e da fragmen-

taridade dos comandos singulares.

118. Sobre o tema, vejam-se Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, cit.,

p.

143; Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 76; José de Oliveira

Ascensão. O

direito. Introdução e teoria geral, cit., p. 391-2; Maria da Conceição Ferreira Magalhães, A

hermenêutica jurídica, 1989, p. 37. Raül Canosa Usera, em observação interessante, opina

que a

idéia de sistematicidad se refere, também, ao resto dos elementos. Segundo ele, os

resultados

parciais obtidos pelo uso de cada um dos métodos de interpretação devem ser postos em

relação uns

com os outros através do elemento sistemático (Interpretación constitucional y formula

política,

cit., p. 97).

119. G. Capograssi, II problema della scienza del diritto, 1962, p. 113: "E questo ê in

fondo

tutto il magistero dell’interpretazione: scoprire nella singola posizione il tutto, cogliere la

singola

posizione come determinazione del tutto. L’interpretazione non ê che l’affermazione del

tutto, della

unità di fronte alla particolarità e alla frammentarietà dei singoli comandi" (apud P. M.

Chierchia,

L´interpretazione sistematica della Costituzione, cit., p. 244-5).

No centro do sistema, irradiando-se por todo o ordenamento, en-

contra-se a Constituição, principal elemento de sua unidade, porque a

ela se reconduzem todas as normas no âmbito do Estado. A Constitui-

ção, em si, em sua dimensão interna, constitui um sistema. Essa idéia de

Page 128: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

unidade interna da Lei Fundamental cunha um princípio específico, de-

rivado da interpretação sistemática, que é o princípio da unidade da

Constituição, para o qual se abre um capítulo específico mais adiante. A

Constituição interpreta-se como um todo harmônico, onde nenhum dispo-

sitivo deve ser considerado isoladamente. Mesmo as regras que regem

situações específicas, particulares, devem ser interpretadas de forma que

não se choquem com o plano geral da Carta. Além dessa unidade inter-

na, a Constituição é responsável pela unidade externa do sistema.

120. Sobre estes aspectos, vejam-se Linares Quintana, Reglas para la interpretación

consti-

tucional, cit., p. 84-7, e Anna Candida da Cunha Ferraz, Processos informais de mudança

da Cons-

tituição, cit., p. 42-3, onde assinalou: "... se a interpretação sistemática é necessária e até

indispen-

sável para aclarar o sentido de qualquer norma jurídica, mais necessária ainda se apresenta

na

interpretação da Constituição, que é, em si mesma, concebida pelo legislador constituinte

como um

sistema".

Uma Constituição, ao menos nos países que experimentaram a

instabilidade institucional e viveram processos de reconstitu-

cionalização - ou seja, quase todos os países do mundo -, convive,

normalmente, com uma ordem jurídica infraconstitucional que prece-

de a sua promulgação. Essa convivência, inclusive, é um capítulo es-

pecífico do direito constitucional intertemporal (v. supra) e gera um

importante princípio, que é o da continuidade da ordem jurídica. Ora

bem: a ordem jurídica infraconstitucional é elaborada ao longo do tem-

po, no curso de muitas décadas, e espelha períodos históricos diversos,

regimes políticos ideologicamente contrastantes e exigências particula-

res e contingentes de cada época. Pode parecer implausível a tarefa de

encontrar coerência e sistematicidade em normas jurídicas sujeitas a

influências tão aleatórias e variadas. Essa tarefa, de fato, não se

viabilizaria se todas as normas, mesmo as anteriores à Constituição em

vigor, não recebessem dela um novo fundamento de validade, subordi-

nando-se aos valores e princípios nela consagrados. Só essa sofisticada

operação de racionalidade pode conferir a um conjunto de remendos

alinhavados ao longo do tempo um caráter unitário e sistemático.

O mais amplo estudo sobre a interpretação sistemática do direito

constitucional se deve a Pietro Merola Chierchia. Destaca ele a

essencialidade da investigação sistemática na interpretação constitucio-

nal, em razão da lógica particular segundo a qual a Constituição é

estruturada como complexo orgânico de disposições que se apresentam,

em seu conjunto, como uma unidade. Segundo o autor italiano, deve-se

reconhecer à interpretação sistemática uma posição de "prioridade lógi-

ca com respeito aos outros critérios interpretativos". No Brasil, a in-

terpretação sistemática em matéria constitucional é freqüentemente

invocada pelo Supremo Tribunal Federal e desfruta, de fato, de grande

Page 129: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

prestígio na jurisprudência em geral. Sobre ela, escreveu o ex-Minis-

tro Antônio Neder:

"É o que em seguida será demonstrado pela interpreta-

ção sistemática, a mais racional e científica, e a que mais

se harmoniza como método do Direito Constitucional, exa-

tamente a que aproxima da realidade o intérprete".

121. P. M. Chierchia, L’interpretazione sistematica della Costituzione, cit., p. 243 e s.

122. V. RTJ, 133:6, 1990, p. 7, 140:306, 1992, 143:391, 1992, p. 408, 143:27, 1993, p.

32, e

144:175, 1990, p. 183.

123. Rep. n. 846-RJ, rel. Min. Antônio Neder, Representações por

inconstitucionalidade:

dispositivos de Constituições estaduais, 93, 1976,1. 2, p. 107.

IV - A interpretação teleológica

As normas devem ser aplicadas atendendo, fundamentalmente, ao

seu espírito e à sua finalidade. Chama-se teleológico o método

interpretativo que procura revelar o fim da norma, o valor ou bem jurídi-

co visado pelo ordenamento com a edição de dado preceito. A formula-

ção teórica da interpretação teleológica é tributária dos estudos de

Heck, Geny e, sobretudo, Ihering. Nada obstante, a jurisprudên-

cia norte-americana, menos fecunda em formulações abstratas, mas de

grande visão pragmática, já captara a relevância superior da finalidade

da norma, sobretudo na interpretação constitucional. De fato, em 1819,

no julgamento do caso McCullough vs. Maryland, a Suprema Corte, ao

definir a esfera de competência legislativa do Congresso, estabeleceu:

"Desde que os fins sejam legítimos; desde que se si-

tuem no âmbito e nos objetivos da Constituição, todos os

meios que sejam apropriados e se ajustem plenamente a

tais fins, que não sejam proibidos e sejam coerentes com a

letra e o espírito da Constituição, são constitucionais".

124. É o que dispõe o art. 3.1 do Título Preliminar do Código Civil espanhol.

125. V., em português, Philipp Heck, Interpretação da lei e jurisprudência dos

interesses, 1947.

126. V. François Geny, Méthode d’interprétation en droit privé positif, 1954.

127. V., em português, Rudolf von Ihering,A finalidade do direito, 1979.

128. 4 Wheat 316 (1819).

A interpretação histórica cuida, como se assinalou, da occasio legis,

isto é, da circunstância histórica que gerou o nascimento da lei e que cons-

titui sua finalidade imediata. É certo, todavia, que a modificação de tais

circunstâncias ou mesmo a sua cessação não exercem qualquer influência

sobre o valor jurídico da norma. Daí a necessidade de se trabalhar um outro

conceito - o de ratio legis -, que constitui o fundamento racional da

norma e redefine ao longo do tempo a finalidade nela contida. A ratio legis

é uma "força vivente móvel" que anima a disposição e a acompanha em

toda a sua vida e desenvolvimento. A finalidade de uma norma, portanto,

não é perene, e pode evoluir sem modificação de seu texto.

Page 130: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

129. Sobre o tema, v. Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, cit., p. 142.

Carlos Maximiliano não hesita em proclamar o método teleológico

como o que merece preponderância na interpretação constitucional.

Também Story sustenta que provavelmente a mais segura regra de inter-

pretação é a que se volta para a natureza e objetivos dos direitos, deveres

e competências específicas, "dando às palavras que os exprimem uma

força e função compatíveis com seu legítimo significado, de modo que

se possa justamente assegurar e lograr os fins propostos". Em passa-

gem freqüentemente lembrada, averbou o Ministro Espínola, quando no

Supremo Tribunal Federal:

"O uso do método teleológico - busca do fim - pode

ensejar transformação do sentido e conteúdo que parece emer-

gem da fórmula do texto, e também pode acarretar a inevitá-

vel conseqüência de, convencendo que tal fórmula traiu, real-

mente, a finalidade da lei, impor uma modificação do texto,

que se terá de admitir com o máximo de circunspecção e de

moderação, para dar estrita satisfação à imperiosa necessi-

dade de atender ao fim social próprio da lei".

130. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, cit., p. 314.

131. Joseph Story, Commentaries on the Constitution of the United States, 1905, v. 1,

p. 307-8.

132. V. Anna Cândida da Cunha Ferraz, Processos informais de mudança da

Constituição,

cit., p. 43.

133. Para uma ampla análise desse dispositivo, v. Alipio Silveira, Hermenêutica no

direito

brasileiro, cit., v. 1, p. 44 e s.

A Constituição e as leis, portanto, visam a acudir certas necessida-

des e devem ser interpretadas no sentido que melhor atenda à finalidade

para a qual foi criada. O legislador brasileiro, em uma das raras exce-

ções em que editou uma lei de cunho interpretativo, agiu, precisamente,

para consagrar o método teleológico, ao dispor, no art. 5º da Lei de

Introdução ao Código Civil, que na aplicação da lei o juiz atenderá aos

fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. Nem

sempre é fácil, todavia, desentranhar com clareza a finalidade da nor-

ma. À falta de melhor orientação, deverá o intérprete voltar-se para as

finalidades mais elevadas do Estado, que são, na boa passagem de Mar-

celo Caetano, a segurança, a justiça e o bem-estar social.

134. Marcelo Caetano, Direito constitucional, 1987, p. 181-6.

A Constituição brasileira de 1988, em seu Título I, dedicado aos

princípios fundamentais, abriu um artigo específico para as finalidades

do Estado brasileiro, cuja consecução deve figurar como vetor inter-

pretativo de toda a atuação dos órgãos públicos. É o que decorre do art. 3º

e seus incisos, in verbis:

"Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da Repú-

blica Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

Page 131: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir

as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de

origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de

discriminação".

e) Integração da vontade constitucional. Analogia e costume constitu-

cional

Divulga o conhecimento convencional que não existem lacunas no

direito, mas apenas na lei. A omissão, lacuna ou silêncio da lei consiste

na falta de regra jurídica positiva para regular determinado caso. A

ordem jurídica, todavia, tem uma pretensão de completude, e não se

concebe a existência de nenhuma situação juridicamente relevante que

não encontre uma solução dentro do sistema. O processo de preenchi-

mento de eventuais vazios normativos recebe o nome de integração.

Nela não se cuida, como na interpretação, de revelar o sentido de uma

norma existente e aplicável a dada espécie, mas de pesquisar no

ordenamento uma norma capaz de reger adequadamente uma hipótese

que não foi expressamente cogitada pelo legislador. A Constituição de

1934 impunha ao intérprete e aplicador do direito o dever de integrar a

ordem jurídica, ao dispor no art. 113, inciso 37: "Nenhum juiz deixará

de sentenciar por motivo de omissão na lei". As Constituições subse-

qüentes não reeditaram a regra, que, todavia, ganhou assento na Lei de

Introdução ao Código Civil e no Código de Processo Civil.

135. Oscar Tenório, Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro, 1955, p. 106.

136. Art. 4º: "Quando a lei for omissa, o juiz decidirá ocaso de acordo com a analogia,

os

costumes e os princípios gerais de direito".

137. Art. 126: "O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou

obscurida-

de da lei. No julgamento da lide, caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo,

recorrerá à

analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito".

138. Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, cit., p. 157.

As lacunas na legislação podem ser de várias espécies, inclusive

intencionais - frutos da omissão deliberada do legislador - e

involuntárias, quando ocorrem por deficiência do legislador ou pela

superveniência de situações inexistentes à época da edição da norma

Há alguma controvérsia acerca da existência de lacunas constitucionais.

De fato, há plausibilidade na suposição de que, onde o constituinte foi

omisso ou silente, é porque não quis cuidar da matéria, relegando-a à

legislação infraconstitucional. Sem dúvida alguma, a lacuna pode ex-

pressar uma opção política. Mas nem sempre é assim. Captando a evi-

dência, Karl Loewenstein distingue, com propriedade, entre lacuna cons-

titucional descoberta e oculta.

Page 132: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

139. V. Anna Candida da Cunha Ferraz, Processos informais de mudança da

Constituição,

cit., p. 192.

140. Karl Loewenstein, Teoría de la Constitución, 1986, p. 170-2.

Admitida a possibilidade da existência de lacuna constitucional, tor-

na-se necessário recorrer aos dois principais meios de integração da or-

dem jurídica: a analogia e o costume. A analogia consiste na aplicação

de uma regra jurídica concebida para uma dada situação de fato a uma

outra situação semelhante, mas que não fora prevista pelo legislador.

Diz-se tratar-se de analogia legis quando é possível recorrer a uma regra

específica apta a incidir sobre a hipótese, e de analogia iuris quando a

solução precisa ser buscada no sistema como um todo, por não haver

nenhuma regra diretamente pertinente. Naturalmente, não será possí-

vel, em matéria constitucional, buscar a integração analógica na legisla-

ção infraconstitucional. Ou o constituinte atribuiu o tratamento da ma-

téria à lei ordinária - e não se estará diante de uma lacuna -, ou a

solução do vazio normativo terá de ser buscada nos princípios da pró-

pria Constituição. A rigor, o caráter vago e abrangente da norma consti-

tucional torna mais corriqueiro o uso de construções constitucionais do

que o emprego da analogia.

A analogia constitucional, como intuitivo, não cria direito nem co-

loca o intérprete na posição de legislador constituinte. Através dela se

vai buscar no sistema constitucional um direito que já existe, em estado

latente. Há domínios em que o recurso à analogia não é legítimo, como

no direito penal e tributário, onde, por força de princípios constitucio-

nais, exige-se legalidade estrita. De outra parte, a despeito da similitude,

não se confundem a analogia e a interpretação extensiva, haja vista que

nesta segunda hipótese não há lacuna, mas apenas uma situação em que

o legislador disse menos do que queria. Não se confundem, por igual,

as lacunas - que são situações constitucionalmente relevantes não pre-

vistas - e as omissões legislativas - que são situações previstas no

texto constitucional, mas dependentes da intermediação do legislador

ordinário para produção da plenitude de seus efeitos. Por fim, é preciso

distinguir, como faz com proveito a doutrina alemã, entre lacuna e si-

lêncio eloqüente. Em palavras do Ministro Moreira Alves:

"Sucede, porém, que só se aplica a analogia quando,

na lei, haja lacuna, e não o que os alemães denominam de

"silêncio eloqüente" (beredtes Schweigen), que é o silêncio

que traduz que a hipótese contemplada é a única a que se

aplica o preceito legal, não se admitindo, portanto, aí o

emprego da analogia".

141. V. Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, cit., p. 361, e Raul Canosa

Usera,

Interpretación constitucional y fórmula política, cit., p. 105.

142. V. Miguel Reale, Lições preliminares de direito, 1990, p. 294; Raúl Canosa

Usera,

Interpretación constitucional y fórmula política, cit., p. 105.

Page 133: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

143. V. Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, cit., p. 162: "De facto,

uma (a

analogia) se aplica quando um caso não é contemplado por uma disposição de lei, enquanto

a outra

pressupõe que o caso já está compreendido na regulamentação jurídica, entrando no sentido

duma

disposição, se bem que fuja à sua letra".

144. RTJ, 739:965, 1992, p. 967, RE 130.555-SP, rel. Min. Moreira Alves. Outras

tantas

decisões do STF fazem menção à analogia, como se vê, ilustrativamente, em RTJ, 128:956,

1989,

e 140:457, 1992.

Cabe, em seguida, tratar do costume constitucional, cuja menção

evoca, desde logo, o constitucionalismo consuetudinário mais famoso,

que é o britânico. O direito constitucional inglês se consubstancia em

alguns documentos históricos - como a Magna Charta, de 1215, a

Petition of Right, de 1628, e o Bill of Rights, de 1689 -, em algumas

leis escritas - como o Parliament Act, de 1911 e de 1949, o Statute of

Westminster, de 1931, e o Administration of Justice Act, de 1968 - e,

sobretudo, no costume constitucional, representado por certas práticas

tradicionais e pelo reconhecimento de faculdades e de poderes a órgãos

e cidadãos. Merece registro a pertinente observação de Afonso Arinos

de Mello Franco de que a Constituição inglesa, embora costumeira e

teoricamente flexível, varia menos na aplicação do que grande número

de Constituições escritas e supostamente rígidas.

145. Para um proveitoso resumo da experiência constitucional britânica, v. Marcelo

Caetano,

Direito constitucional, cit., v. 1, p. 67 e s.

146. Afonso Arinos de Mello Franco, Curso de direito constitucional brasileiro, 1968,

p. 52.

O costume, ensina a doutrina clássica, é a primeira fonte subsidiária

do direito. O costume jurídico ou direito consuetudinário é a observação

constante de uma norma jurídica não baseada em lei escrita. Nele se des-

tacam dois elementos: o externo ou objetivo, que é o uso, a repetição

habitual de um dado comportamento, e o interno ou subjetivo, que é a

opinio necessitatis, que se traduz na convicção de que aquele comporta-

mento é necessário e obrigatório.

147. V., por todos, Clóvis Beviláqua, Teoria geral do direito civil, 1976, p. 30; Alípio

Silveira,

Hermenêutica no direito brasileiro, cit., p. 317-21; José de Oliveira Ascensão, O direito.

Introdu-

ção e teoria geral, cit., p. 241-2.

Nos sistemas constitucionais escritos e rígidos, como o brasileiro, o

costume não é fonte originária de qualquer norma constitucional. As

Constituições, em geral, a ele não fazem menção, e há quem sustente,

com certo radicalismo, que somente os órgãos de representação popular

podem legitimamente produzir normas jurídicas obrigatórias". A ver-

Page 134: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

dade, todavia, é que o costume constitucional tem duplo e relevante

papel, quer para a integração da ordem constitucional em caso de lacu-

na, quer como fonte auxiliar da interpretação constitucional. O costu-

me, a prática constitucional, é um importante ponto de referencia na

passagem do campo normativo para o terreno da realidade. Versando o

tema, Carlos Maximiliano, inspirado em lição de Story, advertiu:

"A prática constitucional longa e uniformemente acei-

ta pelo Poder Legislativo, ou pelo Executivo, tem mais va-

lor para o intérprete do que as especulações engenhosas

dos espíritos concentrados. São estes, quase sempre, aman-

tes de teorias e idéias gerais, não habituados a encontrar

dificuldades e resolvê-las a cada passo, na vida real, como

sucede aos homens de Estado, coagidos continuamente a

adaptar a letra da lei aos fatos inevitáveis".

148. V. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 947, e Anna Candida da

Cunha

Ferraz, Processos informais de mudança da Constituição, cit., p. 183, que apenas registram

a

existência do ponto de vista, sem endossá-lo. Em sentido diverso, v. Alberto Ramón Real,

Los

métodos de interpretación constitucional, RDP, 53-54:50, p. 57: "las costumbres, prácticas,

usos,

convenciones y normas de corrección constitucional en que se expresa la vida política real

integran

la Constitución material y su conocimiento es necesario para determinar el régimen político

exis-

tente, el grado de eficacia y el contenido verdadero de la Constitución formal".

149. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, cit., p. 313.

Embora se deva distinguir o costume, que é um conceito jurídico,

da mera prática, que é uma situação de fato, é pertinente observar que

muitas vezes a Constituição formal desempenha um papel puramente

simbólico, quando não escamoteador. Assim se passou com a Constitui-

ção brasileira de 1937 e, em significativa medida, com as de 1967-69.

Há casos em que o Texto Constitucional é uma pura hipótese, sendo a

realidade da Constituição muito mais representada pelas praxes e costu-

mes que cercam a sua aplicação. A Constituição material, efetiva, de

um Estado pode mais facilmente ser identificada nos costumes e praxes

constitucionais do que no texto propriamente dito.

150. V. Afonso Arinos de Mello Franco, Curso de direito constitucional brasileiro,

cit., p. 52.

A doutrina aceita, sem maiores reservas, o costume secundum

constitutionem e praeter constitutionem, mas rejeita, por inadmissível,

o costume constitucional contra constitutionem. E é natural que seja

assim. A realidade, contudo, oferece situações renitentes ou rotineiras

em que a norma constitucional é inobservada, sem que se mobilizem os

mecanismos de sanção. São exemplos desse fato a persistência de omis-

sões legislativas, o desrespeito reiterado das normas orçamentárias, inclu-

Page 135: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

sive as que estabelecem limites de despesas com pessoal e tetos

remuneratórios, e a discutível legitimidade da figura do voto de lideranças".

Exemplo de costume praeter constitutionem é o descumprimento, pelo Poder

Executivo, de leis que repute inconstitucionais, comportamento que não tem

base constitucional expressa, mas é consagrado pelo uso (v. infra).

151. Sobre o tema, tendo tal prática por inconstitucional, já no regime anterior, v. José

Paulo

Sepúlveda Pertence, Voto de liderança, parecer publicado em RDP, 76:57,1985.

4. A interpretação constitucional evolutiva

Já se expôs, um pouco mais atrás, a prevalência, na moderna doutri-

na, da concepção objetiva da interpretação, pela qual se deve buscar,

não a vontade do legislador histórico (a mens legislatoris), mas a vonta-

de autônoma que emana da lei. O que é mais relevante não é a occasio

legis, a conjuntura em que editada a norma, mas a ratio legis, o funda-

mento racional que a acompanha ao longo de toda a sua vigência. Este é

o fundamento da chamada interpretação evolutiva. As normas, ensina

Miguel Reale, valem em razão da realidade de que participam, adqui-

rindo novos sentidos ou significados, mesmo quando mantidas inalteradas

as suas estruturas formais.

152. Miguel Reale, Filosofia do direito, 1982, p. 594.

Sem que se opere algum tipo de ruptura na ordem constituída -

como um movimento revolucionário ou a convocação do poder cons-

tituinte originário -, duas são as possibilidades legítimas de muta-

ção ou transição constitucional: (a) através de uma reforma do tex-

to, pelo exercício do poder constituinte derivado, ou (b) através do

recurso aos meios interpretativos. A interpretação evolutiva é um

processo informal de reforma do texto da Constituição. Consiste ela

na atribuição de novos conteúdos à norma constitucional, sem modi-

ficação do seu teor literal, em razão de mudanças históricas ou de

fatores políticos e sociais que não estavam presentes na mente dos

constituintes.

153. V. Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, cit., p. 376; Raul Machado

Horta,

Permanência e mudança na Constituição, Separata da Revista Brasileira de Estudos

Políticos, n.

74, 1992, p. 243 e s.; J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 235-6; e Manuel

Garcia-

Pelayo, Derecho constitucional comparado, 1984, p. 137.

154. Anna Candida da Cunha Ferraz, Processos informais de mudança da

Constituição, cit.,

p. 45. V., também, Alberto Ramón Real, Los métodos de interpretación constitucional, cit.,

p. 57: "La

interpretación evolutiva facilita la dinâmica vital de la Constitución, al renovar y

enriquecer, con

nuevos contenidos, reclamados por la historia, los antiguos textos, evitando su

fosilización". Woodrow

Page 136: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Wilson, em seu clássico Constitutional government in the United States, 1908, remarcando

a

evolutividade dos governos constitucionais, afirmou: "O Governo não é uma máquina, mas

uma

coisa viva... Ele deve contas a Darwin, e não a Newton".

Essa interpretação evolutiva se concretiza, muitas vezes, através de

normas constitucionais que se utilizam de conceitos elásticos ou

indeterminados, como os de autonomia, função social da propriedade,

redução das desigualdades etc., que podem assumir significados variados

ao longo do tempo. Por vezes, uma emenda constitucional, introduzindo

modificação em algum subsistema constitucional, pode alterar a com-

preensão de conceitos e institutos já existentes.

155. V. P. M. Chierchia, L´interpretazione sistematica della Costituzione, cit., p. 65.

Tenha-se

como exemplo a Reforma Administrativa introduzida pela Emenda Constitucional n. 19/98,

que

substancialmente alterou a compreensão de institutos como o limite máximo de

remuneração e a

estabilidade dos servidores públicos (na redação dada aos arts. 37, XI, e 41,

respectivamente).

Na prática do direito constitucional norte-americano, a interpretação

evolutiva desempenha papel da maior significação, tanto no campo do

devido processo legal (v. infra) como no da criação de novos direitos não

previstos expressamente (e. g., o direito à privacidade) e no da igualdade

perante a lei, notadamente a de cunho racial. A esse propósito, é ilustrativo

assinalar que a versão original da Carta de 1787 permitia, na seção 2 do

art. 1º, o regime da escravidão. Em 1857, ao julgar o caso Dred Scott vs.

Sandford, a Suprema Corte chegou a negar a condição de cidadão a um til

escravo. Após 76 anos e uma guerra civil, a 13ª emenda, de 1865, aboliu

a escravatura. Investidos de cidadania, ainda assim os negros eram larga-

mente discriminados, com a chancela dos poderes estatais.

156. 60U. S. (19 How.) 393 (1857).

Em 1896, ao decidir o caso Plessy vs. Ferguson, a Suprema Corte

endossou a doutrina do equal but separate - iguais, mas separados -,

forma dissimulada de discriminação praticada em diversos Estados. So-

mente em 1954, ao julgar Brown vs. Board of Education, a Corte conside-

rou inconstitucional a segregação de estudantes negros nas escolas públi-

cas, em decisão que se tornou um marco na política de integração racial.

Constata-se, assim, que, na vigência de uma mesma Constituição, o trata-

mento dado aos negros evoluiu da discriminação total para a discrimina-

ção atenuada, e, depois, para a não-discriminação.

157. Para um amplo e interessante painel da interpretação evolutiva na experiência

constitucional

norte-americana, v. Morton J. Horwitz, Foreword: the Constitution of change..., Harvard

law Review,

107:27, 1993. Para Horwitz, os dois momentos culminantes do constitucionalismo

americano foram,

Page 137: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

precisamente, duas mudanças de orientação jurisprudencial decididas pela Suprema Corte:

o primeiro

deles foi a superação da doutrina Lochner. Conforme se verá em maior detalhe adiante,

desde a decisão

em Lochner vs. New York, de 1905, a Suprema Corte passou a considerar inconstitucional

toda e qual-

quer legislação social e intervencionista. Essa orientação só veio a ser superada na década

de 30, após o

New Deal, sob o impacto de um confronto direto entre a Corte e o Presidente Roosevelt (v.

infra); o

segundo foi a superação do precedente firmado em Plessy vs. Ferguson, em 1896, que

coonestara a

hipocrisia discriminatória do iguais, mas separados, pela corajosa decisão integracionista de

Brown, em

1954 (Foreword: the Constitution of change...,Harvard Law Review, 107:27, cit., p. 71).

Na América Latina, como lembra Anna Candida da Cunha Ferraz, e

inclusive no Brasil, uma longa tradição autoritária mantém a interpreta-

ção constitucional evolutiva, através do Poder Judiciário, em limites ex-

tremamente contidos. De fato, a história do continente é estigmatizada

pela hipertrofia do Executivo, pela quebra das garantias da magistratu-

ra, por reformas constitucionais casuísticas e pela instabilidade consti-

tucional constante. Aliás, em lugar de evolução, freqüentemente o que

se verifica é uma deformação, onde a interpretação constitucional judi-

cial convalida os abusos autoritários.

158. Anna Candida da Cunha Ferraz, Processos informais de mudança da

Constituição, cit.,

p. 133-4.

Não obstante isto, existem alguns precedentes interessantes de apli-

cação evolutiva da Lei Fundamental, pela intervenção criativa dos tribu-

nais, isto é, através de construções constitucionais. Dentre elas se destaca

sempre a chamada doutrina brasileira do "habeas corpus", consubstan-

ciada na extensão do instituto a outras situações de ilegalidade e abuso de

poder que não aquelas relativas à liberdade de locomoção. Foi igual-

mente por construção pretoriana que se criaram regras de proteção à mu-

lher, notadamente a que vivia, maritalmente com um homem, sem ser ca-

sada. A Constituição de 1988 bem espelhou esta longa evolução, con-

signando em seu texto, no art. 226, § 3º: "Para efeito da proteção do Esta-

do, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entida-

de familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento".

159. Sobre o tema, v. M. Seabra Fagundes, Meios institucionais de proteção dos

direitos

individuais, Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, 10:115, 1977, p. 120-2.

160. Veja-se a evolução da matéria no Supremo Tribunal Federal, nos termos em que

materiali-

zada na Súmula da jurisprudência predominante: 35: "Em caso de acidente do trabalho ou

de transpor-

Page 138: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

te, a concubina tem direito de ser indenizada pela morte do amásio, se entre eles não havia

impedi-

mento para o matrimônio"; 380: "Comprovada a existência de sociedade de fato entre os

concubinos,

é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço

comum"; e

447: "É válida a disposição testamentária em favor de filho adulterino do testador com sua

concubina".

Naturalmente, a interpretação evolutiva, sem reforma da Constitui-

ção, há de encontrar limites. O primeiro deles é representado pelo pró-

prio texto, pois a abertura da linguagem constitucional e a polissemia de

seus termos não são absolutas, devendo estancar diante de significados

mínimos. Além disso, também os princípios fundamentais do sistema

são intangíveis, assim como as alterações informais introduzidas pela

interpretação não poderão contravir os programas constitucionais.

Capítulo II - PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO ESPECIFICAMENTE

CONSTITUCIONAL

1. Os princípios constitucionais como condicionantes da interpretação constitucional

O ponto de partida do intérprete há que ser sempre os princípios

constitucionais, que são o conjunto de normas que espelham a ideologia

da Constituição, seus postulados básicos e seus fins. Dito de forma su-

mária, os princípios constitucionais são as normas eleitas pelo consti-

tuinte como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica

que institui. A atividade de interpretação da Constituição deve começar

pela identificação do princípio maior que rege o tema a ser apreciado,

descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação

da regra concreta que vai reger a espécie.

É importante assinalar, logo de início, que já se encontra superada a

distinção que outrora se fazia entre norma e princípio. A dogmática mo-

derna avaliza o entendimento de que as normas jurídicas, em geral, e as

normas constitucionais, em particular, podem ser enquadradas em duas

categorias diversas: as normas-princípio e as normas-disposição. As

normas-disposição, também referidas como regras, têm eficácia restrita

às situações específicas às quais se dirigem. Já as normas-princípio, ou

simplesmente princípios, têm, normalmente, maior teor de abstração e

uma finalidade mais destacada dentro do sistema.

1. Vejam-se Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, 1983, t. 2, p. 198; J. J.

Gomes

Canotilho, Direito constitucional, 1986, p. 172: "As regras e princípios são duas espécies de

nor-

mas"; e Eros Roberto Grau, A ordem económica na Constituição - interpretação e crítica,

1990,

p. 122 e s.

Não há, é certo, entre umas e outras, hierarquia em sentido normativo,

por isso que, pelo princípio da unidade da Constituição (v. infra), todas

Page 139: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

as normas constitucionais encontram-se no mesmo plano. Isso não im-

pede, todavia, que normas de mesma hierarquia tenham funções distin-

tas dentro do ordenamento. De fato, aos princípios cabe, além de uma

ação imediata, quando diretamente aplicáveis a determinada relação ju-

rídica, uma outra, de natureza mediata, que é a de funcionar como crité-

rio de interpretação e integração do Texto Constitucional. Veja-se, a

seguir, a elaboração doutrinária dos princípios constitucionais, com ên-

fase na sua sistematização no ordenamento positivo brasileiro.

2. Sem embargo, é possível admitir a existência de uma hierarquia axiológica, como

bem

observa Diogo de Figueiredo Moreira Neto (A ordem econômica na Constituição de 1988,

Revista

de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, 42:57, 1990, p. 59).

3. V. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 199.

Ao prefaciar seu admirável Tratado de direito privado, averbou Pon-

tes de Miranda que "os sistemas jurídicos são sistemas lógicos, compos-

tos de proposições que se referem a situações da vida, criadas pelos inte-

resses mais diversos". A função social do direito é dar valores a essas

situações, interesses e bens, e regular-lhes a distribuição entre os homens.

4. Pontes de Miranda, Tratado de direito pri vado, 1954, t. 1, p. IX.

Na fecunda formulação de sua teoria tridimensional do direito, de-

monstrou Miguel Reale que a norma jurídica é a síntese resultante de

fatos ordenados segundo distintos valores. Com efeito, leciona ele, onde

quer que haja um fenômeno jurídico, há, sempre e necessariamente, um

fato subjacente (fato econômico, geográfico, demográfico, de ordem téc-

nica etc.); um valor, que confere determinada significação a esse fato; e,

finalmente, uma norma, que representa a relação ou medida que integra

um daqueles elementos ao outro, o fato ao valor.

5. Miguel Reale, Teoria tridimensional do direito, 1968, e Lições preliminares de

direito,

1973, especialmente p. 85 e s.

Pois os princípios constitucionais são, precisamente, a síntese dos

valores mais relevantes da ordem jurídica. A Constituição, como já vi-

mos, é um sistema de normas jurídicas. Ela não é um simples agrupa-

mento de regras que se justapõem ou que se superpõem. A idéia de sis-

tema funda-se na de harmonia, de partes que convivem sem atritos. Em

toda ordem jurídica existem valores superiores e diretrizes fundamen-

tais que "costuram" suas diferentes partes. Os princípios constitucio-

nais consubstanciam as premissas básicas de uma dada ordem jurídica,

irradiando-se por todo o sistema. Eles indicam o ponto de partida e os

caminhos a serem percorridos.

6. Atente-se para a referência limitativa ordem jurídica, diante da evidência de que

nem todos

os valores podem ou devem ser realizados através do direito, como os de natureza

puramente ética

ou religiosa, dentre outros. V. Recaséns Siches, Nueva filosofía de la interpretación del

derecho,

Page 140: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

1980, p. 284.

Em passagem que já se tornou clássica, escreveu Celso Antônio

Bandeira de Mello:

"Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um

sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental

que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o

espírito e servindo de critério para sua exata compreensão

e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionali-

dade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e

lhe dá sentido harmônico...".

"Violar um princípio é muito mais grave do que trans-

gredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofen-

sa não apenas a um específico mandamento obrigatório,

mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma

de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o es-

calão do princípio atingido, porque representa insurgência

contra todo o sistema, subversão de seus valores funda-

mentais".

7. Celso Antônio Bandeira de Mello, Elementos de direito administrativo, 1986, p.

230.

Os grandes princípios de um sistema jurídico são normalmente enun-

ciados em algum texto de direito positivo. Não obstante, e sem pretender

enveredar por discussão filosófica acerca de positivismo e jusnaturalismo,

tem-se, aqui, como fora de dúvida que esses bens sociais supremos exis-

tem fora e acima da letra expressa das normas legais, e nelas não se esgo-

tam, até porque não têm caráter absoluto e se encontram em permanente

mutação. No comentário de Jorge Miranda, "o Direito nunca poderia es-

gotar-se nos diplomas e preceitos constantemente publicados e revogados

pelos órgãos do poder". Deixando-se de lado os chamados princípios

gerais do direito, que constituem uma discussão à parte, é bem de ver

que os próprios princípios de interpretação constitucional tratados neste

capítulo, que integram, sem sombra de dúvida, o sistema constitucional

positivo, não são, na sua generalidade, objetos de disposição expressa.

8. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 197. V. também Eros

Grau, A

ordem econômica na Constituição, cit., p. 92. Aparentemente em sentido diverso é o

comentário de

J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 119: "... Quer as normas, quer os

princípios

têm recepção positivo-constitucional (não há princípios transcendentes)". Essa afirmação é

atenua-

da por sua admissão de que o princípio não precisa estar consagrado expressamente em

qualquer

preceito particular, podendo ser deduzido do sistema.

9. V. Eduardo García de Enterría, Reflexiones sobre la ley y los principios generales

del

derecho, 1986.

Page 141: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

É possível enquadrar os princípios constitucionais, quanto ao seu

conteúdo, na tipologia que adotamos para as normas constitucionais em

geral. Com efeito, existem princípios constitucionais de organização,

como os que definem a forma de Estado, a forma, o regime e o sistema

de governo. Existem, também, princípios constitucionais cuja finalida-

de precípua é estabelecer direitos, isto é, resguardar situações jurídicas

individuais, como os que asseguram o acesso à Justiça, o devido proces-

so legal, a irretroatividade das leis etc. Por igual, existem princípios de

caráter programático, que estabelecem certos valores a serem observa-

dos - livre iniciativa, função social da propriedade ou fins a serem

perseguidos, como a justiça social.

10. V. Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas,

1993, p.

87 e s.

É de maior proveito, contudo, para os fins aqui visados, sistemati-

zar os princípios constitucionais de acordo com o seu grau de desta-

que no âmbito do sistema e sua conseqüente abrangência. Aos princí-

pios calha a peculiaridade de se irradiarem pelo sistema normativo,

repercutindo sobre outras normas constitucionais e daí se difundindo

para os escalões normativos infraconstitucionais. Nem todos os prin-

cípios, no entanto, possuem o mesmo raio de atuação. Eles variam na

amplitude de sua aplicação e mesmo na sua influência. Dividem-se,

assim, em princípios fundamentais, princípios gerais e princípios

setoriais ou especiais.

Princípios fundamentais são aqueles que contêm as decisões políti-

cas estruturais do Estado, no sentido que a elas empresta Carl Schmitt.

Constituem, como afirmam Canotilho e Vital Moreira, "síntese ou ma-

triz de todas as restantes normas constitucionais, que àquelas podem ser

direta ou indiretamente reconduzidas". São tipicamente os fundamen-

tos da organização política do Estado, correspondendo ao que referimos

anteriormente como princípios constitucionais de organização. Neles se

substancia a opção política entre Estado unitário e federação, república

ou monarquia, presidencialismo ou parlamentarismo, regime democrá-

tico etc.

11. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa

anotada,

1991,v. 1,p.66.

Esses princípios constitucionais fundamentais, exprimindo, como

já se disse, a ideologia política que permeia o ordenamento jurídico,

constituem, também, o núcleo imodificável do sistema, servindo como

limite às mutações constitucionais. Sua superação exige um novo mo-

mento constituinte originário. Nada obstante, esses princípios são dota-

dos de natural força de expansão, comportando desdobramentos em ou-

tros princípios e em ampla integração infraconstitucional.

12. V. P. M. Chierchia, L’interpretazione sistematica della Costituzione, 1978, p. 145

e s.;

Raul Canosa Usera, Interpretación constitucional y fórmula política, 1988, p. 168.

Page 142: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Os princípios constitucionais gerais, embora não integrem o núcleo

da decisão política formadora do Estado, são, normalmente, importan-

tes especificações dos princípios fundamentais. Têm eles menor grau de

abstração e ensejam, em muitos casos, a tutela imediata das situações

jurídicas que contemplam. São princípios que se irradiam por toda a

ordem jurídica, como desdobramentos dos princípios fundamentais, e

se aproximam daqueles que identificamos como princípios definidores

de direitos. São exemplos o princípio da legalidade, da isonomia, do

juiz natural. Canotilho se refere a eles como princípios-garantia.

E, por fim, os princípios setoriais ou especiais, que são aqueles que

presidem um específico conjunto de normas afetas a determinado tema,

capítulo ou título da Constituição. Eles se irradiam limitadamente, mas

no seu âmbito de atuação são supremos. Por vezes são mero detalhamento

dos princípios gerais, como os princípios da legalidade tributária ou da

legalidade penal. Outras vezes são autônomos, como o princípio da an-

terioridade em matéria tributária ou o do concurso público em matéria

de administração pública.

13. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 122.

Feita essa sistematização preliminar, é preciso destacar o papel prá-

tico dos princípios dentro do ordenamento jurídico constitucional,

enfatizando sua finalidade ou destinação. Cabe-lhes, em primeiro lugar,

embasar as decisões políticas fundamentais tomadas pelo constituinte e

expressar os valores superiores que inspiraram a criação ou reorganiza-

ção de um dado Estado. Eles fincam os alicerces e traçam as linhas

mestras das instituições, dando-lhes o impulso vital inicial.

Em segundo lugar, aos princípios se reserva a função de ser o fio

condutor dos diferentes segmentos do Texto Constitucional, dando uni-

dade ao sistema normativo. Um documento marcantemente político como

a Constituição, fundado em compromissos entre correntes opostas de

opinião, abriga normas à primeira vista contraditórias. Compete aos prin-

cípios compatibilizá-las, integrando-as à harmonia do sistema.

E, por fim, na sua principal dimensão operativa, dirigem-se os princí-

pios ao Executivo, Legislativo e Judiciário, condicionando a atuação dos

poderes públicos e pautando a interpretação e aplicação de todas as nor-

mas jurídicas vigentes. Exemplo dessa utilidade prática do uso dos princí-

pios vem de ser dado por Sergio Ferraz, em pioneiro estudo que dedicou a

temas só recentemente aportados ao mundo jurídico, como doação de

órgãos, inseminação artificial, "bebê de proveta" e "útero de aluguel". Di-

ante de aspectos que difusamente se distribuíam por diferentes domínios

jurídicos - como os do direito civil, penal, administrativo -, declarou-

se ele na contingência de fazer uma opção metodológica por enfocar as

perplexidades que a matéria provocava:

"A vista do exclusivo farol capaz de solvê-las univoca-

mente, para todos os ramos da árvore jurídica: o contraste

entre as indagações e os princípios constitucionais da or-

dem jurídica brasileira. Com isso, a questão por certo não

ganha em facilidade e simplificação, quem sabe até mais

Page 143: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

intrincada se torne. Mas ganha em certeza e segurança, pois

somente princípios constitucionais podem ostentar a mar-

ca da irredutibilidade a outros, num pensamento jurídico

coerentemente concatenado".

14. Sérgio Ferraz, Manipulações biológicas e princípios constitucionais: uma

introdução,

1991, p. 16. Sobre esse tema, veja-se, também, Heloísa Helena Barboza, "A filiação em

face da

inseminação artificial e da fertilização in vitro", 1993.

À luz dos conceitos gerais expostos acima, e com o objetivo de

auxiliar o intérprete colocando à sua disposição um catálogo tópico,

procura-se, a seguir, esboçar um quadro geral dos princípios constitucio-

nais brasileiros, tendo como moldura o Texto Constitucional em vigor.

A enunciação está longe de ser exaustiva, mas pretende haver captado

os mais destacados princípios enquadrados na tipologia aqui delíneada:

fundamentais, gerais e setoriais.

À vista do direito posto, são princípios fundamentais do Estado bra-

sileiro os seguintes:

- princípio republicano (art. 1º, caput);

- princípio federativo (art. 1º, caput);

- princípio do Estado democrático de direito (art. 1º, caput);

- princípio da separação de Poderes (art. 2º);

- princípio presidencialista (art. 76);

- princípio da livre iniciativa (art. 1º, IV).

São essas as decisões políticas fundamentais do constituinte. Já no

caput do art. 1º, ele explicitou que preferia a forma de governo republi-

cana em lugar da monárquica, a forma federativa de Estado e não a

unitária, e que o regime de governo seria o democrático, com todo o poder

emanando do povo. Remarcou a idéia de separação de Poderes - tradicio-

nal decorrência do princípio democrático no constitucionalismo ociden-

tal -, optou pelo presidencialismo sobre o parlamentarismo e deixou

expressa sua profissão de fé capitalista ao consagrar a livre iniciativa.

Se o constituinte de 1988 não tivesse dito mais nada; se a Carta se

cifrasse a um único artigo que abrigasse os princípios acima, ainda as-

sim ter-se-iam os contornos essenciais do Estado que se pretendeu criar.

Se se deixasse tudo o mais para o legislador ordinário, não poderia ele

desfigurar o modelo básico que a ele se impôs.

De outra parte, figuram dentre os princípios gerais os que se seguem:

- princípio da legalidade (art. 5º, II);

- princípio da liberdade (art. 5º, II, e diversos incisos do art. 5º

como IV, VI, IX, XIII, XIV, XV, XVI, XVII etc.);

- princípio da isonomia (art. 5º, caput e inciso I);

- princípio da autonomia estadual e municipal (art. 18);

- princípio do acesso ao Judiciário (art. 5º, XXXV);

- princípio da segurança jurídica (art. 5º, XXXVI);

- princípio do juiz natural (art. 5º, XXXVII e LIII);

- princípio do devido processo legal (art. 5º, LIV).

Page 144: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

O elenco acima comportaria significativa ampliação, de acordo com

o gosto de cada um. Há características peculiares a esses princípios, em

contraste com os que se dizem fundamentais. Em primeiro lugar, eles

não têm caráter organizatório do Estado, mas sim limitativo de seu po-

der, resguardando desde logo situações individuais. Seu conteúdo tem

menos de decisão política e mais de valoração ética, embora, de certa

forma, não deixem de ser meros desdobramentos daquelas opções polí-

ticas fundamentais. Os princípios gerais, embora se possam encontrar

em diferentes passagens da Constituição, concentram-se no capítulo

dedicado aos direitos e deveres individuais e coletivos (art. 5º).

Os princípios setoriais ou especiais distribuem-se por diferentes tí-

tulos da Constituição e irradiam-se sobre um número limitado de nor-

mas. Sem ser exaustivo, é possível destacar os que vão adiante mencio-

nados, dentro das respectivas áreas de atuação:

I - Administração Pública:

- princípio da legalidade administrativa (art. 37, caput);

- princípio da impessoalidade (art. 37, caput);

- princípio da moralidade (art. 37, caput);

- princípio da publicidade (art. 37, caput);

- princípio do concurso público (art. 37, II);

- princípio da prestação de contas (arts. 70, parágrafo único, 34,

VII, d, e 35, II).

II - Organização dos Poderes:

- princípio majoritário (arts. 46 e 77, § 2º);

- princípio proporcional (arts. 45 e 58, § 1º);

- princípio da publicidade e da motivação das decisões judiciais e

administrativas (art. 93, IX e X);

- princípio da independência e da imparcialidade dos juízes (arts.

95 e 96);

- princípio da subordinação das Forças Armadas ao poder civil

(art. 142).

III - Tributação e Orçamento:

- princípio da capacidade contributiva (art. 145, § 1º);

- princípio da legalidade tributária (art. 150, I);

- princípio da isonomia tributária (art. 150, II);

- princípio da anterioridade da lei tributária (art. 150, III);

- princípio da imunidade recíproca das pessoas jurídicas de direito

público (art. 150, VI, a);

- princípio da anualidade orçamentária (art. 165, III);

- princípio da universalidade do orçamento (art. 165, § 5º);

- princípio da exclusividade da matéria orçamentária (art. 165,

§ 8º).

IV - Ordem Economica:

- princípio da garantia da propriedade privada (art. 170, II);

- princípio da função social da propriedade (art. 170, III);

- princípio da livre concorrência (art. 170, IV);

- princípio da defesa do consumidor (art. 170, V);

Page 145: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

- princípio da defesa do meio ambiente (art. 170, VI).

V - Ordem Social:

- princípio da gratuidade do ensino público (art. 206, IV);

- princípio da autonomia universitária (art. 207);

- princípio da autonomia desportiva (art. 217, I).

É bem de ver que muitas vezes a Constituição se refere a "princí-

pio", quando na verdade está significando uma verdadeira finalidade,

como ocorre com a "redução das desigualdades regionais e sociais" ou

a "busca de pleno emprego", indicadas como "princípios" da ordem eco-

nômica no art. 170. Outras vezes, embora empregue o termo princípios, a

Constituição quer referir-se às regras constitucionais em geral, como se

passa nos arts. 25, caput, e 29, caput, que, ao tratarem do poder de auto-

organização de Estados-membros e Municípios, impõem o respeito aos

princípios da Constituição. Entre esses "princípios" inclui-se todo o lon-

go elenco de direitos e deveres dos servidores públicos, típicas normas de

preceitos, sem qualquer traço de especial abstração ou generalidade.

Sem embargo dos particularismos inevitáveis, procurou-se deli-

near acima um painel abrangente dos princípios constitucionais do

Estado brasileiro colhidos no direito posto. Ao intérprete constitucio-

nal caberá visualizá-los em cada caso e seguir-lhes as prescrições. A

generalidade, abstração e capacidade de expansão dos princípios per-

mite ao intérprete, muitas vezes, superar o legalismo estrito e buscar

no próprio sistema a solução mais justa, superadora do summum jus,

summa injuria. Mas são esses mesmos princípios que funcionam como

limites interpretativos máximos, neutralizando o subjetivismo volun-

tarista dos sentimentos pessoais e das conveniências políticas, redu-

zindo a discricionariedade do aplicador da norma e impondo-lhe o

dever de motivar seu convencimento.

2. Princípio da supremacia da Constituição

Toda interpretação constitucional se assenta no pressuposto da supe-

rioridade jurídica da Constituição sobre os demais atos normativos no

âmbito do Estado. Por força da supremacia constitucional, nenhum ato

jurídico, nenhuma manifestação de vontade pode subsistir validamente se

for incompatível com a Lei Fundamental. Na prática brasileira, já de-

monstramos em outra parte, no momento da entrada em vigor de uma

nova Carta, todas as normas anteriores com ela contrastantes ficam

revogadas. E as normas editadas posteriormente à sua vigência, se

contravierem os seus termos, devem ser declaradas nulas. A supremacia

da Constituição manifesta-se, igualmente, em relação aos atos internacio-

nais que devam produzir efeitos em território nacional (v. supra).

O constitucionalismo moderno, como é sabido, surgiu no século XVIII,

contemporâneo ao advento do Estado liberal. Foi ele um dos principais

trunfos da burguesia no acerto de contas com a monarquia absoluta. De

fato, naquela fase do desenvolvimento capitalista, o velho regime se tornara

um empecilho ao casamento final - e, até aqui, indissolúvel - entre o

poder econômico e o poder político, vale dizer, à conquista do Estado

Page 146: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

pela burguesia. Ora bem: a idéia de supremacia constitucional tem seu

fundamento associado a dois relevantes conceitos elaborados naqueles

primórdios da ciência constitucional: a distinção entre poder constituin-

te e poder constituído, e entre Constituições rígidas e flexíveis.

15. Carlos Roberto de Siqueira Castro, Por um ensino crítico do direito constitucional,

in

Crítica do direito e do Estado, 1984, p. 138.

16. V. Segundo V. Linares Quintana, Derecho constitucional y instituciones políticas,

1981,

v. 1, p. 481: "... el principio de la supremacía de la Constitución, que descansa en el

presupuesto de

la distinción entre el poder constituyente y el poder constituido, inherente al sistema de las

constituciones rígidas".

17. V. José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, 1992, p. 47: "Da

rigidez

emana, como primordial conseqüência, o princípio da supremacia da constituição. (...)

Significa

que a constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e

que

todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção

por ela

distribuídos".

Coube ao padre Emmanuel Joseph Sieyès, autor do célebre opúsculo

Qu’est-ce que le Tiers État?, formula pela primeira vez a distinção

entre poder constituinte e poder constituído, bem como afirmar a superi-

oridade da Constituição. Remonta a essa obra a idéia da ausência de

limitação jurídica ao poder constituinte, que não sofre restrição alguma

do direito positivo anterior. "Acima dele só existe o direito natural". A

afirmação não encontra, modernamente, resistência de maior peso, sendo

endossada pela doutrina mais autorizada. A percepção de Sieyès quan-

to à dualidade poder constituinte e poder constituído, embora hoje se

afigure óbvia, representou um enfoque inteiramente novo do direito cons-

titucional. Ao constatar que uma Constituição supõe um poder constituin-

te, revelou-se que ela não é um dado mas uma criação.

18. Essa obra tem tradução para o português, publicada sob o título A Constituinte

burguesa.

O que é o Terceiro Estado, Rio de Janeiro, Liber Juris, 1986. Manoel Gonçalves Ferreira

Filho

sugere que "esse livro foi o manifesto da Revolução Francesa; está como manifesto para ela

assim

como está o de Marx para a Revolução Russa" (Direito constitucional comparado - o poder

constituinte, 1974, p. 12).

19. Sieyès, A Constituinte burguesa, cit., p. 117.

20. Vejam-se, por todos: Georges Burdeau, Traité de science politique, 1969, v. IV, p.

206;

Jorge Reinaldo Vanossi, Uma visão atualizada do poder constituinte, Revista de Direito

Constituci-

Page 147: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

onal e Ciência Política, 1:10, 1983, p. II; e José Alfredo de Oliveira Baracho, Teoria geral

do poder

constituinte, Revista Brasileira de Estudos Políticos, 52:7, 1981. Não conflita com essa

idéiaatese

de Otto Bachoff, veiculada em seu Normas constitucionais inconstitucionais?, 1994, que

adiante

se examinará em minúcia (v. infra).

21. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 98.

A dicotomia entre Constituição rígida e Constituição flexível, por

sua vez, não se confunde, mas se superpõe, em larga medida, com a

distinção entre Constituição escrita e não escrita. Diz-se flexível a Cons-

tituição cujo processo de reforma coincide com o modo de produção

da legislação ordinária, inexistindo diferença formal entre norma cons-

titucional e norma infraconstitucional. A identificação dessa categoria

tem hoje valor praticamente "arqueológico", haja vista que a quase-

totalidade dos regimes constitucionais adota o modelo de Carta escri-

ta e rígida.

22. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 151.

Já a rigidez constitucional traduz a necessidade de um processo

especial para reforma da Constituição, distinto e mais complexo do que

o necessário para a edição das leis infraconstitucionais, e que no caso

brasileiro incluem quorum eprocedimento diversos, além de limitações

materiais e circunstanciais (v. supra). Note-se que a distinção aqui feita

entre Constituição rígida e flexível funda-se no aspecto jurídico formal.

Sociologicamente, culturalmente, a Constituição inglesa, que tenderia a

ser flexível, dado o seu caráter não escrito, é, na prática, muito mais

rígida do que têm sido as Constituições brasileiras. Confirmando a

tese, veja-se que a Carta de 1988 já havia sofrido, em meados de 1999,

mais de vinte emendas, além de uma revisão constitucional que lhe

introduziu seis modificações.

23. Sobre o tema, vejam-se: o clássico de James Bryce, Flexible and rigid

Constitutions, in

Studies in history and jurisprudence, 1901; J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional,

cit., p.

151-2; Konrad Hesse, Concepto e cualidad de la Constitución, in Escritos de derecho

constitucio-

nal, 1983, p. 24-6. Entre nós, v. a celebrada obra de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello,

Teoria das

Constituições rígidas, 1980.

24. A este propósito, v. Afonso Arinos de Mello Franco, Curso de direito

constitucional

brasileiro, 1968, v. 1, p. 52.

Sistematizando, então, as idéias pertinentes, vai-se ver que a suprema-

cia da Constituição é tributária da idéia de superioridade do poder consti-

tuinte sobre as instituições jurídicas vigentes. Isso faz com que o produto

do seu exercício, a Constituição, esteja situado no topo do ordenamento

jurídico, servindo de fundamento de validade de todas as demais normas,

Page 148: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

conforme a teoria clássica já exposta (v. supra). Essa supremacia somente

se verifica onde exista Constituição rígida. Aliás, a rigidez interage. em

uma relação recíproca de causa e efeito, com outro fenômeno que contri-

bui para a primazia da ordem constitucional: a vocação maior de perma-

nência e estabilidade que acompanha a Lei Fundamental, em contraste

com a mutabilidade da legislação ordinária.

25. V. Eduardo García de Enterría, La Constitución como norma y el Tribunal

Constitu-

cional, 1991, p. 50: "... en la medida en que la Constitución es la expresión de una intención

fundacional, configuradora de un sistema entero que en ella se basa, tiene una pretensión de

permanencia... o duración..., lo que parece asegurarle una superioridad sobre las normas

ordinarias carentes de una intención total tan relevante y limitada a objetivos mucho más

concretos..".

Saindo do plano da teoria geral e das considerações metajurídicas, a

supremacia constitucional, em nível dogmático e positivo, traduz-se em

uma superlegalidade formal e material. A superlegalidade formal iden-

tifica a Constituição como a fonte primária da produção normativa, di-

tando competências e procedimentos para a elaboração dos atos

normativos inferiores. E a superlegalidade material subordina o conteú-

do de toda a atividade normativa estatal à conformidade com os princí-

pios e regras da Constituição. A inobservância dessas prescrições for-

mais e materiais deflagra um mecanismo de proteção da Constituição,

conhecido na sua matriz norte-americana como judicial review, e bati-

zado entre nós de "controle de constitucionalidade".

26. V. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 1979, p. 310, e J. J. Gomes Canotilho,

Direito

constitucional, cit., p. 141-2 e 972-3.

Tanto a afirmação da supremacia constitucional quanto a possibili-

dade de controle de constitucionalidade dos atos estatais encontram-se

historicamente ligadas ao direito constitucional norte-americano. Em

verdade, na afirmação de García de Enterría, a idéia de supremacia da

Constituição foi a mais importante criação do constitucionalismo nor-

te-americano, ao lado do sistema federativo, e foi sua grande inovação

em face da tradição inglesa. Com ela se afastou a doutrina da "sobera-

nia do Parlamento", exposta com autoridade por Blackstone pouco

antes da revolução americana, e que de certa forma perdura até hoje

no Reino Unido.

27. Mauro Cappelletti (O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito

compa-

rado, 1984, p. 46e s.), reconhecendo, embora, o caráter pioneiro e original da judicial

review como

contribuição do direito norte-americano, aponta a existência de precedentes de "supremacia

consti-

tucional" em outros e mais antigos sistemas jurídicos, como o ateniense e o medieval. Con-

clui, assim, o mestre de Florença que a meritória decisão do Chief Justice John Marshall,

que

Page 149: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

iniciou, na América e no mundo, algo de novo e de importante, foi um "ato amadurecido

através de

séculos de história: história não apenas americana, mas universal". No mesmo sentido,

Linares

Quintana, Derecho constitucional y instituciones políticas, cit., v. 1, p. 489 e s.

28. Eduardo García de Enterría, La Constitución como norma y el Tribunal

Constitucional,

cit., p. 50-3.

Veja-se que o controle judicial de constitucionalidade, que é a téc-

nica de atuação da supremacia da Constituição, não se encontrava explí-

cito na Constituição de 1787. De fato, o art. 6º, 2, do Texto, conhecido

como supremacy clause, dispunha tão-somente:

"Esta Constituição e as leis dos Estados Unidos elabo-

radas de acordo com ela, bem como os tratados celebrados

ou por celebrar sob a autoridade dos Estados Unidos, cons-

tituirão a suprema lei do País; os juízes de todos os Estados

ficam sujeitos a ela, não devendo prevalecer qualquer dis-

posição em contrário na Constituição de qualquer dos Es-

tados ou nas suas leis".

29. Stone, Seidman, Sunstein, Tushnet, Constitutional law, 1986, p. 28: "It is clear,

however,

that the supremacy clause itself cannot be the clear textual basis for a claim by the judiciary

that this

prerogative to determine the repugnancy (of an act to the Constitution) belongs to it" (É

claro, no

entanto, que a cláusula de supremacia por si só não pode ser a clara base textual para a

reivindica-

ção pelo Judiciário de que a ele compete a prerrogativa de determinar a incompatibilidade

de um

ato com a Constituição).

30. Art. VI, (2): "This Constitution, and the Laws of the United States which shall be

made in Pursuance thereof; and all Treaties made, or which shall be made, under the

authority

of the United States, shall be the supreme Law of the Land; and the Judges in every State

shall

be bound thereby, any Thing in the Constitution or Laws of any State to the Conlrary

notwithstanding".

Mas Alexander Hamilton, no Federalista n. 78, havia antecipado a

idéia de controle de constitucionalidade pelo Poder Judiciário, em texto

que se tornou clássico:

"Alguma perplexidade quanto ao poder dos tribunais

de pronunciar a nulidade de atos legislativos contrários à

constituição tem surgido, fundada na suposição de que tal

doutrina implicaria na superioridade do Judiciário sobre o

Legislativo. Afirma-se que a autoridade que pode declara

os atos da outra nulos deve ser necessariamente superior

àquela cujos atos podem ser declarados nulos. (...)

Page 150: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Nenhum ato legislativo contrário à Constituição pode

ser válido. (...)

A presunção natural, à falta de norma expressa, não

pode ser a de que o próprio órgão legislativo seja o juiz de

seus poderes e que sua interpretação sobre eles vincula os

outros Poderes. (...) É muito mais racional supor que os

tribunais é que têm a missão de figura como corpo inter-

mediário entre o povo e o Legislativo, dentre outras razões,

para assegurar que este último se contenha dentro dos po-

deres que lhe foram deferidos. A interpretação das leis é o

campo próprio e peculiar dos tribunais. Aos juízes cabe

determinar o sentido da Constituição e das leis emanadas

do órgão legislativo.

Esta conclusão não importa, em nenhuma hipótese, em

superioridade do Judiciário sobre o Legislativo. Significa,

tão-somente, que o poder do povo é superior a ambos; e

que onde a vontade do Legislativo, declarada nas leis que edi-

ta, situa-se em oposição à vontade do povo, declarada na

Constituição, os juízes devem curvar-se à última, e não à

primeira".

31. O Federalista (no original, The Federalist) reúne um conjunto de ensaios

numerados,

escritos por Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, publicados na imprensa de

Nova York

durante os debates sobre a ratificação da Constituição aprovada em 1787, pela Convenção

de Fila-

délfia. Tais textos explicavam o conteúdo da Constituição e defendiam sua ratificação. A

adesão do

Estado de Nova York era decisiva, e a ela se opunha o Governador do Estado, George

Clinton. V.

Gerald Gunther, Constitutional law, 1985 (com suplemento de 1988), p. 15.

32. Hamilton, Madison e Jay, The Federalist Papers, selecionados e editados do

original por

Roy Fairfield, 1981, p. 226 e s. O texto transcrito foi traduzido livremente pelo autor.

Sem qualquer menção expressa ao escrito de Hamilton, esta foi a

linha de entendimento seguida por John Marshall, Presidente (Chief

Justice) da Suprema Corte, ao relatar e decidir o caso Marbury vs.

Madison, em 1803, ao fundamentar aquela que é, provavelmente, a mais

célebre decisão judicial de todos os tempos, fundou-se ele nas razões

que a seguir se sintetizam:

"É evidentemente atribuição e dever do Poder Judiciá-

rio dizer o direito. E aqueles a quem compete aplicar uma

regra a casos concretos devem, necessariamente, interpre-

tar esta regra. Se duas leis conflitarem entre si, os tribunais

devem decidir sobre a incidência de cada uma.

Então, se uma lei estiver em oposição à constituição; se

ambas se aplicarem a um determinado caso, exigindo que o

Page 151: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

tribunal decida ou de acordo com a lei, sem atenção à cons-

tituição, ou na conformidade da constituição, sem atenção à

lei, cabe ao tribunal determinar qual destas regras conflitantes

se aplica ao caso. Esta é a essência da função judicial.

Se, então, os tribunais devem observar a constituição e

a constituição é superior a qualquer lei ordinária emanada

do Legislativo, a constituição, e não a lei ordinária, é que

deve reger o caso ao qual ambas se aplicam. (...)

Assim, a particular fraseologia da constituição dos Es-

tados Unidos confirma e fortalece o princípio, que se su-

põe essencial a todas as constituições escritas, de que toda

lei contrastante com a constituição é nula".

33. 5 U. S. (1 Cranch) 137 (1803).

A supremacia da Constituição e a missão atribuída ao Judiciário na

sua defesa têm um papel de destaque no sistema geral de freios e contra-

pesos concebido pelo constitucionalismo moderno como forma de con-

ter o poder. É que, através da conjugação desses dois mecanismos, reti-

ra-se do jogo político do dia-a-dia e, pois, das eventuais maiorias eleito-

rais, valores e direitos que ficam protegidos pela rigidez constitucional

e pelas limitações materiais ao poder de reforma da Constituição. Não

obstante o reconhecimento generalizado da valia de tal concepção, de

tempos em tempos ela precisa reafirmar suas virtudes.

Nos Estados Unidos tem-se travado, nos últimos anos, uma ampla

discussão sobre o controle de constitucionalidade pelo Judiciário e seus

limites. Sustenta-se que os agentes do Executivo e do Legislativo, além

de ungidos pela vontade popular, sujeitam-se a um tipo de controle e

responsabilização política de que os juízes estão isentos. Daí afirma-se

que o controle judicial da atuação dos outros Poderes dá lugar ao que se

denominou "countermajoritarian difficulty". Notadamente os segmentos

conservadores têm questionado o avanço dos tribunais sobre espaços

que, segundo crêem, deveriam ficar reservados ao processo político. Em

livro clássico, Alexander Bickel abordou o tema, procurando definir o

espaço de atuação do Judiciário, em passagem que ficou célebre:

"Os tribunais têm certa capacitação para lidar com ques-

tões de princípio que o Legislativo e o Executivo não pos-

suem. Juízes têm, ou devem ter, a disponibilidade, o trei-

namento e o distanciamento para seguir os caminhos da

sabedoria e isenção ao buscar os fins públicos. Isto é crucial

quando se trata de determinar os valores permanentes de

uma sociedade. Este distanciamento e o mistério maravi-

lhoso do tempo dão aos tribunais a capacidade de recorrer

aos melhores sentimentos humanos, captar as melhores as-

pirações, que podem ser esquecidos nos momentos de gran-

de clamor".

34. Alexander M. Bickel, The least dangerous branch, 1986, p. 25-6.

A recepção, na Europa, do sistema de jurisdição constitucional cria-

do nos Estados Unidos não se deu senão após o primeiro pós-guerra,

Page 152: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

já neste século. Obra pessoal de Hans Kelsen, ele foi introduzido na

Constituição austríaca de 1920 e aperfeiçoado em sua reforma de 1929.

O mecanismo adotado na Austria e, posteriormente, na maior parte

dos países da Europa continental foi o do controle concentrado, atri-

buído a um único órgão (o Tribunal Constitucional), em oposição ao

método difuso norte-americano, em que qualquer juiz pode recusar

aplicação de lei inconstitucional. No Brasil, como é notório, adota-se

um sistema eclético, onde coexistem o controle incidental pelo siste-

ma difuso e o controle direto, pelo sistema concentrado. A competência

para pronúncia de invalidade é privativa do Judiciário, não sendo legíti-

ma a invalidação de uma lei por outra superveniente. Este entendimento

é pacífico, materializando-se na proposição abaixo, extraída de decisão

do Supremo Tribunal Federal:

"Em nosso sistema jurídico, não se admite declaração de

inconstitucionalidade de lei ou ato normativo com força de lei

por lei ou por ato normativo com força de lei posteriores. O

controle de constitucionalidade da lei ou dos atos normativos

é da competência exclusiva do Poder".

35. Para uma análise concisa, mas proficiente, dos modelos austríaco, alemão, italiano,

francês

e espanhol, v. Louis Favoreu, Les cours constitutionnelles, 1986. Em língua portuguesa,

veja-se José

Alfredo de Oliveira Baracho, Processo constitucional, 1984, p. 191-344, contendo a análise

dos mo-

delos europeu, norte-americano e latino-americano. O livro clássico de Mauro Cappelletti,

Il controllo

giudiziario di costituzionalità della leggi nel diritto comparato, 1968, tem uma versão para a

língua

portuguesa (O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado, 1984).

36. José Carlos Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil, 1993, v.

5, p.

28. Vejam-se, por todos, no direito brasileiro: C. A. Lúcio Bittencourt, O controle

jurisdicional da

constitucionalidade das leis, 1968; Alfredo Buzaid, Da ação direta de declaração de

inconstitucionalidade no direito brasileiro, 1958; e Ronaldo Poletti, Controle da

constitucionalidade

das leis, 1985. Dentre os trabalhos posteriores à promulgação da Constituição de 1988,

vejam-se,

especialmente, Carlos Mário da Silva Velloso, O controle da constitucionalidade das leis, in

Temas

de direito público, 1994, e Gilmar Ferreira Mendes, Controle de constitucionalidade, 1990.

Mais

recente ainda é a impecável tese de Clèmerson Merlin Clêve, A fiscalização abstrata de

constitucionalidade no direito brasileiro, 1995.

36-A. RTJ, 151:331, 1995, ADIn 221-DF, rel. Min. Moreira Alves.

Embora a idéia de supremacia da Constituição esteja ínsita em todos

os casos de controle de constitucionalidade, vez por outra a jurisprudência

Page 153: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

do Supremo Tribunal Federal reserva-lhe menção expressa. Confira-se

acórdão da lavra do Ministro Célio Borja, remarcando os conceitos dou-

trinários básicos:

"O princípio da supremacia da ordem constitucional -

consectário da rigidez normativa que ostentam os preceitos

de nossa Constituição - impõe ao Poder Judiciário, qual-

quer que seja a sede processual, que se recuse a aplicar leis

ou atos estatais reputados em conflito com a Carta Federal.

A superioridade normativa da Constituição traz, ínsita

em sua noção conceitual, a idéia de um estatuto fundamen-

tal, de uma fundamental law, cujo incontrastável valor ju-

rídico atua como pressuposto de validade de toda a ordem

positiva instituída pelo Estado".

37. RTJ, 140:954, 1992, p. 964, RE 107.869, rel. Min. Célio Borja. Veja-se, também,

RTJ,

146:461, 1993, ADIn 652-MA, rel. Min. Celso de Mello: "O repúdio ao ato

inconstitucional decorre, em essência, do princípio que, fundado na necessidade de pre-

sentar a unidade da ordem jurídica nacional, consagra a supremacia da Constituição.

Esse postulado fundamental de nosso ordenamento normativo impõe que preceitos re-

vestidos de menor grau de positividade jurídica guardem, necessariamente, relação de

conformidade vertical com as regras inscritas na Carta Política, sob pena de ineficácia e

de conseqüente inaplicabilidade".

Mais adiante, o Supremo Tribunal, ao negar a possibilidade de

reedição de medida provisória rejeitada pelo Congresso, reafirmou, em

acórdão unânime:

"Todos os atos estatais que repugnem à Constituição

expõem-se à censura jurídica - dos Tribunais especial-

mente - porque são írritos, nulos e desvestidos de qual-

quer validade.

A Constituição não pode submeter-se à vontade dos po-

deres constituídos e nem ao império dos fatos e das circuns-

tâncias. A supremacia de que ela se reveste - enquanto for

respeitada - constituirá a garantia mais efetiva de que os

direitos e as liberdades não serão jamais ofendidos. Ao Su-

premo Tribunal Federal incumbe a tarefa, magna e eminen-

te, de velar por que essa realidade não seja desfigurada".

38. RT, 700:221, 1994, ADIn 293-7/600, rel. Min. Celso Mello.

Ainda no âmbito da supremacia da Lei Maior, o Superior Tribunal

de Justiça apreciou a questão envolvendo o art. 37, VII, da Constituição

Federal, que, ao cuidar da administração pública, previu que o direito de

greve dos servidores civis seria exercido nos termos e nos limites defini-

dos em lei complementar - hoje lei específica, nos termos da redação

dada pela Emenda Constitucional n. 19/98. Passados quatro anos de vi-

gência da Constituição, a norma infraconstitucional não havia ainda sido

editada. Admitir-se que o direito de greve não poderia ser exercido, ante

a inércia indefinida do legislador, violaria o princípio da supremacia da

Constituição, uma vez que o direito por ela outorgado ficaria paralisado

Page 154: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

por omissão de órgão do poder instituído. Daí haver concluído, com

acedo, o Tribunal que:

"A Constituição da República garante o direito de gre-

ve aos funcionários públicos, "nos limites definidos em lei

complementar" (art. 37, VII). Essa legislação não poderá

recusar a paralisação da atividade, essência da greve, uni-

versalmente reconhecida. Além disso, são passados quatro

anos de vigência da Carta Política. O legislador mantém-

se inerte. Esses dois dados conferem legalidade ao exercí-

cio do direito, observando-se, analogicamente, princípios

e leis existentes. Caso contrário, chegar-se-ia a um absur-

do: a eficácia da Constituição depende de norma hierarqui-

camente inferior".

39. RT, 700:185, 1993, RMS 2.865-3-SC, rel. Min. Vicente Cernicchiaro. Em sentido

diverso

pronunciou-se o Tribunal de Justiça da Paraíba: "O direito de greve dos servidores

públicos, insculpido

no art. 37, VII, da CF/88, é meramente potencializado, norma programática, de eficácia

contida e

aplicabilidade invalidante, que, por depender de lei complementar para regulá-la, não pode

ser

exercido por seus destinatários" (RT, 701:142, 1994).

Não sem causar certa decepção, o Supremo Tribunal Federal

perfilhou linha diversa, no julgamento de mandado de injunção impetrado

pela Confederação dos Servidores Públicos do Brasil a propósito da omis-

são legislativa do Congresso em editar a norma reclamada pelo art. 37,

VII. Embora acolhendo o mandado de injunção para o fim de reconhe-

cer a mora do Congresso Nacional e determinar a ciência formal do

Poder Legislativo para que sanasse a inércia até então verificada, lavrou

o acórdão, da relatoria do Ministro Celso de Mello:

"Direito de greve do servidor público civil - (...) Prer-

rogativa jurídica assegurada pela Constituição (art. 37, VII)

- Impossibilidade de seu exercício antes da edição de Lei

Complementar".

40. LTr, 58:647, 1994, MI 20-4-DF, rel. Min. Celso de Mello. Na nova redação dada

ao art. 37,

VII, pela Emenda Constitucional n. 19/98, a previsão passou a ser de edição de "lei

específica" e

não mais de lei complementar, fato que não interfere com o entendimento do Supremo

Tribunal

Federal de que é necessária a interpositio legislatoris para que o direito possa ser exercido.

Retratou-se, assim, a doutrina e algumas aplicações práticas do prin-

cípio da supremacia da Constituição, que, do ponto de vista lógico e

cronológico, é o primeiro princípio a ser levado em conta no processo

intelectivo da interpretação constitucional.

3. Princípio da presunção de constitucionalidade das leis e dos

Page 155: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

atos do Poder Público

A interpretação constitucional é atividade desenvolvida pelos três

poderes no âmbito do Estado. Idealmente, todos os órgãos públicos pau-

tam sua conduta na conformidade da Constituição e agem na realização

do bem comum. Embora se haja reservado ao Judiciário o papel de in-

térprete qualificado das leis, os Poderes se situam em plano de recíproca

igualdade, e os atos de cada um deles nascem com presunção de validade.

Mais que isso: nenhum Poder, nem mesmo o Judiciário, pode intervir

em esfera reservada ao outro para substituí-lo em juízos de conveniência

e oportunidade. Vejam-se, a seguir, o fundamento, o conteúdo e as impli-

cações práticas do princípio da presunção de constitucionalidade das leis.

Um dos fundamentos sobre os quais se assenta o Estado constitucional

de direito é a divisão ou separação dos Poderes. Seu antecedente mais

remoto, na modernidade, foi o processo revolucionário que conduziu à afir-

mação do Parlamento em face do monarca, na Inglaterra, com a edição do

Bill of Rights, em 1689. Sua sacramentalização, por outro lado, se deu

com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, em

meio ao turbulento processo revolucionário francês. Mas foi a Constitui-

ção americana, de 1787, que pela primeira vez formalizou o modelo

empiricamente colhido na experiência inglesa e teoricamente elaborado

por autor francês, dando-lhe o temperamento dos checks and balances

(freios e contrapesos), pelo qual se estabeleceram áreas de interseção e de

controle recíproco entre Legislativo, Executivo e Judiciário.

41. Sem embargo da terminologia consagrada, a doutrina é unânime em apontar a

impropri-

edade da referência à separação ou divisão de Poderes. O poder, estatal e soberano, é uno,

manifes-

tando-se, no entanto, por intermédio de órgãos diversos, que desempenham cada uma das

funções

públicas. V., por todos, Michel Temer, Elementos de direito constitucional, 1990, p. 116.

42. O princípio da separação de Poderes, já sugerido em Aristóteles, deve sua primeira

for-

mulação nos tempos modernos a John Locke, em sua obra célebre Two treatises of

government

1690). Não obstante, seu principal sistematizador foi, sem dúvida, Montesquieu, no

capítulo 6º do

livro XI de seu notório tratado De l’esprit des lois (1748) (há uma edição brasileira dessa

obra,

publicada em 1987). Vejam-se, sobre o tema, por todos, Marcelo Caetano, Direito

constitucional,

1987, v. 1, p. 232-5, e Nowak, Rotunda e Young, Constitutional law, 1986, p. 121.

43. Assim dispunha o art. 16 da Declaração francesa: "Toute société dans laquelle la

garantie

des droits n’est pas assurée, ni la séparation des pouvoirs déterminée, n’a pas de

constitution" (Toda

sociedade em que a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação de Poderes

determina-

Page 156: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

da, não tem constituição).

44. As quatro pedras fundamentais do constitucionalismo americano, escreveu Cass R.

Sunstein, são o sistema de checks and balances, o federalismo, os direitos individuais e o

controle de constitucionalidade (The partial Constitution, 1993, p. V).

Embora viva, nesta virada de século, um momento crucial, entre a

decadência e a necessidade de reformulação, o princípio da separação

de Poderes subsiste como uma valiosa referência para a interpretação

constitucional, definindo papéis e estabelecendo limites. Caracteri-

zam-no a especialização funcional e a independência orgânica, que não

se contrapõem, no entanto, à circunstância de que cada Poder não exer-

ce, de modo exclusivo, a função que nominalmente lhe corresponde, e

sim tem nela a sua competência principal e predominante. A função

legislativa, escreveu Seabra Fagundes, liga-se ao fenômeno de criação

do direito, ao passo que as funções administrativa e judicial se prendem

à sua realização. Legislar é editar o direito positivo; administrar é apli-

car a lei de oficio; e julgar é aplicar a lei contenciosamente.

45. Para uma visão crítica do princípio, veja-se, na literatura nacional: Victor Nunes

Leal, A

divisão dos Poderes no quadro da burguesia, in Cinco estudos, 1955; José Alfredo de

Oliveira

Baracho, Processo constitucional, 1984, p. 26 e s.; Paulo Bonavides, Do Estado liberal ao

Estado

social, 1961, p. 36; e Carlos Roberto de SiqueiraCastro, O Congresso e as delegações

legislativas,

1986,p. 193.

46. V. M. Seabra Fagundes, O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário,

1979, p.

7-8, e Celso Ribeiro Bastos, Curso de teoria do Estado e ciência política, 1986, p. 79.

47. M. Seabra Fagundes, O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário,

cit.,

p. 4-5.

Ao Poder Judiciário cabe prestar jurisdição, que é a atividade estatal

destinada a fazer atuar o direito objetivo, promovendo a tutela dos interes-

ses violados ou ameaçados. A função jurisdicional é, tipicamente, de res-

tauração da ordem jurídica quando vulnerada, e destina-se à formulação e

à atuação prática da norma concreta que deve disciplinar determinada situa-

ção. O seu exercício pressupõe, assim, um conflito, uma controvérsia

em torno da realização do direito, e visa a removê-lo pela definitiva e

obrigatória interpretação da lei.

48. V. Paolo Biscaretti di Ruffia, Direito constitucional, 1984, p. 420, e José Alfredo

de Oli-

veira Baracho, Processo constitucional, cit., p. 139.

49. José Carlos Barbosa Moreira, O novo processo civil brasileiro, 1993, p. 3. Por

vezes a

atividade jurisdicional antecipa-se à violação da regra legal, como ocorre na tutela

preventiva e na

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tutela cautelar. A Lei n. 8.951, de 13-12-1994, alterou o art. 273 do Código de Processo

Civil,

criando o mecanismo que ficou conhecido como tutela antecipada ou antecipatória.

50. M. Seabra Fagundes, O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário,

cit., p.

11. Na esteira do ensinamento de Georges Burdeau (Traité de science politique, 1970, t. 5,

p. 379)

e Hans Kelsen (Teoría general del Estado, 1965, p. 301), é de se reconhecer não existir

diferença

ontológica entre a função jurisdicional e a função administrativa, por isso que ambas se

voltam para

a realização do direito, ao passo que a função legislativa se liga à sua criação. Distinguem-

se, no

entanto, as duas primeiras, pela forma com que são acionadas e pelo momento e finalidade

de seu

exercício.

O esquema delineado acima é amplo o suficiente para abrigar a atua-

ção desenvolvida pelo Judiciário quando realiza o controle de constitu-

cionalidade em via incidental. Isso porque, nessa forma de controle, que

se faz de modo difuso, o juiz atua para solucionar um caso concreto que

lhe é submetido, consistindo a apreciação da constitucionalidade ou não

da norma em mera questão prejudicial, que vai subordinar logicamente

a decisão a ser proferida. Mas o objeto da ação não é a pronúncia de

inconstitucionalidade da norma, e sim a solução do conflito de interes-

ses. A decisão opera efeito somente entre as partes do processo, e a

questão da constitucionalidade não faz coisa julgada.

51. Suponha-se, por exemplo, que um contribuinte embargue uma execução fiscal, sob

o

fundamento de que a cobrança de dado tributo é inconstitucional. O objeto da ação de

embargos, a

ser decidido pelo juiz, é determinar se o tributo é ou não devido. Só que, para chegar a tal

resultado,

o juiz precisará, previamente,prejudicialmente, apurar da constitucionalidade ou não da

norma que

instituiu o tributo. Sobre o tema da argüição incidental de inconstitucionalidade, v. José

Carlos

Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil, 1993, p. 27 e s.

52. Isto porque, como se disse, a manifestação do órgão judicial sobre a

constitucionalidade

da norma é "questão prejudicial", e a apreciação de questão dessa natureza, decidida

incidentemente

no processo, não faz coisa julgada, a teor do art. 469, III, do Código de Processo Civil.

Se o controle incidental e difuso pode enquadrar-se na função típica

do Judiciário, o fato é que o controle de constitucionalidade em via princi-

pal certamente refoge ao exercício típico da jurisdição. Nessa hipótese,

referida na Constituição como ação direta (art. 102, I, a), o controle se

exerce de modo concentrado e em tese, in abstracto, tendo por objeto a

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apreciação da compatibilidade da norma com a Constituição. Não se

cuida, como no normal da atuação do Judiciário, de solucionar um caso

concreto, um conflito de interesses entre partes. Aqui, constatada a in-

compatibilidade da norma com a Lei Maior, a conseqüência é a parali-

sação de sua eficácia e eventual retirada do mundo jurídico. A doutrina

costuma referir-se a tal papel como o desempenho de uma atividade

legislativa negativa.

53. Para uma ampla discussão da matéria no pensamento de Kelsen, Carl Schmitt e

Rudolph

Smend, v. José Antonio Estévez Araujo, La Constitución como proceso y la desobediencia

civil,

1994, p. 51 e s. Na jurisprudência brasileira existe acórdão da Suprema Corte, da lavra do

Min.

Moreira Alves, na Rep. n. 1.417, no qual invocou o magistério de Ritterspach (Legge sul

Tribunale

Costituzionale della Repubblica Federale di Germania, p. 94): "Ao declarar a

inconstitucionalidade

de uma lei em tese, o Tribunal - em sua função de Corte Constitucional - atua como um

legisla-

dor negativo" (DJU, 4 set. 1987, p. 18302-6).

A declaração de inconstitucionalidade de uma norma, em qualquer

caso, é atividade a ser exercida com autolimitação pelo Judiciário, devi-

do à deferência e ao respeito que deve ter em relação aos demais Pode-

res. A atribuição institucional de dizer a última palavra sobre a interpre-

tação de uma norma não o dispensa de considerar as possibilidades legí-

timas de interpretação pelos outros Poderes. No tocante ao controle de

constitucionalidade por ação direta, a atuação do Judiciário deverá ser

ainda mais contida. É que, nesse caso, além da excepcionalidade de

rever atos de outros Poderes, o Judiciário desempenha função atípica,

sem cunho jurisdicional, pelo que deve atuar parcimoniosamente.

A presunção de constitucionalidade das leis encerra, naturalmente,

uma presunção iuris tantum, que pode ser infirmada pela declaração em

sentido contrário do órgão jurisdicional competente. O princípio de-

sempenha uma função pragmática indispensável na manutenção da

imperatividade das normas jurídicas e, por via de conseqüência, na har-

monia do sistema. O descumprimento ou a não-aplicação da lei, sob o

fundamento de inconstitucionalidade, antes que o vício haja sido pro-

clamado pelo órgão competente, sujeita a vontade insubmissa às san-

ções prescritas pelo ordenamento. Antes da decisão judicial, quem sub-

trair-se à lei o fará por sua conta e risco.

54. O princípio é tradicionalmente reconhecido no direito brasileiro. Vejam-se, a

propósito:

Castro Nunes, Teoria e prática do Poder Judiciário, 1943, p. 589-92; Carlos Maximiliano,

Comen-

tários à Constituição brasileira, 1948, v. 1, p. 157; Themístocles Brandão Cavalcanti, Do

controle

de constitucionalidade, 1966, p. 85; Lúcio Bittencourt, O controle jurisdicional da

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constitucionalidade das leis, 1968, p. 91-2 e 113-4; e Ronaldo Poletti, Controle de

constitucionalidade

das leis, 1985, p. 101 e s. Marcelo Neves (Teoria da inconstitucionalidade das leis, 1988, p.

145)

constatou que Mauro Cappelletti se manifesta contrariamente à existência dessa presunção

no

ordenamento italiano (La pregiudizialità costituzionale nel processo civile, 1972, p. 85-6) e,

prin-

cipalmente, nos sistemas de controle difuso (O controle judicial de constitucionalidade no

direito

comparado, 1984, p. 85). Entre nós, Lúcio Bittencourt critica o princípio, afirmando que

com ele se

quer significar, desnecessariamente, "que as leis não têm eficácia dependente de prévia

apreciação

pelo Poder Judiciário" (O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis, cit., p. 114).

A

crítica não procede, constatando-se, da leitura do texto, que o ilustre jurista confundiu o

princípio

da presunção de constitucionalidade com o da auto-executoriedade.

55. V. Marcelo Neves, Teoria da inconstitucionalidade das leis, cit., p. 146-7, e

Oswaldo

Aranha Bandeira de Mello, A teoria das Constituições rígidas, cit., p. 140.

Em sua dimensão prática, o princípio se traduz em duas regras de

observância necessária pelo intérprete e aplicador do direito:

a) não sendo evidente a inconstitucionalidade, havendo dúvida ou a

possibilidade de razoavelmente se considerar a norma como válida, deve

o órgão competente abster-se da declaração de inconstitucionalidade;

b) havendo alguma interpretação possível que permita afirmar-se a

compatibilidade da norma com a Constituição, em meio a outras que

carreavam para ela um juízo de invalidade, deve o intérprete optar pela

interpretação legitimadora, mantendo o preceito em vigor.

56. Sobre o tema, escreveu Carlos Maximiliano (Hermenêutica e aplicação do direito,

1981,

p. 307): "Todas as presunções militam a favor da validade de um ato, legislativo ou

executivo;

portanto, se a incompetência, a falta de jurisdição ou a inconstitucionalidade, em geral, não

estão

acima de toda dúvida razoável, interpreta-se e resolve-se pela manutenção do deliberado

por qual-

quer dos três ramos em que se divide o Poder Público. Entre duas exegeses possíveis,

prefere-se a

que não infirma o ato de autoridade".

A primeira regra será aprofundada, com o aporte da doutrina e ju-

risprudência comparada e nacional. A segunda, que a doutrina denomi-

na interpretação conforme a Constituição, será desenvolvida autonoma-

mente, em tópico subseqüente.

Foi visto, anteriormente, que a possibilidade de controle judicial dos

Page 160: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

atos dos Poderes Legislativo e Executivo deita raízes no constitucionalis-

mo norte-americano. De fato, foi em Marbury vs. Madison, uma deci-

são de 1803, que, pela primeira vez, um tribunal pronunciou a

inconstitucionalidade de uma lei, dando início à primazia que até hoje

se reconhece ao Judiciário de intérprete qualificado e definitivo da Cons-

tituição. É bem de ver, no entanto, que o constitucionalismo americano,

que criou o precedente do controle judicial, cuidou igualmente de traçar

uma série de limitações rigorosas ao seu exercício. Daí a razão de,

após a decisão em Marbury, haverem-se passado mais de 50 anos até

que a Suprema Corte voltasse a declarar a inconstitucionalidade de

uma lei editada pelo Congresso.

57. Houve, todavia, um precedente de declaração de inconstitucionalidade de lei

estadual, em

Fletcher vs. Peck, 6 Cranch 87 (1810), embora a doutrina do controle de

constitucionalidade das

decisões estaduais só houvesse sido desenvolvida em Martin vs. Hunter’s Lessee, 1 Wheat

304 (1816).

Curiosamente, só voltou a fazê-lo em Dred Scott vs. Sandford, jul-

gado em 1857, onde tinha argumentos para deixar de conhecer o caso,

mas preferiu pronunciar a mais condenada de todas as decisões do

constitucionalismo americano. Nela, a Suprema Corte considerou se-

rem inconstitucionais tanto as leis estaduais quanto as federais que pre-

tendessem conferir cidadania aos negros, que eram vistos como seres

inferiores e não tinham proteção constitucional. Com isso, a Suprema

Corte tomou partido no amplo debate jurídico e econômico que pouco à

frente deflagraria violenta guerra civil, e alinhou-se com a defesa da

escravidão. Muitos anos se passaram até que o Tribunal recuperasse sua

autoridade moral e política.

58.60 U. S. (19 How.) 393 (1857). A Suprema Corte tinha argumentos para dar-se por

incom-

petente ou para discutir a questão apenas em termos da aplicação da lei do Estado do

Missouri, sem

precisar ingressar no mérito do tema constitucional (v. Nowak, Rotunda e Young,

Constitutional

law, cit., p. 559).

59. Nowak, Rotunda e Young, Constitutional law, cit., p. 559.

Consoante se averbou acima, a prática constitucional americana im-

pôs uma série de limitações ao exercício da judicial review. Algumas

dessas restrições têm base direta e imediata no próprio texto da Consti-

tuição, ao passo que outras são frutos de elaboração doutrinária e

jurisprudencial, algumas delas fundadas em juízos relativamente discri-

cionários de conveniência e oportunidade. Dentre as limitações expres-

samente contempladas na Constituição está a que exige, para o exercí-

cio da jurisdição constitucional, que se trate de situação litigiosa mani-

festada em caso concreto (case or controversy), vedado o pronuncia-

mento em tese (no advisory opinion).

Page 161: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

60. A caracterização do que seja "caso" ou "controvérsia" foi feita em inúmeros casos

pela

Corte, encontrando-se esquematicamente delineada, e. g., em Muskrat vs. United States,

219 U. S.

346(1911). O dispositivo relevante na matéria é o art. 3º, seção 2, n. 1, da Constituição,

onde se lê: "a

competência do Poder Judiciário se estenderá a todos os casos de aplicação da Lei e da

Eqüidade

ocorridos sob a presente Constituição, as leis dos Estados Unidos e os tratados concluídos

ou que se

concluírem sob sua autoridade; a todos os casos que envolvam embaixadores, outros

ministros e côn-

sules; a todas as questões de direito e jurisdição marítimos; às controvérsias em que os

Estados Unidos

sejam parte; às controvérsias entre dois ou mais Estados, entre um Estado e cidadãos do

outro Estado,

entre cidadãos de diferentes Estados, entre cidadãos do mesmo Estado reivindicando terras

em virtude

de concessões feitas por outros Estados, entre um Estado, ou seus cidadãos, e Estados

estrangeiros,

seus cidadãos e súditos".

Como desdobramento da exigência do "caso" ou "controvérsia" do

art. 3º, a jurisprudência da Suprema Corte desenvolveu uma série de

limitações quanto a quem pode suscitar a jurisdição constitucional, quando

ela deve ser exercida e quais casos podem ser apreciados. No tocante a

quem pode demandar invocando uma questão constitucional, a Corte es-

tabeleceu rigorosa aferição da legitimação ativa (standing), onde se in-

clui a verificação da existência de dano efetivo (injury in fact) e nexo

causal (causation). Relativamente à oportunidade, a Suprema Corte

desenvolveu as teses da prejudicialidade (mootness) - o Tribunal não

se pronuncia quando alguma circunstância superveniente, de fato ou de

direito, torna desnecessária sua manifestação sobre a questão constitucio-

nal - e da prematuridade (ripeness) - o Tribunal não se pronuncia

quando entende que a questão constitucional ainda não se encontra sufi-

cientemente amadurecida, por estarem os fatos em andamento ou por

haver a possibilidade de que eventos futuros modifiquem sua configura-

ção jurídica. Por fim, quanto às matérias que podem ser objeto de litígio

de índole constitucional, a Suprema Corte cuidou de excluir as questões

políticas66 e as questões emanadas de cortes estaduais onde a decisão,

sem embargo de haver-se manifestado sobre questão constitucional,

assentou-se, também, em fundamento adequado e autônomo de cará-

ter ordinário.

61. V. Jerome A. Barron e C. Thomas Dienes, Constitutional law, 1991, p. 72.

62. V. Warth vs. Seldin, 422 U. S. 490(1975).

63. V.Allen vs. Wright, 468 U. S.737(1984).

64. V. DeFunis vs. Odegaard, 416 U. S.312(1974).

Page 162: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

65. V. Abbot Laboratories vs. Gardner, 387 U. S. 136 (1967). Nowak, Rotunda e

Young

(Constitutional law, cit., p. 66-7), ao comentarem a doutrina do ripeness, nela identificam o

funda-

mento invocado pela Suprema Corte para um conjunto de decisões que nãu apresentam

uma nítida

linha de coerência, nas quais se revela apenas o desejo do Tribunal de abster-se de julgar.

Sobre o

tema, v. também Laurence Tribe, American constitutional law, 1988, p. 77-82.

66. V. Baker vs. Carr, 369 U. S. 186 (1962). Veja-se, mais recentemente, Nixon vs.

United

States, 113S. Ct. 732 (1993).

67. V. Herb vs. Pitcarin, 324 U. S. 117 (1945), Michigan vs. Long, 463 U. S. 1032

(1983),

Pennzoil Co. vs. Texaco, 107 S. Ct. 1519 (1987).

Demais disso, a Suprema Corte também estabeleceu uma série de

regras pelas quais se impõe o dever de evitar decisões de cunho consti-

tucional, sempre que isso seja possível, mesmo quando presentes os

requisitos para a apreciação da matéria. Assim é que, em Ashwander vs.

TVA, em voto célebre do Justice Brandeis, ficou assentado que o Tri-

bunal deverá abster-se de exercer a jurisdição constitucional: (1) se não

for indispensável adentrar a questão constitucional; (2) se houver funda-

mentos alternativos para decidir; (3) se for razoavelmente possível inter-

pretar uma lei evitando a questão constitucional; (4) em termos mais am-

plos do que exigido pelos fatos que estão sendo objeto de julgamento.

68. 297 U. S. 288 (1936). O princípio geral foi assentado no voto condutor nos termos

se-

guintes: "When the validity of an act of Congress is drawn in question, and even if a serious

doubt

of constitutionality is raised, it is a cardinal principle that this Court will first ascertain

whether a

construction of the statute is fairly possible by which the question may be avoided"

(Quando a

validade de um ato do Congresso é trazida à baila, e mesmo que se suscite uma séria dúvida

quanto

à sua constitucionalidade, é um princípio cardeal que esta Corte irá primeiramente

certificar-se se

existe alguma interpretação razoavelmente possível que possa evitar a questão

constitucional). V.

também Rescue Army vs. Municipal Court, 331 U. S. 549(1947).

69. Vejam-se Paul Brest e Sanford Levinson, Processes of constitutional

decisionmaking, 1983,

p. 1025-8; Nowak, Rotunda e Young, constitutional law, cit., p. 86-7; e Gerald Gunther,

Constitutional

law, cit., p. 1597-8.

É interessante a observação de que o princípio da presunção de

constitucionalidade é mais referido e homenageado quando não vai ser

Page 163: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

seguido do que quando vai ser observado e aplicado. Na prática juris-

prudencial americana há uma hipótese em que ele não prevalece: quando,

contrastado com o princípio constitucional da igualdade perante a lei, um

ato normativo se utilizou de classificações que a jurisprudência considera

suspeitas. São consideradas suspeitas, por exemplo, as que se fundam

em critério racial ou de origem nacional. Nesse caso, a norma sujeita-se

a uma avaliação severa (strict scrutiny), onde a presunção de validade se

transforma em presunção de invalidade, cabendo ao Governo (seja o

Legislativo ou o Executivo) o ônus de demonstrar que a classificação é

necessária e inevitável para realização de um relevante fim público.

70. Barron e Dienes, Constitutional law, 1991, p. 71.

71. Barron e Dienes, Constitutional law, cit., p. 20-1. A idéia de strict scrutiny é a de

uma advertência a legisladores e administradores para que sejam especialmente atentos às

classificações que afetam direitos fundamentais ou sugiram discriminação racial ou contra

outras minorias. Em apenas um caso a Suprema Corte considerou constitucional uma

classifi-

ação ostensivamente suspeita: foi a que discriminava contra japoneses, impondo-lhes restri-

ções de locomoção, durante a 2ª Guerra Mundial. V. Korematsu vs. United States, 323 U.

S.

14(1944). V. também, a este propósito, Laurence Tribe, American constitutional law, cit.,

p.

1451-2.

Na Alemanha, o princípio da presunção de constitucionalidade tem-

se diluído no da interpretação conforme a Constituição. Na França, à

luz da Carta em vigor, não há sentido em invocá-lo, tendo em vista que

o Conselho Constitucional, quando lhe cabe manifestar-se, atua previa-

mente à vigência da lei, inexistindo controle de constitucionalidade a

posteriori. Na Espanha, embora a ênfase recaia na versão da interpre-

tação conforme a Constituição, há referência expressa ao princípio da

presunção de constitucionalidade, que é irmanado ao princípio da con-

servação da norma. De acordo com a doutrina espanhola, o princípio

implica (a) uma manifestação de confiança no legislador e em sua cor-

reta interpretação dos princípios constitucionais; (b) a impossibilidade

de declarar-se a inconstitucionalidade de uma norma, salvo quando não

existir "dúvida razoável" sobre sua contrariedade à Constituição; (c) a

presunção, sempre que seja "razoavelmente possível", de que, dentre

várias interpretações admissíveis, o legislador quis inclinar-se pela que

possibilita a manutenção da norma dentro dos limites constitucionais.

72. Friesenhahn, La giurisdizione costituzionale nella Repubblica Federale tedesca,

1973, p.

92: "Na Alemanha se deve presumir que uma lei seja compatível com a Lei Fundamental e

o

princípio expresso nessa presunção requer, na dúvida, uma interpretação conforme à

Constituição"

(apud Rep. n. 1 .417-7-DF, rel. Min. Moreira Alves, RT- CDC e CP, 1:314, 1992). V.,

infra, ampla

referência à doutrina e jurisprudência alemãs na matéria.

Page 164: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

73. Sobre a composição e atribuições do Conseil Constitutionnel, v. Constituição

france-

sa, arts. 56 e s., especialmente o art. 61, que prevê: "Art. 61. As leis orgânicas, antes da

promulgação, e os regimentos das duas Câmaras do Parlamento, antes de começarem a ser

aplicados, devem ser submetidos ao Conselho Constitucional a fim de este se pronunciar

so-

bre a sua conformidade com a Constituição. Para o mesmo efeito, as leis podem, antes da

promulgação, ser submetidas ao Conselho Constitucional...". Sobre o tema, no direito

francês

mais recente, v. Bernard Chantebout, Droit constitutionnel et science politique, 1991, p.

574 e

S., Debbasch, Bourdon, Pontier e Ricci, Droit constitutionnel et institutions politiques,

1990,

p. 573 e s. Sobre a atuação concreta do Conselho, v. Louis Favoreu e Loïc Philip, Les

grandes

décisions du Conseil Constitutionnel, 1991. Mais adiante far-se-á referência à proposta de

introdução do controle constitucional a posteriori no direito francês, constante de trabalho

elaborado por comissão designada pelo Presidente da República, sob a presidência de

Georges

Vedel (v. Propositions pour une révision de la Constitution - 15février 1993, Rapport au

président de la République).

74. V. Eduardo García de Enterría, La Constitución como norma y el Tribunal Consti-

tucional, cit., p. 96, e Francisco Fernandez Segado, El sistema constitucional español, 1992,

p.80.

No Brasil, e de longa data, o princípio tem sido afirmado, assim

pela doutrina como pela jurisprudência, que já assentou que a dúvida

milita em favor da lei, que a violação da Constituição há de ser mani-

festa e que a inconstitucionalidade nunca se presume. É igualmente

vetusta a convicção de que, entre exegeses possíveis, prefere-se a que

não infirme o ato de autoridade. A propósito, a doutrina e a jurispru-

dência brasileiras têm explorado alguns aspectos conexos ao princípio

da presunção de validade dos atos emanados do Poder Público. Uma

questão recorrente é a que diz respeito à possibilidade de o Poder Exe-

cutivo - a rigor, de qualquer Poder - deixar de aplicar lei que seus

órgãos de decisão reputem inconstitucional. Na vigência da Constitui-

ção anterior, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal se inclinara

pela afirmativa, como se vê na decisão proferida na Representação n.

980-SP, de que foi relator o Ministro Moreira Alves:

"Não tenho dúvida em filiar-me à corrente que sustenta

que pode o Chefe do Poder Executivo deixar de cumprir -

assumindo os riscos daí decorrentes - lei que se lhe afigure

inconstitucional. A opção entre cumprir a Constituição ou

desrespeitá-la para dar cumprimento à lei inconstitucional

é concedida ao particular para a defesa do seu interesse

privado. Não o será ao Chefe de um dos Poderes para a

defesa, não do seu interesse particular, mas da supremacia

da Constituição que estrutura o próprio Estado?".

Page 165: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

75. Rui Barbosa, O direito do Amazonas ao Acre Setentrional, 1910, p. 28. V. também

Ronaldo

Poletti, Controle de constitucionalidade das leis, cit., p. 103.

76. RTJ, 101:924, 1982, Rep. n. 1 .052-MS, rel. Min. Rafael Mayer.

77. RTJ, 66:631, 1973, Rep. n. 881-MG, rel. Min. Djaci Falcão.

78. RTJ, 66:631, Rep. n. 881-MG, rel. Min. Djaci Falcão.

79. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, cit., p. 307.

80. Para um amplo levantamento doutrinário e jurisprudencial, v. Luís Roberto

Barroso, Po-

der Executivo - lei inconstitucional - descumprimento, RDA, 181-182:387, 1990.

81. RTJ, 96:496, 1981, p. 508, Rep. n. 980-SP, rel. Min. Moreira Alves.

Após o advento da Constituição de 1988, houve quem questionasse

a subsistência de tal faculdade, à vista do fato de que, por força das

inovações introduzidas na titularidade da ação direta de inconstituciona-

lidade, o Presidente da República e o Governador do Estado passaram a

ter legitimação ativa para ajuizá-la (CF, art. 103, I e V). A jurisprudên-

cia, todavia, ratificou a linha de entendimento anterior, em julgado do

Superior Tribunal de Justiça:

"Lei inconstitucional - Poder Executivo - Negativa

de eficácia. O Poder Executivo deve negar execução a ato

normativo que lhe pareça inconstitucional".

82. Veja-se que os Prefeitos Municipais não foram incluídos no elenco constitucional,

de

modo que, pelo menos no que diz respeito a eles, não haveria qualquer fundamento para

modifica-

ção da orientação anterior.

83. REsp 23.121/92-GO, rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJU, 8 nov. 1993, p.

23521.

No Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADIn. 221-DF, rel. Min. Moreira

Alves, embora outro o objeto da decisão, reiterou-se incidentalmente o ponto de vista

tradici-

onal, em passagem assim gravada: "Os Poderes Executivo e Legislativo, por sua Chefia - e

isso tem sido questionado com o alargamento da legitimação ativa na ação direta de

inconstitucionalidade -, podem tão-só determinar aos seus órgãos subordinados que deixem

de

aplicar administrativamente as leis ou atos com força de lei que considerem

inconstitucionais" (RTJ

151:331, 1995).

O princípio da presunção de constitucionalidade das leis, conquanto

implícito em todo sistema constitucional, ganhou um reforço no

ordenamento brasileiro atual, por força do disposto no art. 103, § 3º, que

determina que, sempre que o Supremo Tribunal Federal apreciar a

inconstitucionalidade em tese de norma legal ou ato normativo, será cita-

do o Advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado.

Instituiu-se, assim, um curador especial com o dever jurídico de susten-

tar a constitucionalidade das leis impugnadas em ação direta. Note-se

que, como o sistema brasileiro admite a declaração de inconstitucionalidade

Page 166: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

em sede de jurisdição concentrada, tanto de norma estadual quanto fede-

ral, caberá ao Advogado-Geral da União defender a uma ou a outra,

desde que ajuizada ação perante o Supremo Tribunal. Foi esta a exegese

que a Corte deu ao § 3º do art. 103:

"Compete ao advogado-geral da União, em ação dire-

ta de inconstitucionalidade, a defesa da norma legal ou ato

normativo impugnado, independentemente de sua nature-

za federal ou estadual.

Não existe contradição entre o exercício da função nor-

mal do advogado-geral da União, fixada no caput do art.

131 da Carta Magna, e o da defesa de norma ou ato

inquinado, em tese, como inconstitucional, quando fun-

ciona como curador especial, por causa do princípio da pre-

sunção de sua constitucionalidade".

84. RT, 670:200, 1991, ADIn 97-7 (QO)-RO, rel. Min. Moreira Alves.

Também reverencia o princípio da presunção de constitucionalidade

das leis o art. 97 da Constituição, que prevê que somente pelo voto da

maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão

especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou

ato normativo do Poder Público. Em sentido antagônico ao princípio,

todavia, é a admissibilidade de concessão de medida cautelar suspensiva

da eficácia da norma argüida de inconstitucional, consagrada na alínea

p do inciso I do art. 103 da Constituição Federal. Embora a medida

seja rotineiramente concedida pelo Plenário da Corte, é do costume do

Tribunal remarcar-lhe a excepcionalidade.

85. A inovação remonta à Emenda Constitucional n. 7, de 1977, embora houvesse pelo

menos um precedente do Supremo Tribunal Federal admitindo a possibilidade jurídica de,

ele

próprio, conceder medida cautelar visando a garantir a eficácia de ulterior decisão sua, nas

representações de inconstitucionalidade (Rep. n. 933-RJ, rel. Min. Thompson Flores, RTJ,

76:342).

86. V., e. g., RTJ, 66:631, 1973, Rep. n. 881-MG, rel. Min. Djaci Falcão; 102:480,

1982,

Rep. n. 1.094-SP, rel. Min. Soares Muñoz; 101 :499, 1982, Rep. n. 1.077-RJ, rel. Min.

Moreira

Alves.

Ao julgar o pedido de medida liminar na Ação Direta de Inconstitu-

cionalidade n. 96-RO, o Relator, Ministro Celso de Mello, voltou a enfatizar

que o princípio da presunção iuris tantum de constitucionalidade dos atos

estatais devia ser considerado como um expressivo fator limitativo da con-

cessão de medidas cautelares incidentes em ações diretas de

inconstitucionalidade. Em seguida, cuidou de elencar os requisitos neces-

sários e cumulativos para a concessão do provimento cautelar, a saber:

a) plausibilidade jurídica da tese exposta (fumus boni iuris);

b) possibilidade de prejuízo decorrente do retardamento da decisão

postulada (periculum in mora);

c) irreparabilidade ou insuportabilidade dos danos emergentes dos

Page 167: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

próprios atos impugnados; e

d) necessidade de garantir a ulterior eficácia da decisão.

87. RTJ, 130:5, 1989, ADIn 96-RO, rel. Min. Celso de Mello.

Como regra geral, a concessão da medida cautelar suspensiva da lei

tem eficácia meramente ex nunc, colhendo apenas as situações vin-

douras. A decisão final, todavia, como é da tradição brasileira, caso seja

pela declaração de inconstitucionalidade, opera efeitos retroativos, ex

tunc, alcançando todas as situações desde o início de vigência da lei.

88. RTJ, 124:80, 1988, Rep. n. 1 .391-CE, rel. Min. Moreira Alves; e 152:788, 1995,

ADIn

851-RJ, rel. Min. Marco Aurélio: "Os efeitos da concessão da liminar na ação direta de

inconstitucionalidade, ao contrário do que acontece no tocante ao provimento final no

sentido da

inconstitucionalidade, não têm cunho retroativo". Recentemente, no entanto, tem o

Supremo admi-

tido, em caráter excepcional, a suspensão com eficácia retroativa (ex tunc): "A medida

cautelar, em

ação direta de inconstitucionalidade, reveste-se, ordinariamente, de eficácia ex nunc,

operando,

portanto, a partir do momento em que o Supremo Tribunal Federal a defere.

Excepcionalmente, no

entanto, a medida cautelar poderá projetar-se com eficácia ex tunc, com repercussão sobre

situa-

ções pretéritas. A excepcionalidade da eficácia ex tunc impõe que o Supremo Tribunal

Federal

expressamente a determine no acórdão concessivo da medida cautelar. A ausência de

determinação

expressa importa em outorga de eficácia ex nunc à suspensão cautelar de aplicabilidade da

norma

estatal impugnada em ação direta. Concedida a medida cautelar (que se reveste de caráter

temporá-

rio), a eficácia ex nunc (regra geral) tem seu início marcado pela publicação da ata da

sessão de

julgamento no Diário de Justiça da União, exceto em casos excepcionais a serem

examinados pelo

Presidente do Tribunal, de maneira a garantir a eficácia da decisão" (RTJ, 164:506, 1998,

ADIn-

MC 1.434-SP, rel. Min. Celso de Mello).

A Emenda Constitucional n. 3, de 1993, introduziu a ação declarató-

ria de constitucionalidade. Apesar de o nome não ser especialmente

feliz, sugerindo a quebra da presunção de que toda lei é constitucional,

independentemente de pronunciamento judicial, a finalidade da proposi-

ção é muito nítida: criar no direito brasileiro o precedente vinculativo.

O texto da emenda é incompleto e defeituoso, mas a doutrina, de manei-

ra geral, tratou-a com má vontade, enfatizando os aspectos negativos da

medida. Negligenciou-se a necessidade de homogeneidade

jurisprudencial em determinadas hipóteses, bem como a urgência de se

Page 168: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

encontrarem mecanismos que possibilitem solução célere para litígios

de grande escala, que paralisam o funcionamento de inúmeros juízos e

tribunais, sobretudo os federais.

89. É o que decorre, aliás, da letra expressa do § 2º do art. 102 da Constituição

Federal, acres-

centado pela Emenda n. 3, in verbis: "§ 2º - As decisões definitivas de mérito, proferidas

pelo Supremo

Tribunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo

federal, pro-

duzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder

Judiciário

e ao Poder Executivo". No julgamento do pedido de medida cautelar na ação declaratória

de

constitucionalidade 4-DF,julgada em 11-2-1998, relator o Min. Sydney Sanches, o

Supremo Tribunal

Federal, contrariando a letra do art. 102, § 2º, da Constituição Federal - que se refere tão-

somente a

decisões definitivas de mérito- , estendeu a eficácia vinculante na hipótese de provimento

de nature-

za cautelar, nestes termos: "Em ação dessa natureza, pode a Corte conceder medida cautelar

que

assegure, temporariamente, tal força e eficácia à futura decisão de mérito. E assim é,

mesmo sem

expressa previsão constitucional de medida cautelar na ADC, pois o poder de acautelar é

imanente ao

de julgar. (...) Medida cautelar deferida, em parte, por maioria de votos, para se suspender,

ex nunc, e

com efeito vinculante, até o julgamento final da ação, a concessão de tutela antecipada

contra a Fazen-

da Pública, que tenha por pressuposto a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do art.

1º da Lei

n. 9.494, de 10.09.97, sustando-se, igualmente ex nunc, os efeitos futuros das decisões já

proferidas,

nesse sentido" (Inf. STF, 99:1, 1998, ADC-MC 4, rel. Min. Sydney Sanches).

90. V., sobre o tema, Ação declaratória de constitucionalidade, 1995, coletânea

coordenada

por Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes.

91. Ao apreciar Questão de Ordem na ADIn 1-1-DF, o Supremo Tribunal Federal, por

ampla

maioria, vencido o Min. Marco Aurélio, entendeu ser constitucional a nova ação. Sobre

alguns

aspectos da conveniência de implantação da medida, veja-se o voto do Min. Carlos Mário

Velloso,

transcrito na obra citada no item precedente, p. 231 e s.

O princípio da presunção de constitucionalidade dos atos do Poder

Público, notadamente das leis, é uma decorrência do princípio geral da

separação dos Poderes e funciona como fator de autolimitação da ativida-

Page 169: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

de do Judiciário, que, em reverência à atuação dos demais Poderes, so-

mente deve invalidar-lhes os atos diante de casos de inconstitucionalidade

flagrante e incontestável.

4. Princípio da interpretação conforme a Constituição

Ficou registrado acima, no estudo da presunção de constitucionalidade

das normas jurídicas e dos atos do Poder Público em geral, que uma

norma não deve ser declarada inconstitucional: (a) quando a invalidade

não seja manifesta e inequívoca, militando a dúvida em favor de sua pre-

servação; (b) quando, entre interpretações plausíveis e alternativas, exista

alguma que permita compatibilizá-la com a Constituição.

A segunda hipótese considerada acima abriga a chamada interpreta-

ção conforme a Constituição. Se a primeira possibilidade - que encarna

a presunção de constitucionalidade propriamente dita - tem sua matriz e

seu desenvolvimento ligados ao direito norte-americano, já o princípio da

interpretação conforme a Constituição tem sua trajetória e especialmente

o seu desenvolvimento recente ligados à jurisprudência do Tribunal Cons-

titucional Federal alemão, onde sua importância é crescente.

92. V. Konrad Hesse, La interpretación constitucional, in Escritos de derecho

constitucional,

1983, p. 53. Para um amplo levantamento da doutrina alemã sobre o tema, com remissão a

trabalhos

de Weinscheimer, Leibholz, Hãberle, Müller e Henkel, dentre outros, v. Ricardo Lobo

Torres, Normas

de interpretação e integração do direito tributário, 1988, p. 43, nota 35.

A interpretação conforme a Constituição compreende sutilezas que se

escondem por trás da designação truística do princípio. Cuida-se, por certo,

da escolha de uma linha de interpretação de uma norma legal, em meio a

outras que o Texto comportaria. Mas, se fosse somente isso, ela não se

distinguiria da mera presunção de constitucionalidade dos atos legislativos,

que também impõe o aproveitamento da norma sempre que possível. O

conceito sugere mais: a necessidade de buscar uma interpretação que não

seja a que decorre da leitura mais óbvia do dispositivo. E, ainda, da sua

natureza excluir a interpretação ou as interpretações que contravenham a

Constituição. À vista das dimensões diversas que sua formulação compor-

ta, é possível e conveniente decompor didaticamente o processo de inter-

pretação conforme a Constituição nos elementos seguintes:

1) Trata-se da escolha de uma interpretação da norma legal que a

mantenha em harmonia com a Constituição, em meio a outra ou outras

possibilidades interpretativas que o preceito admita.

2) Tal interpretação busca encontrar um sentido possível para a nor-

ma, que não é o que mais evidentemente resulta da leitura de seu texto.

3) Além da eleição de uma linha de interpretação, procede-se à ex-

clusão expressa de outra ou outras interpretações possíveis, que condu-

ziriam a resultado contrastante com a Constituição.

4) Por via de conseqüência, a interpretação conforme a Constitui-

ção não é mero preceito hermenêutico, mas, também, um mecanismo

Page 170: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

de controle de constitucionalidade pelo qual se declara ilegítima uma

determinada leitura da norma legal.

Na interpretação conforme a Constituição, o órgão jurisdicional de-

clara qual das possíveis interpretações de uma norma legal se revela

compatível com a Lei Fundamental. Isso ocorrerá, naturalmente, sem-

pre que um determinado preceito infraconstitucional comportar diver-

sas possibilidades de interpretação, sendo qualquer delas incompatível

com a Constituição. Note-se que o texto legal permanece íntegro, mas

sua aplicação fica restrita ao sentido declarado pelo tribunal.

93. V. Gilmar Ferreira Mendes, Controle de constitucionalidade, 1990, p. 284 e s., e

Controle

de constitucionalidade na Alemanha, RDA, 193:13,1993. Veja-se, também, J. J. Gomes

Canotilho,

Direito constitucional, cit., p. 236: "A interpretação conforme a Constituição só é legítima

quando

existe um espaço de decisão (= espaço de interpretação) em que são admissíveis várias

propostas

interpretativas, umas em conformidade com a constituição e que devem ser preferidas, e

outras em

desconformidade com ela". Sobre o tema, ainda, além do estudo de Hesse, já citado, vejam-

se

Eduardo García de Enterría, La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional, cit.,

p. 95 e s.;

Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, 1983, t. 2, p. 232 e s.; Klaus Stern,

Derecho del

Estado de la República Federal alemana, 1987, p. 297 e s.; Francisco Fernandez Segado, El

siste-

ma constitucional español, 1992, p. 79-81; Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins,

Comentá-

rios à Constituição do Brasil, v. 1, p. 351-2; C. A. Lúcio Bittencourt, O controle

jurisdicional da

constitucionalidade das leis, 1968, p. 93-4 e 118-9.

Se o sentido mais evidente que resulta do texto interpretado for com-

patível com a Constituição, dificilmente haverá necessidade de se recor-

rer a um princípio cuja finalidade última é a de salvar uma norma

ameaçada. O papel da interpretação conforme a Constituição é, precisa-

mente, o de ensejar, por via de interpretação extensiva ou restritiva, con-

forme o caso, uma alternativa legítima para o conteúdo de uma norma

que se apresenta como suspeita. Na síntese perfeita de Jorge Miranda:

"A interpretação conforme à Constituição não consiste

tanto em escolher entre vários sentidos possíveis e normais

de qualquer preceito, o que seja mais conforme com a Cons-

tituição, quanto em discernir no limite - na fronteira da

inconstitucionalidade - um sentido que, conquanto não

aparente ou não decorrente de outros elementos de inter-

pretação, é o sentido necessário e o que se torna possível

por virtude da força conformadora da Lei Fundamental".

Page 171: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

94. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., p. 233. V. também Celso

Ribeiro

Bastos e Ives Gandra Martins, Ação declaratória de constitucionalidade, cit., p. 351.

Freqüentemente, o princípio enseja que se afirme a compatibilidade

de uma lei com a Constituição, com exclusão expressa de outras possi-

bilidades interpretativas, reputadas inconstitucionais. Visto pelo lado po-

sitivo, a conseqüência que engendra é, sem dúvida, a preservação da

norma. Mas, pelo lado negativo, tem um caráter invalidatório, sendo

acertada sua equiparação a uma declaração de nulidade sem redução de

texto, como fazem autores alemães, a despeito da crítica de cunho

teorizante de Bryde.

95. V. Gilmar Ferreira Mendes, Controle de constitucionalidade na Alemanha, cit., p.

13,

com referência a Bryde, Verfassungsentwicklung, Stabilität und Dynamik im

Verfassungsrecht der

Bundesrepublick Deutschland, p. 411.

Porque assim é, a interpretação conforme a Constituição funciona

também como um mecanismo de controle de constitucionalidade. Como

bem perceberam os publicistas alemães e, especialmente, o Tribunal

Constitucional Federal, quando o Judiciário condiciona a validade da

lei a uma determinada interpretação ou declara que certas aplicações

não são compatíveis com a Constituição está, em verdade, declarando a

inconstitucionalidade de outras possibilidades de interpretação

(Auslegungsmöglichkeiten) ou de outras possíveis aplicações

(Anwendungsfälle).

96. Klaus Schlaich, DassV Bundesverfassungsgericht, 1985, p. 164-5, e Ipsen,

Rechtsfolgen

der Verfassungswidrigkeit von Norm und Einzelakt, 1980, p. 100, apud Gilmar Ferreira

Mendes,

Controle de constitucionalidade, cit., p. 285-6.

Em acórdão unânime e longamente fundamentado, de que foi Relator

o Ministro Moreira Alves, pronunciou-se o Supremo Tribunal Federal

sobre a específica questão de ser a interpretação conforme a Constitui-

ção não apenas um critério hermenêutico, mas também um mecanismo

de controle de constitucionalidade:

"O mesmo ocorre quando Corte dessa natureza (cons-

titucional), aplicando a interpretação conforme à Consti-

tuição, declara constitucional uma lei com a interpretação

que a compatibiliza com a Carta Magna, pois, nessa hipóte-

se, há uma modalidade de inconstitucionalidade parcial (a

inconstitucionalidade parcial sem redução do texto -

Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung), o que im-

plica dizer que o tribunal constitucional elimina - e atua,

portanto, como legislador negativo - as interpretações por

ela admitidas, mas inconciliáveis com a Constituição".

97. RT-CDC e CP, 1:314, 1992, p. 330, Rep. n. 1.417-7, rel. Min. Moreira Alves,j. 9-

12-

Page 172: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

1987.

Os autores especulam sobre o fundamento da interpretação confor-

me a Constituição. A doutrina alemã sustenta que ela deita suas raízes

no princípio da unidade do ordenamento jurídico. Em Portugal, Jorge

Miranda justifica-a em nome de um princípio de economia do

ordenamento ou de máximo aproveitamento dos atos jurídicos - e não

de uma presunção de constitucionalidade. Sem desprezo a tais consi-

derações, o princípio se reconduz, mais primitivamente, à independên-

cia e harmonia entre os Poderes.

98. Konrad Hesse, La interpretación constitucional, in Escritos de derecho

constitucional,

cit., p. 54-5.

99. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., p. 233.

De fato, embora nasça e flua, inicialmente, ao lado do princípio da

presunção de constitucionalidade dos atos do Poder Público, um e outro

atuam como mecanismos de autolimitação do Poder Judiciário (judicial

self-restraint) no processo de revisão dos atos dos outros Poderes. De-

veras, foi ao Poder Legislativo, que tem o batismo da representação

popular, e não ao Judiciário, que a Constituição conferiu a função de

criar o direito positivo e reger as relações sociais. Só por exceção - e

em resguardo de inequívoca vontade constitucional - é que deverão

juízes e tribunais superpor sua interpretação às decisões e avaliações

dos legisladores.

Sem embargo desse fundamento remoto, o princípio guarda suas

conexões com a unidade do ordenamento jurídico e, dentro desta, com a

supremacia da Constituição. Disso resulta que as leis editadas na vigên-

cia da Constituição, assim como as que procedam de momento anterior,

devem curvar-se aos comandos da Lei Fundamental e ser interpretadas

em conformidade com ela. É bem de ver, todavia, que esse esforço inter-

pretativo para preservar a lei em face da Constituição encontra limites.

Foi objeto de menção anterior a constatação de Canotilho de que a

interpretação conforme a Constituição só é legítima quando existe um

espaço de decisão onde são admissíveis várias possibilidades

interpretativas. Aí, embora mantida a primazia do legislador, sua mani-

festação é limitada, quando não adaptada pela interpretação do tribunal.

Mas, naturalmente, não é possível ao intérprete torcer o sentido das pa-

lavras nem adulterar a clara intenção do legislador. Para salvar a lei, não

é admissível fazer uma interpretação contra legem. Tampouco será legí-

tima uma linha de entendimento que prive o preceito legal de qualquer

função útil. Atente-se, por relevante, que o excesso na utilização do prin-

cípio pode deturpar sua razão de existir. Isso porque, ao declarar uma lei

inconstitucional, o Judiciário devolve ao Legislativo a competência para

reger a matéria. Mas, ao interpretar a lei estendendo-a ou restringindo-a

além do razoável, estará mais intensamente interferindo nas competen-

cias do Legislativo, desempenhando função legislativa positiva.

100. Vejam-se: J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 236-7; Jorge

Miranda,

Page 173: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Manual de direito constitucional, cit., p. 233-4; Konrad Hesse, La interpretación

constitucional, in

Escritos de derecho constitucional, cit., p. 55-6.

A matéria não escapou à percepção do Supremo Tribunal brasileiro.

De fato, no julgamento da Representação de Inconstitucionalidade n.

1.417-7-DF, ficou consignado, já na ementa da decisão:

"A aplicação desse princípio sofre, porém, restrições,

uma vez que (...) o STF (...) não tem o poder de agir como

legislador positivo, para criar norma jurídica diversa da ins-

tituída pelo Poder Legislativo. Por isso, se a única interpre-

tação possível para compatibilizar a norma com a Consti-

tuição contrariar o sentido inequívoco que o Poder Legis-

lativo lhe pretendeu dar, não se pode aplicar o princípio da

interpretação conforme a Constituição, que implicaria, em

verdade, criação de norma jurídica, o que é privativo do

legislador positivo.

No caso, não se pode aplicar a interpretação conforme

à Constituição, por não se coadunar essa com a finalidade

inequivocamente colimada pelo legislador, expressa lite-

ralmente no dispositivo em causa, e que dele ressalta pelos

elementos da interpretação lógica".

101. RT - CDC e CP, 1:314, 1992, Rep. n. 1.417-7, rel. Min. Moreira Alves.

No mérito, o Supremo declarou inconstitucional a concessão de

uma série de vantagens pecuniárias aos magistrados pela Lei Comple-

mentar n. 54/86, em alteração à Lei Orgânica da Magistratura Nacio-

nal (Lei Complementar n. 35/79). Também se rejeitou a possibilidade

de interpretação conforme a Constituição na argüição incidental de

inconstitucionalidade referente à devolução do empréstimo compul-

sório em quotas do Fundo Nacional de Desenvolvimento e não em

espécie, sob o fundamento de tratar-se de imposto restituível, e não de

empréstimo compulsório. O voto condutor foi do Ministro Sepúlveda

Pertence:

"Sendo, portanto, inequívoco que o que o Decreto-lei

2.288/86 pretendeu foi instituir um empréstimo compulsó-

rio, que, por sua natureza mesma de empréstimo, implica a

devolução em dinheiro ou em título que o represente, não é

possível pretender-se, para conformar esse Diploma legal

com a Constituição, dar-lhe sentido que inequivocamente

o altera em ponto essencial: o de que onde se lê "emprésti-

mo compulsório" se entenda "imposto restituível em espé-

cie diversa da entregue pelo contribuinte" que seria, na ver-

dade, um "investimento compulsório"".

O princípio, todavia, prestou-se à sua utilidade própria no julga-

mento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 581-DF, tendo por

objeto a Lei n. 8.215/91. O Supremo Tribunal Federal admitiu a consti-

tucionalidade da lei, desde que se lhe emprestasse interpretação harmo-

nica com uma série de premissas que enunciou expressamente. Do voto

Page 174: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

do Ministro Celso de Mello extrai-se a seguinte e expressiva passagem:

"A incidência desse postulado permite, desse modo,

que, reconhecendo-se legitimidade constitucional a uma de-

terminada proposta interpretativa, excluam-se as demais

construções exegéticas propiciadas pelo conteúdo

normativo do ato questionado.

Em suma: o princípio da interpretação conforme a

Constituição, ao reduzir a expressão semiológica do ato

impugnado a um único sentido interpretativo, garante, a

partir de sua concreta incidência, a integridade do ato do

Poder Público no sistema de direito positivo. Essa função

conservadora da norma permite que se realize, sem redu-

ção do texto, o controle de sua constitucionalidade".

102. RTJ, 139:624, 1992, p. 636, RE 121.336-CE, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 11-

10- 1990.

103. RTJ, 144:146, 1993, p. 154, ADIn 581 -DF, rel. Min. Marco Aurélio, j. 12-8-

1992.

Foi a partir dessa decisão que o Supremo, seguindo proposta do

Ministro Moreira Alves, e na linha adotada pelo Tribunal Constitucio-

nal Federal alemão, passou, nos casos de interpretação conforme a Cons-

tituição, a julgar a ação direta procedente em parte, em lugar de julgá-la

improcedente .

104. RTJ, 144:146, p. 154, ADIn 581-DF, rel. Min. Marco Aurélio, j. 12-8-1992.

Há um último ponto digno de registro. Toda atividade legislativa

ordinária nada mais é, em última análise, do que um instrumento de

atuação da Constituição, de desenvolvimento de suas normas e realiza-

ção de seus fins. Portanto, e como já assentado, o legislador também

interpreta rotineiramente a Constituição. Simétrica à interpretação da

lei conforme a Constituição situa-se a interpretação da Constituição con-

forme a lei. Quando o Judiciário, desprezando outras possibilidades

interpretativas, prestigia a que fora escolhida pelo legislador, está, em

verdade, endossando a interpretação da Constituição conforme a lei.

Mas tal deferência há de cessar onde não seja possível transigir com a

vontade cristalina emanada do Texto Constitucional.

105. Vejam-se, a respeito, J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 242;

Konrad

Hesse, La interpretación constitucional, in Escritos de derecho constitucional, cit., p. 57; e

Klaus

Stern, Derecho del Estado de la República Federal alemana, cit., p. 299-300.

5. Princípio da unidade da Constituição

A despeito da pluralidade de domínios que abrange, a ordem jurídi-

ca constitui uma unidade. De fato, é decorrência natural da soberania do

Estado a impossibilidade de coexistência de mais de uma ordem jurídi-

ca válida e vinculante no âmbito de seu território. Para que possa sub-

sistir como unidade, o ordenamento estatal, considerado na sua

globalidade, constitui um sistema cujos diversos elementos são entre si

Page 175: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

coordenados, apoiando-se um ao outro e pressupondo-se reciprocamen-

te. O elo de ligação entre esses elementos é a Constituição, origem co-

mum de todas as normas. E ela, como norma fundamental, que confere

unidade e caráter sistemático ao ordenamento jurídico.

106. V. Hans Kelsen, Teoria geral do direito e do Estado, 1990, p. 116; Santi Romano,

Prin-

cípios de direito constitucional geral, 1977, p. 126; e Miguel Reale, Teoria do direito e do

Estado,

1984, p. 202.

A idéia de unidade da ordem jurídica se irradia a partir da Constitui-

ção e sobre ela também se projeta. Aliás, o princípio da unidade da Cons-

tituição assume magnitude precisamente pelas dificuldades geradas pela

peculiaríssima natureza do documento inaugural e instituidor da ordem

jurídica. É que a Carta fundamental do Estado, sobretudo quando pro-

mulgada em via democrática, é o produto dialético do confronto de cren-

ças, interesses e aspirações distintos, quando não colidentes. Embora

expresse um consenso fundamental quanto a determinados princípios e

normas, o fato é que isso não apaga "o pluralismo e antagonismo de

idéias subjacentes ao pacto fundador".

107. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 196.

É precisamente por existir pluralidade de concepções que se torna

imprescindível a unidade na interpretação. Afinal, a Constituição não é

um conjunto de normas justapostas, mas um sistema normativo fundado

em determinadas idéias que configuram um núcleo irredutível,

condicionante da inteligência de qualquer de suas partes. O princípio da

unidade é uma especificação da interpretação sistemática, e impõe ao

intérprete o dever de harmonizar as tensões e contradições entre nor-

mas. Deverá fazê-lo guiado pela grande bússola da interpretação consti-

tucional: os princípios fundamentais, gerais e setoriais inscritos ou de-

correntes da Lei Maior.

O princípio da unidade da Constituição tem amplo curso na doutri-

na e na jurisprudência alemãs. Em julgado que Klaus Stern refere como

primeira grande decisão do Tribunal Constitucional Federal, lavrou aque-

la Corte que "uma disposição constitucional não pode ser considerada

de forma isolada nem pode ser interpretada exclusivamente a partir de si

mesma. Ela está em uma conexão de sentido com os demais preceitos

da Constituição, a qual representa uma unidade interna". Invocando

tal acórdão, Konrad Hesse assinalou que a relação e interdependência

existentes entre os distintos elementos da Constituição exigem que se

tenha sempre em conta o conjunto em que se situa a norma. E acrescen-

ta: "Todas as normas constitucionais devem ser interpretadas de tal ma-

neira que se evitem contradições com outras normas constitucionais. A

única solução do problema coerente com este princípio é a que se en-

contre em consonância com as decisões básicas da Constituição e evite

sua limitação unilateral a aspectos parciais".

108. BVerfGE, 1, 14(32). V. Klaus Stern, Derecho del Estado de la República Federal

alemana,

Page 176: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

cit., p. 291.

109. Konrad Hesse, La interpretación constitucional, in Escritos de derecho

constitucional,

cit., p. 48.

Em decisão posterior, o Tribunal Constitucional Federal alemão vol-

tou a remarcar o princípio, conferindo-lhe, inclusive, distinção especial

e primazia: "O princípio mais importante de interpretação é o da unida-

de da Constituição enquanto unidade de um conjunto com sentido

teleológico-lógico, já que a essência da Constituição consiste em ser

uma ordem unitária da vida política e social da comunidade estatal".

O fim primário do princípio da unidade é procurar determinar o ponto

de equilíbrio diante das discrepâncias que possam surgir na aplicação

das normas constitucionais, cuidando de administrar eventuais

superposições. A tarefa, todavia, pode revelar-se mais complexa do que

parece à primeira vista.

110. BVerfGE, 19, 206 (220). V. Klaus Stern, Derecho del Estado de la República

Federal

alemana, cit., p. 292.

Já se disse, anteriormente, que a ordem jurídica de cada Estado cons-

titui um sistema lógico, que não admite a possibilidade de uma mesma

situação jurídica estar sujeita à incidência de normas contrastantes entre

si. O direito não tolera antinomias. Para impedir que tal ocorra, a ciên-

cia jurídica socorre-se de variados critérios, como o hierárquico e o da

especialização, além de regras específicas que solucionam os conflitos

de leis no tempo e no espaço. Contudo, à exceção eventual do critério da

especialização, esse instrumental não é capaz de solucionar conflitos

que venham a existir no âmbito de um documento único e superior,

como é a Constituição. Mais que isso: do ponto de vista lógico, as nor-

mas constitucionais, frutos de uma vontade unitária e geradas simulta-

neamente, não podem jamais estar em conflito. Portanto, ao intérprete

da Constituição só resta buscar a conciliação possível entre proposições

aparentemente antagônicas, cuidando, todavia, de jamais anular inte-

gralmente uma em favor da outra.

111. Veja-se, sobre o tema, a lição de Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 232:

"Como

ponto de orientação, "guia de discussão" e "factor hermenêutico de decisão", o princípio da

unida-

de obriga o intérprete a considerar a constituição na sua globalidade e a procurar

harmonizar os

espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar".

Um lance de olhos sobre a Constituição brasileira de 1988 revela

diversos pontos de tensão normativa, isto é, de proposições que consa-

gram valores e bens jurídicos que se contrapõem e que devem ser harmo-

nizados pelo intérprete. No campo dos direitos individuais, a Lei básica

consigna a liberdade de manifestação do pensamento e de expressão em

geral (art. 5º, IV e X). Tais liberdades públicas, todavia, hão de encontrar

justos limites, por exemplo, no direito à honra e à intimidade, que a Cons-

Page 177: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

tituição também assegura (art. 5º, XI). No domínio econômico, a Carta de

1988 elegeu como princípio fundamental a livre iniciativa (arts. 1º, IV, e

170, caput), mas prevê restrições ao capital estrangeiro (e. g. arts. 172 e

176, § 1º), contempla a possibilidade de exploração da atividade econô-

mica pelo Estado (art. 173) e mesmo alguns casos de monopólio estatal

(e. g., art. 177). O direito de propriedade (art. 5º, XXII) requer conciliação

com o princípio da função social da propriedade, enfaticamente inscrito

na Constituição (arts. 5º, XXIII, 170, III, 182, § 2º, e 186).

É de se assinalar que o princípio da unidade da Constituição, usual-

mente, operará através da utilização de outros princípios e regras de

interpretação. Um estudo de caso ilustrará a idéia. Veja-se o que se pas-

sava antes da Reforma Administrativa levada a efeito pela Emenda Cons-

titucional n. 19/98: o art. 37 da Carta em vigor, que traz o elenco de

princípios e regras que regerão a administração pública direta e indireta

(que inclui as sociedades de economia mista e as empresas públicas),

previa no inciso XI que o teto de remuneração dos servidores públicos

do Poder Executivo era, em âmbito federal, a remuneração dos Minis-

tros de Estado (hoje a dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, na

nova redação dada pela Emenda n. 19/98). Já o § 1º do art. 173 dispunha

(e ainda dispõe, só que em maior extensão, no inciso II do mesmo para-

grafo) que as empresas públicas e as sociedades de economia mista que

explorem atividades econômicas terão o mesmo regime jurídico das em-

presas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas. A aparente

contradição era muito nítida: o art. 37 afirmava que as sociedades de eco-

nomia mista e as empresas públicas, por integrarem a administração indi-

reta, teriam de observar um teto na remuneração de seus servidores, e o §

1º do art. 173 previa, e ainda prevê, que elas devem ter o mesmo regime

das empresas privadas, onde inexiste limite máximo de remuneração.

Ora bem: como deveria proceder o intérprete, que tem sempre o

dever de harmonizar os dois preceptivos, sem que tornasse qualquer

deles letra morta? No caso específico, a interpretação teleológica serviu

como linha auxiliar para assegurar a unidade da Constituição. Qual era,

e continua sendo, a finalidade da norma do inciso XI do art. 37? Limitar

a remuneração no serviço público, inclusive na administração indireta.

Qual a finalidade da norma do § 1º do art. 173? Impedir a concorrência

desleal da administração pública com a iniciativa privada. Por este ca-

minho, chegava-se à constatação singela de que o limite máximo de

remuneração se aplicava às sociedades de economia mista e às empre-

sas públicas. Isso porque ele decorria da letra expressa do art. 37, XI, e

não encontrava obstáculo no art. 173, § 1º, que visa a impedir que as

empresas estatais tenham tratamento mais favorável, e não mais rigoro-

so, quando seja o caso. A incompatibilidade entre os dispositivos, como

se vê, era meramente aparente.

Hoje, no entanto, a questão se encontra superada, pois apesar de a

nova redação do inciso XI do art. 37 só fazer referência aos ocupantes

de cargos, funções e empregos públicos nas administrações direta,

autárquica e fundacional, excluindo aparentemente os empregados das

Page 178: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

sociedades de economia mista e empresas públicas, o art. 37, § 9º, intro-

duzido pela Emenda Constitucional n. 19/98, foi expresso:

"§ 9º - O disposto no inciso XI aplica-se às empresas

públicas e às sociedades de economia mista, e suas subsi-

diárias, que receberem recursos da União, dos Estados, do

Distrito Federal ou dos Municípios para pagamento de des-

pesas de pessoal ou de custeio em geral".

Nesta, como em outras hipóteses, o intérprete, sob a inspiração do

princípio da unidade da Constituição, há de encontrar o espaço adequa-

do de incidência de cada uma das normas que potencialmente podem

incidir sobre o caso concreto.

112. Sobre o tema, anteriormente à Reforma Constitucional Administrativa

introduzida pela

Emenda Constitucional n. 19/98, v. Luís Roberto Barroso, parecer publicado na RPGERJ,

46:245,

1993, assim ementado: "O limite máximo de remuneração previsto no inciso XI do art. 37

da

Constituição Federal aplica-se aos empregados das sociedades de economia mista".

O papel do princípio da unidade é o de reconhecer as contradições e

tensões - reais ou imaginárias - que existam entre normas constitucio-

nais e delimitar a força vinculante e o alcance de cada uma delas. Cabe-

lhe, portanto, o papel de harmonização ou "otimização" das normas, na

medida em que se tem de produzir um equilíbrio, sem jamais negar por

completo a eficácia de qualquer delas. Também aqui, a simplicidade

da teoria não reduz as dificuldades práticas surgidas na busca do equilí-

brio desejado e na eleição de critérios que possam promovê-lo.

113. Klaus Stern, Derecho del Estado de la República Federal alemana, cit., p. 294. O

termo

"otimização" foi colhido em Hesse, La interpretación constitucional, in Escritos de derecho

cons-

titucional, cit., p. 49.

A doutrina mais tradicional divulga como mecanismo adequado à

solução de tensões entre normas a chamada ponderação de bens ou va-

lores. Trata-se de uma linha de raciocínio que procura identificar o bem

jurídico tutelado por cada uma delas, associá-lo a um determinado va-

lor, isto é, ao princípio constitucional ao qual se reconduz, para, então,

traçar o âmbito de incidência de cada norma, sempre tendo como refe-

rência máxima as decisões fundamentais do constituinte. A doutrina tem

rejeitado, todavia, a predeterminação rígida da ascendência de determi-

nados valores e bens jurídicos, como a que resultaria, por exemplo, da

absolutização da proposição in dubio pro libertate. Se é certo, por exem-

plo, que a liberdade deve, de regra, prevalecer sobre meras conveniên-

cias do Estado, poderá ela ter de ceder, em determinadas circunstâncias,

diante da necessidade de segurança e de proteção da coletividade.

114. Klaus Stern, Derecho del Estado de la República Federal alemana, cit., p. 295.

Um bom exemplo dessa possibilidade, aliás, foi o caso Korematsu

vs. United States, já mencionado. Ao julgá-lo, a Suprema Corte ame-

Page 179: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

ricana, em sacrifício de uma longa tradição de preservação da liberdade

e de não-discriminação em função da origem nacional, considerou váli-

da a imposição aos americanos descendentes de japoneses, durante a 2ª

Guerra, de uma série de limitações à liberdade de ir e vir, com o objetivo

de prevenir possíveis atos de espionagem e sabotagem. Naquele mo-

mento, o valor segurança esteve acima do valor liberdade. Segundo a

Corte, "necessidades públicas prementes podem, às vezes, justificar res-

trições raciais.

115.323 U. S.214(1944).

116.323 U. S.214 (1944): "Pressing public necessity may sometimes justify racial

restrictions".

KLaus Stern, defendendo a idéia de que em nenhum lugar o orde-

namento pode prescindir da ponderação de bens jurídicos, invoca a au-

toridade do Tribunal Constitucional Federal alemão, quando diz: "To-

das as disposições constitucionais têm que ser interpretadas de tal ma-

neira que sejam compatíveis com as normas fundamentais elementares

da Lei Fundamental e com sua ordem de valor". De forma análoga,

em decisão anterior, pronunciara-se a Corte: "... os conflitos somente se

podem resolver na medida em que se chega à conclusão de que disposi-

ção constitucional é a que tem maior peso para a questão que se vai

decidir em concreto".

117. BVerfGE, 30, 1(19). 17. K. Stern, Derecho del Estado de la República Federal

alemana,

cit., p. 294.

118. BVerFGE, 28,243(261). V. K. Stern,Derecho del Estado de la República Federal

alemana.

Na linha que se vem desenvolvendo, resulta certo que os bens jurí-

dicos constitucionalmente protegidos devem ser coordenados de forma

a que todos eles possam conservar sua identidade. Por isso, adverte Hesse,

é preciso ter cuidado na utilização de fórmulas como a ponderação de

bens e a ponderação de valores. Cabe ao intérprete, por força do princí-

pio da unidade, um esforço de otimização: é necessário estabelecer os

limites de ambos os bens a fim de que cada um deles alcance uma

efetividade ótima. Na busca dessa concordância prática, passa-se por

um outro princípio, que se apreciará adiante: o da proporcionalidade.

119. Konrad Hesse, La interpretación constitucional, in Escritos de derecho

constitucional,

cit., p. 48-9.

Tudo o que se viu até aqui em nome da unidade constitucional re-

força o papel dos princípios constitucionais como condicionantes da

interpretação das normas da Lei Maior. São eles que conferem unidade

e coerência ao sistema e é a eles que se recorre na solução das tensões

normativas. A grande premissa sobre a qual se alicerça o raciocínio de-

senvolvido é a de que inexiste hierarquia normativa entre as normas

constitucionais, sem qualquer distinção entre normas materiais ou for-

mais ou entre normas-princípio e normas-regra. Isso porque, em direito,

hierarquia traduz a idéia de que uma norma colhe o seu fundamento de

Page 180: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

validade em outra, que lhe é superior. Não é isso que se passa entre

normas promulgadas originariamente com a Constituição.

Não obstante isso, é inegável o destaque de algumas normas, quer

por expressa eleição do constituinte, quer pela lógica do sistema. No

direito constitucional positivo brasileiro, foram expressamente presti-

giadas as normas que cuidam das matérias integrantes do núcleo imo-

dificável da Constituição, que reúne as chamadas cláusulas pétreas.

Consoante o elenco do § 4º do art. 60, não podem ser afetadas por emendas

que tendam a abolir os valores que abrigam as normas que cuidam: a) da

forma federativa do Estado; b) do voto direto, secreto, universal e periódi-

co; c) da separação dos Poderes; d) dos direitos e garantias individuais.

Todos os itens acima, não é difícil constatar, estão ligados a algum

dos princípios fundamentais do ordenamento, a saber: o princípio fede-

rativo, o princípio democrático e o princípio republicano (periodicidade

de voto). Aliás, ao menos idealmente, a Democracia, a República e a

Federação constituem, de longa data, o trinômio essencial do Estado

brasileiro. É natural que esses princípios fundamentais, notadamente os

que foram objeto de distinção especial no § 4º do art. 60, sejam os gran-

des vetores interpretativos do Texto Constitucional. Em seguida, vêm os

princípios gerais e setoriais. Porque assim é, deve-se reconhecer a exis-

tência, no Texto Constitucional, de uma hierarquia axiológica, resulta-

do da ordenação dos valores constitucionais, a ser utilizada sempre que

se constatarem tensões que envolvam duas regras entre si, uma regra e

um princípio ou dois princípios.

Tratando especificamente dessa questão da hierarquia axiológica,

Diogo de Figueiredo Moreira Neto, em trabalho dedicado ao estudo da

ordem econômica - campo onde a pluralidade de enfoques políticos

incidiu especialmente -, cuidou da hipótese em que uma instituição é

informada por mais de um princípio constitucional. Aventou, assim, as

seguintes possibilidades:

a) que esses princípios se harmonizem plenamente, inocorrendo

qualquer problema, já que um e outro poderão ser aplicados com igual

eficácia;

b) que esses princípios não se harmonizem integralmente, o que

fará com que onde haja colisão se aplique o de maior hierarquia axio-

lógica;

c) que esses princípios sejam incompatíveis, caso em que prevale-

cerá o de maior hierarquia axiológica, salvo onde o constituinte houver

optado pelo de menor hierarquia, excepcionando expressamente a inci-

dência do princípio superior.

120. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, A ordem econômica na Constituição de 1988,

RPGERJ, 42:57, 1990, p. 59-60.

Na mesma linha é o entendimento de Raúl Canosa Usera, que, após

classificar os princípios em materiais e instrumentais, aponta o princí-

pio da unidade da Constituição como o mais importante desta segunda

categoria. Doutrina o autor espanhol que uma correta interpretação

do Texto Fundamental exige a colocação de certas de suas disposições

Page 181: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

num patamar superior. Essas disposições valorizadas serão as normas

de princípio. Tais normas, no entanto, não estão em um plano superior,

no sentido de tornar ilegítimas as outras normas constitucionais, naqui-

lo em que se confrontem. Trata-se, afirma ele, de uma hierarquia estru-

tural. Na verdade, usando outra denominação, a idéia subjacente é a da

hierarquia axiológica, já exposta.

121. Raúl Canosa Usera, Interpretación constitucional y fórmula política, 1988,p. 163

e

175. A classificação em princípios materiais e instrumentais, que o autor não desenvolve

com

nitidez, parece corresponder à divisão entre a parte orgânica e a parte dogmática da

Constituição

(p. 63 e s.).

O princípio da unidade da Constituição, também referido como prin-

cípio da unidade hierárquico-normativa da Constituição, na visão de

alguns autores, encontraria importante exceção na admissibilidade da

existência de normas constitucionais inconstitucionais. Seu principal

formulador foi o alemão Otto Bachoff, que desenvolveu a tese em aula

inaugural proferida em Heidelberg, em 1951, e a materializou em um

opúsculo intitulado, no original, Verfassungswidrige Verfassungs-

normen?. Pouco lido e citado por vezes com equivocidade, o trabalho

de Bachoff não tem as implicações que a ele se tem atribuído. É oportu-

no analisar algumas de suas considerações.

122. Rejeitam tal possibilidade, em meio a outros, Klaus Stern, Derecho del Estado de

la Repú-

blica Federal alemana, cit., p. 292-3, e Raúl Canosa Usera, Interpretación constitucional y

fórmula

política,cit.,p. 167-8.

123. Há uma tradução portuguesa dessa obra - Normas constitucionais

inconstitucionais? -,

que teve uma reimpressão em 1994.

Reconhece ele, de plano, que o legislador constituinte, e, especifi-

camente, o alemão, ao instituir o controle de constitucionalidade, pen-

sou "em primeira linha, se não mesmo com exclusividade", no controle

de normas jurídicas sob a Constituição. Sua cogitação recaiu sobre a

compatibilidade das leis estaduais e das leis federais com a Constitui-

ção. Porém, prossegue, também é cabível conceber-se uma

inconstitucionalidade de normas constitucionais (um só e mesmo pla-

no), e tal eventualidade não deve ser excluída do controle judicial.

Passa, em seguida, a enunciar as diferentes possibilidades de normas

constitucionais inconstitucionais (inválidas).

124. Otto Bachoff, Normas constitucionais inconstitucionais, 1994, p. 12.

A primeira hipótese figurada por Bachoff é a que denomina

inconstitucionalidade de normas constitucionais ilegais. De fora parte

a denominação, que não parece feliz, não traz ela qualquer componente

que seja repugnante à doutrina convencional ou que infirme o princípio

da unidade hierárquico-normativa da Constituição. Disserta ele, sob essa

Page 182: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

rubrica, acerca de três variações. A primeira delas consistiria em uma

Constituição não obedecer ao rito por ela mesma especificado para sua

entrada em vigor, como, por exemplo, sua ratificação por um determi-

nado número de Estados federados. A segunda seria tipificada por uma

dada disposição constitucional depender, para sua vigência, de um re-

quisito específico, como, por exemplo, a submissão a um plebiscito

(melhor diria, pelo caráter posterior da consulta, referendo). E a terceira

diria respeito à inobservância, pelo processo constituinte, do que hou-

vesse sido estabelecido em leis pré-constitucionais, que condicionassem

a validade da Constituição.

Os dois primeiros exemplos - o da ratificação e o do plebiscito/

referendo - cuidam do estabelecimento de ato-condição para o início

de vigência da norma e contemplam possibilidades que têm inúmeros

antecedentes históricos, a começar pela Constituição norte-americana,

que em seu art. 7º previa a ratificação por nove Estados para que fosse

adotada. São casos perfeitamente enquadráveis na teoria constitucio-

nal ordinária. O terceiro exemplo poderia trazer alguma perplexidade,

por importar em um condicionamento da ordem jurídica precedente ao

desempenho do poder constituinte. Mas, em seguida, esclarecendo a

idéia, Bachoff reproduz o conhecimento convencional: "Todavia, as leis

pré-constitucionais podem obrigar apenas o poder constituído, não o

titular do poder constituinte, o qual a todo tempo pode contorná-las,

através de um acto constituinte originário". Nada de novo, portanto.

125. A Constituição brasileira de 1937, que implantou o Estado Novo, previa, no seu

art. 187,

a realização de um plebiscito que nunca ocorreu. Por isso mesmo, houve quem afirmasse

que,

juridicamente, tal Carta não existiu (v. Fernando Whitaker da Cunha, Comentários à

Constituição,

obra coletiva, 1990, v. 1, p. 32).

126. Bachoff, Normas constitucionais inconstitucionais, cit., p. 51.

A segunda hipótese aventada é a da inconstitucionalidade de leis de

alteração da Constituição. Suscita-se, aqui, a possibilidade de uma lei

de alteração da Constituição, isto é, de uma emenda constitucional, in-

fringir formal ou materialmente disposições da Carta em vigor. A

inconstitucionalidade formal, noticia ele, ocorre quando não são obser-

vadas as disposições processuais prescritas para a alteração da Consti-

tuição, ao passo que a inconstitucionalidade material se verifica quando

a emenda afeta disposições que o constituinte determinou fossem

imodificáveis, isto é, aquilo que se denomina "cláusulas pétreas". Ora

bem: a possibilidade de uma emenda à Constituição ser tida como

inconstitucional é absolutamente trivial, encontrando, inclusive, prece-

dentes na história recente brasileira. Também aqui, nada de novo.

127. V. ADIn 939-7-DF, DJU, 21 jan. 1994, p. 193, onde se declarou inválida a

previsão,

constante da Emenda Constitucional n. 3/93, de inobservância do princípio da anterioridade

na

Page 183: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

cobrança do IPMF.

A terceira hipótese aventada por Otto Bachoff em seu clássico estu-

do é a da inconstitucionalidade de normas constitucionais em virtude de

contradição com normas constitucionais de grau superior. Nesse tópi-

co, especula ele sobre a admissibilidade de se considerar inconstitucional

uma norma criada, não pelo constituinte revisor, mas pelo constituinte

originário. Menciona ele a posição dos doutrinadores Krüger e Giese ao

tratar da possibilidade de uma norma constitucional violar a si mesma.

Segundo os dois autores, poderia suceder que uma norma constitucional

de significado secundário, nomeadamente uma norma só formalmente

constitucional, fosse de encontro a um preceito material fundamental da

Constituição: no caso de semelhante contradição, a norma constitucio-

nal de grau inferior seria inconstitucional e inválida.

Pois aqui, contrariando a posição que se divulga como sendo sua,

Otto Bachoff, discordando dos autores citados, nega categoricamente a

possibilidade de se admitir a inconstitucionalidade de uma norma cons-

titucional em face de outra. Enfatizando a autonomia do legislador cons-

tituinte e sua liberdade para estabelecer exceções ao direito que ele pró-

prio dita, consignou:

"A meu ver, nenhuma diferença faz aqui que essas nor-

mas constitucionais sejam importantes ou menos impor-

tantes, não me parecendo possível considerar incons-

titucional uma norma da Constituição de grau inferior, em

virtude da sua pretensa incompatibilidade com o "conteú-

do de princípio da Constituição" (Giese)".

128. Bachoff, Normas constitucionais inconstitucionais, cit., p. 57.

E arrematando em termos definitivos:

"No facto de o legislador constituinte se decidir por

uma determinada regulamentação tem de ver-se a declara-

ção autêntica, ou de que ele considera essa regulamentação

como estando em concordância com os princípios basilares

da Constituição, ou de que, em desvio a estes princípios, a

admitiu conscientemente como excepção aos mesmos".

129. Bachoff, Normas constitucionais inconstitucionais, cit., p. 57. Para uma leitura de

Bachoff

que não corresponde à que se explicita acima, veja-se Eduardo García de Enterría (La

Constitución

como norma y el Tribunal Constitucional, cit., p. 99), onde o notável autor espanhol,

aparentemen-

te, confunde princípios básicos e fundamentais com direito supralegal positivado, categoria

empre-

gada por Bachoff.

A quarta hipótese suscitada por Bachoff compreende, em pala-

vras suas, a inconstitucionalidade por infração de direito supralegal

positivado na lei constitucional. Aqui, sim, encontra-se a grande

especificidade da construção do eminente autor: a relação entre Consti-

tuição e direito supralegal, isto é, um direito pré-estatal, supra-estatal,

Page 184: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

suprapositivo, natural, apesar das ambigüidades que este último termo

suscita. O conceito de direito supralegal é difuso e de difícil apreensão

objetiva. Por ele, exige-se que o legislador tome em conta os "princípios

constitutivos de toda e qualquer ordem jurídica e, nomeadamente, dei-

xe-se guiar pela aspiração à justiça e evite regulamentações arbitrárias".

Dentro desse contexto, evoca-se a referência de Jellinek ao direito como

um "mínimo ético".

130. Omitem-se, por brevidade, algumas outras hipóteses cogitadas, por mais

específicas à

ordem constitucional alemã e menos relevantes do ponto de vista doutrinário.

131. Bachoff, Normas constitucionais inconstitucionais, cit., p. 42-3. O trabalho de

Jellinek

invocado é Die sozialethische Bedeutung von Recht, Unrecht und Strafe, 1908, p. 45.

Esse direito supralegal, que existe fora e acima da Constituição, é

freqüentemente positivado através de sua incorporação ao Texto Cons-

titucional. Tal incorporação, todavia, tem significado declaratório e não

constitutivo, de vez que ela não cria, mas antes reconhece o direito.

"Partem manifestamente daqui os arts. 1, n. I, e 2 da Lei Fundamental",

que consagram, respectivamente, a dignidade da pessoa humana e os

direitos de liberdade. O direito supralegal, repita-se, limita a autono-

mia do legislador constituinte, impondo-lhe limites. Daí a conclusão de

Otto Bachoff:

"O direito constitucional supralegal positivado prece-

de, em virtude do seu caráter incondicional, o direito consti-

tucional que é apenas direito positivo, razão por que aqui

- mas também só aqui - a ponderação da importância de

normas constitucionais diferentes, em confronto umas com

as outras, preconizada por Krüger e Giese, se mostra

justificada. Falta a autonomia da criação de direito, que

permite ao poder constituinte abrir brechas, através de

excepções à regra, nas normas autonomamente estabelecidas,

onde a positivação significa, não a criação de normas jurí-

dicas novas, mas apenas um reconhecimento de direito pré-

constitucional".

132. Normas constitucionais inconstitucionais, cit., p. 45.

133. Normas constitucionais inconstitucionais, cit., p. 63.

Cuidou-se, até agora, do direito supralegal positivado. É susceptível

de dúvida, acrescenta Bachoff, saber se também pode incluir-se na "Cons-

tituição" (isto é, na ordem constitucional material não escrita) direito

supralegal que não foi positivado através de sua transformação em direito

constitucional escrito. Alguns argumentos, segundo ele, apresentam-se

a favor da tese, como a circunstância de o direito supralegal ser imanente

a toda a ordem jurídica. E ainda: no direito alemão, a própria Lei Funda-

mental o reconhece - art. 20, 3: "O Poder Legislativo está vinculado à

ordem constitucional; os Poderes Executivo e Judiciário obedecem à lei

e ao direito" - e o considera imodificável por via de alteração constitu-

cional (art. 79, 3). De toda sorte, afirma Bachoff, no plano prático

Page 185: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

essa questão não tem maior significado para o direito alemão atual, em

virtude da extensa incorporação de direito supralegal à Lei Fundamen-

tal. O mesmo raciocínio, aliás, aplicar-se-ia ao caso brasileiro, onde a

Carta Constitucional é, mais do que analítica, prolixa e casuística.

Veja-se, então, que a única possibilidade admitida por Bachoff de

uma norma constitucional ser inconstitucional é a de ela violar uma

transcendente Constituição material, que abrigaria os grandes princí-

pios de direito natural, estivessem ou não positivados no documento

escrito que consubstancia a Constituição formal. Isso constitui, sem

dúvida, uma forma de estabelecer uma hierarquia entre normas cons-

titucionais, e, pois, é uma exceção ao princípio da unidade hierárqui-

co-normativa da Constituição, tal como aqui formulado. Admitida, pois,

a existência de um direito supralegal ou suprapositivo, é perfeitamen-

te possível conceber-se, do ponto de vista teórico, a ocorrência de con-

tradições entre o direito constitucional positivo e os valores, diretrizes

ou critérios que servem para a modelação do direito positivo (direito

natural, direito justo etc.).

134. Normas constitucionais inconstitucionais, cit., p. 68. Art. 79, 3: "Não é permitida

qualquer modificação desta Lei Fundamental que afete a divisão da Federação em Estados,

ou

o princípio da cooperação dos Estados na legislação, ou os princípios consignados nos

artigos

1 e 20".

135. Normas constitucionais inconstitucionais, cit., p. 67.

136. V. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Observações ao Projeto de Constituição da

Comis-

são de Sistematização da Assembléia Nacional Constituinte, mimeografado, 1987, p. 1.

137. V. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 240.

A esse propósito, o Tribunal Constitucional Federal alemão, consi-

derando-se competente para aferir essa constitucionalidade da Consti-

tuição, reconheceu a existência de um direito suprapositivo, vinculativo

para o próprio constituinte, ao declarar que "também uma norma cons-

titucional pode ser nula, se desrespeitar em medida insuportável os pos-

tulados fundamentais da justiça". É certo que o Tribunal afirmou, tam-

bém, que a ocorrência de normas originariamente inconstitucionais é

quase impossível em Estados de legalidade democrática. Mas o pro-

blema pode ganhar dimensão em momentos de mudança política.

138. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 240.

139. BVerFGE, 1, 18; 3,225. V. Bachoff, Normas constitucionais inconstitucionais,

cit.,

p.3-4.

A tradição brasileira é a da afirmação da unidade hierárquico-

normativa da Constituição, sem atenção à possibilidade de reconheci-

mento de normas constitucionais transcendentes. Sintetizando a doutri-

na corrente, veja-se a posição de Celso Ribeiro Bastos:

"Ele (o intérprete) terá de evitar as contradições, anta-

gonismos e antinomias. As Constituições compromissórias

Page 186: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

sobretudo, apresentam princípios que expressam ideologi-

as diferentes. Se, portanto, do ponto de vista estritamente

lógico, elas podem encerrar verdadeiras contradições, do

ponto de vista jurídico são sem dúvida passíveis de

harmonização desde que se utilizem as técnicas próprias

de direito.

A simples letra da lei é superada mediante um processo

de cedência recíproca. Dois princípios aparentemente con-

traditórios podem harmonizar-se desde que abdiquem da

pretensão de serem interpretados de forma absoluta. Preva-

lecerão, afinal, apenas até o ponto em que deverão renunciar

à sua pretensão normativa em favor de um princípio que

lhe é antagônico ou divergente".

140. Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, Comentários à Constituição

brasileira,

1988, v. 1, p. 348.

Também a jurisprudência tem recorrido ao princípio da unidade e à

ponderação de valores para solucionar eventuais tensões entre normas

constitucionais. Em caso que contrapôs a Igreja Universal do Reino de

Deus e a Prefeitura de Diadema, decidiu a 1ª Câmara do Tribunal de

Justiça de São Paulo:

"A liberdade de exercício de culto religioso assegura-

da pelo art. 5º, VI, da Constituição Federal, não autoriza o

abuso na utilização de instrumentos sonoros a desrespeitar

o repouso da coletividade e normas municipais. (...) Os vi-

zinhos têm também o direito à intimidade (art. 5º, X, da

CF) e, também, à liberdade de consciência e de crença

(art. 5º, VI, da CF), prejudicados estes direitos fundamen-

tais pelo som da apelante".

141. RT, 676:98, 1992, Ap. 146.692-1/6, rel. Des. Andrade Marques.

Ainda no regime constitucional anterior, o Supremo Tribunal Fede-

ral teve oportunidade de enfrentar delicada questão envolvendo o prin-

cípio da unidade constitucional, relativamente à dualidade de previsões

de empréstimo compulsório constante do Texto. De fato, o art. 18, § 3º,

referia-se à instituição de empréstimo compulsório pela União, em "ca-

sos excepcionais", e o art. 21, § 2º, II, referia-se à sua instituição em

"casos especiais" e sujeitos às "disposições constitucionais relativas aos

tributos". A péssima técnica constitucional gerou imensa divergência

doutrinária, sendo que muitos sustentavam que existiriam duas espécies

de empréstimos compulsórios, e que somente à segunda se aplicariam

as limitações constitucionais ao poder de tributar. Em grande esforço de

interpretação, que teve de superar a leitura mais óbvia dos dispositivos,

a mais alta Corte afirmou existir uma única modalidade de empréstimo

compulsório, consignando:

"Em síntese, o art. 21, § 2º, n. II, refere-se à mesma

hipótese do art. 18, § 3º, da Constituição Federal, senão

pela possibilidade real de divisar-se um sentido comum nas

Page 187: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

expressões "casos especiais e casos excepcionais", pelo

menos em razão da necessária prevalência de outros méto-

dos de interpretação, quando em antinomia com o sentido

gramatical".

142. RTJ, 129:77, p. 88, MS 20.608-DF, rel. Min. Sydney Sanches. V. também

Ricardo Lobo

Torres, Sistemas constitucionais tributários, 1986, t. 2, p. 425 e s., especialmente p. 440-1.

O fundamento subjacente a toda a idéia de unidade hierárquico-

normativa da Constituição é o de que as antinomias eventualmente de-

tectadas serão sempre aparentes e, ipso facto, solucionáveis pela busca

de um equilíbrio entre as normas, ou pela legítima exclusão da incidên-

cia de alguma delas sobre dada hipótese, por haver o constituinte dis-

posto nesse sentido. Não se reconhece, assim, a existência de antinomias

jurídicas reais, qualificadas por Tércio Sampaio Ferraz como sendo "a

oposição que ocorre entre duas normas contraditórias (total ou parcial-

mente), emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito

normativo, que coloca o sujeito numa posição insustentável pela ausên-

cia ou inconsistência de critérios aptos a permitir-lhe uma saída nos

quadros de um ordenamento dado".

143. Tércio Sampaio Ferraz, Antinomia, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 7.

Diferente linha de entendimento é seguida por Maria Helena Diniz,

que não só admite a possibilidade de existência de antinomias reais como

supõe haver um exemplo disso na atual Carta Constitucional. Vislumbra

a ilustre autora que tal se passa em relação ao art. 33 do Ato das Dispo-

sições Constitucionais Transitórias e os arts. 5º e 100 do corpo perma-

nente da Constituição. O art. 33 referido prevê que os precatórios judici-

ais pendentes de pagamento na data da promulgação da Constituição

poderão ser pagos no prazo de até oito anos, com inclusão de juros e

correção monetária. O art. 100 do corpo permanente é o que contém a

regra geral sobre precatórios, determinando o seu pagamento em uma

só vez no exercício seguinte, pela inclusão no orçamento da entidade

estatal, desde que apresentados até 12 de julho. E o art. 5º abriga o prin-

cípio geral da isonomia. Escreveu a ilustre professora paulista:

"Temos entre os arts. 5º e 100 da Carta Magna e o art.

33 das Disposições Transitórias uma antinomia real e não

aparente, pois não se poderá solucioná-la pelos critérios:

a) norma superior revoga a inferior, já que as três são da

mesma hierarquia; b) norma posterior revoga a anterior,

porque todas entraram em vigor na mesma data; e c) nor-

ma especial prevalece sobre a regra geral, porque aquelas

normas estão tratando desigualmente os iguais (credores

da Fazenda Pública) e esse critério requer que se trate desi-

gualmente o que é desigual. Assim, por meio de uma inter-

pretação conetiva far-se-á com que os arts. 5º e 100 preva-

leçam sobre o art. 33, sob pena de ofender todo o sistema,

pois, ocorrendo a antinomia real, o aplicador, utilizando-se

dos mecanismos supletivos de lacuna, resolvendo o pro-

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blema no caso concreto, já que não poderá eliminar o con-

flito, deverá ater-se ao princípio da isonomia".

144. Maria Helena Diniz, Norma constitucional e seus efeitos, 1989, p. 111 e s.

145. Maria Helena Diniz, Norma constitucional e seus efeitos, cit., p. 115.

Com as homenagens devidas e merecidas, a tese não se sustenta. É

que existe clara antinomia real entre as proposições a e c acima. De fato,

na primeira se afirma que não há hierarquia entre as três normas e, na

outra, que uma das normas é inconstitucional. Ora, para admitir-se que

uma norma possa ser inconstitucional em face de outra, é evidente que

se admite que uma delas é superior. E mais: o fato de a Constituição

desigualar pessoas e discriminar situações - isto é, de abrir exceções à

regra geral da igualdade - não constitui, em si, qualquer anomalia. Há

dezenas de disposições que discriminam em função do sexo (arts. 40,

III, todas as alíneas), da idade (art. 101), da nacionalidade (art. 12, § 3º),

da raça (art. 231) etc. E até em função do momento de apresentação do

precatório, porque quem vier a apresentá-lo após 12 de julho só irá rece-

ber pelo menos um ano depois (art. 100, § 1º).

Portanto, o único fundamento apto a legitimar, doutrinariamente, o

ponto de vista ali sustentado é a tese de Otto Bachoff de que existem

normas que abrigam princípios de direito supralegal, que estão acima

das meras normas da Constituição formal, e que condicionam a atuação

do constituinte, mesmo que originário. E aí poder-se-ia cogitar de que o

tratamento desigual entre credores do erário - uns recebendo em um

ano e outros em oito - viola esse sentido superior de justiça que deve

presidir a ordem jurídica e ao qual mesmo o constituinte está subordina-

do. É possível concordar ou discordar dessa tese, mas ela se assenta em

fundamentos logicamente dedutíveis e sustentáveis.

A tese da professora Maria Helena Diniz foi reproduzida acriticamen-

te em decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, sem menção à ques-

tão do direito supralegal. Fora exceções raras como essas, a doutrina e

a jurisprudência dos tribunais superiores consagram o princípio da uni-

dade da Constituição, sem referência à possibilidade de existirem nor-

mas constitucionais inconstitucionais.

146. AI 475.819-8, 8ª Câm. Civ., j. 17-4-1991, RT, 680:125. É bem de ver que o

Supremo

Tribunal Federal, a propósito dessa específica discussão sobre o art. 33 do ADCT, já se

pronunciou no

julgamento do RE 160.486-7-SP, rel. Min. Celso de Mello: "Inexiste qualquer relação de

antinomia

real ou insuperável entre a norma inscrita no art. 33 do ADCT e os postulados da isonomia,

da justa

indenização, do direito adquirido e do pagamento mediante precatórios, consagrados pelas

disposições

permanentes da Constituição da República, eis que todas essas cláusulas normativas,

inclusive aquelas

de índole transitória, ostentam grau idêntico de eficácia e de autoridade jurídicas" (RDA,

201:157, 1995).

Page 189: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Ainda recentemente, o Supremo Tribunal Federal, de maneira cate-

górica, endossou a tese da impossibilidade da verificação do desrespei-

to aos princípios de direito suprapositivo inseridos pelo poder constituinte

originário no texto da Constituição:

"Na atual Carta Magna "compete ao Supremo Tribu-

nal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição" (art.

102, caput), o que implica dizer que essa jurisdição lhe é

atribuída para impedir que se desrespeite a Constituição

como um todo, e não para, com relação a ela, exercer o

papel de fiscal do poder constituinte originário, a fim de

verificar se este teria, ou não, violado os princípios de di-

reito suprapositivo que ele próprio havia incluído no texto

da mesma Constituição".

147. RTJ, 163:872, 1998, ADIn 815-DF, rel. Min. Moreira Alves.

Nos últimos tempos, o princípio da unidade esteve subjacente ao

debate doutrinário e jurisprudencial envolvendo questões afetas à

persecução penal, ao direito de privacidade (art. 5º, X), à inviolabilidade

das comunicações telefônicas (art. 5º, XII) e à inadmissibilidade das

provas obtidas por meios ilícitos (art. 5º, LVI). Vejam-se a exposição e a

reflexão que se seguem.

No julgamento do Habeas Corpus 69.912, o Supremo Tribunal Fe-

deral afirmou a tese de que, antes da edição da lei prevista no inciso XII

do art. 5º da Constituição - incumbida de estabelecer as hipóteses e a

forma de quebra do sigilo das comunicações telefônicas -, a escuta

telefônica, mesmo com autorização judicial, tipificava prova ilícita e,

conseqüentemente, inadmissível. O entendimento foi reiterado emjul-

gados posteriores, como no HC 73.351-SP, no qual ficou decidido:

"O STF, por maioria de votos, assentou entendimento

no sentido de que sem a edição de lei definidora das hipó-

teses e da forma indicada no art. 5º, inc. XII, da Constitui-

ção não pode o juiz autorizar a interceptação de comunica-

ção telefônica para fins de investigação criminal.

Assentou, ainda, que a ilicitude da interceptação tele-

fônica - à falta de lei que, nos termos do referido disposi-

tivo, venha a discipliná-la e viabilizá-la - contamina ou-

tros elementos probatórios eventualmente coligidos, oriun-

dos, direta ou indiretamente, das informações obtidas na

escuta. Habeas corpus concedido".

148. HC 69.912-RS, STF, DJU, 25 mar. 1994, rel. Min. Sepúlveda Pertence. Excertos

da

ementa: "Prova ilícita: escuta telefônica mediante autorização judicial: afirmação pela

maioria da

exigência de lei, até agora não editada, para que, "nas hipóteses e na forma" por ela

estabelecidas,

possa o juiz, nos termos do art. 5º, XII, da Constituição, autorizar a interceptação de

comunicação

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telefônica para fins de investigação criminal. (...) A ilicitude da interceptação telefônica..,

contami-

nou, no caso, as demais provas, todas oriundas, direta ou indiretamente, das informações

obtidas na

escuta (fruits of the poisonous tree), nas quais se fundou a condenação do paciente". Em 24

de

junho de 1996 foi promulgada a Lei n. 9.296, que regulamentou o inciso XII, parte final, do

art. 5º

da Constituição.

149. HC 73.351 -SP, DJU, 19 mar. 1999, rel. Min. Ilmar Galvão.

O Supremo Tribunal Federal, em orientação que tem nossa adesão,

não optou pela atenuação do caráter peremptório da norma constitucio-

nal restritiva da prova ilícita. Refutou, assim, a proposição de autores de

grande reconhecimento que sustentavam a tese da ponderação de valo-

res e da proporcionalidade para aferir se a prova, mesmo ilícita, não se

destinava a preservar valores que, in concreto, deveriam ter primazia

sobre a restrição constitucional.

150. Neste sentido, o eminente professor José Carlos Barbosa Moreira, A Constituição

e as

provas ilicitamente adquiridas, RDA, 205:11.

É bem de ver, no entanto, que a jurisprudência da Corte tem tempe-

rado a doutrina da contaminação, também referida como fruits of the

poisonous tree, transitando por uma linha tênue. Assim é que passou a

rejeitar a invalidação de processos ou de atos processuais nos casos em

que a prova ilícita não fosse a única prova. De parte o fato de que a

prova ilícita, normalmente, gera outras provas, e de que não é possível,

em relação a estas, obter atestado de origem ou assepsia, parece difícil

crer que o julgador não se deixe influenciar pela prova ilícita, mesmo que

não possa nela fundar sua convicção.

151. Veja-se, e. g., HC 74.599-SP, DJU, 7 fev. 1997, rel. Min. ILmar Galvão, onde se

assen-

tou: Não cabe anular-se a decisão condenatória com base na alegação de haver a prisão em

fla-

grante resultado de informação obtida por meio de censura telefônica deferida

judicialmente. E que

a interceptação telefônica.., não foi a prova exclusiva que desencadeou o procedimento

penal, mas

somente veio a corroborar as outras licitamente obtidas pela equipe de investigação

policial. Habeas

corpus indeferido".

Relativamente ao que se denomina gravação ambiental, hipótese

em que um dos interlocutores em uma conversa grava-a sem avisar ao

outro, o Supremo Tribunal Federal também afirmou a sua admissibili-

dade, ao menos nas hipóteses de a gravação ter sido feita por vítima de

um comportamento ilícito. Confira-se a posição do Tribunal:

"Captação, por meio de fita magnética, de conversa

entre presentes, ou seja, a chamada gravação ambiental,

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autorizada por um dos interlocutores, vítima de concussão,

sem o conhecimento dos demais. (A) ilicitude da prova

(fica) excluída por caracterizar-se o exercício de legítima

defesa de quem a produziu".

152. RECR 212.081, DJU, 27 mar. 1998, p. 23, rel. Min. Octavio Gallotti.

O mesmo entendimento prevaleceu relativamente à gravação de

conversa telefônica por uma das partes envolvidas. Veja-se, a propósito,

o pronunciamento a seguir:

"Habeas corpus. Prova. Licitude. Gravação de telefo-

nema por interlocutor. É lícita a gravação de conversa tele-

fônica feita por um dos interlocutores, ou com sua autori-

zação, sem ciência do outro, quando há investida crimino-

sa deste último. É inconsistente e fere o senso comum fa-

lar-se em violação do direito à privacidade quando

interlocutor grava diálogo com seqüestradores, esteliona-

tários ou qualquer tipo de chantagista. Ordem indeferida".

153. HC 75.338-RJ, DJU, 25 set. 1998, p. 11, rel. Min. Nelson Jobim.

Parece-me oportuno, neste ponto, suscitar uma reflexão. Quando a

gravação, seja ambiental ou de conversa telefônica, é feita por vítima de

um comportamento delituoso, a admissibilidade da prova afigura-se in-

discutível. A Constituição protege a privacidade e não o crime. Como

não se trata de violação da comunicação (hipótese que a Constituição

interdita, salvo as exceções legais e mediante autorização judicial), a

ponderação de valores entre a incolumidade do patrimônio jurídico da

vítima e a privacidade do ofensor deve resolver-se em favor do primeiro.

Considerem-se, porém, variações desta hipótese em temas não cri-

minais. Será legítimo ao marido gravar conversa íntima com sua mulher

e utilizá-la no processo de separação? Será legítimo ao advogado de

uma das partes juntar aos autos transcrição de conversa telefônica com

o advogado da outra parte, na qual este último admitiu algum fato gravoso

a seu cliente? Será legítimo ao representante do Ministério Público, sem

a ciência dos demais presentes, gravar a audiência e depois utilizar a fita

magnética como prova, no recurso, procurando infirmar algum dado

constante da ata?

A gravação clandestina é um mal e não deve ser estimulada. A pri-

vacidade, a confiabilidade no próximo, a ética das relações sociais são

valores que merecem preservação. A aceitabilidade da gravação clan-

destina, ao menos em primeira reflexão, parece-me deva ficar confinada

às hipóteses de utilização por vítima de crime.

6. Princípios da razoabilidade e da proporcionalidade

O princípio da razoabilidade tem sua origem e desenvolvimento li-

gados à garantia do devido processo legal, instituto ancestral do direito

anglo-saxão. De fato, sua matriz remonta à cláusula law of the land,

inscrita na Magna Charta, de 1215, documento que é reconhecido como

um dos grandes antecedentes do constitucionalismo. Modernamente,

sua consagração em texto positivo se deu através das emendas 5ª e 14ª à

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Constituição norte-americana. A cláusula do due process of law tor-

nou-se uma das principais fontes da expressiva jurisprudência da Supre-

ma Corte dos Estados Unidos ao longo dos últimos dois séculos.

154. As dez primeiras emendas, conhecidas como Bill of Rights, foram aprovadas em

15-12-

1791. A 5ª emenda estabeleceu que "ninguém será privado da vida, liberdade ou

propriedade sem o

devido processo legal". O preceito vinculava apenas o Governo Federal. Somente a 14ª

emenda,

aprovada em 21-7-1868, já após a guerra civil, estendeu a regra aos Estados-membros, ao

dispor: "Ne-

nhum Estado privará qualquer pessoa da vida, liberdade ou propriedade sem o devido

processo legal".

155. O tema é versado em todos os tratados e livros de textos de direito constitucional

ameri-

cano. Vejam-se, por todos, Corwin, The Constitution and what it means today, 1978; Tribe,

American constitutional law, cit.; Nowak, Rotunda e Young, Constitutional law, cit.;

Gunther,

Constitutional law, cit.; Stone, Seidman, Sunstein e Tushnet, Constitutional law, 1986;

Brest e

Levinson, Processes of constitutional decision making, cit. De autores americanos, em

tradução

portuguesa, vejam-se Thomas Cooley, Princípios gerais de direito constitucional dos

Estados Uni-

dos da América do Norte, 1982; Bernard Schwartz. Direito constitucional americano, 1966.

Entre

os autores nacionais, vejam-se: San Tiago Dantas, Igualdade perante a lei e "due process of

law"

(contribuição ao estudo da limitação constitucional do Poder Legislativo), RF,

116:357,1948; José

Alfredo de Oliveira Baracho, Processo e Constituição: o devido processo legal, s. d.; Carlos

Roberto

de Siqueira Castro, O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição

do

Brasil, 1989, e Ada Pellegrini Grinover, As garantias constitucionais do direito de ação,

1973.

Antes de procurar delimitar com precisão os contornos do princípio

da razoabilidade e suas potencialidades no direito brasileiro, é de pro-

veito percorrer brevemente sua trajetória no direito norte-americano. O

princípio do devido processo legal, nos Estados Unidos, é marcado por

duas grandes fases: a primeira, onde se revestiu de caráter estritamente

processual (procedural due process), e uma segunda, de cunho substan-

tivo (substantive due process), que se tomou fundamento de um criativo

exercício de jurisdição constitucional. De fato, ao lado do princípio da

igualdade perante a lei, essa versão substantiva do devido processo legal

tornou-se importante instrumento de defesa dos direitos individuais,

ensejando o controle do arbítrio do Legislativo e da discricionariedade

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governamental. É por seu intermédio que se procede ao exame de

razoabilidade (reasonableness) e de racionalidade (rationality) das nor-

mas jurídicas e dos atos do Poder Público em geral.

156. V. Siqueira Castro, O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova

Constitui-

ção do Brasil, cit., p. 3.

Embora se tenha feito referência a duas fases, na verdade elas não

se excluem, mas, ao contrário, convivem até hoje. A primeira versão do

due process, como se disse, teve ênfase processual, com expressa rejei-

ção de qualquer conotação substantiva que permitisse ao Judiciário exa-

minar o caráter injusto ou arbitrário do ato legislativo. Tratava-se,

inicialmente, de uma garantia voltada para a regularidade do processo

penal, depois estendida ao processo civil e ao processo administrativo.

Seu campo de incidência recaía notadamente no direito ao contraditório

e à ampla defesa, incluindo questões como o direito a advogado e ao

acesso à justiça para os que não tinham recursos.

157. Representativo dessa fase é o conjunto de casos conhecidos como Slaughterhouse

ca-

ses, 83 U. S. (16 Wall.) 36(1873), onde a Suprema Corte recusou-se a considerar

inconstitucional

uma lei da Louisiana que conferia monopólio de uma atividade a determinada companhia,

impe-

dindo todas as demais pessoas e empresas de explorarem a atividade. A decisão fundou-se

em que

a garantia do devido processo legal destinava-se a proteger as pessoas contra as injustiças

de cunho

processual, o que não era o caso.

158. V. Vitek vs. Jones, 445 U. S.480(1980): "Due process requires written notice, a

hearing

et which evidence is heard, including a right of presentation, confrontation and cross-

examination,

an independent decisionmaker, a written statement by the fact-finder, effective and timely

notice of

rights, and qualified and independent assistance of legal counsel". V. Barron e Dienes,

Constitutional

law,cit.,p. 175.

159. Vejam-se, e. g., Boddie vs. Connecticut, 401 U. S.371 (1971)e Little vs. Streater,

452

U.S. 1(1981).

O desenvolvimento e a afirmação do substantive due process mar-

cam um impulso de ascensão do Judiciário, provavelmente só compará-

vel ao que se verificara quando da introdução do controle judicial da

constitucionalidade das leis, em 1803, com Marbury vs. Madison. É que

através desse fundamento - o do devido processo legal - abriu-se um

amplo espaço de exame de mérito dos atos do Poder Público, com a

redefinição da noção de discricionariedade. Embora se traduza na idéia

de justiça, de razoabilidade, expressando o sentimento comum de uma

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dada época, não se trata de cláusula de fácil apreensão conceptual, como

bem captou o Justice Harlan, da Suprema Corte:

""Devido processo" não foi ainda reduzido a nenhuma

fórmula: seu conteúdo não pode ser determinado pela refe-

rência a qualquer código. O melhor que pode ser dito é que

através do curso das decisões desta Corte ele representou o

equilíbrio que nossa Nação, construída sobre postulados

de respeito pela liberdade do indivíduo, oscilou entre esta

liberdade e as demandas da sociedade organizada".

160. Voto proferido em Griswold vs. Connecticut, 381 U. S.479(1965).

De toda sorte, a cláusula enseja a verificação da compatibilidade entre

o meio empregado pelo legislador e os fins visados, bem como a aferição da

legitimidade dos fins. Somente presentes essas condições poder-se-á admi-

tir a limitação a algum direito individual. Aliás, tais direitos não se limitam

aos que se encontram expressamente previstos no Texto, mas também in-

cluem outros, fundados nos princípios gerais de justiça e liberdade.

O reconhecimento dessa dimensão substantiva do devido processo

legal passou por três fases distintas e de certa forma cíclicas, que incluem

(a) sua ascensão e consolidação, do final do século XIX até a década de

30; (b) seu desprestígio e quase abandono no final da década de 30; (c)

seu renascimento triunfal na década de 50, no fluxo da revolução pro-

gressista promovida pela Suprema Corte sob a presidência de Earl

Warren. Presentemente, a Suprema Corte reassumiu um perfil conser-

vador e o ativismo judicial - isto é, a intervenção dos tribunais no

mérito de certas valorações legislativas e administrativas -, que se

manifestava destacadamente pelo uso substantivo da cláusula do devido

processo legal, vive um momento de refluxo.

A doutrina do devido processo legal substantivo começou a se deline-

ar no final do século passado, como reação ao intervencionismo estatal na

ordem econômica. A Suprema Corte fez-se intérprete do pensamento li-

beral, fundado na idéia do laissez faire, pelo qual o desenvolvimento é

melhor fomentado com a menor interferência possível do Poder Público

nos negócios privados. Após alguns ensaios de aplicação do substantive

due process, a Corte finalmente invalidou, por inconstitucional, uma lei

estadual que impedia que os residentes de Louisiana contratassem segu-

ros de seus bens com empresas de fora do Estado. A decisão que melhor

simbolizou esse período, todavia, foi proferida em Lochner vs. New York,

onde, em nome da liberdade de contrato, considerou-se inconstitucional

uma lei de Nova York que limitava a jornada de trabalho dos padeiros.

Sob o mesmo fundamento, a Suprema Corte invalidou inúmeras outras

leis, inclusive a que estabelecia salário mínimo para mulheres. Esse

período ficou conhecido como a era Lochner.

161. Allgeyer vs. Louisiana, 165 U. S. 578 (1897).

162. 198U.S.45(1905).

163. Adkins vs. Children´s Hospital, 261 U. S. 525 (1923).

164. 295 U. S. 495 (1935).

Sua superação se deu pelo advento do New Deal, após a crise de

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1929. Eleito Presidente em 1932, Franklin Roosevelt deu início à edição

de ampla legislação social e de intervenção no domínio econômico. Em

1935, os casos em que essa legislação era contestada começaram a chegar

à Suprema Corte, que, fiel à doutrina Lochner e hostil ao intervencionismo

estatal, passou a invalidar diversas leis importantes para o plano de recu-

peração econômica. Nesse ano, ao julgar o caso Schechter Poultry Corp.

vs. United States, a Corte declarou a inconstitucionalidade da Lei Nacio-

nal de Recuperação Industrial, de 1933, reputada essencial para a conti-

nuidade da ação governamental, e que continha normas sobre concorrên-

cia desleal, preços e salários, jornada de trabalho e negociações coletivas.

Estabeleceu-se um confronto entre o Executivo e o Judiciário. Reeleito

em 1936, no início do ano seguinte Franklin Roosevelt envia uma mensa-

gem legislativa ao Congresso modificando a composição da Suprema

Corte, com vistas a obter maioria naquele colegiado. Conhecida como

court-packing plan, a lei não foi aprovada pelo Congresso. Mas, pressio-

nada, a Suprema Corte mudou sua orientação e abdicou do exame de

mérito das normas de cunho econômico, encerrando o controle substanti-

vo de tais leis. Foi o declínio do devido processo legal substantivo.

165. A lei proposta consistia no seguinte: para cada juiz da Suprema Corte com idade

superior

a 70 anos e que estivesse exercendo a judicatura há mais de 10, poderia o Presidente

nomear um

novo, desde que o número total de ministros não excedesse de 15. Sobre esse tema, v.

Gerald

Gunther, Constitutional law, cit., p. 121 e s. V. também William H. Rehnquist, The

Supreme Court:

how it was, how it is, cit., p. 215 e s.

166. Um dos marcos da superação da era Lochner foi o julgamento de West Coast vs.

Parrish,

300 U. S. 379(1937), onde a Corte, revertendo decisão anterior em Adkins vs. Children´s

Hospital

(v. supra), considerou constitucional lei estadual que estabelecia salário mínimo para

mulheres.

A terceira fase do devido processo legal substantivo teve como ante-

cedente importante a distinção entre liberdades econômicas e não econô-

micas, cujo marco mais célebre foi a nota de rodapé n. 4, integrante do

voto do Justice Stone ao julgar o caso United States vs. Carolene

Products. No primeiro domínio, a atitude dos tribunais deveria ser de

deferência aos outros Poderes. Mas no tocante às liberdades pessoais,

inclusive e especialmente quanto à proteção das minorias, o interven-

cionismo judicial continuava a ser indispensável. Esses direitos e liberda-

des não econômicos, que incluem a liberdade de expressão, de religião,

bem como direitos de participação política e de privacidade, muitos deles

não decorrentes expressamente do Texto, foram a tônica do

constitucionalismo americano das últimas décadas. Decisões polêmicas

na área da igualdade racial, como Brown vs. Board of Education, dos

direitos políticos, como Reynolds vs. Sims e de processo penal, como

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Miranda vs. Arizona, fizeram desse período um dos mais "portentosos

e tumultuados" da história da Corte.

167. 304 U. S. 144 (1938).

168. 347 U. S.873(1954).

169. 377 U. S.533(1964).

170. 384 U. S.436(1966).

171. Stone, Seidman, Sustein e Tushnet, Constitutional law, cit., p. XX.

No âmbito da aplicação substantiva do devido processo legal, os

casos que mais destacadamente marcaram época, pela ousadia, foram

Griswold vs. Connecticut e Roe vs. Wade, onde a Suprema Corte

declarou a inconstitucionalidade de leis estaduais e consagrou um novo

direito, não expressamente inscrito na Constituição, que foi o direito de

privacidade. Em Griswold, invalidou-se uma lei do Estado de Connecticut

que incriminava o uso de pílula anticoncepcional ou qualquer outro artigo

ou instrumento contraceptivo, punindo tanto quem consumisse como quem

prescrevesse. Em Roe, a Corte considerou inconstitucional uma lei do

Texas que criminalizava o aborto, e não o admitia nem mesmo antes do

terceiro mês de gravidez. Em seu voto, consignou o Juiz Blackmun:

"Este direito de privacidade..., decorra ele do conceito

de liberdade pessoal da 14ª emenda, como me parece, ou

dos direitos reservados previstos na 9ª emenda, é abrangente

o suficiente para incluir a decisão de uma mulher sobre pôr

fim ou não à sua gravidez.

(...) A lei do Texas é excessivamente abrangente. Ela

não distingue entre abortos praticados no início da gravidez

e os que são praticados mais adiante e o limita a uma única

hipótese, que é a de "salvar" a vida da mãe. Conseqüente-

mente, a lei não pode sobreviver ao presente ataque...".

172. 381 U. S. 479 (1965).

173. 410 U. S. 113(1973).

174.410 U.S. 113(1973).

Todas as nomeações para a Suprema Corte nas últimas décadas de

governos republicanos nos Estados Unidos foram marcadas pelo esfor-

ço de escolher ministros que rejeitassem o ativismo judicial deflagrado

pela Corte Warren e estivessem dispostos a rever a decisão proferida em

Roe. Ao longo dos anos, essa decisão foi abertamente questionada, mas

jamais foi claramente reformada (overruled).

175. Um dos últimos julgamentos sobre o tema ocorreu em Parenthood vs. Casey, 112

S. Ct. 2791

(1992), onde o voto majoritário, conquanto externando divergência quanto à decisão em

Roe, questionou

a própria legitimidade da Corte para reverter tal decisão. V. Morton J. Horwitz, Foreword:

the Constitution

of change: legal fundamentality without fundamentalism, Harvard Law Review, 107:30,

1993.

Conclui-se, assim, a trajetória histórica da cláusula do devido pro-

cesso legal e do princípio da razoabilidade no direito constitucional nor-

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te-americano. É bem de ver que tais conceitos correram mundo e reper-

cutiram sobre os ordenamentos jurídicos atentos à constante busca de

equilíbrio entre o exercício do poder e a preservação dos direitos dos

cidadãos. Convém, por isso mesmo, aprofundar o exame do tema à luz

dos métodos de argumentação e exposição sistemática que caracteri-

zam o modo de entender e praticar o direito nos países de tradição jurí-

dica romano-germânica. De logo é conveniente ressaltar que a doutrina

e a jurisprudência, assim na Europa continental como no Brasil, costu-

mam fazer referência, igualmente, ao princípio da proporcionalidade,

conceito que em linhas gerais mantém uma relação de fungibilidade

com o princípio da razoabilidade. Salvo onde assinalado, um e outro

serão aqui empregados indistintamente.

176. Embora não faça essa assemelhação e refira-se sempre ao princípio da

proporcionalidade,

Willis Santiago Guerra Filho lembra a sinonimia e origem comum, na matemática, dos

termos

"razão" (lat. ratio) e "proporção" (lat. proportio)" (Sobre o princípio da proporcionalidade,

mimeografado, p. 13-4).

O princípio da razoabilidade é um parâmetro de valoração dos atos

do Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor superior

inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça. Sendo mais fácil de ser

sentido do que conceituado, o princípio se dilui em um conjunto de pro-

posições que não o libertam de uma dimensão excessivamente subjetiva.

É razoável o que seja conforme à razão, supondo equilíbrio, moderação e

harmonia; o que não seja arbitrário ou caprichoso, o que corresponda

ao senso comum, aos valores vigentes em dado momento ou lugar.

Há autores, mesmo, que recorrem ao direito natural como fundamento

para a aplicação da regra da razoabilidade, embora possa ela radicar-se

perfeitamente nos princípios gerais da hermenêutica. Sobre este ponto

em particular, veja-se a passagem inspirada de San Tiago Dantas:

"Não é apenas a doutrina do Direito Natural que vê no

Direito uma ordem normativa superior e independente da Lei.

Mesmo os que concebem a realidade jurídica como algo

mutável e os princípios do Direito como uma síntese das nor-

mas dentro de certos limites históricos reconhecem que pode

haver leis inconciliáveis com esses princípios, cuja presença

no sistema positivo fere a coerência deste, e produz a sensação

íntima do arbitrário, traduzida na idéia de "lei injusta"".

177. Rafael Bielsa, Estudios de derecho público: derecho administrativo, 1950, t. 1, p.

485.

178. Nebbia vs. New York, 291 U. S.502(1934).

179. Linares Quintana, Derecho constitucional y instituciones políticas, cit., v. 1, p.

122.

180. Pound, citado por José Alfredo de Oliveira Baracho, Processo e Constituição: o

devido

processo legal, p. 90.

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181. V. Bidart Campos, Interpretación y el control constitucionales en la jurisdición

constituci-

onal, 1987, p. 92. Aliás, na sua origem norte-americana a cláusula do devido processo legal

foi influ-

enciada por concepções jusnaturalistas, sendo interpretada como uma garantia do direito a

um proces-

so que se inspirasse em princípios universais e superiores de justiça, conforme noticia Ada

Pellegrini

Grinover (As garantias constitucionais do direito de ação, cit., p. 33-4), onde esclarece:

"Mas, sob a

influência de magistrados como Holmes, Cardozo, Frankfurter, percebe-se que os

princípios de igual-

dade e de justiça processual não são a expressão de uma norma abstrata e superior, absoluta

e

transcendental com relação à normatividade positiva: trata-se, pelo contrário, da enunciação

de valo-

res históricos e relativos, que podem impor-se à razão, em determinado contexto histórico".

V., tam-

bém, Grey, Do we have an unwritten Constitution?, 27Stanford Law Review, p. 703,715-6,

1975.

182. Siqueira Castro, O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova

Constitui-

ção do Brasil, cit., p. 53.

183. San Tiago Dantas, Igualdade perante a lei..., RF, 116:357, p. 362.

Em seguida, após referência ao sistema americano e ao due process

of law, arrematou:

"A lei que não pode ser considerada "law of the land" é

a lei contrária ao direito. Não a um direito fixado em regras

e comandos precisos, que se tornariam, nesse caso, imutá-

veis; mas ao direito como síntese, como corpo de princípios,

como método de criação normativa".

184. San Tiago Dantas, Igualdade perante a lei..., RF, 116:357, p. 362.

Seja como for, é necessário seguir em busca de terreno mais sólido

e de elementos mais objetivos na caracterização da razoabilidade dos

atos do Poder Público, especialmente, para os fins aqui considerados, os

de cunho normativo. Somente essa delimitação de objeto poderá impe-

dir que o princípio se esvazie de sentido, por excessivamente abstrato,

ou que se perverta num critério para julgamentos ad hoc.

A atuação do Estado na produção de normas jurídicas normalmente

far-se-á diante de certas circunstâncias concretas; será destinada à reali-

zação de determinados fins, a serem atingidos pelo emprego de deter-

minados meios. Desse modo, são fatores invariavelmente presentes em

toda ação relevante para a criação do direito: os motivos (circunstâncias

de fato), os fins e os meios. Além disso, há de se tomar em conta, tam-

bém, os valores fundamentais da organização estatal, explícitos ou im-

plícitos, como a ordem, a segurança, a paz, a solidariedade; em última

análise, a justiça. A razoabilidade é, precisamente, a adequação de sen-

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tido que deve haver entre esses elementos.

185. Veja-se, a propósito, Humberto Quiroga Lavié, Derecho constitucional, 1984, p.

461.

Essa razoabilidade deve ser aferida, em primeiro lugar, dentro da

lei. É a chamada razoabilidade interna, que diz com a existência de uma

relação racional e proporcional entre seus motivos, meios e fins. Aí está

incluída a razoabilidade técnica da medida. Por exemplo: se, diante de

um surto inflacionário (motivo), o Poder Público congela o preço dos

medicamentos vitais para certos doentes crônicos (meio) para assegurar

que pessoas de baixa renda tenham acesso a eles (fim), há uma relação

racional e razoável entre os elementos em questão, e a norma, em prin-

cípio, afigura-se válida. Ao revés, se, diante do crescimento estatístico

da AIDS (motivo), o Poder Público proíbe o consumo de bebidas alcoó-

licas durante o carnaval (meio), para impedir a contaminação de cida-

dãos nacionais (fim), a medida será irrazoável. Isso porque estará rom-

pida a conexão entre os motivos, os meios e os fins, já que inexiste

qualquer relação direta entre o consumo de álcool e a contaminação.

De outra parte, havendo a razoabilidade interna da norma, é preciso

verificar sua razoabilidade externa, isto é: sua adequação aos meios e

fins admitidos e preconizados pelo Texto Constitucional. Se a lei

contravier valores expressos ou implícitos no Texto Constitucional, não

será legítima nem razoável à luz da Constituição, ainda que o seja inter-

namente. Suponha-se, por exemplo, que, diante da impossibilidade de

conter a degradação acelerada da qualidade da vida urbana (motivo), a

autoridade municipal impedisse o ingresso nos limites da cidade de qual-

quer não-residente que não fosse capaz de provar estar apenas em trân-

sito (meio), com o que reduziria significativamente a demanda por habi-

tações e equipamentos urbanos (fim). Norma desse teor poderia até ser

internamente razoável, mas não passaria no teste de razoabilidade dian-

te da Constituição, por contrariar princípios como o federativo, o da

igualdade entre brasileiros etc.

186. Essa interessante distinção entre razoabilidade interna e externa encontra-se em

Quiroga

Lavié, Derecho constitucional, cit., p. 462 e s.

Essa exigência de conformação ou adequação dos meios aos fins,

que já era presente na construção norte-americana do princípio da

razoabilidade, é ponto de consenso entre autores distanciados geografi-

camente. A esse propósito, averbou Linares Quintana:

"(La razonabilidad) consiste en la adecuación de los

medios utilizados por el legislador a la obtención de los

fines que determina la medida, a efectos de que tales medios

no aparezcan como infundados o arbitrarmos, es decir, no

proporcionados a las circunstancias que los motiva y a los

fines que se procura alcanzar con ellos. ... Tratase, pues, de

una correspondencia entre los medios propuestos y los fi-

nes que a través de ellos deben alcanzarse".

Page 200: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

187. Linares Quintana, Derecho constitucional y instituciones políticas, cit., v. 1, p.

128.

Na mesma linha, J. J. Gomes Canotilho:

"Entre o fim da autorização constitucional para uma

emanação de leis restritivas e o exercício do poder discricio-

nário por parte do legislador ao realizar esse fim deve exis-

tir uma inequívoca conexão material de meios e fins".

188. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 488.

Na Alemanha, o Tribunal Constitucional Federal, em decisão de

1971, pronunciou-se em igual sentido:

"O meio empregado pelo legislador deve ser adequado

e exigível, para que seja atingido o fim almejado. O meio é

adequado quando, com o seu auxilio, se pode promover o

resultado desejado; ele é exigível quando o legislador não

poderia ter escolhido outro igualmente eficaz, mas que se-

ria um meio não-prejudicial ou portador de uma limitação

menos perceptível a direito fundamental".

189. BVerfGE, 30,292(316). V. Willis Santiago Guerra Filho, Ensaios de teoria

constitucio-

nal, 1989, p. 87.

Verifica-se na decisão do Tribunal alemão a presença de um outro

requisito qualificador da razoabilidade-proporcionalidade, que é o da

exigibilidade ou necessidade (Erforderlichkeit) da medida. Conhecido,

também, como "princípio da menor ingerência possível", consiste ele

no imperativo de que os meios utilizados para atingimento dos fins visa-

dos sejam os menos onerosos para o cidadão. É a chamada proibição do

excesso. Uma lei será inconstitucional, por infringência ao princípio da

proporcionalidade, "se se puder constatar, inequivocamente, a existên-

cia de outras medidas menos lesivas".

190. BVerfGE, 39,210(230-1). V. GilmarFerreira Mendes, Controle de

constitucionalidade,

cit., p. 44.

Há, ainda, um terceiro requisito, igualmente desenvolvido na dou-

trina alemã, identificado como proporcionalidade em sentido estrito.

Cuida-se, aqui, de uma verificação da relação custo-benefício da medi-

da, isto é, da ponderação entre os danos causados e os resultados a se-

rem obtidos. Em palavras de Canotilho, trata-se "de uma questão de

"medida" ou "desmedida" para se alcançar um fim: pesar as desvanta-

gens dos meios em relação às vantagens do fim".

191. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 387-8.

A doutrina tanto lusitana quanto brasileira - que se abebera

no conhecimento jurídico produzido na Alemanha reproduz e endossa

essa tríplice caracterização do princípio da proporcionalidade, como é

mais comumente referido pelos autores alemães. Assim é que dele se

extraem os requisitos (a) da adequação, que exige que as medidas

adotadas pelo Poder Público se mostrem aptas a atingir os objetivos

pretendidos; (b) da necessidade ou exigibilidade, que impõe a verifica-

Page 201: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

ção da inexistência de meio menos gravoso para atingimento dos fins

visados; e (c) da proporcionalidade em sentido estrito, que é a pondera-

ção entre o ônus imposto e o benefício trazido, para constatar se é justi-

ficável a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos. Na feliz sín-

tese de Willis Santiago Guerra Filho:

"Resumidamente, pode-se dizer que uma medida é

adequada, se atinge o fim almejado, exigível, por causar

o menor prejuízo possível e finalmente, proporcional em

sentido estrito, se as vantagens que trará superarem as

desvantagens".

192. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 386-8; Paulo Bonavides,

Curso de

direito constitucional, 1993, p. 318-9; Gilmar Ferreira Mendes, Controle de

constitucionalidade,

cit., p. 38 e 43; e WiIlis Santiago Guerra Filho, Ensaios de teoria constitucional, cit., p. 75.

193. Willis Santiago Guerra Filho, Ensaios de teoria constitucional, cit., p. 75.

O princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade sempre teve

seu campo de incidência mais tradicional no âmbito da atuação do Po-

der Executivo. Estudado precipuamente na área do direito administrati-

vo, ele funcionava como medida da legitimidade do exercício do poder

de polícia e da interferência dos entes públicos na vida privada. Ver-

sando o tema, assinalou o ilustre professor argentino Agustin Gordillo:

"A decisão "discricionária" do funcionário será ilegíti-

ma, apesar de não transgredir nenhuma norma concreta e

expressa, se é "irrazoável", o que pode ocorrer, principal-

mente, quando: a) não dê os fundamentos de fato ou de

direito que a sustentam ou; b) não leve em conta os fatos

constantes do expediente ou públicos e notórios; ou se fun-

de em fatos ou provas inexistentes; ou c) não guarde uma

proporção adequada entre os meios que emprega e o fim

que a lei deseja alcançar, ou seja, que se trate de uma medi-

da desproporcionada, excessiva em relação ao que se quer

alcançar".

194. V. Celso Antônio Bandeira de Mello, Elementos de direito administrativo, 1991,

p. 66-7:

"Este princípio enuncia a idéia singela, aliás, conquanto freqüentemente desconsiderada, de

que as

competências administrativas só podem ser validamente exercidas na extensão e

intensidade proporci-

onais ao que seja realmente demandado para cumprimento da finalidade de interesse

público a que

estão atrelados". V. também Maria Sylvia Zanella di Pietro, Direito administrativo, 1991, p.

93.

195. Agustin Gordillo, Princípios gerais de direito público, 1977, p. 183-4.

Também no domínio do Poder Judiciário o princípio teve

aplicabilidade, notadamente no tratamento das medidas cautelares.

Sua aplicação como critério aferidor dos atos do Poder Legislativo, to-

Page 202: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

davia, a despeito de constituir prática relativamente antiga na tradição

norte-americana, e de ser admitida com reservas em países como Ale-

manha e Itália, e que suscita alguma controvérsia, por confrontar-

se com certas noções tradicionais de separação de Poderes.

196. V. Egas Moniz de Aragão, Poder cautelar do juiz. Medidas provisórias, RPGERJ,

42:37,

1990, e Marcio Augusto de Vasconcelos Diniz, A concessão de medida liminar em

processo cautelar

e o princípio cautelar da proporcionalidade, Rf 318:101, 1992.

197. O Bundesverfassungsgericht assentou, em decisão de 1951, que sua competência

se

limitava à apreciação da legitimidade da norma, e não de sua conveniência. Mas

acrescentou, signi-

ficativamente: "a questão sobre a liberdade discricionária outorgada ao legislador, bem

como sobre

os limites dessa liberdade, é uma questão jurídica suscetível de aferição judicial"

(BVerFGE, 1, 15).

V. Gilmar Mendes, Controle de constitucionalidade, cit., p. 41.

198. Na Itália, o art. 28 da Lei n. 87, que organiza a Corte Constitucional, exclui

expressa-

mente do controle de constitucionalidade valorações de natureza política e verificações

sobre o uso

do poder discricionário. Todavia, como assinala Pierandrei, será sempre possível examinar

a norma

à luz dos fins consagrados constitucionalmente (Enciclopedia del diritto, 1962, v. 10, p.

907).

De fato, a aferição da razoabilidade importa em um juízo de mérito

sobre os atos editados pelo Legislativo, o que interfere com o delineamen-

to mais comumente aceito da discricionariedade do legislador. Ao exa-

minar a compatibilidade entre meio e fim, e as nuances de necessidade-

proporcionalidade da medida adotada, a atuação do Judiciário transcende

à do mero controle objetivo da legalidade. E o conhecimento convencio-

nal, como se sabe, rejeita que o juiz se substitua ao administrador ou ao

legislador para fazer sobrepor a sua própria valoração subjetiva de dada

matéria. A verdade, contudo, é que, ao apreciar uma lei para verificar se

ela é ou não arbitrária, o juiz ou o tribunal estará, inevitavelmente, de-

clinando o seu próprio ponto de vista do que seja racional ou razoável.

199. Traduzindo essa crença, que subsistiu inquestionada por longo tempo, escreveu

Canotilho

(Direito constitucional, cit., p. 739): "A discricionariedade do legislador ou, como hoje se

diz, o

âmbito de liberdade de conformação legislativa, não era uma discricionariedade sujeita a

pressu-

postos vinculados, as opções políticas do legislador não eram susceptíveis de controle e os

fins da

lei eram soberanamente estabelecidos pela própria lei".

Page 203: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

200. V. Siqueira Castro, O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova

Constitui-

ção do Brasil, cit., p. 216, fundado em texto de Edward Corwin (Court over Constitution - a

study

of judicial review as an instrument of popular government, 1938, p. 108): "What the Court

says is

that legislation must not be unreasonable, but what this means inevitably, and all that it

means is that

legislation must not be unreasonable to the Court’s way of thinking".

A evolução dos conceitos tem atenuado o rigor das formulações

clássicas e permitido a contenção da chamada liberdade de conforma-

ção legislativa. O controle finalístico da atuação do legislador se exerce

sobre dois momentos "teleologicamente relevantes" do ato legislativo,

que Gomes Canotilho assim identifica e comenta:

"(i) Em primeiro lugar, a lei é tendencialmente uma

função de execução, desenvolvimento ou prossecução dos

fins estabelecidos na Constituição, pelo que sempre se po-

derá dizer que, em última análise, a lei é vinculada ao fim

constitucionalmente fixado; (ii) por outro lado, a lei, em-

bora tendencialmente livre no fim, não pode ser contradi-

tória, irrazoável, incongruente consigo mesma.

Nas duas hipóteses assinaladas, toparíamos com a

vinculação do fim da lei: no primeiro caso, a vinculação do

fim da lei decorre da Constituição; no segundo caso, o fim

imanente à legislação imporia os limites materiais da não

contraditoriedade, razoabilidade e congruência".

201. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 740.

Por ser uma competência excepcional, que se exerce em domínio

delicado, deve o Judiciário agir com prudência e parcimônia. É preciso

ter em linha de conta que, em um Estado democrático, a definição das

políticas públicas deve recair sobre os órgãos que têm o batismo da

representação popular, o que não é o caso de juízes e tribunais. Mas,

quando se trate de preservar a vontade do povo, isto é, do constituinte

originário, contra os excessos de maiorias legislativas eventuais, não

deve o juiz hesitar. O controle de constitucionalidade se exerce, pre-

cisamente, para assegurar a preservação dos valores permanentes sobre

os ímpetos circunstanciais. Remarque-se, porque relevante, que a últi-

ma palavra poderá ser sempre do Legislativo. É que, não concordando

com a inteligência dada pelo Judiciário a um dispositivo constitucional,

poderá ele, no exercício do poder constituinte derivado, emendar a nor-

ma constitucional e dar-lhe o sentido que desejar.

202. Escrevendo sobre o tema no direito alemão, admitiu Krebs a possibilidade de

superposição

de competências, concluindo, no entanto, que isso não afetava a imprescindibilidade do

princípio.

É que, afirma ele, eventual "escorregão" (Gratwanderung) entre o direito e a política

constitui risco

Page 204: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

inafastável da profissão do constitucionalista (v. Freiheitsschutz durch Grundrechte, JURA,

1988,

p. 617 (623), apud Gilmar Ferreira Mendes, A doutrina constitucional e o controle de

constitu-

cionalidade como garantia da cidadania. Declaração de inconstitucionalidade sem a

pronúncia de

nulidade no direito brasileiro, RDA, 191:40, 1993, p. 49).

203. Nos Estados Unidos, por quatro vezes, o Congresso editou emendas à

Constituição por

discordar do entendimento jurisprudencial: a) a 11ª emenda, dando imunidade de jurisdição

aos

Estados, veio após a decisão em Chisholm vs. Georgia, 2 Dall 419 (1793); b) a criação de

uma

cidadania nacional pela 14ª emenda foi uma reação à decisão em Dred Scott vs. Sandford,

19 How.

393(1857); c) a admissão de um imposto federal sobre a renda, advinda com a 16ª emenda,

deveu-

se ao julgamento de Pollock vs. Farmer’s Loan & Trust Co., 157 U. S. 429 (1895); d) a

extensão do

direito de voto em eleições estaduais e nacionais a todos que contassem dezoito anos,

introduzida

pela 26ª emenda, foi motivada pelo caso Oregon vs. Mitchell, 400 U. S. 112 (1970). V.

Edward

Conrad Smith, The Constitution of the United States, 1979, p. 16 e s.

Como se demonstrou até aqui, a razoabilidade dos atos do Poder Públi-

co - inclusive dos atos legislativos -, como parâmetro aferidor de sua

constitucionalidade, tem sido aceita em inúmeros sistemas jurídicos. Nos

Estados Unidos, como visto, o princípio se assenta na cláusula do devido

processo legal, constante das emendas de n. 5 e 14 à Constituição. Na Ar-

gentina, como assinala com orgulho a doutrina, o princípio remonta ao tex-

to original da Carta, que, no art. 28, estabelecia que os princípios, garantias

e direitos reconhecidos na Constituição não poderiam ser alterados por leis

que regulamentassem seu exercício. No direito constitucional alemão,

atribui-se ao princípio da proporcionalidade (Verhältnismässigkeit) quali-

dade de norma constitucional não escrita, derivada do Estado de direito.

Em Portugal, ele vem materializado em regras expressas da Constituição,

notadamente a da proibição do excesso.

204. A este propósito, assim manifestou-se Linares Quintana (Derecho constitucional

y

instituciones políticas, cit., v. 1, p. 123): "Este precepto básico es propio de nuestra

Constitución, no

teniendo equivalente ni en términos siquiera aproximados, en la Ley Suprema de los

Estados Unidos".

205. V. Gilmar Ferreira Mendes, Controle de constitucionalidade, cit., p. 43.

206. Dispõe o art. 18, 2, da Constituição portuguesa: "A lei só pode restringir os

direitos,

Page 205: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as

restrições

limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente

prote-

gidos". Além dele, o art. 266,2, impõe aos órgãos e agentes administrativos que atuem com

justiça

e imparcialidade no exercício de suas funções, e o art. 272, 2, que estabelece que as

medidas de

polícia não devem ser utilizadas para além do estritamente necessario.

No Brasil, o apego excessivo a certos dogmas da separação de Po-

deres impôs ao princípio da razoabilidade uma trajetória relativamente

acanhada. Há uma renitente resistência ao controle judicial do mérito

dos atos do Poder Público, aos quais se reserva um amplo espaço de

atuação autônoma, discricionária, onde as decisões do órgão ou do agente

público são insindicáveis quanto à sua conveniência e oportunidade. Exem-

plo da visão clássica do tema foi dado pelo Supremo Tribunal Federal, em

decisão proferida em 13 de novembro de 1970, na qual assentou:

"Harmonia dos Poderes. Art. 6º da Emenda Constitu-

cional n. 1. A decisão recorrida invadiu área de estrita com-

petência da Administração Pública ao mandar reabrir e equi-

par uma enfermaria de hospital fechada por conveniência

do serviço público. Inadmissibilidade da apreciação do mé-

rito de tal providência pelo Poder Judiciário. Recurso co-

nhecido e provido".

207. RTJ, 56:811, 1971, RE 70.278-GB, rel. Min. Adaucto Cardoso.

É certo, porém, que, ao longo da vigência da Constituição de 1967-

69, ainda que de modo implícito e até mesmo inconsciente, e sem men-

ção expressa ao princípio, diversas decisões dos tribunais superiores reve-

renciaram a razoabilidade como parâmetro de validade de atos emanados

do Poder Público. De fato, foi ela o grande vetor de decisões como: a) a

que considerou inaceitável que delegado aprovado em concurso pudesse

ser reprovado na prova de esforço físico (teste de Cooper), haja vista que

são os agentes, e não o delegado, que de regra desempenham as mis-

sões; b) a que considerou ensejadora de discriminação a reprovação,

em entrevista pessoal, de candidatos à carreira diplomática já aprovados

nas provas intelectuais; c) a que também considerou inconciliável com

o princípio do concurso público o chamado "julgamento de consciência",

em que o candidato à magistratura podia ser excluído do certame com

base em julgamento secreto sobre sua vida pública e privada.

208. Siqueira Castro, O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova

Constitui-

ção do Brasil, cit., p. 192.

209. Remessa ex officio n. 110.873-DF, TFR, rel. Min. Washington Bolivar, DJU, 26

fev. 1987.

210. MS 101 .898-DF, TFR, rel. Min. Leitão Krieger, DJU, 22 maio 1986.

211. RTJ, 122:1130, 1987, RE 111.411-8-RJ, rel. Min. Carlos Madeira.

Todos esses precedentes referem-se a atos administrativos. A possi-

Page 206: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

bilidade de controle de razoabilidade dos atos do Poder Legislativo tam-

bém tem sido discutida no Brasil nas últimas décadas, ainda que

incipientemente. A fórmula utilizada para sua aplicação foi a importa-

ção de figura tradicional originária do direito administrativo francês,

identificada como détournement de pouvoir, isto é, o desvio ou excesso

de poder. Convencionalmente aplicada no controle dos atos administra-

tivos, o conceito teve seu alcance estendido para abrigar certos casos

envolvendo atos legislativos. Há um interessante precedente na matéria,

em decisão do Supremo Tribunal Federal, onde o Ministro Orozimbo

Nonato firmou a tese de que:

"O poder de taxar não pode chegar à desmedida do

poder de destruir, uma vez que aquele somente pode ser

exercido dentro dos limites que o tornem compatível com

a liberdade de trabalho, de comércio e de indústria e com o

direito de propriedade. É um poder, em suma, cujo exercí-

cio não deve ir até o abuso, o excesso, o desvio, sendo apli-

cável, ainda aqui, a doutrina fecunda do détournement de

pouvoir. Não há que estranhar a invocação dessa doutrina

ao propósito da inconstitucionalidade, quando os julgados

têm proclamado que o conflito entre a norma comum e o

preceito da Lei Maior pode-se acender não somente consi-

derando a letra, o texto, como, também, e principalmente,

o espírito e o dispositivo invocado".

212. RF, 145:164, 1953, RE 18.331, rel. Min. Orozimbo Nonato.

Já no regime da Carta de 1967-69, outra decisão da Suprema Corte,

em linguagem ainda mais explícita, aplicou o princípio da razoabilidade

como critério limitador das restrições de direitos. Na apreciação de ques-

tão relativa à liberdade de exercício profissional, deixou-se assentado:

"Ainda no tocante a essas condições de capacidade,

não as pode estabelecer o legislador ordinário, em seu po-

der de polícia das profissões, sem atender ao critério da

razoabilidade, cabendo ao Poder Judiciário apreciar se as

restrições são adequadas e justificadas pelo interesse pú-

blico, para julgá-las legítimas ou não".

213. Rep. n. 930-DF, rel. Min. Rodrigues Alckmin, DJU, 2 set. 1977.

Em decisões posteriores, embora esporádicas, voltou-se a aplicar,

ainda que sem maior desenvolvimento teórico, o princípio da

razoabilidade. Foi o que se passou quando a Suprema Corte: a) conside-

rou inválida a regra do Estatuto da OAB que estabelecia a incompatibi-

lidade dos magistrados, membros do Ministério Público e de outras ca-

tegorias de servidores para o exercício da advocacia, pelo prazo de dois

anos a contar da aposentadoria ou da disponibilidade; b) considerou

inconstitucional lei do Estado do Rio de Janeiro que elevava despropo-

sitadamente os valores da taxa judiciária.

214. RTJ, 110:937, 1984, Rep. n. 1.054, rel. Min. Moreira Alves.

215. RTJ, 112:34, 1985, Rep. n. 1.077, rel. Min. Moreira Alves.

Um dos poucos autores nacionais a dedicar alguma atenção ao tema

Page 207: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

do desvio de poder legislativo, Caio Tácito, menciona decisões do Supre-

mo Tribunal Federal que mantiveram a anulação de leis que consubs-

tanciavam os chamados testamentos políticos. É que, na pior tradição na-

cional, não é incomum a edição de leis estaduais, ao término de governos

derrotados nas urnas, criando cargos públicos em número excessivo ou

concedendo benefícios remuneratórios, comprometendo as finanças pú-

blicas e inviabilizando o novo governo. O abuso do poder legislativo, quan-

do excepcionalmente caracterizado, pelo exame dos motivos, configura

vício especial de inconstitucionalidade. Analisando o caso concreto, afir-

mou o ilustre publicista, em passagem lapidar:

"A competência legislativa para criar cargos públicos

visa ao interesse coletivo de eficiência e continuidade da

administração. Sendo, em sua essência, uma faculdade dis-

cricionária, está, no entanto, vinculada à finalidade, que

lhe é própria, não podendo ser exercida contra a conve-

niência geral da coletividade, com o propósito manifesto

de favorecer determinado grupo político, ou tornar ingo-

vernável o Estado, cuja administração passa, pelo voto po-

pular, às mãos adversárias.

Tal abandono ostensivo do fim a que se destina a atri-

buição constitucional configura autêntico desvio de poder

(détournement de pouvoir), colocando-se a competência

legislativa a serviço de interesses partidários, em detrimento

do legítimo interesse público".

216. Caio Tácito, O desvio de poder no controle dos atos administrativos, legislativos

e

jurisdicionais, RDA, 188:1, 1992. Sobre o tema, veja-se, também, Gilmar Ferreira Mendes,

Contro-

le de constitucionalidade, cit., onde se abre um tópico específico para o excesso de poder

legislativo

(p.38e s.).

Como se constata singelamente, a despeito de não haver merecido

qualquer referência expressa nos Textos Constitucionais de 1946 e 1967-

69, o princípio da razoabilidade foi utilizado, de forma explícita ou im-

plícita, como fundamento para a declaração de inconstitucionalidade de

atos do Poder Público, tanto administrativos quanto legislativos. Duran-

te a maior parte dos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, de

que resultou a Constituição de 1988, o princípio da razoabilidade cons-

tou de diferentes projetos, inclusive do texto ao final aprovado pela Co-

missão de Sistematização. Ali se lia, no caput do art. 44:

"A administração pública, direta ou indireta, de qual-

quer dos Poderes obedecerá aos princípios da legalidade,

impessoalidade, moralidade e publicidade, exigindo-se,

como condição de validade dos atos administrativos, a mo-

tivação suficiente e, como requisito de sua legitimidade, a

razoabilidade".

A redação final da Constituição de 1988, todavia, excluiu a menção

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expressa ao princípio da razoabilidade. É certo, todavia, que se inscre-

veu, expressamente, no inciso LIV do art. 5º, a cláusula do due process

of law, com a dicção seguinte:

"Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens

sem o devido processo legal".

Diante disso, abrem-se duas linhas de construção constitucional, uma

e outra conducentes ao mesmo resultado: o princípio da razoabilidade

integra o direito constitucional brasileiro, devendo o teste de razoabilidade

ser aplicado pelo intérprete da Constituição em qualquer caso submetido

ao seu conhecimento. A primeira linha, mais inspirada na doutrina alemã,

vislumbrará o princípio da razoabilidade como inerente ao Estado de di-

reito, integrando de modo implícito o sistema, como um princípio consti-

tucional não escrito. De outra parte, os que optarem pela influência norte-americana

pretenderão extraí-lo da cláusula do devido processo legal, sus-

tentando que a razoabilidade das leis se torna exigível por força do caráter

substantivo que se deve dar à cláusula.

É bem de ver que o princípio da razoabilidade tem um campo de

incidência bem mais vasto nos países de Constituição sintética, onde

sua aplicação criativa serve como mecanismo flexível para determinar a

Constituição material de cada época. Nos países de Constituição analí-

tica, sua aplicação se reduz, sem, contudo, perder em relevância. Mes-

mo em um país como o Brasil, em que a Constituição é prolixa e

casuística, há um amplo espaço de utilização do princípio da

razoabilidade como instrumento de contenção do ímpeto arbitrário que,

não infreqüentemente, estigmatiza a prática política brasileira.

Nos últimos anos foram produzidos importantes trabalhos

monográficos sobre o tema. Da mesma forma, juízes e tribunais, in-

clusive e especialmente o Supremo Tribunal Federal, têm encontrado

no princípio da razoabilidade, direta ou indiretamente, fundamento cons-

tante para suas razões de decidir. Confira-se, abaixo, uma seleção de

julgados recentes que confirmam a assertiva.

217. Vejam-se: Suzana de Toledo Barros, O princípio da proporcionalidade e o

controle de

constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, 1996; Raquel Denize

Stumm,

Princípio da proporcionalidade no direito constitucional brasileiro, 1995; Paulo Armínio

Tavares

Buechele, O princípio da proporcionalidade e a interpretação da Constituição, 1999.

O art. 37, X, da Constituição, que impõe se faça na mesma data "a

revisão geral da remuneração dos servidores públicos, sem distinção de

índices entre servidores públicos civis e militares", é um corolário do

princípio fundamental da isonomia; não é, nem razoavelmente poderia

ser, um imperativo de estratificação perpétua da escala relativa dos

vencimentos existentes no dia da promulgação da Lei Fundamental: não

impede, por isso, a nova avaliação, por lei, a qualquer tempo, dos venci-

mentos reais a atribuir a carreiras ou cargos específicos, com a ressalva

expressa de sua irredutibilidade (CF, art. 37, XV).

Page 209: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

218. RTJ, 145:101, 1993,ADIn 526-DF, rel. Min. Sepúlveda Pertence.

Segundo uma interpretação harmônica dos arts. 7º, XXX, 37, I, e

39, § 2º, da Constituição Federal, pode a lei, desde que o faça de modo

razoável, estabelecer limites mínimo e máximo de idade para ingresso

em funções, empregos e cargos públicos.

219. RDA, 196:103, 1994, RE 174.548-7-AC, rel. Min. Carlos Velloso.

O tema concernente à fixação legal de limite de idade para efeito de

inscrição em concurso público e de preenchimento de cargos públicos

tem sido analisado pela jurisprudência em função e na perspectiva do

critério da razoabilidade.

220. RDA, 199:153, 1995, RO em MS 21 .045-5-DF, rel. Min. Celso de Mello.

É de se deferir liminar em ação direta de inconstitucionalidade com

relação a lei estadual que determina a pesagem de botijões de gás lique-

feito de petróleo entregues ou recebidos para substituição à vista do

consumidor. Além de violação ao princípio de proporcionalidade e

razoabilidade das leis restritivas de direitos, há evidente plausibilidade

jurídica da argüição que aconselha a suspensão cautelar da lei impugna-

da, a fim de evitar danos irreparáveis à economia do setor, no caso de vir

a ser declarada a inconstitucionalidade.

221. RDA, 194:299, 1993, e RTJ, 152:455, 1995, ADIn 855-2-PR, rel. Min.

Sepúlveda Pertence.

O princípio da razoabilidade constitucional é conducente a ter-se

como válida a regência da proibição da importação de pneus usados

via portaria, não sendo de se exigir lei, em sentido formal e material,

especificadora, de forma exaustiva, de bens passíveis, ou não, de im-

portação.

222. DJU, 12 set. 1997, p. 43471, RE 204.020-7-PE.

A norma legal, que concede a servidor inativo vantagem pecuniária

cuja razão de ser se revela absolutamente destituída de causa (gratifica-

ção de férias correspondente a um terço do valor da remuneração men-

sal), ofende o princípio da razoabilidade, que atua, enquanto projeção

caracterizadora da cláusula do substantive due process of law, como

insuperável limitação ao poder normativo do Estado.

223. RDA, 200:242, 1995, ADin 1.158-8-AM, rel. Min. Celso de Mello.

A regra contida no § 1º do art. 100 da Constituição há de ter alcance

perquirido em face não só do princípio da razoabilidade e do objetivo

nela previsto, como também do preceito transitório do art. 33, com o

qual se almejou colocar ponto final no esdrúxulo quadro decorrente da

jurisprudência pretérita à Carta de 1988, no sentido de que os valores

devidos pela Fazenda seriam pagos, até o fim do exercício seguinte,

considerados os precatórios apresentados até 12 de julho, oportunidade

em que é feita a correção respectiva.

224. RTJ, 152:630, 1995, AI 153.493-SP, rel. Min. Marco Aurélio.

A importação e sistematização do princípio da razoabilidade-

proporcionalidade no direito brasileiro projetaram novas luzes sobre o

tratamento doutrinário do princípio da isonomia. Historicamente

e mais rotineiramente utilizado na busca de equipara-

Page 210: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

ções salariais ou remuneratórias, o grande mandamento da igualdade

subaproveitado é tradicionalmente tratado como um tema menor, assim pela doutrina

como pela jurisprudência.

225. A Emenda Constitucional n. 19, de 4-6-1998 (Reforma AdministratiVa),

suprimiu a cláu-

sula de isonomia de vencimentos entre cargos de atribuições iguais ou assemelhados,

constante do

§ 1º do art. 39 do texto original.

226. Exceção que confirma a regra é o precioso trabalho de Celso Antônio Bandeira

de Mello,

O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 1993 (a 1ª edição desse texto é de 1978).

Embora

concentrado em aspecto específico do tema, v. também Carlos Roberto de Siqueira Castro,

O prin-

cípio da isonomia e a igualdade da mulher no direito constitucional, 1983.

Reproduzindo o conhecimento convencional, costuma-se afirmar

que a isonomia traduz-se em igualdade na lei - ordem dirigida ao le-

gislador - e perante a lei - ordem dirigida ao aplicador da lei. Em

seguida, é de praxe invocar-se a máxima aristotélica de que o princípio

consiste em "tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais,

na medida em que eles se desigualam". A beleza filosófica de tal asserto

não contribui, contudo, para desvendar o cerne da questão: saber quem

são os iguais e os desiguais e definir em que circunstâncias é constitu-

cionalmente legítimo o tratamento desigual.

O princípio genérico da igualdade vem capitulado, no direito cons-

titucional positivo brasileiro, como direito individual - "todos são iguais

perante a lei, sem distinção de qualquer natureza" (art. 5º, caput) - e

como objetivo fundamental da República - "promover o bem de todos,

sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras

formas de discriminação" (art. 3º, IV). Nada obstante o tom peremptó-

rio dos dois preceptivos, de longa data se reconhece que legislar consis-

te, inegavelmente, em discriminar situações e classificar pessoas à luz

dos mais diversificados critérios.

227. V. Celso Antônio Bandeira de Mello, O conteúdo jurídico do princípio da

igualdade,

cit., p. 11; Carlos Roberto de Siqueira Castro, O princípio da isonomia e a igualdade da

mulher no

direito constitucional brasileiro, cit., p. 44.

Aliás, a própria Constituição desequipara as pessoas com base em

múltiplos fatores, que incluem sexo, renda, situação funcional, nacionali-

dade, dentre outros. Assim, ao contrário do que se poderia supor à vista da

literalidade da matriz constitucional da isonomia, o princípio, em muitas

de suas incidências, não apenas não veda o estabelecimento de desigual-

dades jurídicas, como, ao contrário, impõe o tratamento desigual.

Estabelecida a premissa de que é possível distinguir pessoas e situa-

ções para o fim de dar a elas tratamento jurídico diferenciado, cabe determi-

nar os critérios que permitirão identificar as hipóteses em que as

Page 211: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

desequiparações são juridicamente toleráveis. Em trabalho escrito em 1985

- antes, portanto, da formal entronização do princípio da proporcionalida-

de -, mas prenunciando a natural evolução da matéria, averbamos:

"Parece-me, contudo, que a compatibilização entre a

regra isonômica (na vertente do tratamento desigual) e ou-

tros interesses prestigiados constitucionalmente exige que

se recorra à idéia de proporcionalidade. Somente assim se

poderá obter um equilíbrio entre diferentes valores a serem

preservados.

Vê-se, assim, que é possível discriminar em prol dos

desfavorecidos economicamente, em detrimento dos mais

abonados. Mas o tratamento desigual há de encontrar limi-

tes de razoabilidade para que seja legítimo. Este limite po-

derá vir expresso ou implícito no texto constitucional, e a

conciliação que se faz necessária exige a utilização de um

conceito flexível, fluido, como o de proporcionalidade".

228. Luís Roberto Barroso, A igualdade perante a lei. Algumas reflexões, in Temas

atuais do

direito brasileiro, 1987.

Veja-se a demonstração da tese. Além da vedação genérica à discri-

minação, a Constituição indicou, pontualmente, alguns fatores de discri-

minação que especialmente desaprova, a saber: origem, raça, sexo, cor,

idade. Nada obstante, não parece ilegítimo, à luz da Constituição, que:

1. em concurso público para guardas penitenciários de um presídio

feminino, somente se admita a inscrição de mulheres;

2. em evento comemorativo do dia da consciência negra, sejam con-

tratados somente artistas dessa raça;

3. o Teatro Municipal, desejando admitir uma bailarina para ence-

nar o ballet "Romeu e Julieta", recrute entre pessoas do sexo feminino e

jovens;

4. se exija do estrangeiro residente no país visto de permanência e

documentação específica, distinta da dos nacionais.

Tais classificações fundam-se em fatores que o constituinte consi-

derou suspeitos e cuja utilização traz uma forte possibilidade de

inconstitucionalidade. A menos que se possa demonstrar - como pare-

ce ser o caso em cada um dos exemplos - que o tratamento desigual

teve um fundamento razoável e destinou-se a realizar um fim legítimo.

Vale dizer: o tratamento diferenciado, para ser válido, precisa passar no

teste da razoabilidade interna e externa.

De plano, portanto, não será legítima a desequiparação arbitrária,

caprichosa, aleatória. O elemento de discriminação tem de ser relevante

e residente nas pessoas por tal modo diferenciadas. Não pode ser exter-

no ou alheio a elas. Não se pode estabelecer que os servidores que

têm olhos claros terão prioridade no escalonamento de férias (irrelevância)

ou que se dará preferência às mulheres se a seleção feminina de voleibol

for campeã (fator externo e alheio).

Page 212: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

229. Celso Antônio Bandeira de Mello, O conteúdo jurídico do princípio da igualdade,

cit.,

p. 29-30: "É inadmissível, perante a isonomia, discriminar pessoas ou situações ou coisas (o

que

resulta, em última instância, na discriminação de pessoas) mediante traço diferencial que

não seja

nelas mesmas residentes. Por isso, são incabíveis regimes diferentes determinados em vista

de fator

alheio a elas, quer-se dizer: que não seja extraído delas mesmas".

De parte isto, tem de haver racionalidade na desequiparação, vale

dizer: adequação entre meio e fim. É legítimo que se adote o critério

compleição física na escolha dos soldados que formarão a tropa de cho-

que, mas não para a seleção dos que servirão como digitadores ou auxi-

liares administrativos.

A desequiparação, ademais, terá de ser necessária para a realização

do objetivo visado, vedado o excesso, isto é, o tratamento diferenciado

além do que é imprescindível. Em um concurso público, por exemplo,

no âmbito da Secretaria de Segurança Pública, é possível excluir da dis-

puta por cargos que exigem destreza física os candidatos portadores de

deficiência motora. Mas se a restrição estender-se a todos os cargos

daquele órgão, inclusive os de natureza burocrática, será nula por ter ido

além do estritamente necessário, sendo colhida pelo subprincípio da

vedação do excesso.

E, por fim, terá de haver proporcionalidade em sentido estrito. É

imperativo que o valor promovido com a desequiparação seja mais rele-

vante do que o que está sendo sacrificado. Suponha-se, por ilustração,

que o Museu Imperial, desejando assegurar mais silêncio e tranqüilida-

de aos seus visitantes adultos, proíba o ingresso de menores de quatorze

anos. O prejuízo que tal medida traz à formação cultural e humanística

dos jovens interessados em visitar o museu é, por certo, superior ao

desejo dos demais freqüentadores de não conviverem com o burburinho

infantil ou adolescente.

Superado o teste da razoabilidade interna - adequação meio-fim,

necessidade/vedação do excesso e proporcionalidade em sentido estri-

to -, será preciso verificar se o tratamento desigual resiste ao exame de

sua razoabilidade externa. Vale dizer: se o meio empregado e o fim visa-

do são compatíveis com os valores constitucionais.

Suponha-se, por exemplo, que uma Escola Militar de formação de

oficiais constate, com base em prova estatística, que os alunos originários

de determinada região têm, ao longo dos estudos e da carreira, de-

sempenho superior aos originários de outras partes do país. Ou, ao

contrário, que os alunos originários de uma específica região apresen-

tam elevado índice de repetência e desligamento. Pergunta-se: poderia a

Escola, em seus critérios de admissão, favorecer o ingresso de uns e

dificultar os de outros, em função da região de origem, para assegurar

sua maior eficiência?

A resposta é naturalmente negativa. O ordenamento constitucional

Page 213: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

brasileiro veda que se criem distinções entre brasileiros (art. 19, III).

Portanto, mesmo que se demonstrasse inequivocamente que os resulta-

dos seriam melhores, eles seriam obtidos com o sacrifício de valores

dos quais não é possível dispor.

Em desfecho, e para mero fim de sistematização final, é possível

sintetizar as idéias desenvolvidas neste tópico na forma abaixo.

O princípio da razoabilidade é um mecanismo de controle da

discricionariedade legislativa e administrativa. Ele permite ao Judiciá-

rio invalidar atos legislativos ou atos administrativos quando: (a) não

haja relação de adequação entre o fim visado e o meio empregado; (b) a

medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo para

chegar ao mesmo resultado com menor ônus a um direito individual; (c)

não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde

com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha.

Um certo positivismo arraigado na formação jurídica nacional re-

tardou o ingresso do princípio da razoabilidade na jurisprudência brasi-

leira, por falta de previsão expressa na Constituição. Inequivocamente,

contudo, ele é uma decorrência natural do Estado democrático de direi-

to e do princípio do devido processo legal. O princípio, naturalmente,

não liberta o juiz dos limites e possibilidades oferecidos pelo

ordenamento. Não é de voluntarismo que se trata. A razoabilidade, no

entanto, oferece uma alternativa de atuação construtiva do Judiciário

para a produção do melhor resultado, ainda quando não seja o único

possível ou mesmo aquele que mais obviamente resultaria da aplicação

acrítica da lei.

O princípio da razoabilidade faz uma imperativa parceria com o

princípio da isonomia. À vista da constatação de que legislar, em última

análise, consiste em discriminar situações e pessoas por variados crité-

rios, a razoabilidade é o parâmetro pelo qual se vai aferir se o funda-

mento da diferenciação é aceitável e se o fim por ela visado é legítimo.

7. Princípio da efetividade

A idéia de efetividade, conquanto de desenvolvimento relativamen-

te recente, traduz a mais notável preocupação do constitucionalismo

nos últimos tempos. Ligada ao fenômeno da juridicização da Constitui-

ção, e ao reconhecimento e incremento de sua força normativa, a

efetividade merece capítulo obrigatório na interpretação constitucional.

Os grandes autores da atualidade referem-se à necessidade de dar prefe-

rência, nos problemas constitucionais, aos pontos de vista que levem as

normas a obter a máxima eficácia ante as circunstâncias de cada caso.

230. V. Konrad Hesse, La interpretación constitucional, in Escritos de derecho

constitucio-

nal, cit., p. 50-1. Especificamente sobre a força normativa da Constituição, v. Eduardo

García de

Enterría, La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional, cit., p. 63 e s. Vejam-

se, ainda,

Page 214: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., t. 2, p. 229, e J. J. Gomes Canotilho,

Direito

constitucional, cit., p. 233, onde se lê: "Este princípio, também designado por princípio da

eficiên-

cia ou princípio da interpretação efetiva, pode ser formulado da seguinte maneira: a uma

norma

constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio

operativo em

relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à

tese da

actualidade das normas programáticas (Thoma), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos

direitos

fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior

eficácia aos

direitos fundamentais)".

É oportuno aqui, para a operatividade do princípio, um apro-

fundamento conceitual da efetividade. Os fatos jurídicos resultantes

de uma manifestação de vontade denominam-se atos jurídicos. Quan-

do emanados do Poder Público, tais atos serão legislativos, adminis-

trativos ou judiciais. Classicamente, os atos jurídicos comportam aná-

lise científica em três planos distintos e inconfundíveis: o da existên-

cia, o da validade e o da eficácia. Não é possível, nesta instância,

aprofundar esses conceitos. Faz-se apenas o registro de que a existên-

cia do ato jurídico está ligada à presença de seus elementos constitutivos

(normalmente, agente, objeto e forma) e a validade decorre do preen-

chimento de determinados requisitos, de atributos ditados pela lei. A

ausência de algum dos requisitos conduz à invalidade do ato, à qual o

ordenamento, considerando a maior ou menor gravidade, comina as

sanções de nulidade ou anulabilidade.

231. Sobre o tema, v. Antônio Junqueira deAzevedo, Negócio jurídico - existência,

valida-

de e eficácia, 1986, e Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efrtividade de suas

nor-

mas, 1993,p.74e s.

De maior interesse para os fins aqui visados é a eficácia dos atos

jurídicos, o terceiro plano de análise, que se traduz na sua aptidão para a

produção de efeitos, para a irradiação das conseqüências que lhe são

próprias.

Eficaz é o ato idôneo para atingir a finalidade para a qual foi

gerado. Tratando-se de uma norma, a eficácia jurídica designa a quali-

dade de produzir, em maior ou menor grau, os seus efeitos típicos,

"ao regular, desde logo, as situações, relações e comportamentos nela

indicados; neste sentido, a eficácia diz respeito à aplicabilidade, exigibi-

lidade ou executoriedade da norma". Atente-se bem: a eficácia refere-

se à aptidão, à idoneidade do ato para a produção de seus efeitos. Não se

insere no seu âmbito constatar se tais efeitos realmente se produzem.

232. Flavio Bauer Novelli, A eficácia do ato administrativo, RDA, 60:16, 1960, p. 21.

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233. José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 1982, p. 56.

É nesse plano da realidade, esse quarto plano, situado fora da teoria

convencional, que se vai encontrar a efetividade ou eficácia social da

norma. Diz ele respeito, como assinala Miguel Reale, ao cumprimento

efetivo do direito por parte de uma sociedade, ao "reconhecimento"

(Anerkennung) do direito pela comunidade ou, mais particularizada-

mente, aos efeitos que uma regra suscita através do seu cumprimento.

Cuida-se, aqui, da concretização do comando normativo, sua força

imperativa no mundo dos fatos.

234. Miguel Reale, Lições preliminares de direito, 1973, p. 135.

A noção de efetividade, ou seja, dessa específica eficácia, cor-

responde ao que Kelsen - distinguindo-a do conceito de vigência da

norma - retratou como sendo "o fato real de ela ser efetivamente apli-

cada e observada, da circunstância de uma conduta humana conforme à

norma se verificar na ordem dos fatos". A efetividade significa, por-

tanto, a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social.

Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos precei-

tos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre

o dever-ser normativo e o ser da realidade social.

235. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 1979, p. 29-30.

Partindo da premissa da estatalidade do direito, é intuitivo que a

efetividade das normas depende, em primeiro lugar, da sua eficácia jurí-

dica, isto é, da aptidão formal para incidir e reger as situações da vida,

operando os efeitos que lhe são próprios. Não se quer referir, aqui, ape-

nas à vigência da regra, mas também, e sobretudo, à "capacidade de o

relato de uma norma dar-lhe condições de atuação", isoladamente ou

conjugada com outras normas. Se o efeito jurídico pretendido pela nor-

ma for irrealizável, não há efetividade possível. Mas essa seria uma si-

tuação anômala em que o direito, como criação racional e lógica, usual-

mente não incorreria.

236. Tércio Sampaio Ferraz Jr., Teoria da norma jurídica: um modelo pragmático, in

A norma

jurídica (coletânea), 1980, p. 29.

Como regra, um preceito legal é observado voluntariamente. A

efetividade das normas jurídicas resulta, comumente, do seu cumpri-

mento espontâneo. Sem embargo, descartados os comportamentos indi-

viduais isolados, há casos de insubmissão numericamente expressiva,

quando não generalizada, aos preceitos normativos, inclusive os de hie-

rarquia constitucional. Assim se passa, por exemplo, quando uma nor-

ma se confronta com um sentimento social arraigado, contrariando ten-

dências prevalecentes na sociedade. Quando isso ocorre, ou a norma

cairá em desuso ou sua efetivação dependerá da freqüente utilização do

aparelho estatal. De outras vezes, resultará difícil a concretização de

uma norma que contrarie interesses particularmente poderosos, influen-

tes sobre os próprios organismos estatais, os quais, por acumpliciamento

ou impotência, relutarão em acionar os mecanismos para impor sua ob-

servância compulsória.

Page 216: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

237. Por exemplo: o Estatuto da Terra - Lei n. 4.504, de 30-11-1964 -, o Ato

Institucional

n. 9, de 25-4-1969, e o Decreto-Lei n. 554, de 25-4-1969, instrumentalizavam, de certa

forma, a

realização da reforma agrária, jamais levada a efeito, por contrariar a burguesia rural

latifundiária,

importante base de apoio político do regime militar de 1964.

O malogro do constitucionalismo, no Brasil e alhures, vem associa-

do à falta de efetividade da Constituição, de sua incapacidade de moldar

e submeter a realidade social. Naturalmente, a Constituição jurídica de

um Estado é condicionada historicamente pelas circunstâncias concre-

tas de cada época. Mas não se reduz ela à mera expressão das situações

de fato existentes. A Constituição tem uma existência própria, autôno-

ma, embora relativa, que advém de sua força normativa, pela qual orde-

na e conforma o contexto social e político. Existe, assim, entre a norma

e a realidade, uma tensão permanente. É nesse espaço que se definem as

possibilidades e os limites do direito constitucional.

238. V. Konrad Hesse, La fuerza normativa de la Constitución, in Escritos de derecho

consti-

tucional, cit., p. 75. Veja-se, também, Flavio Bauer Novelli, A relatividade do conceito de

Consti-

tuição e a Constituição de 1967, RDA, 88:1,1968, p. 3e6.

Embora resulte de um impulso político, que deflagra o poder cons-

tituinte originário, a Constituição, uma vez posta em vigência, é um

documento jurídico. E as normas jurídicas, tenham caráter imediato ou

prospectivo, não são opiniões, meras aspirações ou plataforma política.

As regras de direito, consigna Recaséns Siches, "son instrumentos

prácticos, elaborados y construidos por los hombres, para que, median-

te su manejo, produzcan en la realidad social unos ciertos efectos, preci-

samente el cumplimiento de los propósitos concebidos".

239. Luís Recaséns Siches, Nueva filosofía de la interpretación del derecho, 1980, p.

277.

No Brasil, autores da melhor linhagem elaboraram cortes parciais

que iluminaram aspectos específicos do tema. O estudo sistemático pi-

oneiro na matéria deve-se a José Afonso da Silva, em notável monografia

escrita em 1968 e reeditada em 1982, cuja ênfase recaía na eficácia das

normas constitucionais. Lastreando-se na lição de Rui Barbosa, assen-

tou o eminente Professor da Universidade de São Paulo que não há, em

uma Constituição, cláusula a que se deva atribuir meramente o valor mo-

ral de conselhos, avisos ou lições. Todas têm a força imperativa de regras,

ditadas pela soberania nacional ou popular a seus órgãos. Em seguida,

elaborou, sob inspiração da doutrina italiana, sua célebre classificação

tricotômica das normas constitucionais, dividindo-as em:

a) normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata;

b) normas constitucionais de eficácia contida e aplicabilidade ime-

diata, mas passíveis de restrição;

c) normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida (que com-

Page 217: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

preendem as normas definidoras de princípio institutivo e as definidoras

de princípio programático), em geral dependentes de integração

infraconstitucional para operarem a plenitude de seus efeitos.

240. Anotem-se, em meio a outros, Celso Antônio Bandeira de Mello, Eficácia das

normas

constitucionais sobre a justiça social, tese apresentada à IX Conferência Nacional da OAB,

Florianópolis, 1982: Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres de Brito, Interpretação e

aplicabilidade

das normas constitucionais, 1982; Pinto Ferreira, Eficácia, in Enciclopédia Saraiva do

Direito,

1979; Geraldo Ataliba, Eficácia das normas constitucionais e leis complementares, RDP,

13:35,

1968; Maria Helena Diniz, Norma constitucional e seus efeitos, cit.

241. José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, cit.

242. José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, cit., p. 3,68 e

253. V.

Rui Barbosa, Comentários à Constituição Federal brasileira, 1933, v. 2, p. 489.

De acordo com essa formulação, normas de eficácia plena são as

que receberam do constituinte normatividade suficiente à sua incidên-

cia imediata e independem de providência normativa ulterior para sua

aplicação. Normas de eficácia contida são as que receberam, igual-

mente, normatividade suficiente para reger os interesses de que cogi-

tam, mas prevêem meios normativos (leis integradoras, conceitos gené-

ricos etc.) que lhes podem reduzir a eficácia e aplicabilidade. Por últi-

mo, normas de eficácia limitada são as que não receberam do constitu-

inte normatividade suficiente para sua aplicação, o qual deixou ao legis-

lador ordinário a tarefa de completar a regulamentação das matérias

nelas traçadas em princípio ou esquema.

243. É pertinente a anotação de Michel Temer de que tais normas melhor denominar-

se-

iam eficácia redutível ou restringível (Elementos de direito constitucional, 1990, p. 27).

244. José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, cit., p. 254.

Retomando de onde José Afonso da Silva parara, e mudando o foco

da eficácia para a efetividade, escrevemos nossa tese de livre-docência

sob o título A força normativa da Constituição. Elementos para a

efetividade das normas constitucionais (1989). As idéias veiculadas

neste tópico são a síntese daquele estudo, atualizadas pela produção ju-

rídica mais recente e pela jurisprudência dos tribunais.

245. Com algumas alterações e acréscimos, esse trabalho foi publicado em versão

comercial

sob o título O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 1991 e 1993.

No nível lógico, nenhuma lei, qualquer que seja sua hierarquia, é

editada para não ser cumprida. Sem embargo, ao menos potencialmen-

te, existe sempre um antagonismo entre o dever-ser tipificado na norma

e o ser da realidade social. Se assim não fosse, seria desnecessária a

regra, pois não haveria sentido algum em impor-se, por via legal, algo

que ordinária e invariavelmente já ocorre. É precisamente aqui que resi-

Page 218: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

de o impasse científico que invalida a suposição, difundida e equivoca-

da, de que o direito deve limitar-se a expressar a realidade de fato. Isso

seria sua negação. De outra parte, é certo que o direito se forma com

elementos colhidos na realidade, e seria condenada ao insucesso a legis-

lação que não tivesse ressonância no sentimento social. O equilíbrio

entre esses dois extremos é que conduz a um ordenamento jurídico soci-

almente eficaz.

246. Sobre normatividade e efetividade, veja-se Hans Kelsen, Teoría general del

Estado (ed.

mexicana), 1965, p. 23-4.

De regra, como já referido, um preceito legal é observado voluntaria-

mente. As normas jurídicas têm, por si mesmas, uma eficácia "racional

ou intelectual", por tutelarem, usualmente, valores que têm ascendência

no espírito dos homens. Quando, todavia, deixa de ocorrer a submis-

são da vontade individual ao comando normativo, a ordem jurídica aciona

um mecanismo de sanção, promovendo, por via coercitiva, a obediência

a seus postulados. Mas essa é a exceção. Como bem intuiu André Hauriou,

se não houvesse, em grande parte, uma obediência espontânea, se fosse

necessário um policial atrás de cada indivíduo e, quem sabe, um segun-

do policial atrás do primeiro, a vida social seria impossível.

247. André Hauriou, Derecho constitucional y instituciones políticas (ed. espanhola),

1971, p. 30.

248. André Hauriou, Derecho constitucional y instituciones políticas, cit., p. 30.

A despeito da sedimentada formulação doutrinária dessas questões,

o direito constitucional, por peculiaridades que lhe são próprias, não as

assimilou ainda inteiramente. A dificuldade de isolar seu objeto da com-

plexa interferência de componentes metajurídicos retarda, quando não

o seu desenvolvimento científico, ao menos a sua dimensão normativa,

comprometendo-lhe a eficácia, assim no que diz respeito ao cumpri-

mento espontâneo de seus princípios e normas como à existência de

meios de sanção eficientes. Em nenhuma esfera jurídica, observa Linares

Quintana, é tão grande o abismo entre a validade e a vigência do direito.

Foi precisamente ao estudar a sintonia entre as normas constitucio-

nais e a realidade do poder - e a efetividade dessa regulação - que

Karl Loewenstein elaborou a sua celebrada classificação ontológica das

Constituições, diferenciando-as segundo seu caráter normativo, nomi-

nal ou semântico. A Constituição normativa é aquela não apenas juri-

dicamente válida, mas que está, além disso, vivamente integrada na so-

ciedade. Suas normas dominam o processo político ou, inversamente, o

processo de poder se amolda às normas da Lei Maior, submetendo-se a

elas. "Para usar uma expressão de todos os dias: a Constituição é a rou-

pa que assenta bem e que realmente veste."

249. Segundo V. Linares Quintana, Tratado de la ciencia del derecho constitucional

argenti-

no y comparado, 1953, v. 1, p. 346. O autor utiliza a palavra vigência para significar o que

na

terminologia por nós utilizada corresponde à efetividade.

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250. Karl Loewenstein, Teoría de la Constitución, 1986, p. 217 e s.

No outro extremo está a Constituição semântica, subalterna

formalização da situação de poder político existente, para o exclusivo

benefício dos detentores do poder de fato, que dispõem do aparato coativo

do Estado. Se não houvesse nenhuma Constituição formal ou escrita, a

vida institucional não seria perceptivelmente diferente. "A roupa não

veste, como no caso da Constituição normativa, mas esconde, dissimula

ou disfarça."

251. Raymundo Faoro,Assembléia Constituinte: a legitimidade recuperada, 1981,p.

10,

onde se contém uma refletida síntese do pensamento de Loewenstein.

Entre a Constituição normativa e a Constituição semântica, situa-se a

Constituição nominal. Aqui, a dinâmica do processo político não se adapta

às suas normas, mas conserva um caráter educativo e prospectivo. Existe,

nesse caso, uma desarmonia entre os pressupostos sociais e econômicos

existentes e a aspiração constitucional, a ser sanada com o passar do tempo,

pelo amadurecimento esperado. "A roupa fica por certo tempo guardada no

armário e será vestida quando o corpo nacional haja crescido." Conforta-

velmente, sem pressa, os detentores do poder esperam pelo futuro, "seja do

país grande potência, do país rico ou do país educado".

252. Karl Loewenstein, Teoría de la Constitución, cit., p. 218.

253. Raymundo Faoro, Assembléia Constituinte: a legitimidade recuperada, cit., p. 11.

Na República, as Constituições de 1891, 1934 e 1946 foram nomi-

nais. As Cartas de 1937, 1967 e 1969 foram semânticas. Já percorremos

os ciclos do atraso. A Constituição de 1988, em meio a incontáveis vi-

cissitudes, tem mobilizado um esforço, tanto de parte da doutrina como

de diversos tribunais, de realização de um constitucionalismo normativo.

As normas constitucionais, como espécie do gênero normas jurídi-

cas, conservam os atributos essenciais destas, dentre os quais a impe-

ratividade. De regra, como qualquer outra norma, elas contêm um manda-

mento, uma prescrição, uma ordem, com força jurídica e não apenas

moral. Logo, a sua inobservância há de deflagrar um mecanismo próprio

de coação, de cumprimento forçado, apto a garantir-lhe a imperativida-

de, inclusive pelo estabelecimento das conseqüências da insubmissão ao

seu comando. As disposições constitucionais são não apenas normas jurídi-

cas como têm um caráter hierarquicamente superior, não obstante a parado-

xal equivocidade que longamente campeou nessa matéria, ao considerá-las

prescrições desprovidas de sanção, mero ideário não jurídico.

A crítica, antiga e autorizada a tal ponto de vista, não impediu que

até hoje a Constituição se visse destituída, em tantos de seus preceitos,

de efetivo teor normativo, ficando eles limitados a meras proposições

abstratas, mais próximas de comandos morais que jurídicos. Tal de-

formação é anteS tributária de imprecisão técnica e de conveniências

dissimuladas do que de uma construção científica apta a justificá-la. O

próprio constituinte, entregando-se, muitas vezes, a devaneios

irrealizáveis, contribui para a desvalorização da Constituição como do-

cumento jurídico.

Page 220: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

254. V. Rui Barbosa, Comentários à Constituição Federal brasileira, cit., v. 2, p. 482 e

s. V.,

também, Francisco Campos, Direito constitucional, 1956, p. 395, onde se lê: "Uma

provisão cons-

titucional, exatamente porque se contém no instrumento da Constituição, é uma provisão

essencial,

indispensável e imperativa, por envolver de fato ou por pressuposto do legislador

constituinte -

pressuposição irremovível por argumentos em contrário - matéria de interesse público ou

relativa

a direitos individuais, de ordem substancial, portanto".

Ao jurista cabe formular estruturas lógicas e prover mecanismos

técnicos aptos a dar efetividade às normas jurídicas. Mas isso é, em

verdade, o mínimo e o máximo de sua atuação. Subjacentemente, terá

de haver uma determinação política do Poder Público em sobrepor-se à

resistência. Num Estado democrático de direito, o poder, com o batismo

da legitimidade, impõe-se por via da autoridade, que, geralmente, carreia

à obediência, independentemente da coação; sem dispensá-la, contudo,

quando necessária. Essa fórmula, tecnicamente singela, é, na prática,

intrincadíssima e exige um grau de amadurecimento que somente se

atinge, como inevitável, pelo passar do tempo e pela prática contínua.

As idéias até aqui desenvolvidas em nome do princípio da efetividade

apontam para uma evidência: o direito existe para realizar-se. O direito

constitucional não foge a esse desígnio. Como adverte Biscaretti di

Ruffia, sendo a Constituição a própria ordenação suprema do Estado,

não pode existir uma norma ulterior, de grau superior, que a proteja. Por

conseguinte, ela deve encontrar em si mesma a própria tutela e garan-

tia. Convém, neste passo, enfatizar, ainda uma vez, a idéia da força

normativa da Constituição.

255. Na precisa colocação de Dalmo deAbreu Dallari, "será totalmente inútil todo o

cuidado

para elaborar uma Constituição se ela não for efetivamente aplicada e respeitada... Por esse

motivo,

entre outros, a Constituição não deve conter preceitos de aplicação impossível ou que

contrariem a

realidade social" (Constituição e Constituinte, 1982, p. 53).

256. Paolo Biscaretti di Ruffia, Direito constitucional, 1984, p. 3.

O desenvolvimento do princípio da efetividade, notadamente no Bra-

sil, é fruto de uma transformação da própria percepção do papel do di-

reito constitucional. Na América Latina, de uma maneira geral, um tan-

to sob a inspiração do modelo francês, a ênfase sempre recaiu no estudo

de sua parte orgânica e da discussão sobre as instituições políticas. Con-

seqüentemente, negligenciava-se sua parte dogmática, a visualização

da Constituição como carta de direitos e de instrumentação de sua tute-

la. No Brasil dos últimos anos, com grande proveito prático, parte do

debate constitucional afastou-se dos domínios da ciência política e apro-

ximou-se do direito processual.

Page 221: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Nesta nova perspectiva, torna-se relevante a determinação do con-

teúdo das normas constitucionais, para delas extrair a posição jurídica

em que investem os jurisdicionados. Por igual, devem-se pesquisar no

ordenamento os mecanismos de tutela e garantia dos direitos constituci-

onais. Esse é o caminho que conduz à sua efetividade.

Ao instituir o Estado, a Constituição (a) organiza o exercício do

poder político, (b) define os direitos fundamentais do povo e (c) estabe-

lece princípios e traça fins públicos a serem alcançados. Por via de con-

seqüência, as normas constitucionais, materialmente consideradas, po-

dem ser agrupadas nas seguintes categorias:

a) normas constitucionais de organização;

b) normas constitucionais definidoras de direitos;

c) normas constitucionais programáticas.

As normas constitucionais de organização traçam a estrutura do

Estado, cuidando, essencialmente, da repartição do poder político e da

definição da competência dos órgãos públicos. Na Carta em vigor, são

exemplos de normas dessa natureza as que instituem as competências

do Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como da União, Estados e

Municípios. Embora não seja sua finalidade precípua, tais normas po-

dem eventualmente gerar situações jurídicas individuais, sob a forma de

direito subjetivo.

257. Por exemplo, qualquer indivíduo pode opor-se judicialmente a uma restrição de

direito

imposta pelo Estado em matéria que a Constituição haja deferido à competência dos

Municípios ou

da União, ou à cobrança de um tributo por quem não tenha competência impositiva.

As normas constitucionais definidoras de direitos são as que tipica-

mente geram direitos subjetivos, investindo os jurisdicionados no poder

de exigir do Estado - ou de outro eventual destinatário da norma -

prestações positivas ou negativas, que proporcionem o desfrute dos bens

jurídicos nelas consagrados. Nessa categoria se incluem todas as nor-

mas concernentes aos direitos políticos, individuais, coletivos, sociais e

difusos previstos na Constituição.

As normas constitucionais programáticas veiculam princípios, des-

de logo observáveis, ou traçam fins sociais a serem alcançados pela atua-

ção futura dos poderes públicos. Por sua natureza, não geram para os

jurisdicionados a possibilidade de exigirem comportamentos comissivos,

mas investem-nos na faculdade de demandar dos órgãos estatais que se

abstenham de quaisquer atos que contravenham as diretrizes traçadas. Vale

dizer: não geram direitos subjetivos na sua versão positiva, mas geram-

nos em sua feição negativa. São dessa categoria as regras que preconizam

a função social da propriedade (art. 170, III), a redução das desigualdades

regionais e sociais (art. 170, VII), o apoio à cultura (art. 215), o fomento

às práticas desportivas (art. 217), o incentivo à pesquisa (art. 218) etc.

A ênfase que acima se deu à existência ou não de direito subjetivo

não é casual. É que essa é a situação jurídica individual mais consisten-

te, e que enseja a tutela jurisdicional para sua proteção. Por direito sub-

Page 222: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

jetivo entende-se o poder de ação, assente no direito objetivo, e destina-

do à satisfação de certo interesse. Singularizam o direito subjetivo,

distinguindo-o de outras posições, a presença, cumulada, das seguintes

características: a) a ele corresponde sempre um dever jurídico; b) ele é

violável, ou seja, existe a possibilidade de que a parte contrária deixe de

cumprir o seu dever; c) a ordem jurídica coloca à disposição de seu

titular um meio jurídico - que é a ação judicial - para exigir-lhe o

cumprimento, deflagrando os mecanismos coercitivos e sancionatórios

do Estado.

258. V. M. Seabra Fagundes, O controle dos atos administrativos pelo Poder

Judiciário, cit.,

p. 169.

Nessa conformidade, das normas constitucionais que geram direi-

tos subjetivos resultam para seus beneficiários - os titulares dos direi-

tos - situações jurídicas imediatamente desfrutáveis, efetivadas por

prestações positivas ou negativas, exigíveis do Estado ou de outro even-

tual destinatário da norma. Quando a prestação a que faz jus o titular do

direito não é entregue voluntariamente, nasce para ele uma pretensão, a

ser veiculada através do exercício do direito de ação, pela qual se requer

a órgão do Poder Judiciário que faça atuar o direito objetivo e promova

a tutela dos interesses violados ou ameaçados.

O direito genérico de ação tem sede constitucional (art. 5º, XXXV),

mas as ações judiciais, em geral, são disciplinadas pela legislação

infraconstitucional. Há, no entanto, um conjunto de ações elevadas à

categoria de ações constitucionais, por se encontrarem previstas na pró-

pria Lei Maior. Tradicionalmente, no direito brasileiro, essas ações cons-

titucionais eram três: o habeas corpus, o mandado de segurança e a ação

popular. A Constituição de 1988 introduziu novas ações: o mandado

de segurança coletivo, a ação civil pública, o habeas data e o manda-

do de injunção. As chamadas ações diretas, pelas quais se suscita o exer-

cício da jurisdição constitucional concentrada e abstrata, não são objeto

de referência neste passo por não se destinarem à tutela de situações

jurídicas subjetivas.

259. O habeas corpus remonta à Constituição de 1891. O mandado de segurança e a

ação

popular foram instituidos como Texto de 1934.

260. A ação civil pública, a rigor, fora criada um pouco antes, em sede infraconstitu-

cional, pela Lei n. 7.347, de 24-7-1985.

Um dos pontos capitais relativamente ao princípio da efetividade é

a necessidade de o Poder Judiciário se libertar de certas noções arraiga-

das e assumir, dentro dos limites do que seja legítimo e razoável, um

papel mais ativo em relação à concretização das normas constitucionais.

Para tanto, precisa superar uma das patologias crônicas da hermenêutica

constitucional no Brasil: a interpretação retrospectiva, pela qual se pro-

cura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas,

ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo. Esse aspecto

já foi versado anteriormente e não há sentido em voltar a ele (v., supra,

Page 223: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Parte 1, cap. II).

Resta, por fim, o tratamento da questão da inconstitucionalidade

por omissão. A Constituição, como já se teve oportunidade de assinalar,

é um corpo de normas jurídicas, ou seja, compõe-se de preceitos obriga-

tórios que organizam o poder político e regram a conduta, tanto dos

órgãos estatais quanto dos cidadãos. Vulnera-se a imperatividade de uma

norma de direito quer quando se faz aquilo que ela proíbe, quer quando

se deixa de fazer o que ela determina. Vale dizer: a Constituição é susce-

tível de descumprimento tanto por ação como por omissão.

Não é o caso aqui de se aprofundar o exame teórico do fenômeno da

omissão, o que já fizemos em outro estudo, com remissão à doutrina

nacional estrangeira, bem como a decisões de tribunais europeus, espe-

cialmente da Itália e Alemanha. Procede-se, no entanto, a uma análise

das duas figuras introduzidas pela Constituição brasileira para lidar com

o tema: a ação direta de inconstitucionalidade por omissão e o mandado

de injunção, e sua prática pelos tribunais nos anos de vigência da Car-

ta de 1988.

261. V. nosso O direito constitucional e a efetividade de suas normas, cit., p. 156 e s.

Reco-

menda-se, todavia, na literatura mais recente, Clêmerson Merlin Clêve, A fiscalização

abstrata de

constitucionalidade no direito brasileiro, 1995, p. 209 e s.

262. Especificamente sobre o mandado de injunção, v. nosso Mandado de injunção.

Perfil

doutrinário e evolução jurisprudencial, RDA, 191:1, 1993.

O perfil constitucional da ação direta de inconstitucionalidade por

omissão vem delineado no art. 103, § 2º: "Declarada a incons-

titucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma consti-

tucional, será dada ciência ao poder competente para a adoção das pro-

vidências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para

fazê-lo em trinta dias". O instituto teve carreira modesta. A inocuidade

da mera "ciência" a ser dada ao órgão omisso não mobilizou os legiti-

mados do art. 103 a ingressarem com a ação, salvo exceções. Em uma

das ações propostas, o Supremo Tribunal Federal assentou não ser ne-

cessária a audiência do Advogado-Geral da União nos casos de ação

direta por omissão. Em outra, ajuizada pelo então Governador de Ala-

goas Fernando Collor de Mello, a propósito da remuneração de servido-

res estaduais estigmatizados como "marajás", decidiu a Corte que a ação

direta de inconstitucionalidade por omissão "não é de ser proposta para

que seja praticado determinado ato administrativo em caso concreto".

263. ADIn 23-3-SP, rel. Min. Sydney Sanches, DJU, 1º set. 1989.

264. ADIn 19-5-AL, rel. Min. Aldir Passarinho, DJU, 14 abr. 1989.

Houve, todavia, uma ação direta de inconstitucionalidade por omis-

são onde se suscitaram interessantes e intrincadas questões, envolvendo

os conceitos de (a) inconstitucionalidade por ação, isto é, pela edição de

ato normativo em desconformidade com a Constituição; (b) incons-

titucionalidade por omissão absoluta, que se verifica quando o órgão

Page 224: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

competente queda inteiramente inerte diante de um dever de legislar;

(c) inconstitucionalidade relativa, que ocorre quando o legislador, em-

bora atuando, deixa de fora da incidência da norma alguma categoria

que nela deveria estar incluída.

Tais discussões tiveram sede na ação proposta pelo Partido dos Tra-

balhadores, tendo por objeto a Medida Provisória n. 296, de 29 de maio

de 1991, editada pelo Presidente da República. O ato normativo, ao que

se alegava, concedia, embora disfarçadamente, revisão geral de remu-

neração aos servidores militares, sem contemplar os civis (em violação

do art. 37, X), e concedia reajustes a determinadas categorias de servi-

dores civis, com exclusão arbitrária de outras (em violação do art. 39, §

1º). O pedido, que incluía requerimento de liminar, era no sentido de

que se declarasse a inconstitucionalidade por omissão e se fixasse prazo

ao Presidente da República para saná-la, editando nova medida provisó-

ria ou remetendo ao Congresso Nacional projeto de lei de sua iniciativa,

atendendo ao disposto nos arts. 37, X, e 39, § 1º.

Em relação à mesmíssima medida provisória, o Partido Socialista

Brasileiro requerera a declaração de inconstitucionalidade positiva, isto

é, pura e simplesmente a sua invalidação. Seu pedido liminar foi no

sentido da suspensão da vigência da medida do Presidente da Repúbli-

ca. A ação do Partido dos Trabalhadores, ao revés, buscava viabilizar

um meio, não de invalidar os benefícios concedidos, mas de estendê-los

aos que haviam sido excluídos.

A singularidade da questão era que a mera declaração de

inconstitucionalidade da medida provisória, em lugar de resolver o pro-

blema dos que ficaram de fora, simplesmente estenderia a injustiça a

todos, já que ninguém receberia aumento algum. A alternativa que se

cogitou, inspirada por precedentes do Tribunal Constitucional Federal

alemão, era a de declarar-se a inconstitucionalidade da norma, por omis-

são parcial, com fixação de prazo para que fosse sanada a omissão. Se

esta persistisse, o próprio Tribunal estenderia o reajuste a todos. O Su-

premo, contudo, em voto do Ministro Sepúlveda Pertence, após questio-

nar a adaptabilidade da solução alemã ao sistema de controle vigente no

Brasil, rejeitou a possibilidade, averbando:

"A essa extensão da lei, contudo, faltam poderes ao

Tribunal, que, à luz do art. 103, § 2º, CF, declarando a in-

constitucionalidade por omissão da lei - seja ela absoluta

ou relativa -, há de cingir-se a comunicá-la ao órgão

legislativo competente, para que a supra".

265. RTJ, 146:424, 1993, p. 431, ADIn 529-DF, rel. Min. Sepúlveda Pertence. Em sua

longa

ementa, dispôs o acórdão: "1. Ação direta contra a Med. Prov. 296/91 que - diversamente

de

outra, proposta contra o mesmo ato normativo (ADIn 525) -, não postula a invalidade dos

bene-

fícios concedidos aos servidores federais nela contemplados, mas se funda, ao contrário, na

alegada

Page 225: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

omissão do Presidente da República, na medida em que não os estendeu à totalidade do

pessoal

civil da União, como imposta pelas normas constitucionais invocadas (CF, arts. 37, X, e 39,

§ 1º):

plausibilidade jurídica da alegação de mérito. 2. Considerações sobre o dilema - na hipótese

de

ofensa à isonomia pela norma legal que, concedendo vantagens a uns, não as estende a

outros, em

situação idêntica -, entre a declaração da inconstitucionalidade positiva da lei

discriminatória ou

da inconstitucionalidade da omissão relativa. 3. Inadmissibilidade, em princípio, da

antecipação

cautelar provisória da declaração de inconstitucionalidade por omissão (ADIn 361,

5.10.90), agra-

vada, na espécie, em que o ato normativo que traduziria a discriminação alegada é uma

medida

provisória, ainda pendente de apreciação pelo Congresso Nacional e, portanto, ela mesma,

com

vigência provisória e resolúvel".

O outro remédio jurídico concebido para neutralizar as omissões

inconstitucionais foi o mandado de injunção, instituído no art. 5º, LXXI,

da Constituição Federal, com a dicção seguinte: "Conceder-se-á man-

dado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne

inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prer-

rogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania".

Não é oportuno reeditar aqui o amplo debate doutrinário acerca do

objeto do mandado de injunção, em cuja discussão já correram rios de

tinta. Formaram-se, a propósito, como bem se sabe, três correntes, cada

uma delas sustentando destinar-se a medida: a) apenas a ensejar fosse

dada ciência ao órgão responsável pela omissão de que esta se verifica-

va; b) a formular a regra faltante, com caráter genérico, erga omnes; c)

a formular a regra faltante, com caráter concreto, somente para a solu-

ção do caso submetido ao tribunal.

Na linha do entendimento majoritário da doutrina, assentamos em

outro estudo:

"Em conseqüência, afigura-se fora de dúvida que a me-

lhor inteligência do dispositivo constitucional (art. 5º, LXXI)

e de seu real alcance está em ver no mandado de injunção

um instrumento de tutela efetiva de direitos que, por não

terem sido suficiente ou adequadamente regulamentados,

careçam de um tratamento excepcional, qual seja: que o Ju-

diciário supra a falta de regulamentação, criando a norma

para o caso concreto, com efeitos limitados às partes do pro-

cesso. O objeto da decisão não é uma ordem ou uma reco-

mendação para edição de uma norma. Ao contrário, o órgão

jurisdicional substitui o órgão legislativo ou administrativo

competentes para criar a regra, criando ele próprio, para os

Page 226: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

fins estritos e específicos do litígio que lhe cabe julgar, a

norma necessária. A função do mandado de injunção é fazer

com que a disposição constitucional seja aplicada em favor

do impetrante, "independentemente de regulamentação, e

exatamente porque não foi regulamentada"".

266. V. Luís Roberto Barroso, Mandado de injunção..., RDA, 191:1, p. 4. Sobre o

tema, em

igual sentido, vejam-se: José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo,

1992, p.

391 e s.; Carlos Mário da Silva Velloso, As novas garantias constitucionais, RT, 644:7, p.

13-4;

Celso Agrícola Barbi, Mandado de injunção, in Mandado de segurança e de injunção

(estudos em

memória de Ronaldo Cunha Campos), 1990, p. 387 e s.; Hélio Tornaghi, O mandado de

injunção,

RF 306:85-6; Célio Borja, O mandado de injunção e o habeas data, RF 306:43; Ivo Dantas,

Man-

dado de injunção, 1989, p. 97; Adhemar Ferreira Maciel, Mandado de injunção e

inconstitu-

cionalidade por omissão, in Mandado de segurança e de injunção, cit., p. 377-8; Sérgio

Bermudes,

O mandado de injunção, RT, 642:24.

Coerente com esse ponto de vista, deve-se entender que a legitimi-

dade passiva no mandado de injunção há de recair sobre o sujeito passi-

vo do direito constitucional, isto é, a pessoa pública ou privada à qual

incumbe prestar o dever correspondente ao direito subjetivo do autor.

Será, pois, o INSS se a prestação em questão tiver natureza previdenciária;

o empregador, se se tratar de indenização por despedida arbitrária; ou o

banco, se o pedido versar limitação à taxa de juros. Ademais, parece

adequado notificar, também, os órgãos responsáveis pela omissão para

que prestem informações.

É bem de ver, todavia, que a jurisprudência do Supremo Tribunal

Federal contra os votos dos Ministros Carlos Mário Velloso, Marco

Aurélio e Ilmar Galvão -, rejeitando a tese que mereceu o quase con-

senso doutrinário, ofereceu clara resistência ao instituto, minimizando

seu alcance como remédio constitucional. Logo no primeiro momento,

resistindo ao ônus político de uma competência normativa que não de-

sejava, pronunciou-se a Corte, pelo Ministro Celso de Mello:

"Com efeito, esse novo writ não se destina a constituir

direito novo, nem a ensejar ao Poder Judiciário o anômalo

desempenho de funções normativas que lhe são institucio-

nalmente estranhas.

O mandado de injunção não é o sucedâneo constituci-

onal das funções político-jurídicas atribuidas aos órgãos

estatais inadimplentes. Não legitima, por isso mesmo, a

veiculação de provimentos normativos que se destinem a

substituir a faltante norma regulamentadora sujeita a com-

Page 227: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

petência, não exercida, dos órgãos públicos. O STF não se

substitui ao legislador ou ao administrador que se hajam

abstido de exercer a sua competência normatizadora. A pró-

pria excepcionalidade desse novo instrumento jurídico im-

põe ao Judiciário o dever de estrita observância do princí-

pio constitucional da divisão funcional do Poder".

267. MI 191-0-RJ, rel. Min. Celso de Mello, DJU, 12fev. 1990, p. 280.

Mas o leading case na matéria foi o Mandado de Injunção n. 107-3-

DF, onde a Suprema Corte, esvaziando a significação do novo remédio

constitucional, equiparou-o à ação direta de inconstitucionalidade por

omissão, em decisão que lavrou:

"É ele (o MI)... ação que se propõe contra o Poder,

órgão, entidade ou autoridade omissos quanto à norma

regulamentadora necessária à viabilização do exercício dos

direitos, garantias e prerrogativas a que alude o art. 5º,

LXXI, da Constituição, e que se destina a obter sentença

que declare a ocorrência da omissão constitucional, com a

finalidade de que se dê ciência ao omisso dessa declara-

ção, para que adote as providências necessárias, à seme-

lhança do que ocorre com a ação direta de inconstitucio-

nalidade por omissão (art. 103, § 2º, da Carta Magna), com

a determinação, se for o caso, da suspensão de processos

judiciais ou administrativos, se se tratar de direito consti-

tucional oponível ao Estado, mas cujo exercício está

inviabilizado por omissão deste".

268. RDA, 184:226, 1991, MI 107-3-DF, rel. Min. Moreira Alves.

Assim, de acordo com a interpretação da mais alta Corte, existem

dois remédios constitucionais para que seja dada ciência ao órgão omis-

so do poder público, e nenhum para que se componha, em via judicial, a

violação do direito constitucional da parte. Essa linha de entendimento

foi reiterada no julgamento do Mandado de Injunção n. 168-5-RS, da

relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, onde se decidiu:

"O mandado de injunção nem autoriza o Judiciário a

suprir a omissão legislativa ou regulamentar, editando o

ato normativo omitido, nem, menos ainda, lhe permite or-

denar, de imediato, ato concreto de satisfação do direito

reclamado".

269. DJU, 20 abr. 1990, p. 3047.

Em comentário agudo e procedente, José Carlos Barbosa Moreira,

em artigo jornalístico, condenou a orientação adotada pelo Supremo

Tribunal Federal:

"Conceber o mandado de injunção como simples meio

de apurar a inexistência da "norma reguladora" e comunicá-

la ao órgão competente para a edição (o qual, diga-se entre

parênteses, presumivelmente conhece mais do que ninguém

suas próprias omissões...) é reduzir a inovação a um sino

sem badalo. Afinal, para dar ciência de algo a quem quer

Page 228: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

que seja, servia - e bastava - a boa e velha notificação".

270. S. O. S. para o mandado de injunção, IOrflaldOBrasi/, 11 set. 1990, J~c~derno,p.

ii.

O fato é que o Supremo Tribunal Federal, após o ímpeto inicial de

rejeição às potencialidades do novo remédio constitucional, parece ha-

ver-se sensibilizado com a crítica dos doutrinadores e com a discordância

dos Tribunais inferiores. Deveras, sem acolher plenamente as idéias aqui

sustentadas, a mais alta Corte evoluiu em relação à sua postura original,

que, praticamente - e com grande inocuidade -, equiparava o manda-

do de injunção à ação direta de inconstitucionalidade por omissão.

A nova visão do Supremo Tribunal Federal começou a se delinear

no julgamento de mandado de injunção impetrado com fundamento no

art. 8º, § 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Carta

de 1988. Tal dispositivo prevê que cidadãos afetados por atos discricio-

nários do Ministério da Aeronáutica, editados logo após o movimento

militar de 1964, fazem jus a uma "reparação de natureza econômica, na

forma que dispuser lei de iniciativa do Congresso Nacional e a entrar em

vigor no prazo de doze meses a contar da promulgação da Constituição".

A lei não foi editada no prazo previsto. Foi impetrado, assim, o

mandado de Injunção n. 283-5, sob o fundamento de que o exercício de

um direito subjetivo constitucional era obstado por tal omissão legislativa.

No acórdão, relatado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, decidiu a Su-

prema Corte:

"Mandado de injunção: mora legislativa na edição da

lei necessária ao gozo do direito à reparação econômica

contra a União, outorgado pelo art. 8º, § 3º, ADCT: deferi-

mento parcial, com estabelecimento de prazo para a purga-

ção da mora e, caso subsista a lacuna, facultando o titular

do direito obstado a obter, em juízo, contra a União, sen-

tença líquida de indenização por perdas e danos".

271. DJU, 14nov. 1991,p. 16355-6.

O mesmo acórdão cuidou de deixar remarcado que, além de decla-

rar a mora do legislador, o mandado de injunção era deferido para:

a) assinar o prazo de sessenta dias para que se ultimasse o processo

legislativo, inclusive a sanção presidencial;

b) se ultrapassado esse prazo, reconhecer ao impetrante a faculdade de

obter, contra a União, pela via processual adequada, a reparação devida;

c) declarar que, prolatada a sentença condenatória, a superveniência

de lei não prejudica a coisa julgada, que, entretanto, não impede o

impetrante de obter os benefícios da lei posterior, no que lhe for mais

favorável.

Pouco adiante, em mandado de injunção impetrado com base na

mesma disposição constitucional (art. 8º, § 3º do ADCT), o Supremo

Tribunal Federal, tendo em vista o escoamento do prazo que concedera

no writ anterior, considerou desnecessária nova comunicação ao Con-

gresso Nacional e facultou aos impetrantes ingressarem imediatamente

em juízo para obter a reparação a que faziam jus. A decisão, proferida

Page 229: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

no Mandado de Injunção n. 284-3, assim lavrou:

"Reconhecido o estado de mora inconstitucional do

Congresso Nacional - único destinatário do comando para

satisfazer, no caso, a prestação legislativa reclamada - e

considerando que, embora previamente cientificado no

Mandado de Injunção n. 283, absteve-se de adimplir a obri-

gação que lhe foi constitucionalmente imposta, torna-se

prescindível nova comunicação à instituição parlamentar,

assegurando-se aos impetrantes, desde logo, a possibilida-

de de ajuizarem, imediatamente, nos termos do direito co-

mum ou ordinário, a ação de reparação de natureza econô-

mica instituída em seu favor pelo preceito transitório".

272. DJU, 26jun. 1992, p. 10103, rel. Min. Marco Aurélio.

Como bem observou o eminente Milton Flaks, o Supremo Tribunal

Federal, ao firmar tal posição: a) admitiu converter uma norma constitu-

cional de eficácia limitada (porque dependente de norma infra-

constitucional integradora) em norma de eficácia plena; b) considerou o

mandado de injunção hábil para obter a regulamentação de qualquer

direito previsto na Constituição, e não apenas dos direitos e garantias

fundamentais constantes do seu Título II.

273. Milton Flaks, Instrumentos processuais de defesa coletiva, RDA, 190:61, 1992.

Essa mudança na orientação do Supremo Tribunal Federal se con-

solidou no julgamento do Mandado de Injunção n. 232-1, onde se discu-

tiu o alcance do § 7º do art. 195 da Constituição Federal, que estabelece

serem "isentas de contribuição para a seguridade social as entidades

beneficentes de assistência social que atendam às exigências

estabelecidas em lei". Decorridos mais de dois anos da promulgação da

Carta, tal lei não havia ainda sido editada, apesar de o art. 59 do Ato das

Disposições Constitucionais Transitórias haver fixado um prazo máxi-

mo de seis meses para sua apresentação e outros seis para que fosse

apreciada pelo Congresso Nacional. Na parte em que nos interessa, a

decisão foi assim ementada:

"Mandado de injunção conhecido, em parte, e, nessa

parte, deferido para declarar-se o estado de mora em que se

encontra o Congresso Nacional, a fim de que, no prazo de

seis meses, adote ele as providências legislativas que se

impõem para o cumprimento da obrigação de legislar de-

corrente do art. 195, § 7º, da Constituição, sob pena de,

vencido esse prazo sem que essa obrigação se cumpra, pas-

sar o requerente a gozar da imunidade requerida".

274. MI 232-1-RJ, rel. Min. Moreira Alves, DJU, 27 mar. 1992, p. 3800. Votaram

vencidos,

por esposarem a tese que aqui se afirma ser a melhor, os Mins. Carlos Mário Velloso, Célio

Borja e

Marco Aurélio.

Note-se, no entanto, que, na hipótese aqui versada, o Tribunal não

precisará suprir qualquer lacuna normativa. Limitar-se-á a considerar

Page 230: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

auto-aplicável norma que conferia um direito, mas condicionava-o ao

preenchimento de requisitos que a lei ditaria. Não há, pois, maior difi-

culdade, nem se exige do Judiciário uma atuação de integração da or-

dem jurídica.

Hipótese mais típica foi julgada pelo 4º Grupo de Câmaras Cíveis

do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Cuidava-se, ali,

de mandado de injunção requerido por dois policiais que haviam sido

eleitos para cargos de direção da Federação Nacional da Polícia Civil e

que pediam afastamento dos seus cargos, invocando o art. 84, parágrafo

único, da Constituição do Estado, que previa: "A lei disporá sobre a

licença sindical para os dirigentes de Federações e sindicatos de servi-

dores públicos, durante o exercício do mandato, resguardados os direi-

tos e vantagens de cada um". A lei referida, que disciplinaria as condi-

ções da licença, ainda não fora editada.

275. MI 6/90, rel. Barbosa Moreira,j. 22-2-1991. O acórdão se encontra transcrito na

íntegra

em nosso O direito constitucional e a efetividade de suas normas, cit., p. 192 e s.

O acórdão, da lavra de Barbosa Moreira, enriquecido por substan-

ciosa pesquisa, estabeleceu, com acuidade, três premissas:

a) a legitimação passiva recai sobre o Secretário de Estado de Polí-

cia Civil, a quem compete conceder a licença (a rigor técnico, como se

sabe, a autoridade apenas presta informações, sendo o Estado o sujeito

passivo);

b) ao órgão ao qual se imputa a omissão é dada ciência da impetração;

c) diante da lacuna, cabe ao órgão judicial formular a regra concreta

e aplicá-la, limitada, subjetivamente, às partes do processo.

No mérito, acolheu-se o pedido e reconheceu-se aos impetrantes o

direito ao gozo de licença não remunerada durante o exercício dos res-

pectivos mandatos. A decisão fundou-se nos critérios adotados pela Con-

solidação das Leis do Trabalho, que, embora inaplicável à espécie, ins-

pirou a regra concreta formulada pelo órgão julgador.

Neste particular - legitimação passiva - a matéria carece, ainda,

de melhor elaboração. O Supremo Tribunal Federal, no Mandado de

Injunção n. 335, por maioria de votos, firmou o entendimento de que

parte passiva é somente a autoridade ou órgão omisso, e não a parte

privada devedora da prestação. Essa posição vem explicitada na decisão

do Mandado de Injunção n. 323-8-DF, assim ementada:

"Em face da natureza mandamental do mandado de

injunção (...), ele se dirige às autoridades ou órgãos públicos

que se pretendem omissos quanto à regulamentação que

viabilize o exercício dos direitos e liberdades constitucio-

nais (...), não se configurando, assim, hipótese de cabimento

de litisconsórcio passivo entre essas autoridades e órgãos

públicos que deverão, se for o caso, elaborar a regulamenta-

ção necessária, e particulares que, em favor do impetrante

do mandado de injunção, vierem a ser obrigados ao cumpri-

mento da norma regulamentadora, quando vier esta, em de-

Page 231: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

corrência de sua elaboração, a entrar em vigor".

276. DJU, 14 fev. 1992, p. 1164, rel. Min. Moreira Alves. Na linha desse

entendimento, havia

sido decidido, no MI 300-9/400-DF (DJU, 18 abr. 1991, p. 4512), que o mandado de

injunção

destinado à implementação do art. 192, § 3º, da Constituição, referente aos 12% de juros

reais,

deveria ser impetrado em face do Congresso Nacional e não em face da instituição

financeira que

praticava os juros abusivos.

Este entendimento, naturalmente, não é compatível com aquele que

aqui se está afirmando, no sentido de que o objeto do mandado de

injunção é o suprimento da norma faltante na solução do caso concreto,

vinculando tão-somente as partes do processo. Por tal ponto de vista, a

parte privada (ou não) devedora da obrigação prevista na norma consti-

tucional deverá figurar no pólo passivo e, quanto a ela, a decisão não

terá caráter mandamental. No fundo - data maxima venia - o erro de

concepção na posição majoritária da Suprema Corte é, precisamente, a

atribuição de natureza mandamental ao mandado de injunção.

Em linha antagônica com a posição da maioria - e identificando-

se com o entendimento que aqui se afirma ser o melhor -, o Ministro

Marco Aurélio, relator do Mandado de Injunção n. 305-0-DF, determi-

nou a inclusão, no pólo passivo, tanto do Congresso Nacional quanto

dos Bancos aos quais se imputava cobrança extorsiva de juros, ainda na

hipótese do art. 192 da Constituição. Este, também, o ponto de vista

do Ministro Ilmar Galvão, que em voto vencido proferido no Mandado

de Injunção n. 369-DF averbou:

"A relação jurídico-processual, no presente caso, com

a devida vênia, não está completa. A ação se dirige exclusi-

vamente contra o Congresso Nacional quando, na verdade,

a pretensão do impetrante está mais voltada para a conse-

cução de seu direito, in concreto, do que para a elaboração

de norma geral, reguladora do aviso prévio proporcional.

O que objetiva ele é receber a prestação com que a Consti-

tuição lhe acena e que não foi satisfeita pelo empregador,

por ausência da norma regulamentadora. O mandado de

injunção, a meu ver, destina-se a suprir essa omissão, o

que somente pode ser cumprido mediante a elaboração, pelo

STF, de norma para o caso concreto que se expõe".

277. MI 305-0-DF, DJU, 30 abr. 1991, p. 5335.

278. RTJ, 144:393, 1993, p. 403, rel. Min. Francisco Rezek.

A questão da legitimação ativa, passiva e do objeto do mandado de

injunção voltou a ser discutida no Mandado de Injunção n. 361, onde a

Corte admitiu, por aplicação analógica do art. 5º, LXX, da Constituição,

o cabimento de mandado de injunção coletivo, e a legitimidade ativa de

entidade sindical de pequenas e médias empresas. Em seguida, apreci-

ando novamente a questão dos juros de 12% ao ano, a Corte se dividiu

Page 232: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

em três correntes, bem demonstrando a intensidade da dissensão dos

Ministros em relação ao mandado de injunção. Confira-se a votação:

Ministros Ilmar Galvão, Marco Aurélio e Carlos Mário Velloso: jul-

gavam procedente o pedido e desde logo fixavam a taxa de juros em

12%, nos termos explicitados em seus votos;

Ministro Néri da Silveira (Relator): julgava procedente em parte o

pedido, declarando o estado de mora do Congresso e fixando um prazo de

cento e vinte dias ao Poder Legislativo para regulamentação da norma;

Ministros Sepúlveda Pertence, Moreira Alves, Francisco Rezek e

Octávio Gallotti: julgavam procedente em parte e declaravam a mora

do Congresso Nacional, sem, contudo, fixar prazo para suprimento da

omissão.

A maioria, acompanhando o voto do Ministro Pertence, relator para

acórdão, entendeu que a fixação de prazo só é adequada quando seja

possível cominar conseqüências à sua superação in albis, como, por

exemplo, quando se trate de obrigação imputável à União, sendo ela a

pessoa jurídica responsável pela mora legislativa. Na parte aqui rele-

vante, o acórdão ficou assim ementado:

"Juros reais (CF, art. 192, § 3º): passados quase cinco

anos da Constituição e dada a inequívoca relevância da de-

cisão constituinte paralisada pela falta da lei complemen-

tar necessária à sua eficácia - conforme já assentado pelo

STF (ADIn 4, DJ, 25.06.93, Sanches) -, declara-se incons-

titucional a persistente omissão legislativa a respeito, para

que a supra o Congresso Nacional".

"Mandado de injunção: natureza mandamental (MI

107-QO, M. Alves, RTJ 133/11): descabimento de fixação

de prazo para o suprimento da omissão constitucional, quan-

do - por não ser o Estado o sujeito passivo do direito cons-

titucional de exercício obstado pela ausência da norma

regulamentadora (v. g., MI 283, Pertence, RTJ 135/882)-,

não seja possível cominar conseqüências à sua continuida-

de após o termo final da dilação assinada."

279. RDA, 197:198, 1994, MI 361, rel. Min. Sepúlveda Pertence.

A polêmica em relação à matéria do limite constitucional aos juros

somente se verificou porque o Supremo Tribunal Federal, em decisão

dividida, de cunho muito mais político do que técnico, considerou não

ser auto-aplicável a regra inscrita no § 3º do art. 192 da Constituição. De

fato, ao apreciar ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Par-

tido Democrático Trabalhista, tendo por objeto parecer de cunho

normativo da Consultoria Geral da República, aprovado pelo Presidente

da República, entendeu a Corte, por maioria apertada, que:

"Tendo a Constituição Federal, no único artigo em que

trata do Sistema Financeiro Nacional (art. 192) estabeleci-

do que este será regulado por lei complementar, com ob-

servância do que determinou no caput, nos seus incisos e

parágrafos, não é de se admitir a eficácia imediata e isola-

Page 233: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

da do disposto em seu § 3º, sobre taxa de juros reais (12%

ao ano), até porque estes não foram conceituados. Só o tra-

tamento global do Sistema Financeiro Nacional, na futura

lei complementar, com a observância de todas as normas

do caput, dos incisos e parágrafos do art. 192, é que permi-

tirá a incidência da referida norma sobre juros reais e des-

de que estes também sejam conceituados em tal diploma".

280. RDA, 195:85, 1994, ADIn 4, rel. Min. Sydney Sanches. Votaram vencidos os

Mins.

Carlos Mário Velloso, Paulo Brossard, Néri da Silveira e Marco Aurélio. Sepúlveda

Pertence não

votou, porque impedido, mas manifestou posteriormente restrição à corrente vencedora

(RDA,

197:206).

Ainda uma vez, endossa-se a crítica veemente de José Carlos Barbo-

sa Moreira, que, após notar que a todo momento, em literatura especia-

lizada e leiga, emprega-se o conceito de juros reais, assinalou:

"Só na hora de interpretar a Constituição é que não se

sabe o que é: não se sabe porque não se quer saber. É claro

que a taxa de juros reais é tudo aquilo que se cobra, menos

a correção monetária. Se sabemos o que é boa-fé, conceito

muito mais vago; se sabemos o que são bons costumes, o

que é vaguíssimo, se sabemos o que é mulher honesta, para

aplicarmos o dispositivo legal que define o crime de estu-

pro por que é que não podemos saber o que são taxas de

juros reais? Isso faz parte da tarefa quotidiana do juiz: in-

terpretar textos legais e definir conceitos jurídicos

indeterminados; e este aqui não é tão indeterminado. Acho

até que é bastante determinado".

281. José Carlos Barbosa Moreira, Ações coletivas na Constituição de 1988, Boletim

Jurídico

da Procuradoria Geral do Município do Rio de Janeiro, 1991, v. 2, p. 17.

Em diversas outras decisões, contudo, onde menos complexo o jogo

de interesses, a jurisprudência tem promovido a aplicação direta das

normas constitucionais, em um salto de qualidade em relação ao passa-

do que tem contribuído, significativamente, para o aumento da efetividade

das normas constitucionais.

O mandado de injunção foi um valioso esforço do constituinte de

1988 de remediar a crônica falta de efetividade do constitucionalismo

brasileiro. Ao longo dos pouco mais de dez anos de sua criação, enfren-

tou a forte resistência do próprio Supremo Tribunal Federal, tendo sido

mais discutido do que utilizado. Mas teve a virtude insuperável de di-

fundir a consciência da necessidade de uma Constituição efetiva. E já

cumpriu o seu papel.

282. Sobre o tema, e para a demonstração mais analítica do argumento, v. Luís

Roberto

Page 234: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Barroso, Mandado de injunção: o que foi sem nunca ter sido. Uma proposta de

reformulação, in

Estudos em homenagem ao Professor Caio Tácito. 1997, p. 429, e também em RTDP,

17:34, 1997.

Em lugar do mandado de injunção, sujeito à jurisdição concentrada

dos tribunais superiores, parece-me hoje de muito melhor valia atribuir-

se ao juiz natural da causa o poder-dever de integrar a ordem jurídica,

produzindo para o caso concreto sujeito à sua jurisdição a regra faltante.

Embora tal competência, a meu ver, exista de longa data, penso que ela

possa ter assento constitucional, para tornar-se inequívoca. Basta para

tanto singela mudança de redação do § 1º do art. 5º do Texto, que passa-

ria a viger com a seguinte redação:

"§ 1º - As normas definidoras de direitos subjetivos cons-

titucionais têm aplicação direta e imediata. Na falta de nor-

ma regulamentadora necessária ao seu pleno exercício, for-

mulará o juiz competente a regra que regerá o caso concre-

to submetido à sua apreciação, com base na analogia, nos

costumes e nos princípios gerais de direito".

Em realidade, a proposta funda-se na premissa de que a efetividade

das normas constitucionais definidoras de direitos subjetivos pode e deve

prescindir do mandado de injunção como instrumento de sua realiza-

ção. De fato, surgido como uma idéia importante na busca da efetividade,

a verdade é que hoje o mandado de injunção, em qualquer de suas ver-

sões, tornou-se, quando não um óbice, ao menos um complicador des-

necessário à realização dos direitos.

E o fundamento é o seguinte: toda norma constitucional é dotada de

eficácia jurídica e deve ser interpretada e aplicada em busca de sua

máxima efetividade. Todos os juízes e tribunais devem pautar sua ativi-

dade por tais pressupostos. Basta, portanto, a explicitação de que toda

norma definidora de direito subjetivo constitucional tem aplicação dire-

ta e imediata, cabendo ao juiz competente para a causa integrar a ordem

jurídica, quando isto seja indispensável ao exercício do direito. A rigor

técnico é o que já vem expresso no art. 4º da Lei de Introdução ao Códi-

go Civil: "Quando a lei for omissa, o juiz decidirá ocaso de acordo com

a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito".

Não se justifica, a propósito, o temor, freqüentemente verbalizado,

de que a adoção de uma posição como a da presente proposta - ou

mesmo a versão mais efetiva do mandado de injunção, defendida pela

maior parte da doutrina - importaria no exercício excessivo de compe-

tências normativas pelo Poder Judiciário. Não há hipótese de isso acon-

tecer. Confirme-se.

Somente as regras definidoras de direitos subjetivos constitucio-

nais, cuja eficácia e efetividade estejam condicionadas à edição de uma

norma infraconstitucional, ensejam a impetração de mandado de injunção

ou a necessidade de decisões integrativas. Essas hipóteses são limita-

das, e sua invocação revela que a solução aqui proposta é mais simples,

prática e eficiente que a do mandado de injunção.

Page 235: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Tome-se como exemplo o inciso XXVI do art. 5º da Constituição,

cuja dicção é a que se segue:

"XXVI - a pequena propriedade rural, assim defini-

da em lei, desde que trabalhada pela família, não será obje-

to de penhora para pagamento de débitos decorrentes de

sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de

financiar o seu desenvolvimento".

Pois bem: supondo-se inexistir essa lei definindo "pequena propri-

edade rural", que medida poderia tomar o pequeno proprietário que qui-

sesse impedir a penhora de sua propriedade? Pela orientação do Supre-

mo Tribunal Federal, poderia requerer um mandado de injunção, peran-

te a mais Alta Corte, para que fosse dada ciência ao Congresso da omis-

são. Pelo entendimento da maior parte da doutrina, caberia mandado de

injunção também ao Supremo Tribunal Federal, no qual se pediria à

Corte que definisse, para o caso concreto, o sentido de "pequena proprie-

dade rural". Pela presente proposta, caberia ao juiz da causa essa defini-

ção, "com base na analogia, nos costumes e nos princípios gerais de

direito". De tal decisão caberiam os recursos próprios.

O mandado de injunção, na atual quadra, tomou-se uma complexi-

dade desnecessária. Mais simples, célere e prática se afigura a atribui-

ção, ao juiz natural do caso, da competência para a integração da ordem

jurídica, quando necessária para a efetivação de um direito subjetivo

constitucional submetido à sua apreciação. No fundo, do ponto de vista

material, não se trata de supressão do instituto, mas de sua ampliação e

difusão. Não haveria, assim, qualquer óbice decorrente do art. 60, § 4º,

IV, da Constituição, pois não se está abolindo a garantia individual, mas,

ao contrário, dando-lhe maior aplicação.

Em síntese de tudo que se vem de expor neste tópico, é possível

deixar consignado que:

1) A Constituição, sem prejuízo de sua vocação prospectiva e

transformadora, deve conter-se em limites de razoabilidade no regramen-

to das relações de que cuida, para não comprometer o seu caráter de

instrumento normativo da realidade social.

2) As normas constitucionais têm sempre eficácia jurídica, são im-

perativas e sua inobservância espontânea enseja aplicação coativa.

3) As normas constitucionais devem estruturar-se e ordenar-se de

forma tal que possibilitem a pronta identificação da posição jurídica em

que investem os jurisdicionados.

4) Tais posições devem ser resguardadas por instrumentos de tutela

adequados, aptos à sua realização prática, representados pelos meios

processuais de proteção dos direitos, ou seja, as diversas ações dedutíveis

perante o Poder Judiciário.

5) Para procurar dar efetividade às normas constitucionais em ca-

sos de inconstitucionalidade por omissão, o ordenamento brasileiro

prevê o mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade

por omissão.

6) No mandado de injunção, a despeito de posição divergente do

Page 236: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Supremo Tribunal Federal, a maior parte da doutrina converge para o

entendimento de que compete ao Judiciário suprir a omissão normativa,

formulando para o caso concreto, e com efeito apenas inter partes, a

regra integrativa do comando constitucional.

7) Na ação direta de inconstitucionalidade por omissão o controle é

exercido em abstrato, tendo por objeto dar-se ciência formal da omissão

normativa ao Poder competente, para adoção das providências necessárias,

ou, em se tratando de órgão administrativo, para que tome tais providên-

cias em trinta dias.

8) O mandado de injunção, a despeito das resistências poderosas

que enfrentou, já cumpriu o seu papel histórico de difundir a ideologia

da efetividade da Constituição. Presentemente, melhor do que um re-

médio sujeito à jurisdição concentrada dos tribunais superiores é o reco-

nhecimento da competência do juiz natural da causa para integrar a

ordem jurídica, formulando a regra faltante no âmbito do caso concreto

que lhe cabe decidir, fundado na analogia, nos costumes e nos princípios

gerais do direito.

PARTE FINAL - A OBJETIVIDADE DESEJADA E A NEUTRALIDADE

IMPOSSÍVEL: O

PAPEL DO INTÉRPRETE NA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

Capítulo 1 - SABER JURÍDICO CONVENCIONAL, TEORIA CRÍTICA DO

DIREITO E DIREITO ALTERNATIVO. A SINTESE NECESSÁRIA

1. Introdução

O conhecimento jurídico tradicional, que se abebera nas fontes ro-

manas e tem como pontos culminantes a produção científica de Savigny,

no século passado, e de Hans Kelsen, neste século, exibe como traços

marcantes o formalismo e o dogmatismo. O elemento básico na idéia de

formalismo é a premissa de que a atividade do intérprete se desenvolve

por via de um processo dedutivo, onde se colhe a norma no ordenamento

e faz-se a subsunção dos fatos relevantes. Esse processo lógico-formal

se concretiza através de um raciocínio silogístico, onde a lei é a premis-

sa maior, a relação de fato é a premissa menor e a conclusão é a regra

concreta que vai reger o caso. O dogmatismo, ou conceptualismo, tra-

duz-se na existência e observância de determinados princípios e concei-

tos rígidos, axiomáticos, ou, pelo menos, de longa data inquestionados.

1. V. Friedrich Carl von Savigny, Sistema di diritto romano attuale, 1886, 8 v.; Hans

Kelsen, Teoria pura do direito, 1979; Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis,

1987; Robert Haymnan Jr. e Nancy Levit, Jurisprudence: contemporary readings, problems,

and narratives, 1994, p. 11.

O direito é concebido como uma ciência, com objeto específico e acen-

tuado grau de auto-suficiência. Rigorosamente separado da política, não

se inclui na sua esfera própria de atuação qualquer questionamento acerca

da legitimidade e da justiça das leis. É a sua pureza científica. Ademais, o

ordenamento jurídico é uma emanação estatal e tem a pretensão de

Page 237: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

completude, colhendo todas as situações verificáveis na vida social. O Es-

tado é o árbitro imparcial dos conflitos que ocorrem na sociedade, e o

juiz, como aplicador do direito, se pauta pela objetividade e neutralidade.

Correndo o risco das simplificações, mas com proveito didático, é possí-

vel afirmar que, na concepção clássica, amadurecida desde o final do sé-

culo passado, incluem-se entre as principais características do direito: a)

o caráter científico; b) o emprego da lógica formal; c) a pretensão de

completude; d) a pureza científica; e) a neutralidade da lei e do intérprete.

2. A teoria crítica

Diga-se, desde logo, que, embora fustigada ao longo das décadas

pelas críticas mais contundentes, a concepção clássica do direito subsis-

te e prevalece em todo o mundo ocidental, apesar de algumas nuances e

temperamentos. Não se pretende com isso, todavia, endossar a crença

de que a durabilidade legitima a perspectiva convencional ou encobre-

lhe os defeitos. A constatação inevitável, todavia, é a de que até hoje não

se edificou uma teoria alternativa e substitutiva da dogmática conven-

cional. O que significa que ela ainda não concluiu o seu ciclo histórico.

Alinham-se, a seguir, as principais idéias do amplo movimento de

contestação do saber jurídico tradicional conhecido como teoria crítica

do direito. Embora difuso e compreendendo diferentes linhas de pensa-

mento, esse movimento desprende-se dos discursos típicos do direito, que

incluem o normativismo, o jusnaturalismo e mesmo o sociologismo, pro-

curando demonstrar sua insatisfatoriedade na compreensão e na prática

do fenômeno jurídico. É a crítica da teoria. De parte isto, paralelamente

ao processo puramente descritivo do objeto, preconiza a atuação concre-

ta, a militância do operador jurídico, à vista do princípio de que o papel do

conhecimento não é somente a interpretação do mundo, mas também sua

transformação. É dizer: uma teoria crítica.

2. Vejam-se Carlos Maria Cárcova, Prólogo à coletânea Materiales para una teoría

crítica del

derecho, s. d., p. 7, e Michel Miaille, Reflexão critica sobre o conhecimento jurídico.

Possibilidades e

limites, in Crítica do direito e do Estado, 1984, p. 38.A idéia de uma atitude conclamando à

ação, em

contraposição à postura filosófica predominantemente descritiva, que se colhia em Hegel,

tem forte

inspiração marxista. Veja-se Leandro Konder, A derrota da dialética, 1988, p. 6: "Até para

poder

conhecer certos aspectos da realidade histórica dos homens, é preciso mergulhar ativamente

no movi-

mento que lhe dá vida. A décima primeira das Teses sobre Feuerbach mostra um Marx

plenamente

cônscio da originalidade do seu ponto de vista: "os filósofos têm se limitado a interpretar o

mundo de

maneiras diversas; trata-se de transformá-lo" (Marx-Engels-Werke, vol. 3, p. 7)".

As doutrinas jurídicas dominantes normalmente deixam de lado o

Page 238: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

papel desempenhado pela ideologia, tanto a do legislador quanto a do

intérprete da lei. Esse silêncio nada mais é do que um compromisso

com o status quo. Pois a teoria crítica do direito, ao revés, denuncia a

função ideológica do direito e o fato de que, em nome de uma pretensa

razão científica, encobrem-se relações de poder. O direito é ideológico

na medida em que oculta o sentido das relações estruturais estabelecidas

entre os sujeitos, com a finalidade de reproduzir os mecanismos de

hegemonia social.

3. A propósito desse tópico, escreveu Edmundo Lima de Arruda Jr., Introdução à

sociologia

jurídica alternativa, 1993, p. 15: "Nosso objetivo não é entrar na crítica a Kelsen. (...)

Muitos

outros já se encarregaram de levantar a questão mais importante quando se refere ao autor

da Teoria

Pura do Direito: o não dito, o silêncio, o vazio, a grande lacuna kelseniana".

4. Luís Alberto Warat, A produção crítica do saber jurídico, in Crítica do direito e do

Estado,

1984, p. 17-8, e Carlos Maria Cárcova, Acerca de las funciones del derecho, in Materiales

para una

teoría crítica del derecho, cit., p. 214. Para um amplo estudo sobre o tema em geral, v. L.

Fernando

Coelho, Teoria crítica do direito, 1991, que tem uma versão resumida publicada em 1993.

Conseqüentemente, é falsa a crença de que o direito seja um domí-

nio politicamente neutro e cientificamente puro. O normativismo jurídi-

co, escreveu Warat, com sua ilusória sistematização, abstração e gene-

ralização, situa a lei como expressão política que garante e organiza um

jogo igualitário entre os homens, isolando-os do sistema de decisões e

interesses. Os juristas conseguem elaborar um discurso de ocultamento

das funções e do funcionamento do direito na sociedade. A produção

de um saber jurídico crítico procura "rever o conceito tradicional da

ciência do direito, demonstrando como a partir de um discurso organi-

zado em nome da verdade e da objetividade desvirtuam-se os confli-

tos sócio-políticos, que se apresentam como relações individuais har-

monizáveis pelo direito".

5. Luís Alberto Warat, A produção crítica do saber jurídico, in Crítica do direito e do

Estado,

cit., p. 20.

A teoria crítica do direito reveste-se de cunho eminentemente

interdisciplinar. Ela se realiza através de um discurso de interseção,

para o qual concorrem múltiplos saberes: os que o pensamento jurídico

acumulou ao longo dos séculos como próprios e os que vêm de outras

procedências, como a lingüística, a sociologia, a economia política, a

psicologia social, a antropologia, a história e a psicanálise. Numa pers-

pectiva ainda mais filosófica e aprofundada, exibe a influência de filó-

sofos da chamada escola neomarxista de Frankfurt, que inclui Max

Horkheimer, Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Também refletiram

sobre o movimento os trabalhos sobre hermenêutica desenvolvidos por

Page 239: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Jürgen Habermas, Hans-Georg Gadamer e Paul Ricoeur, cuidando

do papel do intérprete e da indeterminação dos textos.

6. Carlos Maria Cárcova, Prólogo, in Materiales para una teoría crítica del derecho,

cit.,

p. 8.

7. Max Horkheimer, Critical theory, 1972.

8. Herbert Marcuse, One-dimensional man: studies in the ideology of advanced

industrial

society, 1964.

9. Theodor Adorno, Negative dialectics, 1973.

10. Jürgen Habermas, Theory and practice, 1973.

11. Hans-Georg Gadamer, Trust and method, 1975.

12. Paul Ricoeur, Hermeneutics and the human sciences, 1981.

Além de não ser neutro, o direito não tem a objetividade proclama-

da pelo raciocínio lógico-formal de subsunção dos fatos à norma. Ao

revés, é a indeterminação dos conteúdos normativos uma marca do di-

reito. Mesmo o emprego dos mecanismos do direito posto conduz a

resultados conflitantes, diante das possibilidades abertas pelo texto, cir-

cunstância que se torna ainda mais ostensiva quando se trate de normas

constitucionais. Em palavras de Joseph William Singer, escrevendo so-

bre a versão norte-americana do movimento - os Critical Legal Studies

-, a teoria crítica "acredita que o Direito não é apolítico e objetivo:

advogados, juízes e juristas, em geral, fazem opções altamente discutí-

veis, mas se utilizam do discurso jurídico para fazer com que as institui-

ções pareçam naturais e as regras neutras".

13. Joseph William Singer, The player and the cards: nihilism and legal theory, Yale

Law

Journal, 94:1, 1984, p. 5.

A teoria crítica sofre evidente influência do pensamento marxista,

embora não se tivesse em Marx uma teoria acabada do direito. Sua

ênfase economicista, tão didaticamente enunciada no Prefácio à Con-

tribuição à crítica da economia política, remarca a tese de que o direi-

to é uma superestrutura que corresponde, no mundo das idéias, a uma

base material, resultante das relações de produção. É a infra-estrutura

econômica - e tão-somente ela - que condiciona as instituições ju-

rídicas. Sem embargo, pensadores marxistas e militantes da teoria

crítica sustentam que os elementos da superestrutura não devem ser

abandonados a si mesmos, ao seu desenvolvimento espontâneo, a uma

germinação casual e esporádica. De fato, Michel Miaille, condenan-

do a interpretação simplista que desautorizadamente se atribui ao ma-

terialismo histórico, doutrina que não somente o direito não é um mero

reflexo da economia como é um elemento constitutivo que participa

ativamente de sua construção.

14. V., sobre o tema, Michel Miaille, Introdução crítica ao direito, 1989.

15. Karl Marx, Contribuição à crítica da economia política, in Obras escolhidas de

Marx e

Page 240: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Engels, 1961, p. 301: "Na produção social da sua vida, os homens contraem determinadas

relações

necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a uma

deter-

minada fase de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais, O conjunto dessas

relações

de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta a

supe-

restrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência

social, O

modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e

espiritual em

geral".

16. Antonio Gramsci, Maquiavel, apolítica e o Estado moderno, 1980, p. 152.

17. Michel Miaille, Reflexão crítica..., in Crítica, cit., p. 44 e 46.

Em síntese apertada, é possível deixar registrado que a teoria crítica

do direito questiona: o caráter científico do direito, por faltar-lhe a pre-

tendida objetividade que decorreria de uma irreal aplicação mecânica

da norma ao fato, com base em princípios e conceitos generalizadamente

válidos; a alegada neutralidade política, ao denunciar sua função ideo-

lógica de reforçador e reprodutor das relações sociais estabelecidas; a

pureza científica, ao preconizar a interdisciplinariedade como instrumen-

tal indispensável à formação do saber jurídico. Trata-se, no entanto, de

uma teoria crítica, e não de uma dogmática substitutiva ou alternativa.

3. O direito alternativo

Na seqüência histórica da teoria crítica, fundado nos mesmos pres-

supostos ideológicos, articulou-se em diversos países do mundo, inclu-

sive no Brasil, um movimento conhecido como direito alternativo. A

denominação imprópria, o discurso inicial mais radical, que se confron-

tava asperamente com o ideário dominante, e até mesmo uma

caricaturização feita em órgãos de imprensa, atraíram para o movimen-

to a antipatia ostensiva dos segmentos conservadores e dos militantes

menos tolerantes da ideologia jurídica tradicional. A crítica, em grande

medida, tirou proveito do ceticismo generalizado que recaiu sobre o

pensamento de esquerda em geral.

18. Sobre as perplexidades que colheram os setores do pensamento identificados como

de

esquerda, veja-se a Nota Prévia ao nosso Princípios constitucionais brasileiros ou de como

o papel

aceita tudo, Revista Trimestral de Direito Público, 1:169. Vejam-se, também, J. J. Gomes

Canotilho,

Rever ou romper com a Constituição dirigente, mimeografado, Conferência realizada no

Instituto

Pimenta Bueno, em 22-9-1993, onde averbou: "A "má utopia do sujeito do progresso

histórico"

Page 241: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

alojou-se em "constituições plano e balanço" onde a propriedade estatal dos meios de

produção se

misturava em ditadura partidária e coacção moral e psicológica. Alguns - entre os quais me

incluo

- só vieram a reconhecer isto tarde e lentamente demais"; e Mark Tushnet, Critical legal

studies:

a political history, Yale Law Journal, 100:1515, 1991: "The intellectual program of critical

legal

studies may well have tu be refocused, which may drain it of some vitality. In particular,

the

developments of 1989 rather strongly suggest that a leftist political movement may find it

difficult

tu take comfort in the continuing effort tu discredit classical social theory".

Por trás do preconceito e das visões estereotipadas, é preciso deli-

near o conteúdo das idéias do movimento alternativo e o espaço que ele

possa merecer no cenario acadêmico e jurisprudencial. A teoria crítica

do direito, nascida e divulgada no seio das Universidades, preocupou-

se, acima de tudo, em desmistificar o fenômeno jurídico e introduzir

novos elementos valorativos na sua discussão. Trata-se de um movi-

mento de desconstrução. A proposta do direito alternativo, embora ser-

vindo-se da experiência crítica, procura contribuir para a emergência de

um novo direito.

19. V. Clêmerson Merlin Clêve, A teoria constitucional e o direito alternativo, in

Direito alter-

nativo. Seminário Nacional sobre o Uso Alternativo do Direito, 1993, p. 46.

A exemplo da teoria crítica, o movimento do direito alternativo tam-

bém condena o fetiche da lei e a mistificação liberal-positivista que

estabelece uma identificação entre direito e lei. Mais que isso, rompe

com a idéia clássica da estatalidade do direito, passando-se a admitir

direitos "que se vão constituindo pelos conflitos e avanços dos excluí-

dos da nossa sociedade". Há, mesmo, direitos alternativos que se for-

mam como fruto da deterioração social e da ausência do poder público

trazendo o direito oficial. É o que se passa, por exemplo, "nos presídios,

em porões de algumas delegacias de polícia, em determinadas zonas

comandadas por traficantes".

20. V., por todos, Roberto Lyra Filho, Direito e lei, in O direito achado na rua, 1990,

p. 32.

21. Roberto Ramos de Aguiar,A crise da advocacia no Brasil, 1991, p. 78.

22. Em passagem inspiradíssima, em que reconhece a possibilidade de existência, não

de um

único direito alternativo, politicamente correto, mas de vários, nem todos conducentes ao

avanço

social, escreveu Amilton Bueno de Carvalho, Direito alternativo na jurisprudência, 1993, p.

15: "O

que se quer apontar é que não se pode cair no erro de reconhecer por democrático qualquer

direito

Page 242: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

"alternativo", posto que alguns efetivam a barbárie e são mais cruéis do que certos direitos

que

emergem de estados ditatoriais".

Sem embargo, possivelmente procurando conter os exageros da

negativa de legitimidade do direito estatal, e no esforço de preservar

uma dimensão jurídica para o movimento, que ameaçou perder tal

referência, Amilton Bueno de Carvalho, juiz no Rio Grande do Sul e

um dos principais formuladores do pensamento jurídico alternativo no

Brasil, escreveu:

"Alguns dizem que o Direito Alternativo caracteriza-

se pela negativa da lei. E tal não corresponde à realidade. A

lei escrita é conquista da humanidade e não se vislumbra

possibilidade de vida em sociedade sem normas (sejam elas

escritas ou não). (...)

A alternatividade luta para que surjam leis efetivamente

justas, comprometidas com os interesses da maioria da po-

pulação, ou seja, realmente democráticas. E busca instru-

mental interpretativo que siga a mesma diretiva. O que a

alternatividade não reconhece é a identificação do direito

tão-só com a lei, nem que apenas o Estado produz direito,

o que é diverso da negativa à lei.

(...) O que a alternatividade busca é o novo paradigma,

com a superação do legalismo estreito, mas tendo como

limites (ou conteúdo racional) os princípios gerais do direito,

que são conquistas da humanidade e serão desenvolvidos com

mais vagar (...). O compromisso do juiz deve ser a busca in-

cessante da justiça..., tendo como limites, de um lado, o caso

concreto e, de outro, os princípios universais do direito".

E em desfecho, submetendo o eventual direito não estatal às limita-

ções impostas pelo senso comum, concluiu:

"Então, o "alternativo sentido estrito" (isto é, o direito

de origem não estatal) que merece efetivação deve ter tam-

bém como limite os princípios gerais do direito, mesmo

quando ambiciona criar/destruir novos princípios, desde que

tenha como pano de fundo, ou norte, a real democratização

da vida em sociedade".

23. Amilton Bueno de Carvalho, Direito alternativo na jurisprudência, cit., p. 10, 11 e

15.

Sobre o movimento do direito alternativo em geral, vejam-se, além dos trabalhos já citados,

as

obras coletivas Lições de direito alternativo, v. 1 e 2, Jurisprudência de direito alternativo,

Magis-

tratura e direito alternativo, Ministério Público e direito alternativo, bem como a Revista de

Direito Alternativo, n. 1, 1992, e n. 2, 1993.

4. Objetividade e neutralidade. Os limites do possível

A busca de um método jurídico de objetividade tão plena quanto

Page 243: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

possível, e bem assim da neutralidade do intérprete, foi objeto de um

dos mais célebres escritos do direito constitucional norte-americano:

Em busca de princípios neutros de direito constitucional, do Professor

da Universidade de Columbia Herbert Wechsler, publicado em 1959.

24. Herbert Wechsler, Towards neutral principles of Constitutional law, Harvard Law

Review,

73:1,1959.

O trabalho se inseriu no contexto de uma ampla crítica conservadora às

decisões proferidas pela Suprema Corte sob a presidência de Earl Warren

(1953-1969), dentre as quais se destacou a revolucionária decisão de

integração racial proferida em Brown vs. Board of Education. Em sua

condenação do ativismo judicial, o autor procura traçar uma linha dis-

tintiva entre a atuação do Judiciário e a dos outros dois Poderes. Em

uma das mais inspiradas páginas do credo liberal-conservador, escreveu

Wechsler:

"O que caracteriza as decisões judiciais, em contraste

com os atos dos outros Poderes, é a necessidade de que

sejam fundadas em princípios coerentes e constantes, e não

em atos de mera vontade ou sentimento pessoal. Discordo,

assim, com veemência, daqueles que, aberta ou encoberta-

mente, sujeitam a interpretação da Constituição e das leis a

um "teste de virtude", para verificar se o resultado imediato

limita ou promove seus próprios valores e crenças.

Quem julga com os olhos no resultado imediato, e em

função das próprias simpatias ou preconceitos, regride ao

governo dos homens, não das leis. Se alguém toma deci-

sões levando em conta o fato de que a parte envolvida é um

sindicalista ou um contribuinte, um negro ou um separatis-

ta, uma empresa ou um comunista, terá de admitir que pes-

soas de outras crenças ou simpatias possam, diante dos

mesmos fatos, julgar diferentemente. Nenhum problema é

mais profundo em nosso constitucionalismo do que este

tipo de avaliação e de julgamento ad hoc".

25. 347 U. S.483(1954).

26. Herbert Wechsler, Towards neutral principles..., Harvard Law Review, 73:1, 1959,

p. 10-6.

O texto acima, embora fiel ao pensamento do autor, foi significativamente editado e

traduzido

livremente.

Diminui, por certo, o impacto dessas palavras a informação, relevan-

tíssima, de que o método de raciocínio jurídico preconizado pelo autor

do texto levou-o à condenação, por ser não neutra, da decisão dessegre-

gacionista em Brown. De acordo com o raciocínio do Professor Wechsler,

a questão envolvia um conflito entre duas preferências: o desejo dos

negros de freqüentarem a escola com os brancos, e o desejo dos brancos

de freqüentarem a escola sem os negros. Segundo ele, a Suprema Corte

não fundamentou sua escolha em qualquer princípio neutro. Não é acei-

Page 244: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

tável que tivesse pura e simplesmente escolhido a opção dos negros. A

tese é arrepiante e emblemática: revela como a neutralidade pode ser

perversa quando estão em jogo os interesses de partes política, social e

economicamente desiguais.

27. Cass R. Sunstein, The partial Constitution, 1993, p. 76.

O primeiro fundamento da teoria de Wechsler é o de que as deci-

sões constitucionais devem ser motivadas. Cabe aos tribunais expor os

autênticos fundamentos de seus julgados e desenvolver claramente cada

fase do raciocínio que conduziu ao resultado produzido. Essas deci-

sões, e sua fundamentação, devem obedecer a princípios, isto é, a cri-

térios que podem ser formulados e postos a prova em um exercício de

dialética, e que não obedecem somente a um desígnio da vontade. Por

fim, esses princípios devem ser neutros, de modo que as decisões te-

nham lastro em análises e razões que desde logo transcendam ao re-

sultado imediato que se alcança. Pode-se dizer que alguém se utiliza

de princípios neutros se estiver disposto a segui-los em outras situa-

ções em que eles sejam aplicáveis, desde que com isso não se chegue

a um resultado absurdo.

28. V., também, o trabalho subseqüente de Herbert Wechsler, The Courts and the

Constitution,

Colorado Law Review, 65:1001, 1965, onde a idéia de princípios neutros foi reiterada.

As idéias de Wechsler têm razoável apelo ao espírito e é possível

afirmar que elas são desejavelmente aplicáveis em boa parte da ativida-

de de interpretação judicial, inclusive constitucional. Elas não deixam

de ser um tempero necessário a uma perspectiva diametralmente opos-

ta, que é a das decisões fundadas exclusivamente nos resultados. Ne-

nhum juiz, lembra Enrique Alonso García, orgulha-se de não ser capaz

de reconduzir suas decisões a determinados princípios gerais. Embora

possam ocorrer hipóteses em que o juiz primeiro escolhe o resultado e

somente após procura fundamentá-lo, a necessidade de decisões

lastreadas em princípios reduz os excessos das decisões puramente result

oriented.

29. Enrique Alonso García, La interpretación de la Constitución, 1984, p. 37: "Pero al

menos

podemos afirmar que la teoría de los principios neutrales produjo en el ámbito judicial un

resultado:

ningún juez está orgulloso de afirmar que es el autor de una decisión que no obedece a

principios.

La jurisprudencia result-oriented ha devenido algo parecido a un insulto". Singularmente, o

Min.

Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal brasileiro, reproduz com freqüência, em seus

votos, o

seguinte trecho: "Ao examinar a lide, o magistrado deve idealizar a solução mais justa,

considerada

a respectiva formação humanística. Somente após, cabe recorrer à dogmática para,

encontrado o

indispensável apoio, formalizá-la" (e. g., RDA, 188:288, RE 111.787).

Page 245: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

O grande problema da pretensão de objetividade e neutralidade ple-

nas das decisões judiciais é, precisamente, que ela não passa de uma

pretensão, incapaz de submeter a totalidade dos casos. Pior: ela fraqueja

exatamente nas situações em que, pelo teor político ou pela multiplicidade

de alternativas, não há um único resultado possível. Ao menos nos casos

difíceis (v. supra), a idéia de princípios neutros será inócua, pela neces-

sidade de se pesarem valores contrapostos e avaliá-los relativamente

aos diferentes fatores presentes no caso concreto. A idéia de princípios

neutros não contém em si qualquer sinalização útil acerca de qual seja o

conteúdo que esses princípios devem ter. Trata-se de mera forma, sem

substância.

30. V. Deutsch, Neutrality, legitimacy and the Supreme Court: some intersections

between

law and political science, Stanford Law Review, 20:169, 1968.

31. Vejam-se, a propósito, John Hart Ely, Foreword: on discovering fundamental

values,

Harvard Law Review, 92:5, 1978, p. 32-3, e Richards, Rules, policies and neutral

principles: the

search for legitimacy in common law and constitutional adjudication, Harvard Law

Review, 111:1069,

1977, p. 1103. Em comentário de penetrante sarcasmo, transcrito por Alonso García (La

interpretación de la Constitución, cit., p. 59), observou o Professor Moore, da Universidade

de

Virginia: "O exemplo típico de princípio geral e neutro seria o de decidir os casos lançando

uma

moeda para o ar. Nenhum outro princípio é mais imparcial, nem mais geral ou neutro e,

naturalmente,

transcende ao resultado buscado, desde que se aplique sempre a mesma regra. E, sem

embargo, todo

mundo está de acordo que este princípio, neutro por excelência, não tem sentido algum".

Desde que o Iluminismo consagrou o primado da razão, com o aban-

dono de dogmas e de preconceitos, o mundo construído pela ciência

aspira à objetividade. As conclusões divulgadas por um membro da co-

munidade científica devem poder ser verificadas e comprovadas pelos

demais. A racionalidade do conhecimento procura despojá-lo das cren-

ças e emoções subjetivas, puramente voluntaristas, para torná-lo impes-

soal, na medida do possível. A medida do possível variará imensamen-

te, e em poucas áreas enfrentará dificuldades como no direito. É que a

ciência jurídica, ao contrário das ciências exatas, não lida com fenômenos

que se ordenem independentemente da atividade do cientista. E assim,

tanto no momento de elaboração quanto no de interpretação da norma,

hão de se projetar a visão subjetiva, as crenças e os valores do intérprete.

32. V. Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins, Filosofando:

introdução

à filosofia, 1986, p. 120.

33. V. Sergio Ferraz, Justiça social e algumas vertentes autocráticas de nosso direito

admi-

Page 246: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

nistrativo, tese apresentada à IX Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil,

Florianópolis, 1982, p. 5.

A impossibilidade de chegar-se à objetividade plena não minimiza

a necessidade de se buscar a objetividade possível. A interpretação, não

apenas no direito como em outros domínios, jamais será uma atividade

inteiramente discricionária ou puramente mecânica. Ela será sempre o

produto de uma interação entre o intérprete e o texto, e seu produto final

conterá elementos objetivos e subjetivos. E é bom que seja assim. A

objetividade traçará os parâmetros de atuação do intérprete e permitirá

aferir o acerto de sua decisão à luz das possibilidades exegéticas do

texto, das regras de interpretação (que o confinam a um espaço que,

normalmente, não vai além da literalidade, da história, do sistema e da

finalidade da norma) e do conteúdo dos princípios e conceitos de que

não se pode afastar. A subjetividade traduzir-se-á na sensibilidade do

intérprete, que humanizará a norma para afeiçoá-la à realidade, e permi-

tirá que ele busque a solução justa, dentre as alternativas que o

ordenamento lhe abriu. A objetividade máxima que se pode perseguir

na interpretação jurídica e constitucional é a de estabelecer os

balizamentos dentro dos quais o aplicador da lei exercitará sua cna-

tividade, seu senso do razoável e sua capacidade de fazer a justiça do

caso concreto.

34. Sobre o caráter a um tempo objetivo e subjetivo da interpretação, v. Owen Fiss,

Objectivity

and interpretation, Stanford Law Review, 34:739, 1982.

35. Ninguém menos do que Hans Kelsen reconheceu, com todas as letras, que o direito

obje-

tivo não fornece senão que uma moldura dentro da qual há várias possibilidades de

aplicação,

afirmando mais: "A interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma

única solu-

ção como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que - na medida em

que

apenas sejam aferidas pela lei a aplicar - têm igual valor, se bem que apenas uma delas se

torne

Direito positivo no acto do órgão aplicador do Direito" (Teoria pura do direito, 1979, p.

465-6).

Neutralidade é um conceito possivelmente mais complexo de se de-

linear do que o de objetividade. A objetividade busca uma razão científica

de validade geral. A neutralidade se dilui em muitos aspectos diferentes.

Alguns deles não são de difícil implementação, como a imparcialidade

- ausência de interesse imediato na questão - e a impessoalidade -

atuação pelo bem comum, e não para o favorecimento de alguém. Basta

seriedade e vontade de fazer bem feito para atender a tais imperativos.

Mas a neutralidade pressupõe algo impossível: que o intérprete seja in-

diferente ao produto do seu trabalho. É claro que há uma infindável

quantidade de casos decididos pelo Judiciário que não mobilizam o juiz

em nenhum sentido que não o de burocraticamente cumprir seu dever.

Page 247: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Outros tantos casos, porém, envolvem a escolha de valores e alternati-

vas possíveis. E aí, mesmo quando não atue em nome dos interesses de

classe ou estamentais, ainda quando não milite em favor do próprio in-

teresse, o intérprete estará sempre promovendo as suas próprias cren-

ças, a sua visão de mundo, o seu senso de justiça.

A idéia de neutralidade do Estado, das leis e de seus intérpretes,

divulgada pela doutrina liberal-normativista, toma por base o status quo.

Neutra é a decisão ou a atitude que não afeta nem subverte as distribui-

ções de poder e riqueza existentes na sociedade, relativamente à proprie-

dade, renda, acesso às informações, à educação, às oportunidades etc.

Ora bem: tais distribuições - isto é, o status quo - não são fruto do

acaso ou de uma ordem natural. Elas são produto do direito posto. E,

freqüentemente, nada têm de justas. A ordem social vigente é fruto de

fatalidades, disfunções e mesmo perversidades históricas. Usá-la como

referência do que seja neutro é evidentemente indesejável, porque ins-

trumento de perenização da injustiça.

36. Para uma ampla e profícua discussão acerca do status quo como parâmetro da

neutralida-

de, v. Cass R. Sunstein, The partial Constitution, cit., p. 4-7 e 68 e s. Em países onde a

questão

social tem tinturas menos dramáticas que no Brasil, a questão do status quo também se

coloca.

Mesmo que não seja na alocação de poder entre ricos e pobres, será entre negros e brancos,

mulhe-

res e homens, estrangeiros e nacionais, judeus e muçulmanos etc.

Veja-se que o problema não está só na neutralidade em si, mas em

qual o ponto de referência do que seja neutro. O status quo vigente nas

sociedades desiguais - e poucas não o são - certamente não é um

bom parâmetro. Sunstein averbou que dizer que a neutralidade não pode

fundar-se no status quo não significa que não haja lugar para ela. E, de

fato, trata-se de uma aspiração altamente desejável. Idealmente, o intér-

prete, o aplicador do direito, o juiz, deve ser neutro. E é mesmo possível

conceber que ele seja racionalmente educado para a compreensão, para

a tolerância, para a capacidade de entender o diferente, seja o homossexual,

o criminoso, o miserável ou o mentalmente deficiente. Pode-se mesmo,

um tanto utopicamente, cogitar de libertá-lo de seus preconceitos, de

suas opções políticas pessoais e oferecer-lhe como referência um con-

ceito idealizado e asséptico de justiça. Mas não será possível libertá-lo

do próprio inconsciente, de seus registros mais primitivos. Não há como

idealizar um intérprete sem memória e sem desejos. Em sentido pleno,

não há neutralidade possível.

37. Cass R. Sunstein, The partial Constitution, cit., p. 10: "To say that neutrality

should not

be founded in the status quo is hardly to say that there is no room for neutrality at all.

Interpretation

may rest on interpretative principles, but this does not mean that judges should feel free to

choose

Page 248: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

whatever principles they prefer".

38. Tudo isso sem mencionar o conjunto de fatores aparentemente prosaicos - mas

freqüentemente decisivos - que José Carlos Barbosa Moreira elencou em suas Notas sobre

alguns fatores extrajurídicos no julgamento colegiado, RF 327:61, 1994, que incluem desde

o

recinto em que se realizam as sessões até as relações pessoais entre os julgadores de um

órgão

colegiado.

É hora de concluir. O direito é certamente uma ciência, ao menos no

sentido de ser um conjunto organizado de conhecimentos, regidos por

princípios e conceitos próprios. Como tal, tem um objeto específico, que

não se confunde com o de outras ciências. O mínimo que se pode esperar

do operador do direito, antes que possa entregar-se a quaisquer outras

especulações epistemológicas, políticas ou sociológicas, é que seja capaz

de dominar o seu ofício, conhecer-lhe o instrumental teórico e prático.

Sem isso, tudo o mais é mero discurso.

39. Exemplifica-se. Diante da prisão arbitrária de um líder sindical, é possível publicar

um

contundente artigo na imprensa, convocar uma manifestação na porta da delegacia ou

impetrar um

habeas corpus. Nada impede que um advogado protagonize as duas primeiras formas de

atuação.

Mas sua função social enquanto profissional do direito se realiza pela terceira. Para isso, ele

preci-

sa dominar o instrumental mínimo do direito, tanto teórico como prático.

Mas só isso é pouco. Não se entende plenamente o mundo jurídico,

expõe Elías Días, se o sistema normativo (ciência do direito) se insula e

afasta da realidade em que nasce e à qual se aplica (sociologia do direito)

e do sistema de legitimidade que o inspira e que deve sempre possibili-

tar e favorecer sua própria crítica racional (filosofia do direito). Não é

possível, assim, uma visão cindida do direito, especialmente no momento

de sua interpretação e aplicação. Aí será necessário ter em conta sua

dimensão social e ética. Remarque-se bem a idéia: uma coisa é o conhe-

cimento jurídico. Outra é a sua contextualização, o que se faz inclusive

através da sociologia e da filosofia. São realmente coisas distintas, que,

todavia, devem ser conjugadas para a boa aplicação do direito posto.

40. Elías Días, Sociología y filosofía del derecho, 1976, p. 54 (apud Plauto Faraco de

Azeve-

do, Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica, 1989, p. 36).

Portanto, a interdisciplinariedade, não só com a sociologia e a filoso-

fia, mas com outros ramos do conhecimento científico, é parte importante

de uma análise globalizadora do direito. Releva reiterar a necessária

conscientização do intérprete quanto ao caráter ideológico de sua atua-

ção e de seu questionável papel de assegurador do status quo. Essa

perspectiva crítica - talvez autocrítica - poderá permitir ao juiz que ate-

nue alguns dos efeitos de sua posição no setor hegemônico da sociedade,

permitindo que ele se aproxime da neutralidade. Não a neutralidade da

Page 249: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

manutenção da ordem de valores, mas a que tenha como referencial o

ideal de justiça para todos, fundada em pressupostos de igualdade real.

41. V. Plauto Faraco de Azevedo, Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica, cit., p.

12: "O

processo interpretativo pressupõe uma posição previamente assumida em relação ao direito

e à

vida, que nele vai refletir-se inelutavelmente".

O juiz não pode ignorar o ordenamento jurídico. Mas, com base em

princípios constitucionais superiores, poderá paralisar a incidência da

norma no caso concreto, ou buscar-lhe novo sentido, sempre que possa

motivadamente demonstrar sua incompatibilidade com as exigências de

razoabilidade e justiça que estão sempre subjacentes ao ordenamento.

Jamais deverá o magistrado se conformar com a aplicação mecânica da

norma, eximindo-se de sua responsabilidade em nome da lei - não do

direito! -, supondo estar no estrito e estreito cumprimento do dever.

Sem essa percepção mais aguda, estará sujeito à crítica devastadora de

Plauto Faraco de Azevedo:

"Preso a uma camisa de força teorética que o impede

de descer à singularidade dos casos concretos e de sentir o

pulsar da vida que neles se exprime, esse juiz, servo da

legalidade e ignorante da vida, o mais que poderá fazer é

semear a perplexidade social e a descrença na função

que deveria encarnar e que, por essa forma, nega. Negan-

do-a, abre caminho para o desassossego social e a inse-

gurança jurídica".

42. Plauto Faraco de Azevedo, Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica, cit., p. 25.

Cabe, por fim, destacar uma peculiaridade que envolve a Constitui-

ção. O legislador constitucional é invariavelmente mais progressista que

o legislador ordinário. Daí que, em uma perspectiva de avanço social,

devem-se esgotar todas as potencialidades interpretativas do Texto Cons-

titucional, o que inclui a aplicação direta das normas constitucionais no

limite máximo do possível, sem condicioná-las ao legislador infraconsti-

tucional.

Essa tarefa exige boa dogmática constitucional e capacidade de tra-

balhar o direito positivo. Para fugir do discurso vazio, é necessário ir à

norma, interpretá-la, dissecá-la e aplicá-la. Em matéria constitucional,

é fundamental que se diga, o apego ao texto positivado não importa em

reduzir o direito à norma, mas, ao contrário, em elevá-lo à condição de

norma, pois ele tem sido menos que isso (v. supra). O resgate da

imperatividade do Texto Constitucional e sua interpretação à luz de boa

dogmática jurídica, por óbvio que possa parecer, é uma instigante novi-

dade neste país acostumado a maltratar suas instituições.

43. Em passagem especialmente feliz, Clèmerson Merlin Clêve, A teoria

constitucional e o

direito alternativo, cit., p. 46, assinala que não é possível confundir-se dogmática com

dogmatismo.

Page 250: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

"O dogmatismo é o apego preconceituoso e irrefletido a dogmas. (...) A dogmática constitui

o saber

jurídico instrumental e auxiliar da solução de conflitos, individuais ou coletivos, de

interesses. (...)

Não há direito sem doutrina, e, portanto, sem dogmática." Também é de bom alvitre

distinguir a

capacidade de conhecer e operar o direito positivo do positivismo, que é uma postura

filosófica de

confinamento do direito à norma.

Em busca deste desiderato, é importante difundir uma concepção do

direito constitucional dotada de rigor científico, com a apropriada utiliza-

ção de princípios, conceitos e elementos interpretativos. Essa é a única

forma de isolá-lo do que se poderia chamar charlatanismo constitucional,

que é o discurso constitucional inteiramente dissociado do direito, desen-

volvido em nível puramente teórico, com vulgaridade e insciência. Esse

discurso normativista e científico não constitui uma preferência academi-

ca ou uma opção estética. Ele resulta de uma necessidade histórica. Sem

ele, o direito constitucional continuará a ser uma miragem, com as honras

de uma falsa supremacia, que não se traduz em nenhum proveito para os

cidadãos. Sobretudo os que, já desamparados da fortuna, ficam também

desprovidos da proteção das normas jurídicas.

A necessidade de produzir um direito constitucional dotado de tais

atributos, com ênfase dogmática e normativa, adiou para algum lugar do

futuro um projeto mais sedutor do autor de conduzi-lo por uma viagem

interdisciplinar. Não apenas pelos domínios mais evidentes - a políti-

ca, a sociologia, a economia - mas outros de interesse mais recente, e

por isso mais fascinantes, como a psicanálise, a metafísica, a lingüísti-

ca. Tudo tem seu tempo. Nesta hora os compromissos e as necessidades

são outros. E, como no verso inspirado de Drummond, o tempo é minha

matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.

Capítulo II - CONCLUSÕES

O presente trabalho espelha, ao longo de suas diferentes partes, a

preocupação de explorar as potencialidades da interpretação constitu-

cional para colocá-la à disposição de uma perspectiva jurídica trans-

formadora da realidade. Seu pressuposto maior foi o da necessidade de

se conhecerem adequadamente as técnicas e o instrumental da dogmática

convencional. Supera-se, assim, uma fase em que o pensamento jurídi-

co mais engajado desprezava o saber tradicional, enfatizando sua alian-

ça com um projeto classista e excludente de sociedade.

Este estudo não se preocupou em inventariar as vitórias e derrotas

das diferentes correntes político-jurídicas do último século, nem cuida

de distribuir culpas ou exaltações. Há nele, por certo, algumas pré-com-

preensões importantes. Não se nega, por exemplo, em momento algum,

o caráter ideológico do direito. Tampouco se milita na crença de que o

mundo jurídico possa apresentar os padrões rígidos de objetividade as-

pirados pela razão científica. Mais ainda: trata-se de uma análise desa-

Page 251: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

pegada de mistificações como a da neutralidade do intérprete. Sem em-

bargo, procurou-se demonstrar que o conhecimento jurídico, mesmo o

tradicional, representa um importante espaço de resistência e oferece

opções variadas de avanço social.

Em desfecho desta exposição, que visitou diferentes cenários do uni-

verso constitucional, sempre tendo em conta o processo de interpretação

e realização da Constituição, é possível compendiar algumas de suas idéi-

as em proposições objetivas, relativamente a cada uma de suas partes.

1) A interpretação, em qualquer domínio científico, não é um fenô-

meno de caráter absoluto ou atemporal. Ao revés, ela espelha o nível de

conhecimento e a realidade de cada época e sofre a influência das cren-

ças e valores da sociedade em geral e do intérprete em particular.

2) A interpretação constitucional não foi objeto, ainda, no direito

brasileiro, de um estudo abrangente e sistemático. A despeito da existên-

cia de controvérsias, melhor é o entendimento de que ela integra a inter-

pretação jurídica geral, apresentando, todavia, especificidades que lhe

são próprias, materializadas em conceitos e princípios que atendem às

singularidades das normas constitucionais.

3) A ordem jurídica constitucional de um Estado deve ser um siste-

ma harmonioso, e, como tal, não pode tolerar antinomias, o conflito

entre normas incidentes sobre uma mesma hipótese. Quando tal ocorre,

deve o intérprete, antes de mais nada, solucionar a colisão de normas,

pela indicação de qual deverá prevalecer. Normalmente, tal determina-

ção far-se-á à luz dos princípios da hierarquia e da especialização.

4) Há, todavia, duas grandes categorias de conflitos de normas que

repercutem na interpretação e aplicação da Constituição, e que exigem

instrumental teórico próprio para seu equacionamento e solução: o con-

flito de normas no espaço e o conflito de normas no tempo. Para

discipliná-los e resolvê-los é preciso recorrer a dois domínios

freqüentemente negligenciados pelos constitucionalistas: o direito cons-

titucional internacional e o direito constitucional intertemporal.

5) Com base nos princípios e regras do direito constitucional inter-

nacional, é possível assentar algumas posições que se reputam de me-

lhor substrato jurídico. Em nenhuma hipótese um tratado internacional

deverá prevalecer sobre as normas constitucionais, sendo indiferente o

fato de o tratado ser anterior ou posterior à Constituição vigente.

6) Ao aplicar norma jurídica estrangeira, o intérprete brasileiro de-

verá agir como agiria o intérprete do país de onde a lei é originária. Se

tal ordenamento admitir que o juiz se abstenha de aplicar uma lei

inconstitucional, o juiz brasileiro deverá fazê-lo, se considerar a lei in-

compatível com o ordenamento do país de origem, à luz dos princípios

e critérios lá vigorantes.

7) Com muito mais razão, se a norma estrangeira estiver em con-

fronto com o ordenamento constitucional brasileiro, juízes e tribunais

deverão negar-lhe aplicação. As normas constitucionais são tidas como

de ordem pública internacional, impedindo a eficácia de leis, decisões

judiciais e atos jurídicos estrangeiros com elas incompatíveis.

Page 252: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

8) Também em matéria de direito constitucional intertemporal, sem

embargo de inúmeras controvérsias, é possível alinhavar algumas idéias

aqui tidas como expressão da melhor doutrina. Ao contrário do que se

afirma correntialmente, uma lei poderá ser aplicada retroativamente, sal-

vo se for para colher direito adquirido, negócio jurídico perfeito ou coi-

sa julgada.

9) Uma vez promulgada uma nova Constituição, ficam inteiramen-

te revogadas as normas constitucionais anteriores. Não vigora no direito

brasileiro, à falta de norma expressa, a chamada desconstitucionalização

das normas constitucionais, que preservaria, com caráter de lei ordiná-

ria, as normas constitucionais anteriores compatíveis com o novo

ordenamento.

10) Uma vez postas em vigor, as emendas constitucionais têm vi-

gência imediata e com o mesmo grau hierárquico das demais normas

integrantes da Constituição originária. Sujeitam-se tais emendas, toda-

via, ao controle de constitucionalidade, tanto formal quanto material,

podendo ser pronunciada sua inconstitucionalidade.

11) Quando da promulgação de uma nova Constituição, a legisla-

ção infraconstitucional anterior que seja com ela compatível continua

em vigor, através dos fenômenos da recepção ou da novação, que reve-

renciam o imperativo prático da continuidade da ordem jurídica. As nor-

mas anteriores incompatÍveis com a Constituição, por sua vez, ficam

revogadas. Como conseqüência, não se sujeitam ao controle de

constitucionalidade, que somente se exerce sobre legislação em vigor.

Essa é a posição cristalizada do Supremo Tribunal Federal, recentemen-

te reiterada após amplo debate.

12) Algumas outras regras relevantes de direito constitucional

intertemporal: a) inexiste inconstitucionalidade formal superveniente. Se

uma lei foi editada com observância do processo vigente na época de sua

criação, o fato de uma nova Constituição alterar tal processo não a invali-

da, desde que seu conteúdo seja compatível com a nova Carta; b) uma

Constituição tem vigência imediata, mas, em princípio, não retroativa, a

menos que o declare expressamente; c) declarada a inconstitucionalidade

de uma norma, ficam restabelecidas aquelas que ela revogara.

13) Relativamente à interpretação constitucional propriamente dita, é

de se remarcar que as normas constitucionais apresentam peculiaridades

que exigem tratamento diverso, dentre as quais se incluem: a) a superiori-

dade hierárquica; b) a natureza da linguagem; c) o conteúdo específico; d)

o caráter político.

14) Aplicam-se à interpretação constitucional as categorias tradicio-

nais da interpretação em geral, pelo que também é possível classificá-

la: a) quanto à sua origem, em legislativa, administrativa e judicial, na

trilogia clássica, havendo espaço, também, para discussão acerca da in-

terpretação doutrinária e autêntica; b) quanto aos seus resultados ou à

sua extensão, em declarativa, extensiva ou restritiva; c) e quanto aos

métodos, ou, mais propriamente, quanto aos elementos, em gramatical,

histórica, sistemática e teleológica.

Page 253: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

15) O processo de interpretação constitucional deve ser informado,

antes e acima de tudo, pelos princípios constitucionais, que contêm a

síntese dos valores mais relevantes da ordem jurídica. São os princípios

que contêm as decisões políticas fundamentais e que dão unidade ao

sistema constitucional, costurando suas diferentes partes e condicionando

a atuação dos Poderes Públicos. Eles se irradiam por todo o sistema,

indicando o ponto de partida e os caminhos a serem percorridos pelo

intérprete.

16) A interpretação constitucional é conduzida por um conjunto de

princípios que lhe são próprios, dentre os quais se destacam: o da supre-

macia da Constituição, o da presunção de constitucionalidade dos atos

do Poder Público, o da interpretação conforme a Constituição, o da uni-

dade da Constituição, os da razoabilidade-proporcionalidade e o da

efetividade.

17) O princípio da supremacia da Constituição, fruto da legitimida-

de superior do poder constituinte, é nota distintiva de toda a interpreta-

ção constitucional e pressuposto do controle de constitucionalidade dos

atos normativos. Por força de tal superioridade jurídica, nenhuma lei,

nenhum ato jurídico pode subsistir validamente no âmbito do Estado se

for incompatível com a Lei Fundamental.

18) O princípio da presunção de constitucionalidade das leis e dos

atos do Poder Público em geral tem raízes na independência e harmonia

entre os Poderes. Embora seja o Judiciário o intérprete final e definitivo

da Constituição, tal competência deve ser exercida com autolimitação e

deferência à interpretação dada pelos outros dois Poderes. Em linha de

princípio, uma lei só deve ser declarada inconstitucional quando a

invalidade seja manifesta e inequívoca, militando a dúvida em favor de

sua preservação.

19) A interpretação conforme a Constituição induz à interpretação

de uma norma legal em harmonia com a Lei Maior, em meio a outras

possibilidades interpretativas que o preceito admita. Tal interpretação

busca encontrar um sentido possível para a norma, que não é o que mais

evidentemente resulta da leitura de seu texto. Além da eleição de uma

linha de interpretação, procede-se à exclusão expressa de outras inter-

pretações possíveis, que conduziriam a resultado contrastante com a

Constituição.

20) O princípio da unidade, também referido como princípio da uni-

dade hierárquico-normativa da Constituição, é uma especificação, no

ambito do direito constitucional, do elemento sistemático de interpreta-

ção jurídica. As normas constitucionais consagram valores que guardam

tensões entre si. O princípio da unidade remarca a ausência de hierarquia

entre normas integrantes de um mesmo documento constitucional e im-

põe ao intérprete o dever de atuar ponderando bens e valores em jogo, de

modo a harmonizar preceitos aparentemente conflitantes e a evitar confli-

tos e contradições entre as normas constitucionais.

21) O princípio da razoabilidade tem sua origem ligada à cláusula

do devido processo legal, do direito anglo-saxão, havendo assumido uma

Page 254: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

dimensão substantiva que permite ao Judiciário adentrar o mérito de

certos atos legislativos e administrativos para aferir-lhes a justiça, a ade-

quação dos meios aos fins. Substancialmente idêntica é a idéia do prin-

cípio da proporcionalidade, desenvolvida na doutrina e jurisprudência

alemãs, e que também se traduz na adequação meio-fim, na avaliação

da necessidade da prática do ato e na aferição de seu custo-benefício.

22) O princípio da efetividade, embora de desenvolvimento relati-

vamente recente no direito constitucional, traduz a mais notável preocu-

pação do constitucionalismo dos últimos anos. Ele está ligado ao fenô-

meno da juridicização da Constituição e ao reconhecimento de sua for-

ça normativa. As normas constitucionais são dotadas de imperatividade

e sua inobservância deve deflagrar os mecanismos próprios de cumpri-

mento forçado. A efetividade é a realização concreta, no mundo dos

fatos, dos comandos abstratos contidos na norma.

23) O conhecimento jurídico tradicional, que teve seus pontos culmi-

nantes na produção científica de Savigny, no século passado, e de Hans

Kelsen, neste século, inclui na sua prática ou no seu discurso: a) o caráter

científico; b) o emprego da lógica formal; c) a pretensão de completude;

d) a pureza científica; e) a neutralidade da lei e do intérprete. Seus tra-

ços marcantes são o formalismo e o dogmatismo.

24) Esse saber jurídico convencional sofreu a contestação contun-

dente da teoria crítica do direito, que denunciou a função ideológica das

concepções clássicas contidas no discurso liberal-positivista e o fato de

que, em nome de uma pretensa razão científica, encobrem-se relações

de poder. O direito é ideológico na medida em que oculta o sentido das

relações estruturais estabelecidas entre os sujeitos, com a finalidade de

reproduzir os mecanismos de hegemonia social. A teoria crítica prega a

interdisciplinariedade e uma perspectiva globalizadora do direito, em-

bora seu discurso seja desconstrutivista, sem oferecimento de uma

dogmática alternativa.

25) Na seqüência histórica da teoria crítica, fundado nos mesmos

pressupostos ideológicos, articulou-se, no Brasil e em outras partes do

mundo, um movimento imprôpriamente denominado de direito alterna-

tivo. Depurado das incompreensões preconceituosas e de uma perspec-

tiva mais radical que se desprendia inteiramente do direito posto, o mo-

vimento traz uma importante colaboração interdisciplinar, questiona a

perpetuação das estruturas injustas acobertadas no direito positivo e

admite a produção de um direito não estatal.

26) A objetividade é um valor altamente desejável na razão científi-

ca. Nas ciências sociais e, especialmente, no direito, ela enfrenta difi-

culdades de ordens diversas. Nada obstante, a impossibilidade de chegar-se

à objetividade plena não minimiza a necessidade de se buscar a objetivi-

dade possível. O texto da lei e as possibilidades exegéticas que ela oferece

traçam os parâmetros dentro dos quais poderá mover-se o intérprete. A

lei e o princípio da legalidade são valiosas conquistas da humanidade.

27) A pretensão de neutralidade do intérprete, embora seja passível

de atendimento no que toca à sua imparcialidade e impessoalidade, é ina-

Page 255: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

tingível na sua plenitude. Interpretar envolve, freqüentemente, a escolha

de valores e de alternativas possíveis. Ainda quando não atue movido por

interesses de classe ou estamentais, ainda quando não milite em favor do

próprio interesse, o juiz estará sempre promovendo as suas crenças, a sua

visão do mundo, o seu senso de justiça. A doutrina liberal-normativista

procura identificar como neutras as atitudes que não afetam o status quo,

ou seja, que não subvertem as distribuições de poder e riqueza existentes

na sociedade. Ainda quando fosse utopicamente possível libertar o juiz de

suas injunções ideológicas, não seria possível libertá-lo do seu próprio

inconsciente, de sua memória e de seus desejos.

28) Nenhum conhecimento pode prescindir de princípios, conceitos

e elementos que se articulem em torno de um objeto, ainda que seja para

utilizá-los como instrumentos de transformação. Por tal razão, não existe

direito sem doutrina, sem institutos próprios, sem um discurso que o sin-

gularize dos outros ramos do conhecimento. Não é possível, assim, des-

prezar sumariamente a dogmática jurídica nem o conjunto de experiên-

cias e conhecimentos acumulados ao longo de séculos de vida social.

29) O constituinte é invariavelmente mais progressista que o legis-

lador ordinário. Tal fato dá relevo às potencialidades do direito constitu-

cional, e suas possibilidades interpretativas. Sem abrir mão de uma

perspectiva questionadora e crítica, é possível, com base nos princípios

maiores da Constituição e nos valores do processo civilizatório, dar um

passo à frente na dogmática constitucional. Cuida-se de produzir um

conhecimento e uma prática asseguradores das grandes conquistas his-

tóricas, mas igualmente comprometidos com a transformação das estru-

turas vigentes. O esboço de uma dogmática autocrítica e progressista,

que ajude a ordenar um país capaz de gerar riquezas e distribuí-las ade-

quadamente.

ÍNDICE ONOMÁSTICO

Accioly, Hildebrando, 16, 22

Ackerman, Bruce, 62

Adorno, Theodor, 268

Agesta, Luis Sánchez, 110

Aguiar, Roberto Ramos de, 271

Andrade, Christiano José de, 121

Andrade, Manuel A. Domingues de, 113, 116

Anzilotti, Dionisio, 15

Aragão, Egas Moniz de, 221

Aranha, Maria Lúcia de Arruda, 275

Araujo, José Antonio Estévez, 83, 128, 133, 170

Arendt, Hannah, 110

Arruda Jr., Edmundo Lima de, 267

Ascensão, José de Oliveira, 91, 121, 131, 134, 142

Ascoli, Max, 116

Ataliba, Geraldo, 62, 132, 238

Azevedo, Antonio Junqueira de, 235

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Azevedo, Plauto Faraco de, 278, 279

Bachoff, Otto, 66, 112, 157, 196, 197, 198, 199, 200, 201

Balladore-Palieri, 75

Baracho, José Alfredo de Oliveira, 62, 103, 104, 110, 116, 118, 157, 164, 168,

209, 215

Barak, Ahron, 108

Barbalho, João, 71

Barbi, Celso Agrícola, 249

Barbosa, Rui, 68, 176, 238, 242

Barboza, Heloisa Helena, 153

Barile, 48

Barron, Jerome A., 173, 174, 175, 210

Barros, Suzana de Toledo, 228

Barroso, Luís Roberto, 18, 46, 91, 110, 117, 150, 176, 192, 232, 246, 249, 270

Bassi, Antonio Pensovecchio Li, 105

Bastos, Celso Ribeiro, 3, 73, 107, 109, 119, 168, 182, 202, 238

Batalha, Wilson de Souza Campos, 13, 52, 55, 56, 61, 68

Batista, Paulo, 116

Battifol e Lagarde, 13

Berger, 114

Bermudes, Sergio, 250

Betti, Emilio, 116

Beviláqua, Clóvis, 45, 90, 142

Bickel, Alexander M., 163

Bielsa, Rafael, 215

Bittencourt, Lúcio, 79, 94, 164, 170, 182

Black, 104

Bobbio, Norberto, 9, 57,70, 134

Bóckenfórde, Ernst- Wolfgang, 4, 5

Bonavides, Paulo, 5,65,105, 113, 118, 119, 121, 140, 144, 168

Borja, Célio, 250

Bork, Robert, 114, 115

Bourdon, 175

Brennan Jr., William, 114

Brest, Paul, 174, 209

Britto, Carlos Ayres de, 109, 238

Brocher, Charles, 46

Brossard, Paulo, 79

Brugger, Winfried, 113, 125, 126, 131

Bryce, James, 158

Bulos, Uadi Lammêgo, 3

Burdeau, Georges, 157, 169

Buzaid, Alfredo, 164

Caetano, Marcelo, 110, 138, 142, 167

Calamandrei, 75, 108

Campos, Bidart, 215

Campos, Francisco, 73, 242

Page 257: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Canotilho, J. J. Gomes, 17, 57, 62, 63, 66, 68, 77, 80, 84, 93, 106, 107, 108,

119, 126, 129, 142, 144, 147, 150, 151, 158, 182, 185, 187, 188, 189, 201,

218, 219, 221, 222, 235, 270

Capograssi, G., 135

Cappelletti, Mauro, 75, 94, 111, 159, 164, 170

Carbone, Carmelo, 104, 105

Cárcova, Carlos María, 5, 266, 267, 268

Carrió, Genaro, 116

Carvalho, Amilton Bueno de, 271, 272

Carvalho, Ivan Lira de, 122

Castro, Amilcar de, 13, 15, 16, 45

Castro, Carlos Roberto de Siqueira, 157, 168, 209, 216, 221, 224

Cavalcanti, Themístocles Brandão, 74, 112, 170

Chantebout, Bernard, 175

Chierchia, Pietro Merola, 104, 113, 133, 135, 136, 145, 151

Clève, Clèmerson Merlin, 164, 246, 270, 280

Coelho, Inocêncio Mártires, 3

Coelho, Luís Fernando, 103, 115, 267

Cooley, Thomas, 104, 209

Correia, Ferrer, 13

Corwin, 209, 221

Costa, Luiz Antonio Severo da, 38

Coviello, 113

Crisafulli, 113

Cunha, Fernando Whitaker da, 197

Dallari, Dalmo de Abreu, 243

Danilenko, Gennady M., 17

Dantas, Ivo, 250

Dantas, San Tiago, 209, 216

Deutsch, 275

Días, Elías, 278

Dienes, C. Thomas, 173, 174, 175, 210

Diniz, Marcio Augusto de Vasconcelos, 221

Diniz, Maria Helena, 66, 203, 204, 238

Dolinger, Jacob, 11, 13, 14, 17, 31, 34, 35, 36, 47

Duguit, Léon, 52

Duverger, Maurice, 110

Eco, Umberto, 1, 6

Ehmke, H., 5

Ely, John Hart, 134, 275

Engels, 267

Enterría, Eduardo García de, 5, 76, 84, 112, 150, 159, 160, 176, 182, 198, 235

Esmein, A., 59

Fagundes, M. Seabra, 55, 82, 110, 112, 146, 168, 244

Faoro, Raymundo, 241

Favoreu, Louis, 164, 175

Ferrara, Francesco, 91, 106, 113, 116, 118, 121, 125, 127, 129, 130, 134, 137,

Page 258: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

140, 141, 265

Ferraz Jr., Tércio Sampaio, 113, 203, 237

Ferraz, Anna Candida da Cunha, 104, 107, 116, 118, 119, 135, 138, 140, 142,

144, 146

Ferraz, Sergio, 153

Ferreira Filho, Manoel Gonçalves, 56, 60, 65, 84, 157

Ferreira, Odim Brandão, 75

Ferreira, Pinto, 54, 238

Figueiredo, Fran, 105, 128

Fiss, Owen, 276

Flaks, Milton, 254

Fleming, 134

Foelix, M., 14

França, Rubens Limongi, 51, 52, 116

Franco, Afonso Arinos de Mello, 142, 143, 158

Freud, Sigmund, 2

Friesenhahn, 175

Gabba, 52

Gadamer, Hans-Georg, 268

Galvão, Paulo Braga, 62

García, Enrique Alonso, 115, 274, 275

Garcia-Pelayo, Manuel, 144

Gény,François, 116, 137

Glennon, Michael J., 29

Gordillo, Agustin, 220

Gramsci, Antonio, 269

Grau, Eros Roberto, 147, 150

Grey, 216

Grinover, Ada Pellegrini, 209, 215

Guerra Filho, WilIis Santiago, 215, 219, 220

Gunther, Gerald, 213

Häberle, Peter, 120

Habermas, Jürgen, 268

Hamilton, Alexander, 161, 162

Harris, 134

Hart, H. L. A., 129

Hauriou, André, 240

Haymnan Jr., Robert, 265

Hazard Jr., 36

Heck, Philipp, 137

Henkin, Louis, 27, 35

Hesse,Konrad,4, 106, 112, 113, 125, 181, 182, 184, 185, 187, 189, 192, 193,

235, 238

Horkheimer, Max, 268

Horta, Raul Machado, 52, 62, 144

Horwitz,Morton J., 114,115,145,214

Ihering, Rudolph von, 116, 137

Page 259: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Ipsen, 183

Jackson, John H., 27

Jay,John, 161,16

Jellinek, 199

Kelsen, Hans, 16, 57, 69, 82, 91, 159, 169, 170, 188, 236, 240, 265, 276

Konder, Leandro, 267

Krebs, 222

Kropholler, Jan, 47

Larenz, Karl, 104, 113, 127

Lassalle, Ferdinand, 111

Lavié, Quiroga, 217, 218

Leal, Aurelino, 24

Leal, Victor Nunes, 46, 73, 162

Levinson, Sanford, 174, 209

Levit, Nancy, 265

Lima, Hermes, 108

Lima, Mário Franzen de, 116

Llewellyn, Karl, 4

Lobel, Jules, 49

Locke, John, 167

Loewenstein, Karl, 140, 241

Lopes, Maurício Antonio Ribeiro, 62

Louisell, 36

Lowenfeld, Andreas F., 28

Lyra Filho, Roberto, 271

Machado, João Batista, 11, 38, 45

Maciel, Adhemar Ferreira, 250

Madison, James, 161, 162

Magalhães, Maria da Conceição Ferreira, 134

Marcuse, Herbert, 268

Marques, Frederico, 106

Martines, Temistocle, 93

Martins, Ives Gandra da Silva, 182, 183, 202

Martins, Maria Helena Pires, 275

Marx, Karl, 267, 269

Maximiliano, Carlos, 24, 51, 56, 72, 103, 115, 118, 121, 122, 131, 132, 137,

143, 170, 171, 176

Maystadt, Philippe, 37

Meese, Edwin, 114

Mello, Celso Albuquerque, 15, 17, 18

Mello, Celso Antônio Bandeira de, 110, 149, 220, 230, 231, 232, 238

Mello, Celso D. de Albuquerque, 21, 22, 29

Mello, Oswaldo Aranha Bandeira de, 103, 158, 171

Mendes, GilmarFerreira, 87, 164, 180, 182, 183, 219, 221, 222, 223, 227

Miaille, Michel, 5, 266, 269

Miranda, Jorge, 21, 58, 59, 60, 66, 68, 70, 77, 93, 94, 104, 105, 107, 119, 147,

148, 150, 183, 184, 185, 235

Page 260: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Modugno, Franco, 93

Montesquieu, 167

Moreira Neto, Diogo de Figueiredo, 62, 108, 148, 195, 200

Moreira, José Carlos Barbosa, 44, 71, 108, 164, 169, 207, 255, 259, 278

Moreira, Vital, 151

Morelli, 16

Mortati, C., 75, 94

Müller, F., 4

Murphy, 134

Neves, Marcelo, 73, 170, 171

Novelli, Flávio Bauer, 236, 238

Nowak, 167, 172, 173, 174, 209

Nunes, Castro, 74, 111, 170

Nyboyet, 13

Pereira, Caio Mário da Silva, 55, 68

Pereira, Regis Fichtner, 127

Pertence, José Paulo Sepúlveda, 143

Phillip, Loïc, 175

Pierandrei, Franco, 84, 221

Pietro, Maria Sylvia Zanella di, 220

Pillet, 13

Poletti, Ronaldo, 73, 164, 170, 176

Pontes de Miranda, 11, 60, 72, 86, 110, 148

Pontier, 175

Popp, Carlyle, 52

Pound, 215

Powell, H. Jefferson, 115

Pugh, 35

Quintana, Linares, 121, 128, 130, 131, 135, 157, 160, 215, 218, 223, 240

Ramos, Rui Manuel Gens de Moura, 47

Reagan, Ronald, 114

Real, Alberto Ramón, 104, 142, 144

Reale, Miguel, 109, 141, 144, 148, 188, 236

Redenti, E., 93

Rehnquist, William H., 115, 213

Rezek, José Francisco, 21, 22, 25

Ricci, 175

Richards, 275

Ricoeur, Paul, 268

Ritterspach, 170

Rocha, Carmen Lúcia Antunes, 62

Rodrigues, Silvio, 54

Rotunda, 167, 172, 173, 174, 209

Roubier, Paul, 51

Ruffia, Biscaretti di, 75, 168, 243

Ruggiero, De, 113

Russo, Eduardo A., 5

Page 261: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Russomano, Rosah, 110

Sampaio, Nelson de Souza, 65

Santana, Jair Eduardo, 62

Santi Romano, 188

Savigny, 13, 118, 125, 265

Schachter, 35

Schlaich, Klaus, 183

Schmitt, Carl, 59, 63, 82, 170

Schneider, Peter, 113

Schwartz, Bernard, 209

Segado, Francisco Fernandez, 76, 176, 182

Seidman, 160, 209, 213

Siches, Luís Recaséns, 103, 116, 148, 238

Sieyès, Emmanuel Joseph, 110, 157

Silva, José Afonso da, 60, 66, 80, 110, 119, 157, 236, 238, 239, 249

Silva, Agustinho Fernandes Dias da, 13, 20, 23, 45

Silveira, Alípio da, 106, 115, 138, 142

Singer, Joseph William, 268

Smend, 4, 82, 170

Smit, 35

Smith, Edward Conrad, 223

Soares, Humberto Ribeiro, 71

Souza, Marcelo Rebelo de, 92

Stern, Klaus, 125, 130, 182, 187, 189, 192, 193, 195

Stevens, John Paul, 114

Stone, 160, 209, 213

Story, 13, 45, 121, 138

Strenger, Irineu, 13, 45

Sunstein, 160, 168, 209, 213, 273, 277

Tácito, Caio, 227

Tait, 36

Teixeira, J. H. Meirelles, 104

Temer, Michel, 167, 239

Tenório, Oscar, 13, 14, 24, 34, 45, 90, 139

Tiburcio, Carmen, 36

Tornaghi, Hélio, 249

Torres, Ricardo Lobo, 104, 105, 106, 127, 181, 203

Tribe, Laurence, 2, 115, 173, 175

Triepel, Heinrich, 15

Tushnet, 160, 209, 213, 270

Usera,Raúl Canosa, 104,105,107,112,114,125,127,130,135,151,195

Valladão, Haroldo, 10, 13, 15, 23, 34, 45, 46

Vanossi, Jorge Reinaldo, 157

Vedel, Georges, 175

Velloso, Carlos Mário da Silva, 73, 164, 249

Verdú, Pablo Lucas, 125

Viehweg, Theodor, 5

Page 262: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

Villalón, Pedro Cruz, 37

Virga, Pietro, 93

Warat, Luís Alberto, 5, 267

Wechsler, Herbert, 272, 273, 274

Werke, 267

Wilson, Woodrow, 144

Wood, Gordon S., 110

Wright, Charles Alan, 36

Wróblewski, Jerzy, 105

Young, 167, 172, 173, 174, 209

Zamudio, Hector Fix, 116

ÍNDICE ALFABÉTICO-REMISSIVO

Abuso de poder legislativo, 226

Ação declaratória de constitucionalidade, 179

Ação direta de inconstitucionalidade

descabimento em face de Constituição revogada, 83

descabimento quando a lei é anterior à Constituição, 73 e s.

descabimento quando a lei foi revogada, 97

finalidade, 95

medida cautelar, 178, 179

Analogia constitucional, 139, 140, 141

Antinomias jurídicas, 9

Conflito de normas, 9 e s.

no espaço, 13 e s.

no tempo, 51 e s.

Conflito entre direito internacional e Constituição, 20 e s.

Constituição

aplicação imediata e aplicação retroativa, 87, 88, 89, 90

classificação ontológica, 240

e norma estrangeira, 33 e s.

e tratado internacional, 15 e s.

normativa, 240

nova e ordem constitucional anterior, 57 e s.

nova e ordem infraconstitucional anterior, 67 e s.

novação, 70

princípio da continuidade da ordem jurídica, 68

recepção, 68, 69

revogação ou invalidação, 72 e s.

objeto, 243, 244

rigidez constitucional, 158

semântica, 241

supremacia da, 57, 58, 156

Controle de constitucionalidade

de lei estrangeira em face da Constituição brasileira, 44 e s.

de lei estrangeira em face da Constituição de origem, 35 e s.

descumprimento, pelo Executivo, de lei inconstitucional, 176, 177

Page 263: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

efeito repristinatório da decisão, 90, 91, 92, 93, 94

incidental, 169

origem, 159, 160, 161, 162, 163, 171, 172

principal, 170

Costume constitucional, 141, 142, 143

constitucionalismo inglês, 141

Desconstitucionalização das normas constitucionais, 59, 60, 61, 62

Desvio de poder, 225

Desvio de poder legislativo, 226, 227

Devido processo legal, 209 e s.

Direito adquirido, 52

Direito alternativo, 270, 271, 272

Direito constitucional internacional, 13 e s.

Direito constitucional intertemporal, 51 e s.

novação, 70

recepção, 68, 69

recepção material, 58, 59, 60

Direito de ação, 245

Direito e ideologia, 266

Direito estrangeiro

aplicação por tribunais nacionais, 34, 35, 38, 39, 40

Direito internacional privado, 13, 14, 15

Direito subjetivo, 244, 245

Dualismo, 15

Emenda constitucional

limitações materiais, 65, 66, 67

inconstitucionalidade de seu processamento, 65, 66

procedimento, 65

Inconstitucionalidade

de normas constitucionais, 20, 21, 196, 197, 198, 199, 200, 201, 202, 203,

204, 205

de tratado internacional, 21 a 33

e efeito repristinatório, 90, 91, 92, 93, 94

formal, 83, 84

em face da Constituição anterior, 83, 84, 85

em face da Constituição em vigor, 83, 84, 85

formal superveniente, 83 e s.

material, 83

por omissão, 246, 247, 248

Interpretação, 103 e s.

hermenêutica jurídica, 103

Lei de Introdução ao Código Civil, 105

métodos ou elementos clássicos, 4, 124 e s.

originalismo, 112, 113, 114, 115

papel do intérprete, 265 e s.

subjetivismo e objetivismo, 112, 113, 114, 115

Interpretação constitucional, 3, 4, 5, 103 e s.

Page 264: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

administrativa, 117

analogia, 139, 140, 141

aplicação direta da norma constitucional, 106

aplicação indireta, pelo controle de constitucionalidade, 106

autêntica, 118, 119

construção, 103, 104

costume constitucional, 141, 142, 143

declarativa, restritiva e extensiva, 120 e s.

doutrinária, 118

evolutiva, 143, 144, 145, 146

gramatical, literal ou semântica, 126 e s.

histórica, 131 e s.

judicial, 117, 118

autolimitação do Judiciário, 170

função jurisdicional, 168, 169

legislativa, 116, 117

método hermenêutico clássico, 4

objeto, 106

objetividade e neutralidade, 114, 115, 272 e s.

sistemática, 134, 135, 136

teleológica, 136, 137, 138, 139

Mandado de injunção, 248 e s.

objeto, 249, 250, 251

legitimação passiva, 250

Método hermenêutico clássico, 4

Método tópico aplicado ao direito, 4, 5

Monismo, 15, 16, 23, 24

Normas constitucionais

de eficácia contida, 238, 239

de eficácia limitada, 238, 239

de eficácia plena, 238, 239

definidoras de direitos, 243, 244

de organização, 109, 243, 244

desconstitucionalização das normas constitucionais, 59, 60, 61, 62

peculiaridades, 107 e s.

caráter político, 111, 112

conteúdo específico, 108, 109, 110

natureza da linguagem, 107, 108

superioridade hierárquica, 107

programáticas, 109, 243, 244

Norma estrangeira e Constituição, 33 e s.

Norma estrangeira e Constituição brasileira, 44 e s.

Norma estrangeira e Constituição de origem, 35 e s.

Ordem pública

interna, 45, 46

internacional, 46, 47, 48, 49

Poder constituinte, 110, 111

Page 265: BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.pdf

derivado, 55

originário, 55

Princípios, 147 e s.

finalidades dos, 152, 153

princípio da continuidade da ordem jurídica, 68

Princípios constitucionais, 147 a 156

fundamentais, 151, 153

gerais, 151, 154

setoriais ou especiais, 151, 152, 154, 155, 156

Princípios de interpretação especificamente constitucional, 147 e s.

princípio da efetividade, 235 e s.

princípio da interpretação conforme a Constituição, 180 e s.

princípio da presunção de constitucionalidade, 167 e s.

princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, 209 e s.

princípio da supremacia da Constituição, 67, 156 e s.

princípio da unidade da Constituição, 188 e s.

Retroatividade da lei, 51 a 56

Separação dos Poderes, 167, 168, 169

Sobredireito, 11

Teoria crítica do direito, 5, 266, 267, 268, 269

Tópica, 4, 5

Tratado internacional e Constituição, 15 e s.

dualismo, 15, 16

inconstitucionalidade do tratado, 21 a 33

monismo, 15,16

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